Chapter 1: Expedição
Chapter Text
“Os fatos narrados a seguir têm o único objetivo de servir de testemunha das minhas aventuras para o caso de eu jamais retornar de alguma delas e restarem apenas meus relatos escritos a respeito de tudo o que encontraremos. Tentarei escrever todos os dias nesse diário para que os relatos sejam os mais verídicos possíveis, embora eu mesmo saiba que muitos e muitos dias serão apenas repletos de areia e calor na paisagem desoladamente bela do deserto de Sumeru. Caso ocorra de muitos dias consecutivos sem novidades além de muita areia, cortarei os escritos desnecessários na edição final para arquivamento.
De todo modo este é apenas o meu rascunho e devo editar consideravelmente o texto antes que seja publicado, ficando este rascunho guardado apenas para meu próprio uso, de forma que eu possa me relembrar de tudo aquilo que achar relevante para efeito do livro ou de minha própria memória.
Estes são os relatos da viagem que mudou completamente a minha vida.”
Dia 1 da expedição. Primeira Entrada. Preparação.
Meu nome é Tighnari e eu sou um pesquisador acadêmico, arqueólogo, biólogo, botânico e microbiologista. Eu sei, um currículo invejável para alguém da minha idade, mas não se surpreenda apenas com isso, pois não é o foco da nossa empreitada.
Recentemente rumores a respeito de um novo conjunto de ruínas sendo encontrado no deserto chamou minha atenção, sendo assim solicitei uma equipe e suprimentos para verificar o conteúdo das ruínas. Já foi verificada a informação sobre essas ruínas e elas estão no momento fechadas para evitar que mercenários e ladrões se aproximem antes que nós possamos estudá-las. Estou eufórico por poder liderar essa expedição, já que assim posso aproveitar e coletar amostra de espécimes microbiológicos que possam ter sobrevivido os últimos milênios sob a areia do deserto antes que a biologia humana acabe os prejudicando por falta de cuidado na exploração.
Estou indo com mais dois colegas estudiosos, Ohna e Dyjav. Eles não se dão muito bem, o que me preocupa sinceramente, mas até onde sei são bons amigos mesmo brigando frequentemente. Ohna está indo estudar a arquitetura das ruínas, além de que ele é um bom tradutor, Dyjav vai ajudar quanto aos experimentos e coleta de vestígios, e além de inteligente ele também é bem forte. Além deles, estamos levando mais três pessoas que serão responsáveis pela nossa segurança, um médico e dois mercenários da tropa dos trinta. Como eu disse, somos um grupo bem pequeno para causar a menor quantidade de dano possível às estruturas subterrâneas. Além disso, teremos um guia nos acompanhando da Vila Aaru até as ruínas.
Estamos levando suprimentos para a travessia até a Vila Aaru, onde recarregamos nossos mantimentos e descansaremos por dois dias para depois seguirmos até as ruínas. O percurso calculado nos levará em torno de quinze dias de viagem já incluindo a pausa para descanso na vila, ou seja, serão treze dias de viagem efetivamente.
Espero que essa empreitada valha a pena, pois não gosto de ficar tanto tempo no deserto e sei que sentirei falta da minha casa na vila Gandharva e da umidade da floresta. Meu nariz irá sofrer nessa viagem…
Hoje sairemos da cidade de Sumeru de barco pelo rumo do rio em direção ao sul, pois esse pequeno atalho aquático nos economizará praticamente um dia inteiro de viagem. Desembarcaremos na vila Vimara, de onde pegaremos a rota até Pardis Dhyai. Lá descansaremos durante a noite e partiremos novamente pela manhã descendo pela estrada em direção ao monumento Yasna, onde devemos acampar para seguir no terceiro dia em direção ao Ribat de Caravanas. A partir do Ribat caminharemos mais pouco tempo a mais que meio dia até a vila Aaru que será a última vila habitada por humanos antes das dunas. Lá reabasteceremos nossos mantimentos e pegaremos montarias para seguir pelo deserto, a parte mais longa da viagem. Ficaremos dois dias na vila para garantir que estará tudo certo para enfrentarmos o deserto, as tempestades de areia e tudo mais com segurança até alcançarmos as tais ruínas.
Estou ansioso, mas acredito que vai dar tudo certo. Estou positivo, embora triste por ficar longe de casa.
Dia 1 da expedição. Segunda Entrada. Pardis Dhyai.
Chegamos ao Pardis Dhyai. Não é uma vista nova para mim, mas é bom passarmos por aqui, pois percebi que esqueci algumas coisas do meu equipamento científico e não posso me dar ao luxo de esquecer essas coisas numa viagem tão importante. Agora sei que estou com tudo como deve estar, peguei algumas placas de armazenamento extras para o caso de contaminar alguma durante a viagem, além de mais alguns frascos estéreis e mais suprimentos de primeiros socorros, embora o médico que está nos acompanhando tenha dito que estou exagerando.
Acredito naquele ditado que diz que o precavido morreu de velho. É assim que quero morrer, velho, não de uma infecção louca no meio do deserto antes de completar trinta anos. Não tenho pressa, meu senhor. Vamos levar muitos antibióticos sim, obrigado.
Agora vou descansar com os outros, pois nos levantaremos ao raiar do sol para seguir viagem.
Dia 2 da expedição. Monumento Yasna.
Saímos debaixo de chuva. Dyjav não quis esperar a chuva passar, eu também não, pois é até bom pegarmos chuva agora. Sentiremos falta dela nos próximos dias. A chuva parou pouco antes da hora do almoço. Comemos lanches prontos, pois a madeira estava molhada demais para conseguirmos montar alguma fogueira que efetivamente queimasse. Provavelmente vou ficar escrevendo só no fim do dia para evitar consumir muito tempo que poderíamos estar caminhando ou agilizando alguma coisa com isso.
Ohna e Dyjav brigaram o dia inteiro, mas pelo menos eles servem para manter as coisas agitadas entre nós. Os mercenários os acham bastante engraçados, não posso negar que me divirto também com algumas discussões sem sentido. Eles parecem duas crianças, não tenho como evitar. Espero que não passe das discussões e eles não resolvam dar problemas de verdade mais para frente no caminho ou dentro das ruínas. Acredito que Haitham jamais se permitiria destruir uma expedição de tamanha importância por suas discussões com seu amigo, mas não vou dizer que não me preocupo com isso também.
Tivemos um breve embate com um pequeno grupo de ladrões no caminho, mas tudo foi resolvido em questão de minutos e nós seguimos viagem chegando ao Monumento Yasna dentro do tempo previsto. Fizemos uma fogueira para afastar os animais selvagens e eu coloquei incensos especiais para repelir insetos, então acredito que conseguiremos dormir adequadamente essa noite antes de seguir para o Ribat. A viagem de amanhã será mais longa do que a de hoje, por isso eu acredito que devia ir descansar um pouco.
Dia 3 da expedição. Ribat de Caravanas.
Finalmente chegamos ao Ribat de Caravanas. Foi uma longa caminhada, o doutor parece exausto por não estar tão acostumado a longas viagens como o resto de nós, o que o fez ser motivo de chacota. Amanhã, em compensação, caminharemos menos, pois a Vila Aaru fica a poucas horas daqui. Em compensação, a partir daqui as chuvas serão praticamente nulas, então meu pobre nariz sofrerá pelos próximos dias.
Tirei algum tempo para conferir nossas provisões antes de seguirmos viagem amanhã. É importante que os equipamentos cheguem intactos até as ruínas, onde realmente se farão necessários. A viagem pelo deserto pode ser cheia de imprevistos, mas as ruínas nunca foram exploradas antes, podem ter armadilhas e oferecer perigos desconhecidos para a equipe.
A cada dia que passa eu fico mais ansioso me perguntando que tipos de histórias encontraremos nas paredes daquelas ruínas, que tipos de mistérios desbravaremos a seguir. Só de pensar me sobem os calafrios.
Nossa jornada pode apresentar descobertas incríveis para a ciência.
Mesmo ainda às portas do deserto, já podemos sentir um pouco do clima. Conforme a noite cai, a temperatura despenca. Está fazendo um frio estranho para quem está acostumado com as noites amenas da cidade de Sumeru. É como se tivéssemos caminhado por alguns tantos quilômetros e entrado num “inverno fora de época”. Ainda bem que trouxemos roupas quentes, pois as noites no deserto não serão fáceis.
Dias muito quentes e noites muito frias. É melhor que estejamos preparados.
Dia 4 da expedição. Vila Aaru.
Não há muito o que se dizer. A viagem do Ribat até a Vila foi tranquila. O cenário do deserto é bem diferente daquilo que a maioria de nós está acostumado, mas isso não significa que não é bonito. Muito pelo contrário. O deserto dourado oferece um cenário desolado, entretanto é de encher os olhos até certo ponto. Certo que a partir das dunas se tornará muito menos “visualmente interessante”, pois veremos apenas quilômetros e quilômetros de areia sem fim. Um oceano dourado se estendendo até onde os olhos alcançam. Mas nesse início, onde as muralhas separam a floresta e o deserto, onde a vila se protege dentro dos cânions se escondendo das terríveis tempestades de areia, onde a passagem do tempo está marcada nos sedimentos das camadas dos cânions… É belíssimo.
O céu é o divisor de águas, azul sempre límpido, sem rastros de nuvens, sempre limpo e vibrante.
Explorei a vila, comi tâmaras frescas, aprendi as lendas locais e finalizei os preparativos para a continuação da nossa empreitada. Os próximos dias devem ser menos interessantes até que cheguemos até as ruínas de fato, a menos que as brigas de Dyjav e Ohna nos tragam entretenimento até lá. - Eu realmente espero que eles não acabem tornando essa viagem um inferno.
Dia 5 da expedição. Vila Aaru.
Hoje nosso guia se juntou a nós. Ele nos levará até as ruínas, diz conhecer o deserto como a palma de sua própria mão, e eu espero mesmo que conheça. Odiaria ficar perdido no deserto em qualquer hipótese. Justamente por isso garantimos que os seguranças que nos acompanham sejam gente que nasceu aqui, sobre as areias escaldantes do deserto.
Os animais estão prontos para a viagem e todo o equipamento está pronto para ser colocado neles para que possamos seguir a viagem. O lado bom é que dessa vez não iremos a pé, mas em uma montaria adequada ao clima e às condições do deserto.
PS*: Devido a dias e dias sem muitas ocorrências interessantes, devo fazer um resumo nesta edição para melhor aproveitamento do arquivo. Do dia 6 ao dia 13 não ocorreram muitas coisas interessantes de se anotar além de acontecimentos corriqueiros. Seguimos pelo deserto sob a orientação do guia passando pela maior quantidade possível de oásis, garantindo que sempre tivéssemos água e que os animais pudessem se hidratar e descansar propriamente. Tivemos problemas com um grupo de eremitas na nona noite, mas foram resolvidos com um pouco de diálogo e compartilhamento dos alimentos que dispunhamos para a noite. De quebra consegui ouvir algumas boas histórias que pretendo reunir em um volume escrito futuramente, mas que não convém para este livro em particular, visto que não tratam de nada relacionado ao objetivo desta expedição.
De todo modo, vou deixar aqui um dos poemas que eles cantaram, pois de alguma forma me remete à nossa viagem e acredito que me serviu de inspiração durante o trajeto.
Sob o sol escaldante
Ergue-se imponente o lamento
A súplica constante
Excruciante
Oferece-nos alento.
Sob a noite gelada
Rogamos por misericórdia
Proteja-nos da geada
Nos guarda
Do Deus da discórdia.
Pois não há conforto no deserto
E só fica mais difícil
E não haverá nenhuma recompensa
Se não houver sacrifício.
Sobre as areias douradas
Segue firme o nosso canto
Verte a água amarga
Salgada
das lágrimas dos homens.
Haverá no fim, entretanto
Concórdia e paz
Quando alcançarmos cantando
Dançando
A sabedoria tenaz.
Continuarei então a vincular os relatos dos dias posteriores a partir daqui.
Dia 13 da expedição. Chegada às ruínas.
A proporção daquela entrada era maior do que eu esperava.
A equipe auxiliar fez um excelente trabalho de limpeza na entrada, retirando os excessos de areia da área, “escavando” a enorme porta das ruínas com maestria durante os dias que levamos para chegar até lá.
Havia um enorme acampamento montado ali na entrada, de forma que nós pudéssemos contar com ajuda caso fosse necessário, além de suprimentos extras para que pudéssemos nos reabastecer sempre que precisássemos para garantir que a exploração fosse feita da melhor forma possível. Claramente havia um enorme interesse da Academia nessa expedição para garantir que não houvesse nenhum problema por falta de investimentos na pesquisa.
Talvez fosse mais a importância histórica, talvez mais a possibilidade de tirar algo rentável daquilo futuramente. Independentemente, eu estava ali pelo conhecimento e pelo pioneirismo, não pela Academia.
A grandiosa porta parecia ser feita de algum tipo de argila cozida e polida, na qual conseguíamos ver ainda resquícios de tinta, como se houvesse sido pintada há muito tempo atrás depois de modelada. Pelo tamanho, devia ser terrivelmente pesada. Antes de tudo tirei muitas fotos com a câmera que me foi dada para este propósito, pois não sabia se seria possível abrir aquela porta sem danificá-la.
Em uma conversa com a equipe que estava ali para dar suporte e proteger a área eles me contaram que tinham encontrado um dispositivo que devia ter como propósito abrir a porta daquele local, porém que eles não tentaram usá-lo, pois estavam aguardando nossa chegada, mas que depois que descansássemos adequadamente poderíamos tentar usá-lo. Era mesmo a dica que eu precisava. Pedi que eles me levassem até o dispositivo e o analisei e tirei fotos. Haviam inscrições que provavelmente formariam um enigma, mas minhas habilidades não eram suficientes para traduzir, eu precisaria dos meus parceiros de equipe para desvendar como usar aquilo.
Após discutir com Dyjav mais uma vez, Ohna veio para perto de onde eu estava olhando as fotos impressas pela câmera. Quando ele perguntou onde era o dispositivo que viu na foto eu apontei e ele me perguntou se eu não o acompanharia até lá para que ele pudesse tentar começar a desvendar o que estava escrito, então pegamos uma tocha pois já estava escuro e seguimos até o local onde ficava o dispositivo.
Ele analisou as inscrições na pedra e pensou por algum tempo antes de suspirar e falar: “-É um enigma, mas é um enigma popular. Pra você ter ideia, é um daqueles que vem em livros infantis hoje em dia, então a resposta é um pouco óbvia. Chega a me dar tristeza.” -Ele deu uma risada tão triste que eu tive que rir da expressão dele.
Eu perguntei qual enigma e ele continuou: “-Se o seu desejo for forte e a sua convicção for verdadeira, uma chama se acenderá num brilho verde e caloroso. Quando sob as ondas da justiça, há o florescimento de algo maior. Quando atingida pelo raio da eternidade, há a intensificação de sua essência, aceleração de seu florescimento. Quando queimada pelo fogo da perseverança, a chama arderá em sua alma até acender seus sentimentos mais profundos… Claro que ninguém em toda Sumeru sabe que é uma Visão Dendro, né? Parece até zoeira que essa seja a chave pra entrar num domínio milenar como esses e ninguém tenha conseguido fazer isso antes.”
“-Talvez ninguém tenha feito isso antes pois ninguém sabia da existência do domínio, Ohna. Ou talvez naquela Visões Dendro fossem mais raras do que hoje em dia.” -Eu sugeri mesmo que muito tentado a rir das expressões exageradas no rosto dele. Ohna era o tipo de pessoa que nasceu para estar numa companhia de teatro com todas aquelas caras e bocas.
“-Não muda o fato de que é um enigma de revistinha! É revoltante. Eu esperava mais dificuldade.” -Ele bufou irritado e eu ri tocando-lhe o ombro levemente com a mão.
“-Vamos voltar pro acampamento e descansar. A gente tenta usar a visão pra abrir de manhã e vê se esse enigma é mesmo assim tão fácil. De todo modo ainda tem a parte de dentro, pode ser que seja fácil aqui e fique difícil conforme a gente vai entrando. Não desanime ainda!” -Tentei confortá-lo de alguma forma, embora para mim quanto mais fáceis fossem os enigmas, melhor seria, pois poderíamos todos voltar mais cedo para casa e eu para a vila Gandharva.
Voltamos para junto da equipe e agora estamos nos aquecendo na fogueira e logo iremos dormir. Espero que a ansiedade me deixe descansar um pouco essa noite.
Dia 14 da expedição. Entrando nas ruínas da cidade perdida
De manhã cedo a temperatura já começava a subir conforme o sol se colocava no céu. Nós recolhemos as coisas essenciais para a exploração e, após o desjejum, fomos tentar abrir a porta.
Com a ajuda da luz do sol, confirmamos que a leitura que Ohna fizera na noite anterior estava realmente correta e bastou utilizar energia Dendro na fechadura e ela foi aberta com facilidade, destravando a porta que devia ter coisa de cinco ou seis metros de altura. Alguns pedriscos e areia caíram quando o chão tremeu por conta das grandes e velhas portas se deslizando para as laterais e revelando um corredor escuro e seco de onde um ar gelado saiu para nossa estranheza. Nos entreolhamos e, tomando coragem, acendemos nossas lamparinas para adentrar as ruínas.
Os eremitas rezaram por nós antes da nossa entrada, nos desejando boa sorte para o que quer que fôssemos encontrar por aqueles caminhos escuros.
As paredes eram todas cheias de inscrições e desenhos e estavam perfeitamente preservadas. Tirei muitas fotografias para que Ohna pudesse lê-las com calma em algum local onde pudéssemos montar uma pequena fogueira. Os cenários eram esplêndidos, magníficos. As artes pareciam representar o cotidiano das pessoas que construíram aquele lugar; mostravam pessoas e lugares muito diferentes daquele cenário desolado do deserto. Provavelmente eram cenas de como esse lugar era antes da desertificação, antes do definhamento, mas eu vou ter que analisar isso com mais calma quando voltarmos para a cidade. Por precaução, tirei tantas fotos quanto pude daquelas paredes.
Seguimos pelo corredor que parecia descer cada vez mais fundo na terra, até alcançarmos a primeira sala. Um grande salão com pilastras ainda maiores do que a porta que nos levou até ali, com estátuas grandiosas feitas de bronze e ouro, na qual até mesmo o teto e o chão eram ornamentados de pintados, nos deu as boas-vindas. Estávamos todos chocados com tamanha beleza diante de nossos olhos. As joias incrustadas nas estátuas deixavam claro que aquele lugar nunca havia sido profanado ou saqueado antes, o que tornava a experiência ainda mais deliciosa para o grupo. Ohna - que também portava uma câmera - me ajudava a fotografar tudo e traduzia para nós as inscrições nas paredes.
Elas contavam a história de um reino que tinha surgido de uma pequena vila na qual acidentalmente nasceu uma divindade. Mais tarde eu transcrevo integralmente a história que ele leu, mas para o resumo basta a informação de que a vila passou então a prosperar após o nascimento da divindade enquanto os mortais a adoravam e a elevavam frequentemente. Que descobriram ouro e pedras preciosas, e que suas colheitas foram fartas e suas caçadas frutíferas e por isso a adoração à jovem divindade cada vez mais se tornou comum àquele povo e eles ergueram um culto em adoração à jovem divindade. Que todas as honras, todo o louvor daquele local eram, então, uma homenagem à divindade que fortaleceu e honrou aquelas terras.
Para nós, estudiosos, era estranho pensar que nunca tínhamos ouvido falar de tal história. Nem mesmo as histórias sobre os deuses antigos que foram há muito tempo adorados pelo povo de Sumeru falavam sobre tal lugar e tal divindade, sendo assim acreditamos que a única divindade adorada no deserto no passado tinha sido o Rei Deshret. Era uma revelação e tanto saber que haviam cultos antigos a outras divindades no deserto, talvez, inclusive, antes mesmo da ascensão do culto ao próprio Rei Deshret. Coletei algumas amostras do material das estátuas, pequenas e imperceptíveis lasquinhas de seu material, de forma que eu pudesse analisar sem danificar nada.
No centro da sala havia um pergaminho aberto e sobre ele um enorme - e quando eu digo enorme não estou exagerando - diamante. Ele estava preso por um aro de metal e correntes que o seguravam pelo teto e pelas pilastras. A posição desse cristal me fez pensar que talvez ele refletisse bem as luzes quando se acendiam todas as tochas da sala deixando tudo mais iluminado e mais bonito. Pra deixar anotado, o diâmetro aproximado do diamante, pelo que calculei da distância a qual ele se encontrava sobre nós, era de em torno de um metro. Provavelmente o maior diamante já registrado, se eu apenas falasse sobre ele ninguém acreditaria em mim, por isso tirei inúmeras fotos para comprovar nosso achado. Se aquela ruína fosse uma tumba, provavelmente seria a tumba de um grande rei antigo, alguém que era muitíssimo rico e que adorava àquela divindade.
Depois de documentarmos tudo naquele cômodo seguimos para uma porta que se localizava atrás de uma grande parede ao fundo da sala. Só havia esse caminho para seguir em frente, então foi mais falta de escolha do que opção nossa seguir por essa rota.
Uma sala com paredes arredondadas que formavam um círculo foi o que encontramos a seguir. Novamente as paredes eram repletas de desenhos e textos que, pelo que disse Ohna, eram agradecimentos àquela mesma divindade em sua maioria ou relatos do cotidiano daquele povo e seus rituais de adoração ao deus. Uma mitologia riquíssima se levantava diante de nossos olhos. Histórias sobre deuses antigos que não conhecíamos nos valem muito como forma de entender os povos do passado e os motivos pelos quais construíram seus túmulos de formas tão impressionantes.
Ao centro dessa sala havia um pequeno círculo rodeado por colunas com um mecanismo ao centro muito similar àquele que encontramos na entrada, além de um pequeno teto cristalino abobadado cobrindo tais colunas. Não havia portas visíveis, então logo assumimos que o mecanismo provavelmente seria a forma de abrir o caminho a seguir. Ohna logo se pôs a ler o enigma do mecanismo, verificando que apesar de ainda ser um enigma relativamente simples, era um pouco mais complexo do que o da primeira entrada. Ele, entretanto, não demorou a descobrir a forma de fazer funcionar o mecanismo.
Uma luz pálida se acendeu sob nossos pés como se a pintura do chão se acendesse levemente após ele acionar o mecanismo. Todos nos sentimos tensos durante um período como se temessemos por nós mesmos e ao mesmo tempo estivéssemos todos muito excitados pelo que viria. Quando um breve som abafado de ar se deslocando percorreu uma pequena fresta que se tornou visível ao redor das pilastras chegou aos nossos ouvidos, Ohna logo disse que todos devíamos nos colocar sobre a plataforma que começava a baixar lentamente. Não esperamos pra ver, e logo todos nós estávamos descendo por aquele sofisticadíssimo mecanismo elevador.
O tempo de descida pareceu imenso, mas talvez fosse apenas a ansiedade que nos atingia, a curiosidade pelo que estava por vir e o medo daquele aparelho falhar e nos deixar trancafiados naquele poço aparentemente sem fim e sem escapatória, medo esse que aumentou terrivelmente quando depois de um tempo a base daquele “elevador” voltou a subir por alguns metros antes de descer novamente, porém as “paredes” que nos cercavam aos poucos desapareceram dando lugar ao cenário mais estupidamente incrível que tinhamos visto em todas as nossas vidas.
Há uma enorme cidade aqui em baixo. O espaço que parece ter em torno de trezentas ou quatrocentas casas menores posicionadas em formato circular além de um enorme pavimento que parece um tipo de palácio ou templo ao centro está afundado na areia do deserto, mas protegido por uma espécie de barreira que parece uma cúpula de cristal. É transparente a tal cúpula como podemos observar de perto, mas dá a impressão de ser escura por conta da falta de luz inicial quando chegamos a este lugar. Porém quando começamos a andar pelas ruas alguns postes metálicos que carregam pedras menores, porém semelhantes ao cristal que encontramos na primeira sala, parecem se acender numa luminosidade arroxeada e pálida, mas suficiente para que possamos enxergar nosso caminho sem precisar das nossas tochas.
Encontramos uma cidade perdida no fundo do deserto.
Quem diria?
Passamos o dia investigando a orla exterior da cidade e comprovamos que está realmente vazia. Não há sinais de moradores há muito tempo, mas as coisas parecem ter sido congeladas no tempo aqui embaixo, pois todos os objetos dentro das casas parecem excepcionalmente conservados considerando o tempo médio pelo qual estiveram enterrados aqui. Além disso, por mais estranho que nos pareça, considerando a falta de luz solar e, teoricamente, nutrientes disponíveis no solo, a cidade parece ser bastante arborizada e as partes mais distantes, mais próximas daquilo que chamamos de cúpula de cristal, possuem muitas árvores de grossas raízes e vinhas que sobem pelas paredes arredondadas como se ignorassem o efeito da gravidade a bel prazer.
Entramos em várias casas antes de resolvermos que já era tarde o suficiente para fazermos uma pausa para nos alimentar e resolvemos montar acampamento enquanto preparávamos nossa refeição, uma vez que ficaríamos explorando os arredores pelas próximas horas.
Aproveitei para rever as fotos tiradas no dia de hoje e marcar o verso delas com as informações necessárias para os estudos posteriores.
Dyjav e Ohna estavam estranhamente quietos hoje, como se estivessem tão concentrados naquilo que estávamos encontrando que mal tivessem tempo para suas brigas costumeiras, o que era um alívio, pois assim pudemos comer em silêncio.
Ohna rascunhou uma parte do mapa da cidade - a parte que exploramos - após o almoço antes de partirmos para a segunda ronda de exploração. Eu me perguntava se devia montar minha base de pesquisa ali, mas depois de conversar com Dyjav cheguei à conclusão de que será melhor montar mais perto do palácio, pois provavelmente será a parte onde passaremos mais tempo.
Na segunda metade do dia fizemos mais uma ronda e verificamos mais casas. Coletei algumas amostras das plantas e dos fungos que encontrei ali embaixo para estudo, além de amostras de tecidos e inúmeras fotografias que eu e Ohna tiramos de tudo. O médico ficou no acampamento cuidando das coisas com um dos seguranças e nós seguimos num único grupo com o outro, pois dessa forma seria mais fácil garantir que ele não se ferisse e que nós soubéssemos onde procurar ajuda caso nos feríssemos com algo. Entretanto foi tudo tranquilo nesse dia e não tivemos maiores problemas, apenas incríveis descobertas sobre um povo que nem mesmo sabíamos que existia.
Exploramos uma boa parte da cidade antes de voltarmos para o acampamento para descansar. Não havia diferença entre o dia e a noite ali no subterrâneo, então tínhamos que nos guiar pelos nossos relógios para não perder um ritmo saudável para a exploração.
Agora são 20 horas e estamos indo descansar um pouco para continuar nossa exploração amanhã. Estou radiante por presenciar um lugar como esse pessoalmente, pois sinto que seria incapaz de absorver tamanha grandeza se não tivesse vindo eu mesmo até aqui.
Dia 15 da expedição. Relatos perturbadores.
É nosso segundo dia dentro das ruínas e eu sinto um calafrio percorrer minha espinha. Está ainda mais frio do que ontem, embora a temperatura não pareça mudar independente de ser dia ou noite, o que é estranho considerando as espécies de plantas que temos aqui embaixo. Na verdade, muitas coisas parecem estranhas aqui… Acho que eu deveria começar do início.
Durante a noite acordei com a estranha sensação de que nosso acampamento estava sendo observado. Na primeira vez apenas sacudi meus pensamentos para longe e voltei a dormir, mas na segunda vez a sensação estava tão forte que eu não consegui ficar deitado. Meu relógio marcava quatro da manhã, então me levantei para verificar se havia algo estranho fora da barraca. O segurança estava sentado em frente à pequena fogueira que montamos e olhava fixamente em direção ao palácio. Tentei chamar sua atenção por duas vezes sem nenhum sucesso. Apenas na terceira vez ele me respondeu com um “shh! Você está ouvindo isso?” bem sussurrado. Eu não estava ouvindo nada, mas meus pelos do rabo se eriçaram completamente.
Entenda bem; eu sou completamente cético. Não acredito em fantasmas, nem maldições, nem nada do tipo, mas eu estava apavorado sem razão aparente. Uma sensação crescente de perigo me tomava como se eu estivesse face a face com o mal encarnado. Meu ceticismo, entretanto, me fez ignorar esses sinais e me ater ao mundo físico, ao que eu podia ver e tocar, ignorando meus instintos tolos e primitivos.
Bebi um pouco de água e voltei para a barraca para tentar dormir mais um pouco.
Nós todos nos levantamos por volta das 6, preparamos um café da manhã e, depois de bem alimentados, voltamos a explorar. Dessa vez nos separamos em grupos. O médico e um segurança ficaram no acampamento, eu e Dyjav fomos para o sul, Ohna e o outro segurança para o leste.
O silêncio e o vazio da cidade não eram exatamente um incômodo pra mim, mas eu me perguntava como era possível que o segurança no acampamento tinha ouvido algo com as orelhas humanas dele que eu não conseguia ouvir com as minhas que eram mais aguçadas e adaptadas. E no entanto eu estava arrepiado quanto mais perto chegávamos do palácio.
Achamos uma tabuleta de metal interessante. Dyjav disse que ela continha instruções de uso como se fosse um mecanismo, então a levamos para o acampamento para tentar desvendá-la. Eu vou anexar um rascunho que fiz dela no verso da página de hoje para registro, mas em especificações, ela tem aproximadamente trinta centímetros de comprimento, quinze de largura, cinco de espessura. É um pouco pesada, mas não chega a ser incômodo ou difícil de carregar, sendo um pouco mais pesada que um livro comum, provavelmente por conta do material.
Durante o almoço Dyjav e Ohna se ajudaram a ler as instruções que relatavam sobre como ela devia ser aberta para revelar os mistérios ocultos, mas que para isso precisaríamos de um tipo de chave, aparentemente. Oras, nós nem mesmo tínhamos notado que havia uma forma de abrir aquilo até ler as instruções. Como diabos saberíamos como as chaves se pareciam?
De todo modo, na parte da tarde tínhamos um objetivo comum, então fomos os quatro para a casa onde encontramos a tabuleta e passamos a procurar em conjunto.
As coisas ficaram estranhas novamente, pois eu ouvi algo estranho como um sussurro. Não entendi o que era, mas aquilo se repetiu e eu segui na direção de onde vinha o sussurro na intenção de descobrir se havia algum tipo estranho de corrente de ar que poderia estar fazendo o vento fazer sons estranhos do lado de fora. Eu estava curioso, mas meu pelo se eriçou completamente mais uma vez.
Talvez, eu penso, talvez haja algo de estranho no ar aqui, talvez seja o silêncio extremo da cidade vazia, mas eu acredito que tive alucinações.
Foi um flash que me atingiu imediatamente quando eu coloquei os pés para fora da casa e olhei para frente. Eu juro que foi uma sensação muito similar a quando eu experimentei cogumelos na época da faculdade, porém concentrada em apenas alguns segundos ao invés de horas de duração. Eu vi a distância entre a casa e o palácio diminuir drasticamente sem que eu me movesse, e foi como se eu, de repente, estivesse aos pés da sala do trono. Dourado esplendoroso e brilhante, uma luz quase forte demais forçando meus olhos a se fecharem para filtrar a iluminação que chegada às minhas pupilas. De repente a escuridão absoluta, um vazio profundo, um tormento, uma agonia absurda crescente em minha alma, e então um par de olhos vermelhos se abriram em minha direção e eu engoli seco. Me senti observado como na noite anterior, só que pior. Como se aqueles olhos vissem dentro da minha alma. Como se vasculhassem os segredos do meu interior e não só o meu acampamento. Ouvi o sussurro mais uma vez, mas dessa vez foi nítido. Era aquele idioma pois soava igual a quando Ohna pronunciava o que lia nas paredes, mas estranhamente eu soube exatamente o que a voz estava me dizendo.
“Garoto feneco… Venha sozinho.”
Me perdoe o palavreado, mas meu cu que eu iria sozinho pra qualquer lugar dentro dessa cidade abandonada. Ainda mais depois de alucinar sem usar drogas.
Alguns instantes e eu estava de volta ao meu corpo, lúcido, como se nada houvesse acontecido. Minha boca estava seca como se eu tivesse usado drogas. Eu tiraria uma amostra do meu sangue para testar o que havia acontecido imediatamente após chegar ao acampamento.
Mas não foi como se as coisas estranhas do dia tivessem parado por aí. Não. Eu entrei na casa pensando em ir diretamente até o grupo e explicar o que tinha acabado de acontecer comigo, mas meu corpo resolveu fazer algo diferente. Caminhei até um quarto vazio e peguei embaixo da cama uma caixa de bronze como se eu soubesse exatamente que estava lá, então a levei até o quarto onde os outros estavam e a coloquei diante deles. Eu não conseguia controlar meu corpo nem muito menos minha boca e minha voz.
“-Achei isso, vocês vão querer ver! Acho que a chave pode estar aqui dentro.” -Não, por favor não abram a caixa! Eu implorava internamente. A sensação ruim me dominava, mas a voz não saía, minha expressão não mudava, meus músculos não se mexiam como eu queria e determinava.
Para a felicidade de todos, entretanto, havia apenas uma boneca e uma pedra dentro da caixa. A pedra, porém, ao ser aproximada da tabuleta fez os símbolos se acenderem junto dela e um som de trava foi ouvido, no que Dyjav - que segurava a tabuleta - conseguiu abrir com facilidade pela lateral revelando um livro com papel bem antigo, apesar de bem preservado.
“-Isso é incrível, Tighnari! Vamos voltar para o acampamento e tentar desvendar o máximo que pudermos o quanto antes.” -Ele estava terrivelmente animado com a possibilidade de ler o que estava escrito naquele livro enigmático. Eu, pelo contrário, estava apavorado depois da alucinação e de perder o controle do meu corpo.
Voltamos todos para o acampamento conforme o desejo de Dyjav.
Meu corpo pareceu voltar ao meu controle, mas embora eu fosse capaz de pensar a respeito do que me aconteceu na porta daquela casa, todas as vezes que tentei falar com alguém a respeito disso esqueci imediatamente do que ia falar, me lembrando apenas minutos depois, quando já tinha desistido de falar a respeito. Não sei como consegui relatar isso no caderno, talvez o efeito de o que quer que tenha acontecido mais cedo tenha sido reduzido agora ao fim da noite.
De todo modo tentarei comunicar o ocorrido aos outros amanhã.
Tirei a amostra de sangue para examinar, mas quando ia montar o equipamento para examinar, Dyjav e Ohna me disseram que não era uma boa ideia, pois estavam pensando em mover o acampamento para mais perto do palácio ainda na manhã seguinte. “Não podíamos ficar tempo demais parados, precisamos avançar na exploração e investigar o palácio para poder dar um relatório melhor e poder subir para repor os suprimentos dentro de mais alguns poucos pares de dias.”
Infelizmente eles estão certos. Nossas fontes de água aqui embaixo não são confiáveis e precisamos buscar água potável e comida no posto superior, além de passar nossos relatórios a serem entregues à Academia para estudos.
Pelo resto do dia apenas acompanhei o trabalho de tradução feito pelos meus colegas estudiosos por algumas horas e descansei um pouco. Minha mente parece cansada, embora meu corpo não tenha sido tão desgastado. Me preocupo genuinamente com meu estado físico e com as ocorrências de hoje. Será que tive contato com algum tipo de fungo alucinógeno sem perceber?
Dia 16 da expedição. Entrando no palácio.
Hoje fomos ao palácio pela primeira vez.
Talvez eu devesse começar pelo começo do dia, pra ser exato, pois assim como ontem as coisas não param de ficar estranhas.
Primeiramente, fui acordado mais uma vez no meio da madrugada. Era por volta das três da manhã e o silêncio absoluto da cidade fantasma era aterrorizante. Mais uma vez a sensação bizarra de estarmos sendo observados me fez sair da minha barraca na intenção de conversar um pouco com o guarda, mas dessa vez estava ainda mais estranho do que na noite anterior. Quando pus os pés para fora da barraca todos estavam de pé. Era como se formassem um círculo em silêncio na hora que cheguei, e todos simplesmente olhavam para mim com expressões muito sérias. Ninguém disse uma palavra e o silêncio absoluto me deixava desconfortável. Engoli seco e me atrevi a perguntar porque estavam todos de pé naquela hora. Sem resposta.
“-Vamos para o templo.” -Ohna respondeu com seriedade.
“-Não são nem quatro da manhã, vamos descansar mais um pouco e mais tarde podemos ir até o palácio, templo, o que quer que seja.” -Eu insisti tentando tirar aquela pressa deles.
“-Todos já estão de pé. Vamos agora.” -Dyjav interferiu. “-Vamos logo.”
“-Não. Ainda vamos ter que desmontar o acampamento pra levar mais pra perto do centro da cidade, vamos seguir o plano que fizemos ontem e iremos após o café da manhã.” -Eu tive que usar minha autoridade como líder da expedição para controlar a ansiedade daquela gente que, apesar da discussão, continuava a me encarar sem expressar emoção alguma. Meu rabo estava eriçado por conta do nervosismo, mas eu precisava me controlar, afinal eles não estavam fazendo nada de mal, apenas me irritando com sua ansiedade em correr direto para o pote de ouro no fim do arco-íris sem se preocupar com as beiradas.
Claro que eu também queria explorar lá, provavelmente seria o lugar mais rico em informações e onde mais encontraríamos vestígios da história daquela civilização perdida, mas todos precisavam descansar e nós precisávamos nos alimentar antes de sair. A prudência tem sempre que caminhar lado a lado com a curiosidade, ou vamos acabar todos doentes ou mortos.
“-Nós vamos agora e você vai conosco. O horário não faz diferença aqui em baixo de todo jeito. Todos os dias são escuros.” -O médico disse com a mesma falta de emoção.
Meus instintos gritavam que algo estava errado, mas eu não conseguiria dizer o que era ou porquê aquilo estaria acontecendo. Infelizmente, no entanto, eles eram a maioria embora eu fosse o líder da expedição, e eu não poderia ficar para trás se eles resolvessem todos ir sozinhos, pois o meu relatório era o mais importante para a Academia. Suspirei e me dei por vencido à contragosto.
“-Certo, vou só pegar minha mochila e vamos. Peguem os equipamentos de vocês, vamos fazer uma refeição rápida e seguiremos para o palácio.”
Como instruído, não demorou até estarmos a caminho do palácio. Dessa vez toda a equipe foi junto por insistência deles. A cidade estava completamente vazia, então não havia risco em deixar as barracas para trás. Certo?
Seguimos para o palácio que é uma construção imponente, mas, assim como toda a cidade, muito diferente do estilo das outras construções do deserto, o que me leva a pensar que talvez essa cidade seja muito mais antiga do que as pirâmides e outras construções que já foram desenterradas da areia.
Muros altos cercam a construção e há um pequeno pátio antes da entrada principal, cujas portas são tão altas e grandiosas quanto as que vimos na superfície, mas dessa vez são entalhadas com ouro e decoradas com minerais preciosos por dentro e por fora. Estavam abertas as portas, de modo que fotografei e entramos sem problemas. Todos estavam mais silenciosos do que o normal, mas embora eu tenha notado isso não liguei muito por estar absorto na grandiosidade da construção.
O primeiro salão possui três pequenos lances de escadas, cada um levando a uma plataforma um tanto mais alta do que a primeira, de forma que entramos subindo para a parte superior de uma espécie de templo. Tudo lá dentro era iluminado pelo mesmo tipo de cristal que iluminava o lado de fora da cidade tornando nossas tochas inúteis, mas mesmo assim me recusei a apagar a minha. De fato aquele não era um palácio simples, mas um tipo de construção religiosa, de templo dedicado a uma divindade. As paredes são completamente pintadas com motivos religiosos, aparentemente, que eles usavam para engrandecer sua divindade protetora. Ao centro do salão uma grande urna completamente entalhada e sobre ela um livro ornamental aberto em páginas desbotadas. Perguntei ao Ohna o que significavam as coisas escritas naquelas páginas. Ele se aproximou e sem chegar muito perto começou a ler o que estava escrito em voz alta. Uma frase que eu não entendi. Todos os outros repetiram em coro fazendo com que eu me sobressaltasse e os olhasse com desconfiança. Mais uma frase que eu não entendi e mais uma vez todos repetiram. Depois ele me olhou e sua expressão se suavizou.
“-É uma espécie de cantiga antiga do deserto. Uma oração que fazem em respeito a seus deuses para pedir que guardem suas almas e façam bom julgamento de suas vidas no além.” -Ele sorriu gentilmente como se tentasse diminuir minha desconfiança, mas os estragos estavam feitos. Eu não sou nenhum idiota e penso que eles decoraram aquele mantra pra me assustar. Talvez tenham planejado todas as estranhezas do dia de hoje pra me assustar depois que eu disse que não acredito em espíritos, fantasmas, deuses e nem nada do tipo no jantar de ontem.
Fotografamos todo o local e seguimos para as câmaras adjacentes. Uma delas é uma espécie de biblioteca. Precisaremos voltar para analisar os volumes que se encontram armazenados aqui. Definitivamente esse lugar é um tesouro subterrâneo no que se diz respeito a quantidade de material para estudo da civilização.
Seguimos mais a frente e encontramos uma escadaria que desce para o nível inferior. A sala onde desemboca a escada é ornamentada com estátuas que acredito serem estátuas da divindade à qual esse templo é dedicado. Não haviam estátuas no salão principal, entretanto, apenas as grandes pilastras decoradas e as pinturas nas paredes. Grandes incensários e uma espécie de pira na qual devia ser aceso fogo durante as reuniões religiosas, visto os resquícios de uma poeira que colhi amostras e acredito ser cinzas. As estátuas que encontramos no andar inferior possuem pouco mais de dois metros de altura, sendo menores do que aquelas que estão na superfície.
Seguindo para a sala seguinte encontramos mais um grande salão, mas neste encontramos um detalhe preocupante. O salão grandioso, mas um pouco menor do que o outro em tamanho, possuía uma estátua daquele mesmo deus que devia ter coisa de três metros bem ao centro. A estátua dourada segura à frente de seu corpo uma espécie de lança de ouro cravejada com pedras preciosas. A imagem do deus é a de um homem cujo torso está nu, usa uma espécie de saiote com símbolos divinos em torno de sua cintura, uma fivela como um grande olho na altura de seu ventre e um largo colar no entorno de seus ombros; além disso usa sobre sua cabeça o que parece ser a cabeça de um chacal ou lobo, de forma que esta cobre metade de seu rosto. Os pés estão descalços, mas as pernas adornadas por argolas. As vestimentas condizem com as que vimos nas pinturas das paredes, o que nos leva a acreditar que os artistas criaram este deus de acordo com o que estavam acostumados a ver em seu tempo.
O preocupante é que, como se estivesse prostrado diante dos pés dele, havia um esqueleto. O primeiro que encontramos nestas ruínas. Primeiro conjunto de restos mortais de um ser humano nesta vila que considerávamos a possibilidade de ter sido abandonada pela falta de restos mortais.
Esse homem morreu diante da estátua de seu deus ou foi levado até ali depois de morto? Haviam outras pessoas na vila quando isso aconteceu ou todos tinham evadido e ele morreu sozinho naquele lugar? Tantas perguntas dominavam minha mente naquele momento enquanto eu coletava pequenas amostras e fotografava o ambiente.
E estranhamente todos continuavam quietos demais para o meu gosto.
Depois de alguns minutos coletando vestígios Dyjav começou a ficar impaciente comigo e reclamar que precisávamos seguir em frente, pois ainda havia muito pra ver e não tínhamos muito tempo.
Infelizmente ele estava certo, então seguimos para as salas seguintes.
Paramos algumas salas depois para descansar um pouco e nos alimentar. O templo era enorme no andar inferior e precisávamos recuperar nossas energias para seguir em frente. Quando nos sentamos para comer foi que eles começaram a conversar um pouco mais entre si e eu me acalmei um pouco deixando baixar um pouco minha guarda. Talvez eles tivessem desistido de suas brincadeiras naquele momento por termos encontrado efetivamente um cadáver.
Depois de comer voltamos a explorar e descemos mais um lance de escadas, indo para um andar ainda mais profundo. Nesse local estranhamente haviam algumas plantas que cresciam no chão e nas paredes rachadas do templo. Tiramos muitas fotos e eu coletei várias amostras para estudo. Caminhamos por várias salas menores as quais nem todas eu consegui descobrir para qual propósito serviam e em determinado momento percebemos que estávamos andando em círculos, até que encontramos um mecanismo como aquele que encontramos na entrada. Ohna logo identificou a forma de utilizá-lo e conseguimos abrir uma porta secreta para uma sala onde estavam guardados muitos mais livros e que dava passagem para um andar inferior ainda mais secreto, porém estávamos cansados e resolvemos parar para descansar e encerrar o dia por ali, montando uma base de acampamento para a noite ali mesmo.
Espero conseguir dormir.
Dia 17 da expedição. Primeira Entrada. Solidão.
Tive alguns sonhos bizarros na última noite. Vi novamente aqueles olhos vermelhos e ouvi a voz estranha chamar meu nome como se falasse dentro da minha cabeça. “Tighnari”. Meus pelos se arrepiam à mera lembrança. Quando acordei estava sozinho no acampamento. Todos os outros desapareceram.
Suas coisas estão intactas, então me pergunto se eles foram caminhar em grupo sem me chamar, se já estão voltando. Vou preparar algo pra comer e esperar eles voltarem. É perigoso andar sozinho.
Dia 17 da expedição. Segunda Entrada. Preocupação.
Estou esperando há quatro horas. Me pergunto se aconteceu alguma coisa, se eles se perderam, ou o quê. Eu deveria ir atrás deles?
Tinhamos combinado antes de tudo que não deixaríamos ninguém sozinho nas ruínas, mas ainda assim… Sinto como se eles tivessem me abandonado.
Ouvi mais uma vez aquela voz estranha como um sussurro, ela fica repetindo aquelas frases bizarras que eles falaram no primeiro salão do templo, mas penso que seja só meu medo de ficar sozinho aqui embaixo me pregando peças.
Procurei algum sinal, algum bilhete pelo acampamento, mas não há nada, nem rastros de pra onde eles podem ter ido. Não posso ficar parado aqui para sempre. Se eles não voltarem até às quatro da tarde, eu deixarei um bilhete e voltarei para o acampamento do lado de fora. Se eles não voltarem até amanhã eu irei para a superfície em busca de ajuda. Não ficarei sozinho aqui embaixo por mais de 48 horas nem fodendo.
Dia 17 da expedição. Terceira Entrada. Indo embora.
É isso.
Ninguém voltou. Já são quatro e quinze da tarde. Estou recolhendo as coisas e voltarei para o acampamento do lado de fora. Deixarei provisões de água e comida aqui para o caso de eles voltarem, bem como o bilhete que já escrevi avisando que estou voltando para o acampamento e é para me encontrarem lá até amanhã à noite, caso não apareçam eu vou embora. Não sou louco de ficar sozinho aqui. Não vim com um grupo para ser abandonado no meio do trajeto.
Estou voltando.
_
“Certo. Preciso me lembrar de tudo.” Tighnari rangeu os dentes ao se levantar do chão frio de pedras. Olhou o relógio e conferiu que eram quatro da manhã. Como tinha ido parar ali? Onde exatamente estava?
Se lembrou de pegar suas coisas, sua mochila e um pouco de comida e sair pelo mesmo caminho pelo qual tinha entrado naquela sala. Subiu as escadas para o andar superior e… e depois?
A cabeça doía, o ouvido chiava. Algo estava errado. Estava alucinando outra vez? O que tinha acontecido? Tinha anotado no diário? Pegou a mochila nas costas, fuçou atrás do diário e não o encontrou. Tinha apenas a tabuleta, uma garrafa com água e um bocado de comida. Merda, tinha deixado o diário para trás! Onde tinha deixado o diário? Na sala onde tinham descansado juntos pela última vez?
Tighnari bufou irritado e olhou ao redor. Estava mais escuro que o normal, naquela sala haviam poucos daqueles cristais de luz pálida ou estava finalmente dando falta da tocha que tinha carregado consigo por todo o caminho até ali?
Forçou seus olhos a se adaptarem ao escuro e deu alguns passos para frente enquanto ajeitava a mochila de volta nas costas. Ouviu um som estranho como se algo se abrisse e instantaneamente se virou na direção de onde o som vinha. Seus pés tocaram algo macio e ele olhou rapidamente para o chão vendo um corpo desacordado. Um grito se formou em sua boca, mas jamais foi capaz de deixá-la. Aquele era Ohna. Estava desacordado, mas talvez estivesse vivo. Se abaixou rapidamente para verificar o pulso dele. Estava fraco, mas ele estava vivo. Precisava ajudar o amigo.
-Largue-o. -Aquela voz. Agora estava clara, não parecia mais um sussurro. Era uma ordem. Tighnari tremeu em suas bases e colocou a mão de Ohna de volta sobre seu corpo, os dentes cerrados como pedras, o suor frio escorrendo pela espinha. Seu rabo parecendo um espanador de tão eriçado. -Eu mandei você vir sozinho, garoto feneco. Porque não obedeceu minha ordem?
-E-eu… -A voz faltou e Tighnari não foi capaz de concluir seu pensamento.
-VOCÊ MERDA NENHUMA! QUANTA INSOLÊNCIA! -O grito veio como um estrondo, a voz poderosa fez Tighnari encolher-se sobre seu próprio corpo. Não conseguia nem mesmo direcionar o olhar para aquele que lhe dirigia a fala.
Não tinha ideia do que estava acontecendo ou porque estava acontecendo. Quem era aquela pessoa? Aquilo era um sonho? Ele falava da voz que tinha ouvido na cidade, mas como poderia saber sobre ela se Tighnari nunca chegou a falar sobre aquilo com ninguém? Tinha sido uma alucinação, não tinha?
-Escute aqui, raposa de merda, eu mando nessa merda de lugar e vocês mortais imundos obedecem ao que eu ordeno, entendeu? Têm sido assim desde sempre e sempre assim será. -O som dos passos, pés descalços sobre a pedra, se aproximando calmamente, constantemente. Tighnari sentia o ar rarefeito, como se seus pulmões fossem incapazes de puxar um ar tão pesado. O corpo parecia gelo, frio e impossível de mover. -Você deveria ser grato por eu ser tão bondoso e ter poupado suas vidas miseráveis. Mas não haverá nenhuma recompensa se não houver sacrifício. OLHE PARA MIM ENQUANTO EU FALO COM VOCÊ! -Mais gritos.
Tighnari venceu o medo extremo por mais medo ainda, virando o rosto trêmulo para encarar quem quer que fosse aquele, mas aos poucos o medo se tornou confusão. Os pés descalços, as argolas nas pernas, o saiote com símbolos sagrados e a fivela em formato de olho, o tórax e abdome nus e o grande e pesado colar em torno dos ombros. Sobre sua cabeça um ornamento em formato da cabeça de um chacal com um grande olho ao centro. Sua pele era bronzeada, mas de aspecto humano, entretanto os olhos visíveis em meio aos volumosos cabelos brancos eram vermelhos como sangue. Um sorriso maligno brotou em seu rosto ao ver a expressão de medo no rosto do pesquisador.
-Seus amigos são tão desobedientes quanto você. Eu disse para eles ficarem longe e mandarem você vir sozinho, mas mesmo assim eles resolveram ser curiosos e espiar onde não foram chamados…
Chapter 2: Enigmas
Chapter Text
-Seus amigos são tão desobedientes quanto você. Eu disse para eles ficarem longe e mandarem você vir sozinho, mas mesmo assim eles resolveram ser curiosos e espiar onde não foram chamados…
-E-eles o quê? -Tighnari não conseguia entender. Como assim eles também tinham ouvido aquela voz?
-CALE-SE! -Aquela criatura deu um tapa no rosto de Tighnari que sentiu o inconfundível gosto férreo do sangue tomar seus lábios. -Você está diante de um deus, mortal! Comporte-se adequadamente!
Deuses não existem.
-Coloque-se no seu lugar e só responda quando eu te perguntar alguma coisa. -Ele pareceu limpar a garganta pigarreando, então direcionou novamente seu olhar afiado para o pesquisador. -Em que ano estamos?
-O-o quê? -Tighnari mais uma vez não estava entendendo o que raios estava acontecendo ali.
-Em que ano estamos, mortal?! Oh, céus! Por acaso não entende o que eu estou falando? Vou ter que matar algum dos seus amigos para cada pergunta idiota que me fizer, assim quem sabe você começa a levar isso um pouquinho mais a sério. -Como podia alguém ser tão cínico quanto aquele merda se achando deus! Tighnari estava aterrorizado, de fato, mas já começava a ficar com raiva. Fosse quem fosse, não tinha o direito de falar daquela forma com as outras pessoas, ainda mais com quem não conhecia.
-Estamos em dois mil e vinte e dois. -Respondeu simplesmente tentando engolir seu orgulho para não colocar a si e aos outros em risco por desconhecer o tipo de criatura que seria aquela.
-Dois mil? Isso é impossível! Estávamos em treze mil, como podemos estar em dois agora? -A criatura pareceu confusa. -Reiniciaram a contagem do calendário com base no quê? Que tolos são esses mortais!
-Começamos a contar novamente a partir da queda da ilha flutuante de Celestia. - O pesquisador explicou brevemente. A expressão no rosto do suposto deus se tornou absolutamente transtornada após a informação, fazendo Tighnari engolir seco pela tensão no ambiente.
-CELESTIA CAIU? Isso é… Isso é uma blasfêmia! Está tentando me fazer de tolo, mortal?! -Ele segurou Tighnari pelo pescoço e o ergueu do chão como se fosse fácil enquanto o pesquisador lutava tentando se salvar da morte por sufocamento iminente. -Isso é uma tolice sem fim, mortal. Tentar me enganar como se eu fosse mais um dos seus inúteis e fracos irmãos é uma tolice abominável. Não se esqueça que eu tenho total controle sobre a vida e a morte de cada uma das pessoas presentes aqui, incluindo você, feneco estúpido. -Ele rosnou ao soltar o pesquisador no chão.
Tighnari caiu levando imediatamente as mãos ao pescoço dolorido enquanto lutava para buscar o máximo de ar possível. Os olhos se encheram de lágrimas no que a ficha começava a cair finalmente. Aquilo com toda certeza não era humano. Aquela força não era humana. Ele nem ao menos parecia estar fazendo força para erguê-lo pelo pescoço, era como se seus braços fossem feitos de pedra.
-Eu juro… -A voz de Tighnari saiu fraca e dolorida em meio à tosse. -Eu não tenho motivos para mentir pra você… pro senhor… desculpe. -As lágrimas desciam de seus olhos tomados pelo terror enquanto ele se prostrava diante daquela criatura aterrorizante.
No rosto da divindade o choque e a perplexidade se faziam estampadas em sua expressão sólida até então. Odiava que fosse assim, mas o garoto estava sendo sincero. Conseguia sentir a mente dele, as intenções dele, e aquele mortal estava sendo sincero. Celestia caiu em algum momento há mais de dois mil anos e ele esteve ali preso sob a areia desde aquela época. Trancafiado na escuridão enquanto o mundo mudava, enquanto a humanidade superava os deuses, aparentemente.
Ele não disse nada, mas se abaixou silenciosamente ao lado de Tighnari como se estivesse de luto por descobrir a verdade sobre seu próprio mundo. Estendeu sua mão tocando o pescoço de Tighnari com cuidado, no que o pesquisador se encolheu ainda mais com medo como se quisesse se afastar daquele toque enquanto tremia pelo terror, mas a divindade insistiu na aproximação e tocou a pele do feneco anestesiando aquela dor instantaneamente como se o curasse - e efetivamente o estava curando. Tighnari não entendeu o que estava acontecendo dentro da mente daquela criatura que de repente estava tão silenciosa.
-Venha, feneco. Eu fui injusto com você e irei recompensá-lo. -Sua voz agora estava bem mais suave, quase doce, mas Tighnari estava aterrorizado e encolhia-se trêmulo pelo medo de ser atacado novamente. O deus suspirou e estendeu a mão para que o feneco segurasse. -Eu prometo que não vou mais lhe fazer mal. Você não tem culpa pelo que desconhece. Estou em dívida com você.
-E-Eu posso mesmo acreditar em você? Eu nem mesmo sei seu nome ou quem você é, e você acabou de me insultar e me agredir. -Relembrou Tighnari e cada uma de suas palavras foi como uma lâmina se cravando no orgulho da divindade ao ser relembrada no alto de sua soberania que ela também era uma criatura falha e, após a queda de Celestia, aparentemente inútil nos novos tempos.
-Eu não tenho um nome… E tenho vários nomes. Uso um a cada era sobre o mundo mortal. Eu sou um deus, mas também já fui associado a muitas coisas dependendo da época. Deus da agricultura, deus da justiça, deus da discórdia, cada humano em cada época vai ter uma interpretação diferente de quem eu sou. Me desculpe por não cumprir meu papel com você, acho que milênios de confinamento podem realmente mexer com a cabeça de qualquer um… Talvez seja a erosão. -Ele parecia olhar para os próprios dedos com uma expressão desolada como se estivesse perdido dentro de si mesmo de alguma forma.
Tighnari estava morrendo de medo de tudo aquilo, mas aquela poderia ser sua única oportunidade de escapar dali com vida e talvez levando sua equipe junto consigo. Ao mesmo tempo, se aquele homem virasse o demônio novamente poderia ser justamente o responsável por levar todos à morte.
-Desculpe-me também… Eu nunca conheci um deus antes. Meu nome é Tighnari e eu sou um pesquisador, botânico e arqueólogo. Estávamos estudando essas ruínas, pois não imaginávamos que ainda havia alguém vivendo aqui. -Ele tentou se manter firme o bastante para engajar na conversa acreditando no fio de esperança que ligava sua sobrevivência às boas graças daquele ser tempestuoso. Então aceitou a mão que lhe era oferecida se levantando junto dele do chão, mas suas pernas tremeram pelo terror incontrolável e ele quase perdeu o equilíbrio, sendo segurado pela divindade com maestria.
-Tighnari… -A divindade repetiu seu nome e o pesquisador, apoiado nos braços dele, sentiu um arrepio correr por sua espinha. -Você pode me chamar de Cyno. -Ele ajudou Tighnari a caminhar a partir dali até uma sala adjacente que estava um pouco mais iluminada do que o cômodo anterior, onde o pesquisador pôde contar doze estátuas de chacais sobre o que pareciam ser túmulos alinhados, seis de cada lado de um corredor de menos de dois metros de largura.
Reparando agora, um pouco menos em pânico, Cyno não era tão imponente quanto suas enormes estátuas o faziam parecer. Na verdade ele era um pouco mais alto do que o próprio Tighnari, se não considerasse a altura das orelhas, claro, e seu porte físico não chegava a ser musculoso rato de academia como o de Dyjav, sendo esguio, porém definido. Seu rosto, olhando de perto, apesar de muito sério, também não era assustador, tirando pelos olhos vermelhos bastante raros.
Eles saíram por uma porta do outro lado da sala com os túmulos, descendo uma escada larga que saía em uma espécie de caverna por onde corria um rio subterrâneo de águas cristalinas. Ali também cresciam tantas plantas que fazia parecer que havia sol e que não estavam sob o deserto. Dentro de si a urgência de entender como aquilo tudo estava vivo, como funcionava, parecia gritar mesmo sendo afogada pelo medo de ser retaliado pelo outro.
-Aqui é…
-É onde eu vivo. -Cyno completou ajudando Tighnari a descer pelas escadas. -Você está desidratado, visivelmente têm evitado tomar muita água pois a pesquisa é mais importante do que sua saúde - a qual você pensa que pode tratar quando voltar para a superfície. Não se preocupe. É potável e pura. -Ele carregou Tighnari até a beira do rio para que pudesse beber água e o ajudou a sentar perto o suficiente da margem. -Eu vou cuidar dos seus amigos, não precisa se preocupar com eles. Também permitirei que vocês voltem à superfície desde que vocês estejam dispostos a me ajudar em troca, pois o que é justo, é justo.
-Está falando de justiça outra vez? -Tighnari juntou as mãos em cuia e pegou água cheirando-a e testando o sabor antes de beber para confirmar que estava pura.
-Sim, digo. -Cyno suspirou. -Esse lugar é uma armadilha. Está amaldiçoado e prende qualquer pessoa que entre aqui, sendo assim vocês jamais conseguiriam sair sem mim, mesmo que eu não tivesse desacordado nenhum de vocês. Eu só tenho acesso até o terceiro subterrâneo, a parte de cima está trancada no tempo e, por isso, é impossível para mim, sozinho, escapar por lá.
-C-Como assim está trancada no tempo? Amaldiçoada? -Tighnari até gaguejou em pensar que mesmo arriscando ajudar aquele demônio em forma de gente ainda estava preso ali embaixo com seus companheiros de exploração.
-Outros antes de vocês entraram aqui. A maioria deles morreu antes que eu pudesse alcançá-los. Esse lugar foi amaldiçoado durante a guerra dos arcontes, pois nasceu antes da chegada dos deuses primordiais e nós conhecíamos mais do que devíamos. Então essa cidade foi selada e o povo impedido de sair daqui. -Cyno suspirou se sentando ao lado de Tighnari casualmente. -O povo viveu aqui por muitas gerações, então sem poder se expandir mais para os arredores por conta da falta de espaço dentro dos limites, começaram a se expandir para o subsolo, cavando cada vez mais em direção ao centro da terra. Eu nasci no meio disso e eles enxergaram como uma bênção para um povo que vivia na escassez por conta do pouco espaço para plantar, e não muito tempo depois o reino floresceu. Eles acharam muitos minérios raros e muita fartura no subsolo, então começaram a expandir cada vez mais, mas então em sua ganância de desbravar o mundo eles começaram a cavar um túnel para sair daqui.
-Nessa época, como divindade, -Continuou sua narrativa. -eu era o único que podia ignorar a barreira e podia ir às vilas vizinhas vender nossos minérios e trazer coisas novas para o povo. E mesmo sabendo que aquilo poderia trazer problemas com Celestia eu escolhi seguir fazendo, pois dessa forma as pessoas me recompensam com mais adoração e isso me engrandecia como divindade. Em uma das viagens, entretanto, encontrei a arconte Dendro e ela, vendo como burlamos as regras de Celestia, aumentou a punição do povo sem nos avisar. A partir desse momento, cada vez que uma pessoa descia ao fundo da cidade para me visitar, requisitar alguma coisa ou mesmo buscar comida, ela não podia mais voltar para a superfície. Caso tentasse voltar ela morreria de algum jeito. -Cyno pareceu ponderar um pouco sobre suas lembranças, seu olhar estava distante como se aquilo o atingisse profundamente. Tighnari não podia deixar de se compadecer pela história. -Como nossas plantações eram todas subterrâneas, as pessoas todas começaram a morrer pela falta de comida nos andares superiores ou tentando levar comida para os seus familiares nos andares inferiores. Eu não podia fazer nada para ajudá-los, estava inutilizado enquanto meu povo sofria e morria na minha frente implorando para que eu os salvasse. Foi nessa época que eles começaram a me culpar por todas as coisas ruins que lhes estavam acontecendo, como se eles já não estivessem amaldiçoados antes mesmo de eu nascer.
-Mas se a maldição é assim tão forte, então nos trazer ainda mais para o fundo não é como dar um tiro no pé? Digo, não ficamos ainda mais propensos a acabar todos mortos também? -O pesquisador suspirou se perguntando se aquela divindade era mesmo assim tão inteligente.
-Isso é o que eu normalmente pensaria, mas não. Talvez a maldição tenha enfraquecido com o tempo, ou talvez vocês sejam imunes a ela. Eu digo isso com base no fato de que vocês acharam a entrada da vila que foi escondida pela arconte Dendro há muito tempo atrás na intenção de me selar aqui dentro junto com os restos do povo que um dia me serviu. Além disso, vocês também não sofreram os efeitos da maldição quando o elevador falhou. Segundo a normalidade da maldição, naquela etapa vocês já deveriam ter pelo menos enlouquecido, mas todos chegaram aqui no fundo completamente sãos. O problema é que tem outro obstáculo imposto pelos deuses a essa construção: a configuração do segundo subterrâneo. Por conta desse obstáculo as salas do segundo subterrâneo ficam trocando de lugar o tempo todo, o que faz com que as pessoas se percam e morram de inanição ou desidratação antes de conseguir sair. Mas felizmente eu posso lidar com isso.
-E porque de todos você me escolheu? -Tighnari perguntou diretamente direcionando o olhar ao rosto da divindade.
-Desculpe, isso eu já não sei explicar. Só acho que fui com a sua cara e escolhi você. Ou talvez seja por puro capricho, porque gostei das suas orelhas e da sua cauda. Faz muito tempo que eu não vejo um mortal com tais características. -Cyno deu uma risada desajeitada. -Mas vocês todos se recusaram a me obedecer, eu reagi pior do que deveria. Espero que possamos nos ajudar mutuamente a sair daqui. Estou ansioso para ver como o mundo está depois de tanto tempo.
Tighnari não sabia dizer o porque aquilo o deixava tão incomodado de alguma forma. Seria mesmo uma boa ideia levar para o mundo exterior uma divindade selada por Celestia? Pra começar nunca tinha realmente acreditado que Celestia algum dia teria sido morada dos deuses. Como grande parte da população nos dias de hoje, Tighnari acreditava que Celestia não passava de algum tipo de meteoro que caíra dois mil anos atrás e que as pessoas daquela época tinham associado com toda a história de deuses e heróis tão comum às fábulas daquela era. Havia um quê de confusão entre o que era realmente história da humanidade e o que era misticismo e folclore em certa época do tempo, pois não haviam tantos resquícios de informação sobre aqueles acontecimentos fora os livros que podiam muito bem ser algum tipo de ficção.
De todo modo, se toda aquela história era real - e a força de Cyno era sim absolutamente sobre-humana -, então a única forma de sair dali era colaborando com a divindade.
-Você comentou que o tempo está parado na vila, como isso funciona e porquê isso não nos afetou? -Tighnari tomou a coragem de perguntar, embora seus dedos estivessem trêmulos.
Cyno suspirou e concordou consigo mesmo em silêncio antes de responder. -É como se o tempo tivesse parado para o lugar, mas não para as pessoas, mas eu acredito que as coisas estejam mudando por conta do tempo desde a queda de Celestia. O domo que sela a cidade fui eu quem fiz, não os deuses que nos amaldiçoaram. O coloquei justamente para impedir que pessoas de fora acabassem entrando na cidade e ficando presas aqui, e também para impedir que a areia entrasse conforme percebi a desertificação crescente na região externa, porém a arconte Dendro abriu uma entrada aqui depois que fomos soterrados parcialmente pela areia. Por muito tempo me perguntei o motivo de ela ter feito isso, pois vi muitos viajantes vindos das terras dela chegarem e morrerem nessa vila abandonada pelos deuses. O último deles morreu implorando por ajuda diante da minha estátua como se eu pudesse salvá-lo… tsc. -Sua expressão era enigmática, o pesquisador o olhava como se ainda esperasse por mais clareza em sua resposta. -As bússolas aqui paravam de funcionar, relógios, tudo.
-Nossos relógios estavam funcionando bem até onde eu vi… -A observação em voz baixa escapou sem que ele percebesse.
-Sério?! -Pelo tom de voz, Cyno parecia empolgado com alguma possibilidade. -Isso… Então talvez eu realmente possa… Não. É bom demais pra ser verdade. Deve haver algum truque, é melhor eu me ater à teoria inicial. Menos chances de dar errado se eu seguir os planos que fiz antes, as teorias testadas. -Ele mais resmungou para si mesmo do que falou aquelas frases, fazendo Tighnari pender a cabeça para o lado, curioso.
-Porque exatamente você não pode subir após o terceiro subsolo? -Tighnari sacudiu os pensamentos estranhos para o lado e focou em suas dúvidas iniciais.
-Ah, isso. Eu não sei exatamente o que acontece, mas quando estou prestes a passar para cima tudo se apaga e eu caio desacordado. Quando acordo, se eu voltar para baixo não tenho problemas, mas se tentar continuar subindo continuo caindo desacordado. O problema é que cair desacordado em cima de uma escada acaba fazendo com que eu caia de volta para o andar inferior. Mas eu acredito que se vocês me ajudarem a passar dessa parte eu conseguirei sair. Acredito que ser incapaz de sair sozinho deva ser parte da minha maldição. Essa parte, infelizmente, eu sei que ainda está ativa, pois quando senti a presença de vocês na vila e senti que o elevador travou, eu tentei ir até vocês. Claramente eu não fui capaz de subir… Por isso ainda vou precisar da sua ajuda. Eu guio vocês pelo caminho e vocês me ajudam a chegar à superfície. Pela minha teoria essa maldição deve funcionar como uma espécie de película, então assim que atravessarmos esse campo invisível eu devo ser capaz de voltar à consciência.
-É… Só uma teoria? Quer dizer que pode ser que você continue desacordado e sem condições de nos dar uma direção quando as salas todas trocarem de lugar? -Como sempre, Tighnari foi incisivo em suas palavras fazendo o moreno travar por uns instantes enquanto tentava organizar seus pensamentos e palavras.
-Bom… Não seria impossível, mas improvável. Como deus eu posso sentir os campos de energias e a extensão das maldições…
-Mas não foi capaz de sentir o enfraquecimento da maldição do tempo na vila? -Tighnari o interrompeu com suas dúvidas mais uma vez.
-Er… Na verdade não é que não fui capaz… -Sem graça, a divindade tentou encontrar uma forma de se explicar, mas logo foi novamente interrompido pelas perguntas intermináveis do cético pesquisador.
-Então no fim não tem certeza de que é capaz de nos tirar daqui e está tentando criar alguma teoria que seja suficientemente crível para me convencer a te ajudar a sair daqui? Isso não é exatamente uma boa ideia…
-Cale a boca! -Cyno se levantou irritado, sua voz perdendo o tom suave que estava usando até poucos instantes atrás e seu rosto se tornando pesado e rude novamente. -Eu tento ser gentil com você, mas sua insolência me tira do sério. Se você não fosse tão essencial para que consigamos sair daqui, Tighnari, eu juro… EU JURO que eu teria o prazer de te matar aqui e agora pela sua língua. -Ele bufou irritadiço e Tighnari sentiu o arrepio mais uma vez percorrer sob sua espinha. A memória vívida dos dedos dele ao redor de seu pescoço quase lhe causou falta de ar e ele sentiu seus músculos fracos tremerem novamente. -É melhor não se esquecer do abismo de poder que existe entre nós, garoto feneco. Não ouse enfrentar deus.
Tighnari engoliu seco e se encolheu em sua insignificância não ousando sequer levantar os olhos para encontrar a face furiosa da divindade. Aquele temperamento dele era um problemão. Levá-lo para fora seria uma péssima ideia, mas talvez lá fora pudessem estudá-lo ou talvez a Academia pudesse arrumar uma forma eficiente de contê-lo. Se pelo menos fosse capaz de não provocar sua fúria de modo irreversível até que conseguisse fugir dali já seria excelente.
E talvez no fim nem fosse necessário levá-lo para fora, afinal ainda existia a possibilidade de ele não conseguir passar por aquela tal “película” que o fazia desmaiar, dessa forma se ao menos conseguisse descobrir o jeito de passar pelo segundo piso antes de chegarem lá, ainda teriam uma forma de escapar e deixá-lo para trás com aquele temperamento ruim dele.
-Eu sei exatamente o que você está pensando, seu pedaço de merda insolente. -Cyno rosnou e Tighnari sentiu seu rosto se aquecer violentamente pela vergonha por esquecer que aquele cara já tinha entrado em sua mente antes e provavelmente conseguiria fazer isso quantas vezes quisesse. -E eu vou fazer você se arrepender amargamente se tentar me trair a qualquer momento. Primeiro porque você não vai conseguir, de toda forma. Vou garantir sua plena obediência, você goste ou não. -Havia um tom maligno em sua voz dessa vez, o que fez Tighnari tremer novamente em suas bases. O que aquele demônio estava planejando? -De todo modo, abra sua boca, garoto feneco. É uma ordem.
Tighnari hesitou, mas seu corpo conseguia sentir a aura absurdamente poderosa que ele emanava naquele momento, então acabou apenas obedecendo-o, fechando seus olhos e abrindo temerosamente seus lábios. Sentiu os dedos fortes dele puxarem seu rosto em sua direção e não teve coragem para assistir o que ele fazia por aquele breve instante que parecia uma eternidade. Apenas sentiu o líquido quente e pegajoso tocar seus lábios e sua língua; o sabor férreo dominar seu palato e respingar sobre seu rosto. Aquele louco o estava fazendo beber sangue?! Abriu os olhos em desespero vendo que Cyno abrira um corte em seu próprio braço e o sangue vermelho escuro jorrava do corte para a boca do pesquisador.
-Beba, minha criança, e se torne meu servo.
Tighnari queria cuspir, mas seu corpo não o obedeceu, pelo contrário, engoliu o sangue espesso e estranho, erguendo seu corpo como se por impulso, segurou o braço da divindade em suas mãos e grudou seus lábios no corte como se precisasse de mais daquele líquido que emanava do corpo dele. Sugou o sangue permitindo que o calor e as sensações estranhamente prazerosas tomassem seu corpo a partir da sensação em sua língua. Era como se jamais antes tivesse experimentado tamanho prazer. Agarrou-se ao braço do deus que riu observando seu desespero.
-Vê como eu posso ser bom pra você, jovem? -Cyno usou a outra mão para acariciar-lhe os cabelos e afagar entre as longas orelhas do feneco. -Não precisa me evitar, apenas se comporte e eu lhe darei o mundo. -As palavras soaram doces aos ouvidos do pesquisador como uma promessa de um futuro promissor. Algo em seu âmago ainda gritava para que ele acordasse daquele transe e fugisse, mas seu corpo apenas não obedecia; inclusive, na verdade, era como se uma nova consciência tomasse o espaço e o acalmasse: “O que há de tão ruim assim em dar-lhe uma chance? Ele é um deus, é apenas natural que como mortal o obedeça.”
Cyno gentilmente afastou sua cabeça depois de alguns momentos erguendo seu rosto para olhar o rosto de Tighnari e então sorriu ao ver a bagunça que estava: os lábios vermelhos e manchados, filetes de saliva e sangue escorrendo por seu queixo e respingos de sangue sujando seu rosto bonito. Suavemente acariciou-lhe o rosto vendo o pesquisador fechar os olhos e aproveitar o carinho, manso, adestrado. -Bom garoto. Vamos limpar seu rosto no rio. Seus amigos podem se assustar se o virem desse jeito.
Cyno guiou o pesquisador calmamente para que se abaixasse perto do rio mais uma vez, então recolheu um pouco de água em sua mão a usando para limpar o rosto do feneco que ainda parecia absorto no transe. Esfregou suavemente a pele com seu polegar para limpar bem as manchas de sangue, pegando mais água para deixá-lo bem limpinho, então sorriu mais uma vez e afagou-lhe o topo da cabeça entre as orelhas.
-Eu sempre acredito que posso confiar em vocês mortais sem necessariamente dominá-los, mas vocês sempre me provam o contrário - o que é sempre uma tristeza sem fim pra mim. Vocês sempre pendem para a desordem e a desobediência, talvez fosse por isso que Celestia sempre manteve um controle muito forte sobre a mortalidade a ponto de amaldiçoar lugares como esse aqui. -Cyno suspirou e negou com a cabeça sob o olhar constante do feneco.
Tighnari sentia sua mente nublada como se nada mais fosse incomodá-lo a partir dali o sabor do sangue fresco ainda parecia tomar sua boca como se ele nunca tivesse soltado o braço da divindade, seu corpo parecia quentinho e confortável e a cada instante mais suas dúvidas pareciam desaparecer e a insegurança relativa às intenções do deus simplesmente já não importavam mais. Tudo o que importava era que estava sob os cuidados daquela criatura divina e se sentia especial por isso. Desde que pudesse descansar nos braços dele tudo ficaria bem.
-Pode confiar em mim agora, mestre. Eu jamais vou decepcioná-lo novamente! -Ele levou sua mão ao peito como se jurasse ao deus sua lealdade. -Por favor, não vou desobedecê-lo!
-Eu sei que não vai mais, meu doce menino feneco, mas você ia. -O deus acariciou novamente entre as orelhas dele fazendo-o abaixar um pouco a cabeça para aproveitar melhor o carinho gostoso. -Mas eu serei bom pra você enquanto você for bom pra mim. Mas não queira me ver irritado. Eu detestaria ter que roubar todo o seu senso de individualidade e sua personalidade apenas para manter o controle sobre você. -Ele desceu a mão pela lateral do rosto do pesquisador e o segurou gentilmente pelo queixo fazendo seus olhares se encontrarem diretamente. -Tenho grandes expectativas em você, pois acredito genuinamente que podemos fazer grandes coisas juntos, meu doce.
Naqueles olhos vermelhos Tighnari pôde ver uma gama de coisas que jamais experimentara antes. Seu corpo se arrepiou por inteiro ao mergulhar naquela piscina de sangue que era aquele olhar; ao mesmo tempo que aquela fraca e sutil voz parecia gritar no mais interno de sua alma, suplicando que ele acordasse e percebesse o perigo no qual estava envolvido. Apoiou suas mãos nos ombros do deus e subiu os dedos suavemente pela curva do pescoço dele sentindo a pele quente sob suas mãos, soltou o ar que não percebeu ter prendido. -Me perdoe, meu deus, pelos meus pensamentos ruins. Eu não quero ser ruim para você nem decepcionar suas expectativas, então, por favor, me guie daqui pra frente, certo? -O pesquisador deu um sorriso suave e sutil pendendo levemente sua cabeça para a direita e Cyno por um breve instante sentiu algo estranho se revirar no fundo de sua garganta. Era como olhar para um gatinho filhote, adorável. Não se permitiria nutrir tal tipo de pensamento sobre um mortal, então sacudiu aquele tipo de pensamento para longe de sua mente e se levantou ajudando o pesquisador a se levantar também.
-Vamos acordar seus amigos, comer alguma coisa e nos preparar para a subida. Quanto antes sairmos daqui melhor para nós todos.
-Tudo bem se eu fotografar um pouco esse lugar antes de irmos, meu mestre? -Tighnari perguntou inocentemente à divindade que pareceu claramente confusa com a pergunta.
-Foto…grafar? Está vendo porque preciso tanto de você, Tighnari? Muitas palavras novas, tecnologias novas, eu preciso de alguém que possa me ensinar todas essas coisas. -Ele mais uma vez acariciou gentilmente entre as orelhas do feneco que instintivamente abanou o rabo pela felicidade bizarra em estar sendo reconhecido por seu novo mestre como alguém necessário, mas logo pareceu ficar envergonhado por seu comportamento e aquietou seu rabo.
-F-Fotografar é como falamos quando usamos um aparelho como esse para gravar imagens de algum lugar, algo ou alguém. -Ele indicou a câmera que ainda estava presa ao seu pescoço pelos cordões. -Como posso explicar de forma simples? Ele usa reflexão da luz para gravar as imagens no que chamamos de “fotografias” que são como desenhos hiper realistas de alguma coisa. Deixa eu te mostrar…
Tighnari retirou a tampa de proteção da lente da câmera sob o olhar curioso da divindade, então ligou o aparelho virando a lente na direção do jardim de flores que havia ali próximo do rio. -Ele vai acender uma luz e fazer um som característico, então não se assuste, ok?
-Hum. -O deus apenas meneou a cabeça ainda mantendo seu olhar curioso no aparelho que Tighnari carregava.
-Aqui pela tela a gente já tem uma prévia de como vai ficar a fotografia, está vendo? -Ele apontou a tela da câmera. -E então quando eu pressiono aqui… -Tighnari apertou o botão da câmera que fez o característico “click” e então a luz do flash tomou o lugar por uma fração de segundo, mas foi o suficiente para assustar Cyno que deu um salto para trás e se colocou em posição defensiva imediatamente rosnando para o feneco. -Hey! -Tighnari não segurou a risada que escapou naturalmente. -Pior que eu te avisei do som e da luz e ainda assim você se assustou! Está tudo bem!
-O que foi isso? Parecia um relâmpago, mas sem o som! -Cyno parecia bastante irritado, então Tighnari não tentou se aproximar por precaução.
-Isso foi o flash. É uma luz que serve pra garantir que a iluminação da foto esteja ideal para a captura da imagem. É como eu te disse antes, sem luz a imagem não é gravada, então se o local for escuro é necessário usar o flash para equilibrar a iluminação para que a foto fique boa. Eu não vou usar a câmera para te machucar, Cyno, eu juro, e você sabe que eu jamais tentaria qualquer coisa contra o meu mestre. -Tighnari sorriu docemente para o deus que suspirou e se aproximou cautelosamente, mas parecendo irritado.
-Certo. Então agora que você já “fomografou”, podemos ir? Quanto antes sairmos deste lugar, melhor para todos nós.
-Eu gostaria de mais algumas fotos de ângulos diferentes, mestre. O senhor pode subir na frente e eu o sigo pelas escadas se assim preferir. Vou levar apenas um minuto.
Cyno queria repreendê-lo pela demora, mas preferiu deixar para lá. O garoto provavelmente não poderia voltar lá embaixo para “fotografar” nunca mais, seria bom deixá-lo ter o sabor de fazer o que quisesse por uns minutos enquanto estava lá embaixo. Na verdade, ninguém mais poderia ir lá depois que eles saíssem se tudo corresse como o deus esperava que corresse; e também era perigoso demais pra qualquer um ir até lá. Seria melhor que aquele lugar afundasse para sempre nas areias do deserto como era seu destino.
O deus subiu calmamente as escadas enquanto o garoto fotografava o lugar. Logo depois então o pesquisador correu atrás dele subindo as escadas o mais rápido que conseguia. Cyno parou no degrau onde estava para esperá-lo olhando para ele enquanto corria escada acima. Tighnari se curvou retomando o fôlego ao estar perto o suficiente da divindade que lhe estendeu a mão para ajudá-lo a subir o resto dos degraus.
Tighnari parou para fotografar cada uma das salas em seu caminho até que alcançassem a sala onde ele tinha acordado anteriormente, de modo que Cyno até mesmo se acostumou um pouco com as peculiaridades daquela tal “câmera”. E só ao ver o corpo ainda desacordado de Ohna que Tighnari pareceu sentir algo de ruim dentro de si mais uma vez, se aproximando receosamente do colega e dirigindo um olhar aflito à divindade como quem pede permissão, antes que ele meneasse a cabeça positivamente, e então se abaixou ao lado do corpo dele tocando a mão que tinha colocado sobre o peito dele anteriormente. -O senhor vai acordá-lo, certo?
-Sim, conforme prometido. Vou acordar ele e os outros conforme nosso acordo anterior, pois não sou o tipo de pessoa que simplesmente quebra promessas. -Cyno se aproximou e, ao estalar os dedos, Ohna respirou profundamente e sentou-se assustado no chão, se agarrando ao braço de Tighnari. Seu rosto expressava o mais puro horror, mas o feneco tentou ajudá-lo a se acalmar.
-Ohna! Ohna! Sou eu! Acalme-se! Sou eu, Tighnari. Está tudo bem agora! Nós vamos voltar para cima, ok? -O feneco tentava acalmá-lo gentilmente tocando seus braços. -Está tudo bem com você? Sente algum tipo de dor?
-T…Tighnari? Sim! Sim! Tighnari! -Ele repetiu o nome do pesquisador. - Vamos embora, eu quero… Eu quero ir pra minha casa, professor! -Seus olhos ainda expressavam horror enquanto ele piscava tentando se acostumar com a iluminação e enxergar o rosto do biólogo. Ele subiu suas mãos trêmulas e amedrontadas até o rosto do pesquisador sentindo seu rosto e subindo mais as mãos até suas orelhas, confirmando que era ele mesmo apesar da iluminação, então respirando aliviado e sorrindo apesar do pavor do momento. -V-Você está bem, professor!
-Sim, eu estou bem. E você? Está bem? Sente dor em algum lugar, Ohna? -O pesquisador repetiu reforçando a pergunta e a importância de uma resposta.
-Ele está bem, eu garanto. Mas não vai ficar bem por muito tempo se não tirar as mãos do meu escolhido. -A voz de Cyno parecia cheia de ira e revolta por algum motivo, embora ele falasse baixo. Gritada ou sussurrada, uma ameaça ainda é uma ameaça. Ohna se afastou imediatamente.
-Ele está com você? Por Deus! Não! Não me mate, por favor, senhor demônio! - O pavor parecia até mesmo palpável. Tigh abraçou o pesquisador aterrorizado tentando acalmá-lo novamente.
-Cyno! Se importa de me deixar acalmá-lo sem ameaçá-lo? Ele precisa entender que você não vai nos matar ou isso não vai dar certo! -Tighnari repreendeu a divindade que cruzou os braços e revirou os olhos com um “humpf”, saindo da sala em passos irritados como se chutasse o chão a cada passo. Tighnari revirou os olhos pensando em como seu mestre parecia uma criança mesmo quando o objetivo era cumprir seus planos.
-E-ele é um monstro, Tighnari! Não podemos confiar nele! -Ohna sussurrou aos ouvidos do feneco. -Você precisa… precisa acreditar em mim! Ele… Ele vai matar a todos nós! Está procurando uma forma de sair daqui e vai nos eliminar logo em seguida. Ele acha que você vai conseguir nos tirar daqui, mas ele não se importa realmente se nós vamos sobreviver! Você precisa se livrar dele! -Sua voz era trêmula e suas lágrimas molhavam o ombro do pesquisador enquanto ele desabafava seu terror em palavras que pareciam absurdas aos ouvidos do feneco naquele momento.
-Não, Ohna. Você está enganado. Ele pode soar assustador às vezes, mas isso é comum aos deuses. Nosso medo e nossas expectativas são defeitos mortais. Cyno irá nos salvar daqui, pois nós jamais sairíamos sozinhos. Precisamos dele para passar pela maldição do segundo subsolo e ele precisa de nós pra passar pela maldição do terceiro. É uma via de mão dupla, entende? -Tighnari afagou os cabelos do historiador que chorava em seu ombro. -Não pense coisas tão ruins sobre ele, você não o conhece! É só seu medo falando por você nesse momento. Não deixe seu medo do desconhecido dominar você, ok? Agora, por favor, me diga se está sentindo alguma dor.
-N…não sinto dor. -Ohna se afastou lentamente e, agora com os olhos acostumados à escuridão do ambiente, encarou o rosto do professor. Havia algo de estranho com Tighnari. Seus olhos pareciam diferentes de alguma forma, mas Ohna não estava em condições de dizer se isso era alguma conspiração de sua cabeça. Talvez ele estivesse certo… Por que estava mesmo com medo da divindade?
-Ótimo. Então vamos nos levantar com calma, ok? Pode se apoiar em mim. -Tighnari ajudou o historiador a se levantar do chão sem pressa passando o braço por baixo dos braços dele enquanto Ohna se apoiava em seus ombros para se levantar. -Vamos ao encontro dos outros e Cyno vai nos guiar para fora daqui. Eu vou fotografar todo o caminho, assim depois você pode traduzir o que está escrito nas paredes e podemos passar o relatório para a Academia do conforto de nossas casas. Eu quero um banho de chuveiro! -Tighnari sorriu amigavelmente tentando fazer o historiador esquecer seus medos por um momento. Ele sabia, agora, que tudo ficaria bem desde que apenas confiassem suas vidas ao deus do deserto, ao Cyno.
Ohna se soltou do feneco na sala seguinte dizendo que poderia andar sozinho e Tighnari não precisava se preocupar. Tighnari compreendeu que talvez fosse desconfortável caminhar daquele jeito, mas não viu o olhar afiado que Cyno tinha lançado ao historiador, nem ouviu as ameaças proferidas diretamente à mente dele, entretanto de alguma forma Ohna sentia que desde que respeitasse os limites do deus, talvez houvesse alguma chance de escaparem dali com vida.
Se apenas tivesse dado ouvidos aos sussurros dele da primeira vez que os tinha ouvido, talvez agora estivesse seguro voltando para casa. Cyno queria apenas Tighnari, todos os outros eram descartáveis e isso era algo que ele sabia muito bem. No momento que Tighnari se voltasse contra o deus ou eles o desagradassem, seria o fim de suas miseráveis vidas.
Estava escrito nas mesmas paredes que Tighnari estava fotografando naquele exato momento.
Aqueles homens de milhares de anos atrás pediam para que os deuses os poupassem da ira do deus da discórdia. Pediam para que os outros deuses os poupassem de suas vidas miseráveis à mercê de Cyno e dessem-lhes um fim rápido.
Pelo pouco que traduzira até ali, estavam presos com um deus cujas habilidades envolviam manipulação, e que se alimentava do medo e da discórdia dos homens. Ele tinha sido a razão da ascensão daquele povo, mas também de sua queda, e o historiador sinceramente duvidava que Tighnari tivesse algum conhecimento dessas coisas.
Chapter 3: Feitiço
Chapter Text
-Onde estão os outros da equipe, Cyno? -Tighnari perguntou ao abaixar a câmera após finalizar a série de fotografias de mais uma sala. A divindade, de braços cruzados, parecia um pouco impaciente, mas não se impunha de forma a regular o tempo que o feneco gastava com a pesquisa. Ohna, mesmo tendo tempo, evitava olhar demais para quaisquer detalhes da sala ou para o deus, se recolhendo a observar os próprios pés assustado. Tentava não pensar muito em nada, lembrar de alguma música que gostava, das pessoas que o esperavam em casa, qualquer coisa menos no cheiro abafado das ruínas, na sensação de terror e nas palavras horrendas que estavam descritas nas paredes.
-Estamos indo ao encontro deles, meu doce. -Cyno respondeu sem interesse, suspirando quando Tighnari se aproximou dele. -Vamos seguir em frente? Já terminou aqui com as “formografias”?
-Sim. Podemos ir em frente. -O pesquisador arrumou a mochila nas costas e se virou para o historiador amedrontado. -Vamos, Ohna. Vamos encontrar os outros! -E então virou-se novamente para frente seguindo com Cyno pelos corredores e salões.
Ohna os seguiu a certa distância, temendo qualquer coisa que pudesse irritar a divindade de algum modo. Mantinha seu silêncio, mas não podia deixar de remoer em sua cabeça aquelas palavras: “meu doce”. Um tratamento estranhamente carinhoso vindo do deus para o pesquisador. O que ele queria demonstrar com aquelas palavras? Estaria usando os sentimentos de Tighnari para manipulá-lo? Sacudiu os pensamentos para longe. Era melhor não pensar muito. Se lembrava bem que ele tinha entrado em sua mente antes, enquanto ainda estavam no acampamento. Não seria demais dizer que aquela divindade conseguiria ler seus sentimentos ou pelo menos suas intenções.
Aquele era, afinal, o deus da discórdia. O deus que conhecia profundamente os sentimentos humanos e os usava para manipular suas emoções a seu bel prazer. Um deus sobre o qual as paredes alertavam para que fosse tomado muito cuidado. Cyno sabia que ele era capaz de ler aquelas paredes? Talvez soubesse. Talvez soubesse exatamente o que Ohna sentia e pensava naquele exato momento, ou talvez, na melhor das hipóteses, estivesse ocupado demais dominando a mente e os sentidos de Tighnari de forma que este não o odiasse absolutamente. Ele se importava com Tighnari? Se não se importava com seus sentimentos e pensamentos, pelo menos parecia se incomodar com a posse dele, uma vez que tinha lhe encarado de um jeito tão amargo apenas por estar apoiado ao pesquisador por conta de como seu corpo estava travado pelo medo.
O salão que se abriu à frente deles era absolutamente aterrorizante. Ohna sentiu os joelhos congelarem de medo mais uma vez e teve que se apoiar no batente dos arcos que dividiam os ambientes de forma que não caísse ao chão pela fraqueza repentina. Havia uma grande mesa com canaletas ao redor que pareciam guiar para uma saída específica onde havia uma bacia no chão. Para bom entendedor, meia palavra basta, e Ohna sabia exatamente que aquela era uma mesa de sacrifícios. Haviam quatro lanças ao redor da mesa fincadas em suportes específicos com as longas lâminas para cima e suportes para lamparinas, mas toda a sala estava afundada numa penumbra ainda mais aterrorizante. Haviam poucos daqueles cristais que deixavam uma meia luz arrepiante dominar o cômodo, permitindo que se enxergasse os contornos dos objetos e das pessoas, mas não os detalhes do cômodo.
Ohna via também de onde estavam as estátuas do deus Cyno, sete delas, espalhadas ao redor da sala, e o que pareciam ser sete mesas redondas menores com banquinhos ao redor delas em volta da mesa de cerimonial. Ele queria não ter ideia do que acontecia ali, mas quando a luz do flash da câmera de Tighnari iluminava a sala, ele podia ver os reflexos dos ossos humanos espalhados pelo chão e sobre as mesas. As paredes continham palavras que traduziam para “sacrifício”, “sangue”, “vitória”, e outras que traduziam para termos que Ohna não gostaria nem mesmo de pensar naquele momento. Seria absolutamente fascinante em uma ocasião na qual o deus para qual aqueles sacrifícios foram feitos não estivesse presente na sala ao lado deles. “Explorando as ruínas de uma civilização canibal perdida sob as areias do deserto” não era um título de tese que ele detestava antes de conhecer a divindade pessoalmente. Ele se alimentava dos súditos sacrificados? Céus, odiava o fato de sua mente trabalhar constantemente naquele momento, pois estava a ponto de se mijar de medo se Cyno apenas lançasse outro olhar daqueles para si, mas por sorte o deus parecia mais interessado em observar curiosamente o biólogo que pegou uma lanterna em sua mochila para iluminar melhor o ambiente e passou a coletar pequenas amostras do material biológico que havia encontrado.
Não demoraram tanto tempo ali e seguiram para a sala seguinte onde Tighnari e Ohna logo reconheceram Dyjav. Ele estava sentado no chão encostado em uma parede comprimindo um pedaço de pano contra uma ferida em sua perna. Ohna correu até preocupado, ignorando Tighnari e Cyno, sua preocupação exacerbada escapando em forma de palavras por sua boca.
-O que houve?! Como você acabou machucado? Está doendo? Estamos aqui! Vai ficar tudo bem agora! -Apesar de que não tinha convicção em suas palavras. Apesar de tudo Dyjav não parecia tão tenso ou tão amedrontado quanto qualquer um deles estaria na mesma situação. Pelo menos não inicialmente.
-Estou bem, o doutor estava aqui comigo agora mesmo, mas saiu pra procurar água limpa. O machucado não é tão sério quanto parece, pode ficar tranquilo, se afobar só vai tornar tudo pior. -As palavras dele pareciam mais tranquilizadoras do que as de Ohna, apesar de tudo. Ele realmente era um homem forte, Tighnari pensou.
-Temos que ir atrás do médico antes que ele se perca. -Cyno resmungou se aproximando do homem ferido e segurou-lhe a cabeça pela testa antes que ele pudesse protestar pela repentinidade do ato ou pela força dolorosa da pressão dos dedos de Cyno em suas têmporas. Entretanto, quando o grande corte se fechou diante dos olhos de todos, o medo mais genuíno tomou Ohna novamente. -Levante-se e vamos atrás do médico. Você viu em que direção ele foi, ou ele disse em que direção iria, mortal?
-E-ele disse que iria pelo caminho da esquerda, por onde chegamos até aqui. -Dyjav sentiu o ar sumir de seus pulmões e logo a mão da divindade o soltou. A energia que percorrera seu corpo instantes antes era maior e diferente de tudo o que ele tinha sentido em toda sua vida. Ele ergueu seus olhos para finalmente encontrar os olhos vermelhos da divindade e então sentiu seu maxilar tremer num horror jamais imaginado por si. Aquela, ali na sua frente, era a divindade representada nas incontáveis estátuas que tinham encontrado naquelas ruínas, mas, mais do que isso, era o deus que tinha visto em seus sonhos desde o dia em que pisaram naquela cidade abandonada.
Dyjav tinha conversado com a divindade em seus sonhos e, por isso, quando viu a primeira estátua, sentiu seu coração bater no fundo de sua garganta. Agora vendo-o diante de seus olhos ele parecia… menor do que esperava? Ainda assim sua aura era assustadoramente poderosa. Dificilmente encontraria algo como ele em qualquer lugar do mundo. Aquele era um espécime absolutamente incrível. Seus olhos brilharam em ambição.
-Certo. Levante-se e vamos encontrar seus colegas. Quero ir embora daqui o mais rápido possível e seria ótimo se vocês parassem de me atrasar saindo do lugar. -Cyno rosnou e saiu pelo caminho adiante sendo seguido por Tighnari.
-Há algo de errado com Nari? -Dyjav perguntou ao Ohna quando este o ajudou a se levantar de onde estava, suspirando em seguida. -E qual o nome do… do cara com a cabeça de chacal?
-Tighnari? Eu também notei que ele está estranho, mas precisava que alguém me confirmasse que eu não estou louco. O cara aparentemente é a divindade desse local, o professor Tighnari o chama de Cyno, mas eu não ousaria me dirigir diretamente a ele em momento algum. Se eu pudesse te dar uma dica, tome muito cuidado com o que diz e com o que pensa, Dyjav. Os poderes dele envolvem leitura da mente, então nem mesmo pensar é seguro aqui.
O mais alto encarou Ohna ao se levantar vendo a seriedade anormal em seu rosto, então dessa vez decidiu levar a sério a orientação dele, pra variar. Os dois então seguiram Cyno e Tighnari que já haviam ido na frente em busca do médico.
Um dos guardas, aquele conhecido pelo nome de Lalit, foi o primeiro a ouvir os passos e avisar aos outros que esperassem, pois parecia que alguém estava vindo e podia ser Ohna que estava desaparecido do grupo há algumas horas desde que haviam se separado quando as salas do andar superior mudaram de lugar separando o grupo em três partes; com o médico Arjun e o Dyjav em dupla, os seguranças Deepak e Lalit em outra, e Ohna sozinho, um grupo para cada lado. Dyjav e Arjun desceram para o andar inferior em busca deles, pois acreditaram que eles também tentariam descer em busca de escapar da movimentação do andar superior, mas acabaram enfrentando alguns problemas, incluindo Dyjav se ferindo. Poucas salas à frente de onde Dyjav estava, Arjun encontrou os seguranças Lalit e Deepak, e assim eles estavam indo em grupo em busca de água para lavar o ferimento do pesquisador.
-Esperem, tem alguém vindo! Pode ser Ohna ou Tighnari que resolveu vir atrás de nós! -Ele informou ao grupo e todos pararam o que estavam fazendo, ficando atentos aos sons. -Ou podem ser os dois juntos; ouço mais passos… Parece ser mais de uma pessoa.
Logo Tighnari apareceu pela entrada e Deepak abriu um sorriso ao ver o líder da expedição e o único motivo para ter topado ir para o meio daquela loucura de exploração. Caminhou em passos apressados na direção dele.
-Tighnari! Como é bom ver que está bem! Desculpe não termos deixado nenhuma anotação! Íamos voltar rapidinho, mas acabamos presos! -Ele segurou a mão de Tighnari que lhe deu um sorriso gentil como se tentasse acalmá-lo.
-Vai ficar tudo bem agora, Deepak. O deus deste templo nos ajudará a encontrar o caminho para sair daqui.
-Deus? -Deepak não entendeu inicialmente. Tighnari era ateu e absolutamente cético. Ele fazia questão de deixar bem claro sobre seus pensamentos de como a religião atrapalhava a ciência e as duas coisas não podiam andar lado a lado em hipótese nenhuma, mas agora estava falando que deus os guiaria para fora? Que tipo de piada era aquela?
Mas foi nesse momento que Ohna e Cyno também entraram no salão onde eles estavam e Deepak, embora não fosse um estudioso, era um homem nascido no deserto e por isso tinha aproveitado bastante todo o caminho da exploração e observado o suficiente das artes e das estátuas para reconhecer aquele homem. Em qualquer outro lugar diria que era um excelente cosplay, mas quanto mal gosto seria necessário para alguém fazer cosplay de um deus antigo dentro de ruínas amaldiçoadas de verdade?
-Tire suas patas de cima do Tighnari, mortal imundo. -A ordem saiu entre os dentes da divindade e Deepak não hesitou em se afastar um passo para trás lentamente como se estivesse se afastando de um animal selvagem, sem desviar o olhar.
-Nari? Tá tudo bem mesmo? -Ele perguntou novamente.
Tighnari e Deepak se conheciam de outros verões. Cresceram juntos na vila Gandharva, mas enquanto Tighnari escolheu seguir carreira acadêmica, Deepak optou por se alistar assim que completou dezoito anos, por isso eram como “amigos de infância”, e quando começaram a recrutar seguranças na tropa dos trinta para acompanhar a expedição do “famoso professor Tighnari”, ele logo se voluntariou. Ele, Lalit e Arjun tinham ciência de que seus nomes não entrariam para os relatos acadêmicos dele ou de Ohna e Dyjav, mesmo assim optaram por acompanhá-los.
-Nari? -Cyno franziu o cenho numa expressão estranha que fez o soldado engolir seco, mas Tighnari tocou levemente seu braço e ele desviou a atenção para o toque da mão do pesquisador em sua pele. Deepak estava visivelmente confuso com o que quer que estivesse acontecendo ali, assim como também estavam Arjun e Lalit que não sabiam o que pensar daquela ocorrência. Dyjav parecia bem, o ferimento tinha desaparecido de sua perna como se nunca houvesse existido.
-Está tudo bem. Cyno só não está mais acostumado a lidar com pessoas, mas eu posso ajudá-lo com isso. -Tighnari então dirigiu seu olhar para a divindade que relaxou sua expressão no mesmo momento. Ele parecia um cachorro bravo, porém adestrado por seu dono; foi o que Deepak pensou.
-Recolha-se à sua insignificância, mortal. -Cyno rosnou para o segurança antes de se afastar em direção à outra saída. -O caminho é por aqui. Me sigam.
-Eu ainda não tirei as fotos, Cyno! -Tighnari interrompeu a marcha do deus. Cyno parou por um segundo, mas não se virou para olhar o feneco.
-Minha paciência tem limites até mesmo para você, “Nari”. -Seu nome saiu de uma forma tão… cínica(?) dos lábios dele, que Tighnari não conseguiu entender. Talvez fosse por conta da devoção em seu peito que impedia que ele pensasse qualquer coisa maliciosa a respeito da divindade, mas apenas achou estranho.
Todos se entreolharam com desconforto e seguiram Tighnari quando ele silenciosamente foi atrás da divindade, por mais que seus olhares perguntassem uns aos outros se deveriam realmente confiar nele.
Cyno os estava ignorando propositalmente, inclusive ignorando os protestos de Tighnari que queria fotografar as salas. Que fosse à merda ele e as “motografias” dele! Estava irritado. Como os mortais conseguiam tirá-lo tão facilmente do sério era um grande mistério para a divindade. Talvez fosse a cara feia daquele mortal que o irritava tanto, ou a forma que ele tinha pensamentos absolutamente sujos em relação ao seu novo brinquedinho que irritava tão profundamente que parecia revirar sua carne e entranhas. É que sabia que tinha prometido tirar todos eles lá de baixo, inteiros e íntegros, e Cyno gostava de cumprir seus contratos. Levaria os mortais para a superfície em segurança desde que eles não se rebelassem, por mais que estivesse louco para derramar o sangue daqueles imundos.
Tighnari percebia a aura pesada dele e tentava não ficar muito distante, pois temia que ele fosse ficar ainda mais irritado, mas em seu âmago não sabia o que fazer para agradar seu mestre. Cyno era um mistério novo para ele e, por mais que sua mente enfeitiçada estivesse implorando pela aprovação dele em todas as hipóteses, Tighnari não conseguia entrar na mente dele como ele entrava na sua.
++++
Aquele lugar era enorme e eles pareciam nunca chegar a lugar algum. Definitivamente a cidade era muito maior na parte subterrânea do templo do que na parte de cima. Eles notaram pois caminharam até a fome bater com força e Tighnari ser forçado a pedir à divindade que fizessem uma pausa para se alimentar. Tinham um pouco de comida com eles, apenas o suficiente, mas precisavam daquela pausa. Cyno não tinha dito mais nenhuma palavra desde aquele momento e se mantinha um tanto quanto distante dos mortais como se estivesse fazendo um esforço absurdo para tolerá-los, ficando inclusive sozinho na sala ao lado apenas para não ter que dividir o ambiente com os mortais enquanto eles comiam e descansavam. Tighnari não aguentava mais lidar com aquela distância repentina de seu mestre. Seu coração enfeitiçado ansiava pelo contato com ele, por ser guiado por ele, e, por isso, ele estava absolutamente aflito e a ansiedade corroía seu interior. Ele até mesmo o tinha impedido de fazer sua pesquisa durante grande parte do caminho por causa de seu mau humor repentino. Então movido pela necessidade de entender seu mestre e sua curiosidade natural pelas pessoas, ele resolveu se aproximar da divindade e se sentar ao lado dele próximo o suficiente para que pudessem conversar sem ser ouvidos pelos outros.
-Cyno, você está bem? O que está acontecendo? -Perguntou num tom de voz gentil e preocupado. O deus suspirou e revirou os olhos.
-Volte para os seus amigos mortais. Não há nada para discutirmos. Vou cumprir com a minha palavra e depois que sairmos daqui você pode voltar à sua vida normal. Eu vou encontrar outra pessoa para me ensinar sobre o mundo de agora, "Nari". -Ele não demonstrou nenhuma expressão, mas de alguma forma Tighnari se sentia desconfortável com as palavras dele e o jeito que saíram de sua boca. Cyno estava insatisfeito com alguma coisa e ele precisava entender o que era se quisesse agradá-lo. Não queria que ele encontrasse outra pessoa. Queria ser o seguidor mais próximo dele, mesmo depois que seu explendor voltasse à sua antiga glória e o mundo se curvasse diante dele.
-Meu senhor… Eu não quero voltar à minha vida normal. Quero ficar ao seu lado, então por favor me permita entender o que você sente, o que pensa. Eu quero ser um com você e obedecer aos seus desígnios. -O pesquisador levou suas mãos à mão direita da divindade segurando-a entre as suas com devoção e acariciando a pele quente suavemente. -Isso é o que eu desejo.
-Tsc. Merda. -O deus resmungou e desviou brevemente o olhar, logo depois voltando a olhar o rosto suplicante do pesquisador. -Você só deseja essas coisas porque está enfeitiçado. Quando o efeito passar você vai voltar a me odiar e me temerá ainda mais do que antes. Vai querer estar tão longe quanto possível.
Tighnari negou com a cabeça e voltou a olhar diretamente nos olhos vermelho-sangue da divindade como se procurasse acessar o mais interno de seu ser. -Se for o caso, basta me enfeitiçar outra vez. Eu nunca me senti tão bem quanto me sinto ao te servir, meu mestre. Faça melhor uso de mim, permita que eu te sirva. -Implorou. -Me use.
Cyno suspirou. Uma sensação estranha tomava seu ser e ele se perguntava o que raios era aquilo. Por que parecia tão diferente quando Tighnari falava aquelas coisas, por mais que já tivesse ouvido isso de inúmeros seguidores e profetas? Por que parecia tão mais… sensual… quando essas palavras saíam da boca dele?
-Vamos fazer o seguinte: eu vou quebrar o feitiço e, se ainda assim você quiser me seguir; se ainda assim você quiser “ser um” comigo, então eu cumprirei seu desejo e garantirei que você esteja ao meu lado quando eu me levantar como o único deus desse mundo. -O deus propôs.
Tighnari se ajeitou sobre as próprias pernas, seu rabo se agitou animadamente e as orelhas se colocaram completamente erguidas em euforia. -Fechado! Vai ver como eu continuarei sendo leal a você, mestre, pois agora conheço verdadeiramente a extensão de seu poder e desejo mais que tudo estar ao seu lado e ajudá-lo a enfrentar esse mundo. Se não pela minha completa devoção, então pela minha insaciável curiosidade.
-Hm. Certo… -Cyno pareceu hesitar um pouco e repensar suas decisões e propostas, mas Tighnari não podia perder a oportunidade de mostrar para seu deus o quanto estava decidido e comprometido.
-Quebre o feitiço e veja como ainda assim eu desejarei estar ao seu lado e ser usado por você, meu deus! -Ele apertou um pouco mais a mão de Cyno entre seus dedos.
O deus encarou aqueles olhos grandes e verdes, então levou sua mão ao rosto do feneco que os fechou suavemente aceitando o toque dele tão facilmente. Deveria quebrar aquele elo formado por seu próprio sangue e confiar nas palavras de um mortal enfeitiçado? Bom, não lhe custava nada. Na pior das hipóteses bastaria enfeitiça-lo novamente e estaria tudo certo.
Tighnari sentia seu coração acelerar a cada toque carinhoso que seu deus lhe oferecia. Dentro de si crescia cada vez mais o desejo de ser útil a ele, de estar com ele, então estava plenamente confiante de que tudo daria certo. Aquela pessoa que tinha medo e que poderia odiar o deus não existia dentro de si. Tudo o que ele queria era satisfazer as necessidades dele e garantir que ele alcançasse seus objetivos. Apenas isso.
Então Cyno naturalmente juntou seus lábios aos do feneco num contato suave, sentindo a maciez daquela boca na sua, mas se surpreendeu quando Tighnari levou ambas as mãos aos seus ombros e se colocou de joelhos se inclinando sobre o deus ao mesmo tempo em que desavergonhadamente invadia sua boca com a língua. Cyno estranhou a sensação. A intenção daquele contato era apenas reabsorver seu próprio poder que havia sido passado a ele por meio de seu sangue, “o beijo de judas”, mas aquilo estava se tornando algo muito diferente do que tinha sido seu intuito em muito pouco tempo.
Sentiu seu rosto se aquecer de um jeito esquisito e seu coração se acelerar quando a língua dele pareceu envolver a sua num contato que poderia ser descrito apenas como obsceno. A energia que sentia de Tighnari era puramente erótica naquele momento enquanto os dedos do pesquisador enroscavam-se sutilmente aos longos cabelos de sua nuca, causando um arrepio que desceu por sua espinha e enviou sinais elétricos ao seu corpo de formas que ele não esperava sentir, pelo menos não sendo por iniciativa do pesquisador.
Afastou rapidamente Tighnari de si, empurrando-o sem muita força, apenas o suficiente para interromper aquele contato estranho, e encarou o rosto dele. Tighnari estava com as bochechas coradas e os olhos entreabertos como se estivesse em êxtase, ele abriu um sorriso quase erótico ao dirigir o olhar para a divindade. Cyno engoliu seco sentindo o ar faltar por um instante. Seu coração estava estranho, seu corpo estava estranho e isso estava deixando-o com raiva.
-Pensei que ia quebrar o feitiço, mestre Cyno, não que ia me beijar. Se queria me beijar poderia ter dito em qualquer momento e eu o teria feito de bom grado. -As palavras pareciam sair de forma tão natural da boca de Tighnari que de algum modo faziam o rosto de Cyno parecer ainda mais quente.
-Olha aqui, mortal! Eu ia quebrar o feitiço! Quem me beijou foi você! -Ele apontou diretamente para o feneco com seu indicador direito. -Eu estava indo drenar o feitiço e você fez essas coisas estranhas!
-Que coisas estranhas, mestre? -Tighnari segurou a mão de Cyno com delicadeza, a mão que apontava para si, e então aproximou de seu rosto sem quebrar o contato visual. Cyno engoliu seco ao ver como ele se aproximava mais uma vez, seu corpo dava alguns sinais confusos. O que estava acontecendo com Tighnari?
-V-você! Como ousa me desacreditar! -As palavras quase se embolaram na hora de sair. Seu coração batia como louco e Cyno podia sentir a temperatura corporal subir de um jeito anormal.
-Eu? Eu jamais faria isso, mestre. -O feneco então lentamente envolveu o dedo da divindade com sua boca ainda sem quebrar o contato visual, chupando-o suavemente e esfregando sua língua sensualmente pela extensão do dígito.
O ar faltou momentaneamente quando o cérebro de cyno conectou as coisas que Tighnari estava fazendo. Ele estava se comportando de repente como uma de suas antigas concubinas! O porquê Tighnari estava tentando seduzí-lo era um mistério completamente novo para o deus, mas ele não tinha tempo para desvendar aquilo agora. Precisava quebrar o feitiço como tinha negociado com o feneco.
-Pare com isso! -Puxou sua mão de volta para si fazendo com que um som oco e molhado escapasse dos lábios do feneco quando este soltou seu dedo. -Vamos apenas nos concentrar em quebrar o feitiço como você pediu! Não se mova, não faça nada! E feche essas porcarias de olhos! -Ele estava nervoso, fazia tempo que não se sentia estranho desse jeito, que não sentia esse desejo genuíno de ir contra todos os seus próprios parâmetros e crenças.
Tighnari sorriu e obedeceu fechando os olhos e se colocando sentado sobre os joelhos, embora no fundo quisesse rir e continuar a provocar a divindade que estava achando absolutamente adorável.
Cyno hesitou um pouco ao se aproximar, sentindo as bochechas queimarem e os lábios tremerem. “Que merdas estavam acontecendo consigo?” Juntou novamente de modo suave seus lábios aos do mortal de modo a absorver o feitiço de seu sangue novamente para si, mas antes que pudesse fazê-lo, lá estava Tighnari novamente envolvendo seu pescoço com os braços e o puxando para um beijo muito mais do que cerimonial.
O deus queria gritar, queria quebrar as paredes e brigar com o feneco, mas seu corpo parecia se recusar como se o feitiço estivesse se virando contra o feiticeiro. Suas mãos pareciam ir sozinhas até a cintura do feneco e sua língua involuntariamente correspondia aos toques nada castos da língua do outro. Tighnari parecia puxá-lo para si como um imã, como se não houvesse um modo de não estar grudado a ele, de não ter seu corpo colado ao dele naquele momento.
Não eram necessárias mais palavras, apenas contato.
Tighnari puxava Cyno para cima de si com suavidade e antes que percebessem estavam deitados no chão da sala. Era possível ouvir a conversa dos outros integrantes do grupo na sala ao lado, mas eles os ignoravam naquele momento em prol de satisfazer seus desejos.
O deus ainda estava incerto quanto àquilo, mas o pesquisador por outro lado parecia saber exatamente o que queria, tanto que sua mão desceu rapidamente pelo tórax desnudo da divindade e por seu abdome, logo se enfiando sob seu saiote e alcançando seu penis.
Cyno travou brevemente ao sentir os dedos do feneco alcançarem seu pau. Fazia tanto tempo que ele não sentia outra pessoa tocá-lo tão intimamente que ele nem se lembrava da sensação. O pesquisador, entretanto, não parecia disposto a deixá-lo divagar por tanto tempo e mordeu seu lábio chamando sua atenção de volta para o momento enquanto massageava gostosamente o membro em sua mão, ao mesmo tempo também puxou o cabelo da divindade de um jeito sensual arrancando um gemido baixo dele.
O deus imediatamente voltou ao momento e passou a devorar os lábios do feneco com ainda mais vontade. Seus instintos guiando suas ações a partir daquele momento, permitindo que o desejo tomasse forma em suas mãos enquanto ele desajeitadamente tentava enfiar suas mãos sob as roupas de Tighnari, por baixo de sua camisa, tocando sua pele branca e macia, tentando tirar a calça dele sem entender muito bem como funcionava aquele jeito estranho de se amarrar as roupas daquele tempo. Logo Tighnari percebeu sua dificuldade e foi ajudá-lo a abrir seu botão e zíper antes que o deus acabasse se irritando e rasgando suas roupas de uma vez - o que não seria completamente inesperado, dado seu temperamento explosivo.
Cyno abaixou suas calças até as canelas e ergueu suas pernas colocando ambas cruzadas sobre seu ombro esquerdo, então ergueu seu saiote encaixando seu penis já duro feito rocha no cu do pesquisador e então forçando-se para dentro dele. E nesse momento Tighnari agradeceu a toda a existência do universo por ser uma raposa e não um humano, visto que se fosse um humano comum aquilo teria doído muito mais, mas graças às glândulas especiais que tinha como traços de resquícios de seus antepassados possuía alguma lubrificação natural, mesmo que não fosse tanta, em seu anus. Mesmo assim teve que abafar um gemido com aquele beijo que não tinham interrompido em nenhum momento para que não chamasse a atenção dos colegas na outra sala.
O medo de ser pego ali naquela situação constrangedora parecia servir como tempero para que aquele momento estivesse ainda mais delicioso dentro da cabeça do feneco. E que se fodesse o feitiço, também! Aquilo era muito real!
Cyno não demorou a começar a movimentar seu quadril. Usava o braço esquerdo para se apoiar no chão ao lado de Tighnari e o direito para segurar-lhe as pernas enquanto deliciosamente fodia seu buraquinho num ritmo gostoso. Ofegos e suspiros enchiam a sala, pois era a única forma de expressarem as sensações que tinham sem ser pegos pelos outros. Não que Cyno ligasse, ele era um deus, nenhuma opinião dos mortais poderia causar-lhe problemas, certo?
Nenhuma exceto…
…Exceto a de Tighnari. Tighnari cujo rosto estava nublado pelo prazer, cujas bochechas estavam vermelhas contrastando com seu cabelo escuro e seus olhos verdes inebriados. Tighnari que cravava as unhas em suas costas e puxava seu cabelo tentando se segurar ao seu corpo como forma de manter alguma sanidade.
Não podia ouvir a voz dele, mas podia ouvir seus pensamentos. Podia ouvir o quanto ele estava adorando aquela sensação de calor que os dominava. Podia ouví-lo pensando em como queria que ele o fodesse mais rápido, como estava se sentindo uma vadiazinha por dar para o deus no mesmo dia em que se conheceram e ainda mais na sala ao lado de onde estavam seus amigos jantando. Tighnari ficava mais molhado a cada instante conforme o tesão aumentava.
Tighnari ouviu a voz do deus dentro de sua mente e foi como se seu corpo espasmasse.
“-Olhe nos meus olhos, Nari. Olhe pra mim enquanto eu possuo seu corpo.”
Tighnari se esforçou para abrir um pouco mais seus olhos, para visualizar o rosto de seu mestre, seus olhos vermelhos tão perto dos seus. Era como se ele invadisse sua alma de tão intenso o olhar que trocavam. Queria gemer, queria pronunciar o nome dele, implorar por ele como uma vadiazinha sedenta. Não podia ser abandonado ou trocado por seu mestre de nenhum jeito.
Cyno podia ver cada um desses pensamentos. Podia ouví-los claramente e lê-los ao olhar nos olhos verdes de Tigh, ao observar como suas sobrancelhas franziam quando estocava com mais força contra seu corpo enfiando seu pau por inteiro dentro dele e tirando com velocidade. Podia se deliciar com cada expressão dele mesmo sem poder ouvir claramente sua voz, mas tinha algo mais importante. Precisava saber o que ele estava realmente sentindo. Estaria realmente gostando daquilo se não estivesse completamente enfeitiçado por seu sangue? Aquela sensação estranha de insegurança começou a crescer. Cyno precisava descobrir.
Afundou seu pau na bundinha dele travando o quadril e vendo-o revirar os olhos por um breve momento e pender a cabeça; então beijou-lhe suavemente os lábios num selar calmo enquanto ele se recuperava, aproveitando aqueles instantes para drenar-lhe o feitiço por meio daquilo que chamava de “beijo de judas”.
As pupilas de Tighnari pareceram dilatar quando ele dirigiu os olhos novamente para encarar os orbes vermelhos de Cyno. O feitiço não estava mais ali, mas os braços dele continuaram agarrados ao seu pescoço e ele não tentou empurrá-lo. Inclusive, não recusou quando Cyno enfiou novamente a língua dentro de sua boca para um novo beijo quente e profundo enquanto voltava a estocar fundo e forte contra seu corpo.
Sua mente parecia em branco por um instante, como se ele estivesse tentando organizar seus pensamentos e suas sensações. Então os pensamentos conflitantes começaram.
“-Ah, merda! Por que estou fazendo isso com ele? Eu não acredito que ele teve a coragem de me enfeitiçar a esse ponto!” Sentimentos de raiva, medo, rancor. E em seguida seu corpo tremia de prazer por Cyno acertar seus pontos mais sensíveis e: “-Droga! Por que ele tem que fazer isso tão gostoso!? Ele deve ler minha mente pra saber exatamente como eu gosto, não é possível!” E Cyno quase podia ver os coraçõezinhos em seus olhos nublados.
Mas então o feneco interrompeu o beijo que trocavam encostando sua testa à do deus e afastando seus lábios por um momento. Seus lábios estavam inchados de tanto ser sugados e mordidos pelo moreno. Então Cyno ouviu a voz baixa dele num delicioso sussurro.
-Ahn… Cyno… Por favor…!
Cyno esfregou seu nariz e seus lábios pelo rosto suado do pesquisador depositando beijos carinhosos pelo caminho antes de capturar novamente seus lábios para abafar quaisquer gemidos que ele viria a dar, pois logo em seguida passou a fodê-lo bem mais rápido e fundo do que antes, movimentando seu quadril de um jeito que fazia Tighnari ficar com a mente em branco e revirar seus olhos de prazer enquanto seus dedos se cravaram à nuca do moreno como se não pudesse deixá-lo fugir de jeito nenhum.
Tighnari soltou uma das mãos para enfiá-la entre suas próprias pernas de modo que pudesse se masturbar. Estava em seu limite. Cyno o estava enlouquecendo naquele ritmo. Poderia dizer claramente que nunca tinha fodido tão gostoso daquele jeito antes, nunca tinha encontrado alguém que pudesse deixá-lo molhado naquele estado mesmo sem as preliminares, pois não era normal que ficasse tão excitado a ponto de se encharcar fora da temporada de acasalamento. E ele conseguia sentir o quão molhada estava sua bunda, pois a lubrificação pegajosa escorria entre suas nádegas e os baixos sons molhados eram audíveis dentro da sala onde estavam mesmo que a conversa na outra sala estivesse bastante alta.
Claro que Cyno sabia tudo aquilo, pois se Tighnari pensava naquele momento, então ele ouvia.
Pôde sorrir vitorioso ao ver Nari alcançar o orgasmo sob seu corpo gozando em si mesmo sem poder negar que Cyno tinha sido a melhor pessoa com quem tinha transado em sua vida inteira, mesmo que tivesse sido apenas uma rapidinha não programada.
Mas também estava há muito tempo sem se envolver sexualmente com ninguém e não conseguir se controlar e acabar despejando tudo dentro do cuzinho apertado do explorador enquanto ele o amaldiçoava mentalmente em vinte e cinco línguas por não ter tirado antes foi apenas natural. Não pôde resistir quando o interior dele começou a espasmar tão deliciosamente por causa do orgasmo.
Ninguém falou nada, entretanto, apenas trocando um último beijo enquanto tentavam normalizar suas respirações.
Tighnari podia estar com muita raiva, mas não poderia fingir que não tinha gostado daquilo, pois seus pensamentos o trairiam a qualquer instante… e de quebra ele não parecia estar ressentido pelos acontecimentos anteriores, talvez por ter conseguido aproveitar o sexo.
Ponto para Cyno.
Chapter 4: Maldição
Chapter Text
Tighnari estava irritado, mas sabia que não podia ficar pensando muito nisso ou aquele pedaço de merda com o ego maior que o deserto poderia transformá-lo em zumbi outra vez. Estava com nojo de si mesmo por ter agido como uma cadela para um merda autoritário daqueles, mas se odiava ainda mais por ter aproveitado cada instante da transa mesmo depois de recobrar sua consciência. Nunca em sua vida daria para um cara daqueles por livre e espontânea vontade. Cyno podia não estar tão longe de seu gosto em aparência, mas em personalidade era o oposto polar, definitivamente. O feneco com toda certeza preferiria alguém mais sensível, gentil, e principalmente mais humano. Alguém que se importasse com as pessoas, que se importasse com ele. Se sentia sujo principalmente pois não era o tipo de pessoa que fazia sexo casual, muito menos num ambiente como aquele e numa situação de tamanha exposição, com seus colegas bem ali do lado, correndo o risco de ser pego a qualquer momento! Se sentia ultrajado, ofendido.
Mas não podia sequer pensar nisso.
Não podia reclamar nem pra si mesmo o quanto preferia nunca ter feito aquilo, o quanto preferia nunca ter conhecido Cyno, nunca ter se envolvido com ele até aquele ponto. Queria uma exploração normal, desvendar quebra-cabeças, examinar vestígios biológicos e traduzir textos antigos, não ajudar um deus mimado a fugir de seu castigo.
Claro que sempre que quisesse deixar sua mente silenciosa ela ficaria mil vezes mais agitada. O momento que decidisse que não pensaria em Cyno ou na transa seria justamente o momento em que pensaria nele.
Cyno caminhava na frente guiando o grupo. Até antes da pausa, Tighnari estava ao lado dele, mas agora caminhava na retaguarda, indo atrás de todo o grupo. Era irritante como ele parecia bem mais sociável agora. A forma como ele guiava o grupo e destratava cada um deles meramente por serem mortais era insuportável.
Talvez fosse o sorrisinho irritante que estava em seu rosto cada vez que ele dirigia o olhar para o grupo, para Tighnari especificamente; ou talvez tivesse mais relação com a sensação pegajosa e irritante em sua roupa íntima. Independente do que fosse, Tighnari não estava aguentando estar perto dele, mas o infeliz era sua única chance de escapar daquele lugar.
Os outros pareciam menos apavorados, entretanto, a cada momento. Aos poucos se acostumavam com a grosseria da divindade e apenas se recolhiam a respeitá-lo, exceto por Ohna, cujo olhar transtornado de puro pavor permanecia o mesmo. Talvez porque ele foi quem presenciou a maior parte da violência do deus, talvez tivesse seus motivos próprios para temê-lo naquele nível.
A verdade é que Ohna tentava manter sua cabeça vazia para não irritar o deus, mas as paredes da cidade subterrânea marcadas com pedidos de socorro entre as artes e rezas que um dia foram feitas para homenagear aquele mesmo deus não facilitavam nem um pouco o processo.
O frio sobrenatural que fazia naquele lugar também não era um fator que acalmava seus nervos ou seu coração. Era esperado que a temperatura sob as areias fosse consideravelmente menor do que na superfície onde o sol batia diretamente, mas não que seus pelos fossem arrepiar-se pelas baixas temperaturas como se de repente fosse inverno.
Ohna sinceramente se questionava sobre a sanidade dos outros membros da equipe que pareciam tão calmos naquela situação, mas principalmente de Tighnari que parecia ter mudado da água para o vinho. Até pouco tempo antes estava cheio de amores e devoção com a divindade, mas depois da pausa mal o encarava e andava distante de todos. Provavelmente aquele filho da puta tinha falado alguma coisa para o feneco, não era possível que não. Mesmo assim era perigoso demais sequer pensar nessas coisas e desenvolver esses pensamentos, que dirá chamar o feneco para conversar e explicar o que estava acontecendo.
Só podia rezar para que um milagre os salvasse de um possível futuro sombrio que os aguardava.
♦♦♦♦♦
Pareceram horas, principalmente pelo silêncio cortante na maior parte do caminho, mas finalmente chegaram à sala onde ficavam as escadas para o andar superior. Aquela era a escada a partir de onde Cyno dependeria deles para passar caso desejasse alcançar sua sonhada liberdade.
Ohna sinceramente não sabia se rezava para que fosse impossível atravessá-lo, mas não havia escolha a não ser tentar, ou ficariam presos ali com ele também.
— Aqui é o limite. Eu passo as instruções sobre como vamos atravessar a parte superior depois que vocês me levarem até lá. — Cyno se pronunciou. Ohna engoliu seco sob o olhar afiado da divindade.
“Eu poderia enfeitiçar todos vocês, mas não vou. Você me deu sua palavra que manteria sua lealdade, estou contando com isso.” A voz do deus ecoou dentro da mente de Tighnari como se emanasse de dentro da sua alma e preenchesse todos os seus poros. “Não quebre minha confiança e eu te recompensarei, Tighnari.”
O feneco sentiu seu estômago revirar e um calafrio subiu por sua espinha, mas era estranho, não era como se sentisse medo. Era… outra coisa.
Eles subiram as escadas, todos observando atentamente o que acontecia com a divindade. Cada passo era um temor do que poderia ser, um medo diferente. Faltando apenas quatro degraus para alcançarem o piso superior, entretanto, os olhos da divindade se reviraram e o corpo pesou caindo desfalecido para trás, sendo segurado por Dyjav que estava imediatamente atrás dele justamente por ser um dos mais fortes do grupo. Os guardas o ajudaram segurando a divindade desfalecida pelo outro lado.
Ohna dirigiu o olhar desesperado ao líder da expedição como se implorasse a ele. As palavras tão temidas escaparam de sua boca na esperança de que Tighnari fosse ouvir a voz da razão no único momento em que poderia falar sem ser punido pelo Deus.
— Ele vai nos matar assim que acordar no andar de cima, professor. Você sabe disso, não sabe?
Tighnari suspirou e negou com a cabeça. Também estava com medo, porra! Ninguém sabia tão bem a extensão do poder de Cyno ali quanto ele. Ele tinha experimentado o controle mental dele como ninguém ali. Tinha provado o feitiço, o sabor do sangue, tinha provado a força, a dor e o prazer; tudo num período extremamente curto de tempo.
— Ele fez um contrato comigo, Ohna. Se nós o trairmos, aí definitivamente estaremos mortos. Quer apostar em qual possibilidade? Nós o traímos e ele nos trai em retorno ou nós mantemos nossa palavra e ele pode manter a palavra dele.
Ohna suspirou pesadamente.
— Ele enfeitiçou você ou algo do tipo? Você deve estar louco…
— Vamos! Vamos subir. Precisamos levá-lo pra cima se quisermos sair dessa tumba. — Tighnari motivou os homens que logo voltaram a subir os degraus com a divindade em seus braços.
Tighnari escolheu não responder àquela pergunta. Era um líder e seu papel na expedição era manter seus homens focados e motivados, não aterroriza-los com pessimismo e fantasias. O que tinha acontecido entre ele e a divindade devia ficar apenas entre eles dois.
Ohna, entretanto, não parecia mais tão disposto a confiar em Tighnari, ou pelo menos foi isso que o feneco percebeu em seu olhar desconfiado e afiado.
Carregar o corpo da divindade até o piso superior não foi tão difícil para os guarda-costas e Dyjav, eram só quatro degraus, no fim das contas. Colocaram o corpo do Deus no chão ao chegar lá em cima. Ele continuava inconsciente; os olhos brancos e revirados levantavam alguma preocupação no grupo. Teria dado certo? Como seguiram em frente se ele não acordasse? Havia algum tipo de maldição naquele andar que impedia que achassem o caminho de volta, aparentemente, então como fariam?
Cyno abriu os olhos e viu o olhar estranho de Ohna sobre si. Aquele homem estava realmente desconfiado, magoado de alguma forma.
— Vamos, não podemos ficar aqui o dia todo! — proferiu e notou algo errado com sua voz. Pigarreou e cerrou o cenho.
Subiu atrás de Ohna e chegou a tempo de ver os homens colocando seu corpo calmamente no chão e se entreolhando decidindo o que fazer. Piscou algumas vezes e então olhou para as próprias mãos: brancas e pequenas. Tocou o rosto em súbito desespero, subindo as mãos pelo cabelo e para as orelhas.
De alguma forma estava no corpo de Tighnari. Merda! Como aquilo tinha acontecido? Fazia parte do que esperava? Definitivamente não. Esperava que o corpo não passasse pela película, não que sua alma fosse separada dele e vinculada ao corpo mortal. Por que raios tinha sido vinculado ao corpo de Tighnari? Onde estava o pesquisador então?
— Vamos fazer uma breve pausa enquanto esperamos que Cyno retome a consciência! — informou ao grupo que logo concordou se reagrupando para beber um pouco de água e descansar um breve período.
Precisava pensar… As possibilidades envolviam:
a) A alma de Tighnari tinha sido expulsa de seu corpo para que o Deus o ocupasse — e nesse caso estaria perdida para sempre;
b) Ele tinha trocado completamente de corpo com a divindade, então estava inconsciente no chão;
c) Ele estava dormente dentro do próprio corpo, de forma que Cyno podia dominá-lo naquele momento, mas uma vez que baixasse a guarda, ele voltaria ao controle.
Em seu desespero, só podia torcer para que fosse a segunda ou a terceira opção.
Chapter 5: Vínculo
Chapter Text
Talvez fosse morrer por causa daquela manobra, mas ter se vinculado ao menor daquela forma íntima tinha lhe rendido uma outra oportunidade, pois ao aceitar que Cyno tomasse seu corpo, o feneco permitira isso de diversas formas as quais nem mesmo entendia.
Cyno sabia que tinha três possibilidades à sua frente. Se Tighnari tivesse se perdido no momento da troca, então possivelmente jamais voltaria. Era uma merda. Cyno não gostava de quebrar promessas, e tinha prometido que o tiraria dali, então precisava dar um jeito de trazer o feneco de volta. Seria mais fácil se estivesse em seu corpo, pois poderia usar feitiços ao seu favor… Espere…
Foi como se um lapso de ideia o atingisse como um raio. Talvez pudesse usar os feitiços mesmo estando fora de seu corpo. Tudo o que precisava era da sua alma e de seu sangue, e essas duas coisas ele podia obter. A alma estava dentro do corpo de Tighnari, e o sangue estava no corpo estirado à sua frente. Só precisava tentar ter algum contato com seu próprio corpo e, quem sabe, dessa forma poderia voltar a si, desde que Tighnari estivesse lá dentro ainda.
Os outros estavam todos do outro lado da sala, sentados no chão a descansar um pouco. Aproximou-se do corpo no chão, seu corpo no chão, e abaixou-se para tocá-lo. Uma sensação estranha consumiu seu ser a partir do contato de sua mão. O corpo estava quente, menos mal, ainda estava vivo, só estava inconsciente mesmo. Daria para obter o sangue. Olhou os outros para conferir que ninguém estava olhando para si naquele momento e então segurou ambas as mãos nas suas. Era uma tentativa, um encanto. Sussurrou as palavras necessárias e torceu para que o efeito fosse o que precisava ao juntar os lábios de Tighnari aos seus.
Não deu certo. Um breve desespero. Acalme-se, Cyno. Respirou fundo. Soltou as mãos para segurar o queixo do corpo à sua frente e abrir-lhe a boca, puxando a língua dele para fora. As unhas de Tighnari não seriam suficientes para machucá-lo, mas os caninos do próprio Cyno eram afiados o bastante. Passou a língua pela ponta do dente com certa força e viu o sangue vermelho brotar do corte. Ótimo. Limpou as mãos babadas na calça e voltou a segurar as mãos do corpo. Inclinou-se sobre ele e o beijou enquanto invocava o feitiço mentalmente, sentindo o sabor férreo do sangue dominar seu paladar.
Que desse certo.
Quando abriu os olhos, estava de frente para Tighnari naquele lugar vazio e escuro. Apenas dois corpos na imensidão da mente, além do tempo e do espaço.
— Onde estão todos? — Tighnari perguntou diretamente, procurando ao redor com os olhos, sentindo-se confuso e assustado com aquela imensidão escura que os cercava.
Por sorte ele estava ali! Era um alívio!
Um alívio.
Por que era um alívio? Se ele não estivesse ali era só levar o corpo dele para fora e estaria cumprindo a promessa mesmo assim… Mas aí quem apresentaria o mundo novo para si? Quem o ensinaria a usar uma câmera “focográfica”?
— Estão esperando a gente voltar. Você precisa voltar para si. — Cyno tentou ser urgente, mas sem deixar o feneco em pânico. Havia muito mais por trás daquelas palavras do que ele gostaria de demonstrar. Se Tighnari não quisesse voltar, também, seria pela vontade dele e não haveria o que fazer. Talvez fosse mais fácil fugir da realidade daquela forma, seria como estar em coma.
— Voltar a mim? Mas… como? O que está acontecendo?
Tighnari parecia assustado, era de se esperar, de repente se via num mundo estranho. Até poucos dias sequer acreditava em deuses e assombrações, e agora estava diante de um Deus, como um espírito desencarnado. Cyno se aproximou calmamente, tocando o rosto do garoto com gentileza, garantindo que este o olhasse diretamente nos olhos. Precisava ser calmo e cuidadoso, mas, principalmente, precisava convencer o feneco da importância de voltar primeiro e falar depois. O tempo naquele lugar podia enganar, era um perigo. Talvez ficassem apenas alguns minutos ali, e quando saíssem muitos anos poderiam ter se passado.
—- Eu te explico melhor quando voltarmos, mas você precisa vir comigo, ok? Feche seus olhos, sinta o seu corpo, a sua circulação, seus músculos. Inale e exale lenta e profundamente, ok? Junto comigo…
— Não pode me explicar agora?
Porra, Tighnari! Caralho de mortal curioso da porra!
— Não, não posso. Preciso que venha comigo. Eu te explico quando chegarmos em um lugar seguro. Feche os olhos comigo, sinta o seu corpo, sinta seus músculos, seus ossos e sua circulação. Respire fundo e calmamente, no mesmo ritmo que eu, ok?
Cyno guiou a respiração do feneco, orientando-o como deveria fazer; então, ao alcançar o ritmo certo, o que levou alguns instantes por conta da ansiedade que começava a tomar o feneco, voltou a conjurar a magia que achava que daria certo para levá-los para fora. Era rezar para que o corte ainda estivesse aberto e ele ainda tivesse contato com o sangue divino. Precisava tentar. Tighnari tinha que voltar para seus amigos para que Cyno pudesse cumprir sua parte do tratado.
Naquele momento, os dois poderiam estar presos para sempre no mundo imaterial.
Cyno abriu os olhos e encarou o teto da sala. Estava de volta, agora faltava Tighnari. Seus lábios ainda continuavam unidos e seus dedos entrelaçados. Ergueu o corpo com cuidado para não se separar do corpo do feneco que continuava com os olhos fechados, e ficou sentado de frente para ele até notar suas pálpebras tremerem. Então afastou-se findando o beijo que os unia pelo feitiço.
Quando Tighnari abriu seus olhos, estava sentado no chão da sala no topo da escada, de frente para Cyno, que o encarava bem de perto, preocupado, e ainda segurava ambas as suas mãos com os dedos de ambos entrelaçados.
— O que aconteceu, Cyno? Onde estávamos? — Tighnari perguntou tentando entender o que tinha acabado de acontecer. Estava confuso e perdido. O que caralhos era aquele lugar escuro? Por que era tão perigoso continuar lá a ponto do moreno insistir apressadamente para irem embora logo?
Cyno nem percebeu que sorriu quando teve a certeza de que o pesquisador estava totalmente consciente. Soltou as mãos do feneco.
— Deu certo. Você conseguiu me trazer para cima, então eu também cumprirei minha promessa e levarei vocês para fora. Conheço esse labirinto como a palma da minha mão. — Cyno se levantou e bateu a poeira de suas roupas. — Vamos?
Tighnari suspirou aceitando que suas perguntas não seriam respondidas pela divindade, pelo menos não naquele momento. Talvez ele não tivesse confiança o suficiente para ter aquela informação, talvez fosse algo que o próprio Cyno não soubesse responder. Tighnari levantou-se desajeitadamente, sentindo uma tontura esquisita, mas ignorando e indo com Cyno para perto dos outros integrantes do grupo, que faziam uma breve refeição. Aproveitou para se juntar a eles, comendo um pouco das provisões que estavam guardadas na sala próxima à escada, onde o grupo tinha se dividido anteriormente. Juntamente às provisões estava todo o equipamento que havia sido deixado para trás, o qual o grupo fez questão de recuperar antes de voltar à jornada. Havia muitos itens e informações preciosas armazenados dentro daquelas mochilas e cadernos, além dos pequenos artefatos como a chave da tabuleta/livro que ainda tentavam compreender e precisava de tradução.
Por um instante, Tighnari chegou a pensar que talvez Cyno pudesse ajudar com a tradução de tudo aquilo, já que era sua linguagem natal, mas logo se envergonhou por pensar algo do tipo. Aquela criatura era uma divindade perigosa e já tinha se provado ser um perigo. Devia querê-lo o mais longe possível o quanto antes, e não esperar que ele ajudasse com a porcaria da pesquisa.
Tighnari conferia o estado das amostras que tinha colhido e organizava suas coisas enquanto o resto do grupo já aguardava do lado de fora acompanhados por Cyno, quando Deepak entrou e abaixou-se perto dele, questionando-o num tom que os demais não pudessem ouvir.
— Eu vi você e o diabo mais cedo trocando uns contatos meio íntimos, professor… Há algo que você ache pertinente falar a respeito?
Tighnari sentiu o corpo inteiro se arrepiar e um pânico genuíno o tomou, revirando seu estômago e fazendo seu corpo travar. O que Deepak tinha visto? O quanto tinha visto? O maxilar tremeu quando tentou formular alguma resposta, era difícil até mesmo encarar o amigo de infância naquele momento. A situação parecia grave, ele sequer o havia chamado de Nari, como normalmente fazia, mas de “professor”. Dee não era o tipo de pessoa que se irritava tão facilmente, ele devia estar muito irritado para falar daquela forma. Tighnari teve medo.
Sem resposta, o segurança continuou:
— Espero que não esteja se aliando a ele para nos trair em algum momento, que não esteja nos usando como sacrifício pra sair daqui. Eu não queria pensar essas coisas de você, Tighnari, os deuses sabem que não — e aquilo soou como mais uma blasfêmia do que uma constatação sincera, mas Tighnari estava em choque suficiente para não se dar conta —, mas no desespero, não sei… A gente não sabe até onde seria capaz de ir no desespero… Você poderia nos vender em prol da sua própria segurança. Ohna disse que as paredes falam que ele bebe sangue de gente.
— Dee… — as sobrancelhas do feneco se franziram em descrença — Eu jamais… jamais trairia vocês. Eu só quero voltar pra casa, quero que todos voltem pra casa em segurança… eu…
— Não vai me convencer com lágrimas, Tighnari. Nós todos fomos ameaçados por ele, mas mesmo assim você o estava beijando. Talvez os outros acreditassem nas suas lágrimas, mas eu, sinceramente, não acredito. Você estava todo íntimo com aquela… aquela coisa! Os outros notaram que você está estranho desde que achou aquela coisa lá embaixo, mas eu não contei pra eles o que vi, pois sei que ficariam loucos. Eu só espero que reste alguma coisa do Tighnari que eu conhecia aí dentro, e que você não tenha se tornado um devoto louco por poder só porque descobriu que talvez os deuses realmente existam e possam te beneficiar de alguma forma.
Tighnari engoliu seco. Deepak soava absolutamente decepcionado com ele, e tudo bem; sabia que se estivesse do outro lado, pensaria o mesmo de si. Se não soubesse que estava sob o controle do feitiço dele naquela hora… Mas, ao mesmo tempo, se sentia tão injustiçado naquela porcaria de cenário! Estava fazendo o melhor que podia para garantir a segurança de todos, mas os outros ainda assim desconfiavam dele? Achavam, assim tão fácil, que ele os trocaria por poder? Que ignoraria o principal objetivo da expedição e a lealdade ao grupo simplesmente por causa do poder? Tinha evitado que Cyno os matasse, caralho! Sabia que a divindade não se importava nem um pouco com eles, bastava um para levá-lo para fora, os outros eram completamente dispensáveis!
Não podia mentir que o sangue dele era uma tentação, mas a sensação de ser controlado por outra pessoa era horrível! Deepak jamais entenderia! Mesmo se explicasse, provavelmente ele não entenderia e acharia que era tudo invenção para que tivesse um álibi para se atracar com uma divindade dentro de um mausoléu milenar… Piada!
Não era um fraco, não era frouxo, muito menos emocionalmente frágil, mas aquela porcaria de dia estava sendo um inferno! Nem mesmo notou quando o rosto vermelho tremelicou e os olhos encheram-se de lágrimas. O queixo tremendo de raiva quando a voz saiu entredentes, embargada pelo choro.
— Eu jamais traí vocês. Jamais trairia vocês. Não me confunda, Deepak.
— É, amigo... — Deepak congelou quando ouviu a voz fria e ameaçadora da divindade tão perto. Cyno apareceu ao lado deles como se estivesse ali o tempo todo, sua expressão séria esculpida em pedra trazia o mais puro horror ao segurança. Tighnari estava triste demais pelas acusações para sequer ligar. Se Cyno quisesse se meter, que o fizesse. Se era pra ser acusado de traição sem ter feito nada além de defender os interesses do grupo, então que eles fossem se foder também. — Por que me parece que você está tentando intimidar o “Nari”? A propósito, quem você pensa que é pra chegar assim tão perto e ficar sussurrando pro meu Tighnari? Han?
O segurança se desequilibrou e arrastou o corpo para trás rapidamente, perdendo totalmente a coragem diante dos olhos vermelhos da criatura. A boca secou, foi como se visse o inferno dentro dos olhos daquela coisa.
“Meu” Tighnari. A coisa já tinha tomado posse dele. Talvez Tighnari não tivesse noção do grau que tinha se envolvido com aquela porcaria, por hora era melhor se afastar.
— Me perdoe. — foi tudo o que disse antes de levantar-se apressadamente e seguir para junto do grupo, saindo de perto de Cyno e Tighnari sem olhar para trás.
— Humanos são fracos e inúteis. Traem uns aos outros em seus próprios pensamentos e tentam se manipular como se fossem melhores que seus iguais. Se os deuses são podres, Tighnari, é porque somos criados à imagem e semelhança das suas mentes pequenas e doentias.
Cyno disse sem dirigir o olhar ao feneco, olhando na direção para a qual o segurança foi ao sair com tanta pressa. Só depois ele dirigiu seus olhos carminos para o pesquisador, virando-se de frente para ele e ajoelhando-se no chão, limpando as lágrimas de seus olhos com os polegares.
Tighnari mordeu o lábio inferior com força, segurando a vontade de chorar, e deu um tapa na mão da divindade, afastando-o de si.
— Eles me odeiam por causa de você. Suspeitam de mim por causa de você! Acham que estou traindo-os por causa da porcaria do feitiço!
Cyno ficou incrédulo encarando o pesquisador enquanto este desabafava. Mortais realmente… eles realmente eram alguma coisa. Tighnari estava vermelho, choroso. Não tinha a coragem de se defender das acusações feitas pela porcaria do segurança que era completamente incapaz de mantê-lo seguro e, portanto, não tinha função alguma, mas tinha a ousadia de empurrar uma divindade e culpá-la pelas falhas dos humanos. Cyno riu de suas constatações. Tighnari era interessante.
— Eu prometi que não lhe faria mal, Tighnari, e eu cumprirei minhas promessas mesmo que você se esforce para me ofender. Um dia, depois que sairmos daqui, eu e você conversaremos calmamente sobre esse dia no qual nos conhecemos, e vamos entender juntos tudo o que está acontecendo. Mas aqui, agora, com você querendo descontar suas frustrações em mim, e eu com minha pouca, quase nula, paciência, vamos acabar fazendo mais coisas das quais nos arrependeremos, e eu não quero isso.
A divindade levantou-se e estendeu a mão para que o pesquisador o acompanhasse.
Muito a contragosto, Tighnari colocou a mochila nas costas e aceitou a ajuda para levantar-se. Estava amargurado pelas acusações de Deepak e frustrado pela falta de respostas da divindade. Não tinha certeza do quando o segurança tinha visto. Ele tinha visto Tighnari e Cyno num momento íntimo… mas porque comentar isso só agora? Tinha visto enquanto transavam lá no piso inferior? Cyno não tinha notado a aproximação dele naquele momento? Isso era impossível, não era? A menos que Cyno quisesse ser visto. A menos que Cyno quisesse exibir para todos o tamanho do controle que tinha, da facilidade que tinha de convencer o pesquisador a transar consigo no chão das ruínas, enchê-lo com seu rebento odioso e ainda fazê-lo andar em meio aos seus com desgosto de si mesmo por sua vontade de ir embora, simplesmente. Merda! Como caralhos tinha acabado naquela porcaria de situação!
Os pensamentos corroíam Tighnari, que tinha dificuldades para se manter focado, mas tentava distrair-se daquela autopiedade e desgosto de si ao concentrar-se no caminho, em registrar os caminhos pelos quais passavam, mesmo que até ali ainda tivessem bastante registros do momento que tinham descido. Cyno não tinha tentado mais conversar com ele até então, e Deepak mantinha certa distância, apesar de lançar-lhe alguns olhares carregados de significados desconhecidos vez ou outra.
Cyno sabia que Tighnari estava num momento extremamente delicado, conseguia ver pela feição dele, mesmo se não conseguisse ler seus pensamentos, seria óbvio. Talvez todos ali tivessem notado que algo grave estava se passando com Tighnari e ainda assim nenhum deles sequer tinha a coragem de tentar conversar com o feneco. Humanos eram mesmo ingratos… E sobre pensamentos, ele bem sabia que agora o segurança o queria morto, definitivamente. Aquele pequeno e insignificante humano lhe dirigia bastante ódio naquele momento, mas não serviria de muita coisa, pobre coitado. Nem ele, nem todos os outros seriam o suficiente. Mesmo com os planos que estavam jurando que estavam ocultos aos seus olhos, eles jamais seriam capazes de concretizar os planos de matá-lo.
Deepak era digno de pena por pensar que poderia ser páreo para Cyno, que poderia rivalizar com ele. Um mortal jamais seria capaz de competir com uma divindade, mesmo que fosse uma divindade enfraquecida por uma maldição. A única oportunidade que qualquer um deles tivera de conseguir matá-lo, era enquanto estivera no corpo de Tighnari, mas eles sequer se deram conta que havia algo errado acontecendo ali. Inúteis.
Tighnari estava em pânico internamente. Se Deepak contasse para os outros sobre seu envolvimento íntimo com Cyno lá embaixo, nenhum deles o respeitaria mais. Todo o progresso seria desacreditado e talvez até o vinculassem a qualquer merda que a divindade teria feito ou faria. Sua pesquisa, sua carreira… O quanto todas aquelas pessoas já não sabiam sobre ele? Sobre o quanto ele estava profanando uma ruína sagrada, um templo vivo da história de um povo há muito perdido? O túmulo de uma civilização, puta merda! Queria uma porra dum banho longo, um prato de sopa quente e esquecer de tudo aquilo. Toda aquela loucura.
O caminho todo pareceu uma tortura. O grupo conversava entre si, mas Tighnari estava tão alheio a tudo que mal interagia com os outros.
Cyno evitou interferir. Não sabia ao certo porque Tighnari se importava tanto com o que aquela gente inferior pensava. Não fazia sentido que ele, sendo escolhido por um deus, se sentisse envergonhado de suas ações quando claramente ele tinha se sentido tão bem — inclusive pensado sobre isso com frequência depois do ato. Cyno facilmente mataria todos eles antes que pudessem prejudicar seu precioso Tighnari… Seu precioso Tighnari… Ele era seu seguidor, quisesse ou não. Tinha vinculado sua alma a ele, prova disso quando trocaram de corpos; agora não havia outro meio de tratar aquele relacionamento. Tighnari era seu.
O professor só conseguiu se acalmar um pouquinho quando finalmente, depois de muita caminhada sem mais pausas, alcançaram a saída do templo, a cidade.
A visão da cidade circular fracamente iluminada pelos cristais trouxe um sorriso aliviado ao rosto do feneco. Aquele pesadelo teria um fim, e então apenas as lembranças, como um pesadelo, assombrariam sua vida.
Chapter 6: Solidão
Summary:
A equipe de exploração segue de volta para o acampamento. Cyno e Tighnari discutem antes de dormir.
Notes:
Oi, pessoal, então... eu sei que essa fic estava há praticamente 2 anos sem atualizar. Vou explicar um pouquinho do que aconteceu nesse tempo e por que estou demorando tanto pra atualizar as fics de Genshin (e também não estou postando novas no fandom).
Eu comecei a escrever para Genshin no ano de 2021 no Spirit Fanfiction, naquela época o jogo se tornou uma hiperfixação muito importante pra mim e eu fiz muitos amigos no meio do fandom; em meio a isso tinha algumas pessoas que eu considerava muito especiais pra mim. Desde cedo eu pude perceber que essas pessoas eram tóxicas para os outros, mas como não eram pra mim, eu resolvi manter nossa amizade por muito tempo, mas eu não era tão excessão quanto achava que era, e as coisas mudaram muito em 2023. Entre muitas idas e vindas e brigas com o fandom, fui murchando e perdendo a vontade de jogar e de escrever pra Genshin, mas isso se intensificou muito no ano passado, quando resolvi terminar de uma vez por todas essas relações que me faziam mal.
Por fim, consegui me afastar desse meio que me fazia tão mal, mas as feridas ficaram. Escrever pra esse fandom que em um momento eu amei tanto se tornou algo pesado pra mim. Por mais que eu tenha um carinho enorme pelas fics que escrevi, pelos plots que ainda não terminei também, demoro muito pra conseguir escrever um parágrafo que seja pra esse fandom. Cheguei a pensar em reescrever as fics pra outros fandoms e apagar as originais, mas não o fiz por que sei que vocês amam esses trabalhos e esperam por eles mesmo depois de todo esse tempo.
Eu agradeço imensamente o apoio de todos vocês, estou lutando pra conseguir voltar a escrever essas fics, e quero deixar claro que não esqueci delas e não abandonei vocês. Essa aqui mesmo, é uma fic que já tenho o planejamento capitular dela completo pronto, mas não consigo escrever por conta dos problemas descritos acima. Eu vou atualizá-la, mas não vou mentir, vai demorar. Conforme eu melhorar, talvez as atualizações se tornem mais frequentes.
Mistério da Areia deve ter no total 17 capítulos. Provavelmente, os próximos, assim como esse aqui, sejam um pouco mais curtos, mas eles virão.
Mais uma vez, obrigado a todos que ainda aguardam atualizações dessa fic. Eu amo vocês. Obrigado pelo apoio.
Chapter Text
— Professor Tighnari, o que faremos em relação ao senhor Cyno?
A pergunta em forma de sussurro fora feita pelo médico Arjun. Não havia malícia naquelas palavras, embora todos os outros se perguntassem a mesma coisa, mas em outro sentido. Arjun estava preocupado em como explicariam a entrada de seis pessoas nas ruínas, mas a saída de sete. Falariam a verdade e correriam o risco de se passar por loucos? Conseguiriam convencer todos a concordar com uma história combinada para evitar perguntas demais? Principalmente, conseguiriam convencer o próprio Cyno a não revelar o disfarce?
Era a última pausa deles antes da saída, enquanto Cyno mexia no mecanismo do elevador, que parecia ter emperrado após a descida da equipe. Tighnari sabia que precisaria conversar com Cyno a respeito daquilo, como explicariam a existência dele para as outras pessoas. O problema era que Tighnari não queria falar com a divindade, mas sabia que ele não aceitaria a sugestão do disfarce se viesse de qualquer outra pessoa do grupo. Não havia escapatória naquele momento. Cedo ou tarde teria que encará-lo. Havia muito que ser conversado com ele sobre o que seria feito dali em diante, infelizmente, e como líder da expedição, era sua responsabilidade.
— Eu vou conversar com ele, não adianta escolhermos por ele. Ele precisa cooperar com a ideia, seja qual for. — Tighnari suspirou se levantando do chão onde estava sentado e sacudindo a poeira da roupa. — Obrigado por se preocupar, Arjun.
O médico franziu o cenho, preocupado com Tighnari. Ele não parecia bem há algum tempo. Certo, todo mundo estava bem estranho, e com razão. Os acontecimentos bizarros desde que chegaram à cidade ultrapassaram tudo o que eles esperavam viver nas ruínas antigas. Não que trabalhar com exploradores e arqueólogos fosse bem comum, mas esperava bem menos do que acabar resgatando uma divindade aterrorizante nas profundezas das ruínas. Esperava machucados, cortes, fungos, não maldições.
— Fique bem, professor. — desejou mais para si mesmo do que para que o feneco ouvisse, e observou enquanto ele se afastava em direção ao maquinário do elevador onde a divindade estava.
Era fácil ler Tighnari; suas orelhas e seu rabo não mentiam. Cyno o deixava hesitante, assustado. Era fácil compreender o porquê, considerando que até poucos dias atrás estavam confortáveis num mundo onde deuses não passavam de mitos antigos, e agora carregavam uma criatura cuja força superava a de qualquer humano sem sequer se esforçar; e, para piorar, a criatura estava na cola do feneco constantemente.
Quando Tighnari se aproximou, Cyno parou imediatamente o que fazia e virou-se para ele com um leve sorriso em seu rosto, como se ficasse satisfeito por Tighnari ir até ele por vontade própria. Cruzou os braços e inclinou a cabeça. Arjun não conseguia ouví-los, e logo Tighnari tapava sua visão e não seria capaz de deduzir o que falavam. Suspirou preocupado com o futuro do grupo que só estava ansioso em escapar daquele inferno, sem querer pensar no que aconteceria com suas vidas depois daquilo.
— Cyno, senhor Cyno… — Tighnari sacudiu a cabeça se corrigindo. Não eram íntimos, não devia ficar chamando-o o tempo todo sem honoríficos, ou ele poderia acabar irritado mais uma vez. — Arjun disse algo que tenho que concordar… Não podemos simplesmente esperar que o mundo lá em cima compreenda a grandiosidade da sua existência logo de cara, e eu apreciaria muito se o senhor não… se o senhor não agredisse ninguém lá em cima para comprovar seu poder.
Cyno compreendia a hesitação de Tighnari. Conseguia ver em sua mente o turbilhão de inseguranças e de medos. Não sabia com toda certeza o que eram as coisas nas quais ele pensava, como eram os objetos, mas pelo teor dos pensamentos, sabia que ele temia armas de destruição em massa. Talvez coisas metálicas destruidoras de vilas? Não tinha como ter certeza sem referências, mas tinha que ter precaução. Não disse nada até ter certeza que Tighnari terminara de falar, e fez o certo, pois logo o feneco voltou a se pronunciar, completando seu pensamento anterior e clareando suas ideias.
— É que… seria melhor se o senhor fingisse ser humano até chegarmos a Sumeru, onde deixarei o senhor aos cuidados da Academia. Dizem os documentos mais antigos que eles antes cuidavam da arconte dendro, então acredito que eles podem ter os meios adequados de… reverenciá-lo.
Era difícil para o acadêmico pensar nas palavras que não feririam o orgulho do deus. Cyno se sentia estranhamente desconfortável, entretanto, em notar a forma como o feneco se dirigia a ele de repente.
…Como se todo o progresso da aproximação deles repentinamente tivesse ido para a puta que pariu.
Nem mesmo sabia direito o que aquela expressão significava para eles. Era um xingamento que queria dizer algum lugar bem longe, mas qual era o sentido de ligar isso às meretrizes e seus filhos? Focou sua atenção no feneco novamente.
— Você acha que os humanos não estão preparados para encarar a existência de deuses sem que seus líderes assumam de fato que nós existimos? Tudo bem. — Cyno suspirou e afirmou com a cabeça. — Eu vou seguir seu plano porque sei que você não tem más intenções, Nari. Já disse que quero que você seja a pessoa que vai me orientar nesse novo mundo e me apresentar o que há de diferente entre esse e o mundo no qual eu vivi, e mantenho meu pensamento mesmo que seu desejo oscile. Cumprirei minha palavra e te recompensarei grandiosamente pela sua ajuda, mesmo que você tenha dificuldades em acreditar em mim agora.
Tighnari suspirou e desviou o olhar.
— Me desculpe. Acho que isso tudo tá acontecendo muito rápido e eu não estou conseguindo digerir. Eu não desacredito da sua palavra, senhor Cyno, mas não preciso de nenhuma recompensa grandiosa. Só quero voltar à minha vida normal, se possível, o quanto antes. Eu não sei ser religioso, tenho sido ateu a vida inteira e de repente tudo isso acontece. Estou admirado que não tenha arrancado minha cabeça ainda depois de todas as coisas ruins que pensei de você durante todo o caminho até aqui. Obrigado pela misericórdia, eu acho.
Não achava. Não era grato coisa nenhuma. Cyno sabia, e Tighnari sabia que Cyno sabia. Tighnari não sabia como tinha coragem de mentir daquele jeito na frente de uma divindade que lia sua mente, mas apenas o fazia porque sentia que devia.
— Certo. Eu não vou arrancar sua cabeça. Gosto da sua cabeça grudada no seu pescoço. Preciso de você, Tighnari, e você precisa de mim, embora não tenha aceitado ainda. Mas eu vou relevar que você não sabe como adorar um deus se você relevar que eu não sei como lidar com a sociedade de agora. Podemos ensinar um ao outro.
Tighnari quis gritar. Não era possível. Pensou que estava tendo uma conversa civilizada, mas claramente estava errado. Aquela criatura à sua frente realmente não sabia se colocar no mesmo nível que os humanos para ter uma conversa de iguais. Como ele podia ser tão irritante?
— Obrigado. Vamos trabalhar juntos. — Tighnari curvou-se educadamente. — Pode usar o mesmo nome, não há necessidade de mudarmos isso, mas vou dizer que você é um pesquisador que ficou preso acidentalmente aqui dentro e que te encontramos durante a exploração, assim evitamos perguntas desnecessárias de curiosos não vinculados à expedição. Evite conversar com as pessoas lá fora, se possível.
— Hum. Podemos fazer dessa forma. Eu não faço questão de falar com mortais além de você. Você é meu sumo-sacerdote, por isso tem esse privilégio diferenciado. Eu gosto da sua companhia.
“Queria poder dizer o mesmo” — um pensamento intrusivo, esses podiam ser um grande problema. Tighnari suspirou e afirmou com a cabeça.
— Sou grato que pense dessa forma. — ele disse.
— Não, você não é. — Cyno respondeu, mas não parecia irritado; deu um meio sorriso para o feneco e o viu se curvar em nova mesura e se afastar em passos cautelosos.
Havia uma sensação amarga e estranha, desconhecida, ao ver o feneco daquele jeito. Ele estava se comportando como devia, até onde podia, diante do deus, mas Cyno não estava satisfeito com aquilo. Era desconfortável, havia algo de culpa no peito do imortal quando via as orelhas baixas, o rabo desconfortável a tentar ocultar-se nas pernas. Tighnari estava ferido por causa dele. Ao tentar demarcar seu espaço e deixar claras as relações de poder entre eles, tinha quebrado o homem.
Não seria um problema quebrar um humano; humanos eram frágeis mesmo, facilmente destruídos pelo poder de alguém como ele, mas Tighnari… Havia algo de especial nele, Cyno queria ele, mas não apenas do jeito fácil. Aquilo tudo cheirava a encrenca, mas a divindade estava obstinada a descobrir o que havia de diferente naquele rapaz.
Cyno levou algum tempo, mas logo o mecanismo do elevador pareceu voltar a funcionar, e o grupo pôde ver a plataforma descendo para levá-los de volta à superfície. Um misto de felicidade por deixar aquele lugar e ansiedade por estar levando Cyno para o mundo exterior corroía Tighnari por dentro, parecendo revirar seu estômago, deixando-o enjoado, mas o pesquisador ignorou a sensação, chamando o grupo para ir até a plataforma que encostava no chão. As sete pessoas subiram na plataforma iluminada com desenhos estranhos, que se ativou e elevou lentamente até que estivéssemos cercados pelas paredes esculpidas; uma subida exageradamente lenta ou exageradamente longa, seria difícil dizer ao certo.
Silêncio era o que tomava o lugar, ninguém ousava dizer uma palavra, assustados demais pela ideia de estarem num lugar pequeno com aquele homem de cabelos brancos, o deus da discórdia. Medo. Cyno podia sentir no ar o cheiro do medo que aquelas pessoas tinham de si, e sabia que não estavam erradas em temê-lo, ele tinha dado motivos o bastante para isso; medo era respeito. Se o temiam, o respeitariam, mas seus olhos foram ao feneco imediatamente ao pensar nisso, e seu corpo parecia dizer o contrário pelo sabor amargo que ainda tomava sua boca. Gostava mais quando ele parecia mais espontâneo, talvez.
Quando a plataforma parou, finalmente, estavam naquela sala circular aberta para um pequeno corredor. Arjun liderou o caminho para a saída, sendo seguido pelos outros, Tighnari ao fundo com Cyno na retaguarda. Passaram pelo templo, a divindade perdeu algum tempo admirando a paisagem, aumentando sua distância com o grupo antes de voltar a segui-los. Não importava mais o quão lindo e rico era aquele lugar, o grupo só queria sair dali, voltar para suas casas. Tighnari sentia o peso daquela expedição sobre seus ombros, estava exausto, só queria uma boa noite de sono depois de tudo.
O grupo foi recebido pelo resto da equipe de exploração com comemorações extensas, comida e bebida, mas, por mais curiosos que estivessem aqueles que ficaram do lado de fora, era nítido o cansaço dos envolvidos, que foram guiados para barracas onde pudessem descansar; exceto por Tighnari, para a insatisfação da divindade que agora fazia parte daquele grupo. Tighnari demorou passando um relatório detalhado para a equipe auxiliar, provavelmente explicando quem era Cyno de acordo com a história que tinham inventado lá embaixo. O deus esperou na barraca, inquieto, devorado pelas sensações confusas que vinha experimentando desde que tinha cruzado com a criatura de orelhas felpudas que não deixava em paz seus pensamentos.
Tighnari entrou na barraca o que parecia ter sido uma eternidade depois, organizando seus pertences num canto antes de deitar-se em silêncio no colchonete, esperando evitar trocar palavras com o deus, a quem julgou estar dormindo quando o viu deitado, imóvel, mas sua paz não durou muito.
— Nari… — o deus sussurrou. — Você me odeia? — a pergunta pareceu genuína, mas Tighnari sabia que ele podia ler seus pensamentos, então por que simplesmente não o fazia?
— Por que não lê meus pensamentos e descobre? — o feneco respondeu seco, virando-se para o outro lado e fechando os olhos.
Sentiu Cyno se revirar do lado, provavelmente sentando-se ao seu lado e o encarando. O silêncio durou pouco.
— Você não gosta quando eu leio sua mente, se sente invadido. Estou tentando melhorar a convivência entre nós, mas você está dificultando as coisas. — ele respondeu baixo.
Tighnari não respondeu, apenas suspirou. Queria que o deus entendesse que não estava a fim de conversa, só queria descansar e fingir que aquilo tudo era loucura, que no dia seguinte tudo ficaria bem.
— Nari… Eu não quero ser mal pra você.
— Você já é, Cyno. É mal pra todo mundo. Quase matou minha equipe, nos agrediu verbalmente uma porção de vezes, abusou sexualmente de mim. Escuta, eu não sei o que você quer agora nessa “skin” boazinha, mas eu realmente tô cansado, só quero dormir um pouco.
— Não sei o que significa isso de “skin boazinha”, Nari, mas eu realmente… — o deus pareceu procurar palavras por um instante, organizando seus pensamentos, esticando uma mão para acariciar levemente o braço do feneco à sua frente. — Realmente não queria que você me odiasse. Eu queria que você me respeitasse e gostasse de mim. Eu não devia ter feito as coisas que fiz com você, eu sei que não devia… Eu sabia mesmo naquela hora…
“Você só deseja essas coisas porque está enfeitiçado. Quando o efeito passar você vai voltar a me odiar e me temerá ainda mais do que antes. Vai querer estar tão longe quanto possível.”
— Eu sabia que você me odiaria…
— Então por que fez mesmo assim? — Tighnari se encolheu, fugindo do toque da mão da divindade. — Você sabia que eu odiaria, que eu sentiria medo, mas você fez mesmo assim. Sabia que eu estava enfeitiçado e não falava por mim mesmo, mas você fez mesmo assim.
“Por quê, afinal?”
Cyno sentiu o coração se apertar no peito, levando a mão até lá e engolindo seco enquanto via o pesquisador encolhido sobre si mesmo à sua frente, assustado, ferido. Ele tinha feito aquilo. Por que aquela visão era tão revoltante dentro de si? Tantas vezes tinha feito mortais chorarem e nunca significava mais do que poeira, mas Tighnari… Porque a dor de Tighnari lhe incomodava tanto?
— Você disse que queria aquilo… eu também queria. Mesmo agora, eu ainda quero. Quando olho pra você, quero que seja meu, Tighnari, de corpo e alma, não consigo evitar. Eu não quero usar os meios errados para isso, mas não queria que demorasse.
— Vai dormir, Cyno. — Tighnari desistiu de tentar fazer aquele homem entender qualquer coisa, estava exausto, destruído, cansado. Seu corpo carregava marcas daquela expedição, e seu espírito ainda mais. O mínimo que ele precisava era de uma boa noite de sono.
Cyno não conseguia entender o que estava errado ainda. Ele estava sendo gentil, estava falando calmamente, estava sendo cuidadoso com o feneco, mas ainda assim ele o rejeitava. A frustração se misturava com os outros sentimentos ruins, intensificando-os, tornando mais difícil lidar consigo mesmo, controlar-se. Os lábios tremiam de irritação enquanto ele tentava articular alguma coisa decente pra dizer.
— Eu estou tentando ser bom pra você…
— Não precisa. Você não é bom, Cyno. Nós vamos fazer o que prometemos; eu já te trouxe pro mundo exterior, você já me devolveu minha equipe. Vamos voltar pra Sumeru, vou te deixar aos cuidados da Academia, e é isso. Se puder respeitar apenas isso, eu não quero te ver nunca mais depois que isso acabar. Boa noite, não precisa responder.
O sabor amargo da derrota e da solidão interna era tudo o que restaria para a divindade naquela noite.
Chapter 7: Areias
Summary:
No meio do deserto, a caminho de Sumeru, Cyno e Tighnari tentam resolver os problemas na relação entre eles.
Chapter Text
O deserto era igualmente belo e assustador. As paisagens cobertas de areia dourada iludiam a mente, confundiam o corpo. Os ventos tornavam a paisagem ainda mais perigosa e nenhum homem, nem mesmo o mais experiente, deveria ousar encarar uma tempestade de areia. A previsão meteorológica dava sinais de que o caminho de volta à civilização seria perigoso, então eles tinham o tempo cronometrado até chegar no oásis onde deveriam esperar por algumas horas antes de poder prosseguir em segurança. O oásis seria a principal parada antes do retorno à vila Aaru.
Sobre as montarias resistentes ao calor e à secura do deserto, o grupo seguiu em fila pelos caminhos traçados pelos experientes moradores da região; guias confiáveis pagos pela Academia com os fundos da pesquisa. O sol ardia nas costas da equipe, mas pior do que aquele calor era o olhar profundo e incômodo que parecia atravessar o peito de Tighnari constantemente. Ele não precisava virar para saber que a divindade o observava de perto, que estudava seu comportamento como quem deseja retratar cada movimento, cada expressão, em um estudo detalhado de seu cotidiano. Tighnari sentia que, para ele, era uma criatura estranha e curiosa, um mortal esquisito, diferente dos demais; um objeto de curiosidade ímpar, o qual ele jogaria fora quando desvendasse, assim como tudo mais que o rodeava.
Pensar demais era perigoso. Cyno certamente rondava aquele campo de sua mente, lendo cada ideia, cada impressão, cada opinião não requisitada. A verdade estava ao alcance da vontade, e talvez essa fosse a parte mais aterrorizante, mas, de alguma forma, o deus não parecia assim tão interessado em punir aqueles pensamentos desviados. Mesmo quando o feneco pensava que queria nunca tê-lo conhecido, o deus não demonstrava alguma reação…
… Exceto tentar se aproximar.
Cyno constantemente adiantava sua montaria para alcançar o pesquisador, querendo estar ao lado dele, distante do resto do grupo.
Para a felicidade de Tighnari, entretanto, Deepak notou o desconforto do pesquisador e se aproximou da dupla, pareando sua montaria ao lado do líder do grupo, puxando assuntos sobre outras pesquisas do botânico, engajando em uma conversa mais descontraída, mas que deixava a divindade para escanteio, delimitando a conversa aos âmbitos de conhecimento dos pesquisadores, às plantas e fungos que conseguiram catalogar durante a expedição, apesar dos percalços. Tighnari tentou não demonstrar, mas sentiu-se um pouco mais leve com aquela conversa, embora a tristeza de ter perdido seu diário durante a expedição ainda existisse dentro dele. Anotações importantes perdidas para sempre dentro de uma ruína à qual ele não tinha nenhuma intenção de voltar.
O sol descia no horizonte quando o grupo alcançou o oásis que seria seu ponto de reabastecimento e descanso. As noites no deserto eram bastante frias, então trataram de montar o acampamento e preparar a fogueira para se aquecerem. O grupo organizou-se em revezamento de vigia e preparo da refeição. Tighnari tratou de se ocupar como se desejasse fugir de uma conversa com a divindade, estando constantemente ocupado demais para sequer trocar olhares.
O grupo desfrutou da refeição em conjunto, e então Tighnari, querendo manter-se ocupado demais para qualquer contato com Cyno, assumiu a responsabilidade de lavar os utensílios usados na beira do lago. O restante do grupo dividiu-se entre os que descansariam e os que vigiariam na primeira metade da noite, o primeiro grupo se alocando nas barracas para descansar, o segundo se ajeitando ao redor da fogueira.
Tighnari lavou os utensílios sem pressa, perdido em seus próprios pensamentos e suspiros. As costas para o acampamento ocultavam o rosto abatido e cansado, mantendo em segredo o pesar que residia dentro de seu peito. Ele usou panos limpos para secar os utensílios, organizando-os na bolsa em que seriam levados pelo resto da viagem, e então o silêncio foi quebrado pela voz que ele menos queria ouvir.
— Eu sei que está me evitando, mas precisamos conversar e resolver isso, Nari. Odeio esse clima entre nós. Como posso viver normalmente sendo odiado pelo meu sumo-sacerdote?
— Simples: eu não sou e não serei seu sumo-sacerdote. — Tighnari suspirou, erguendo a contragosto os olhos verdes para encarar os orbes vermelhos da divindade. — Eu entendo que isso seria uma honra para a maior parte das pessoas, senhor Cyno, mas não tenho nenhuma intenção de me tornar um representante da vontade de nenhuma divindade. Eu sou apenas um pesquisador, e isso é tudo o que eu quero ser. Sendo assim, nós não precisamos resolver nada, porque não haverá nada mais entre nós assim que chegarmos a Sumeru.
Cyno franziu o cenho e cerrou os lábios em uma expressão de descontentamento, respirou fundo e relaxou os ombros.
— Nari…
— Eu sei que você odeia me ouvir negar suas generosas ofertas, senhor Cyno — a voz do feneco era carregada daquele sarcasmo —, mas eu não sei como ser mais claro do que isso. — o pesquisador olhou ao redor, tendo a certeza de que eles não seriam ouvidos por ninguém, e então continuou, voltando a olhar a divindade nos olhos. — Você tirou muito do que era importante pra mim, mas principalmente minha dignidade. Não vai conseguir me convencer de que é um bom moço agora, não importa o quanto finja ser.
— Não estou tentando fingir nada, Tighnari, estou tentando consertar as coisas que eu mesmo estraguei. Eu sei que eu errei com você, errei de forma brutal. Eu fui uma criatura estúpida e cruel com você e com os seus amigos e eu não deveria ter agido como agi. Se eu pudesse voltar no tempo com o que eu sei agora sobre vocês, teria uma abordagem completamente diferente. Jamais teria magoado você. Infelizmente, não tenho esse nível de poder, e só posso lidar com meus erros da forma que estou tentando fazer agora: mudando, me explicando. Eu quero ser bom pra você, Nari. — a voz dele exprimia um sentimento de dor e arrependimento, de fato, mas como poderia o feneco acreditar naquelas palavras depois de tudo? Deuses realmente podiam compreender os sentimentos mortais?
— O que há pra ser explicado, Cyno? Você me estuprou! Não há nada para ser explicado nisso. Nada que você possa mudar vai alterar esse fato. Nada do que você pode dizer vai mudar o fato de que você fez a pior violência que alguém pode fazer a outra pessoa comigo!
As palavras pareceram sumir da boca da divindade, embora ele as procurasse. Ele gesticulava, mas elas não vinham, apenas a frustração restava. Tighnari parecia mergulhado em sofrimento, mas Cyno certamente também estava. Aquela situação não estava boa para nenhum dos dois.
— Escuta, eu não queria abusar de você. Você é importante pra mim, Nari. Eu ainda não sei direito o porquê me sinto assim, mas faria qualquer coisa pra me redimir com você.
— Ontem mesmo você disse que queria fazer o que fez comigo.
— E eu queria! Mas não do jeito que foi… Eu pensei que você também queria!
— Você sabia que eu estava enfeitiçado, Cyno!
— Mas nunca desejei que meu feitiço tivesse aquele tipo de efeito sobre você! Aquilo nunca aconteceu antes, Tighnari! Sempre foi sobre usar o feitiço para converter um mortal em um servo leal, um sacerdote fiel, mas nunca, nunca, sobre nada sexual. Eu nunca pedi para que você tentasse me seduzir. Eu sei que meu feitiço confunde as emoções do alvo, mas ele não cria desejo, até onde eu sei. Não consigo deixar de pensar que talvez em algum lugar obscuro dentro de você, você também me queria, pelo menos até aquele momento.
Tighnari sentiu aquele amargo na boca novamente, a irritação fervente subindo pelo sangue; controlou-se para não levantar o tom de voz.
— Você é insano!
— E você mente! — Cyno respondeu, bufando. — Eu não consigo entender, Nari! Você age como se o que eu digo fosse um ultraje, mas esquece que eu consigo sentir o que você pensa, e eu sei que você pensa em muita coisa que detesta pensar, e que não é só medo o que você sente por mim. Isso não diminui a importância da sua repulsa nem o direito que você tem de me detestar, mas não seja hipócrita. Você queria saber como era, dentro de você, estava curioso para me ter também, e ainda pensa constantemente sobre isso e se questiona se o que você sentiu naquela hora era genuíno ou não.
— Eu odeio você, Cyno, e esse é o único sentimento o qual dedico a você. — as palavras saíram afiadas da boca do feneco, e ele chutou areia na direção da divindade, virando-se e saindo em direção ao acampamento.
Cyno se irritou, esticando a mão para alcançar o pulso do feneco e puxando-o para si. Colocou-o contra uma grande pedra que estava perto deles, e sem pensar duas vezes juntou os lábios de ambos em um beijo intenso, carregado do desejo que vinha guardando por ele.
Tighnari não saberia explicar sua reação.
Ao ser puxado, pensou em empurrar a divindade, pensou em cuspir nele, mas fez o completo oposto.
A pedra em suas costas, o corpo quente da divindade à sua frente: agarrou-se a ele, correspondendo àquele beijo intenso como se sua vida dependesse daquilo. Ignorando a sanidade que implorava para que ele voltasse à sua razão e fugisse para o acampamento, enquanto cedia ao desejo puro e simples de experimentar aquele sabor outra vez; o sabor da boca de Cyno.
— Você odeia o fato de que não me odeia tanto quanto queria, Nari, mas tudo bem. Nós vamos dar um jeito de consertar as coisas. — O deus disse, mas não obteve nenhuma resposta.
♦♦♦♦♦
Dentro da barraca, antes de seguir viagem na manhã seguinte, Cyno quebrou o silêncio que reinou entre os dois desde beijo perto do lago na noite anterior.
— Quando chegarmos a Sumeru, ainda vou precisar da sua ajuda durante algum tempo. Eu sei que você não quer ser meu sumo-sacerdote, já entendi isso, mas eu não sei nada sobre o mundo de hoje, preciso da sua ajuda pra compreender a situação. Eu pretendo ir embora assim que entender o básico, vou viajar o mundo, entender a sociedade, e então quando eu estiver mais maduro nesse sentido, vou voltar e tentar conversar com você novamente. Nesse tempo, espero que você consiga me perdoar.
Tighnari ergueu os olhos incrédulo, observando enquanto a divindade tentava dobrar os cobertores da melhor forma que podia.
Soltar aquilo no mundo era um perigo e tanto, mas, sendo objetivo, o que ele poderia fazer para prevenir que Cyno fizesse o que bem queria? Na prática, precisava lembrar-se constantemente, aquilo era uma divindade extremamente poderosa e perigosa. Se ele quisesse algo, ele teria. Ninguém poderia ir contra a vontade dele, sob risco de ter que lidar com a destruição que ele era capaz de trazer em seu nome.
— Você permitiria que eu ficasse alguns dias na sua casa até que eu possa encarar o mundo por minha conta e risco? Não quero que meu comportamento inconsequente seja motivo para você se preocupar enquanto eu estiver distante.
— Como se eu fosse me preocupar com você. — Tighnari resmungou sem pensar muito.
Cyno riu baixo e negou com a cabeça.
— Estou falando sobre o resto do mundo.
— Certo, então talvez esteja certo. Eu me preocupo com o resto do mundo. — o feneco suspirou. — Você tem que prometer que não vai sair por aí matando pessoas e cometendo crimes feito um maluco. Se realmente você está querendo mudar, pode começar por aí.
— Já estou começando.
Cyno suspirou ao concordar, então ergueu sua mão no ar e materializou um pequeno objeto retangular ao alcance de sua mão; objeto este que ganhou forma e cores conhecidas diante do olhar estupefato do pesquisador.
— Meu diário!
— Acho que isso te pertence. — Cyno estendeu o caderno na direção do pesquisador, que logo o pegou em seus braços.
Tighnari sorriu de leve, um tanto sem jeito, mas então se corrigiu, voltando a fechar a expressão e suspirar, desviando o olhar para o lado.
— Obrigado. Fiz anotações importantes sobre a pesquisa aqui e achei que tinha perdido para sempre.
— Por nada. Espero que, mesmo sem ser meu sumo-sacerdote, você possa me ajudar e me ensinar um pouco sobre esse mundo como um amigo. Gosto muito mais de você do que dos outros mortais, então se puder não me odiar completamente…
— Pare de chamar as pessoas de “mortais”, porque você parece um babaca toda vez que faz isso. — Tighnari suspirou. Algumas coisas levavam tempo.
Cyno riu baixo e confirmou com a cabeça.
— Vou tentar.

Feitanilyd on Chapter 1 Fri 02 Feb 2024 05:55PM UTC
Comment Actions
Baneista on Chapter 1 Sat 03 Feb 2024 12:18PM UTC
Comment Actions