Chapter 1: Efêmero
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A vida era simplesmente um sopro, era isso que Cellbit gostava de pensar.
O sopro formava um vento, que formava uma ventania e por fim um tornado que o levava a lugares inusitados em sua vida. Batalhas de uma guerra nunca pretendida lutar, uma prisão que nunca quis estar e uma ilha que nunca pensou existir, eram decisões tomadas pelo impulso de nunca morrer.
Nunca morrer. Cellbit pensava que isso era algo bom quando era mais novo. Nunca morrer. Cellbit pensava que, na verdade, isso era alguma benção do Outro Lado. Nunca morrer. Cellbit pensava que isso lhe permitiria viver a vida feliz que sonhava quando estava na guerra.
Nunca morrer. Cellbit agora pensava que não existia uma pior maldição do que essa para lhe assolar.
Ali, sentado em uma das colinas recheadas dos amarantos mais bonitos que tinha visto em sua vida, ele observava quieto sua família brincando. Roier passava a mão de um jeito um pouco agressivo mas carinhoso nos cabelos de Richarlyson enquanto eles brincavam. Pepito, ao lado deles, gargalhava da cena ao ponto de lágrimas saírem de seus olhos. Aquela era uma cena recorrente na mais nova vida doméstica de Cellbit.
A vida doméstica era algo que ele nunca tinha pensado, uma tranquilidade que nunca havia sido permitido a ter e, se teve, nunca havia sido permitido lembrar. Um acordar ao raiar do sol abraçando seu marido; uma colheita de café matinal com seus filhos; um almoço farto no castelo construído pelo seu sogro e uma visita constante dos amigos nas tardes calmas de uma ilha conturbada.
Imortalidade agora era um pensamento constante. Perder tudo era algo que nunca tinha passado pela sua cabeça antes de Bobby já que ele nunca tinha tido entes importantes para se preocupar em primeiro lugar.
Mas se ser imortal era uma novidade repentina, suas consequências ainda eram uma inesperada notícia amarga. Olhar para sua família era uma constante lembrança do quão efêmera uma vida poderia ser, mas isso não fazia Cellbit gostar menos de todos os momentos felizes e casuais em dias calmos.
E se amar era uma grande efemeridade, Cellbit não parecia se importar em passar esse piscar de olhos ao lado de Roier.
— Gatinho! A comida vai esfriar se você não vier logo! — Seu marido grita abaixo, acenando como se estivesse chamando há algum tempo.
Seus filhos estão quietos como só o milagre da refeição poderia fazer, seu estômago roncando com o tempo sem comer fez o favor de lhe ajudar a descer a colina mais rápido para comer os pães de queijo guardados religiosamente nos potes de barro.
— Pai, conta uma das suas histórias da guerra ‘pra gente! — Richarlyson brada de boca cheia, pedindo desculpas um pouco depois ao receber um olhar de Cellbit.
— Cuentos, ¿eh? (Histórias, é?) — Roier dá um olhar duvidoso e brincalhão enquanto Cellbit passa a mão pelos cabelos castanhos e brancos e limpa a garganta com uma tosse fraca.
— Tudo bem, tudo bem! Mas se o Pepito não conseguir dormir de noite de novo, ele irá dormir na sua cama, Richas — Ele respondeu em tom brincalhão com um fundo de verdade enquanto ouvia um protesto fraco de Pepito.
Cellbit levantou misterioso enquanto buscava algo em seus bolsos. Roier, Pepito e Richarlyson se reúnem enquanto o pôr do sol desce em suas costas e lanternas são acesas no chão.
— Há muito tempo, existia um rei muito poderoso que vagava pela terra. Na grande guerra, seus exércitos invadiram os vilarejos e saquearam toda e qualquer coisa que você poderia imaginar, mataram quem e quantos queriam e só paravam quando estavam completamente satisfeitos. Um dia, um belo, jovem, incrível e esperto-
— Vale Pa Cellbit, Pepito ya entiende que eres increíble... (Ai, pai Cellbit, Pepito já entendeu que você é incrível...)
— Ê? Acho que você ‘tá andando muito com o Richas, ein? Mas não sou eu! — Cellbit riu acompanhado de Roier enquanto dava um pequeno esfregão no cabelo de Pepito — Ok, ok. Um dia, um guerreiro invadiu seu glorioso e imponente castelo trajado de nada mais do que coragem, sorte e uma faca ensanguentada de muitas outras mortes que lhe acompanharam pelo caminho.
Enquanto falava, seus olhos escureciam e sua voz ficava mais grave. Seus movimentos ficavam mais espertos, andando de um lado para o outro cada vez mais para perto de sua família enquanto rodava seu anel de casamento pelos seus dedos. Pepito parecia se encolher ao lado de Roier.
— O castelo era silencioso como esse guerreiro nunca tinha visto antes. Era quase como se a vida tivesse sido sugada de todo o lugar. Seus passos, por mais cuidadosos que fossem, ressoavam nas paredes daquele castelo vazio e os pingos de sangue da faca soavam como uma tempestade ao chão do lugar. O bravo e solitário guerreiro olhou em todos os cômodos, mas nenhum parecia ter sido habitado antes.
“O lugar era tão… Triste. O guerreiro achava que nunca tinha visto um lugar com tanta tristeza acumulada assim antes.
Seu caminhar continuava cuidadoso e um tentar silencioso, aproximando-se cada vez mais dos aposentos do estranho e cruel rei daquelas terras. Seu coração batia forte e seu suor nervoso pingava como nunca antes de abrir as portas monumentais do lugar, quase como se a pressão que ela emitia pudesse ser cortada por uma faca.”
O semblante de Cellbit enquanto falava era sério e calmo, sua voz tão profunda como apenas um associado ao Conhecimento conseguiria proferir. Havia uma sinceridade que somente Roier e as crianças conseguiriam sentir em seus âmagos, como se fosse uma história mais antiga do que qualquer um deles sentados ali.
Como se fosse uma história de uma centena de anos. Uma história de um lugar já esquecido pela mente de qualquer homem vivo.
“O guerreiro viu a figura do rei, imponente e determinada em seu trono. E tudo o que ele conseguia sentir era raiva. A raiva de ter tido sua paz perturbada pela mais patética existência que ele já encontrou.
O pequeno guerreiro não se importou com a pressão ou o silêncio, a única coisa que ele queria era descansar sua mente de todas aquelas batalhas que continuavam atormentando a sua vida. A cada passo, perguntava-se: quanta raiva poderia caber em seu corpo? Quanto ódio um ser humano poderia sentir?
Ele enfim chegou ao trono sem sequer olhar ao seu redor, apenas observando o velho rei definhando em seus aposentos. Um rico que nunca se importou com qualquer vida que desesperadamente lutava para ter um minuto de paz. Alguém que mandou milhares para a morte apenas por um capricho egoísta. O pequeno guerreiro apenas ergueu a faca e fez a única coisa que poderia fazer.”
Cellbit se aproximou ainda mais, ficando na frente deles e observando seus olhos dilatados. Sua expressão era fechada como nenhum deles tinha visto antes, sua voz ainda profunda e calma ressoava nos ventos da colina. Pepito se encolheu, como se reconhecesse que estava diante de algo muito superior do que eles.
Algo… divino.
— O guerreiro se aproximou do rei e… O ATACOU COM COSQUINHAS! — Cellbit pulou em seus filhos, a tensão magicamente se dissipando e as gargalhadas altas infestando o antes silencioso monte.
Roier começa a rir junto, afastando-se da sensação intimidante que estava sentindo. Era sempre maravilhoso para ele ver os momentos mais dóceis de Cellbit com as crianças, ele pensava que essa era uma das partes que mais amava no homem de cabelos castanhos. Seus braços agarraram Richarlyson, entrando na brincadeira e bradando alto que iria ajudar o guerreiro a derrotar o rei cruel enquanto fazia cócegas até que as lágrimas saíssem de seus olhos.
Não demorou muito para que todos eles se encontrassem exaustos no chão, ofegantes e com os rostos vermelhos de uma felicidade plena. Cellbit sentiu uma mão se agarrar à sua enquanto seus olhos miravam a imensidão negra recheada de estrelas acima de suas cabeças, ela aperta com um carinho terno que quase o faz querer chorar aos resquícios das risadas infantis mais à sua direita.
Cellbit se sente amado em meio à imensidão do tempo como nunca se sentiu antes.
[...]
A determinação é uma daquelas coisas que transcendem a vida e a morte; que fazem você viver além de seu tempo. Cellbit sabia muito bem disso, ele conseguia sentí-la pelo seus ossos, ansiando pelo dia em que poderia ser posta para fora e, enquanto isso, fazendo de tudo para manter aquele corpo vivo.
As folhas estavam espalhadas por todo o seu escritório e a luz fraca da lamparina que ele colocou ao seu lado ajudava no seu sono. Uma, duas, três… Cinco? Cellbit acha que perdeu a contagem em algum momento da quantidade de xícaras de café que ele tomou, mas realmente não era algo importante além de garantir ter uma cheia em suas mãos.
O detetive não tem certeza de quantos dias exatamente ele está ali embaixo, mas ele sabe que seus olhos leram e releram os mesmos títulos, frases e livros tal qual um loop temporal em busca da única resposta que motivava sua busca: Como se tornar mortal?
Seus dedos cansados folheavam os livros e documentos de maneira cansada e Cellbit só conseguia pensar no porquê de todos serem tão obcecados pela imortalidade. Todos, absolutamente TODOS os registros apenas falavam sobre isso, será que eles não viam que estavam se condenando à algo horrível?
Cellbit suspirou mais uma vez enquanto fechava com raiva o que talvez era o décimo quinto livro sem respostas. Suas mãos passaram pelos seus cabelos enquanto seus olhos viraram para um pequeno quadro de sua família na mesa, todos sorrindo felizes em uma tarde de verão na plantação de café do seu castelo.
Por eles, o detetive tinha que continuar tudo aquilo por eles. Porque no final de tudo, Cellbit sabia que caso contrário a única coisa que restaria naquela ilha era ele.
Um barulho de elevador é ouvido enquanto o detetive tentava organizar aquela bagunça para finalmente voltar para casa. Passos muito bem conhecidos e um sorriso que imediatamente cresce em seu rosto viraram uma rotina comum naquela vida mal-acostumada. Ele não se virou quando os braços lhe abraçaram e um rosto se esfregou em seu ombro, apenas aproveitou o carinho que lhe era oferecido.
— Ei, Gatinho, ainda não achou o que ‘tá procurando?
— Não, a Federação só quer coisas complicadas, você sabe… — Cellbit desvia do assunto enquanto aproveita o abraço para fechar o livro e esconder um pouco os papéis.
Veja bem, não é que Cellbit não queria que Roier soubesse que seu marido era um imortal, mas ele gostaria de evitar esse conhecimento até que conseguisse uma forma razoável de se livrar desse problema.
Porque ele iria, sem sombra de dúvidas.
Suas mãos se entrelaçam enquanto Roier o empurra para fora do escritório, um pedido mudo para Cellbit descansar um pouco e passar tempo com a sua família. Logo ele se vê subindo os elevadores da Ordo e o sol cegando temporariamente seus olhos pelo tempo que ficou sem vê-lo.
— Vamos, Gatinho, você ‘tá tão branco que ‘tá brilhando no sol! Precisa pegar uma vitamina D antes que vire um vampiro de vez, pendejo.
— Ay, Guapito, nem ‘tô tão ruim assim! — Disse Cellbit ainda tampando a luz em seus olhos, fazendo Roier lhe dar um olhar de lado.
Cellbit revirou os olhos enquanto continuava o seu caminho para sair da Favela enquanto tentava alcançar seu comunicador no bolso.
— Ok, ok… Talvez você tenha razão. Vamos pescar então, que tal? Vou chamar os pirralhos e eu logo vou estar atrás de…
O detetive paralisa. O que era aquilo?
Cellbit corre agarrando Roier a tempo de impedir que Tallulah, correndo pela curiosidade infantil, de pisar no que quer que fossem aquelas manchas pretas no chão branco do prédio principal da Federação.
— Cuidado, Lulah! Você tá bem?! Não se aproxima dessa coisa.
Tallulah assentiu com cabeça um sim em um olhar assustado, perguntando-se do porquê de seu ‘tio’ estar tão assustado com o que quer que fosse aquilo no chão. Essas manchas borbulhavam no chão de uma forma que nenhum deles tinham visto em nenhum outro lugar. Algo desconhecido que Cellbit e Roier não sabiam o que era, mas sabiam que não era algo bom.
— Gatinho, precisamos de uma reunião de emergência na Ordo imediatamente.
Roier estava sério como Cellbit nunca tinha visto antes.
Uma mensagem no comunicador foi mandada.
[...]
Todos os habitantes rodeavam o prédio branco da Federação. Pelo menos uma semana havia se passado desde a quarentena do local. Cada um tentava analisar o que aquela gosma seria de verdade e quais seus efeitos mas, pelos diversos animais e trabalhadores mortos e espalhados pelo chão, deduzia-se que não era o melhor e mais seguro elemento do mundo.
Philza e Cellbit ficaram com o cargo de líderes dessa operação, coordenando os grupos de pesquisa, coleta e experimentação formados voluntariamente de acordo com a especialização dos moradores de Quesadilla. Afinal, mesmo com suas diferenças e embates, ninguém queria correr o risco de algum de seus filhos se infectar com o que quer que estivesse no chão.
A Federação não parecia se importar muito com o que eles apelidaram de ‘concreto preto’ — e caso se importasse, não fazia questão de transparecer essa preocupação. Os trabalhadores pareciam estar com medo depois de verem o que tinha acontecido com seus companheiros. Assim, deixaram os moradores à própria sorte.
Apesar de uma incógnita, descobriram-se informações vitais depois de muito esforço. Primeiro: o concreto preto era absurdamente atraído pelo calor dos corpos. Aquela coisa se amontoava no chão e era absurdamente rápida em se mover para entrar em contato com a pele no momento que se chegava perto.
Segundo: ele era praticamente letal. Os dias que se passaram observando provaram que aquilo matava tudo o que tocava, não importava o tamanho e peso. Apesar de absolutamente letal, dependia-se do organismo para determinar quanto tempo de vida restava para o ser que entrou em contato com o concreto.
Terceiro: sem previsão de cura ou eliminação. Por enquanto.
Os dias eram absolutamente exaustivos mesmo com a força tarefa conjunta. As privações de sono estampam a cara dos adultos que se privaram de ver suas crianças; fomes eram negligenciadas em prol de ficar apenas mais algumas horas na pesquisa. Todos estavam dando tudo de si para pelo menos achar uma cura ou um meio de extermínio, qualquer coisa que removesse aquilo da ilha em que viviam.
Mas aquele era um dia completamente normal para os padrões daquelas semanas. Os livros estavam espalhados pela grande mesa de pesquisa ao ar livre — humanos e semi-humanos precisavam de sol afinal, e nunca chovia em Quesadilla. Cellbit lia os mesmo relatório pelo que parecia ser a quarta ou quinta vez, ele estava exausto mas definitivamente o seu estoque de café estava ajudando em algo; Maximus estava ao seu lado fazendo furiosas anotações no seu caderno ao mesmo tempo que tinha pelo menos cinco relatórios em sua visão; Baghera fazia o possível para organizar um diagrama que fizesse sentido com tudo o que descobriram até agora.
E por isso, ninguém realmente prestou atenção na cena que estava prestes a acontecer.
Roier estava perto do concreto preto, coletando algumas amostras. Nada que fosse uma grande insegurança, então ninguém estava olhando de verdade. Ele estava especificamente agachado enquanto usava uma pequena espátula de metal para tentar raspar aquela substância e conseguir outra amostra para uma análise mais profunda, tomando o máximo de cuidado para não encostar nela.
Até que a voz disse algo.
“Por que você não chega mais perto?”
Roier parou. O quê?
— ¿Estás hablando, wey? (Você está falando?) — Roier queria ter certeza de que não estava alucinando com o que quer que fosse aquela voz.
“Não acha que seria mais fácil se você chegasse alguns passos para frente?”
A voz era mansa, quase que carinhosa e calmante. Parecia a voz de alguém muito querido que Roier nunca teve a chance de conhecer, como se ele estivesse destinado a achar aquele concreto preto.
— ¿Piensas que soy estúpido? (Você pensa que eu sou burro?) — Roier desvia o olhar, aquilo lhe atraia como um mergulho calmo.
“Não acha que seria mais útil se chegasse mais perto para pegar uma maior quantidade da amostra?”
A voz mudava aos poucos e quanto mais Roier a ouvia, mais ele parecia deixar seus instintos de sobrevivência de lado. Ela envolvia sua mente aos poucos, nublando e o fazendo chegar cada vez mais perto.
Maximus, logo atrás, parecia ter chegado à conclusão da peça que faltava e o mundo se move em câmera lenta quando seus olhos escuros sobem lentamente para Roier agachado no mármore à sua frente.
Ele só tem tempo de gritar uma única coisa.
— O CONCRETO PRETO SEDUZ A MENTE A TOCAR NELE!
Todos o olham enquanto Maximus pula por cima da mesa, percebendo que ele teria 10 segundos para chegar ao local.
Ele teria 10 segundos para salvar Roier.
Cellbit congela. Roier está se aproximando perigosamente do lugar onde os concretos estão espalhados e imediatamente tenta se forçar a correr junto de Maximus.
7 segundos para salvar Roier.
Suas pernas engatam no banco enquanto Maximus continua tentando alcançar a tempo e Cellbit finalmente leva a cadeira junto mesmo com suas pernas doloridas pela força.
5 segundos para salvar Roier.
Cellbit está correndo como nunca antes, como nem mesmo na guerra ele foi capaz de correr. Não parece ser o suficiente.
3 segundos para salvar Roier.
Agora, até mesmo eles podiam ouvir a voz. A coisa tinha evoluído, o que eles não sabiam além de tudo é que ela evoluía conforme a quantidade de vidas que ela tomava.
1 segundo para salvar Roier.
“Se aproxime, criança. A amostra vai ajudar seus amigos.”
Cellbit apenas soube gritar.
— GUAPITO, NÃO!
Era muito tarde. Ele chegou tarde demais.
Roier estava de pé no prédio da Federação. Seus pés pisavam quase que perfeitamente na área infestada pelo concreto preto, afundando quase que como uma gosma viva nos sapatos do de casaco vermelho.
Cellbit viu com absoluto terror a gosma subir rapidamente pelos seus sapatos, seguindo como um imã a pele de seu amado. Ele corre o máximo que pode, tentando fazer o possível para desviar das poças que se formavam pelo chão branco de mármore; desesperadamente e dolosamente alcançar ao menos a mão de Roier. Qualquer toque valeria a pena; qualquer empurrão valeria a pena; qualquer coisa valeria a pena.
Seu grito não valeu a pena. Ele não foi rápido o suficiente.
O concreto preto encostou na pele de Roier. Um grito de horror foi ouvido.
O mundo se calou com aquele grito. O cantar assustado dos pássaros já não podiam mais serem ouvidos; seus passos se tornaram um surdo incômodo; os gritos das pessoas ao seu redor pareciam ter sumido de seus ouvidos.
O mundo se calou com aquele grito. Roier caiu imediatamente no chão, sem sequer ter forças para lutar. Cellbit sabia que ele tinha menos de 10 segundos para chegar até ele, não havia nada que o detetive poderia ter feito que valeria a pena.
Roier não gritou, entretanto. Ele não teve tempo para um grito que valeria a pena.
O mundo se calou com aquele grito. O seu grito.
O grito de Cellbit.
[...]
A efemeridade do ser era um momento de piscar os olhos. Se um piscar de olhos dura um segundo, quanto duraria a efemeridade de Roier?
Roier estava de cama há pelo menos 15 dias, sem andar e sem poder sair pelo risco da exposição do lodo preto ao sol.
Cellbit estava sentado ao seu lado sem saber bem o que fazer, ele nunca tinha precisado cuidar de alguém acamado antes. Desde a internação, a rotina não tinha variado e as palavras do médico se repetiam em sua mente.
Sem cura, sem remédio. Pelo menos por enquanto, sem esperança.
Até agora a maioria do concreto preto foi contido, mas o contato direto foi fatal para Roier no prédio da Federação. Tudo o que restava a todos era esperar e ter algum resquício de esperança que estava se esgotando.
Naqueles últimos dias, eles conversaram sobre muitas coisas. Lembraram de muitos momentos de quando eram mais jovens do que hoje e falaram sobre como seus agora adolescentes já não eram mais as crianças minúsculas que os dois criaram.
Às vezes, eles falavam sobre um futuro que Roier sabia que nunca iria chegar porque ele sabia que seu destino já estava traçado; porque ninguém sabia que ele tinha visto algo naquele portal que nenhum deles jamais entenderia; porque ele tinha finalmente entendido o seu propósito — as vozes tinham lhe dito tudo, o concreto preto lhe mostrou a verdade.
Os dois, naquele momento, eram uma realidade projetada do que um queria que o outro enxergasse e sentisse. Roier fingia que existia um futuro, dizia que iriam comer pães de queijo na colina de novo e que finalmente poderia ver o seu tão amado sol-pôr, despedir-se mais uma vez de Bobby. Cellbit fingia que tudo estava bem, que seu acordo com a Federação tinha rendido uma cura e que logo esta seria dado a Roier; falava sobre como tudo voltaria ao normal e como ele estava feliz que tudo iria dar certo logo.
Até que o dia chegou e Roier estava tão cansado como nunca esteve. Seus filhos estavam longe, sem permissão do homem de faixa que não queria que eles tivessem aquela visão.
Roier segurou a mão de Cellbit com ternura enquanto viam algumas fotos da infância de seus filhos. Seus olhos estavam baixos, sonolentos como em nenhum outro dia.
— Ei, Gatinho, qual o real final daquela história? — A voz de Roier é fraca, quase que dolorida. A determinação saindo de pouco em pouco do seu corpo enquanto o lodo o consumia mais forte do que nunca e os anos cobravam o seu preço. Ele não era nenhum senhor de idade, mas definitivamente não tinha mais a mesma força de quando se conheceram.
Cellbit sentia tudo. A maldição lhe torturando mais e mais enquanto conseguia sentir dentro de seu âmago a lenta morte de seu marido, de uma das pessoas que mais teve o prazer de amar.
Ele sorriu, apertando sua mão de volta.
— História, Guapito?
— Ah, você sabe. Aquela de muitos anos quando ainda brincávamos naquela colina com as crianças. Hm… A do guerreiro e do rei! — Roier tosse enquanto falava e Cellbit se aproxima preocupado — Acho que foi a única que você nunca terminou de contar.
— Guapito, mi amor, eu não sei se… Eu tenho que chamar o Richas e o Pepito, amor — Seus olhos se enchem de lágrimas mais uma vez, sua voz aos poucos entrando em um pequeno desespero — Você sabe que eles vão querer se despedir e eu não sei se…
— Xi… — As mãos de Roier envolvem o rosto de Cellbit com ternura, um carinho quase celestial e com um sorriso amoroso enquanto o lodo continuava a lentamente consumir sua carne. Sua voz trêmula — Por favor, Gatinho. Por favor.
Silêncio. Roier achou que ele não iria contar. Roier chegou até mesmo a pensar que ele iria morrer sem ouvir o final daquela história tão fascinante que o fazia se sentir tão pequeno. Tão mortal.
Roier realmente achava isso até ouvir a voz quebrada de Cellbit.
— O pequeno guerreiro ergueu a faca até o rei. Seu ódio parecia uma doença; um estado tão atordoante que ele sequer conseguia conter em seu âmago. Quando ele ergueu aquela faca e apunhalou sua majestade, tudo o que ele conseguia era gritar enquanto lentamente sentia uma intensa determinação fluir por sua carne.
“O rei parecia em paz a cada apunhalada e o guerreiro não conseguia entender como aquilo era possível. O guerreiro não conseguia entender porque ele tinha que sentir tanto ódio enquanto a pior pessoa já vista naquelas terras parecia tão resolvida consigo mesma.
O som da carne se alastrava pelas paredes do castelo junto dos gritos unilaterais do mais puro ódio que um ser conseguia sentir. Uma dor que nunca seria cessada, uma vingança que nunca seria saciada e uma maldição que seria adquirida. O sangue parecia andar por sua pele e se misturar em seus machucados, quase como se fosse uma coisa viva e independente do que quer que estivesse morrendo por suas mãos. Naquele ponto, o pequeno guerreiro sequer sabia ou se importava se aquela coisa era um humano, tudo o que ele queria era saciar aquele sentimento horrível.
Quando tudo acabou e seu último grito foi proferido, o guerreiro finalmente olhou para cima e percebeu algo que estava esculpido no trono tão intimidante: “Apenas um ser feito de ódio pode livrar a imortalidade de um ser determinado.”
E assim que avistou aquele terno sorriso de paz, o pequeno guerreiro percebeu ao que tinha sido condenado quando colocou os pés naquele castelo. O guerreiro odioso se tornou agora um imortal determinado.”
Silêncio.
— É realmente você, não é? O pequeno guerreiro? Esse tempo todo.
Cellbit olha para suas mãos, sem coragem de olhar para Roier.
— Quando entrei naquele castelo, eu tinha me tornado quem eu mais odiava.
O homem não tinha coragem de levantar seu olhar antes de sentir, novamente, as mãos tão gentis de seu marido em seu rosto, fazendo-o fixar seus olhos em uma expressão tão amável como apenas Roier poderia lhes dar.
— Estoy tan feliz que el odioso pequeño guerrero se haya convertido en este hermoso y cariñoso detective. (Estou tão feliz que o odioso pequeno guerreiro tenha se tornado esse amável detetive.) Você é meu amor, Gatinho, e nada vai tirar isso de mim. Nem mesmo a morte.
— Guapito, eu… — Os olhos de Cellbit se encheram de lágrimas mais uma vez, dessa vez não fazendo nada para as impedir de cair — Eu não vou poder te ver do outro lado, Guapito! Você não entende isso? Você não consegue ver que eu nunca mais vou te ver de novo?!
Suas palavras saem como uma enxurrada de tudo o que ele estava guardando nas últimas semanas.
— Eu não consigo aceitar, eu não consigo entender porquê tem que ser assim! — Céus, agora ele soava como um bebê — Eu te amo mais do que tudo, eu tenho um amor por você que transcende o tempo e você não vai estar aqui pra eu te dar o amor que você merece. Você merece ser feliz também!
— Cellbit, Cellbit, Gatinho, calma — Roier continuava com aquele tom calmo e o seu sorriso — Eu fui muito feliz te amando, de verdade. Se nosso amor transcende o tempo, então eu vou estar do outro lado lhe amando de volta mesmo que você não esteja lá comigo. Eu só quero que você viva.
Dessa vez, seu segurar era determinado. Era quase como se Roier estivesse usando suas últimas forças para dizer tudo o que ele queria uma última vez.
— Eu escolheria te amar todas as vezes mesmo que isso signifique ter esse final.
Roier aproximou seus lábios, juntando suas determinações uma última vez. Cellbit a sentia fluindo por seu corpo assim como no castelo, quando ainda era aquele pequeno guerreiro.
Porém, não havia nenhum resquício de ódio, apenas o mais puro amor que ele poderia sentir.
A determinação parou.
— Roier?
Ele caiu em seus braços, quase como se estivesse adormecido. Tranquilo como nunca esteve.
— Richas! Pepito! Federação! Alguém, por favor! — Cellbit chama desesperado, colocando seu corpo no colchão da cama do hospital. O silêncio dominou seus ouvidos mais uma vez, sem ouvir a própria voz, não importando o quanto gritava.
Roier estava morto.
Chapter 2: Eterno
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A eternidade era algo engraçado para Cellbit.
Seus filhos se mudaram para suas próprias casas, eles estão adultos agora. Ainda é relativamente próximo ao castelo, mas eles querem ter sua própria privacidade. Adultos, eles queriam ter sua própria vida.
A eternidade era algo engraçado para Cellbit.
Ele pacificamente continuava colhendo seus cafés. Sua plantação estava pelo menos 10 vezes maior do que anos atrás. Cellbit não se importa, isso ajuda ele a se ocupar já que não perde mais tempo trabalhando para a Federação ou investigando qualquer coisa. O café se expande pelo campo atrás de seu castelo como um conforto, uma boa lembrança.
O café tomou um lugar em seu coração.
A eternidade era algo engraçado para Cellbit.
Os lugares que Roier dormia em seu castelo são intocáveis. Imutáveis. Inatingíveis. Nada naqueles cômodos mudava de lugar, era como se ele fosse encontrar seu amado deitado ali depois de chegar tarde da noite de uma investigação do outro lado da ilha. Tudo estava como no dia que Roier se foi; como se o aventureiro fosse entrar pela sua porta e perguntar como foi seu dia; perguntar se queria ir explorar com as crianças; contar sobre a nova construção que ele estava fazendo.
Ele, Richas e Pepito nunca deixaram de voltar na sua tão amada colina de amarantos. Sem tantas brincadeiras como antes, eles se sentavam ali como se, caso ficassem em silêncio o bastante, pudessem ouvir a voz de Roier e Bobby no vento que assobiava pelo local.
Cellbit, na verdade, ouvia suas vozes. Em todos os lugares, ele ouvia vozes que pareciam ter descansado há muito tempo; vozes que voltaram para sua vida depois dos tantos anos de calmaria temporária naquela ilha.
Junto de Roier e Bobby, ele voltou a ouvir as vozes de cada uma das pessoas que matou. Elas estavam misturadas em um só tom sem identificação, como se tivessem sido cravadas em sua mente e desbotadas pelo tempo.
Elas lhe diziam que eles iriam ficar juntos pela eternidade. Cellbit queria muito que isso fosse mentira.
Cellbit também se perguntou se era isso que o velho rei ouvia em sua mente naquele castelo tão silencioso.
A eternidade cansava.
Em alguns dias, Cellbit iria para sua sala de rituais no meio da madrugada onde ninguém além de suas entidades poderia testemunhar o que ele faria ali. O detetive não invocaria nada; não desenharia um símbolo ritualístico e tão quanto realizaria um ritual completo.
Cellbit apenas se ajoelharia e rezaria para qualquer entidade que lhe ouvisse. Ele pensou que isso nunca voltaria a acontecer.
Sairia da sala pela manhã depois de passar a noite em claro, como se nada tivesse acontecido. Seus deuses nunca lhe responderam de volta. E assim, semana após semana ele repetiria a mesma rotina santa o qual tinha prometido na guerra nunca mais voltar.
Sabia que eles nunca o responderiam. Nunca o fizeram quando criança e não iriam o fazer agora.
[...]
É que no final, ele nunca tinha verdadeiramente desistido de seu principal objetivo mesmo depois daquele último dia.
Cellbit fechou o livro com a maior força que tinha em seus braços, quase quebrando a mesa com um poder guerrilheiro adormecido.
Ele não conseguia entender como, mesmo depois de todos esses anos; mesmo buscando nas profundezas dessa ilha e até mesmo arrombando os cofres da Federação com seu antigo cartão de acesso; NADA dava indícios de alguma pista sobre acabar com a imortalidade.
Céus, eles tinham pelo menos outros dois imortais na ilha, não é possível que isso seja algo tão incomum que apenas faz os seres serem obcecados por viver mais.
Cellbit lentamente se afasta e senta cansado no sofá de seu escritório. O tempo estava acabando e o detetive não sabia mais o que fazer. Ele olha o estado do lugar, que nunca foi mais o mesmo depois daquele dia: livros e páginas espalhados e empilhados de modo a nem conseguir olhar o chão; paredes encardidas e mal cuidadas pela infiltração e falta de uma reforma decente; as luzes fracas das lâmpadas velhas que claramente não tiveram o cuidado necessário após 1 ano; prateleiras quebradas pelo desgaste e frustração do detetive de jogar os livros em sua direção.
Nada ali dava indícios daquele ser o outrora aconchegante escritório que todos gostavam de ir para as reuniões da Ordo. Na verdade, faziam muitos e tantos anos que ninguém além de Cellbit descia para aquele lugar, nem mesmo seus filhos.
Cellbit tinha se isolado de todos da ilha depois do funeral, até mesmo de sua irmã, com quem estava tendo algum avanço em se aconchegar. Ele não queria formar mais laços, não queria perder todos de novo e de novo até o final.
Não até que descobrisse uma forma de reverter isso, então talvez ele possa correr atrás do tempo perdido. E talvez possa enfim parar de ignorar as cartas que são deixadas aos montes em seu castelo, perguntando quando ele iria voltar ou se iria aparecer na Favela algum dia.
E sentado ali no que pareciam horas perdidas em sua mente, Cellbit voltou a pensar na única história de alguém que deixou de ser imortal. Na sua própria história. Assim, percebeu uma coisa crucial ao qual parecia ter decidido ignorar por todo esse tempo.
Ele lembrou da escritura de um castelo antigo. Lembrou de um pequeno guerreiro e um rei maldoso.
Assim como o rei que tudo lhe tirou com um ódio dado de bom grado para uma criança perdida em meio à guerra, Cellbit teria que repetir seu destino a outro ser porque apenas um ser de ódio poderia matar um ser determinado.
E nesse momento, ele soube que a determinação nunca sairia de seu corpo. O detetive iria transcender o tempo assim como Roier lhe disse se isso significava nunca condenar um outro alguém.
Se o ciclo do tempo e da morte condenaria Cellbit pela sua eternidade, então ele tomaria sua determinação de tão bom grado quanto a sua criança tomou seu ódio.
Uma hora você vai se cansar de ter tanta vontade. A voz de uma criança muito jovem mas tão cansada soou em seu ouvido. Ele olhou para a parede onde aquela silhueta estava encostada.
Uma silhueta de si mesmo.
— Por favor, espero que você esteja me contando outra mentira.
Isso depende apenas de você. Cellbit dá um respiro profundo enquanto olha pro teto, rezando para qualquer divindade para que aquilo suma de novo.
Ele olha de volta para a parede e a silhueta não está mais ali. Cellbit sai do escritório para mais um dia.
[...]
Faz alguns anos que Cellbit não falava com outras pessoas da ilha. Depois daquele dia, apenas seus filhos ouviram a sua voz.
Ele sentia que não conseguiria passar por outro luto, além do de seus filhos no futuro.
Luto é um processo natural, ele sabia disso. Mas escolher ou não por quantos processos de luto ele passaria também poderia ser algo a se considerar e Cellbit já havia feito a sua escolha no momento que o funeral de Roier aconteceu.
Então, não, ele não se arrependia da decisão que tinha tomado, mas… Tudo estava sempre tão quieto.
Durante todos aqueles restantes anos na ilha, sua vida nunca esteve em tão silêncio. Cellbit era acostumado a estar cercado pelo intenso barulho por todos os lados, sejam os gritos de horror e raiva nos campos de batalha, onde o sangue constante jorrava em seu rosto e uma morte era mais um dia para viver; os constantes falatórios da prisão, com conspirações de gangues, acordos, ameaças, acordos com os guardas no meio da madrugada e os alarmes infernais que não paravam de tocar; o falatórios de conversas casuais em bares cheios ou agências clandestinas a procura de um bico ou emprego como detetive independente; as discussões e casualidades que ele tinha com os outros favelas quando ainda eram uma pequena família unida por um filho; assim como sejam as risadas e doces vozes da família que ele tinha formado após seu casamento.
Olhando em retrospecto para todos os sons e barulhos o qual ele sempre esteve cercado, a quietude nunca tinha soado tão alta. Cellbit via agora como ele nunca gostou dessa quietude e quanto faria de tudo para ter qualquer um desses tinidos de volta à sua vida. Um grito, uma risada, uma conversa longa, qualquer uma dessas coisas.
O silêncio nunca foi, embora, seu inimigo. Ele era um grande incômodo.
E quando ele finalmente foi quebrado uma última vez, todos estavam longe daquela ilha.
Depois que eles desistiram do concreto preto, tudo o que lhes restou foi ver a ilha sendo ano após ano ser tomada quase que inteiramente por aquilo.
Cellbit não sabia o que exatamente tinha acontecido, mas eles fugiram para um lugar longínquo em um barco tão igual ao qual os brasileiros chegaram. Ao chegarem na terra, todos se separaram e ele acabou por ficar sozinho mais uma vez. Sem Federação. Sem Cucurucho. Sem enigmas. Sozinho.
Talvez esse era apenas o destino que os deuses prepararam para ele.
Talvez você não seja tão especial assim para que os deuses se importem. Eles nunca se importaram antes. Ali estava de novo aquela silhueta que aparecia tão constantemente agora, jogando cartas casualmente com uma outra silhueta tão esmirrada quanto a sua.
As mãos de Cellbit estavam machucadas de tanto trabalhar em sua nova casa no topo da colina, cansado pelo dia difícil enquanto pensava em sair para conseguir uma pedra e finalmente montar um totem novo para Richarlyson e Pepito lhe visitarem.
— Cala a boca.
A silhueta deu de ombros, jogando outra carta na mesa. Cellbit suspirou enquanto andava até o balde para lavar as suas mãos.
Existiam dias e dias em sua vida. Às vezes, ele sentia como se estivesse em um eterno e estranho ciclo repetitivo de luto, quase como se estivesse passando por todas específicas suas fases de novo e de novo. E assim iriam seus dias, suas semanas, seus meses.
Seus anos.
E desde que ele chegou naquela ilha, aquilo tinha piorado junto com suas silhuetas. As silhuetas da guerra e da prisão estavam agora quase sempre ao seu lado, conversando com ele tal qual uma companhia antiga e uma amizade amarga que nenhum dos dois lados queria ter.
Primeiro, Cellbit passaria pela negação.
Passos foram ouvidos atrás de si e ele parou imediatamente o que estava fazendo enquanto ficava em alerta. Seus pés se moveram com um tocar suave enquanto suas mãos lentamente se direcionavam para a faca escondida em seu bolso.
— Pai Cellbit? Você ‘tá aí? Trouxe alguns bolos que a mãe Bagi fez ‘pra gente, ela perguntou como que você ‘tava mas não sei se você quer que eu responda ou não então eu vou aproveitar pra perguntar, você quer que eu responda ou não? Ah, o Pepito já deve ‘tá chegando mas ele ficou um pouco mais pra falar com a Empanada e a Sunny que brotou lá também do nada — E assim a grande disparada de palavras que Richarlyson sempre fazia questão de soltar começou a preencher o local antes tão silencioso. Cellbit deu um pequeno sorriso antes de voltar ao normal e se virar para seu filho.
Ele estava grande, passando um pouco de sua altura. Seus cabelos ainda cheios e em frente aos seus olhos como um estilo que nunca fez questão de guardar e sua mais nova camisa 10 da seleção especialmente personalizada por todos os seus pais e mãe. O detetive não podia deixar de pensar o quanto ele nunca deixaria de ser o pequeno pirralho no centro de adoção.
— Richinhas! Faz o quê, uma semana? Pai ‘tava com saudades, seu peste, vem cá — E o puxou para um apertado abraço — Diz pra sua tia que ‘tô bem sim. Na real, eu ‘tô ótimo! Terminando a casa, ajeitando o terreno. Te falar que esse lugar aqui é até melhor do que o terreno que a gente tinha antes, já ‘tô planejando onde que minha plantação de café vai ficar.
Mentiroso. Sua silhueta fala enquanto joga outra carta. Cellbit sequer vira a cabeça.
Richarlyson coloca o bolo em cima da mesa onde o truco? Pif paf? Vinte e um? Dane-se, não importava o que era. A silhueta de Cell mais novo solta um grande bufo enquanto revira os olhos, cruzando os braços em descontentamento e recostando na cadeira enquanto a silhueta menor se move para perto dela.
Cellbit pensou que isso foi muito bem feito.
— A mesa ficou legal, hein, pai? Pegou um livro de marcenaria?
— Ah, o Roier que me ensinou uma época.
Silêncio. Richarlyson o olhou como se estivesse procurando sinais de algo.
— É, ele realmente era bom nisso, né? Lembro quando ele fez aquela mesinha de cabeceira ‘pro meu ateliê.
— Ele é realmente muito bom! ‘Tô só esperando ele acordar sinceramente, ele sempre dormiu muito mas ultimamente o Guapito nem sai da cama mais.
Negar a realidade não ajuda em nada, sabia? Cala a boca.
— Pai, eu… — Richarlyson começa uma frase com hesitação — Na real, a mãe Bagi perguntou quando que você vai lá na casa dela. Faz uns anos, né? Ela ‘tava querendo falar com você algumas coisas.
Sua irmãzinha tá com saudades, ein? A família é muito unida mesmo. Cala. A. Boca.
— Ah, Richinhas, sabe como é, né? Eu ‘tô muito ocupado pra ir lá agora — Cellbit desvia o olhar enquanto começa a andar para guardar alguns entulhos.
— Porra, pai, você ‘tá SEMPRE ocupado. Eu sei que você não quer mais ver ninguém só que a gente ‘tá em uma nova ilha agora. O pai Roier ia querer ver você falando com as pessoas.
— O Guapito quer que eu veja outras pessoas, mas ele disse pra eu esperar até a gente se estabilizar — Ele continua andando enquanto Richarlyson o segue suspirando, ignorando a ênfase clara em uma palavra.
— A gente não ‘tá mais em Quesadilla, pai. Não tem mais um Cucurucho que vai aleatoriamente mandar uma tarefa ‘pra você fazer que vai afastar você da gente ou nos matar.
— Eu já disse que eu ‘tô ocupado. Tenho que terminar a casa antes do Guapito acordar e ver essa bagunça.
— Pai…
Ah, sim. O querido vai ter que se levantar da tumba então. Chega.
— CALA A BOCA, INFERNO!
Cellbit grita com a parede vazia. Richarlyson dá um passo para trás assustado.
Ele recua.
— Filho, isso não… Não era ‘pra você…
Ele conseguia ver o peito do seu filho dar uma grande respiração enquanto fechava os olhos por sua visão periférica. Sua boca nunca se calou tão rápido.
Richarlyson ergue a cabeça, parecendo se recompor.
— Sabe, pai, às vezes a gente tem que seguir em frente. Eu sei que pode parecer cruel, mas você não é o único que ainda ‘tá sofrendo com a morte dele mesmo depois de todos esses anos — Seu filho olha para o chão, pensando em suas próximas palavras. Ele não parece ter bem o que dizer depois disso, mas tenta o seu melhor — Eu… Amanhã eu volto aqui quando o senhor estiver mais calmo, ‘tá? Não acho que nenhum de nós está com a melhor cabeça ‘pra isso agora então vou avisar pro Pepito. Fica bem, pai.
Cellbit continua olhando pro chão, sem saber ainda o que responder ou como sequer começar a consertar essa situação. Ele não achava que falar que a silhueta na cadeira era o que estava lhe deixando impaciente era a melhor saída.
Richarlyson para uma última vez, de costas.
— Ah, e pensa com carinho no que eu disse sobre a mãe Bagi, ‘tá? Ela realmente sente a sua falta.
E tudo o que Cellbit consegue ouvir depois disso são seus passos sumindo à distância.
Você sempre estraga tudo, né? O sorriso de seu eu menor era de completo escárnio.
— Você também tem culpa nisso.
Não fui eu que gritei com nosso filho.
— Eu ‘tava gritando com você.
Eu sou só uma criança, mas eu sou você também. Eu sou a sua parte feia que você não quer mostrar para seus preciosos filhos e amigos. Você vai ter que me aceitar do seu lado querendo ou não, ou vai terminar sozinho.
— Eu não preciso de você.
É isso que a gente vai ver.
A parede novamente fica vazia. Cellbit volta a juntar o lixo do chão.
[...]
Em segundo, Cellbit passaria pela raiva e depressão.
A verdade é que desde então ele esteve evitando Richarlyson, ou talvez seu filho decidiu que ele precisava de um tempo um pouco maior para se acalmar porque não insistiu depois do terceiro dia que bateu na porta de sua casa.
O detetive não queria que ele visse o que tinha acontecido lá dentro.
A cozinha estava infestada de vidro no chão, as paredes manchadas depois de tantos copos jogados. Os lençóis que tanto demorou para fazer estavam completamente rasgados e sujos, espalhados pelo chão do quarto junto com as portas quebradas de seu armário. Em sua pequena sala, existia um corpo deitado no chão rodeado de fotos de um feliz casal com o que pareciam ser seus filhos e outras crianças, amigos e até mesmo parentes.
Cellbit olhava para o teto de madeira estático, permitindo apenas que sua respiração fosse ouvida naquele lugar. Em sua mão, uma foto que parecia amassada do quão forte ele a segurava, um belo altar branco com ele e Roier vestindo belos ternos enquanto se beijavam alegres e pétalas caíam graciosamente ornamentadas. Ele pensava em como Philza era um bom fotógrafo.
Ele realmente odiava sentir tanta raiva nesses momentos, pois sabia que era exatamente aquele sentimento que iria a substituir logo em seguida. A mais pura tristeza que ele poderia sentir em sua vida.
Seus olhos escorriam lágrimas cansadas depois de tanto chorar enquanto jogava e quebrava todas as coisas de sua casa. Sentia que não tinha forças para além de mover sua mão, segurar outra foto e voltar a chorar novamente.
Céus, Cellbit estava tão cansado.
Ele sabia que tinha que arrumar aquilo antes de ter uma nova conversa com seus filhos, mas achava que poderia pelo menos ficar mais algumas horas ali. Pelo menos assim, sua cabeça não enchia de pensamentos e vozes e silhuetas; suas memórias da guerra não eram repetidas todos os dias e suas dores apenas traspassavam pelo seu corpo e a única coisa que ele precisava fazer era sentí-las.
Sem se mover, sem pensar. Apenas sentir toda aquela culpa e tristeza fluir pelo seu âmago de novo e de novo e de novo.
Talvez você mereça isso. A silhueta agora estava sentada em cima de suas fotos com todo o seu mais puro ar infantil.
— Talvez você deva tirar a sua bunda ‘daí de cima — Cellbit resmungou.
Uma batida na porta.
— ¿Pa Cellbit? ¿Estás ahi? (Pai Cellbit? Está aí?)
Por que ele veio hoje?
— Richas me había dicho que no viniera, pero Pepito estaba preocupado. (Richasme disse para não vir, mas Pepito estava preocupado.)
Cellbit sorriu um pouco pela primeira vez em dias. Ele achava fofo como Pepito voltava com a mania de falar em terceira pessoa quando estava nervoso.
— Sabes que puedo ver tu sombra, ¿verdad? (Sabe que eu posso ver sua sombra, não é?)
Ele pareceu refletir.
— O pai não tá muito bem, Pepito.
— Nunca mejorarás si no hablas con nosotros. (Nunca vai melhorar se não falar com a gente.)
Sabe… Ele tem um ponto.
Pela primeira vez em dias, Cellbit levantou de seu amontoado de fotos e abriu a porta como nunca tinha feito antes em todos aqueles anos.
— Achei que eu tinha dito para me deixar em paz nesses dias.
— Pensé que ya había dicho que nunca me importó. Tú también eres mi padre. (Pensei que ja tinha dito que não me importava. Você também é o meu pai.)
Pepito lhe dá um abraço forte. Ele olha suas olheiras com cuidado e passa a mão em seus cabelos como Cellbit sempre fazia quando era criança. Seu filho estava ficando cada vez mais alto, quase que lhe ultrapassando.
Mas ele ainda continuava desajeitado.
Agora sua pequena silhueta está na sua frente, fora da casa e atrás de Pepito. Ela parece lhe olhar com uma mágoa antiga de alguém que nunca pôde ter esse tipo de carinho.
Às vezes Cellbit pensa o quanto a guerra estragou seu pequeno eu.
O silêncio é quebrado.
— ¿Qué son esas fotos en el suelo? (O que são essas fotos no chão?)
— Seu pai Roier. Quer ver?
Silêncio. Talvez digerindo.
— Yo quiero. (Eu quero.)
Eles entram na casa, sem olhar para trás nem um momento. Ele pergunta se Pepito conseguia chamar Richarlyson também para ver as fotos. Seu filho diz que sim, entusiasmado por isso estar acontecendo pela primeira vez.
Cellbit ainda conseguia sentir sua silhueta lhe olhando.
[...]
Por último, ele passaria pela sua aceitação.
Pensava se dessa vez, naquele lugar tão diferente, ela iria ser definitiva.
O detetive estava sentado em sua varanda, ele olhava para o quintal como se não estivesse acreditando no que estava vendo. A quietude nunca tinha reinado tanto aquele lugar como naquele momento, quase como se caso algum som fosse proferido a coisa que estava ali seria assustada assim como um gato.
Excerto que aquilo não era um gato, era Roier.
O homem estava no jardim tão vivo como nunca esteve antes, como se ele nunca tivesse ido embora. Como se ele nunca tivesse deixado Cellbit ali.
Estava sentado de costas para a varanda em que estava sentado, mas ele sabia que era Roier. Aquela voz era inconfundível, era inigualável. Era ele quem estava ali na grama verde tão feliz quanto o dia em que lhe deixou.
E ali ele estava conversando com a sua silhueta. Como se Cellbit não estivesse sentado logo atrás dele.
Y luego subimos en ese globo para hacer una torre enorme. Fue muy divertido porque le daba mucha vergüenza estar cerca de mí. (E logo subimos nesse balão para fazer uma torre enorme. Foi muito divertído porque ele tinha muita vergonha de ficar perto de mim.)
Sua voz parecia translúcida e, se apertava um pouco mais seus olhos, ele via a verdade.
Era uma silhueta.
Ele tinha medo de alguma coisa? Seu pequeno eu fala.
¿Miedo? ¡Es el gatito más miedoso que he visto en mi vida! (Medo? É o gatinho mais medroso que já vi na vida!) Roier riu em resposta.
Até que Cellbit levanta. Seu pequeno eu lhe olha assustado antes que ele fale mais alguma coisa e foge para longe, sem ter chance de o chamar de volta.
— O quê… O que você ‘tá fazendo aqui?
O que mais eu faria? Estava te esperando.
— Eu não posso… desde quando?
Desde sempre. Eu te disse, estarei te esperando pela eternidade.
— Você é apenas uma silhueta. Você não ‘tá aqui de verdade, você…
Isso me faz menos real?
Cellbit não achava que sabia responder essa pergunta. Ou melhor, ele não achava que queria responder essa pergunta.
Se não, o que era a sua pequena silhueta? Ela era realmente real?
Isso implicaria que sua criança tinha morrido?
Isso implicaria que você me matou.
Lá estava ela, de novo atrás de si. Cellbit se viu em uma encruzilhada. Ele não queria descobrir a resposta dessa pergunta, então sorriu como nunca tinha feito antes e ignorou seu pequeno eu como fez milhares de vezes antes.
— Bem-vindo de volta à casa, Guapito.
A sua criança ainda lhe olha. Ele não acha que quer olhar de volta.
Eles entram juntos. Eles sentam na sala. Eles se encaram em silêncio. Cellbit pede aos deuses para que aquilo não seja uma peça pregada de mal gosto.
Um dia você vai ter que falar com ele.
— Eu pensei que nunca voltaria.
Ele não tem culpa.
— Eu sei — Cellbit não queria ser seco, então tenta consertar — Eu ainda vou falar com ele.
Silêncio de novo. Roier parecia meio chateado.
Eu pedi ‘pra você viver, não pedi?
— Eu tentei, eu… Eu ‘tô vivendo agora.
Até você não estar mais.
— O que você queria que eu fizesse?! O que você esperava?! Você foi embora!
Morrer não significa ir.
— E ficar não significa viver! Você não sabe o que…
Eu sei. Eu o vi esse tempo todo.
— Então… Então porque não falou nada? — Cellbit retrucou chateado.
Seu coração doía. Ele não conseguia entender o porquê de isso estar acontecendo; o porquê de ele ter que passar por isso sempre; ele está cansado de lutos, cansado de entender, cansado de sentir dor.
Ele está cansado de sentir o tempo todo, de pensar o tempo inteiro.
Porque você precisa aceitar que eu parti.
— Eu aceitei isso no momento em que você morreu.
Você aceitou isso no momento que deixou Pepito lhe ajudar, na verdade.
Isso foi um tapa de luva que ele merecia, ambos concordaram silenciosamente nisso.
— Você vai embora?
Eu vou ficar aqui o tempo que você lembrar de mim, igual todas elas.
— Elas?
Roier silenciosamente aponta para a multidão de silhuetas amorfas que lentamente se dividem e falam mais e mais. As mesmas silhuetas de quem ele matou. Uma criança começa a tomar forma. E outra. E outra. E outra.
Elas estavam brincando com sua pequena silhueta. Pareciam se divertir como nunca puderam.
E então, vai falar com ele? Roier pergunta, apontando para a sua silhueta.
— Vou. Um dia.
No final, Cellbit mentiu.
[...]
Eles estavam morando ali há pelo menos 50 anos.
O eterno e o efêmero andam lado a lado. Cabia, então, ao eterno entender que o efêmero era apenas o seu piscar de olhos.
Cabia, então, a Cellbit entender que tudo à sua volta era esse piscar de olhos. Memórias devem ser preservadas, figuras devem ser amadas e silhuetas devem ser sua esperança.
Assim, em frente ao túmulo de seus filhos naquele dia chuvoso, vendo pela primeira vez alguns de seus antigos amigos ainda vivos — pelo visto ele não era o único imortal naquela ilha — ao qual continua fugindo depois de todos esses anos, Cellbit finalmente entendeu o que realmente o eterno significava.
O luto já não fazia mais sentido, a dor já era cansativa. Seus filhos viveram uma vida feliz e longa, o detetive estava na verdade em uma paz que nunca tinha sentido antes. Se o eterno e o efêmero realmente andam lado a lado, então ele apenas tinha que aceitar que eram assim que as coisas são.
Ele tinha que aceitar que, no final, tudo o que restariam eram as memórias e as silhuetas de seus entes queridos.
Cellbit andou sem falar com ninguém, ainda mantendo uma escolha que ele fez anos atrás quando ainda morava na ilha. Seus amigos já eram tão velhos quanto ele; as crianças sequer pareciam lembrar dele como algo além de uma figura distante sendo apenas mencionado e visitado pelos seus próprios filhos. Todos respeitaram seu pedido de mais bom grado e ele mais do que ninguém agradecia isso apesar das saudades e das dores que sentia em dias mais sombrios.
O ciclo do tempo e da morte condenaria Cellbit por sua eternidade. Tudo o que ele poderia fazer, agora, era entender que este ciclo era tão natural quanto respirar. Se tudo o que lhe restaria eram memórias e silhuetas então ele também as tomaria de bom grado.
O detetive chegou enfim a uma colina. Os anos claramente passaram e ele tinha um ar mais pesado e cansado, apesar de transmitir também uma paz sem fim; seus cabelos estavam um pouco maiores, motivados a não serem cortados porque um “você fica muito maneiro assim” saiu da boca de Pepito mais de uma vez. Suas costas estão lotadas de mochilas e mais mochilas, empilhadas e amarradas umas nas outras o qual Cellbit carregava com uma força incomum; dentro delas, jazia a maior coleção de memórias que já tinha se avistado: fotos, brinquedos, cartas e todo o tipo de objeto que o lembrasse sua família.
Ele sente um leve toque em sua mão.
Você ainda me odeia?
Era a sua silhueta. Um suspiro fugiu de sua boca.
— Não tanto quanto eu achei que eu odiava.
Você ainda acha que a culpa foi minha?
— Hum? — Cellbit lhe olhou confuso — Culpa pelo quê?
Por você ter que viver imortal.
Oh. Ele desvia o olhar para o chão.
— Eu nunca achei isso.
Mentiroso. A silhueta lhe olhou com tanta raiva quando a sua criança de 10 anos poderia sentir. Eu sou você. Eu sei que você pensa, eu sei como você se sente. Para de mentir pra mim! Você disse que ia falar comigo.
Cellbit sente um estremecer. Então era isso?
Ele se agacha, olhando no olho de seu pequeno eu como nunca tinha encarado antes. Naquela silhueta tão vívida, conseguia ver todos os seus sentimentos por seus olhos.
O mais puro sentimento de dor que uma criança poderia sentir.
Se você pudesse dizer algo para a sua criança de 10 anos, o que você diria? Ele já tinha feito essa pergunta mais de um milhão de vezes.
Ali, daquela colina, ele conseguia ver ainda seus filhos já enterrados. Cellbit pensou em tudo o que ele fez durante todos esses anos para que eles não precisassem ter a infância que teve no meio da guerra; para que não precisassem se preocupar em lutar dia após dia e sim em serem… crianças.
E ali, naquela mesma colina, ele achava que finalmente tinha a resposta para aquela pergunta.
— Eu nunca te odiei, meu pequeno guerreiro — Sua mão esfregou os cabelos da silhueta com um pequeno sorriso enquanto via as pequenas lágrimas se formando nos cantos de seus olhos — Acho que eu fui muito duro com você, eu sempre pensei que na verdade você odiaria quem eu me tornei. Desculpa ter demorado tanto tempo quanto eu tinha prometido.
Você me abandonou. Me esqueceu. E eu sentia tanto ódio , tanta inveja.
— Eu tive a vida que você deveria ter tido. Mas, sabe, eu sou você também — Cellbit repetiu o que a silhueta tinha dito — Acho que eu também tive muita raiva de você por muita coisa. Mas nós somos… nós.
Você só se tornou imortal por causa da minha raiva. O detetive dá de ombros.
— Talvez fosse isso que os deuses prepararam pra mim.
A silhueta dá um riso, como se estivesse tendo um déjà-vu.
Você não é tão especial assim.
— Talvez eu não seja mesmo — Ele devolve o sorriso.
Mas e agora?
— O quê?
‘Pra onde vamos?
— ‘Pra casa. Qualquer casa. Qualquer lugar que possamos chamar de casa.
Cellbit olha para sua frente. O exército de silhuetas e vozes ocupava o grande campo aberto como ele nunca tinha visto antes. Ele sentou de pernas cruzadas ainda falando com seu pequeno eu. Crianças de sua idade da guerra corriam como nunca puderam em vida; adultos conversavam tão alegremente e até mesmo se reencontravam como velhos amigos. Sua silhueta se senta ao seu lado, também observando uma multidão que sempre ignorou.
Ou melhor, que nunca tinha sequer prestado atenção que estavam ali. E tudo o que ele sente é um perdão que nunca mereceu.
Um homem alto com uma bandana azul anda até sua frente com três homens já adultos ao seu lado. Roier, Richarlyson, Pepito e Bobby.
Hola, mi amor. ¿Te quedarás ahí sentado para siempre o nos vamos a casa? (Oi, meu amor. Vai ficar aqui sentado para sempre ou vamos para casa?)
Cellbit dá um sorriso de orelha a orelha como ele nunca tinha soltado antes. Sua mão segura delicadamente a de seu pequeno eu enquanto estica para segurar a mão de Roier enquanto seus filhos o seguem.
Eles atravessam juntos a multidão de silhuetas em direção ao desconhecido. Sem rumo, sem direção, sem olhar para trás.
Se o ciclo do tempo e da morte o condenou por sua eternidade, ele então abraçou a sua criança e voltou para sua família, mesmo que as memórias e o efêmero os tirariam no mais tardar do futuro.
E tudo o que Cellbit fez foi sorrir.
Chapter Text
Nada dura para sempre.
O vento formava uma ventania que formava o tornado que era a sua vida.
Um homem que nunca envelhecia andava por uma floresta esverdeada. O sol atravessava as folhas de uma maneira bela enquanto ele conseguia ouvir pequenos sons de animais enquanto andava, seus sapatos pisando na mata alta enquanto seguia o seu caminho para uma clareira logo à frente.
Seus cabelos castanhos estavam mais longos do que o homem nunca achou que estaria, passando para um pouco abaixo de seus ombros e com uma e grossa mecha branca. Os olhos azuis eram sucintos ao seu redor, tendo já decorado seu caminho após todos esses anos. Sua blusa branca estava de mangas arregaçadas e com dois botões abertos enquanto as tiras de couro e o cinto faziam seu trabalho de segurar a larga calça marrom que usava.
Em seu pulso, uma faixa azul desgastada amarrada de forma confortável. Suas mãos carregavam uma cesta pequena com frutas frescas, pareciam terem sido tiradas diretamente de suas árvores. O homem parece alegremente abrir um pequeno sorriso enquanto aproveita o som suave da floresta, andando tão tranquilamente como nunca pensou que poderia.
Quando finalmente chegou em uma bela clareira, seus olhos pareciam ter um grande carinho enquanto olhava para uma confortável e convidativa casa de madeira escura. Ela tinha uma confortável varanda que, além de duas cadeiras de balanço e três bancos convidativamente postos, estava lotada de vasos de plantas de tamanhos e espécies diferentes. Ao lado da casa, uma pequena plantação de café.
O homem começa lentamente a andar para dentro de sua casa, aproveitando seu momento de tranquilidade como esteve aproveitando nos últimos 70 anos em que peregrinou para esse lugar no meio do nada. Ele calmamente parou para abrir a porta, olhando de relance com carinho mas as duas cadeiras de balanço cravadas com os nomes de “Cellbit” e “Roier”.
A porta é aberta e sua voz finalmente invade o lugar.
— Bom dia! Finalmente tomei vergonha na cara e fui catar aquelas frutas que eu falei pra vocês no outro dia lá do outro lado do lago. Parecem ‘tá muito boas sinceramente, daqui a pouco vou pegar a faca ‘pra descascar.
Nenhuma resposta. Seu sorriso seguia em seu rosto enquanto colocava a cesta em cima da mesa perto da janela e se dirigia para a cozinha pegar alguns baldes para lavagem das frutas, um escorredor e um pano.
Quando enfim se senta em sua cadeira, seus olhos alegremente se prendem às pessoas ao quais estava conversando. Ou melhor, aos quadros que ele estava falando: fotografias de Roier, Richarlyson, Pepito e Bobby.
Quadros e quadros estavam espalhados por toda sua casa junto de uma grande quantidade de plantas e flores mais do que bem cuidadas para alguém que mora sozinho, como se Cellbit vivesse também em função delas.
— Então, Guapito, como eu estava lhe dizendo ontem antes de dormir. Os cupins tão simplesmente acabando com os móveis do quintal e eu não sei mais o que fazer ‘pra acabar com eles. Já tentei ler todos os livros de jardinagem que tenho mas nada deu jeito, acho que vou ter que apelar ‘pra algumas certas entidades do Outro Lado de novo. Então, acho que eu vou começar com…
E se pôs a falar para o vazio, como se Roier estivesse bem à sua frente ouvindo tudo. Era puramente um exercício diário para a mente de Cellbit, algo que ele pudesse se apegar em meio aquela casa vazia.
Quem não é visto e falado é esquecido, quem é esquecido morre verdadeiramente. Cellbit não queria que sua família morresse mas, quando se perde alguém, a voz daquela pessoa é a primeira coisa que você esquece e Cellbit já esqueceu a de sua família.
Agora elas eram apenas mais algumas no conjunto de vozes irreconhecíveis que falavam com ele. Vozes que lhe diziam um “eu te amo” sonhador mas que não tinham mais o som que tanto amava lembrar.
O detetive já esqueceu suas risadas; seus trejeitos; seus discursos de como ele deveria se cuidar mais; dos sons das crianças brigando e brincando ao mesmo tempo; de como alguma construção estava sendo; de qual livro estava lendo. O detetive esqueceu as suas conversas.
Quem é esquecido morre verdadeiramente. Cellbit não queria começar a esquecer seus nomes.
Então ele falava com seus quadros e com qualquer coisa que não o deixasse esquecer suas silhuetas ali que falavam em uma monotonia sem fim. Se todas as vozes de sua cabeça já eram iguais, que ao menos suas silhuetas já não sejam assim enquanto ele pode evitar.
E se Cellbit pôde ficar em paz com sua criança, então ele poderia guardar mais uma memória feliz enquanto seus deuses o permitiam.
Tudo o que ele conseguia ver naquela pequena e confortável sala era a mais pura visão da paz que essas silhuetas lhe concebiam todos os dias de sua vida desde que deixou aqueles túmulos uma última vez. Conseguia ver Roier em sua frente escutando atentamente o seu tagarelar das plantas; Richarlyson estava em um canto, em seu alto adulto regando as plantas próximas ao teto e tomando o cuidado de não molhar sua roupa; Pepito estava sentado na sala como um adolescente calmo e despojado, lendo o livro de ocultismo básico que sempre pediu do pai; e Bobby estava afiando sua espada no meio da sala, sem se preocupar em quem iria limpar aquilo e provavelmente pensando em pedir — mandar — algum dos mais novos fazerem isso para si.
Às vezes, quando Cellbit piscava os olhos, ele via que a sala estava vazia. Mas ele sabia que isso não era verdade.
Eles lhe prometeram que iriam lhe acompanhar pela eternidade do tempo, não importava o que fosse. E cumpriram, estavam ali naquela sala mesmo que ele fosse o único que pudesse os ver.
No fim de tarde, Cellbit iria para a bela colina de amarantos que ficava à uma distância perto o suficiente de sua casa e ele apenas sentaria para admirar o pôr do sol, vendo todas as quatro silhuetas sentadas ao seu lado.
Agora, ele se tornou um antigo detetive ao invés do pequeno raivoso guerreiro e, honestamente, ele estava muito mais feliz assim. Talvez isso fosse a felicidade, passar os dias em sua casa com sua imaginária família e sua eternidade espera de um fim que nunca chega.
Essa era a vida de Cellbit: a felicidade de estar em paz e a pacificidade de estar feliz. Se o imaginário temporário era agora sua família, então ele iria viver seus anos tão alegre quanto os deuses o permitiriam estar.
Para o agora e o eterno.
[...]
Mais 50 anos se passaram naquela casa. Nada dura para sempre e quem é esquecido morre verdadeiramente.
Sua casa continuava quase com a mesma aparência, alguns ajustes aqui, algumas reformas ali. Por dentro, novas e antigas plantas disputam um espaço já apertado e agora é quase impossível ver as paredes e certos pedaços do chão.
E Cellbit percebeu então que nada dura para sempre além dele. As fotos, os quadros, os resquícios de gravadores que ele trouxe daquela longínqua ilha que ele já não lembrava mais o nome, os desenhos A verdade era que o tempo levava todas as coisas.
E junto com suas vozes, agora eram seus toques, seus beijos, seus gestos, suas pequenas manias.
E tudo.
Tudo o que restou daquelas silhuetas tão vívidas agora elas eram quase uma translucidez do que um dia foi Roier. Uma sombra de um sorriso de quem amou, um castanho de um olhar que amava admirar todos os dias de sua vida.
Richarlyson, Bobby e Pepito agora eram apenas pequenas e translúcidas silhuetas sapecas que ele conseguia ver correndo por aquelas colinas de amaranto, se embolando e rolando nas flores altas com risadas que já não chegam mais aos ouvidos de Cellbit, apenas sentado sentindo o vento que se transforma em uma ventania.
Cellbit não mais se importava se sua vida foi um tornado porque, ao final de tudo, foi exatamente na calmaria do olho desse tornado que ele foi capaz de viver os melhores anos que sua vida poderia ter tido.
O tempo levava todas as coisas, as memórias duram menos ainda. Ele sabia que iria os esquecer, sabia que isso era uma questão de tempo até que eles sumissem de sua mente.
As memórias eram um presente divino temporário, mas Cellbit amaria cada uma das que restaram como apenas a transcendência do tempo o deixaria.
[...]
Um ser apenas verdadeiramente morre quando ele é esquecido. Naquele dia, faziam 300 anos que a sua casa existia.
Memórias não duram para sempre.
Naquele dia, aquelas silhuetas translúcidas finalmente se tornaram uma só com a multidão uniforme de sua mente e Cellbit soube naquele momento que, quem quer que esses tenham sido ou significado, eles tinham acabado de morrer.
Tudo o que ele tinha agora eram três pedaços de tecidos amarelo, vermelho e azul em seu bolso e uma bandana extremamente gasta e surrada amarrada ao seu pulso, ao qual frequentemente segurava em suas mãos. Cellbit não sabia mais a quem elas tinham pertencido e muito menos quem esses seres tinham sido, mas ele sabia que seu amor e a falta que ele sentia deles beirava ao imensurável.
Ele sentia que existiam seres que o estavam acompanhando pela eternidade, mas não sabia quem eles eram. Tudo o que ele via ao seu lado era sua pequena silhueta versão criança lhe dando as mãos e sorrindo contente, apoiando a cabeça em seu braço e olhando aquele belo pôr do sol.
E agora o detetive imortal estava ali, de pé em uma colina que lhe trazia uma sensação de que ele deveria estar lembrando de algo. Ele sentia que tudo aquilo era importante para ele; que aquele cafezal em sua cabana tinha um significado maior; que existia um motivo pelo qual ele girava todas as manhãs; pelo qual ele dava adeus para o pôr do sol; pelo qual ele escolheu morar perto daquela colina de amarantos.
Cellbit não sabia o que era, mas ele o fez mesmo assim porque amava amarantos.
Notes:
Obrigado por lerem!! Me diga o que acharam <3
faburao on Chapter 1 Sat 31 Aug 2024 05:06AM UTC
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Biahzita on Chapter 1 Sat 31 Aug 2024 05:10AM UTC
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renwthime on Chapter 1 Sat 31 Aug 2024 05:11AM UTC
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Sardinhaa on Chapter 3 Fri 21 Jun 2024 04:17PM UTC
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Katsuchi on Chapter 3 Sun 30 Jun 2024 07:39PM UTC
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Trevo3Folhas on Chapter 3 Fri 21 Jun 2024 06:00PM UTC
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Katsuchi on Chapter 3 Sun 30 Jun 2024 07:39PM UTC
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Chini on Chapter 3 Sat 31 Aug 2024 05:06AM UTC
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Chini on Chapter 3 Sat 31 Aug 2024 05:08AM UTC
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