Chapter 1: prólogo
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De todas as coisas que eu já tive de fazer nessa vida, subir uma escada que parecia nunca ter fim enquanto uma quantidade insalubre de álcool corria no meu sangue era de longe a mais fácil delas. Aquela era a primeira vez que eu bebia nos meus vinte e sete anos de existência e admito que devo ter bebido trezentos por cento a mais do que o meu corpo desacostumado com bebidas alcoólicas e entupido de antidepressivos aguentaria. Mas, bem, todo aquele álcool estava me dando forças para realizar algo que já deveria ter sido feito há muito tempo e que adiei somente por ser um covarde, por achar que em algum momento tudo magicamente mudaria para melhor.
Meu corpo balançava de um lado para o outro enquanto eu subia os degraus e eu agradecia pelo espaço ali ser estreito, ou eu já teria despencado e não era isso que eu queria... não ali.
Quando a porta que dava acesso ao terraço do prédio em que eu morava finalmente entrou em meu distorcido campo de visão, eu suspirei e a empurrei, torcendo o nariz ao ter o cheiro forte de ferrugem me atingindo; alguém precisava urgentemente trocar aquela porta, eu sentia que era possível ter tétano só de encostar nela. Assim que acessei o terraço, senti a brisa gelada da madrugada me abraçar, era tão gelada que meus braços desnudos – cortesia da regata que eu vestia – ardiam. Meus olhos também ardiam, mas eu não poderia culpar a brisa se já estava com eles marejados e ardendo antes mesmo de decidir ir ao terraço e começar a subir a escada.
Fechei os olhos, caminhei sem ver para onde estava indo, estava tonto e meio enjoado, mas principalmente triste. Nem bebida, nem remédio nenhum no mundo seria capaz de me salvar da tristeza em que eu estava afundado. As duras palavras proferidas pelo meu pai há menos de 30 minutos atrás, e que me fizeram sair completamente derrotado do apartamento em que morávamos, se repetiam em minha cabeça o tempo inteiro e eu não conseguia pensar em outra coisa.
Parei ao sentir meu corpo encostar na pequena parede de concreto que ficava na borda do terraço, não era tão alta mas servia como uma garantia de que ninguém caísse dali por acidente. O prédio em que eu morava com meu pai desde sempre tinha seus sete andares, eu sempre o achei muito alto e amava subir ao terraço para admirar o céu e a vista nos dias e noites mais difíceis de lidar com a minha própria insuficiência. Estar ali sempre me acalmava, mas naquela noite em específico não havia nada que pudesse me dar conforto. Talvez fosse o álcool piorando tudo, mas eu não conseguia raciocinar tão bem assim naquele momento, enquanto olhava para baixo.
A rua estava deserta por conta do horário e, sinceramente, o local em que eu morava nunca era muito movimentado. Minha visão estava finalmente focada e eu podia ver com precisão a calçada vazia da parte traseira do prédio. Eu já não tinha medo e a única coisa que eu desejava era dar um fim a todo sofrimento; não apenas o meu, mas também o do meu pai que não suportava a minha existência e sempre fez questão de deixar isso muito explícito para mim.
Sinceramente? Eu nunca culpei ou odiei meu pai por ser tão cruel, eu sempre entendi que ele vem de outra época e que nunca superou o fato da minha mãe ter morrido logo após o meu parto. Talvez tenha sido mais fácil para ele assumir que a culpa era minha, porque ele precisava de alguém para culpar e para descontar suas frustrações por perder a mulher que amava. E mesmo tendo sido criado em um ambiente hostil e sendo tratado com rispidez e indiferença, eu agradecia por papai não ter me abandonado, especialmente com todos os problemas que eu tinha com minha hiperatividade e, posteriormente, com a depressão. E eu não poderia deixá-lo, ele não tinha mais ninguém além de mim, mas naquela madrugada eu tive certeza de que ele ficaria melhor sem mim.
Passei as mãos no rosto, secando os requisitos das lágrimas que escorreram sem a minha permissão e que o vento não foi capaz de apagar. Com certa dificuldade por estar alcoolizado e quase sem nenhum senso de equilíbrio, eu subi na parede, me pus de pé ali e por uma última vez olhei para o céu. Não havia uma única estrela ali, mas eu conseguia ver algumas nuvens e era muito provável que chovesse em breve; achei a situação engraçada e até sorri, eu odiava chuva.
Olhei então para baixo, senti vertigem e acabei fechando os olhos, permitindo que meu corpo fosse para a frente e caísse. Me esforcei para encontrar boas memórias durante a queda, eu queria partir estando agarrado a qualquer mínima felicidade que tivesse existido em minha vida.
Pensei em Gaara, o meu namorado. Digo, ex-namorado. Eu poderia estar bravo com ele, odiá-lo por me deixar quando a única felicidade que eu tinha era ele, mas como eu poderia ter raiva se ele não tinha feito nada errado? Os dois anos em que estivemos juntos foram provavelmente os anos em que eu mais tive momentos felizes em toda minha vida e, sim, eu fui pego de surpresa quando Gaara me levou a um passeio algumas semanas atrás e me pediu para conversar.
Gaara era irritantemente honesto e cuidadoso, então ele não hesitou em me dizer – da melhor forma que podia – que seus sentimentos haviam mudado e que ele não desejava mais estar comigo como um namorado. E precisava confessar que desejava que ele tivesse simplesmente me abandonado, sem responsabilidade afetiva alguma, porque ao menos eu poderia odiá-lo por ir embora, eu poderia me convencer de que ele era um idiota que não me merecia, mas a verdade era que eu que não merecia ele. Gaara não tinha culpa por mudar de ideia e decidir partir. Ainda que o fim da nossa relação me doesse muito, eu sabia que ele havia sido a pessoa que mais me amou.
A queda pareceu durar uma eternidade, mas algo me diz que foram poucos segundos até que meu corpo encontrasse o solo de concreto. Pude ouvir o quebrar dos ossos, o sangue invadir minhas vias respiratórias e as lágrimas de dor escaparem dos meus olhos. Ainda mantive a consciência por um tempo, tossindo por estar engasgado e sufocado com meu próprio sangue, e nada me fez mais feliz que o momento em que tudo escureceu e eu, enfim, não senti mais nada.
Chapter 2: nova realidade
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Foi uma surpresa quando eu senti o conforto de algo extremamente macio sob meu corpo ao mesmo tempo em que eu ia recobrando a consciência, meus olhos se abriram e então piscaram rapidamente, em uma tentativa de se acostumarem com a claridade do ambiente em que eu estava. Levantei e sentei de maneira abrupta, fiquei confuso por não ter sentido nenhum tipo de vertigem – que era o que sempre acontecia quando eu levantava muito rápido – e uma sensação de completo desagrado me atingiu quando constatei que estava em um quarto desconhecido. Pus a mão em meu peito, sentindo meu coração bater normalmente apesar de eu estar assustado com a situação.
Eu ainda estava vivo. E, para a piora da minha confusão, totalmente intacto.
Tinha certeza de que havia pulado de um prédio de sete andares e me quebrado inteiro, então por que parecia que nada havia acontecido? Por que eu estava perfeitamente bem?
Levantei da cama, analisando o quarto em que eu estava. Era um quarto comum, possuía uma cama de solteiro (tão macia que parecia ser nova), uma mesa de cabeceira, um guarda-roupa que eu não tardei em abrir e descobrir que estava completamente vazio, uma porta que dava para um banheiro bem simples e que também não possuía nada demais, uma janela da qual eu não ousei me aproximar pois a mera ideia de me aproximar da claridade do sol que entrava por ela fazia minha pele arder, e uma porta que definitivamente deveria ser a que me tiraria dali. As roupas que eu vestia não eram minhas e estavam um pouco apertadas, mas nada que me causasse incômodo. Era um pijama de seda, um conjunto vermelho bordô que consistia em uma calça e uma camisa de mangas longas, era macio e tinha cheiro de canela; na verdade, o lugar inteiro parecia ter cheiro de canela e mais alguma coisa doce que eu não soube identificar na hora. Onde eu estava?
Fui até a porta em passos lentos, abri a porta devagar também, não negaria que estava preocupado e com um pouco de medo do que estava acontecendo. Não era possível que eu tivesse alucinado que pulei do terraço, mas ao mesmo tempo não era possível que eu ainda estivesse vivo e mais que isso: era impossível que eu estivesse sem nenhum arranhão ou dor em meu corpo.
Dei de cara com um corredor vazio e senti minha garganta seca ao novamente ter aquele cheiro doce invadindo os meus sentidos. Por mais burra que essa decisão pareça ser agora, foi o que me pareceu mais lógico a se fazer naquele momento, eu não hesitei em seguir em direção aquele cheiro. Ele não vinha de um lugar distante, o corredor – que tinha saída em ambas as direções – era curto e a direção que eu tomei dava em uma cozinha.
Na cozinha havia uma pequena mesa redonda de vidro e duas cadeiras, além do básico como geladeira, uma pia, armários, um fogão e também um homem que parecia muito concentrado em preparar algo ali. Ele tinha cabelos longos e pretos, era meio pálido e parecia ser um pouco mais alto que eu. O cheiro doce vinha do que ele preparava e eu ainda pensei em dar meia volta, fugir enquanto ele ainda não havia notado minha presença e torcer para que aquilo tudo fosse algum tipo de alucinação ocasionada pela mistura dos antidepressivos com as bebidas alcoólicas.
Porém, no exato momento em que me virei para me retirar o mais rápido possível, uma voz serena e que parecia envolver meus tímpanos e ressonar dentro da minha cabeça chegou até mim.
— Olha só, você está acordado. Finalmente.
Precisei voltar a ficar de frente para o homem desconhecido e, muito provavelmente, dono da casa em que eu estava. Ele carregava na mão direita um prato grande com diversas panquecas – ali eu finalmente reconheci o cheiro doce, era chocolate – e parecia genuinamente feliz ao me ver de pé ali. Eu não fazia ideia do que responder ou se deveria responder, eu estava perdido.
Por estarmos frente a frente, pude ver que ele tinha olhos vermelhos e meu primeiro pensamento foi que eu estava completamente ferrado, no entanto, eu não poderia julgar as pessoas de maneira tão abrupta e rasa. Vampiro ou não, eu deveria esperar para ver as reais intenções dele.
— Você deve estar confuso, não é? — Senti que aquilo foi muito mais uma afirmação que um questionamento, mas eu acabei assentindo como resposta — Por que não senta e come um pouco enquanto eu te explico tudo o que aconteceu?
Com a mão livre, ele apontou sutilmente para uma das duas cadeiras ali e eu, mais uma vez, assenti e me dirigi até o assento. Não era certo, nem muito inteligente, aceitar comida de alguém que eu não conhecia, muito menos continuar naquele lugar que até o momento também era desconhecido para mim; mas eu tinha em mente que não poderia perder muitas coisas considerando que eu já tinha tentado me matar. Se eu desejava tanto acabar com o sofrimento que o viver me trazia, que mal faria estar em um lugar estranho com alguém que poderia me matar?
Sentei, o cheiro da comida adentrava meu nariz e quase me fazia arrepiar, não sabia se pela fome ou se por ser um aroma tão agradável. E senti meu estômago roncar enquanto o prato com as panquecas era posto na mesa, bem na minha frente; o barulho foi alto o bastante para o homem ouvir, já que ele deixou um curto riso escapar, e nem hesitei em murmurar um pedido de desculpas.
— Ah, você fala. — Comentou, parecendo aliviado. Virei a cabeça só o suficiente para vê-lo e pude observá-lo indo até um dos armários e tirando de lá um garfo e uma faca, que ele logo trouxe para mim — Dormindo por tanto tempo, nem me admira que esteja com tanta fome.
— Obrigado. — Agradeci enquanto recebia os talheres e, se eu não estivesse com tanta fome, teria questionado naquele momento por quanto tempo eu dormi.
O primeiro pedaço de panqueca que pus na boca tornou impossível não deixar um som de satisfação escapar dos meus lábios. Aquela possivelmente era a melhor panqueca que eu já havia comido em toda minha vida e isso não era um exagero por culpa da fome. Continuei comendo, devagar, e além da panqueca em si e do chocolate, eu senti algo agridoce que complementava o sabor e o deixava divinamente bom, mas eu não fazia a mínima ideia do que era aquilo.
— Eu imagino que vendo os meus olhos, você saiba o que eu sou, então não vou me estender nisso. — Começou a falar, puxando a outra cadeira para mais perto e sentando logo após, assim poderia ficar de frente para mim sem a mesa entre nós — Meu nome é Itachi Uchiha, um vampiro, e como deve imaginar, estamos em minha casa. — Naquele momento, me vi obrigado a deixar de lado a panqueca que seria minha terceira e prestar total atenção nas palavras que me eram ditas — E você é...?
— Naruto. — Respondi, e mesmo com o pequeno arquear de sobrancelha de Itachi, não fiz questão de lhe dizer meu sobrenome.
— Bem, Naruto, eu estava voltando para casa após uma comemoração entre amigos e, de maneira bem resumida, eu te vi desacordado e banhado em sangue na parte de trás de um prédio e decidi ajudar. — Ao menos não havia sido tudo alucinação, mas eu não estava satisfeito com a situação — Algo me disse desde o começo que você não tinha sido atacado por ninguém, mas mesmo todo estraçalhado no chão, você não ia morrer tão cedo e eu quis te poupar da dor. — Então nem para me matar eu servia — Eu te trouxe para cá e estive cuidando de você durante o tempo em que esteve dormindo. Nove dias, antes que pergunte.
— Eu dormi por nove dias?
— Sim. — Confirmou — Até me preocupei um pouco com sua demora para despertar, mas você estava em um estado que mesmo o vampiro mais forte não seria capaz de te curar depressa. Seu corpo e sua mente precisavam desse longo período de descanso para os ossos voltarem ao lugar e os órgãos se regenerarem. Já deve ter notado que estou satisfeito em ver que está bem e inteiro, — Essa realmente foi a primeira coisa que reparei — embora nem tão vivo assim.
— Como é que é?
— Já se olhou em algum espelho hoje? — Abri a boca para responder, mas fui interrompido — Não responda, eu sei que não.
Eu não estava gostando nada do rumo que aquela conversa parecia estar tomando. E, apesar do pequeno sentimento de desconforto, a angústia e tristeza que pareciam sempre me acompanhar não se fizeram presentes em nenhum momento desde que acordei; era estranho estar praticamente neutro com toda a situação, tinha algo errado ali e eu não demoraria a descobrir o que era.
— Naruto, eu acredito que esteja ciente que uma queda daquela altura e com um período consideravelmente longo sangrando, ainda que você não morresse, as chances de métodos humanos te salvarem sem que nenhuma sequela ficasse eram praticamente zero. — Assenti, lento, minhas mãos estavam sobre minhas coxas, firmemente agarradas no tecido da calça de seda; eu estava começando a ficar tenso — Eu mordi você. Não te transformei, não por completo. Digamos que eu te dei metade do que um vampiro pode ser, só o bastante para você se curar sem sequelas.
Ouvi tudo no mais completo silêncio e estava tão dormente que nem mesmo cogitei me revoltar, discutir sobre o que Itachi tinha feito. Ele disse que sabia que eu pulei daquele prédio – não com essas exatas palavras, mas eu entendi –, o que significava que ele sabia que eu queria morrer e mesmo assim salvou a minha vida. Não que eu fosse realmente brigar se estivesse com todas as minhas emoções no lugar, eu raramente brigava, evitava conflitos o máximo que podia, mas Itachi bem que merecia um puxão de orelha por me salvar sem o meu consentimento.
Respirei fundo, estranhando o fato de ainda ter ar em meus pulmões e sangue correndo em minhas veias. Eu sempre pensei que meio-vampiros estivessem mais para o lado dos mortos que dos vivos, na verdade, sempre pensei que a única forma de um meio-vampiro existir fosse quando um humano e um vampiro se relacionavam e geravam uma criança. Pelo jeito, tinha muita coisa que eu não sabia e que a partir dali eu teria que saber. Itachi parecia esperar uma reação minha.
— E isso é possível mesmo? Me transformar pela metade?
— Sim, eu não queria te tornar um imortal sem que você desejasse isso. — Fazia sentido, além disso, transformar um ser humano exigia medidas burocráticas e jurídicas, não era um processo simples — Eu injetei veneno em você na quantidade certa para te salvar mas não te tornar um dos meus e, segundo a lei, eu também não posso fazer isso. Sabe o que significa?
— Que a gente tem um problema agora. — Respondi de forma automática, minha boca sendo mais rápida que minha capacidade de ponderar se aquilo realmente deveria ser dito.
— Teremos um problema apenas se alguém souber que não nos conhecíamos antes de eu te morder. — Respondeu, um sorriso um tanto travesso se formando em seus lábios — A lei tem uma pequena brecha, Naruto, então vamos contar com ela, certo?
— Que brecha?
— É normal que humanos e vampiros que possuem algum tipo de relação afetiva, seja familiar, amorosa, ou até mesmo uma amizade tenham vínculos formados através de uma mordida. Assim, o vampiro em questão pode se alimentar deste humano com quem tem o vínculo e ao mesmo tempo garantir a segurança dele. — Eu sabia disso, mas qual era a relação daquilo com a nossa situação? — Algumas vezes, ao tentar formar o vínculo, vampiros erram a dosagem de veneno e acabam transformando seus humanos “pela metade”, — Fez aspas com os dedos — como você citou. E, nesses casos, se comprovada a relação afetiva entre as duas partes, a lei não se aplica.
— E isso quer dizer quê...?
— Estou dizendo que no segundo em que te mordi, eu criei um vínculo entre nós. — Explicou e eu não devo ter conseguido conter minha expressão de descrença — Espera. Você achou que eu te mordi por impulso de te salvar, sem nem pensar nas consequências disso? — Me encolhi na cadeira, meio sem graça, mas Itachi logo riu e prosseguiu: — Enfim, isso não importa. O fato é que agora temos um vínculo, mas não se preocupe, ele vai durar só por alguns meses caso eu não me alimente do seu sangue, coisa que eu não vou fazer, fique tranquilo, e creio que seja tempo o suficiente para fingirmos uma amizade e evitarmos problemas com a lei. O que me diz, Naruto?
— Como assim?
— Eu não posso decidir isso sozinho, sabe? Além disso, se descobrissem que eu te mordi sem nos conhecermos e sem o seu consentimento, o único a pagar seria eu, você poderia continuar sua vida normalmente independente do vínculo. Estou sugerindo essa farsa para salvar a minha pele, mas se você não quiser fazer parte disto, eu vou entender, não é obrigação sua me ajudar.
Por um lado, Itachi tinha razão e estava me oferecendo um boa oportunidade de seguir minha vida sem maiores problemas, de fingir que nada tinha acontecido. No entanto, eu ainda possuía muitos questionamentos sobre muita coisa e minha natureza altruísta me impedia de simplesmente sumir da vida de Itachi e permitir que ele acabasse sendo acusado de um crime – que ele cometeu, mas não com más intenções –, permitir que ele pagasse por isso; a punição para aquele tipo de crime era o fim da existência do vampiro criminoso e eu não queria que acontecesse.
— Mesmo depois que o vínculo acabar, — Comecei, meio incerto, mas Itachi gesticulou para que eu continuasse — eu ainda vou ser um meio-vampiro?
Itachi assentiu e eu acabei por suspirar. Não estava realmente triste, mas precisava demonstrar meu descontentamento com minha nova realidade. Pensava que seria sempre daquela forma a partir dali, sentimentos inibidos e não sentidos por completo: aquilo era ser um vampiro?
— Estou preocupado de acabar sendo informação demais para sua mente agora, mas imagino que você tenha muitas perguntas e creio que seja melhor responder todas elas enquanto seu corpo processa a transformação.
Ali eu já me dei conta de que Itachi falava “imagino que” e “creio que” com uma frequência absurda e isso me fez rir internamente. Infelizmente eu ainda teria minhas emoções um tanto distantes por um tempo e não iria conseguir me expressar tão bem quanto gostaria.
— Aliás, se me permite fazer uma pergunta antes que eu comece a responder as suas... Você não está conseguindo sentir suas emoções direito, não é? — Não tardei em responder que “sim” e ele continuou — Isso é o seu corpo se acostumando com algumas coisas depois de acordar, vai durar por um tempinho ainda, mas não é permanente. Logo mais, vai estar tudo normal.
— E com isso, já podemos riscar uma pergunta da minha lista.
Mais uma vez a minha boca foi mais rápida que minha noção, mas não era como se tivesse algo errado com o que eu falei. Itachi riu depois de me ouvir falar, parecia genuíno, como se eu realmente tivesse dito algo engraçado. Eu não entendia qual parte do que eu disse foi engraçada.
— Desculpe, eu não deveria rir disso, mas é engraçado te ver falando sem nenhuma emoção na voz e quase sem expressão no rosto. — Se eu pudesse sentir, talvez tivesse ficado irritado com aquilo, mas ao invés de irritação, o que surgiu no meu rosto foi outra coisa — Isso foi um sorriso? Talvez os efeitos colaterais do veneno sumam mais cedo do que pensei. Isso é bom.
— Vou precisar tomar sangue para sobreviver? — Essa foi a primeira coisa que surgiu em minha mente quando os meus olhos esbarraram nos olhos vermelhos de Itachi.
— Não. O ideal seria você consumir sangue de tempos em tempos, mas dá para viver bem somente com alimentação humana. — Fiquei aliviado ao ouvir aquilo, eu não queria ter que beber sangue — Talvez queira saber que tem sangue nessas panquecas que acabou de comer. — Talvez eu quisesse vomitar as panquecas — Elas eram para mim. Eu, particularmente, gosto de muitas receitas humanas e costumo acrescentar sangue em algumas para que a refeição não seja em vão.
Eu sabia que vampiros podiam consumir comida humana sem problemas, ainda que eles não sentissem aquele tipo de fome e que a comida não os saciasse realmente. E não pude evitar me sentir um tanto burro por ter aceitado comer aquelas panquecas mesmo sabendo que Itachi era um vampiro. Como não pensei na possibilidade de ter justamente sangue na comida?
— Eu senti algo diferente, mas não pensei que... — Me dei por vencido — Estavam boas.
— Tudo bem não se sentir confortável com a ideia do sangue, eu deveria ter avisado. Você não precisa de sangue, Naruto, mas é bom se acostumar com a ideia de que sangue vai parecer algo incrível no seu olfato e no seu paladar de agora em diante.
— Quando você me mordeu...
Não completei a pergunta, mas Itachi pareceu entender, pois logo me respondeu:
— Não tomei seu sangue, me esforcei para não deixar entrar na minha boca. Primeiro porque nunca foi minha intenção me alimentar, segundo que até mesmo um ser humano poderia sentir o cheiro de álcool que vinha de você. Álcool estraga o gosto do sangue, eu não suporto.
— Desculpa...?
— Não precisa. Mais alguma pergunta?
— Você disse algo sobre eu me olhar no espelho, por quê?
— Seu olho direito está vermelho igual aos meus, mas creio que vai voltar ao normal.
— Os seus voltam?
Como resposta, pude ver Itachi fechar os olhos por alguns instantes e ao reabri-los, eles já não eram mais vermelhos, mas sim pretos como seus cabelos. Aquilo me pegou desprevenido.
— A maioria dos vampiros só mantem os olhos vermelhos para os humanos os identificarem com mais facilidade ou para enxergar melhor, mas não precisamos disso realmente. Os meus ficam vermelhos quando eu vejo sangue e então acabo esquecendo de ajustá-los depois, mas é algo totalmente controlável, você vai aprender a controlar em algum momento também.
Eu não tinha mais perguntas, não naquele momento. E, embora não fosse ruim ficar no mais completo silêncio com Itachi, eu sabia que precisava lhe dar uma resposta sobre o vínculo. Ou melhor, sobre a farsa que ele propôs para se livrar de problemas. E não importava o quanto eu pensasse, minha mente só conseguia chegar em uma mesma conclusão. Minha decisão já estava tomada mesmo antes das minhas perguntas serem respondidas.
— O que acontece se eu aceitar sua proposta?
— Eu pensei bastante nisso durante os dias em que você esteve desacordado, Naruto. Primeiro, precisamos de fato nos conhecer melhor, saber dos gostos e desgostos um do outro, ou qualquer idiota com dois neurônios vai ser capaz de ver que estamos mentindo. E a partir disso, seguimos agindo como se fôssemos próximos. — Itachi falava gesticulando, suas mãos se moviam de um lado para o outro, para cima e para baixo, mas era tudo muito controlado, ele estava apenas pontuando as próprias palavras — E também já tenho uma história para contar caso perguntem de onde nos conhecemos, se você concordar, perfeito; se não, podemos pensar em alguma outra coisa. — Ele parou de falar por alguns instantes, esticando o braço para pegar uma das panquecas no prato e só então continuou — Costuma frequentar livrarias, Naruto?
— Às vezes. Por quê?
Itachi apenas sorriu enquanto levava a panqueca até a boca e eu não entendi sua satisfação.
Chapter 3: carmilla
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E talvez eu não precise dizer isto pois parece ser óbvio o que fiz após perguntar a Itachi o que aconteceria se eu aceitasse sua proposta e ter uma resposta dele, explicando perfeitamente bem como faríamos tudo funcionar. Mas, de qualquer forma, digo que aceitei aquela farsa, não queria que Itachi tivesse problemas por me salvar – ainda que ele tenha me salvado por vontade própria, eu nunca pedi nada e, aliás, preferia não ter sido salvo – e por isso aceitei a proposta e seus termos.
A história em que ele pensou para explicar como nos conhecemos era perfeita e eu apenas pedi para incrementar alguns detalhes para que ficasse o mais próximo possível de coisas que eu realmente faria em uma relação de amizade com alguém.
Itachi me contou que era dono de uma pequena livraria, que não ficava muito distante da casa em que estávamos e, coincidentemente, eu já havia ido até dita livraria algumas vezes; estranhei nunca ter visto Itachi por lá, mas ele explicou que nem sempre estava no balcão da recepção, preferindo organizar os livros em suas prateleiras quando não havia movimento e organizar os livros armazenados em outras salas. Ela possuía o nome Uchiha bem desenhado na fachada e era confortável e tranquila; lembrava de já ter comprado alguns livros no lugar. Não era tão próxima do prédio em que eu morava, mas pouco mais de vinte minutos no metrô não eram nada demais.
A ideia de Itachi era basicamente a de que nos conhecemos em uma das minhas idas até sua livraria e que – como ele mesmo disse e eu repito – “o nosso santo bateu”, então decidimos manter contato e acabamos nos tornando bons amigos. E, por sermos bons amigos, Itachi não hesitou em criar um vínculo para me salvar quando eu, bêbado, tropecei e caí do terraço do meu prédio. Era uma boa história e para torná-la ainda melhor, precisávamos apenas nos conhecermos de verdade para sermos convincentes o bastante. No entanto, isso levaria um tempo e eu estava com um olho – que eu conferi no espelho do banheiro logo após concordarmos com a história que usaríamos e o que faríamos exatamente – de um tom tão forte de vermelho que parecia brilhar.
E eu não fazia ideia de como controlá-lo. A princípio, eu sugeri esconder meu olho de alguma forma, mas a ideia era idiota e não funcionaria por muito tempo. A ideia de Itachi já foi um pouco mais ousada, ele sugeriu que eu ficasse na casa dele enquanto aprendia a controlar isso, ele me ajudaria, tentaria me ensinar da forma como ele aprendeu a controlar os próprios olhos.
E foi por culpa da sugestão de Itachi que no mesmo dia, de banho tomado, cheirosinho e vestindo algumas roupas de dito cujo, lá estava eu na garupa de uma moto, agarrado em Itachi como se minha vida dependesse disso e vez ou outra eu acabava batendo a cabeça – devidamente protegida pelo capacete – na parte de trás do capacete de Itachi (o que me fazia pedir desculpas toda hora). Além de ter propositalmente penteado meu cabelo de uma maneira em que os fios ficassem em meu rosto, ainda tinham óculos escuros escondendo meus olhos.
Estávamos indo até meu prédio. Eu precisava buscar algumas roupas e objetos pessoais – embora Itachi tivesse oferecido comprar para mim, coisa que rejeitei prontamente –, e me certificar de que meu pai estava bem, que ficaria bem sem mim. Ele sempre dizia que seria mais feliz se eu não existisse, mas aquelas palavras me pareciam mais frustração por ter perdido minha mãe quando eu nasci do que vontade genuína de que eu sumisse de uma vez por todas da vida dele.
Ao chegarmos no prédio, Itachi adentrou o estacionamento que ficava no subsolo para não ficar me esperando na rua, com o sol o incomodando. Importante salientar que ele não era o único incomodado com a claridade ali, eu também sentia tudo arder um pouco e, se pudesse, teria ficado triste com a situação, eu adorava o sol e não poderia mais ficar exposto a ele como gostaria.
Eu morava no quarto andar e raramente usava o elevador para chegar até lá, não só por detestar a sensação claustrofóbica que ele me causava, mas também porque eu nunca tinha pressa para entrar em casa, nunca tinha pressa para adentrar o meu inferno pessoal. Mas naquele momento, eu decidi ter pressa. Foram nove dias dormindo, segundo Itachi, o que significava também que eu havia passado nove dias desaparecido. Me perguntava se meu pai havia se dado conta do meu sumiço, se estava preocupado comigo e se estava a minha procura.
Algo me dizia que não, mas eu gostaria de me agarrar ao fio de esperança que dizia “sim”.
Quando as portas do elevador se abriram, eu suspirei e, a passos lentos, me dirigi ao apartamento que logo eu já não mais dividiria com meu pai. A porta não estava trancada – nunca ficava, já que papai ficava o dia inteiro em casa – e eu passei por ela sem muitas cerimônias. Havia o cheiro de algo extremamente enjoativo espalhado por todo o apartamento e eu retorci o nariz, fazendo uma careta que não fui capaz de controlar. O cheiro adocicado invadia meus sentidos, mas não era bom como o doce da casa de Itachi, que me confortava e trazia uma sensação gostosa.
Meu pai estava sentado no sofá da sala, vendo televisão, e nem se deu ao trabalho de desviar os olhos da tela para se dar conta da minha presença, mas ele sabia que eu estava ali pois disse:
— Pensei que não fosse voltar nunca.
— Pai, precisamos conversar. — Comecei, me irritando minimamente ao ver que ele não tiraria a atenção da televisão para me escutar — Eu estou indo embora.
Minhas palavras fizeram ele me olhar, o rosto sério e um olhar que praticamente dizia “isso é brincadeira, certo?”. Agradeci internamente pelo veneno ter adormecido uma boa parte das minhas emoções e pelos óculos escuros esconderem meus olhos que certamente entregariam o que eu estava pensando naquele momento. Vi meu pai levantar do sofá e caminhar até mim com o ar de superioridade que ele sempre tinha, o olhar carregado de desdém e ao tê-lo a menos de dois passos de distância, eu finalmente me dei conta; o cheiro que me enjoava vinha dele.
— Indo embora para onde? — Questionou, mas não me deu tempo para responder — Que eu saiba, seu namorado esquisito terminou contigo. Você não tem ninguém além de mim, pirralho, e também não tem dinheiro para manter um lugar sozinho. Que outra pessoa seria maluca o suficiente para te deixar morar com ela? Eu só te aturo porque infelizmente você tem o meu sangue. — Eu já estava com a resposta na ponta da língua, responderia tranquilo, mas ele prosseguiu — A menos que... Ah, acho que entendi agora.
— O quê?
— Isso tem a ver com os dias que esteve fora de casa, não é? — Ele abriu um sorriso de mais puro escárnio e bem lá no fundo, eu temi o que viria a seguir — E essas roupas aí não são suas, elas são de marca cara, eu reconheço de longe. Para quem você está dando, pirralho?
De todas as coisas que meu pai já havia me dito durante toda a minha vida, aquela era de longe a menos cruel, mas era a primeira vez que ele insinuava que eu estava – até me dói um pouco usar a mesma palavra que ele – dando para alguém para conseguir roupas e um lugar para morar. No fim, eu apenas respirei fundo, ignorando as palavras do meu pai e decidido a simplesmente terminar o que eu tinha para dizer, pegar minhas coisas o mais rápido possível e ir embora.
— Eu só vim me certificar de que o senhor ficaria bem sem mim, mas agora eu vejo que o senhor vai ficar até melhor sem minha presença. — Ele riu, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, eu o cortei — Vou pegar algumas coisas minhas e sair. Boa sorte e boa vida para o senhor.
E assim, me dirigi ao meu quarto, não tardando em retirar uma mochila grande (que estava com um cheiro um pouco desagradável pelo tempo que ficou guardada) do guarda-roupa e coloquei rapidamente as minhas coisas dentro dela. Carregador, fones de ouvido, escova de dentes, todas as minhas roupas – que eram poucas, afinal –, alguns poucos produtos de cuidado pessoal, como shampoo e condicionador. Eu não tinha muita coisa, não usava muita coisa. Nunca fui vaidoso.
Com tudo dentro da mochila, saí do quarto. Na sala, bem ao lado da televisão, estava o meu celular, exatamente no mesmo lugar em que o deixei ao sair nove dias atrás; peguei o aparelho, sem dar muita atenção ao meu pai, que parecia em choque, ainda em pé no mesmo lugar em que estava quando eu fui para o quarto. Ele parecia não acreditar que eu estava mesmo indo.
— Acho que é isso. — Murmurei, mas sei que ele me ouviu — Até algum dia... quem sabe.
Saí sem olhar para trás e desci de elevador, apenas para não precisar me demorar naquele prédio. E, ao chegar no subsolo, foram necessários apenas alguns passos para que eu visse Itachi encostado em sua moto com os dois capacetes em mãos e uma expressão que parecia compreensiva até demais, que parecia me dizer que ficaria tudo bem a partir daquele momento. E eu sorri meio sem jeito enquanto caminhava até ele, eu tinha minhas dúvidas de que tudo iria melhorar.
Mas no fundo eu torcia para que melhorasse.
Naquele dia, não fizemos muito mais que voltar para a casa de Itachi, organizar minhas coisas juntos e repassarmos mais alguns detalhes da história que contaríamos sobre nossa amizade. Eu também pude fazer um tour pela casa, conhecer todos os seus cômodos – sem exceção – e dar uma breve olhada na vizinhança, que nem possuía tantas pessoas assim. A casa de Itachi não era grande nem luxuosa, mas abrigava duas pessoas perfeitamente bem e era simples, aconchegante.
Quanto ao cheiro de canela que existia em cada centímetro da residência, Itachi explicou que se tratava simplesmente do cheiro dele. Ele ainda disse algo sobre a personalidade, as atitudes e os sentimentos das pessoas (e vampiros) estarem refletidas diretamente no cheiro delas, eu não prestei tanta atenção quanto provavelmente deveria, mas consegui entender o que ele quis dizer.
E, enquanto ajudava Itachi com a louça do jantar (as secando e guardando), também tomei conhecimento da rotina que Itachi já possuía ali e nem me admirei – independente da falta de emoções por culpa do veneno – ao descobrir que ele tinha uma rotina, cronogramas, um planejamento inteiro de seus dias, semanas e meses. Os compromissos e afazeres estavam todos devidamente anotados no celular dele e lembro que achei adorável o lembrete sobre me contar com detalhes como seria minha vida dali em diante. Ele ensaiou tudo o que ia me dizer.
— Eu gosto de me planejar, de ter certeza do que vai acontecer e de estar preparado no caso de algum imprevisto, manter rotinas e cumprir prazos é muito importante para mim. — Foi a justificativa para tanta organização — Eu não sei conviver tão bem com outras pessoas porque elas geralmente atrapalham um pouco os meus planejamentos, então se você sentir que estou sendo controlador demais, por favor, me avise. Eu te coloquei nessa situação, nada mais justo que permitir que você faça suas coisas normalmente, sem pressão, e adaptar meus planos a isso.
— E eu acho muito mais justo eu me adaptar as suas coisas, Itachi. — Rebati — Não é como se eu tivesse muito o que fazer ou planejar agora... não com esse olho vermelho.
— Você não tem um emprego?
— Eu sou fotógrafo, trabalho quando alguém me contrata, mas também vendo algumas fotografias por conta própria para jornais e essas coisas.
— Então eu tenho um Peter Parker me ajudando com a louça? — Brincou.
— A diferença é que eu não fui mordido por uma aranha, mas por um vampiro.
Um sorriso surgiu em meu rosto quando Itachi riu, mas logo eu o desfiz, um pouco surpreso com a demonstração de genuína felicidade da minha parte. Franzi o cenho, aquilo era estranho.
— Acho que suas emoções vão voltar muito antes do que eu previ, isso é muito bom.
Aquelas palavras fizeram uma questão nascer em minha mente, me perguntava se realmente seria bom ter todas as minhas emoções de volta. Até alguns dias atrás quase tudo que eu sentia era dor e angústia, a eterna sensação de que eu não mereço estar vivo, que não mereço nenhuma simpatia.
— Algum problema, Naruto?
— Não tenho certeza se quero voltar a sentir.
Itachi desligou a torneira, me entregando um último prato, ele parecia estar ponderando o que eu havia acabado de dizer. Ele me entregou o prato ainda em completo silêncio e eu apenas o sequei e guardei sem fazer perguntas. Era um silêncio desconfortável, eu havia dito algo errado.
— Isso tem algo a ver com o motivo de você ter pulado daquele prédio? — E eu simplesmente travei no lugar, tinha a sensação de que eu não estava nem respirando — Naruto? — A voz de Itachi parecia distante — Naruto!
Foi só ao sentir duas mãos firmes em meus ombros, literalmente me chacoalhando de volta à realidade. Puxei o ar com força, me sentindo meio mole, fraco, completamente perdido. Meus olhos se encontraram com os dele e eu me assustei momentaneamente com a proximidade em que estávamos.
— Desculpa. — Murmurei.
— Não precisa. Eu não deveria ter feito essa pergunta. — Itachi se afastou — Me desculpe por isso. Às vezes, eu tenho o péssimo hábito de me meter no que não é da minha conta. Você não só pode, como deve, me dizer se eu passar dos limites e não precisa se sentir obrigado a responder nada que eu perguntar.
Deu para perceber no momento em que você salvou minha vida sem que isso lhe fosse solicitado, senhor Itachi Uchiha. Eu gostaria de ter dito isso, mas preferi manter apenas em pensamento. Aquilo poderia me causar problemas. Independente de ter sido salvo sem pedir, eu entendo que Itachi não é uma má pessoa.
Vampiro, não pessoa. Não é um vampiro ruim.
Ele tem se mostrado alguém extremamente solícito e que aparentemente se importa o bastante para continuar me ajudando mesmo sem ter obrigação.
— Não tem nada errado com a sua pergunta. — Falei, tentando parecer firme — Só me pegou desprevenido. Não sei se consigo falar sobre isso agora, mesmo sem sentir direito... dói.
— Tudo bem. — Ele assentiu — Já acabamos aqui, eu vou estar no meu quarto caso precise de algo. Vai ficar bem sozinho?
— Não precisa de preocupar. — Garanti — Acho que você já fez até demais por mim.
— Demais? — Ele riu — Não sei o que aconteceu, o que você já passou nessa vida, mas creio que nada disso implique que você não merece ajuda. Não acho que eu esteja fazendo demais, você parece ser um bom rapaz, Naruto, sinto isso desde a primeira vez que te vi.
— Quer dizer, quando me viu quase morrendo em uma calçada?
— Não, Naruto. — Respondeu — Quando você foi ao meu estabelecimento em uma sexta-feira treze e comprou Carmilla, foi ali que te vi pela primeira vez.
Itachi não esperou uma resposta minha, se retirou da cozinha quase como um relâmpago, coisa que me assustou. Teria entrado em desespero se não estivesse com os sentimentos contidos e quase inexistentes. Eu deveria ter estranhado o fato de ele salvar um desconhecido e de perguntar justamente se eu costumava frequentar livrarias antes de me sugerir uma história de como nos conhecemos. Eu realmente nunca tinha visto Itachi em sua livraria e a explicação dele para isso era plausível, mas isso não significa que ele nunca tivesse me visto.
Aquilo tudo era preocupante e, no mínimo, duvidoso. Eu não sabia o que pensar.
Chapter 4: bom demais para ser verdade
Chapter Text
Eu não dormi naquela noite.
Não foi necessariamente por insônia ou por alguma preocupação, mas simplesmente porque eu não sentia sono algum. Talvez fosse efeito de não ser mais cem por cento humano e ter passado mais de uma semana em sono profundo. Não sei dizer.
Passei a noite inteira deitado no sofá e me surpreendia não ter acordado completamente acabado e dolorido. Sem celular, sem televisão, eu apenas me afundei em diversos pensamentos conflituosos sobre minha atual situação. Pude notar o nascer do sol pela claridade transpassando as janelas de vidro e as cortinas.
A casa de Itachi era estranhamente bem iluminada pelo sol considerando que aquele era o lar de um vampiro. E o sol no céu foi o que me fez levantar.
Itachi foi bem direto quando disse que eu deveria tratar esta casa como minha e me sentir livre para fazer o que quisesse, então mesmo um tanto incerto eu decidi passar um café.
Me sentia inquieto, poderia ser um sinal de que minhas emoções realmente voltariam logo. Me esforcei para dispersar qualquer pensamento sobre isso enquanto fazia o café, tinha quase certeza de que Itachi bebia café; afinal, por que ter café em casa quando se mora sozinho se você não toma? Sendo assim, fiz o suficiente para nós dois e só depois de pronto me dei conta de que não deveria ter colocado açúcar sem saber antes como Itachi gosta do café dele.
Eu particularmente gosto do café docinho, mas nada exagerado.
Balancei a cabeça de um lado ao outro, tentando não pensar muito naquilo. Mais importante que qualquer coisa era conseguir conversar melhor com Itachi sobre o que ele havia me dito na noite anterior. Ele me salvou por que me “conhecia”? Não fora apenas um ato de bondade genuína para com um desconhecido, então?
Enchi uma xícara com café, indo até a mesa da cozinha logo em seguida, sentei-me em uma das cadeiras e calmamente levei a xícara aos lábios, me arrependendo no exato momento em que o líquido quente encostou em minha boca. Passei a língua em meu lábio inferior, deixando um muxoxo escapar por ter me queimado com o café. Resolvi colocar a xícara sobre a mesa e esperar por alguns instantes antes de beber.
E em uma fração de segundos, apenas tempo o bastante para que eu piscasse – e isso não é um exagero –, Itachi estava na cozinha. A complexidade das habilidades de um vampiro não eram amplamente divulgadas pelas autoridades e, no geral, pessoas comuns não sabiam muito além da sede de sangue e sensibilidade a luz do sol. Eu já havia ouvido uma coisa ou outra sobre velocidade e força extrema, mas nunca tive a certeza pois nunca convivi de fato com um vampiro. Mas, tendo em mente a forma como Itachi sumiu da cozinha na noite anterior e como apareceu agora, eu não tinha dúvidas.
Ele era super rápido.
— Bom dia.
O cumprimento me tirou de meus pensamentos e eu até me sobressaltei um pouco na cadeira. Desejei um bom dia também e decidi finalmente tomar o meu café.
— Isso é café?
— Uhum.
Itachi rapidamente – humanamente rápido, quero dizer – buscou uma xícara em um dos armários e a encheu de café, logo vindo para a mesa e ocupando a outra cadeira disponível. Eu tomava meu café de forma lenta, apreciando o sabor adocicado em minha boca e sentindo a cabeça um pouco mais leve. Eu realmente gostava muito de café. E o Uchiha deu um generoso gole no líquido e permaneceu quieto por segundos que pareceram uma eternidade, os olhos negros mirando a xícara de porcelana atentamente.
— Doce.
— Desculpa. Eu deveria ter perguntado antes como você gostava d-
— Eu não disse que não gostei. — Interrompeu, um pequeno sorriso adornando seus lábios — Eu prefiro meu café sem açúcar, mas não desgosto dele doce.
— Vou lembrar disso na próxima.
— Sempre acorda cedo assim? — Não houve resposta de minha parte e isso pareceu ser o bastante para Itachi tirar suas próprias conclusões — Você não dormiu.
Aquilo não havia sido uma pergunta, mas o tom não era de julgamento. Sendo sincero, eu tinha a impressão de que ele estava preocupado com a própria afirmação.
— Só não tive sono. — Expliquei — Não é normal?
— Não para alguém que ainda é meio-humano, mas eu suponho que seja algum efeito colateral de ter passado os últimos dias inconsciente. — Como eu havia pensado — Você está tenso. Certeza de que está bem?
— ‘Tô. — Suspirei, depositando minha xícara (agora vazia) sobre a mesa — Só fiquei pensativo depois de ontem. — Itachi ergueu as sobrancelhas, como se me dissesse para continuar — Você disse que me viu pela primeira vez na sua livraria, mais especificamente quando eu comprei Carmilla em uma sexta-feira treze. Isso foi há meses atrás, como...?
Itachi passou o indicador em uma mecha de cabelo, a colocando atrás da orelha. Seus fios estavam presos em um coque e, eu precisava admitir, ele ficava bem com o cabelo daquele jeito.
— Eu tenho uma boa memória, Naruto. — Começou — Há uma sala atrás da recepção, com uma janela enorme. O vidro é fumê, o que significa que quem está dentro dela consegue ver o que se passa do lado de fora, mas o contrário não acontece. — Explicou — Eu te vi enquanto estava dentro da sala e, mais tarde, o recepcionista... meu irmão, Sasuke, comentou comigo sobre um rapaz loiro comprando Carmilla em uma sexta-feira treze, ele achou engraçado. Me desculpe, eu devo ter te assustado.
— Um pouco.
— Se serve para amenizar a situação, você deveria saber que eu só te reconheci depois de dois dias. Quando eu decidi te salvar, eu não fazia ideia de quem você era. — Não tenho certeza da expressão que eu tinha naquele momento, mas eu sinto que não parecia convencido — Sabe que não precisa acreditar em mim, não sabe? Você não me conhece, não tem porque-
— Eu acredito. — Interrompi — Isso tudo é um pouco estranho, mas você tem sido tão legal comigo, solícito, e eu não vejo motivo algum para não confiar em você.
— Naruto. — Seu tom era sério e eu fiquei confuso ao vê-lo arrastar a própria cadeira para trás, se distanciando da mesa e de mim — Isso é perigoso em tantos níveis.
— O quê?
— Eu realmente não tenho nenhuma má intenção, mas eu me sinto perdido te vendo simplesmente confiar e concordar com o que eu digo apenas porque eu te trato bem. — Pisquei algumas vezes, me surpreendendo com o rumo que a conversa estava tomando — Ou você não confia em mim e está torcendo para que eu faça algo?
— De verdade? — Engoli a seco — Algo me diz que você é um bom homem. Mas, você sabe, Itachi... eu tentei me matar e acho que nada que você faça pode ser pior do que o que me fez pular daquele prédio ou qualquer outra coisa que eu já tenha passado.
— Naruto...
— Falei demais, não foi?
— Não. — Ele balançou a cabeça de um lado para o outro, seu cenho estava franzido e eu quase conseguia ver fumaça sair de sua cabeça de tanto que ele parecia pensar — É bom saber o que se passa na sua cabeça.
— Por quê?
— Porque vamos conviver durante um tempo e eu gostaria de saber lidar com você sem ultrapassar limites ou te deixar desconfortável. Eu te coloquei nessa situação e eu quero fazer o possível para que você fique bem e em paz.
Paz.
A palavra me fazia rir internamente, mas sem humor algum. A ideia de ter paz me parecia algo que eu jamais alcançaria de verdade. Era quase utópico para mim.
— Eu não tenho costume de fazer isso. — Itachi ergueu uma sobrancelha, questionando silenciosamente o que eu queria dizer — De me abrir com as pessoas. Não gosto de dar trabalho.
— Você não me precisa se sentir pressionado a se abrir comigo, você nem me conhece. Só não quero que esconda caso algo que eu faça te incomode ou te deixe mal.
Assenti, levando meus olhos para a mesa, preferindo focar no móvel de madeira ao invés de manter contato visual com Itachi. Ainda pude vê-lo, pela visão periférica, terminar de tomar o café e levantar da cadeira, provavelmente se dirigindo até a pia da cozinha.
— Naruto.
— Sim? — Respondi, virando o rosto para poder encará-lo.
— Daqui a pouco eu saio para trabalhar. Você quer ficar aqui ou me acompanhar?
— Hm?
— A casa é toda sua, eu já disse, mas se não quiser passar o dia sozinho, pode ficar na livraria comigo. — Explicou — Eu vou me aprontar. Pode pensar enquanto isso.
Enquanto Itachi saía da cozinha, o único pensamento em minha mente era o de que a ideia de passar o dia inteiro sozinho naquela casa não era nada confortável. Talvez não fosse interessante para minha cabeça e meus pensamentos intrusivos que eu ficasse tanto tempo só.
Olhei para a minha xícara de café, vazia, e suspirei.
Pelo visto aquele seria um longo dia... na livraria dele.
Me arrumei enquanto Itachi também se aprontava, não demorei muito, nem tinha motivo para demora. Apenas tomei um banho, escovei os dentes e vesti uma roupa um pouco mais decente para poder sair; com toda certeza não seria interessante sair de pijama e passar o dia todo assim.
Estava um dia ensolarado e eu já sabia que o sol me incomodaria no caminho, então optei por usar uma jaqueta por cima da camisa leve que eu vestia e uma calça preta simples.
Quando voltei para a sala, Itachi já estava lá. Sentado no sofá, com dois capacetes em mãos, ele carregava uma expressão que parecia dizer “eu sabia que você viria”. Ele levantou ao me ver e estendeu um dos capacetes em minha direção, eu me aproximei e o peguei, suspirando ao que Itachi me dava as costas e começava a andar em direção a porta para sair. Eu teria que me acostumar com aquela moto, não teria?
Mais uma vez, segurando Itachi como se eu fosse sair voando da sua garupa a qualquer momento, eu torcia para que o percurso até a livraria acabasse logo. A velocidade com que ele pilotava definitivamente não cumpria o máximo permitido naquelas ruas, eu conseguia sentir que não estávamos a 50km/h nem ferrando e isso, genuinamente, me preocupava.
Ao chegarmos na livraria, Itachi me entregou um molho de chaves – mostrando exatamente qual era a chave das portas do lugar – e me pediu para abrir a livraria enquanto ele estacionava sua moto na parte de trás dela. Abri as portas o mais rápido que pude e adentrei a livraria, apesar de ainda ser bem cedo e não haver um movimento considerável de pessoas pela rua, eu não gostaria que alguém me visse com um único olho brilhando em vermelho.
Passei meu olhar pelas estantes repletas de livros, talvez fosse me fazer bem estar naquele lugar, tinha um cheiro agradável que não se limitava apenas ao produtos de limpeza usados ali – aquilo era lavanda? – mas também de algo confortável... tipo um abraço quentinho. Respirei fundo, sentindo um pouco da tensão em meus ombros se dissipar.
— Você pode ficar a vontade aqui. — Me intrigava a forma como a voz de Itachi parecia sempre ressonar na minha cabeça, como uma melodia gostosa de se ouvir — Logo mais, Sasuke chega para ficar na recepção e eu vou estar ali, — Apontou sutilmente com a cabeça para a sala logo atrás do balcão da recepção — caso precise de algo.
— Eu posso ficar com você?
A pergunta escapou dos meus lábios antes que eu pudesse pensar direito no que estava pedindo. Itachi pareceu ponderar por alguns instantes – coisa que eu acredito que ele tenha feito só por cena – mas logo assentiu e foi até a sala, comigo em seu encalço. Meus olhos se fixaram em suas mãos enquanto ele destrancava, abria a porta e a segurava para que eu pudesse entrar primeiro; Itachi era estranhamente cordial e cavalheiro.
Não que eu duvidasse da existência de pessoas assim pelo mundo, eu mesmo me considerava alguém relativamente bem educado, mas parecia ser tão difícil encontrar com esse tipo de pessoa que eu não conseguia evitar estar intrigado.
Não sabia exatamente quanto tempo havia se passado desde que entramos na sala, mas poderia afirmar que mais de vinte minutos não haviam sido. Itachi organizava algumas caixas com livros que já não estavam mais em um bom estado, a maioria com as capas prejudicadas ou rasuras em suas páginas. Ele disse que aqueles livros seriam reformados por um amigo e doados posteriormente. Eu ainda quis ajudá-lo em seu trabalho, mas Itachi foi firme em seu “não, obrigado” e eu sentia que não deveria rebater. Independente do que Itachi me dissesse sobre ficar confortável e não me preocupar tanto, eu sentia que ele já estava fazendo tanto por mim que eu simplesmente não conseguia, nem podia, exigir nada. Não conseguia me livrar da sensação de que eu deveria apenas aceitar o que me fosse cedido, nem pedir por mais nada além disso.
E, por isso, eu me encontrava entediado – com o máximo de tédio que minhas emoções neutralizadas me permitiam sentir –, sentado em uma cadeira enquanto tamborilava meus dedos na mesa de madeira que ali estava. A sala de Itachi tinha cheiro de canela e verniz. Provavelmente uma das combinações de aromas mais esquisitas que já senti na vida.
Levei meu olhar para a porta ao ouvi-la sendo aberta, não me surpreendendo ao ver Sasuke parado ali. Ele também não pareceu surpreso em me ver, o que me levava a acreditar que Itachi não apenas contou o que havia acontecido mas também que eu estaria na livraria naquele dia.
Itachi parou o que fazia para ir até o irmão, sua mão direita indo até os fios curtos do outro e os bagunçando minimamente enquanto um “bom dia” saía de sua boca. Sasuke resmungou, batendo sem muita força na mão de Itachi para afastá-la.
— Odeio quando você faz isso, eu não sou mais criança. — Os resmungos continuaram mesmo após Itachi voltar aos livros. Sasuke tentava reajustar seu cabelo inutilmente, mas logo voltou sua atenção para mim — Você é o Naruto, ‘né?
— Sim. — Levantei da cadeira, indo até Sasuke e estendendo uma mão em sua direção — É um prazer te conhecer.
— O prazer é todo meu, sou o Sasuke. — Ele apertou minha mão, um pequeno sorriso se formando em seu rosto — Eu já não te vi antes?
— Eu já vim aqui algumas vezes comprar livros.
Sasuke murmurou algo que parecia “faz sentido”, mas eu não tinha certeza se tinha ouvido aquilo mesmo. Demos fim ao nosso aperto de mãos e eu pude notar que no dedo anelar da sua mão esquerda havia uma aliança. Ele era comprometido?
Não que fosse da minha conta também.
Voltei para a cadeira, Sasuke e Itachi engajaram em um diálogo sobre livros que eu não fiz muita questão de prestar atenção. Senti meus olhos pesados e acabei bocejando, talvez eu ainda fosse mais humano do que pensava. Retirei minha jaqueta e improvisei uma almofada com ela antes de colocá-lo sobre a mesa, recostei minha cabeça ali e, sem nem me dar conta, dormi.
Quando recobrei a consciência, senti meu estômago doer por estar vazio o dia inteiro. Obviamente, uma xícara de café não poderia me sustentar o dia inteiro, era burrice pensar algo assim. Retirei meu celular do bolso, descobrindo que era pouco mais de meio-dia. Aquele era um bom horário para almoçar, eu só não fazia ideia do que iria comer... ou onde iria comer.
Eu estava sozinho na sala de Itachi e ouvia vozes animadas do lado de fora, o som era muito baixo para que eu pudesse identificar o que estava sendo dito, mas reconheci que uma das vozes pertencia a Itachi e que outra era feminina, doce.
Levantei, sentindo um leve incômodo em minha lombar por ter dormido completamente torto a manhã inteira. Ao me esticar um pouco, pude sentir e ouvir o estalar de alguns ossos em meu corpo, coisa que aliviou um pouco do meu incômodo. Resolvi sair da sala, devagar, preocupado em atrapalhar a conversa que acontecia do lado de fora, ou pior: dar de cara com algum cliente e precisar explicar o olho vermelho.
Tudo bem. Itachi e eu combinamos uma história, mas eu não queria precisar me explicar para ninguém tão cedo. Quanto menos eu precisasse contar nossa mentira, melhor eu me sentiria.
Ao sair da sala, pude ver Itachi, Sasuke e uma mulher de cabelos cor de rosa, que proferia suas palavras parecendo bastante animada ao mesmo tempo em que tinha seus braços em volta do tronco de Sasuke e que ele devolvia o abraço, um sorriso pequeno em seus lábios enquanto a ouvia falar.
Itachi foi o primeiro a notar minha presença, desviando seu olhar para mim por alguns instantes antes de voltar a dar sua total atenção à mulher. Me aproximei, ainda cauteloso, e – inevitavelmente – fui notado pelos outros dois presentes ali.
A mulher, de maneira até um pouco cômica, se desvencilhou dos braços de Sasuke para se aproximar de mim. Havia um largo sorriso em seus lábios e seus olhos eram estranhamente gentis; olhando com mais atenção... ela era linda.
— Ah, então é esse o garoto de quem você tanto tem falado, Itachi? — Ela perguntou, mas sequer deixou que Itachi a respondesse — Muito prazer! Sou Sakura Haruno, e você?
— Naruto. — Respondi, meio incerto — Naruto Uzumaki. O prazer é meu.
— É ótimo finalmente poder te dar um rosto. — A colocação dela me deixou confuso e eu devo ter deixado isso transparecer em meu rosto — Itachi não para de falar de você desde que te encontrou e eu estava morrendo de curiosidade ‘pra te conhecer.
— ‘Saky... — A voz de Sasuke veio como um aviso, mas Sakura apenas deu de ombros.
— O que foi, amor? É a verdade!
— Sakura, você vai assustar ele com essa afobação toda. — Itachi interviu, ele parecia estar contendo uma risada enquanto falava — Naruto, essa é a Sakura, esposa do meu irmão. Ela aparece aqui às vezes para almoçar com a gente. Não dê abertura demais ou ela não vai te deixar em paz.
Sakura, que até o momento sorria, fechou seu semblante. Ela franziu o cenho e parecia realmente ofendida com as palavras de Itachi, mas apenas o encarou seriamente por alguns instantes antes de recuperar a expressão alegre e se voltar para mim.
— Eu soube que estaria aqui e que alguém esqueceu o seu almoço, Naruto, então aproveitei que precisava ver o Sasuke e trouxe uma coisinha ‘pra você. — Ela apontou na direção de Itachi e, só então, notei o bentō nas mãos dele — Não tenho certeza do que você gosta de comer, mas fiz com muito carinho, então espero que goste!
Sakura parecia ser muito gentil, era agradável. No entanto, sua gentileza não foi o bastante para evitar que eu me sobressaltasse ao sentir sua mão em meu ombro. Minha reação a assustou, lógico, e eu achei que ela fosse fazer piada ou algum comentário tosco por eu agir feito um bicho acuado por culpa de um toque tão bobo – era o que as pessoas geralmente faziam.
Mas fui surpreendido ao ver Sakura se afastar um pouco, ela parecia compreensiva.
— Me desculpe, eu fui invasiva?
Se eu não estivesse ainda anestesiado com os efeitos colaterais do veneno de Itachi, eu teria soado mais desesperado, teria sido mais rápido em dizer que estava tudo bem. Mas tudo que consegui foi responder Sakura de forma quase robótica.
— Tudo bem, não precisa se preocupar. Eu só não estava esperando o toque... me pegou desprevenido.
Sakura não parecia convencida, mas não insistiu, ela apenas me deu mais um de seus sorrisos e logo voltou sua atenção para Sasuke, e ambos se perderam em suas próprias conversas. Eu sentia os olhos de Itachi em mim a todo momento e suspirei ao vê-lo vir em minha direção, me entregando o bentō e chegando perto o suficiente da minha orelha para sussurrar:
— Tudo bem mesmo?
Assenti, apertando suavemente a comida em minhas mãos. Respirei fundo quando Itachi se afastou e ainda consegui reunir forças o suficiente para agradecer Sakura pelo alimento antes de voltar para a sala de Itachi. Eu queria ficar sozinho.
Eu nunca fui de ter muitos amigos – ou muitas pessoas a minha volta, no geral. O pouco que eu tinha era Gaara, com quem eu não falava há semanas, mesmo que ele mandasse mensagens vez ou outra parecendo genuinamente preocupado, perguntando como eu estava, se eu precisava de algo. Eu não conseguia respondê-lo, eu não conseguia manter contato pós-término.
Me martirizava por ter aquela atitude e não ser forte o bastante para encarar Gaara e mantê-lo na minha vida de alguma forma, ele se importava, ele queria muito continuar meu amigo. Mas eu não conseguia olhar para ele sem pensar que se eu não fosse tão problemático, ele ainda gostaria de mim como amante.
Abri o bentō, sentindo meu estômago se animar com o cheiro que invadiu minhas narinas. Não tardei em me sentar a mesa e começar a comer devagar, saboreando pacientemente a comida e me sentindo aliviado por estar matando a fome.
Aquilo era estranho. Eu não tinha costume de ser tratado daquela forma, me assustava sentir afeto assim. Primeiro, Itachi me salvando e fazendo o possível para que eu me sentisse confortável, e agora, Sakura me trazendo almoço sem nem mesmo nos conhecermos... sem segundas intenções.
Apesar do desconforto em ser tratado assim, uma parte muito pequena de mim estava gostando da sensação e eu me preocupava que aquilo acabasse de uma hora para outra.
Talvez aquilo tudo fosse algum tipo de sonho, um delírio.
Chapter 5: desmoronando
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Com o passar dos dias, minhas emoções foram voltando e com elas uma certa tristeza. Eu já sabia que isso aconteceria, era inevitável que eu voltasse a me sentir mal com a vida, comigo, com tudo; um pouco menos que o de costume, mas ainda assim...
A volta das minhas emoções coincidiram com o momento em que tomei coragem para dar um retorno as mensagens de Gaara, apenas para certificá-lo de que eu estava bem, expliquei que não me sentia pronto para reencontrá-lo ainda (especialmente se considerar que ainda estou com um olho vermelho), mas que faria um esforço para manter o contato ao menos virtualmente. A compreensão exacerbada de Gaara sempre me acertava de maneiras inimagináveis e isso me irritava muito; como eu poderia superar os sentimentos que tinha por ele se ele era perfeito?
Fui tirado de meus devaneios por uma dor aguda – mas suportável – no dedo indicador da minha mão esquerda e imediatamente soltei a faca ao ver o sangue escorrer do pequeno corte infligido ali. Me dirigi até a pia, deixando de lado os legumes que eu cortava anteriormente para poder lavar o meu dedo e estancar o sangramento, me reprimindo mentalmente por não prestar atenção o suficiente no que estava fazendo.
Eu estava sozinho em casa. Itachi foi para a livraria de manhã cedo mas eu não estava realmente com forças para sair daqui, ele disse que eu poderia ligar se algo acontecesse, mas sinto que ele sabe que eu não ligaria nem sofrendo risco de vida. E agora, finalmente com o mínimo de disposição para viver, eu resolvi fazer uma sopinha para almoçar... e quase perdi a ponta do dedo – exageros a parte – nesse processo.
Suspirei, desligando a torneira ao notar que o dedo já não sangrava mais. Não era um corte profundo, nem muito grande, mas eu ainda precisava cobri-lo.
Lembrei de Itachi falar sobre ter uma caixa de primeiros socorros no banheiro do seu quarto, então para lá eu fui, eu precisava de um band-aid, ou qualquer coisa do tipo. Adentrei o quarto, me dando conta de que aquela era a primeira vez que eu de fato entrava nele (quando Itachi me apresentou a casa, eu só pude ver o interior do cômodo de relance, do lado de fora dele).
Era bem organizado, transmitia conforto e deixava explícito o quão fascinado por organização Itachi era. A estrutura do quarto dele era exatamente igual a minha, então eu não tive problemas em saber qual porta levava ao banheiro e adentrá-la. Encontrei a caixa de primeiros-socorros dentro do pequeno armário sobre a pia e a coloquei em cima do mármore frio, abrindo e não tardando a encontrar um band-aid ali.
Eu não queria me demorar no quarto de Itachi, sentia que estava invadindo o espaço dele – irônico se eu pensasse que estava morando na casa dele –, então rapidamente cobri o corte, coloquei a caixa no lugar e saí do banheiro quase como um homem em fuga. No entanto, ao passar ao lado da cama, notei um porta-retrato sobre a mesa de cabeceira e minha curiosidade tirou o melhor de mim e do meu bom senso, eu o peguei; guardado seguramente na moldura branca, havia um desenho que a primeira vista poderia parecer bem bobinho, mas se estava ali, bem ao lado da cama de Itachi, deveria ter algum significado especial.
Eram apenas dois bonequinhos de palito, meio tortos e sem simetria alguma entre os traços, algo que muito provavelmente havia sido feito por uma criança. O bonequinho maior tinha cabelos compridos e o menor tinha cabelos curtos (ou era o que parecia), e no cantinho direito do papel emoldurado havia algo escrito, algo que me fez entender do que realmente se tratava o desenho. O singelo “de: Sasuke / para: Itachi” escrito com letras de forma meio trêmulas foi o suficiente para que eu me desse conta da importância do desenho e achasse fofo ele estar exposto ali, era explícito para qualquer pessoa que passasse mais de dois segundos no mesmo ambiente em que Sasuke e Itachi que o caçula era a pessoa mais importante da vida de Itachi.
Não era estranho que houvesse um desenho feito por Sasuke emoldurado no quarto de Itachi.
Devolvi o porta-retrato ao seu devido lugar, finalmente me retirando do quarto e voltando para a cozinha, decidido a terminar o que eu havia começado e, dessa vez, me atentando para não permitir que meus pensamentos tirassem meu foco do que eu fazia. Aquela sopa precisava ficar pronta antes que a fome chegasse e, de preferência, sem mais nenhum dedo cortado.
Consegui fazer a sopa, comi e o restante do dia se passou sem nada muito interessante acontecer. Eu me sentia um pouco agoniado com o ócio, eu queria encontrar algo para fazer naquela casa, eu não estava tendo nenhum pico de energia ou de hiperatividade, mas a falta de ocupações não ajudava em nada com minhas questões depressivas e eu sabia que a qualquer momento a completa falta de energia e de vontade de existir poderia voltar. Eu precisava ocupar minha cabeça com algo.
Com qualquer coisa.
Eu descobri, no momento em que minhas emoções voltaram por completo, que os remédios já não faziam mais efeito devido a minha nova condição... devido ao fato de eu já não ser mais cem por cento humano e aquilo tornava tudo muito mais difícil porque eu já não tinha mais nada para me ajudar a suportar as coisas. Eu tentava me ocupar, eu tentava não me deixar ser vencido pela minha própria mente, mas haviam momentos em que eu simplesmente não conseguia fazer nada.
Nem sei por qual milagre havia conseguido levantar da cama naquele dia e nem sabia por quanto tempo eu conseguiriam me forçar a agir contra os meus demônios. Não queria pedir ajuda a Itachi, ele já estava fazendo tanto por mim que eu achava injusto exigir qualquer coisa a mais. Além disso, ele não tinha obrigação nenhuma de lidar com os meus problemas, eu sabia que no final dos contas, pedir ajuda dele só o faria afundar junto a mim em algum momento; era isso que acontecia com todos que tentavam me socorrer de alguma forma, eu os sufocava com a minha dor até que não aguentassem mais e então-
Então todos partiam, cansados e esgotados.
Não.
Definitivamente não seria justo fazer isso com Itachi.
De repente, comecei a me sentir mais afetado do que gostaria com aquela linha de pensamentos, voltando a ficar sem forças como na manhã daquele mesmo dia. Ainda consegui me dirigir até meu quarto e acender a luz dele, meu corpo afundando na cama e se enrolando com os lençóis como se aquilo pudesse me manter são e salvo, como se estar completamente coberto e com o quarto bem iluminado fosse o bastante para manter os meus demônios afastados de mim, para mantê-los em silêncio.
Mas não era.
Nunca havia sido.
Então, por que eu insistia em algo tão idiota?
Não sei quanto tempo fiquei daquela forma, olhos bem abertos, ouvidos atentos e pensamentos que oscilavam em uma eterna discussão sobre eu merecer ou não estar vivo, mas já deveria ser noite, porque eu não conseguia mais ver a luz do sol cruzando as janelas e toda a claridade no cômodo era artificial.
Me assustei ao ouvir batidas em minha porta e meu nome ser dito por uma voz amena, questionadora, implicitamente me pedindo permissão para entrar. Acabei respondendo com um murmúrio, sabendo que a audição aguçada de Itachi permitiria que ele ouvisse o meu “entra”, e me encolhi de maneira inconsciente ao escutar a porta abrir e logo depois, fechar. Não conseguia ouvir os passos de Itachi, ele conseguia ser irritantemente silencioso algumas vezes, mas eu tinha certeza de que ele se aproximava e tive a prova quando ele parou ao lado da cama, de frente para mim, e abaixou-se até estar de cócoras, os olhos escuros na altura dos meus e parecendo enxergar… tudo.
— Tudo bem aí? — Balancei a cabeça devagar, negando — Quer conversar sobre isso? — Mais uma vez, neguei — Ok.
Não sabia há quanto tempo ele havia chegado em casa, mas havia sido tempo o suficiente para que ele tomasse banho e vestisse roupas confortáveis, ao menos era o que o cheirinho de sabonete que adentrava minhas narinas me dizia. Itachi me encarava de maneira profunda, analisando com cautela o meu estado, pensando meticulosamente em qual passo daria a seguir.
— Não precisamos conversar se você não quiser, mas tem algo mais que eu possa fazer por você? — Perguntou, me fazendo abrir e fechar a boca algumas vezes, incerto sobre o que responder — Quer que eu fique aqui com você? Quer ficar sozinho?
— Fica.
Acabei respondendo sem pensar direito, mesmo sabendo que não deveria pedir nada a Itachi, que não deveria fazê-lo lidar com as minhas crises. Ele não era meu pai, nem nada do tipo, não era responsabilidade dele ficar ao meu lado e cuidar de mim.
— Posso deitar aí contigo?
— Uhum.
Pude ver Itachi dar um pequeno sorriso, como se quisesse me confortar e dizer que aquilo iria passar em algum momento, que as coisas se acertariam e que eu ficaria bem em breve.
Eu não acreditava, mas queria que fosse verdade.
— Posso apagar a luz? — Perguntou enquanto levantava e saía do meu campo de visão.
— Não…
A luz permaneceu acesa.
Lembrei-me do meu pai, mesmo sem querer, que costumava apagar as luzes do apartamento sempre. Ele dizia que eu precisava deixar de frescuras e de me fazer de coitado, que a claridade não faria diferença alguma nas minhas crises, mas definitivamente faria na conta de luz ao final do mês.
Eu senti o espaço vazio da cama, logo atrás de mim, afundar um pouco. Me desvencilhei um pouco dos lençóis, só o suficiente para permitir que Itachi pudesse se cobrir com eles também caso desejasse, e me encolhi mais uma vez ao senti-lo próximo demais do meu corpo; não por desconforto mas porque eu não conseguia vê-lo e não esperava a aproximação tão repentina. Resolvi me virar em sua direção, sentindo um pouco da tensão em meus ombros se dissipar ao tê-lo novamente em meu campo de visão e constatar que ele havia se afastado um pouco, nem mesmo estava usando os lençóis.
Itachi ainda me olhava como se analisasse algo muito importante, algo que deveria ser tratado com total cuidado. Deitados de lado, cada um com a cabeça em um travesseiro, estávamos envoltos por um silêncio confortável e que nenhum de nós estava disposto a quebrar. Eu não queria conversar, não apenas por não desejar incomodar Itachi com meu caos, mas por nem saber por onde ou como começar a falar.
Quase que por instinto, me aproximei de Itachi, surpreso ao vê-lo simplesmente abrir espaço para mim, permitindo que um de seus braços passasse sob meu corpo e rodeasse meus ombros, e que sua mão repousasse no meio das minhas costas ao mesmo tempo em que eu recostava a cabeça e as mãos em seu peito.
Como se aquilo fosse natural.
Cotidiano.
Era estranho estar com as mãos no peito de Itachi e não sentir nenhum batimento, era estranho estar colado nele e não ouvir uma respiração sequer. Às vezes eu esquecia o que ele era.
Sua mão livre alcançou uma das minhas, justamente a que estava com um dedo cortado, e eu senti necessidade de me explicar no exato momento em que ele segurou meu dedo coberto pelo band-aid, mesmo que ele não tivesse dito nada sobre isso.
— Foi um acidente… eu me cortei.
Itachi não me respondeu, limitando-se a acariciar sutilmente meu dígito ferido com os seus próprios antes de soltá-lo e me abraçar com um pouco mais de força. Um arfar surpreso escapou dos meus lábios ao sentir sua boca encostar na minha testa, deixando ali um selar inocente e praticamente fraternal.
O ato, por alguma razão, fez meus olhos marejarem e um nó se formar em minha garganta. Eu nem mesmo consegui pensar em segurar a umidade que se acumulava em meus olhos, só senti meu rosto esquentar e molhar, meus dedos se fechando na camisa de Itachi enquanto o nó na minha garganta dava lugar a vários soluços, que acompanhavam o choro de forma desregulada.
Eu não queria chorar, não somente por estar com Itachi presente mas por me sentir fraco e completamente bobo ao fazê-lo. Itachi não se permitia diminuir a força com que me apertava contra seu corpo e eu perdi qualquer resquício de dignidade ao sentir uma de suas mãos acariciar meu cabelo, a gentileza e o cuidado de suas ações apenas me faziam quebrar mais e mais.
Eu estava desmoronando. Era como se eu algo estivesse se acumulando dentro de mim e escolhido justamente aquele momento para explodir, me fazendo desabar toda e qualquer defesa, me deixando completamente exposto e vulnerável.
E eu não queria isso.
De que adiantava ter sido salvo – independente da minha vontade – e recebido uma segunda chance se eu continuaria daquele jeito?
Forte.
Eu precisava ser forte.
Eu precisava aguentar.
— Não tem nada errado nisso, Naruto.
Ouvi a voz de Itachi ressonar dentro da minha cabeça e só soube que ele estava de fato falando, e não transmitindo uma mensagem telepaticamente (acho que ele nem consegue fazer isso), porque senti a reverberação de sua fala em seu peito.
Mas é claro que tinha algo errado.
— Eu não vou sair daqui, certo? Leve o tempo que precisar, chore se quiser chorar... não tem nada errado em sentir.
E eu só consegui fungar, mais alguns soluços me escapando e mais lágrimas insistindo em cair. Por Deus, eu só queria que aquilo passasse um dia, eu queria tanto ter paz.
Eu queria que Itachi não se arrependesse de me salvar.
Chapter 6: sentimento não identificado
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Eu nem mesmo senti quando acabei adormecendo, mas despertei ainda com os dedos de Itachi se movendo no meu cabelo e meu rosto praticamente enfiado em seu peito. A luz do quarto ainda estava acesa, mas eu conseguia ver a luz do sol adentrando as janelas, indicando que já era outro dia.
Me perguntava se Itachi havia passado a noite inteira me fazendo cafuné e a possibilidade de uma resposta positiva para isso me fazia sentir um pouco de culpa; não que Itachi precisasse dormir ou descansar – não da mesma forma que um humano precisa –, mas eu tinha sentimentos conflituosos por ter privado ele de sua noite de descanso.
Afastei o rosto do peito de Itachi, erguendo o rosto e me surpreendendo ao vê-lo olhando diretamente para mim, os olhos brilhando em vermelho e carregados de algo que eu não sabia bem o que era… um sentimento que eu não conseguia compreender, mas que torcia para não ser fome ou algo assim. Senti meu rosto e orelhas esquentarem por ter Itachi tão perto, me encarando com tanta intensidade. Engoli a seco, eu definitivamente precisava levantar daquela cama o quanto antes.
Quando fiz menção de que tentaria levantar, Itachi não ofereceu resistência alguma, pude senti-lo facilmente diminuir a força com que me segurava, permitindo que eu me desvencilhasse de seu corpo e saísse da cama. Itachi ainda me encarava e eu me sentia acuado, estranho, um pouco desconfortável.
De repente, Itachi fechou os olhos com força e balançou a cabeça de um lado para o outro, como se estivesse tentando reorganizar seus pensamentos. Ao abrir os olhos, ele ainda piscou forte por diversas vezes, parecendo estar saindo de um transe.
Permaneci parado, de pé ao lado da cama, incerto sobre o que fazer ou o que dizer. Eu queria pedir desculpas por ter incomodado, mas também queria agradecer pela ajuda.
Mesmo sabendo que eu não merecia aquela ajuda.
Itachi levantou e, caminhando a passos que pareciam perfeitamente calculados, se aproximou, as mãos se erguendo como se ele quisesse tocar meu rosto mas logo sendo retraídas e colocadas a uma distância segura de mim.
— Melhor?
— Um pouco.
— Quer que eu fique com você? — Perguntou, um sorriso irritantemente compreensivo em seus lábios — Sasuke pode cuidar da livraria sozinho hoje, isso não é um problema.
— Eu não quero te incomodar ainda mais. — Murmurei — Já basta ter te feito passar a noite aqui comigo e-
— Naruto. — Me interrompeu, subitamente sério — Se eu não quisesse ficar aqui, não teria ficado. Eu quero te ajudar, se você quiser ajuda, e isso não é incômodo algum.
Eu não respondi e não sei o que Itachi entendeu com o meu silêncio, mas ele limitou-se a se retirar do quarto sem dizer mais nada, me deixando sozinho e confuso com o rumo das coisas. Apaguei as luzes, um sutil calafrio percorrendo meu corpo ao fazê-lo, e respirei fundo, decidindo ignorar a sensação estranha em meu subconsciente e arrumar a cama, tomar um banho e tentar seguir aquele dia como uma pessoa normal e decente.
Ao entrar no banheiro e encarar meu reflexo no espelho acima da pia, fiquei surpreso ao ver que meu olho direito já não estava mais vermelho, não sabia porque ou como ele havia voltado ao normal por conta própria, mas não iria reclamar.
Eu já estava com saudades de ter meus dois olhos azuis e de poder sair na rua sem precisar escondê-los.
Era um alívio que eles estivessem de volta ao normal.
De banho tomado, fui até a cozinha, meu estômago roncando quase que imediatamente quando o cheiro de café e pão adentrou meu nariz. Isso me lembrou que a última vez em que eu havia comido foi no almoço do dia anterior, não deveria ser surpresa que eu estivesse morrendo de fome naquele momento. Havia pão e café na mesa, Itachi estava sentado em uma das cadeiras, mas não comia; uma xícara vazia e com resquícios de café a sua frente indicava que ele havia se alimentado enquanto eu me esforçava para ser uma pessoa funcional naquele dia.
Me servi, comi, tudo no mais completo silêncio.
Talvez a falta de diálogo fosse a forma que Itachi encontrou para me dar espaço e me deixar confortável para ir até ele por conta própria, sem que ele precisasse me instigar a falar me fazendo perguntas e tentando arrancar uma boa reação minha. Mas se eu tentasse iniciar uma conversa, nem saberia por onde começar, sendo bem honesto.
E ele parecia ocupado com o celular em mãos.
Respirei fundo, me sentindo confortável com o cheiro de canela em minhas narinas. Era engraçado me dar conta de que o cheiro de Itachi não mudava nunca, ele explicou que mudanças de humor poderiam afetar o aroma que exalávamos então, se o dele nunca mudava, significava que ele tinha todas as suas emoções sob controle o tempo inteiro. Me restava entender se isso era algo bom ou ruim.
Ele poderia apenas ter uma inteligência emocional exímia, ser alguém muito centrado e genuinamente bom, ou talvez ele só fosse muito bom em guardar tudo e, na verdade, fosse uma bomba prestes a explodir caso manuseado da forma errada.
— Itachi.
— Sim?
— Meu olho voltou ao normal. — Comentei, me sentindo levemente burro por estar dizendo o óbvio. Ele já deveria ter visto isso, ou talvez eu estivesse sendo precipitado em achar que Itachi prestava atenção na minha aparência — Eu não sei como.
— Já estava azul quando você acordou. — Respondeu, soltando o celular sobre a mesa para poder me encarar — Creio que tenha voltado sozinho, não é algo impossível. E o corte no dedo?
— Ah… não foi nada, foi superficial. — Falei, erguendo a mão em sua direção e mostrando o dedo, descoberto, que possuía apenas uma pequena linha esbranquiçada na ponta — Eu me distraí enquanto cortava umas coisas e-
Parei de falar quando Itachi segurou minha mão entre as suas, os olhos escuros fixos no meu dígito e o cenho franzido, como se ele não gostasse do que estava vendo. Mas aquilo nem era nada demais.
Não era como se meu dedo fosse cair.
— Você… — Comecei, pigarreando enquanto puxava minha mão de volta, delicadamente, tentando mudar o rumo da conversa — Você realmente não vai ‘pra livraria hoje? Não precisa ficar aqui de babá.
— Já falei com Sasuke, não é como se a livraria precisasse de duas pessoas lá todos os dias, de qualquer forma. O movimento não é intenso. — Explicou — E eu não estou aqui de babá. Decidi ficar em casa para te fazer companhia, não para te vigiar. Se isolar quando os problemas estão nos sufocando não é saudável, isso só é bom até certo ponto.
— Mas…
— Eu já disse, mais de uma vez, que você pode contar comigo, Naruto. Não precisa passar por tudo sozinho, você nem merece passar por tudo sozinho.
— Será que não? — Rebati — Você não sabe.
— Eu sei o suficiente. Tem sido confortável conviver contigo, Naruto. Você é um rapaz bom, digno de coisas boas. — Eu não acreditava em uma única palavra, mesmo que os olhos de Itachi gritassem “estou sendo sincero” — Eu queria que você pudesse se enxergar dessa forma também, mas eu entendo que é um processo… ninguém se reconstrói e fica cem por cento bem da noite para o dia.
— Esse processo pode levar a vida toda, pode nunca acontecer, Itachi. — Suspirei — Quem te garante que eu vou ficar bem algum dia?
— Ninguém. — Respondeu, dando de ombros — Mas eu tenho esperanças e vou estar aqui se precisar. Nem tudo vai dar certo, nem tudo vai dar errado, e não é fraqueza admitir quando der errado.
— Você parece um livro de autoajuda ambulante. — O comentário escapou antes que eu pudesse contê-lo — Meu deus, me desculpa, eu não-
E ele riu, em alto e bom som, como se eu tivesse contado a melhor piada de todos os tempos.
Eu não entendi.
— É a única forma que eu sei ajudar.
— Eu não quis ofender.
— Não ofendeu. — Sua mão esquerda se moveu quase como se ele dissesse “esqueça isso” — E eu acho que gosto muito mais quando você realmente me diz o que pensa ao invés de ficar pisando em ovos.
Eu conseguia identificar em seu olhar e em seu tom de voz que ele estava sendo sincero, que não estava tentando me enganar. Então por que meus pensamentos estúpidos não me permitiam acreditar no que estava sendo dito por Itachi? Por que toda vez que ele me dizia algo positivo sobre mim parecia que eu estava sendo ludibriado, manipulado?
Eu queria tanto ter uma reação normal.
Queria tanto agir como uma pessoa sã.
— Ninguém gosta de ouvir o que eu penso.
— Eu gosto. — Murmurou, tão baixo que eu quase não pude ouvir.
Desviei o olhar, subitamente interessado nos azulejos da parede, eu sentia meu rosto esquentando e não tinha certeza se gostaria de seguir com aquele diálogo. Felizmente, Itachi nada mais disse e o restante do dia se passou como qualquer outro, me permitindo sentir certo alívio até.
E se eu soubesse o que a noite daquele mesmo dia me reservava, não teria ficado tão tranquilo.
Após o jantar, eu passei um bom tempo no sofá da sala, o livro Carmilla em minhas mãos enquanto eu tentava me concentrar na leitura. Não era a primeira vez que eu lia aquele livro, uma boa parte da história estava memorizada em minha mente, mas aquela era a primeira vez em que alguém me observava enquanto eu lia. Talvez Itachi achasse que estava sendo discreto, mas eu conseguia sentir o peso de seus olhos em mim, eu queria entender o que se passava em sua cabeça e o que ele queria de mim.
Ele estava sentado, ao meu lado, e eu acabava engolindo a seco toda vez que o sentia se mover. Existia uma distância entre nós dois e eu era grato por Itachi não ter o hábito de se aproximar demais sem avisar ou me pedir licença e permissão; eu não precisei falar nada de maneira explícita, mas ele parecia entender que eu nem sempre gostava de contato, que toques repentinos me assustavam e me incomodavam, que eu tinha um certo medo disso.
Medo de que alguém se aproximasse.
Não pela aproximação, mas pelo que viria depois – o que sempre vinha depois: o abandono.
Meio que não fazia sentido ter medo de Itachi desaparecer subitamente da minha vida se eu me dispus a morar na mesma casa que ele, vê-lo todos os dias e, inevitavelmente, criar uma conexão entre nós.
Mas, lá no fundo, eu me preparava para isso.
Minha parte sonhadora, que lutava bravamente para sobreviver em meu subconsciente, torcia para que ao final da nossa farsa fôssemos amigos de verdade. Mas eu sabia a verdade.
Quando o laço fosse desfeito, cada um seguiria seu rumo. Para mim, ainda era um pouco inconcebível que Itachi realmente se importasse comigo e que não estivesse mais interessado em salvar a própria pele após ter cometido um crime.
Larguei o livro, irritado por não conseguir me concentrar nele. Já havia lido o mesmo parágrafo mais de cinco vezes e não assimilava uma palavra sequer; e a culpa já nem era mais de Itachi me observando incessantemente, mas sim dos meus pensamentos que corriam frenéticos, desenfreados.
Virei o rosto para o lado, meus lábios se entreabrindo em surpresa ao ver Itachi com os olhos vermelhos mais uma vez naquele dia. Eu sabia que ele estava me encarando há um bom tempo, mas não assim. Por que ele me olhava daquela forma?
Tinha algo errado com ele? Tinha sede?
E, se tinha sede, eu corria algum perigo?
O cheiro de canela ainda era o mesmo, nem mais fraco, nem mais forte. Ele parecia calmo.
Mas os olhos brilhando em vermelho me lembravam que Itachi não era um homem inofensivo.
Me preocupavam um pouco, ainda que ele tivesse me garantido que jamais beberia do meu sangue. Não o fez quando me salvou, não faria agora.
— Itachi? — Chamei, incerto. Não tive resposta.
Observei seu pomo de adão se movimentar, indicando que ele havia engolido seco, e logo ele passou a língua sobre o lábio inferior. As coisas estavam ficando estranhas, seus olhos estavam fixos em mim, mas ele não parecia estar enxergando de fato. Itachi parecia sem foco, em transe, exatamente como havia ficado na manhã daquele dia.
Eu sentia que não deveria continuar ali, sentado ao seu lado, que algo ruim iria acontecer.
Tinha um pressentimento esquisito.
— Ei, Itachi, fala alguma coisa. — Tentei mais uma vez — ‘Tá tudo bem? Qual o problema?
Então, subitamente, me pegando completamente indefeso e sem chance de escape, Itachi se moveu. E algo novo tomou conta de mim.
Doce.
Gentil.
Quente.
Confortável.
Itachi tinha os lábios colados aos meus, a mão firme em minha nuca garantindo que eu não me afastasse. E o pior de tudo era que eu…
Eu não me afastaria se tivesse a chance.
SchirleyMirelly on Chapter 4 Thu 13 Mar 2025 12:26PM UTC
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