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Vale das Bonecas Quebradas

Summary:

Quando o Cálice de Fogo cospe o nome de Primrose Potter, ela não pensa duas vezes — ela corre.

Chapter 1: UM

Chapter Text

Hogwarts, Escócia

1994

Parecia que tudo estava acontecendo em câmera lenta.

Primeiro, Dumbledore estendeu a mão e agarrou o quarto pergaminho que havia sido expelido do Cálice de Fogo. O nome — Primrose Potter — ecoou pelo Salão Principal como um trovão, cortando o ar e deixando todos em silêncio por um breve momento antes que os murmúrios começassem.

Rose ficou paralisada, entorpecida, sentindo como se o chão tivesse desaparecido sob seus pés. O Salão Principal se encheu de vozes, de dedos apontados, de olhares curiosos e acusadores que queimavam em sua pele. Ela sentiu o peso de centenas de olhos sobre ela, carregados de raiva, desconfiança e incredulidade.

E então veio a discussão na sala atrás da mesa dos professores. As palavras voavam sobre sua cabeça, cheias de acusações. Eles a chamaram de trapaceira, de transgressora, de alguém que nunca respeitou as regras desde que chegou a Hogwarts. Alguém — provavelmente era Snape — comparou-a ao pai, dizendo que ela era exatamente igual a ele, apesar de seus cabelos ruivos e olhos verdes, que a tornavam uma cópia quase perfeita de Lily Potter.

Rose mal prestou atenção ao que estava sendo dito. Seu corpo parecia estar em outro lugar, distante, enquanto a sua mente lutava para processar o que estava acontecendo. Ela segurou as lágrimas com todas as forças que tinha, tentando manter a compostura, tentando fingir que era forte, mesmo que ela fosse apenas uma criança de 14 anos presa numa sala com adultos que sentiam prazer em tratá-la como uma aberração.

Não foi assim a sua vida toda?

Pelo menos ela sabia que, no fundo, seus amigos nunca a abandonariam. Eles acreditariam nela. Eles saberiam que ela não havia colocado seu nome no Cálice. Eles a apoiariam, como sempre fizeram.

Ela conseguia suportar isso. Ela poderia superar.

Mas, para sua completa decepção, ninguém na Grifinória acreditou que ela não havia trapaceado. Nem mesmo Ron e Hermione se dignaram a falar com ela. Eles a evitaram, seus olhares cheios de desconfiança e desapontamento. Alegavam que ela havia quebrado as regras novamente, que devia estar se sentindo orgulhosa pela grande pegadinha que tinha feito, e que Rose nada mais era do que uma mentirosa.

Ela nunca se sentiu tão triste quanto naquele momento. Nem quando, aos seis anos, soube que tia Petúnia nunca a amaria como uma mãe, que Dudley sempre seria um idiota e que tio Vernon nunca a veria como parte da família. Nem mesmo quando, aos onze anos, ela matou um homem com as próprias mãos; ou, aos doze, quando teve o coração partido por um Lorde das Trevas de 16 anos; e nem mesmo aos treze, quando descobriu que seu padrinho nunca teve a chance de criá-la, pois havia sido preso injustamente.

Nada disso a fez se sentir tão miserável quanto a sensação de traição de seus amigos. O fato de que eles passaram anos juntos, compartilhando segredos, problemas e aventuras, mas bastou um pequeno deslize para que perdessem a confiança nela.

Rose sentiu o coração pesar, como se uma âncora tivesse sido presa ao seu peito.

Ela olhou ao redor da Sala Comunal, vendo os rostos que antes eram familiares, mas que agora pareciam estranhos, hostis. Até mesmo os gêmeos, que nunca haviam sido próximos dela, mas sempre foram cordiais, pareciam julgá-la com um olhar de desprezo.

Ela se levantou, sentindo as pernas trêmulas, e começou a caminhar em direção ao dormitório. Os murmúrios aumentaram, mas ela não se importou. Seus olhos estavam secos, mas sua alma estava em frangalhos.

No fundo, Rose se perguntava se a amizade que tinha com Ron e Hermione era real, ou se, no fundo, ela era apenas a terceira roda, a peça estranha no relacionamento deles. Era doloroso, como uma faca afiada cravada bem no meio do seu peito.

Ela não tinha forças para lidar com isso. A dor de saber que seus melhores amigos eram incapazes de pensar racionalmente por segundo em favor da sua amizade era insuportável, e ela sentia como se estivesse sendo dilacerada por dentro. Com passos rápidos, Rose se afastou da festa na Sala Comunal sem olhar para trás e se trancou atrás das cortinas da sua cama, chorando silenciosamente no dormitório ainda vazio.

Rose não sabe dizer quanto tempo se passou. Depois de um tempo, as vozes das outras garotas começaram a surgir, enquanto entravam no dormitório. Lavender e Parvati riam juntas, suas risadas e cochichos sobre ela preenchendo o ar, e, em algum momento, Rose percebeu que Hermione também estava ali, concordando com elas. Era como se o seu coração tivesse se partido em milhares de pedaços, saber que até Hermione a julgava.

As garotas se arrumaram para dormir, mas Rose não se moveu. Continuou deitada, olhos fixos nas cortinas, tentando controlar os soluços que queriam escapar por entre seus lábios.

Quando, finalmente, o dormitório mergulhou no silêncio, Rose continuou desperta, os olhos fixos no teto oculto pelas cortinas da cama. De repente, a quietude amplificou os seus pensamentos, e logo a sua mente começou a evocar os cenários mais catastróficos.

Ela não havia colocado seu nome no Cálice. Então, como ele poderia tê-la escolhido?

A primeira explicação foi a mais óbvia: era alguma brincadeira cruel. Um aluno mais velho querendo vê-la tropeçar, ser humilhada, se afogar na própria vergonha. Talvez um sonserino rancoroso, irritado com a existência da Menina que Sobreviveu.

Mas e se alguém estivesse tentando matá-la?

O pensamento cortou a sua respiração no meio. Primeiro veio a incredulidade, depois o terror – um medo tão frio e absoluto que pareceu apagar todas as outras emoções. Seus pulmões protestaram, o ar ficou preso na garganta, e seu coração disparou em um ritmo selvagem e errático. A sensação foi tão intensa, que por um momento, Rose teve certeza de que estava morrendo ali mesmo, sem precisar sequer pisar na arena do Torneio.

Era isso. Rose ia morrer.

Ela ia morrer.

Ela ia morrer.

Ela ia morrer.

O pavor tomou conta de seu corpo, apertando o seu peito com uma mão invisível. Não importava o quanto ela tentasse puxar o ar para seus pulmões; parecia que era uma ação impossível. O coração disparou, a respiração tornou-se rápida e irregular, e sua língua parecia pesada em sua boca.

As cortinas ao redor da cama pareciam estranhamente distorcidas e tortas, como se o mundo estivesse desmoronando e saindo do eixo. A sensação de desconexão foi brutal, como se o chão estivesse se abrindo abaixo dela. Rose se sentia pequena, insignificante e trêmula. A cama parecia prestes a desaparecer, afundando sobre seu corpo, engolindo-a inteira.

Ela tentou, com todas as forças, pensar em pedir ajuda para as garotas do dormitório, mas quando a ideia surgiu em sua mente, a luta para encontrar sua própria voz a fez paralisar. Sua garganta estava apertada, e as palavras simplesmente não saíam. Estavam presas, engolidas pelo pânico.

Naquele instante, apenas uma coisa preencheu a mente de Rose: ela queria viver.

Não importava que amasse Hogwarts, que cada pedra daquele castelo guardasse memórias de dias felizes ou que aquele lugar fosse seu primeiro lar de verdade, porque nada disso fazia diferença agora. Porque se quisesse sobreviver, ela precisava sair dali.

Ela já sabia — e essa última experiência apenas confirmou — que ninguém iria resgatá-la. Nenhuma mão surgiria na escuridão para guiá-la, nenhum adulto ou amigo apareceria para lhe oferecer um caminho seguro.

Ela estava sozinha. Sempre esteve.

Podiam chamá-la de aberração, de arrogante, de covarde; podiam sussurrar pelas suas costas, podiam torcer para vê-la cair — mas ela se recusava a morrer.

Então, Rose iria embora de Hogwarts.

Silenciosamente, Rose sentou-se na cama e olhou ao redor do dormitório escuro. As outras garotas já dormiam profundamente, suas respirações calmas e regulares preenchendo o ar. Ela fechou os olhos por um momento, concentrando-se, e então estendeu a mão em direção ao travesseiro. Com um movimento quase imperceptível da varinha, ela o transfigurou em uma mochila.

Com movimentos cuidadosos, ela abriu o malão que estava no chão ao lado da cama e começou a empacotar. Não levou muito — apenas o essencial. Algumas roupas, um punhado de galeões que deixava sempre guardado e, é claro, seu álbum de fotos que Hagrid lhe deu no primeiro ano. Ela não podia deixá-lo para trás.

Por mim, ela se cobriu com a capa de invisibilidade, sentindo o tecido leve e quase imperceptível deslizar sobre seus ombros como uma segunda pele. A varinha foi guardada com cuidado no bolso da saia, bem ao alcance de sua mão, caso precisasse. Finalmente, Rose respirou fundo, tentando acalmar os batimentos acelerados do coração, e se preparou para sair.

Antes de partir, ela deixou as cortinas da cama fechadas, garantindo que, ao amanhecer, as pessoas demorassem para notar sua ausência. Ela cuidadosamente guardou os sapatos na bolsa, preferindo caminhar apenas de meias para evitar qualquer ruído que pudesse acordar os retratos ou atrair a atenção indesejada de Pirraça.

Após alguns minutos de caminhada tensa pelos corredores escuros, ela chegou ao corredor do terceiro andar, onde ficava a estátua da bruxa corcunda de um olho só. Rose fez uma pausa breve, encostando-se na parede fria para recuperar o fôlego. Suas mãos tremiam levemente ao puxar o Mapa do Maroto do bolso para verificar se alguém estava nas proximidades.

Felizmente, não havia nenhum professor, nenhum fantasma, nenhum aluno fora da cama. Ela estava sozinha.

Respirando aliviada, Rose dobrou o mapa e o guardou novamente, certificando-se de que estava bem escondido. Olhou para a estátua da bruxa corcunda, sentindo um frio percorrer sua espinha. Aquele era o ponto de partida, o início de sua fuga. Ela sabia que, uma vez que passasse por ali, não haveria volta.

Com um último suspiro, enfiou a mão para fora da capa e tocou a varinha na estátua, murmurando baixinho: “Dissendium” .

Num suspiro suave, a estátua se abriu, revelando um escorregador estreito de pedra. Sem hesitar, Rose se jogou, sentindo o frio do espaço apertado ao redor de seu corpo. A descida foi rápida, e logo ela se encontrou em um túnel frio e irregular, cheio de curvas sinuosas. O caminho parecia infinito, mas ela não se permitiu parar.

Depois de alguns minutos que pareceram se arrastar, ela finalmente emergiu para o porão da loja Dedos de Mel. Sem perder tempo, correu para fora, atravessando a porta com um suspiro de alívio. O ar noturno estava gelado e fresco, e Hogsmeade estava completamente vazia, mas ela não parou para prestar muita atenção, precisava continuar.

Rose guardou a capa de invisibilidade com pressa na bolsa, calçou os sapatos e ergueu a varinha para convocar o Nôitibus. Ela manteve a cabeça baixa quando Shunpike abriu a porta com um sorriso largo, e, sem perder tempo, enfiou as moedas nas mãos do condutor, informou seu destino e se esgueirou rapidamente até as camas no fundo do ônibus. Encontrou uma cama vazia e se enfiou nela, puxando as cortinas com força.

Finalmente, o ônibus começou a se mover e Rose pôde respirar fundo, deixando a tensão se dissolver de seus ombros.

Em algum momento da madrugada, as dores começaram.

Primeiro, elas surgiram como pequenas pontadas, uma sensação incômoda na boca do estômago, como se algo estivesse sendo cutucado e puxado de dentro dela. Mas Rose ignorou, convencida de que era apenas o estresse da noite, o nervosismo da fuga, a ansiedade da corrida. Talvez algum tipo de gastrite nervosa. Existia isso, certo?

Mas, à medida que os minutos se arrastavam, as pontadas começaram a crescer, se tornando cada vez mais intensas.

Logo, as dores se espalharam pelo seu corpo, subindo por suas costelas, e também descendo até suas pernas. Era como se uma mão invisível tivesse sido enfiada bem no centro do seu estômago, seus dedos remexendo nas suas entranhas, apertando, puxando, torcendo.

Rose mordeu o lençol da cama para abafar os gritos, os dentes cravados no tecido áspero enquanto tentava controlar a respiração descompassada. Cada onda de dor parecia uma explosão em seu âmago, vibrando sob a sua carne, arrastando sua alma com ela. Ela se encolheu, puxando o travesseiro contra o rosto, tentando silenciar os gemidos involuntários que queriam escapar da sua garganta.

O suor começou a escorrer por sua testa, e seus olhos ardiam, a visão borrada pelas lágrimas que começaram a surgir. Rose se curvou sobre a cama, encolhendo-se em uma bola apertada, cada músculo do corpo contraído de dor. Era uma agonia sem fim, uma dor que equivalia a arrancar um órgão de dentro dela; até que, em um segundo de clareza aterradora, ela percebeu o que estava acontecendo.

Era o contrato com o Cálice de Fogo. Ela não havia entendido completamente as consequências de sua recusa, ou as outras palavras ditas na confusão depois do anúncio, mas agora ela sabia que estava pagando o preço. Algo em seu corpo, algo que antes estava firmemente enraizado, estava se desintegrando e sendo puxado para fora.

Primrose Potter estava perdendo a sua magia.

 

*

 

Foi somente quando o raiar do dia estava tentando se infiltrar por entre as cortinas, que Rose percebeu que a dor já tinha ido embora. O alívio foi quase tão avassalador quanto a dor, mas imediatamente ela se sentiu tensa. 

Será que a sua magia havia realmente ido embora de seu corpo?

O peso da ideia era esmagador, mas ela precisava ter certeza. Com as mãos trêmulas, Rose puxou a varinha do bolso, seus dedos gelados contra o frio da madeira. Ela a segurou firmemente, quase como se temesse que ela fosse escorregar de sua mão e desaparecer por completo. Com um suspiro profundo, ela sussurrou:

— Lumos.

Mas, ao contrário da luz brilhante, nada aconteceu. A ponta da varinha permaneceu apagada, como se fosse uma simples peça de madeira comum.

Rose ficou paralisada por um instante, a dúvida tomando conta dela. Talvez fosse um erro. Talvez ela tivesse feito algo errado, um detalhe, um movimento, uma palavra incorreta.

Ela tentou novamente, mais uma vez, a voz ainda mais desesperada.

— Lumos.

Nada.

Com o coração batendo rápido, ela tentou mais uma vez, desta vez com mais força.

Lumos!

E nada.

O medo começou a se infiltrar em suas veias, e, em um impulso quase frenético, ela passou para o próximo feitiço, apontando para o travesseiro.

— Wingardium Leviosa!

Ela balançou a varinha como fez no primeiro ano, com a esperança de que a levitação acontecesse, de que a mágica voltasse para ela de alguma forma.

Nada. O travesseiro nem se moveu.

Respirando com dificuldade, Rose lançou outro feitiço.

— Vera Verto.

E outro.

— Estupefaça.

E outro.

— Protego.

E outro.

— Expelliarmus.

Nada aconteceu. A varinha ainda estava fria e inerte em suas mãos.

Era isso, Rose agora era uma aborto.

Ela não sabia o que era pior: a dor que sentia antes ou a sensação de estar totalmente vazia agora, como se a própria essência de quem ela era tivesse desaparecido. O que ela era agora sem isso? Sem a sua magia? Sem o poder que sempre a definiu, que sempre a fez ser mais do que apenas uma garota comum?

Mas então uma pergunta cortou a sua mente: Essa não foi a sua escolha? Não foi isso que ela quis, quando rejeitou o contrato com o Cálice de Fogo? Não era a escolha entre viver sem magia ou morrer?

Ela pode não ter prestado muita atenção aos alertas ditos na noite anterior, mas Rose tinha certeza de uma coisa: ela nunca teria escolhido a morte voluntariamente. Nunca. Ela sabia que, no fundo, só havia acabado na Grifinória porque exigiu que o Chapéu Seletor a colocasse lá. Mas, se fosse sincera consigo mesma, sabia que não pertencia àquele lugar.

A verdade era que ela pertencia à Casa dos Covardes. Aquela casa que se escondia nas sombras da autopreservação, onde as pessoas preferiam evitar o confronto em vez de enfrentar os próprios medos. Aquela casa onde os alunos, como ela, escolhiam fugir ao invés de lutar, se esconder ao invés de encarar o desconhecido. Ela não tinha coragem, nunca teve. Rose sempre seguiu as ideias de Ron, aceitou os sermões de Hermione, ouviu os conselhos de Dumbledore. Ela não tem certeza se alguma vez tomou alguma decisão por si própria, antes de decidir fugir do Torneio Tribruxo.

Rose queria muito acreditar que seus pais — que haviam dado suas vidas para salvá-la — nunca ousariam pedir que ela corresse o risco de morrer por algo tão vazio quanto fama e glória eterna. Nem mesmo Sirius, que ela mal conhecia, seria capaz de pedir que ela sacrificasse tudo por um título que não significava nada.

Ela se agarrou a essa ideia, tentando convencer a si mesma de que estava fazendo a coisa certa.

Mas, no fundo, havia uma voz cruel que sussurrava dúvidas, insinuando que talvez ela estivesse apenas sendo covarde. Seus pais haviam sido corajosos o suficiente para enfrentar Voldemort, para morrer sem hesitar.

Mas e quando a ela? A Menina que Sobreviveu estava fugindo. Escolhendo uma vida sem magia, sem o mundo que amava, sem a essência que a definia.

Será que eles ficariam desapontados? Será que eles a veriam como uma traidora, alguém que não foi capaz de honrar o sacrifício deles?

A culpa pesava em seu peito. Ela se sentia pequena, insignificante, comparada à coragem que seus pais demonstraram. Eles haviam enfrentado a morte de frente, sem medo, enquanto ela, no primeiro obstáculo, virou as costas e escolheu o caminho mais fácil.

Rose fechou os olhos, sentindo as lágrimas queimarem em seus olhos novamente. Ela não queria ser ingrata. Não queria que seus pais pensassem que ela não valoriza o que eles fizeram por ela. Mas, ao mesmo tempo, ela não conseguia imaginar voltar atrás. Não conseguia imaginar escolher a morte, mesmo que fosse por uma causa nobre.

Ela não era como eles. Não era tão corajosa.

Tudo o que ela sabia era que, no momento em que rejeitou o contrato com o Cálice de Fogo, Rose escolheu a vida. Ela escolheu sobreviver, mesmo que isso significasse deixar para trás tudo o que conhecia. Mesmo que isso significasse se sentir vazia, incompleta, como se uma parte de si mesma tivesse sido arrancada.

Talvez, com o tempo, ela pudesse encontrar uma nova maneira de ser feliz. Uma nova maneira de honrar a memória de seus pais, sem precisar sacrificar tudo o que eles lhe deram. Talvez, um dia, ela pudesse olhar para trás e sentir que fez a escolha certa.

Por enquanto, tudo o que ela podia fazer era fingir que tudo ficaria bem.

Talvez um dia realmente ficasse.

 

*

 

Quando Rose chegou na Rua dos Alfeneiros e bateu na porta de sua tia, ela estava certa de que seria expulsa. Suas mãos tremiam, e o coração batia tão forte que ela quase não conseguia respirar. A última coisa que queria era pedir ajuda à tia Petúnia, mas não tinha para onde mais ir. Hogwarts não era mais uma opção, e os amigos que ela pensava que tinha a abandonaram.

Tia Petúnia abriu a porta e a olhou de cima a baixo, os lábios finos se curvando em um sorriso de escárnio. Seus olhos estreitos percorreram a figura desgrenhada e chorosa de Rose, e ela fungou desdenhosamente.

— Eu disse para você só voltar aqui no verão, garota.

Rose fungou, as lágrimas começando a encher seus olhos, enquanto ela sentia todas as suas esperanças evaporarem.

— Eu preciso de ajuda, tia Petúnia.

Petúnia fez uma careta, os olhos estreitados em desprezo.

— Se você quer ajuda, vá pedir para uma daquelas aberrações.

A expressão de Rose se desfez, a sensação de desamparo apertando seu peito. Quando Petúnia se preparou para bater a porta na cara de Rose, um impulso frenético a fez segurar a porta com força. Seus dedos tremiam, mas ela conseguiu mantê-la, e sussurrou, quase desesperada.

— Eu perdi, tia. Eu perdi minha magia. Eu não tenho mais magia.

Petúnia parou bruscamente, congelada na porta, seus olhos arregalados. Ela observou sua sobrinha, que tremia e choramingava na calçada. O silêncio se arrastou entre elas. Petúnia não disse nada por longos minutos, nem se moveu, enquanto Rose permanecia ali, os ombros curvados, sem saber o que faria se fosse realmente expulsa.

E, então, Petúnia abriu um sorriso. 

— Entre, Rose.

Chapter 2: DOIS

Chapter Text

Little Whinging, Surrey

1994

Quando Primrose tinha apenas cinco anos, a professora do jardim de infância propôs uma atividade aparentemente simples: desenhar suas famílias. 

Era algo sobre reconhecer as pessoas que amavam, ou talvez sobre celebrar os laços familiares — Rose não se lembrava ao certo. Mas o que nunca esqueceu foi aquele nó na garganta, aquele vazio que parecia engolir seu peito quando pegou o lápis de cor com suas mãozinhas.

Naquela época, Rose já sabia que era órfã. Sabia que seus pais haviam morrido em um acidente de carro (era mentira, mas na época ela não sabia disso), levando consigo não apenas suas vidas, mas também qualquer chance de um lar verdadeiro, de ir embora para sempre.

Então, enquanto as outras crianças rabiscavam pais, mães, irmãos e até cachorros, ela ficou parada, olhando para a folha em branco, sem saber o que colocar ali.

Não havia ninguém para desenhar. Ninguém que fosse realmente dela .

Então, ela desenhou os Dursley.

Rose queria acreditar que o seu desenho poderia, de alguma forma, significar algo. Que, ao vê-lo, tia Petúnia sorriria, colocaria uma mecha do seu cabelo vermelho atrás da orelha e diria que ela era uma boa menina. Talvez ela até pendurasse na geladeira, como fazia com os rabiscos feiosos de Dudley. Era um sonho tão pequeno e inocente, mas que queimava dentro dela com uma esperança frágil, como uma chama tremulando ao vento.

Nos dias em que a solidão apertava mais forte, Rose se escondia atrás das latas de lixo do parque, observando as outras famílias com um misto de inveja e saudade de algo que nunca teve.

Ela via as mães que se abaixavam para amarrar os cadarços dos filhos, os pais que os erguiam no ar, rindo, e os irmãos que corriam juntos entre os brinquedos. Rose não sentia ciúmes das roupas novas, das lancheiras coloridas ou dos brinquedos caros.

O que ela desejava, com uma dor que latejava no peito, eram os abraços apertados das mães, os sorrisos orgulhosos dos pais e aquela sensação de pertencer a alguém. De ser amada .

Ela queria isso. Queria tanto que chegava a doer.

Então, quando Rose chegou correndo em casa, com o desenho cuidadosamente feito nas mãos e o orgulho brilhando em seus olhinhos verdes, ela entregou-o para tia Petúnia com o coração batendo forte. Ela esperava tudo. Um sorriso, um elogio, um aceno de aprovação.

Ela só não esperava que tia Petúnia olhasse para o desenho com desdém, depois a encarasse com desgosto, e dissesse, no tom mais frio e cruel que já ouvira:

— Eu não sou sua mãe, garota.

Naquele instante, Rose finalmente entendeu.

Não importava o quanto ela tentasse, o quanto se esforçasse para ser boa, para ser quieta, para ser útil. Ela nunca seria parte daquela família. Sempre seria um peso, uma estranha, um incômodo. Alguém que não pertencia.

E o pior era que, naquela época, ela nem sabia o porquê.

Por que era tão difícil para eles a amarem? Por que era tão difícil para alguém, qualquer um, olhar para ela e ver mais do que uma garota que não deveria estar ali?

Mas Rose era diferente.

Ela não sabia ainda, não completamente, mas havia algo nela que a separava do mundo comum, do mundo trouxa dos Dursley. Havia magia correndo em suas veias, pulsando em seu âmago, uma centelha que não se encaixava na vida cinza e sem graça que eles insistiam em impor.

E, embora ela ainda não entendesse, aquela diferença era o verdadeiro motivo por trás de cada olhar de desprezo, cada palavra dura, cada gesto de rejeição.

Naquele dia, Rose aprendeu uma lição que a marcaria para sempre: algumas pessoas nunca vão te aceitar, não importa o que você faça. E, às vezes, o problema não está em você, mas no mundo que insiste em te dizer que você não pertence.

E então, a pequena Primrose Potter foi facilmente descartada.

Eles nunca foram abusivos com ela. Não havia socos, nem tapas, nem portas de armários trancadas sob as escadas. Mas havia algo na Rua dos Alfeneiros que doía mais do que qualquer ferida: a indiferença.

Não havia festas de aniversário com bolo e velinhas, nem abraços apertados que dissessem "estou aqui por você". As roupas de Rose eram sempre as mais baratas das lojas, quando não eram peças de segunda mão de bazares e vendas de garagem, desbotadas e desgastadas pelo tempo.

Seus pesadelos, aqueles que a faziam acordar suando e tremendo no meio da noite — geralmente sobre luzes verdes e o grito de uma mulher, rostos na nuca de um homem ou estranhas criaturas negras sugando a sua alma —, eram enfrentados sozinhos, na escuridão silenciosa da madrugada.

Suas melhores notas, aquelas conquistadas com esforço e dedicação, eram celebradas em silêncio, dentro do quarto vazio, sem aplausos ou palavras de orgulho.

Seu nome nunca era dito com carinho. Nunca era dito com amor.

Ela estava ali, sim. Fisicamente presente, ocupando um espaço na casa, cumprindo tarefas, seguindo regras.

Mas nunca pertenceu àquele lugar.

Nunca foi vista, nunca foi ouvida, nunca foi amada.

De certa forma, isso doía mais do que qualquer outra coisa. Porque Rose não era invisível por acidente — ela era invisível por escolha deles.

Então, enquanto estivesse ali, ela nunca seria mais do que uma sombra na vida daqueles que deveriam tê-la chamado de família.

Por isso, Rose sentiu-se entorpecida quando bateu na porta da tia Petúnia naquela manhã e foi recebida de braços abertos.

Seu corpo moveu-se roboticamente, por puro reflexo, mas a sua mente parecia flutuar em algum lugar distante, incapaz de processar o que estava acontecendo. Era como se o mundo tivesse virado de cabeça para baixo, e ela não soubesse mais o que era real.

De repente, em vez dos habituais sorrisos de escárnio e rostos virados, ela foi conduzida gentilmente para dentro da casa. Petúnia a guiou até o sofá, com uma suavidade que Rose nunca imaginaria ser capaz de vir dela, e uma xícara de chá quente foi colocada em suas mãos trêmulas.

Petúnia sentou-se à sua frente, inclinada para frente, os olhos fixos nela com uma intensidade que Rose nunca tinha visto antes.

E, pela primeira vez, tia Petúnia a ouviu. De verdade.

Rose contou tudo.

Cada coisa absurda que havia acontecido em Hogwarts desde o primeiro dia até o momento final, quando o Cálice de Fogo cuspiu seu nome e a deixou sem chão.

Em outra época, tia Petúnia a odiaria por sequer falar a palavra “magia”; Naquele dia, no entanto, cada palavra que Rose dizia era recebida com atenção, como se tivessem algum valor, como se ela, finalmente, importasse.

Era estranho, quase surreal, e Rose mal conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo. Ela se via falando, mas era como se fosse outra pessoa, como se estivesse observando a cena de longe, sem conseguir se conectar completamente.

Pela primeira vez em muito, muito tempo, Primrose foi ouvida.

E, embora parte dela quisesse se entregar àquele momento, àquela sensação de ser vista, outra parte permanecia desconfiada, esperando que tudo aquilo fosse desmoronar a qualquer instante.

Porque, no fundo, Rose sabia que algumas mudanças são tão repentinas que parecem sonhos — e sonhos, ela já sabia, nem sempre duram para sempre.

Quando ela chorou, não houve desprezo, olhares impacientes e pedidos de silêncio — apenas palavras inesperadas de consolo e um toque hesitante no ombro.

Em algum momento, tia Petúnia também dizia coisas sem sentido, como:

— Eu sei como é se sentir assim.

Ou:

— Eles também me expulsaram do seu mundo.

Ou ainda:

— Agora você é finalmente normal. Meu sonho se realizou. Eu sempre quis uma garotinha.

Rose não entendeu.

Quando o tio Vernon chegou em casa e parou na porta, o rosto ficando vermelho de raiva, Rose sentiu o seu estômago afundar. Ela esperava que ele explodisse, como sempre fazia, gritando e exigindo que ela saísse de sua vista. 

Mas, em vez disso, tia Petúnia sussurrou algo em seu ouvido, algo que fez o rosto dele mudar em segundos. De repente, o homem que nunca ousara sequer olhá-la nos olhos se aproximou e a envolveu em um abraço forte, quase paternal.

Rose não entendeu.

Quando Dudley, que sempre adorava puxar suas tranças ou fazer piadas cruéis, se aproximou, ela se preparou para o pior.

Mas, para sua surpresa, os tios o repreenderam com uma firmeza que nunca haviam demonstrado antes. Explicaram a "situação" em voz baixa, e Dudley, em vez de rir ou zombar, simplesmente sentou-se ao seu lado no sofá, como se sempre tivessem sido próximos a vida toda.

Rose ainda não entendeu.

Mais tarde, naquela noite, deram-lhe um pijama novo, macio e limpo, e a aconchegaram na cama com um cuidado que ela nunca tinha experimentado.

Tia Petúnia beijou sua testa pela primeira vez, seus lábios finos tocando levemente sua pele, e prometeu que tudo se resolveria no dia seguinte.

Tio Vernon, de pé ao lado da cama, disse que estava orgulhoso dela, que era bom vê-la "livre daquele mundo".

E até Dudley, antes de sair do quarto, sorriu e a convidou para jogar videogame no dia seguinte, como se fossem irmãos.

E então, finalmente, Rose entendeu.

Não eram eles que haviam mudado. Eles ainda eram os mesmos Dursleys de sempre, com suas vidas ordenadas e seu desprezo por tudo que fugisse do comum.

A diferença era que agora Rose não era mais especial.

Não era mais uma aberração, uma garota com magia, uma estranha que não pertencia ao mundo deles.

Agora, ela era tão normal quanto os Dursleys.

Enquanto fechava os olhos naquela noite, Rose sentiu um vazio que nenhum abraço ou palavra gentil poderia preencher. Porque, agora, ela ainda não pertencia a lugar nenhum.

 

*

 

O dia seguinte não começou barulhento como de costume. Não houve exigências de tia Petúnia para que ela ajudasse no café da manhã, nem o olhar reprovador de tio Vernon. Dessa vez, Rose foi permitida dormir além do horário habitual, e quando finalmente despertou, ela quase pulou da cama, temendo estar atrasada.

Estranhamente, ninguém a repreendeu.

Em vez disso, tia Petúnia estava à sua espera, segurando um vestido amarelo-floral, cheiroso e cuidadosamente dobrado.

Sem críticas, sem resmungos sobre seus cabelos desgrenhados ou sua aparência desleixada, tia Petúnia a levou até o espelho e começou a pentear seus cachos com uma delicadeza que Rose nunca tinha visto nela antes.

Seus dedos moviam-se com cuidado, desembaraçando os fios e prendendo-os em uma trança perfeita atrás da cabeça.

Rose ficou parada, imóvel, observando o reflexo no espelho, a respiração suspensa enquanto esperava o outro sapato cair.

Tia Petúnia, com suas mãos suaves e seu silêncio incomum, parecia uma versão diferente de si mesma — alguém que Rose nunca tinha tido a oportunidade de conhecer. Alguém que talvez pudesse ter existido, em outra vida, em outra realidade.

Então, tia Petúnia parou, segurando os grampos entre os dedos, e olhou para Rose através do espelho. Seus olhos, normalmente frios e distantes, pareciam turvos, como se estivessem vendo algo — ou alguém — que não estava ali.

— Teria sido assim... se ela tivesse escolhido uma vida normal.

Sem dizer mais nada, tia Petúnia segurou sua mão e a guiou até a cozinha. E Rose seguiu, obedientemente, como se estivesse caminhando em um sonho, tentando ignorar o desconforto que rastejava sob sua pele.

Cada passo parecia errado, cada gesto de tia Petúnia, por mais gentil que fosse, a deixava mais tensa. Era como se ela estivesse esperando um bicho-papão sair de um dos armários ou que o mundo fraturasse e girasse, e depois voltasse ao que era antes — a indiferença, o desprezo, a frieza.

Ela sentou-se hesitante à mesa, onde um prato a esperava ao lado de uma xícara de chá. Tia Petúnia serviu mais café para Vernon, lançou-lhe um olhar avaliador e, sem dizer nada, empurrou mais comida para o prato de Rose.

— Coma, querida.

Rose franziu a testa ao ouvir o carinho na voz de tia Petúnia, algo tão estranho que quase a fez estremecer.

Moveu os talheres mecanicamente, levando a comida à boca sem realmente sentir o gosto. Ao seu lado, Dudley mastigava distraído, os olhos grudados na televisão e a boca aberta. Tio Vernon lia o jornal como se nada no mundo pudesse perturbá-lo, enquanto tia Petúnia fritava mais bacon no fogão, o cheiro enchendo o ar.

Era assustadoramente normal.

E era justamente isso que a deixava tão inquieta. A normalidade daquela cena, a tranquilidade que parecia ter se instalado na casa, era algo que Rose não sabia como processar. Ela estava ali, sentada à mesa, comendo em silêncio, mas sua mente estava distante, letárgica, como se estivesse apenas observando tudo de longe, como se ela tivesse se tornando apenas a espectadora da sua própria vida.

Era como se ela tivesse sido presa em um sonho — um daqueles que ela sonhava quando ainda era criança, cheia de uma esperança ingênua de que, um dia, tia Petúnia viraria a sua mãe.

Naquela época, Rose imaginava acordar para abraços apertados, roupas novas e bonitas, cafés da manhã feitos com carinho e palavras gentis que a fariam sentir que pertencia.

Sonhava com uma vida onde seu nome seria dito com amor, onde suas conquistas seriam celebradas, e ela seria acolhida.

Exatamente como estava acontecendo agora.

Mas isso não era real, era? Não poderia durar para sempre.

Porque, para Rose, a normalidade nunca tinha sido uma opção. E, por mais que ela tentasse se entregar àquela ilusão, uma parte dela já estava esperando o momento em que tudo desmoronaria, e ela seria jogada de volta à realidade.

— Pensei em irmos ao shopping. — Tia Petúnia falou de repente. — Comprar roupas novas para você.

— Roupas… pra mim?

— Agora que você não é mais… aquilo , precisa parecer uma moça decente. Não pode andar por aí com aquelas tralhas de segunda mão.

Aquilo .

Ela nem precisou perguntar para entender.

Antes, ela teria retrucado. Teria olhado tia Petúnia nos olhos e dito que, se não queria vê-la em roupas de segunda mão, então não deveria tê-las comprado no bazar da igreja em primeiro lugar.

Antes, teria sentido a raiva e o ressentimento ferverem sob sua pele, incendiando cada célula de seu corpo com o desejo de se afirmar, de se lembrar e de ser lembrada.

Mas isso foi antes.

Antes, ela era uma bruxa.

Antes, ela era diferente dos Dursleys.

Agora, Rose apenas assentiu, seus olhos baixos fixos no prato, as mãos tremendo levemente sob a mesa.

Ela não tinha energia para lutar, nem para questionar.

A chama que antes a mantinha viva, que a fazia erguer a cabeça mesmo quando tudo parecia desmoronar, havia se apagado junto com a sua magia.

E, no lugar dela, restava apenas uma apatia fria, uma submissão silenciosa que a fazia seguir o fluxo.

O que seria de Rose agora?

— Tudo bem — ela murmurou, sua voz quase sumindo no ar.

Tia Petúnia sorriu, satisfeita, como se tivesse conquistado algo importante. Bem, talvez ela realmente tivesse.

Porque, naquele momento, Rose não era mais uma ameaça, uma aberração, uma lembrança de um mundo que os Dursleys tanto odiavam.

Ela era apenas uma garota comum, uma garota que poderia ser transformada em algo que se encaixasse perfeitamente na vida ordenada, perfeita e sem magia que eles tanto valorizavam.

— Perfeito! Quando vocês voltarem, podemos conversar sobre o que vamos fazer.

Tio Vernon sorriu satisfeito, dobrando o jornal sobre a mesa, enquanto começava a cavar seu prato.

Rose piscou, confusa.

— Como assim?

Tio Vernon olhou para ela, o sorriso desaparecendo lentamente, dando lugar a uma expressão mais séria, quase preocupada.

— Você pode estar correndo riscos estando aqui. É bem provável que aquelas… pessoas … estejam atrás de você.

Tia Petúnia concordou com um aceno e tomou seu lugar na mesa, parecendo, pela primeira vez, genuinamente feliz.

— Eu já liguei para o meu primo Charlie. Você vai morar com ele, por enquanto.

Charlie? Quem diabos era Charlie? Desde quando tia Petúnia tinha primos ?

— Charlie?

Tia Petúnia ignorou a pergunta, como se fosse sem importância.

— É o melhor pra você. Um bom lugar para você estudar, arranjar um bom marido depois de se formar numa boa escola e ter uma vida normal.

Tio Vernon concordou com um sorriso orgulhoso.

— Nós podemos visitá-la todo verão. É uma ótima oportunidade para uma viagem em família pela América.

Que porra era essa?!

Eles iam mandá-la para a América?

O quê?!

— E Forks é uma ótima cidade. Pequena, mas adequada para uma jovem. E Charlie é um policial respeitável que poderá protegê-la. Ele se divorciou ano passado e terá tempo para cuidar de você adequadamente.

Rose não tinha certeza se estava enfurecida ou devastada.

A surpresa daquela declaração fez o seu estômago se revirar e o seu peito apertar em pânico. Era por isso que eles estavam tão felizes? Por que, finalmente, eles iriam se livrar dela?

— Eu estou sendo expulsa?

A pergunta saiu em um fio de voz, quase inaudível, mas carregada de dor. A cozinha ficou silenciosa por um breve momento, quando seus tios encaram a sobrinha com espanto.

Tia Petúnia colocou os talheres ao lado do seu prato calmamente.

— Não estamos expulsando você, querida. Mas você precisa entender que se você fugiu daquele lugar, eles podem vir atrás de você em algum momento.

— Mas eu não tenho magia, por que eles iriam me querer de volta?

Tia Petúnia hesitou, a expressão ligeiramente tensa.

— Eu não acho que seja esse o problema. Aquele homem, Dumbledore, nos contou sobre a sua importância para aquelas pessoas. Ele disse que você era algum tipo de… figura importante, ou sei lá o quê. E com alguém querendo matá-la agora, eles podem muito bem aproveitar o fato de você não ter mais… magia… e vir atrás de você.

— Você realmente acha que isso pode acontecer, tia Petúnia? Eles podem vir atrás de mim?

A expressão de Petúnia suavizou, e ela estendeu a mão sobre a mesa, segurando a de Rose com firmeza.

— Eles têm essas coisas mágicas que podem ajudá-los, Rose. Mas, além disso… agora que você não tem mais essa magia, eu não sei por quanto tempo as proteções desta casa vão durar.

Rose franziu a testa.

— Proteções?

— Aquele homem, Dumbledore, nos disse algo sobre isso. Algo sobre proteções que estavam ligadas ao meu sangue e sua magia. Enquanto estivesse aqui, você estaria protegida.

Rose sentiu o estômago afundar.

— Mas se eu não tenho mais magia…

Ninguém disse nada, mas o restante da frase era óbvio para todos.

Então, com uma risada satisfeita, Tio Vernon deu um tapa amigável no ombro de Rose, parabenizando-a.

— Agora você é uma de nós, Primrose.

Tia Petúnia, ao seu lado, abriu um sorriso amoroso para o marido, filho e, curiosamente, também para Rose.

Isso era algo que Rose nunca teve — sentar à mesa de jantar com os tios, enquanto eles distribuiam sorrisos, elogios e carinhos para ela. Não havia sarcasmo, nem desdém, só uma educação e amabilidade desconcertante que parecia sufocá-la. Os seus olhos arderam, um nó se formou em sua garganta e ela sentiu uma vontade inesperada de chorar.

Uma pontada de arrependimento brotou em seu peito. Talvez ela tivesse tomado a decisão errada? Talvez tivesse sido precipitada em abandonar Hogwarts, em fugir do Torneio Tribruxo? Se tivesse ficado, talvez não tivesse vencido, mas pelo menos teria sobrevivido, certo? Ela poderia ter tido alguma ajuda, não poderia?

Ajuda de quem? Dos seus amigos traidores?  

Uma vozinha irritante ecoou cruelmente em sua cabeça.

Era verdade. Quem iria ajudá-la quando todos viraram as costas para Rose? Como ela poderia ter vencido quando até mesmo os professores duvidaram que ela não havia trapaceado? Como ela poderia ter sobrevivido, se tinha apenas 14 anos e seus melhores amigos a chamaram de mentirosa?

Não tinha como voltar atrás.

Rose sabia que sempre fora impulsiva, conhecida por tomar decisões sem pensar, seguir cegamente o que diziam, se jogando de cabeça nas situações sem ponderar as consequências. Foi assim que ela acabou nessa situação atual, quando, no auge do pânico, fugiu de Hogwarts sem olhar para trás.

Mas agora, olhando para trás, quando tudo o que queria era ser apenas Rose — e não Primrose Potter, a Garota que Sobreviveu, a Salvadora do Mundo Bruxo, a Campeã do Torneio Tribruxo —, ela percebeu que, pela primeira vez na vida, ela deveria conter um pouco a sua impulsividade, e parar para pensar.

Afinal, havia vantagens em ir embora.

Mesmo que ela estivesse abandonando a sua magia, abandonando o mundo que tanto amou, o castelo que sempre chamou de lar, seus primeiros amigos e até mesmo seu padrinho… havia algo que Rose poderia buscar e valorizar muito mais.

Viver.

Ela não tem certeza se será feliz, mas pelo menos poderá viver de verdade.

 

*

 

Rose concordou em ir para Forks. E, em poucas horas, toda a sua nova vida já estava completamente decidida por ela.

Uma passagem comprada para o dia seguinte; roupas escolhidas meticulosamente por tia Petúnia — mais femininas, mais delicadas, mais aceitáveis.

Mais normais.

Enquanto organizava as suas malas, dobrando com cuidado os vestidos floridos, as saias e as blusas em tons suaves, Rose sentiu uma sensação de inquietação crescer em seu peito.

Não era exatamente antecipação, talvez algo mais próximo de dúvida, uma voz sussurrando no fundo de sua mente que talvez aquilo tudo ia dar errado.

Ela queria acreditar que estava pronta para recomeçar, para ser apenas Rose, sem a constante sombra da Garota que Sobreviveu sobre seus ombros. 

Mas, ao mesmo tempo, uma parte dela questionava se isso era realmente possível. Será que ela poderia simplesmente deixar tudo para trás? Será que o mundo bruxo a deixaria em paz?

A despedida com os Dursleys foi estranhamente desconfortável — cheia de lágrimas forçadas, promessas vazias de ligações e visitas nos verões. Rose não tinha certeza se aquilo era real ou uma tentativa deles de se sentirem menos culpados por estarem se livrando dela.

Mesmo assim, ela sorriu, acenou e agradeceu, como se acreditasse em cada palavra que eles diziam.

Quando entrou no avião, uma leve ansiedade ainda apertava seu peito e uma onda de incerteza tomou conta dela.

Será que ela realmente estava seguindo o caminho certo? Será que aquela decisão, embora dolorosa, realmente lhe traria a liberdade e a segurança que ela tanto desejava? E, mais importante, será que ela seria feliz?

Rose não tinha certeza de nada. E, enquanto o avião decolava, levando-a para longe de tudo o que ela conhecia, uma única pergunta ecoava em sua mente, persistente e inquietante:

O que eu estou fazendo?

Chapter 3: TRÊS

Chapter Text

Forks, WA

1994

Forks não era tão diferente de Londres, pelo menos não no que dizia respeito ao clima.

A chuva persistente tingia as ruas de um tom melancólico, e o céu cinzento parecia uma companhia constante desde o instante em que Rose desembarcou na cidade. Mas, enquanto Londres era uma selva de pedra, repleta de pessoas apressadas e prédios que carregavam séculos de história, Forks era apenas uma extensão de árvores encharcadas, musgo cobrindo cada superfície disponível e — é claro — muitos, muitos olhares curiosos.

Rose foi recebida no Aeroporto de Port Angeles por Charlie Swan, o primo distante da tia Petúnia de quem ela nunca ouvira falar. Ele a aguardava em uma viatura de polícia, e o constrangimento começou assim que entraram na rodovia principal. Os olhares dos moradores pareciam grudar nela, como se sua chegada fosse o evento mais interessante dos últimos tempos naquela cidade minúscula.

Infelizmente, para eles, provavelmente era mesmo.

Dentro do carro, o silêncio era constante, interrompido apenas pelas tentativas hesitantes de Charlie de preencher o vazio com fragmentos de sua própria história miserável. Ele falou brevemente sobre a esposa que o havia deixado no ano anterior, levando consigo uma garota chamada Isabella, a filha de seis anos deles. O divórcio foi formalizado pouco depois, e ele acabou sozinho em Forks, dividido entre a rotina da delegacia na semana, sábados de futebol na televisão e domingos de pesca.

Rose ouviu, mas manteve os olhos fixos na paisagem úmida que desfilava pela janela, tentando ignorar o desconforto que crescia dentro dela.

— Olha, garota… Eu não sei o que aconteceu direito, mas sei que sua tia não te mandaria para tão longe sem um bom motivo, certo? Ela disse que você precisava disso. Essa mudança pode ser complicada para nós dois, mas… talvez possamos fazer disso algo bom para você. O que acha?

Rose hesitou por um momento, os dedos brincando nervosamente com a borda da jaqueta. Ela olhou cautelosamente para Charlie, tentando decifrar se havia alguma segunda intenção em suas palavras, mas só encontrou sinceridade.

— Claro… Tudo bem. Obrigada por me receber, Sr. Swan.

— Nada disso. — Ele respondeu rapidamente, com um aceno de mão. — Pode me chamar de Charlie. Ou tio Charlie, se preferir.

— Tudo bem… tio Charlie.

Ele sorriu satisfeito com a escolha dela, os olhos brilhando por um instante antes de se fixarem novamente na estrada.

— Não se preocupe, garota. Vai dar tudo certo.

Rose assentiu, mas não respondeu. Sua mente estava longe novamente, vagando entre pensamentos e dúvidas que ainda a assombram desde que ela havia decidido deixar tudo para trás.

No fundo, ela não estava triste pela mudança. Na verdade, Forks era bastante cativante. Aqui, ninguém a olhava do jeito que faziam em Hogwarts, ninguém sussurrava coisas maldosas às suas costas, ninguém sabia quem ela era. E, mais importante, ninguém esperava nada dela.

Era libertador. E, pela primeira vez, Rose poderia simplesmente existir. Poderia jogar um esporte sem que alguém a julgasse por favoritismo. Poderia ler um livro sem que o título importasse. Poderia conhecer essa coisa chamada Cinema, que os trouxas pareciam gostar, e talvez até fizesse amigos sem a sombra constante daquela apreensão — será que eles gostam de mim ou da minha fama?

Mas havia o outro lado. O lado que fazia seu estômago revirar e suas mãos tremerem levemente sobre o colo. Porque, no fim, abandonar sua história não era o mesmo que apagá-la. E começar do zero, mais uma vez, era assustador.

O anonimato era um alívio. Mas o desconhecido era aterrorizante.

E se, no futuro, Rose acabasse concluindo que tomou uma decisão errada, então já seria tarde demais. E agora ela nem tinha mais magia para se defender.

Por anos, ela desejou desaparecer, fugir para outro lugar onde ninguém a conhecesse, onde não carregasse um sobrenome que não escolheu e um título que apenas a lembrava constantemente de que ela era uma órfã, que não havia mais ninguém por ela, que ela havia sobrevivido apenas para sofrer escrutínio, desdém e uma adoração imerecida. Ela sempre desejou ser apenas Rose.

E agora que, finalmente, havia conseguido, ela nunca se sentira tão vulnerável.

Olhando de soslaio para Charlie — tio Charlie —, ela se perguntou se seus pais apoiariam essa decisão. Se eles aceitariam o fato de que ela foi uma covarde, que teve medo, de que a ideia de perder sua vida foi pior e mais apavorante do que a ideia de perder a sua magia — mesmo que ela não soubesse disso quando tomou a sua decisão.

Será que eles diriam que ela era uma decepção? Será que eles ficariam desapontados? Será que nem a reconheceriam mais?

— Sua mãe era minha prima favorita, sabe?

A voz de Charlie a arrancou de seus pensamentos melancólicos em um estalo. Rose virou o rosto para ele, surpresa.

— Você conheceu minha mãe?

— Sim. Eu morava perto de Cokeworth, onde sua mãe cresceu. Depois eu conheci Reneé e viemos morar em Forks e então acabamos nos distanciando, mas… você se parece muito com ela.

— Eu ouço isso o tempo todo.

Charlie soltou um suspiro e assentiu devagar, os dedos batendo levemente no volante.

— Eu não sabia que ela tinha falecido. Sinto muito, garota.

Rose deu de ombros, desviando o olhar para a janela, observando a paisagem esverdeada que passava borrada do lado de fora.

— Está tudo bem. Faz muito tempo, eu mal lembro deles.

O silêncio pairou por alguns segundos antes de Charlie perguntar:

— Eles morreram quando você era muito pequena?

— Sim, eu ainda era um bebê.

— Você viveu com Petúnia desde então?

— Sim…

— E por que ela decidiu entrar em contato só agora?

Rose apertou os lábios por um instante antes de responder:

— Ela achou que uma mudança de cenário faria bem pra mim.

Charlie ergueu uma sobrancelha, claramente cético com a resposta vaga, mas não pressionou. Em vez disso, ele apenas assentiu.

— Bem… Seja qual for o motivo, espero que você se sinta bem aqui. Forks é bastante monótona, mas talvez isso seja bom pra você.

— Espero que sim. — Rose sussurrou e sentiu os olhos arderem ao pensar novamente em seus pais.

— Eu sei que sim… Sua mãe, bem, ela amava você muito antes de pensar em se casar, sabe? Ela sempre dizia que era o sonho dela ter um filho, e que faria de tudo para ele ser feliz. Então, tenho certeza que ela ficaria feliz com a sua mudança.

Rose piscou, surpresa. Sentiu um nó se formar na garganta.

— É mesmo? O que mais ela dizia?

Charlie sorriu como se lembrasse de uma ótima memória.

— Eu enviei uma foto de Forks para ela uma vez. Deve ter sido por volta de 1981. Ela adorou. Dizia que seria perfeito viver em um lugar tão tranquilo, em paz, longe de todos.

— 1981? — Rose repetiu, os olhos se arregalando levemente ao ouvir aquela data.

— Sim, eu lembro bem disso, porque eu e Reneé havíamos comprado a nossa casa há poucos meses. A sala nem tinha um sofá ainda. — Charlie abriu um sorriso melancólico, provavelmente lembrando de alguma memória dolorosa. — Bem, de qualquer forma, ela perguntava bastante sobre Forks, imagino que ela gostaria de viver aqui.

— Ela queria viver em Forks?

— Ela sempre falava que queria um lugar onde pudesse respirar, sabe? Ela dizia que era melhor que a bagunça de Londres, mas acho que ela só via algo especial em Forks, mesmo sem nunca ter posto os pés aqui.

Rose ficou em silêncio por um momento, absorvendo aquela informação. Era estranho pensar que, talvez alguns meses antes de sua morte, sua mãe provavelmente estava planejando ir embora.

Talvez, em outro universo, ela tivesse conseguido fazer isso antes que Voldemort tivesse encontrado os Potter. Talvez, em outra dimensão, Rose tivesse crescido em Forks com seus dois pais e talvez alguns irmãos, e não em uma casa frígida e sem amor.

Mas agora, anos depois, aqui estava ela seguindo um caminho que, de certa forma, sua mãe havia imaginado. Isso não era aprovação suficiente?

— Você acha que ela queria ir embora de Londres?

— Estranho, né? — Charlie murmurou, franzindo a testa. — Quer dizer, eu nunca achei que ela tivesse interesse em sair da Inglaterra. Ela parecia gostar bastante de viver lá. Mas ela sempre foi aventureira, então não seria inédito da parte buscar uma nova experiência.

— E ela nunca mencionou… ter uma filha? — A voz de Rose tremia levemente, apesar de seus esforços para mantê-la neutra. Ela queria perguntar mais. Queria reunir cada detalhe, cada lembrança que tornava os seus pais reais — não apenas fantasmas em sua mente ou heróis nas páginas do Profeta Diário.

Ela queria saber o que os fazia humanos. O que os fazia vivos.

Porque, no fim das contas, parecia que todo mundo conhecia partes deles que ela jamais teve a chance de descobrir.

— Nunca. — Charlie balançou a cabeça, pensativo. — Ela falava que queria ser mãe um dia, é claro, mas isso foi bem antes de se casar. Nós perdemos contato um tempo depois que eu cheguei em Forks.

— Você nunca tentou falar com ela?

Charlie soltou um suspiro cansado.

— Eu pensei em escrever algumas vezes, mas, sei lá… A vida acontece, né? Estávamos ocupados, as coisas estavam indo bem pra mim no trabalho e eu fiquei sabendo que ela estava casada. Imaginei que estivesse tudo bem. — Ele apertou os lábios. — Acho que devia ter tentado.

Rose não soube o que dizer. Seu coração estava cada vez mais apertado. Lily Potter, sua mãe corajosa, queria sair de Londres e viver em Forks. Nada disso fazia sentido com as histórias contadas sobre a noite da morte dos Potter.

Ela queria fugir? Ou era apenas algum desejo básico de conhecer uma cidade nova, mas que nada tinha a ver com a guerra que acontecia no Mundo Mágico? Será que seu pai sabia?

— Petúnia nunca falou nada disso? — Charlie perguntou, estreitando os olhos.

Rose hesitou.

— Minha tia… não gosta muito de falar da minha mãe.

— É, ela sempre foi meio amarga. — Ele ficou em silêncio por um momento, depois suspirou. — Se você quiser, posso te mostrar as últimas cartas que recebi de Lily. O que você acha?

Rose sentiu seu coração acelerar. Era estranho, mas também reconfortante ouvir esses pequenos detalhes sobre a sua mãe e poder saber mais sobre ela, especialmente agora que ela sabe que seus pais provavelmente não ficariam decepcionados com a sua fuga. 

Bem, não era exatamente a confirmação que ela queria, mas era um passo na direção certa, afinal se seus pais se jogaram na frente da varinha de Voldemort para mantê-la viva, então eles nunca poderiam ficar decepcionados por ela escolher a própria segurança acima de qualquer coisa.

E se a sua mãe estivesse, de alguma forma, pensando ou planejando sair da Grã-Bretanha, provavelmente não seria errado que Rose tivesse escolhido o mesmo, certo?

Eles não sacrificaram suas vidas para que ela se tornasse um mártir. Eles queriam que ela vivesse.

Rose respirou fundo, sentindo a pressão em seu peito perder força, e olhou pela janela novamente. Desta vez o céu nublado, as árvores altas e escuras, a chuva fina escorrendo todo vidro e aquele verde em todo lugar, fez ela sentir que talvez fosse isso que ela precisava: um lugar pequeno, remoto e monótono para ela ser normal.

Não era louco que ela estivesse finalmente concordando com tia Petúnia?

Agora, pela primeira vez desde que tomou a sua decisão, Rose sentiu que talvez estivesse finalmente honrando o desejo de seus pais ao recomeçar em Forks.

— Eu adoraria. Obrigada, tio Charlie.

— De nada, querida. — Ele respondeu, voltando a olhar para a estrada. — Acho que ela ficaria feliz em saber que você está aqui.

Rose não respondeu, mas esperava que ele estivesse certo.

 

*

 

Charlie morava em uma casinha de três quartos em uma área cercada por árvores altas e densas que pareciam quase esconder a propriedade do resto do mundo. A casa era simples, mas parecia aconchegante, com um jardim frontal que parecia um pouco negligenciado e uma fachada de madeira clara que parecia levemente desbotada pela chuva.

Ao entrar, Rose notou que o interior era igualmente modesto. Havia um sofá de couro levemente desgastado, uma poltrona confortável e uma televisão antiga apoiada em um móvel de madeira escura. Nas paredes, algumas molduras com fotografias antigas decoravam o ambiente, mas nada que indicasse um grande apreço por decoração.

Parecia exatamente a casa de um homem divorciado, como se alguém tivesse levado metade dos pertences.

Charlie entrou na frente, pegando as malas de Rose e seguindo pela escada, em direção a um corredor estreito. Ele apontou três quartos e um pequeno banheiro. Aparentemente o quarto do meio era da filha dele, mas Rose conseguiu ver apenas de relance um berço no canto, cortinas amarelas e paredes pintadas de azul.

— Aqui é o seu quarto. — Ele empurrou a porta de um cômodo no final do corredor.

O espaço era igualmente simples, assim como o restante da casa. Mas era agradável, nada parecido com a casa clinicamente impecável e sufocante da tia Petúnia. As prateleiras vazias nas paredes e o pequeno armário no canto denunciavam que o cômodo não havia sido planejado como um quarto. Além disso, havia apenas uma cama de solteiro e uma escrivaninha posicionada sob a janela, que dava vista para o quintal cercado de árvores.

— Era o antigo ateliê de Reneé. — Explicou Charlie, coçando a nuca. — Depois que ela se mudou, eu meio que só deixei as coisas aqui. Mas tem uma cama nova e… bem, se precisar mudar alguma coisa, fique à vontade.

— É perfeito, tio Charlie. Muito obrigada.

Charlie assentiu com um grunhido baixo, parecendo aliviado por não precisar continuar a conversa. Ele murmurou algo sobre ver o que tem pro jantar, e então Rose ficou sozinha.

Não era um problema. Na Rua dos Alfeneiros, ela quase sempre preferia ficar sozinha em seu quarto a dividir espaço com seus tios, especialmente quando sua tia começava a criticar até o mais insignificante detalhe de sua vida, transformando até as menores ações de Rose em alvo para sua língua afiada.

Ao longo dos anos, Rose aprendeu a se afastar, a se proteger do veneno que tia Petúnia despejava sobre ela. Ela costumava se esconder em seu quarto ou se refugiar nas tarefas de casa que era obrigada a assumir diariamente. Ela não precisava de ninguém para lhe lembrar de suas falhas; o simples fato de viver naquela casa já era um lembrete constante de sua condição de intrusa, indesejada.

Agora, na casa do tio Charlie, ela ficou sozinha na primeira oportunidade, e, apesar da tranquilidade da solidão, ela não tinha certeza se isso a fazia se sentir melhor. Afinal, talvez essa fosse a tranquilidade que ela sempre desejou, ou talvez fosse apenas o começo de algo pior.

Rose se forçou a ignorar o medo e a ansiedade irracionais que arranhavam a sua garganta e, em vez de se perder nos pensamentos, ela focou em algo simples: tirar suas roupas das malas e organizar o pequeno armário no canto. No entanto, ao fazer isso, seus olhos se voltaram para a escrivaninha e, de repente, o peso da realidade a atingiu com força. Ela teria que estudar na escola trouxa? Ela seria uma estudante do ensino médio, certo? O pensamento a paralisou.

Ela só tinha como referência a educação pré-escolar da Inglaterra e as disciplinas de Hogwarts, e, mesmo assim, a ideia de um currículo trouxa parecia completamente distante e esmagadora.

O simples pensamento de ter que se adaptar a tudo aquilo, sem saber por onde começar, a deixava inquieta e completamente perdida.

Rose sentiu um frio percorrer sua espinha ao perceber que não tinha a menor ideia de como funcionava o currículo trouxa depois dos 11 anos. Como ela justificaria isso para Charlie? Como explicaria que, na verdade, passara os últimos três anos em uma escola de magia?

A ideia de quebrar o Estatuto do Sigilo era aterrorizante. Ela mal conseguia respirar só de pensar nas consequências. Havia um Ministério da Magia nos EUA? Alguém poderia descobrir onde ela estava e persegui-la por causa disso? 

Ela não sabia.

De repente, Rose se sentiu burra. Como ela nunca tinha pensado em pesquisar sobre isso antes? Como não tinha considerado que, ao se mudar para o mundo trouxa, precisaria de respostas que não tinha? Era como se, ao fugir de Hogwarts, ela tivesse deixado para trás não só os perigos, mas também qualquer senso de preparação e autopreservação.

Ela teria que mentir para Charlie? Esconder essa parte da sua vida?

De repente, a culpa começou a se formar em seu peito, pesada e sufocante. Charlie nem a conhecia direito, e ainda assim abriu as portas de sua casa para ela. Ele a recebeu com gentileza, com uma bondade que ela não esperava, apenas porque ela era a filha de Lily, sua prima favorita.

Como ela poderia mentir para ele? Como poderia esconder algo tão grande?

Rose se jogou na cama e apertou as mãos no colo, sentindo os dedos tremendo. Ela não queria mentir. Não para Charlie. Ele parecia genuíno, alguém que realmente se importava.

Mas a verdade… a verdade era perigosa, e ela não queria colocar Charlie em risco. Mas a ideia de mentir, de construir uma história falsa sobre sua vida, a fazia se sentir ainda pior. Era como se ela estivesse traindo a confiança dele antes mesmo de tê-la conquistado.

E ela nem era uma boa mentirosa.

— …Rose? — A voz de Charlie a tirou de seus pensamentos. Ela olhou para ele rapidamente, observando suas feições se contorcendo de preocupação. — Está tudo bem? Eu estava te chamando há alguns minutos.

Rose forçou um sorriso, sentindo-se completamente sobrecarregada.

— Sim, claro. Estou bem. Apenas pensando.

Ele assentiu, mas não pareceu totalmente convencido.

— Se precisar de alguma coisa, é só falar, tudo bem?

— Claro, tio Charlie. — Rose sentiu o coração apertar. Ele era tão gentil, e ela estava ali pronta para contar uma mentira na cara dele.

Charlie deu um passo para trás, olhando para ela por mais um instante antes de mudar de assunto.

— Você quer jantar? Eu pedi pizza.

— Claro, eu nunca comi pizza antes. — Ela respondeu, tentando soar entusiasmada, mas sua voz só pareceu aguda e forçada.

Charlie pareceu notar, mas não comentou. Em vez disso, ele a encarou longamente, as sobrancelhas ainda mais franzidas do que antes.

— Você nunca comeu pizza?

Rose sentiu o rosto esquentar. Ela não tinha pensado nas implicações daquela simples frase. Para ela, era apenas um fato — garotas como ela não comiam coisas boas na casa dos Dursleys.

Lembrou-se das refeições silenciosas na mesa da cozinha, com Dudley devorando tudo o que era gostoso enquanto ela se contentava com o que sobrava. Lembrou-se das vezes em que abria a geladeira e encontrava apenas um pedaço de queijo velho ou uma maçã murcha. Guloseimas, doces e outras comidas diferentes eram para pessoas normais , não para ela.

Rose nunca passou fome, ela só tinha acesso a pouca comida. Ela apenas nunca foi mimada, nunca teve o luxo de escolher o que comer, nunca experimentou a sensação de abrir a geladeira e encontrar algo que a fizesse sorrir.

Em Hogwarts, no entanto, tudo mudou.

Ela lembra da primeira noite no Salão Principal, aos 11 anos, quando as mesas estavam lotadas de milhares de pratos que se enchiam magicamente a cada mordida. Havia tantas opções — carnes assadas, purê de batata, legumes frescos, pães quentes, sobremesas que pareciam saídas de um sonho. Rose ficou paralisada, tonta, olhando para aquela abundância como se fosse uma miragem.

E então ela teve um ataque de pânico depois do jantar. Sentada em sua cama confortável demais no dormitório da Grifinória e com as cortinas firmemente fechadas para se esconder do mundo, ela começou a tremer, as lágrimas escorrendo silenciosamente sem que ela conseguisse controlar. Era tudo demais. Demais para alguém que cresceu acostumada com migalhas.

— Eu não tive muitas chances. — Ela finalmente disse, evitando o olhar do tio Charlie. — Minha tia não era muito fã de comidas assim.

A mentira soou fraca até para seus ouvidos, mas Charlie não pressionou. Em vez disso, ele apenas assentiu distraidamente, como se entendesse mais do que ela mesma estava disposta a admitir.

— Bem, então hoje vai ser sua primeira vez. Espero que goste.

Rose sentiu um pouco da culpa se dissipar, mas o peso ainda estava lá, enquanto ela seguia Charlie até a pequena cozinha no andar de baixo, seus passos hesitantes.

Ela se acomodou em uma mesa desconfortavelmente pequena, enquanto ele abria uma caixa quadrada e revelava uma pizza coberta com queijo derretido e pepperoni dourado. O cheiro era realmente incrível, e Rose sentiu o estômago roncar, mesmo que sua mente já estivesse pronta para entrar em outra espiral de inadequação e desmerecimento.

— Pegue uma fatia. — Charlie empurrou a caixa em sua direção. — Não precisa ser educada.

Rose hesitou, olhando para a pizza como se ela o tivesse ofendido pessoalmente. Ela nunca tinha feito isso antes — pegar algo que queria, sem pedir permissão antes, sem se preocupar com os olhares de desaprovação.

Mas ela o fez. Esticou a mão, pegou uma fatia e sentiu o calor do queijo caindo em seus dedos. A primeira mordida foi uma explosão de sabores — o salgado do pepperoni, o doce do molho de tomate, a crocância da massa. Era tão diferente dos restos do almoço que ela geralmente comia em casa, também bastante diferente dos banquetes de Hogwarts.

— E então? — Charlie perguntou, observando-a com um sorriso curioso.

— É incrível, tio Charlie.

Ele riu, claramente satisfeito pela reação surpresa e entusiasmada de Rose.

— Bem, que bom. Pelo menos agora você sabe o que estava perdendo.

Charlie sentou na sua própria cadeira e puxou uma fatia, enquanto Rose se aventurava em comer mais um pedaço. Eles ainda eram estranhos, um tentando se acostumar com a presença do outro nessa situação absurda na qual eles foram jogados; dois estranhos que passaram a vida na solidão e agora tinham que descobrir como viver com alguém novamente.

Mas eles estavam tentando, se o momento confortável e descontraído com a pizza fosse uma prova disso. E Rose queria se perder nessa momentânea felicidade, mas sabia que não poderia fugir para sempre.

Cedo ou tarde, ela teria que enfrentar as perguntas que Charlie ainda não tinha feito.

Chapter 4: QUATRO

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Só haviam se passado duas semanas desde que Rose havia desembarcado em Forks, e ela já sentia que estava à beira de um colapso. A pressão de manter tantos segredos, de esconder quem ela realmente era e de continuar inventando tantas desculpas para Charlie, pesava sobre seus ombros como uma montanha.

Ela mentiu sobre a morte de seus pais, sobre a vida na casa dos Dursleys, sobre a escola e o porquê de ter ido embora repentinamente. E cada mentira estava começando a se desfazer nas bordas, escapando como areia entre seus dedos.

Ela não tinha certeza de quanto tempo mais conseguiria manter a fachada.

Rose notava que Charlie estava ficando mais desconfiado a cada dia. Ele fingia aceitar suas explicações vagas sobre a vida na Inglaterra e a mudança repentina para Forks, mas os olhares que ele lhe dirigia eram cada vez mais longos e pensativos. Ele não fazia perguntas diretas — não era do tipo de ficar cutucando ou invadindo o espaço dela —, mas Rose percebia a hesitação em sua voz quando falava, a maneira como ele parecia investigá-la com os olhos, como se estivesse tentando decifrar um enigma.

Seu jeito calmo e paciente só tornava tudo mais evidente: ele balançava a cabeça lentamente, como se estivesse tentando juntar peças que simplesmente não se encaixavam.

Mesmo sob essa camada de tensão, eles criaram uma pequena rotina juntos. Charlie saia todos os dias para a delegacia — onde ele trabalhava como Chefe de Polícia — e Rose ficava sozinha em casa. No primeiro dia, ela não soube o que fazer com a sua liberdade repentina, especialmente agora que ela não tinha mais aulas para estudar ou um bruxo das trevas para lutar. A casa de Charlie era assustadoramente silenciosa, e cada som que ela fazia parecia ecoar de forma exagerada pelo espaço.

Rose ficou com medo de sair do próprio quarto, andar livremente pela casa e até mesmo abrir os armários. A ideia de que alguém poderia pular nas suas costas e a repreender por estar enfiando seus dedinhos sujos onde não devia era absurda, mas ainda a assombrou durante dias. No início, ela hesitou por um bom tempo diante da porta do próprio quarto, segurando a maçaneta com uma mão trêmula, antes de finalmente abri-la. Nada aconteceu, é claro, mas o alívio que sentiu foi tão grande que ela gargalhou como uma maníaca durante alguns minutos, enquanto questionava a própria sanidade.

Aos poucos, porém, ela foi se acostumando. A vida com Charlie era simples e a casa era realmente bastante aconchegante, então Rose decidiu explorar com mais confiança. Ela descobriu que a despensa estava cheia de mantimentos básicos, que a geladeira tinha sempre algumas sobras de pizza — Charlie parecia viver disso —, e que a sala de estar tinha uma estante com alguns livros empoeirados e fitas VHS desgastadas. Nada muito emocionante, mas era algo.

Rose passava as manhãs limpando obsessivamente a casa, tentando encontrar alguma ordem para a casa e esconder o caos que criava raízes dentro do seu peito. Ela esfregava o chão, passava pano nas prateleiras, organizava os livros e as fitas de Charlie em ordem alfabética. O trabalho manual a ajudava a não pensar, a manter a mente ocupada com tarefas simples e repetitivas. Mas, mesmo assim, os pensamentos sempre encontravam uma brecha para se infiltrar.

Às tardes, ela se sentava no sofá desgastado da sala de estar e tentava se distrair lendo ou assistindo à televisão. Pegava um dos livros de Charlie — geralmente algo sobre pesca, caça ou manutenção de carros — e fingia se interessar, folheando as páginas sem realmente absorver o conteúdo. Sua mente sempre divagava, levando-a de volta a Hogwarts, aos amigos que deixou para trás, à vida que não poderia mais ter.

E, é claro, ela pensava na magia. A sua varinha ainda estava escondida entre seus pertences, e ela a pegava de vez em quando, apenas para sentir o peso familiar da madeira em sua mão, apesar de não poder mais lançar nenhum feitiço.

Às vezes a dor da traição voltava com tudo. Nessas horas, Rose jogava todas as suas frustrações no piso da cozinha, esfregando freneticamente, enquanto imaginava o rosto de seus amigos no lugar da cerâmica. Não era muito saudável, mas depois de muitas lágrimas e fortes dores nos braços, ela se sentia extremamente mais satisfeita.

Outras vezes, porém, a culpa a consumia. Ela se via revivendo cada momento, cada palavra, cada olhar de desconfiança que recebera de Ron e Hermione. Será que ela poderia ter feito algo diferente? Será que, se tivesse sido mais paciente, mais compreensiva, mais previsível, as coisas teriam sido diferentes? Rose se culpava por sua falta de tato, por sua impulsividade, por não ter conseguido manter a calma quando mais precisava. Talvez, se tivesse explicado melhor, se tivesse tentado mais, eles ainda estariam ao seu lado.

Nesses dias, Rose não queria fazer nada, então ela pegava o único filme disponível entre as fitas VHS e passava o dia inteiro vendo uma história de um garoto chamado Bastian que entra nas páginas de um livro e tenta salvar um reino mágico chamado Fantasia , que está sendo consumido por uma força destrutiva que apaga tudo em seu caminho. Não era seu estilo de filme favorito e, definitivamente, não parecia ser o tipo de filme que Charlie assistiria, mas era isso ou mais um documentário sobre peixes da Amazônia.

De qualquer forma, quando ela se cansava de todas as atividades anteriores, Rose dava uma volta pelo quintal, respirando o ar fresco e úmido de Forks. A floresta densa que rodeava a casa em todas as direções parecia quase viva, como se estivesse observando-a constantemente. Ela nunca se aventurou muito longe, mas gostava de ficar ali, sentada em uma pedra na borda da floresta, sentindo o cheiro de terra molhada e musgo até o pôr-do-sol.

No final do dia, quando Charlie voltava do trabalho, eles jantavam juntos. Ele sempre trazia algo pronto — pizza, hambúrgueres, ou qualquer coisa que pudesse ser aquecida no micro-ondas — e eles comiam em silêncio, assistindo a algum programa na televisão. Charlie tentava puxar conversa de vez em quando, mas Rose respondia com monossílabos, evitando dar muitos detalhes sobre si mesma.

Finalmente, à noite, Rose se trancava no quarto, e chorava até dormir.

Mas ela sabia que nem mesmo essa tranquilidade contínua poderia durar para sempre. Numa dessas noites, enquanto comiam em silêncio, com apenas o som de Wheel of Fortune na televisão ao fundo, Charlie de repente bateu o garfo na mesa, fazendo Rose quase pular para fora da pele, o coração acelerado como se tivesse sido pega em flagrante.

— Tudo bem, garota. Eu sei que você está me escondendo alguma coisa. O que é?

Rose congelou. O pedaço de hambúrguer que ela estava mastigando grudou na sua garganta, e ela teve um acesso de tosse repentino, levando a mão à boca para tentar se recompor. Ela olhou para Charlie, tentando encontrar as palavras certas, mas a sua mente estava em branco.

— Não é nada, tio Charlie.

Charlie suspirou, passando uma mão pelo cabelo. Ele parecia cansado, mas igualmente determinado.

— Rose, eu não sou bom com essas coisas de… conversa, mas você está morando na minha casa. Você é da família. Eu vejo que você não está bem e eu quero ajudá-la, mas não posso fazer isso se você não me disser o que está acontecendo.

Ela sentiu um nó se formar na garganta e as lágrimas começaram a pressionar seus olhos, mas ela rapidamente as afastou, desviando o olhar para a comida à sua frente. É claro que ela queria contar a ele, queria desabafar sobre tudo — sobre Hogwarts, sobre a magia, sobre a sua vida solitária, os amigos que ela perdeu, a dor que sentia. Mas como fazer isso? Como falar que existe todo um mundo mágico escondido diante dos seus olhos? E como provar, se ela nem mesmo tinha mais magia para fazer isso? E se ele não acreditasse nela e essa vida perfeita se transformasse em outra série de dias miseráveis, nos quais ela era considerada nada além de uma aberração?

— Olha, Rose… — Charlie tentou novamente, quando percebeu que Rose não diria nada. — Sua mãe também tinha segredos, e ela costumava dizer que queria me contar sobre eles pessoalmente. Mas, bem, isso nunca aconteceu.

Rose olhou para ele, surpresa.

— Lily sempre foi diferente. — Ele continuou, os olhos distantes, como se estivesse revivendo memórias antigas. — Ela tinha algo especial, que eu nunca consegui entender completamente. Ela também sabia disso, mas costumava me dizer que um dia eu entenderia.

Rose sentiu as lágrimas escaparem, desta vez sem que ela pudesse detê-las. A menção a sua mãe sempre a pegava desprevenida, a fazia lembrar de que ela já foi uma pessoa viva e não uma lembrança conjurada pela sua mente.

— Se o seu segredo é parecido com o dela, eu quero que você saiba que não importa o que seja, você ainda será sempre parte da família.

— Ela queria te contar?

Charlie olhou para ela, os olhos cheios de compaixão. Rose sentiu o estômago revirar por todas as vezes que mentiu para ele, por todas as histórias que inventou para esconder o absurdo que era sua vida.

Ele assentiu levemente.

— E você? Você quer me contar?

Rose fungou, sentindo o seu peito apertar um pouco mais, embora sentisse uma centelha de esperança brilhar no seu coração.

— Eu quero. Mas é algo que você pode achar difícil acreditar.

— Não importa. Independentemente do que for, eu acredito em você.

Ela só precisava disso. Da garantia de que não importava o que ela dissesse — se contasse que ela era uma bruxa, uma vampira ou uma loba —, ele ainda estaria ali. Ainda a aceitaria. Ainda a consideraria uma família.

Rose respirou fundo, se preparando para dar esse salto no escuro. Ela olhou para Charlie, vendo a confiança e a compaixão em seus olhos, e sentiu uma onda de alívio invadir seu peito.

— Tudo bem. Eu volto já.

Rose saiu correndo da sala, os pés quase não tocando o chão enquanto subia os degraus da escada de dois em dois. Ela invadiu o seu quarto, e foi direto para o armário, onde guardava sua capa de invisibilidade. Se ela ia contar a Charlie que era uma bruxa, então precisava provar isso de alguma forma. E a capa era a única coisa mágica que havia restado.

Finalmente, com a capa em mãos, ela desceu as escadas mais devagar dessa vez. Charlie ainda estava na sala, sentado no sofá com um olhar curioso e um pouco preocupado.

— Então… Eu sei que você disse que vai acreditar em mim, não importa o que eu diga. Mas eu preciso te mostrar algo primeiro.

Charlie assentiu, os olhos fixos nela, enquanto Rose dava a volta no sofá e se posicionava de frente para o seu tio.

Ela colocou a capa sobre os ombros e, em um instante, desapareceu.

Charlie deu um salto para trás, quase caindo do sofá, os olhos arregalados de espanto.

O que… o que diabos foi isso?

Rose puxou a capa de volta, revelando-se novamente, e olhou para ele, tentando medir sua reação.

— Eu sou uma bruxa, tio Charlie. Minha mãe também era.

Charlie ficou em silêncio por um momento, os olhos ainda arregalados, enquanto tentava processar aquela informação. Ele olhou para Rose, depois para a capa de invisibilidade que ela ainda segurava, e então de volta para ela, como se estivesse tentando encaixar todas as peças de um quebra-cabeça.

— Então, é por isso que Lily sempre pareceu tão diferente.

Rose assentiu, sentindo as lágrimas arderem em seus olhos novamente, mas desta vez de alívio.

— Sim, é por isso.

— Bem, garota, o que mais você pode fazer, então?

E então, ela começou a chorar.

— Eu não tenho mais magia, tio Charlie. Eu… eu perdi.

Charlie ficou em silêncio novamente, mas desta vez sua expressão mudou. A curiosidade deu lugar à preocupação, e ele abriu os braços, convidando Rose para um abraço. Ela não hesitou, se jogou nos braços do tio, enterrando o rosto no peito dele, enquanto finalmente deixava todas as lágrimas saírem.

Ele a segurou firme, sem dizer uma palavra, apenas deixando que ela chorasse. Sua mão grande e áspera acariciou suavemente suas costas, tentando acalmar a criança angustiada.

— Está tudo bem, querida. — Ele murmurou baixinho. — Eu estou aqui. Está tudo bem.

Rose apertou os olhos, sentindo as lágrimas escorrerem sem parar.

— É por isso que tia Petúnia me mandou pra cá. — Ela admitiu, a voz rouca e trêmula. — Eu estudava em uma escola de magia antes, mas eu perdi minha magia quando me inscreveram em um torneio mortal e eu me recusei a participar.

— Certo… Eu preciso que você me conte tudo, pode ser?

E então, Primrose contou tudo para Charlie.

Sobre como a sua mãe era a primeira bruxa da família e se casou com um bruxo de nome nobre. Como os Potters foram mortos por um bruxo das trevas, embora ninguém soubesse ao certo o motivo, e como ela sobreviveu ao ataque com apenas uma cicatriz na sua testa, enquanto seus pais deram a vida para protegê-la.

Charlie ouviu em um silêncio atordoado, enquanto Rose contava que foi enviada para a casa dos Dursleys e descrevia uma vida solitária, sem nunca ter sido amada, nunca ter sido desejada; sempre sendo a estranha dentro da própria casa.

Ele sorriu junto com ela quando ela contou sobre a carta de Hogwarts e sobre pertencer a um lugar pela primeira vez. Ela falou sobre os amigos que fez — Ron, Hermione, Lavender, Parvati, Fred, Luna, Ginny, George, Neville e tantos outros — e sobre as aventuras que viveu. Ela contou sobre as aulas, os feitiços, as partidas de quadribol e os desafios que enfrentou. Mas também falou sobre os perigos: o encontro com Voldemort no seu primeiro ano, o basilisco no segundo, os dementadores no terceiro.

E, finalmente, ela chegou ao quarto ano. Contou sobre o Torneio Tribruxo, sobre como seu nome foi retirado do Cálice de Fogo mesmo sem ela ter se inscrito, e sobre a pressão e o medo que sentiu ao ser forçada a participar. Ela descreveu como se recusou a competir, como escolheu a vida em vez da glória, e como, por consequência, perdeu sua magia. Foi então que a tia Petúnia a enviou para Forks, para longe das pessoas que poderiam ir atrás dela.

Quando Rose terminou, Charlie a abraçou novamente, apertando-a contra o peito com uma força que quase a surpreendeu.

— Eu sinto muito. — Ele disse, a voz firme, mas gentil. — Você é uma criança incrivelmente corajosa, mas ainda é uma criança. Você não deveria ter que passar por tudo isso sozinha. Você sabe disso, certo?

Rose não respondeu imediatamente. Ela ficou ali, encolhida em seus braços, sentindo o calor e a segurança que ele oferecia.

— Eu não tinha outra opção.

Charlie a afastou um pouco, segurando-a pelos ombros para olhar em seus olhos. Seu rosto estava sério, mas seus olhos brilhavam com determinação.

— Eu posso não entender nada sobre magia, mas eu entendo sobre família. E você é minha família agora, Primrose. E você não vai mais ficar sozinha. Eu prometo a você.

Ela assentiu, engolindo em seco, e deixou que Charlie a puxasse para outro abraço.

— Obrigada, tio Charlie.

Ele não respondeu, apenas a apertou com mais força e depositou um beijo em seu cabelo. E enquanto eles ficaram ali, aconchegados juntos no sofá, Rose sentiu, finalmente, que talvez, apenas talvez, tudo ficaria bem.

Chapter 5: CINCO

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A vida parecia muito melhor depois que Rose contou a verdade para Charlie. O peso que ela carregava nos ombros, aquele constante medo de ser rejeitada, começou a se dissipar, como se uma névoa densa finalmente estivesse se levantando. Pela primeira vez em muito tempo, ela se sentiu em casa.

Charlie não apenas acreditou nela, mas a aceitou completamente — com ou sem magia —, sem hesitação. Ele não a via como uma aberração ou uma estranha em sua casa; ele a via como parte da família.

E, para Rose, isso significou mais do que qualquer coisa.

Com o tempo, Charlie começou a fazer pequenos ajustes para ajudá-la a se sentir ainda mais confortável. Ele a ajudou a reformar o quarto dela, transformando o espaço em algo que realmente parecesse seu. As paredes ganharam um tom bege, e novos móveis foram adicionados: prateleiras para seus objetos, uma escrivaninha maior para ela estudar e até um guarda-roupa novo com uma gaveta trancada, onde ela podia guardar a capa de invisibilidade com segurança. 

Charlie até tentou cozinhar refeições mais equilibradas, mas os resultados foram tão desastrosos — pense em macarrão grudento, arroz empapado e vegetais carbonizados — que Rose assumiu a cozinha permanentemente. Ainda assim, os sábados continuavam sagrados, reservados para a combinação imbatível de pizza e baseball.

Curiosamente, Rose descobriu que cozinhar para Charlie era uma experiência diferente de cozinhar para os Dursleys.

Lá, ela odiava essa tarefa. Ela sempre tinha que cozinhar sob o olhar crítico de tia Petúnia e cada refeição era uma obrigação que ela cumpria sem qualquer gratidão ou reconhecimento.

Mas com Charlie era diferente. Ele sempre elogiava suas criações, mesmo quando o arroz ficava um pouco grudento ou o molho um tanto salgado. Ele comia com entusiasmo, sorrindo, fazendo comentários e distribuindo elogios.

Era estranhamente reconfortante fazer algo que alguém realmente apreciava. Rose sentia uma satisfação profunda ao ver o prato de Charlie vazio e o sorriso no rosto dele. Era uma sensação que ela nunca tinha experimentado antes — a de ser valorizada, de fazer algo que importava para alguém.

Ela havia contado superficialmente sobre a sua vida nos Dursleys, mas ela sabia que não era preciso dizer muito para Charlie entender que Rose nunca havia recebido um elogio sincero, nunca tinha sido aceita de verdade.

Talvez seja por isso — essa aceitação gratuita que ela recebia diariamente dele — que fez ela se abrir mais.

Ela respondia às perguntas de Charlie sobre o mundo mágico com paciência e detalhes, mesmo que seu conhecimento fosse limitado, considerando o pouco tempo que teve como bruxa. Ela contava histórias sobre Hogwarts — sobre as imagens que se moviam, os retratos que falavam, a professora que virava um gato e um homem que virava um cachorro, e, de vez em quando, até os amigos que ela deixou para trás.

Mas, sem nenhuma surpresa, o que realmente os unia era o esporte. Rose falava com paixão sobre o quadribol, explicando as regras, as posições e as emocionantes partidas que participou, incluindo aquela vez em que ela engoliu o pomo. Charlie, por sua vez, compartilhava o seu amor pelo baseball e futebol, ensinando-a sobre os seus times favoritos.

Aos poucos, Rose começou a perceber que, mesmo sem sua magia, ela ainda podia encontrar a felicidade.

Ela estava satisfeita.

 

*

 

— Rose?

Ela estava picando cebolas para o jantar quando ouviu a voz de Charlie ecoar pela casa. Rose respondeu sem levantar os olhos da tábua de cortar:

— Aqui na cozinha, tio Charlie.

Charlie apareceu na porta da cozinha, as mãos enfiadas nos bolsos dos jeans, o rosto com aquela expressão que Rose já reconhecia como “precisamos conversar”. Ele se distraiu de repente olhando para a panela do fogão, onde um molho vermelho borbulhava lentamente.

— Cheira incrível, querida. — Ele comentou, puxando uma cadeira e sentando à mesa da cozinha. — Mas eu vim falar com você sobre outra coisa.

Rose parou de picar as cebolas e olhou para ele, franzindo a testa e sentindo o pânico começar a apertar seu peito.

— Está tudo bem?

— Tudo bem, tudo bem. — Ele respondeu rapidamente, acenando com a mão para acalmá-la. Rose suspirou sentindo os ombros relaxando. — É só que… bem, eu estava pensando. Você já está aqui há um tempo, e eu sei que as coisas têm sido… difíceis para você, se adaptar a uma nova cidade e uma nova vida não é fácil. Mas eu pensei que seria bom recomeçar e  estudar na Forks High School. Já que você vai ficar aqui por um tempo.

Rose congelou por um momento, a faca ainda na mão. Estudar em uma escola trouxa? Ela nunca tinha considerado essa possibilidade. Hogwarts era tudo o que ela conhecia, e a ideia de sentar em uma sala de aula sem varinhas, livros de feitiços ou caldeirões (esse último ela não sentiria tanta falta) parecia… aterrorizante.

O que os trouxas estudavam no ensino médio, afinal?

— Você acha que é uma boa ideia, tio Charlie?

Charlie encolheu os ombros.

— Eu acho que seria bom pra você, Rose. Você precisa de alguma formação se quiser trabalhar no futuro, e você também poderia sair um pouco de casa, fazer novos amigos… você não pode ficar trancada aqui pra sempre.

— Mas eu não sei nada sobre o ensino médio trouxa. Como eu vou estudar?

— Você é inteligente, Rose. Você não se dá crédito suficiente por isso. Olha, você pode se preparar antes das aulas, ler alguns livros e fazer um teste de nivelamento. Além disso, a escola tem tutores que podem te ajudar. Você não vai estar sozinha.

Rose pensou sobre isso. A ideia de ir a uma nova escola, onde ninguém soubesse da sua existência, onde ela pudesse ser ela mesma pela primeira vez e fazer amigos por motivos que não tinham nada a ver com a cicatriz na testa ou o sobrenome Potter, era tentadora.

Em Forks High School, ela não seria "A Menina que Sobreviveu", aquela figura quase mítica sobre quem as pessoas depositavam expectativas irreais, adoração excessiva e, às vezes, um ódio inexplicável.

Ela seria apenas Rose.

Claro, ela ainda chamaria atenção por ser a garota nova, a britânica com sotaque diferente, a sobrinha do Chefe de Polícia. Mas, no fim das contas, seria apenas mais uma garota .

E isso, para Rose, era uma novidade.

Ser apenas uma garota, sem títulos, sem lendas, sem o fardo de um passado que não era totalmente seu.

Rose imaginou como seria fazer amigos sem que as pessoas soubessem detalhes íntimos de sua vida — coisas que nem ela mesma sabia direito, como a data exata em que seus pais morreram, a cor dos olhos de sua mãe, a matéria favorita do seu pai. Sem que olhassem para ela com aquela mistura de admiração e medo, como se ela fosse algo mais do que humana. Sem que tivessem pena dela — a pobre e triste garota órfã. Sem que depositassem os pecados de seu pai aos seus pés.

Em Hogwarts, mesmo entre amigos, ela sempre sentia que havia uma barreira invisível entre ela e as outras pessoas.

Com Hermione, por exemplo, ela nunca conseguiu se conectar completamente. Enquanto Hermione havia crescido no mundo trouxa e sabia tudo sobre filmes, música e cultura popular, Rose tinha passado a infância trancada em casa, sem acesso a nada além das tarefas domésticas e lições de casa.

E, quando finalmente Rose entrou no mundo bruxo, ela descobriu que também não sabia nada sobre ele. Não conhecia as tradições, as famílias importantes, os feitiços básicos que todo mundo parecia dominar.

Ela nem teve a oportunidade de descobrir quem era antes que sua identidade fosse definida por algo que ela nem sequer lembrava — por pessoas que nunca conhecera, por histórias que não eram totalmente suas.

Em Forks High School, nada disso importaria. Ninguém saberia sobre Voldemort, sobre a cicatriz, sobre o torneio que quase a matou. Ela poderia ser apenas uma estudante, sentada em sua cadeira, ouvindo as aulas, fazendo trabalhos em grupo e se dedicando aos estudos pela primeira vez.

A ideia era assustadora, é claro.

Ela não fazia ideia de como seria estudar em um lugar onde a magia não existia, onde os livros não se mexiam sozinho, onde se escrevia com canetas em vez de penas e onde havia cadernos em vez de pergaminhos.

Mas, ao mesmo tempo, a oportunidade era libertadora, ela poderia começar a viver de verdade.

Rose soltou um suspiro trêmulo.

— Você tem certeza, tio?

Charlie não hesitou.

— Absoluta! Você vai se dar bem, Rose.

— Certo… tudo bem… certo! Eu vou fazer isso.

Charlie assentiu, satisfeito, e deu uma batidinha na mesa antes de se levantar.

— Então está decidido. Amanhã nós vamos juntos na escola, certo? Agora, sobre esse molho… você precisa de ajuda com alguma coisa?

Rose riu, balançando a cabeça.

— Não, tio Charlie. Eu acho que é melhor você ficar longe da cozinha, por enquanto.

Ele riu também, levantando as mãos em sinal de rendição.

— Justo. Eu vou ficar na sala, então. Mas me chama quando o jantar estiver pronto, certo?

— Claro.

E então Rose voltou a picar as cebolas, mas agora com um sorriso no rosto.

 

*

 

Era raro ver uma nova aluna se matriculando no meio do ano letivo, ainda mais alguém sem um histórico escolar. Mas, depois de uma história bastante convincente — e um tanto trágica —, que ela combinou com Charlie, sobre pais mortos em um incêndio, documentos perdidos e uma vida deixada para trás na Inglaterra, Rose conseguiu se inscrever e agora fazia parte da turma do primeiro ano do Ensino Médio na Forks High School.

A credibilidade da história foi reforçada pela reputação impecável de Charlie Swan, o chefe de polícia da cidade, que ninguém jamais imaginaria ser capaz de mentir. Sua palavra era lei em Forks, e isso bastou para que Rose fosse aceita sem muitas perguntas.

Com os documentos novos em mãos e a sua matrícula finalizada, ela finalmente percebeu que a sua vida nunca mais seria a mesma. O seu passado estava oficialmente sepultado, pelo menos no papel.

Ela respirou fundo, segurando os documentos com cuidado, como se eles fossem frágeis demais para o mundo real. O nome Primrose Lily Potter parecia quase brilhar no papel e ela começou a sentir a ansiedade começar a correr a boca do seu estômago, mas antes de se permitir cair nessa espiral, ela respirou fundo — era o que ela precisava para seguir em frente, ela podia lidar com isso.

Ela tinha que lidar com isso.

 

*

 

Depois de semanas trancada em seu quarto, mergulhada em livros trouxas que a ajudariam a se preparar para o ensino médio, Rose mal tinha colocado os pés no quintal, como ela costumava fazer quase todos os dias.

Ela passava horas estudando, tentando se familiarizar com matérias que, para ela, pareciam quase tão estranhas quanto a magia seria para um trouxa. Ela teve que enfiar termos novos em seu cérebro — como equações lineares, evolução biológica, ligações químicas e a Guerra Civil dos EUA.

Charlie, no entanto, decidiu encerrar a temporada de estudos no fim de semana anterior ao seu primeiro dia de aula e a levou — quase puxando-a pelas orelhas à força — para a casa de seu amigo Billy Black, que vivia na Reserva Quileute, em La Push.

Quando ouviu o nome, Rose quase caiu em lágrimas com essa estranha coincidência. Talvez eles fossem um ramo desconhecido da Família Black britânica? Seria muita sorte, ou azar, de Rose, fugir do mundo mágico, apenas para encontrá-los novamente em uma cidade tão remota quanto Forks.

Ela respirou fundo, tentando se acalmar. Afinal, não havia nenhuma garantia de que esses Blacks tivessem alguma conexão com seu padrinho. Talvez fosse apenas um sobrenome comum, ou uma grande ironia do destino — e ela preferia acreditar nisso —, do que qualquer ligação com o passado que ela deixou para trás. Ela não estava preparada para lidar com nada mágico novamente, por um longo tempo.

Para o seu grande alívio, Rose descobriu que os Blacks de La Push não eram nada além de uma família pequena e simples. Eles se resumiam a três pessoas: o velho amigo de Charlie, Billy Black, sua esposa Sarah Black e seu filho único, Jacob, um garotinho de apenas cinco anos.

Eles viviam em uma casa simples de madeira que, com certeza, não tinha nenhuma relação com os Blacks britânicos. Rose mal conseguia conter um sorriso ao comparar aquele lugar humilde com as descrições que Sirius fazia em suas cartas sobre a sua família. Ele falava de pureza de sangue, mansões imponentes, riquezas extravagantes e um legado que ele odiava.

Aquela casinha em La Push, com seu quintal cheio de ferramentas, motocicletas e o som do mar ao fundo, era o oposto completo de tudo isso.

Sirius teria amado tudo isso.

Rose sentiu os olhos arderem, mas segurou as lágrimas, enquanto se forçava a não pensar em seu padrinho e focar em seu tio lhe apresentando ao homem alto com uma criança cheia de energia nos braços.

— Esta é minha sobrinha, Billy. Primrose Potter. Ela perdeu os pais recentemente e agora está vivendo comigo.

Billy Black encarou Rose com uma expressão de compaixão genuína, seus olhos escuros cheios de tristeza e compaixão.

— Sinto muito pela sua perda, querida.

— Está tudo bem! Prazer em conhecê-lo, Sr. Black.

Billy acenou com a mão dispensando formalidades, enquanto ele abria a porta para que eles entrassem.

— Nada disso, querida. Pode me chamar de tio Billy a partir de hoje. Qualquer sobrinha do Charlie aqui também é minha sobrinha. Vamos, entrem, vou pedir para a Sarah trazer um refresco para nós.

Billy colocou Jacob no chão, enquanto Rose e Charlie se acomodaram no sofá da sala. O garoto correu imediatamente até os brinquedos espalhados no tapete e começou a trazer um a um para o colo de Rose, apresentando-os para ela.

Finalmente, ele virou os olhos escuros e curiosos para Rose.

— Qual é o seu nome?

— Meu nome é Primrose.

Primmy?

Rose gargalhou.

— Quase isso, querido. Você pode me chamar de Rose. E você?

— Jacob, mas todo mundo me chama de Jake. Você sabe brincar, Rosie ?

— Eu não sei. Você me ensina, Jake?

Jacob imediatamente levou aquela pergunta a sério e trouxe uma pilha de carrinhos para o colo de Rose. Ele segurou um dos carrinhos, uma camionete vermelha, obrigou ela a sentar com ele no chão e, com as suas mãos, mostrou o que fazer.

Finalmente, Billy voltou para a sala. Uma mulher o acompanhava, carregando copos de refresco e sanduíches. Eles paralisaram por alguns segundos ao observar a cena antes de se juntar ao grupo com um sorriso caloroso.

— Você já está incomodando Primrose, Jake? — perguntou Billy, enquanto Sarah distribuía os lanches.

Rose abriu um sorriso, agradecendo a Sarah com um aceno.

— Está tudo bem, Sr. Black e Sra. Black. Jake é um doce! E pode me chamar de Rose, por favor.

Jake gemeu adoravelmente, fazendo uma careta.

— Eu não sou nada doce . Não sou um bebê!

— Claro, erro meu. Jake aqui é um garoto muito grande e esperto.

Billy gargalhou, trocando olhares divertidos com Charlie e Sarah, que se sentou ao lado do marido, observando a interação com carinho.

— Tio Billy, querida. — Ele comentou, tomando um gole do seu copo. — Tudo bem, espero que você aguente o ritmo. O Jake não para quieto nem por um minuto.

Rose sorriu ainda mais, enquanto Jacob voltava correndo para ela com mais um brinquedo — dessa vez era um avião seguido por uma aula sobre o som correto de um avião levantando voo.

— Eu aguento, tio Billy. — Rose respondeu, segurando o aviãozinho que Jake insistia em mostrar.

Enquanto o garoto corria novamente para os seus outros brinquedos espalhados no chão, Sarah se aproximou de Rose, sentando-se ao seu lado no chão com um ar curioso e amigável.

— Então, você é a Rose que tanto ouvi falar. Charlie comentou que você viria morar em Forks.

Rose corou levemente, surpresa com a atenção.

— Ah, é? Bem, foi meio que de surpresa, na verdade.

Sarah olhou para ela com um olhar gentil, mas perceptivo.

— Eu sei! E sinto muito pela sua perda, querida. Eu não imagino como deve ter sido perder os pais tão jovem. Saiba que eu estou à disposição para ajudar no que você precisar.

Rose baixou os olhos por um momento, sentindo um nó se formar na sua garganta. Provavelmente, tirando Charlie, Sarah era uma das poucas pessoas que havia mencionado a perda dos pais de Rose com respeito, mesmo sem nunca tê-los conhecido.

Enquanto isso, no mundo mágico, todos pareciam saber tanto sobre os Potter, mas ninguém lembrava que ela havia perdido os pais, que ela nunca os havia conhecido, que ela era uma criança, não apenas a "A Garota Que Sobreviveu", uma lenda .

Mas aqui, em Forks, com Charlie e os Black, ela era… um ser humano .

Essa empatia genuína, vinda de alguém que mal a conhecia, pegou-a de surpresa.

— Obrigada, Sra. Black. Isso significa muito para mim.

— Pode me chamar de tia Sarah, querida.

— Obrigada, tia Sarah.

Elas ficaram em silêncio por alguns segundos, observando Jake trazer mais brinquedos para Rose. Ele empilhava carrinhos, aviões e até um dinossauro de plástico aos pés dela, obrigando-a a brincar com ele.

Sarah observava a cena com um sorriso suave.

— Você se dá muito bem com crianças.

— Eu adoro crianças. — Rose confessou, brincando com um dos brinquedos que Jake deixou no chão. — E Jake é ótimo. É impossível não se apaixonar por ele.

Sarah sorriu, claramente satisfeita com a resposta.

— Que bom que você consegue acompanhar a energia dele. Eu e Billy tentamos, mas às vezes ele nos cansa. — Ela riu, olhando para o marido, que agora estava envolvido em uma discussão animada com Charlie sobre pesca. — E você, Rose? Tem irmãos mais novos?

— Não, sou filha única. — Rose respondeu. — Mas eu sempre quis um irmão.

— Isso é muito fofo. — Sarah comentou, com um olhar carinhoso. — Você tem um jeito muito especial com elas. Dá para ver que o Jake se sente à vontade com você. Você é sempre bem-vinda para brincar com ele.

Rose sorriu, sentindo-se lisonjeada.

— Obrigada, tia Sarah. Eu adoraria.

Sarah tinha um jeito doce e suave de falar. Ela não fingia que estava ouvindo e parecia genuinamente interessada em tudo que Rose dizia.

Ela perguntou sobre a vida dela na Inglaterra, seus amigos e como estava sendo Forks até agora. Perguntou se ela precisava de ajuda com a nova escola, se estava animada e quais eram seus medos.

Enquanto as duas conversavam, Jake correu até Rose com um entusiasmo contagiante.

Rosie! Rosie! Você pode me levar lá fora?

— Claro que sim, Jake. Tudo bem, tia Sarah?

Rose olhou para Sarah, que acenou com a cabeça, sorrindo.

— Claro, querida. Se você não se importar. Só fique de olho nele, ele gosta de correr quando ninguém está olhando.

Eles mal passaram pela porta, quando Jake disparou na sua frente, mostrando cada canto da Reserva, enquanto Rose tentava — e falhava — correr atrás dele.

Finalmente, dois outros garotos surgiram para distraí-lo — Embry e Quil, aparentemente, acompanhados de um garoto mais novo chamado Seth — e Rose aproveitou para se sentar em um tronco caído e suspirar profundamente, aliviada por ter um momento de descanso.

— Eu nunca te vi por aqui.

Rose pulou surpresa no assento quando uma garota sentou ao seu lado sem cerimônia. Ela tinha o rosto sério e o seu tom não era rude, mas também não era exatamente amigável.

— É porque eu acabei de chegar. Me mudei para Forks há pouco tempo. Estou morando com o tio Charlie.

A garota levantou uma sobrancelha, como se estivesse avaliando Rose.

— Charlie Swan, o Chefe de Polícia?

Rose assentiu levemente com a cabeça, sentindo-se um pouco sobrecarregada sob o olhar atento dela.

— Isso mesmo. Ele era primo da minha mãe… praticamente meu tio, você pode dizer.

— E cadê sua mãe?

— Morta. É por isso que eu estou morando aqui agora.

A garota fez uma careta, como se não soubesse o que deveria dizer em seguida. Rose a interrompeu antes que a situação ficasse desconfortável:

— Tá tudo bem, você não precisa dizer nada. Eu já me acostumei.

Mesmo assim, a garota sussurrou desconfortavelmente:

— Sinto muito.

— Obrigada.

— Bem, eu sou Leah Clearwater. — Ela ergueu a mão para Rose. — Sou irmã do Seth, aquele menorzinho ali se cobrindo de lama. E você é…?

— Primrose Potter. Por favor, me chame de Rose.

— Pelo visto você já conhece o Jake, então, Rose?

— Conhecer é uma palavra forte — Rose respondeu, com uma risada leve. — Ele basicamente me adotou como sua nova companheira de brincadeiras.

Leah soltou um grunhido, quase um riso abafado.

— Boa sorte com isso. Ele é um furacão. Só não deixa ele te convencer a cavar buracos no jardim. A última vez que ele fez isso, o Billy e a Sarah quase tiveram um ataque.

Rose riu, sentindo-se um pouco mais à vontade.

— Já me avisaram para ficar de olho. Parece que entrei numa enrascada sem querer. — Ela fez uma pausa e acrescentou em um sussurro. — Se ele cavar um buraco grande o suficiente, talvez eu consiga fugir dele.

Leah olhou para Rose por um momento, os lábios apertados como se estivesse tentando não rir. Mas, no final, não resistiu e soltou uma risada curta.

— Você é engraçada. — Ela admitiu em um tom surpreso. — Você parece ser legal, gostei de você.

Rose bufou, sentindo um sorriso divertido se abrir em seu rosto.

— Bem, obrigada?

— Se precisar de alguma coisa, é só falar. Só não me peça para ser simpática o tempo todo.

O sorriso de Rose se abriu ainda mais.

— Eu nunca ousaria.

Leah apenas deu de ombros, como se aquilo não fosse grande coisa, mas Rose percebeu um leve brilho de aprovação nos olhos dela. Talvez, por trás daquela fachada dura, Leah fosse mais parecida com ela do que parecia à primeira vista.

Parece que Rose havia feito a sua primeira amiga em Forks — Charlie ficaria orgulhoso.

Chapter 6: SEIS

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O dia seguinte foi uma mistura de ansiedade e terror absoluto. O primeiro, porque, obviamente, era normal ficar ansioso pelo primeiro dia de aula; o segundo, porque Rose estava sendo levada para a escola de viatura.

Ela afundou cada vez mais no assento do carro, tentando se esconder dos olhares curiosos e conter o seu constrangimento. Charlie, ao volante, bufou divertido ao lado dela.

— Você ainda não tem idade para dirigir, garota.

Rose suspirou exasperada.

— Eu sei. Isso não significa que eu deva ficar feliz por chegar numa maldita viatura na escola, tio Charlie. Parece que eu sou algum tipo de delinquente.

Charlie riu, balançando a cabeça.

— Ah, por favor, não tem delinquentes nesta cidade. E se isso ajuda, todo mundo já deve estar sabendo da sua existência.

— Não ajuda em nada!

Charlie deu uma olhada nela, com um sorriso ainda mais largo.

— Bem, pelo menos agora eu sei que você é uma adolescente de verdade.

— Tio Charlie!

Rose bufou, mas não conseguiu evitar um leve sorriso no canto da boca.

Quando a viatura finalmente estacionou em frente à escola, Rose olhou para o prédio de tijolos marrons e sentiu o seu estômago se revirar.

— Vai lá, garota. — Charlie disse, com um aceno de cabeça encorajador. — Boa sorte! E se algum garoto te encarar demais, é só dizer que você é minha sobrinha. Isso vai assustar metade deles.

Rose riu, apesar de si mesma.

— Se você está querendo me isolar das pessoas, pra quê me fazer ir pra escola?

— Eu só falei dos garotos .

— Você está sendo um pouco paranóico, Chefe Swan. — Ela bufou divertida.

— Faz parte do meu charme. — Ele respondeu, com um sorriso de orelha a orelha. — Agora vai lá. E Rose… Se precisar de alguma coisa, é só ligar.

Ela olhou para ele por um momento, sentindo um pouco da ansiedade se dissipar.

— Obrigada, tio Charlie.

Com um último suspiro, Rose abriu a porta e desceu da viatura, pronta para encarar o primeiro dia de aula. Ela caminhou por um pequeno caminho de pedra ladeado por uma cerca viva escura, até chegar a uma porta com uma plaquinha acima escrito “Secretaria”.

Lá dentro, o ambiente era bem iluminado e mais quente do que o lado de fora. O escritório era pequeno e aconchegante, com uma salinha de espera que tinha cadeiras dobráveis acolchoadas, um carpete laranja manchado pelo tempo, e paredes cobertas de recados, prêmios e cartazes coloridos. Um relógio grande tiquetaqueava alto de um canto. Plantas em vasos de plástico espalhados por todos os cantos complementavam o verde exuberante do lado de fora. A sala era dividida ao meio por um balcão comprido, abarrotado de cestos de arame cheios de papéis e folhetos de cores vivas. Havia três mesas atrás do balcão, uma delas ocupada por uma ruiva grandalhona de óculos.

A ruiva olhou para Rose assim que ela entrou, e seus olhos brilharam de reconhecimento.

— Oh, outra ruiva! — ela exclamou, com um sorriso caloroso. — Em que posso ajudá-la, querida?

— Eu sou Primrose Potter — Rose respondeu, tentando parecer mais confiante do que realmente se sentia. — Aluna nova.

O rosto da mulher se iluminou ainda mais, e Rose notou que Charlie estava certo: ela havia se tornado assunto de fofoca na cidade e, sem dúvida, também na escola.

— É claro, querida! — a ruiva disse, cavucando uma pilha instável de documentos na mesa até encontrar o que procurava. — Seu horário está bem aqui, e há um mapa da escola também. Vamos te ajudar a se localizar.

Ela entregou os papéis a Rose com um sorriso animado e destacou todas as melhores rotas para as suas aulas, enquanto apontava o indicador no mapa e entregou uma caderneta para Rose, que ela deveria pedir para cada professor assinar e devolvê-la ao final do dia.

— Eu sou a Sra. Cope, a secretária da escola. Se precisar de qualquer coisa, é só me procurar, tá bom? E não se preocupe, você vai se dar bem aqui. Todo mundo é muito amigável.

— Obrigada — Rose respondeu, segurando os papéis com cuidado. Ela deu uma olhada rápida no horário e no mapa, tentando se familiarizar com os nomes das salas e os corredores.

Com os papéis na mão e um pouco mais de confiança, Rose saiu da secretaria e caminhou pelo estacionamento até chegar ao prédio três. A sala de aula era pequena, e Rose notou que os alunos deixavam os casacos em uma longa fileira de ganchos na porta. Ela os imitou, pendurando seu casaco com cuidado, e, por um breve momento, sentiu falta dos feitiços aquecedores que costumavam mantê-la aquecida sem a necessidade de tantas camadas de roupa.

Rose entregou a caderneta ao professor, um homem careca cuja mesa tinha uma placa que o identificava como Sr. Mason. Ele a direcionou para uma das carteiras, ao lado de uma garota morena, que abriu um sorriso brilhante ao vê-la. Rose sentou-se rapidamente, tentando não chamar atenção, e pegou a bibliografia que o professor lhe entregou.

Ela leu rapidamente a lista de livros e sentiu um frio na espinha. Shakespeare, Steinbeck, Dickens… Nenhum daqueles nomes lhe era familiar. Rose nunca havia lido nenhum tipo de literatura trouxa, e a ideia de ter que acompanhar as discussões em sala de aula a fez suar frio.

Felizmente, o Sr. Mason manteve o discurso neutro e não pediu para que ela se apresentasse ou falasse nada. Ele simplesmente continuou a aula, falando monotonamente sobre o próximo livro que a turma iria ler. Rose aproveitou a oportunidade para afundar na cadeira, tentando passar despercebida, enquanto choramingava internamente.

No final da aula, um som agudo e anasalado soou alto, fazendo Rose pular na cadeira. O barulho inesperado a pegou de surpresa, e ela mal conseguiu conter um pequeno grito de susto. Todo mundo num raio de três carteiras se virou para encará-la. Rose sentiu o rosto esquentar imediatamente. Que porra de barulho era esse? Parecia o som das bombas de bosta dos gêmeos Weasley, no entanto Rose tinha quase certeza de que não existia uma versão trouxa disso.

Ela olhou ao redor, tentando entender de onde o som havia vindo, quando a garota ao dela se inclinou para falar.

— Você se assustou com o sinal?

Rose piscou, ainda um pouco confusa.

— Desculpa, o quê?

— O sinal, sabe? — Ela explicou, apontando para uma caixa preta no canto da sala. — Para avisar que a aula acabou e que temos que ir para a próxima aula?

— Ah! Certo. Entendi.

Rose não tinha entendido nada.

O que era aquela caixa? Para quê os trouxas tinham um barulho tão absurdo para avisar da próxima aula? Eles já não tinham um horário em um papel?

A garota franziu a testa, parecendo intrigada.

— Na sua antiga escola não tinha isso?

— Eu estudei em um internato na Escócia, então nossos horários eram diferentes. Não precisávamos de um sinal.

— Sério? Como vocês sabiam quando a aula acabava?

Rose piscou.

— O professor nos dizia.

A garota abriu um sorriso enorme, como se achasse aquilo fascinante.

— Que legal. Deve ter sido bem diferente, né?

— Foi. — Rose concordou, com um sorriso pequeno. — Mas tenho certeza que vou me acostumar.

— Bem, se precisar de ajuda para se acostumar, é só me perguntar. Eu sou Zoe Yorkie, por sinal. Você deve ser Primrose Potter.

— Rose. — Ela corrigiu, com um aceno de cabeça. — E obrigada, Zoe. Acho que vou precisar de toda a ajuda que puder conseguir.

— Sem problemas. — Zoe disse, levantando-se da cadeira e pegando sua mochila. — Qual é a sua próxima aula? Eu posso te ajudar a chegar lá.

Rose olhou rapidamente para o horário que a Sra. Cope havia dado a ela.

— Matemática, no prédio dois.

— Ah, perfeito! Eu também tenho aula lá agora. — Zoe disse, animada. — Vamos juntas. E, se você se perder de novo, eu te ajudo a encontrar o caminho.

Rose sentiu um alívio imediato. Pelo menos agora ela não teria que enfrentar o labirinto de corredores sozinha.

— Obrigada, Zoe. Você é uma salvação.

— Sem problemas — Zoe respondeu, com um sorriso largo. — A gente se ajuda por aqui. Agora venha, antes que o sinal toque de novo e você pule da pele outra vez.

Rose riu, sentindo-se mais leve. Ela pegou sua mochila e seguiu a nova amiga pelo corredor.

— Então, o que uma garota da Escócia faz em Forks? — Zoe perguntou, enquanto elas caminhavam juntas até o prédio dois.

— Eu sou da Inglaterra, na verdade. Somente o meu internato era na Escócia.

Zoe fez um som de “ahh”, como se tivesse percebido algo.

— O seu sotaque faz muito mais sentido agora. Então, por que trocar a Inglaterra e a Escócia por… isso aqui? — Ela gesticulou para uma janela, em direção ao céu nublado e a chuva que ameaçava cair novamente.

— Não é muito diferente de Londres, na verdade. Lá também chove o tempo todo.

— Sim, bem, mas tipo, é Londres, né? Tem todo um charme, aquela vibe de cidade grande e prédios históricos e tal. — Ela fez uma pausa dramática. — Você trocou tudo isso por árvores?

Rose suspirou, sentindo-se exausta de ter que repetir mais uma vez a historinha que inventou para encobrir a verdade. A verdade que ninguém poderia saber. Que ela já foi uma bruxa. Que ela tinha fugido de Hogwarts. Que ela havia tomado uma decisão impulsiva e perdido a sua magia.

E aquela garota trouxa, com sua curiosidade insistente, parecia determinada a cutucar justamente o que Rose não queria falar.

— Bem, meus pais faleceram, na verdade. Então, eu vim morar com o tio Charlie.

Zoe parou de caminhar por um instante, os olhos se arregalando de surpresa e, em seguida, de constrangimento.

— Ah, merda. Desculpa, eu… não sabia.

Rose deu de ombros, tentando parecer indiferente.

— Tudo bem. Você não tinha como saber.

Elas voltaram a caminhar novamente, desta vez em um silêncio incômodo. Zoe parecia querer dizer algo para quebrar o constrangimento, enquanto Rose só queria chegar no prédio dois e se afundar na carteira novamente.

— Então… — Zoe finalmente quebrou o silêncio, hesitante. — Você é sobrinha do Charlie Swan?

— Ele era primo da minha mãe, na verdade. Primos próximos, então ele é praticamente um tio.

— Ele é bem legal, o Sr. Swan. — Zoe comentou, tentando puxar o assunto de volta para um terreno mais seguro. — Todo mundo na cidade gosta dele.

— É. — Rose respondeu, laconicamente, sem olhar para Zoe. — Ele tem sido gentil.

O silêncio voltou a se instalar, mas desta vez Zoe não tentou preenchê-lo. As duas continuaram caminhando, o som dos passos ecoando no corredor vazio. Rose sentiu um leve alívio quando finalmente alcançaram a porta do prédio dois. Ela segurou a maçaneta, pronta para se esconder na sala de aula, quando Zoe falou de novo, desta vez mais suave.

— Se precisar de alguma coisa, é só falar, tá?

Rose olhou para ela por um instante, surpresa pela sinceridade no tom de Zoe.

— Obrigada. — Ela disse, com um pequeno aceno de cabeça, antes de abrir a porta e desaparecer na sala de aula, deixando Zoe do lado de fora.

A manhã seguiu igual. Zoe estudava em quase todas as aulas em que Rose estava, então ela tinha uma guia para ajudá-la a chegar em todas as salas. De vez em quando, alguém mais corajoso se apresentava e perguntava se ela estava satisfeita com Forks ou com a escola. Rose se esforçou para ser diplomática e simpática, mas depois da sexta pessoa, ela estava cansada de sorrir.

Na hora do almoço, Zoe seguiu ao lado de Rose até o refeitório, animada para apresentá-la aos seus amigos. O lugar já estava cheio de alunos, e Zoe a levou até uma mesa onde já estavam sentados alguns outros alunos, todos com pratos cheios e olhares curiosos em sua direção.

— Gente, essa é a Primrose Potter. — Zoe anunciou, com um gesto dramático. — Ela é nova, veio da Inglaterra, e eu decidi adotá-la. Então tratem bem, tá?

Os amigos de Zoe riram, e alguns acenaram ou disseram "oi" de forma descontraída. Rose tentou acompanhar as apresentações, mas, com tantos nomes sendo jogados de uma vez — Abigail, Emma, Matthew, Jackson, alguém chamada Samantha? —, ela logo se perdeu.

— Senta aqui — Zoe disse, puxando uma cadeira para Rose ao seu lado. — E não se preocupa em decorar os nomes agora. A gente vai te ajudar a se acostumar.

Rose sentou-se, agradecendo com um sorriso. Ela olhou para o prato de Zoe, que estava cheio de algo que parecia ser um ensopado, e decidiu que talvez fosse melhor não perguntar. Em vez disso, ela pegou um sanduíche e uma maçã da bandeja que Zoe havia empurrado em sua direção.

— Então, você é Primrose Potter? — Perguntou uma voz masculina, vinda de algum lugar à sua frente.

Rose olhou para cima e viu um rapaz bonito, com uma cara de bebê e cabelo louro-claro cuidadosamente penteado com gel de uma maneira que a fez lembrar de Draco Malfoy no primeiro ano, sorrindo para ela de maneira simpática.

— Rose. — Ela o corrigiu.

— Eu sou Matthew Newton. Pode me chamar apenas de Matt, é claro.

— Claro. Prazer em conhecê-lo, Matt.

— O prazer é todo meu — Matt disse, com um sorriso que tentava ser descolado, mas fez Rose apenas segurar o riso que borbulhava em sua garganta. — Então, você é a nova garota da cidade, né? Todo mundo está falando de você.

— É, parece que sim — Rose respondeu, com um tom neutro. Ela deu uma olhada rápida para Zoe, que estava observando a interação com um olhar meio cético.

— Sim, você é o cara , todo mundo sabe, Matt — uma garota ao lado disse, com um tom claramente sarcástico. Ela tinha cabelos crespos e um sorriso afiado, como se estivesse pronta para cortar Matt com os seus dentes. — Agora pare de monopolizar a garota nova. Eu sou Emma Crowley, prazer em conhecer você, Rose.

Rose olhou para Emma, que erguia uma mão elegante em sua direção, sentindo um alívio imediato pela intervenção.

— Prazer em conhecer você também, Emma — ela respondeu, com um sorriso genuíno e apertando da nova amiga com fervor.

Matt pareceu um pouco desconcertado com o comentário de Emma, mas tentou manter a pose.

— Eu só estava tentando ser gentil — ele murmurou, com um tom defensivo.

Emma apenas revirou os olhos, claramente não convencida, e virou-se para Rose.

— Então, garota britânica, por que você saiu de um lugar tão bacana quanto a Inglaterra para vir para esse fim de mundo de Forks?

Zoe gargalhou do lado de Rose, assentindo entusiasticamente.

— Foi exatamente o que eu disse, Emma.

— Foi uma mudança necessária, na verdade. — Rose admitiu, com um sorriso tímido. — Meus pais faleceram, então eu vim morar com o meu tio, Charlie.

A mesa ficou em um silêncio constrangido, e Rose sentiu um pouco de culpa por ter causado aquela reação. As expressões ao seu redor mudaram instantaneamente, de curiosidade para uma mistura de pena e desconforto. Emma e uma outra garota que estava em silêncio até agora — Abigail W… alguma coisa? — trocaram olhares rápidos, como se não soubessem exatamente o que dizer. Até Matt, que ainda estava por perto, pareceu ficar sem graça.

— Eu sinto muito, Rose. — A garota, Abigail, finalmente disse, suavemente. — Nós não deveríamos ter perguntado nada. Eu sou Abigail Weber, a propósito.

— Está tudo bem, pessoal. Vocês não sabiam. — Rose deu um aceno de cabeça, tentando aliviar o clima pesado. — Prazer em conhecê-la, Abigail.

— Bem, de qualquer forma — Zoe disse, tentando mudar de assunto —, você agora tem a gente para te ajudar a se acostumar com Forks.

— É isso aí — Emma concordou, com um sorriso encorajador. — E, se o chato do Matt te encher o saco de novo, a gente cuida dele.

— Ei! Eu ainda estou aqui, Crowley. — Matt gritou do outro lado da mesa, quando estava imerso em uma conversa com um cara chamado Jackson Stanley sobre um estranho homem barbudo vestido com um vestido colorido que parecia andar em Forks.

Aparentemente em cidades pequenas qualquer coisa era notável para fofoca.

— Sério, Matt? — Emma piscou os olhos docemente. — Nem notei.

A mesa gargalhou e Rose acompanhou as risadas, sentindo cada vez mais leve.

Era tão estranho estar entre os trouxas, conversando sobre assuntos do cotidiano, aulas, hobbies e outras bobagens, e apenas sendo uma adolescente normal.

Rose sentia-se como se estivesse vivendo uma vida dupla, como se a qualquer momento alguém pudesse descobrir que ela não pertencia completamente àquele mundo, que ela era uma outra coisa antes, que ela tinha poderes.

Enquanto Zoe falava sobre um dos filmes em cartaz no cinema de Porto Angeles e Emma sonhava acordada com o ator principal do filme — alguém chamado Ethan Hawke, que fez Matt e Jackson fazerem sons de vômito —, Rose tentava se manter presente, respondendo com sorrisos e comentários breves — e contornando o fato de que nunca havia assistido a nenhum filme trouxa na vida —, mas sua mente vagava para o mundo que havia deixado para trás.

Ela se pegou pensando em como seria se estivesse em Hogwarts naquele momento. Em vez de discutir sobre filmes trouxas, estariam falando sobre o último jogo de Quadribol ou sobre os rumores de quem estava namorando quem no castelo. Em vez de tarefas de matemática, estariam debatendo a última tarefa de transfiguração.

Era um contraste tão grande que, às vezes, ela tinha que se esforçar para não rir sozinha — ou cair em lágrimas, com saudades de casa.

Mas, ao mesmo tempo, havia algo reconfortante na simplicidade daquela vida. De repente, Rose percebeu, ser uma adolescente normal não era tão ruim assim.

 

*

 

O tempo passou, como tudo sempre passa — implacável e suavemente, como a chuva e o vento frio que balançava as árvores da floresta de Forks. Os dias se transformaram em semanas, as semanas em meses, e, num ritmo que Rose mal notou, a ansiedade e o medo se transformaram em rotina.

Rose andava com Zoe, Emma e Abigail na escola e fora dela; fazendo trabalhos em grupo, aproveitando as poucas atividades disponíveis em Forks e até vivendo, pela primeira vez, a experiência do cinema trouxa e o primeiro filme de sua vida.

Rose, que nunca tinha tido a oportunidade de viver como uma adolescente comum, descobriu uma nova alegria nas coisas mais bobas que ela nunca ousou aproveitar em Hogwarts.

Ela se permitiu rir de piadas sem graça, mergulhar em fofocas no corredor da escola com as amigas, sair para compras na cidade e repetir frases icônicas do filme que tinham visto juntas no cinema no fim de semana.

Durante as aulas de educação física, ela finalmente entrou na vibe de comentar, entre risos e olhares discretos, qual era o garoto mais gato da turma. 

Era uma libertação, uma chance de ser jovem, de se preocupar apenas com coisas ridículas, mas que, no fundo, eram exatamente o que ela precisava para se sentir ela mesma.

Rose ainda passava um tempo com o tio Charlie, sempre vendo baseball ou comendo pizza, ou indo juntos visitar o tio Billy, tia Sarah e o pequeno Jake na Reserva, mas no tempo livre, geralmente aos finais de semana, Rose gostava mesmo era de ir para La Push com Leah.

Foi duro engatar nesta amizade, mas Leah acabou cedendo — ela não teve chances, Rose era adorável, muito obrigada —, então elas caminhavam juntas pela praia, sentiam o vento gelado do mar batendo no rosto e riam à toa, como se o mundo inteiro coubesse naquele pedaço de areia.

Às vezes Rose também era obrigada a ouvir Leah tagarelando sobre um cara chamado Sam Uley, sua altura, sua beleza, sua voz e todos os outros detalhes apaixonados que a faziam revirar os olhos.

Sinceramente, às vezes Rose simplesmente mandava Leah calar a boca, o que fazia a garota correr atrás dela impiedosamente.

Primrose estava realmente muito feliz.

E então Isabella Swan, a filha do tio Charlie, chegou para passar o verão em Forks.

Chapter 7: SETE

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Forks, WA

Verão de 1995

Rose nunca foi do tipo ciumenta.

Mas a realidade é que ela nunca teve nada realmente dela.

Desde que conseguia se lembrar, Rose sempre viveu à sombra dos outros. Primeiro, foi a sombra dos Dursleys, onde tudo o que ela tinha era emprestado, de segunda mão, comprado em brechós ou dado de má vontade. Seu quarto era o segundo quarto de Dudley, aquele que ele não queria mais e era usado apenas como depósito de coisas que ele considerava lixo, e até mesmo o afeto — se é que podia ser chamado disso — era algo que ela só recebia por tabela, quando sobrava.

Mesmo depois de perder a sua magia e ser recebida de braços abertos pelos Dursleys, Rose ainda não sentiu que havia algo dela ali.

Depois, veio Hogwarts, e por um momento, ela pensou que finalmente teria algo só seu. Um lugar onde poderia ser Rose, apenas Rose . Mas até lá, ela viveu sob a sombra de outros. Comparada aos pais, aos amigos, aos heróis que vieram antes dela. Ela não era apenas Rose; era Primrose Potter, a Garota que Sobreviveu, a escolhida, a única pessoa que sobreviveu à maldição da morte.

O que era dela , afinal de contas?

E então veio Forks.

Em Forks, Rose teve tudo o que nunca podia ter.

Pela primeira vez, ela tinha um quarto só seu. Não era um espaço emprestado, cheio de sobras de outra pessoa. Era dela .

As paredes eram pintadas de uma cor que ela escolheu, a cama tinha lençóis novos e cheirosos que ela gostava, e havia prateleiras para seus livros e pequenos objetos que ela foi colecionando ao longo do tempo.

E havia o tio Charlie. Ele não era perfeito — longe disso.

Era um homem simples, direto, que às vezes parecia mais confortável com peixes do que com pessoas. Mas ele tentava. Ele estava ali, presente, de uma maneira que os Dursleys nunca estiveram.

E ele era dela . O tio Charlie dela .

Ele a levava para pescar ocasionalmente, mesmo que ela nunca conseguisse pegar um peixe. Eles viam baseball juntos na tv da sala, mesmo que ela não entendesse metade das jogadas ou comparasse tudo com quadribol. Ele fazia jantares que nem sempre eram totalmente comestíveis, mas eram feitos com cuidado.

E, mais importante, ele a olhava nos olhos quando falava com ela, como se ela importasse. Como se ela fosse alguém.

E também haviam suas amigas. Rose nunca tinha tido algo assim antes.

Em Hogwarts, ela tinha amigos, é claro, mas sempre houve uma barreira invisível, uma distância que ela não conseguia explicar. Em Forks, era diferente. 

Lá, ela conheceu Emma, Zoe, Abigail e Leah, que a aceitaram sem questionar, sem esperar nada em troca. Elas riam juntas, compartilhavam segredos, faziam planos para o futuro,

E isso era tudo dela.

Portanto, quando Isabella Swan chegou em Forks naquele verão, Rose percebeu que estava com ciúmes.

Não era um ciúme barulhento, daqueles que explodem em gritos e acusações. Era um ciúme silencioso, que se instalou no fundo do seu peito como uma pedra fria. Um ciúme que a fazia observar a pequena Bella com um misto de admiração e dor, como se cada riso, cada gesto de carinho, cada momento de normalidade compartilhado entre ela e o tio Charlie fosse um lembrete de tudo o que ela nunca teve.

Ela sentia ciúmes pela maneira como todos falavam de Isabella, como se ela fosse o centro do mundo de todos dentro e fora de Forks. Ciúmes da forma como os olhos de Charlie brilhavam quando ele contava histórias dos primeiros anos de Isabella. Ciúmes de como tio Billy e tia Sarah imediatamente se animaram com a ideia de uma companheira de brincadeiras para Jake. Ciúmes até mesmo de como suas amigas ficaram animadas em saber que a pequena Isabella agora passaria duas semanas de cada verão em Forks.

E, no fundo, Rose sabia que esse ciúme não era justo.

Isabella não tinha culpa de ter uma vida que Rose nunca teve. Isabella não tinha culpa de ser quem era, de ter o que tinha. Isabella não tinha culpa de ser uma Swan de verdade, enquanto Rose era apenas uma falsificação.

Mas isso não impedia que o ciúme existisse, que ele crescesse dentro dela como uma planta venenosa, enraizando-se em cada canto do seu coração.

Era um ciúme que a fazia questionar tudo.

Por que ela não podia ter isso? Por que ela não podia ter uma família, um lugar onde pertencesse, alguém que a olhasse como tio Charlie olhava para Isabella? Por que ela tinha que ser tão descartável?

E, às vezes, quando o ciúme ficava muito forte, Rose simplesmente virava as costas e ia para La Push ficar com Leah.

Leah entendia o ciúme de Rose. Não que fosse o tipo de coisa que ela admitiria com facilidade. E, mesmo com as carrancas e olhos revirados, ela sempre sabia o que dizer.

— Eu senti a mesma coisa quando o Seth nasceu.

— Sério? — Rose perguntou, surpresa, enquanto encarava o mar, os pés afundando na areia úmida.

— Aham. Ele era uma coisinha feia quando chegou do hospital e todos queriam pegá-los nos braços o tempo todo. Eu fiquei me perguntando porque alguém gostaria de segurar um bebê com cara de joelho.

Rose gargalhou, sem conseguir se segurar. Leah sorriu satisfeita por ter conseguido tirar Rose daquela espiral de pensamentos sem sentido.

— Mas sério — Leah continuou —, eu entendo o que você está sentindo. Quer dizer, eu era filha única, tinha toda a atenção, sabe? Então, quando Seth chegou, eu pensei que ninguém ia ligar mais pra mim, que eu ia ser esquecida, sei lá.

Rose franziu o cenho.

— E como você superou isso? Você parece se dar bem com Seth hoje.

Leah encolheu os ombros, como se a resposta fosse óbvia.

— Eu percebi que o amor não é um pote de sorvete, Rose. Não tem um fundo. Não é como se, porque eles amavam o Seth, eles precisassem parar de me amar. Mas, às vezes, a gente fica tão apavorada de perder o que tem que começa a brigar por isso, mesmo quando ninguém está tentando tirar nada da gente.

Rose ficou em silêncio, mordendo o lábio.

— O problema — Leah acrescentou, sem rodeios — é que você acha que, se alguém tiver alguma escolha, então essa escolha nunca será você.

Rose prendeu a respiração, atingida em cheio pela verdade simples e crua das palavras de Leah.

— Você precisa parar com essa merda, Rose — Leah disse, mais gentil do que seu tom sugeria. — Porque, se você continuar esperando que todo mundo te deixe para trás, uma hora você mesma vai começar a se afastar primeiro.

Rose ficou em silêncio por um momento, absorvendo as palavras de Leah. Ela sabia que Leah tinha razão, mas era difícil aceitar isso quando ela tinha sido tão certeira.

Em vez de falar sobre isso, no entanto, ela fez o que sabia fazer de melhor: fugiu do assunto.

— Você é bastante sábia…

— Obrigada, porra. Finalmente, reconhecimento.

— … para alguém da sua idade, pelo menos.

Leah estreitou os olhos.

— O que isso quer dizer? Eu sou a porra de uma gênia.

Rose revirou os olhos, chutando um pouco de areia na direção de Leah.

— Você quer um prêmio por isso?

Leah ergueu a cabeça, fingindo considerar a ideia.

— Gostei da ideia. Pode fazer uma estátua em mármore, colocar bem aqui no meio de La Push, e escrever: “A única com bom senso nessa merda de praia”.

— Eu estava pensando em algo mais modesto, sabe? Tipo… um chaveiro.

— Você é tão mesquinha, Primrose.

— Eu sou econômica.

Elas ficaram em silêncio por um instante, apenas ouvindo o som das ondas quebrando na areia. Rose cruzou os braços, desconfortável com a forma como as palavras de Leah ainda ecoavam em sua mente.

— Agora que terminamos a sessão de terapia não autorizada, podemos falar sobre outra coisa?

Leah arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços.

— Ah, então é assim? Eu te dou uma pepita de sabedoria e você simplesmente varre pra debaixo do tapete?

— Eu não estou varrendo nada. Estou processando. Lentamente. Como… uma tartaruga emocional.

— Aham, claro. E tartarugas emocionais costumam fugir da conversa usando sarcasmo barato?

— Não é barato. Meu sarcasmo é de primeira linha. Importado da Inglaterra.

Leah bufou, mas não conseguiu segurar um pequeno sorriso.

— Tá bom, tartaruga. Vou te dar um desconto dessa vez. Mas não se acostuma.

Rose suspirou, aliviada por Leah ter deixado passar e correu para mudar de assunto novamente.

— Tudo bem. Agora me fale sobre Sam Uley.

Os olhos de Leah brilharam imediatamente, e Rose sentiu um arrepio de arrependimento subir pela espinha. Por um breve segundo, ela cogitou seriamente voltar para Forks e suportar seu próprio ciúme mesquinho, em vez de ficar ali ouvindo Leah babar no novo namorado pelas próximas horas.

— Tem certeza? — Leah cruzou os braços, inclinando a cabeça com um sorriso vitorioso.

— Não mesmo. Eu escolhi mal. Vou me retirar.

Rose fingiu se levantar, mas Leah a segurou pelo pulso, rindo.

— Tarde demais, garota. Você invocou o demônio e agora vai sofrer as consequências.

Rose gemeu dramaticamente.

— Eu me odeio por isso.

— Pois devia se amar mais. Esse é um assunto fascinante.

— Duvido.

— Eu poderia falar por horas sobre os olhos dele. Já mencionei como brilham quando ele—

— Ah, meu Deus, eu retiro o que disse! Esquece o Sam, me dá outra palestra sobre insegurança, por favor!

Leah soltou uma gargalhada, seus longos cabelos saltando, enquanto ela balançava a cabeça.

— Você que pediu. Agora aguenta.

Rose respirou fundo, derrotada.

— Tudo bem. Me conte.

Leah abriu um sorriso satisfeito, como se estivesse esperando essa permissão o tempo todo e começou seu longo monólogo.

— Eu acho que é pra ser, sabe? Eu sei que a gente namora há pouco tempo, mas, sei lá, ele é perfeito. Eu sinto que vou me casar com aquele homem.

Rose piscou, surpresa.

— Caramba.

— Eu sei! — Leah exclamou, empolgada. — Ele é forte, inteligente, tem um senso de liderança absurdo… E já te falei do sorriso dele?

— Algumas vezes.

— Mas você não entende, Rose. Quando ele sorri de verdade, tipo, de verdade mesmo, parece que o mundo inteiro fica em silêncio. Como se nada mais importasse.

— Você parece um pouco louca.

— É. — Leah suspirou, sonhadora, e ignorando completamente o comentário de Rose. — E eu amo tanto isso.

— Bem, eu fico feliz em ouvir isso, Leah.

— Claro que sim. Você é minha melhor amiga e minha futura madrinha de casamento.

Rose paralisou. Ela olhou para Leah por baixo dos cílios e fez um beicinho exagerado.

— Eu sou sua melhor amiga?

Leah parou por um instante, percebendo tarde demais o que tinha dito.

— Ah, cala a boca.

Rose abriu um sorriso travesso.

— Uau. Isso foi um momento . Você quer que eu te abrace?

— Eu quero que você se afogue.

— Nossa, que rude. Achei que estávamos tendo um momento especial aqui, sabe.

— Foi um lapso de julgamento.

— Então você assume que foi um momento.

Leah revirou os olhos, mas o canto da boca dela se ergueu em um meio sorriso.

— Você é tão insuportável.

— É, claro, eu posso até ser, mas… sou eu quem sou a sua melhor amiga . — Rose cantarolou e se levantou lentamente quando percebeu como Leah estreitou os olhos, o meio sorriso se transformando em algo perigosamente travesso.

— Rose.

— Leah. — Rose respondeu no mesmo tom, já dando um passo para trás.

— Eu sugiro que você corra.

— Eu já estava considerando.

— Então, por que ainda está parada aí?

— Porque eu tenho esperança na compaixão humana.

— Péssima escolha.

Antes que Rose pudesse reagir, Leah avançou, e Rose girou nos calcanhares, disparando pela areia com um grito.

— EU RETIRO O QUE DISSE! VOCÊ É LOUCA! UMA PÉSSIMA AMIGA! NENHUMA COMPAIXÃO!

Leah estava logo atrás, rindo, os passos rápidos e certeiros, sem esforço.

— Você provocou isso, melhor amiga!

— EU NÃO QUERO MAIS SER SUA MADRINHA!

— TARDE DEMAIS, VADIA!

O vento chicoteava o cabelo vermelho de Rose em seu rosto enquanto ela corria pela praia, rindo e gritando ao mesmo tempo.

Ela virou para trás para gritar com Leah novamente quando esbarrou em algo — ou melhor, alguém — e caiu de bunda na areia com um baque surdo.

— Ai, caramba!

Ela piscou, atordoada, antes de levantar a cabeça e olhar para o estranho que agora a encarava com um olhar de profundo ódio. Ele era alto, com pele bronzeada e olhos escuros, e tinha uma expressão que dizia claramente que queria matá-la.

Rose sentiu um calafrio subir pela espinha, e seu sorriso nervoso se desfez ao perceber que ele realmente parecia irritado.

— Eu… eu sinto muito, não vi você.

Ele ficou em silêncio por um momento, ainda com os olhos fixos nela, como se esperasse que ela dissesse algo mais.

Quando Rose não disse nada, ele lançou um olhar fulminante para ela e para Leah, que finalmente a alcançou.

— Olha por onde anda, sua imbecil.

Rose sentiu o sangue ferver nas veias. Ela abriu a boca para retrucar, mas foi Leah quem reagiu primeiro.

— Ei, qual é o seu problema, cara? — Leah estreitou os olhos para o homem irritado, mas ele não tirou os olhos de Rose.

— O problema é você esbarrando nas pessoas sem nem olhar para onde vai — ele respondeu, a voz baixa e carregada de irritação.

Rose franziu a testa, sentindo a raiva crescer e sua paciência sumir.

— Não foi de propósito, ok? Eu tava correndo, e você apareceu do nada. Não é como se eu procurasse todos os babacas para esbarrar por aí.

O cara avançou um passo, os olhos escuros se estreitando em fúria.

Como é?

Leah deu um passo à frente, a postura completamente desafiadora.

— Tá bom, chega. Você é um tremendo de um idiota, sabia? A garota só se empolgou, e você já tá querendo brigar com ela. Que tal relaxar e deixar as coisas irem?

Ele encarou Leah por um momento, e Rose pôde ver a tensão aumentar, como se ele estivesse prestes a dizer mais alguma coisa. Mas, em vez disso, ele simplesmente deu de ombros e virou-se abruptamente, indo embora sem mais uma palavra e pisando duro.

Leah ficou ali, com a mão ainda na cintura, observando o homem se afastar.

— Que idiota. — Ela murmurou.

— Você o conhece?

Leah soltou um suspiro, ainda com a expressão irritada.

— Sim. Paul Lahote. É só um babaca que gosta de chamar atenção e brigar com todo mundo.

Rose franziu a testa.

— E ele é assim com todo mundo?

Leah fez um gesto desdenhoso com a mão.

— Com certeza. Não sei o que ele tem na cabeça, mas deve ser uma bagunça. Acontece que, ultimamente, ele anda por aí procurando briga com qualquer um que passe. Mas quem sou eu para achar isso um problema, né? Ele que se divirta.

Rose deu uma risada nervosa.

— Parece que ele sabe lidar bem com as pessoas.

— Não é? — Leah respondeu com um sorriso amargo. — A questão é que, se você não tiver cuidado, ele vai te arrastar para o drama dele. Melhor ignorar e seguir em frente.

Rose olhou em direção ao homem que ainda caminhava pela praia, um pouco mais distante agora. Ela sentiu uma pontada de desconforto.

— Simpático pra caramba.

Leah bufou, claramente sem paciência para mais nenhuma palavra sobre Paul.

— Bem, agora que todo esse drama acabou, você quer ir na minha casa? Eu quero te mostrar as flores que eu ganhei do Sam.

Rose fez uma careta.

— Ugh! Desde quando você é tão… romântica ?

Leah deu uma risada abafada, balançando a cabeça.

— Ai, por favor, não me vem com essa. Todo mundo gosta de flores, e eu quero ver você tentar não achar as minhas lindas.

Rose revirou os olhos, mas não pôde deixar de rir.

— Tá, tá, você venceu. Mas se você começar a falar sobre sentimentos e romance demais, eu vou fugir pela janela. Eu quero ver você explicar meu sumiço pra tia Sue e o tio Harry.

Leah deu um sorriso travesso, como se tivesse exatamente a intenção de incomodar Rose.

— Não se preocupe, não vou começar a falar sobre romance... Só sobre como meu namorado é perfeito e como as flores são a melhor coisa do mundo agora.

Rose fez sons de vômito durante todo o trajeto até a casa de Leah, mas não deixava de sorrir sempre que a amiga começava a falar sobre os melhores aspectos do seu namoro perfeito e sem defeitos.

Lá no fundo, Paul Lahote já tinha sumido dos seus pensamentos, mas o conselho de Leah ainda perfurava sua mente, relembrando o quanto Rose talvez estivesse errada com a maneira como lidou com a chegada de Isabella.

Ela precisava consertar isso.

 

*

 

Mais tarde, Rose chegou em uma casa completamente silenciosa.

— Tio Charlie? — Rose gritou enquanto subia as escadas, sua voz ecoando pela casa vazia.

— Aqui no quarto, Rose.

Ela se dirigiu até o quarto dele, onde o encontrou sentado na cama, olhando para uma caixa em seu colo.

— Como foi na Reserva? — Charlie perguntou sem olhar para ela.

— Ótimo. Eu estava com Leah.

— Harry e Sue estão bem?

— Estão sim. Onde está Isabella?

— Dormindo no quarto dela.

— Está tudo bem, tio Charlie?

Charlie assentiu brevemente, mas seu olhar ainda permanecia fixo na caixa. Rose sentiu que algo havia algo mais em seu silêncio, mas não ousou perguntar.

— Eu… bem… — Ele hesitou.

Rose sabia que tio Charlie não era do tipo que falava sobre as coisas, ela era mais do tipo que sofria em silêncio. Então ela apenas esperou, permitindo que ele encontrasse suas palavras sozinho.

— Eu sei que você tem muita coisa guardada, e que passou por bastante coisa. Mas você sabe que eu nunca te deixaria, né?

Rose olhou para ele, o coração apertado em seu peito.

— Eu sei, tio. — Ela murmurou, sentindo a vontade de se deixar levar pelas lágrimas, mas segurando firme.

— Eu não vou abandonar você. Eu não vou trocar você por outra pessoa.

— Eu sei.

Ele a observou por um momento, com uma expressão que, embora grave, transmitia sinceridade e muito mais sentimento do que, provavelmente, ela já recebeu na vida.

— Você ainda é meu sangue, e eu amo você. Há essa altura você já é praticamente uma segunda filha.

Rose baixou a cabeça, em silêncio, sentindo as lágrimas começarem a brotar no canto dos seus olhos.

Ela era tola por achar que Charlie não era observador o suficiente para perceber as pequenas coisas, como o ciúmes disfarçado que ela sentia em relação à Isabella.

— Você não precisa se preocupar, garota. Você sabe disso, certo?

Rose respirou fundo, tentando esconder o quanto se sentia feliz com essas palavras, mas não conseguiu.

— Eu sei. Sinto muito, tio Charlie.

— Você não precisa se desculpar. — Ele respondeu, balançando a cabeça com um sorriso paciente. — Olha, eu sei que prometi te mostrar as cartas que troquei com a sua mãe, e acho que esse é o melhor momento.

Rose olhou para ele, surpresa.

Finalmente, Charlie pegou a caixa que estava em seu colo e entregou para Rose. Ela segurou a caixa com as mãos trêmulas, olhando para ele com olhos arregalados, como se tivesse acabado de receber uma mina de ouro.

— Obrigada, tio. — Ela sussurrou, sem saber o que mais dizer.

— De nada, garota. Não se preocupe, vai ficar tudo bem.

Então, Rose abraçou Charlie com força.

Mais tarde ela choraria.

Mais tarde ela leria as cartas e se sentiria mais próxima de sua mãe.

Mais tarde ela tentaria consertar as pontes com Isabella.

Por enquanto, ela só queria abraçar Charlie com força, sentindo o seu cheiro forte e se sentindo, verdadeiramente, em casa.

Com a sua família.

Chapter 8: OITO

Chapter Text

Forks, WA

1997

Quando Bella fez 10 anos, ela decidiu que não queria mais passar os verões em Forks. Provavelmente era algum ataque rebelde da pré-adolescência que provocava vergonha dos pais ou algo do tipo, então o verão de 97 foi o último que ela passou com o tio Charlie.

Desde o ataque de ciúme que Rose havia sentido ao ver a pequena Bella pela primeira vez, ela realmente se esforçou para estar mais presente na vida da menina. Então, elas brincavam juntas, assistiam filmes, e Rose até levava Bella até a Reserva para vê-la se enfiar em poças de lama com Jake — uma cena que sempre a fazia rir.

No entanto, na maior parte do tempo, Bella preferia ficar em casa, sempre com um livro no colo e envolvida em conversas monossilábicas com o tio Charlie. Ocasionalmente, Rose a pegava chamando-o de Charlie em vez de pai — o que, pensando agora, talvez já fosse um enorme sinal de que ela não gostava de ir para Forks ou de estar com eles.

Elas poderiam não ser exatamente irmãs, mas Rose passou a gostar de Bella como uma; e Bella, por mais reservada que fosse, realmente parecia gostar de estar na presença de Rose.

Por isso, quando o verão chegou ao fim e Bella partiu de volta para Phoenix sem data para voltar, Rose sentiu uma pontada de tristeza e surpresa em seu peito. A casa de Charlie parecia mais vazia sem a presença silenciosa de Bella, e até Jake, que era sempre uma bola de energia, parecia um pouco mais quieto sem sua companheira de brincadeiras. 

Mas se Rose sentiu a ausência de Bella, o tio Charlie parecia ainda mais afetado. Era visível como a partida dela o deixou desolado. Afinal, qual pai gostaria de ouvir a própria filha dizer que não queria mais estar com ele?

Renée falou ao telefone sobre alguma bobagem sobre Bella finalmente estar crescendo, sendo independente, tomando as próprias decisões e como ela queria passar o verão com os próprios amigos, em vez de atravessar o país para um lugarzinho triste como Forks .

Charlie tentou disfarçar, fingindo que aquilo não doía, mantendo a rotina e o trabalho, mas Rose via a tristeza no olhar dele, na maneira como ele ficava mais quieto à mesa durante o jantar, ou como ele olhava para a cadeira vazia onde Bella costumava sentar.

Rose tentou confortá-lo, à sua maneira. Ela passou mais tempo com ele, vendo baseball em vez de ir para La Push com Leah, trocando uma noite com Emma, Zoe e Abigail por pizza na sala de estar, se esforçando mais nas pequenas tarefas da casa, e puxando conversa fiada sobre coisas triviais, como o trabalho ou a pescaria que tio Billy e tio Harry o obrigavam a ir para tentar levantar seu ânimo.

Mas ela sabia que nenhuma palavra ou gesto poderia preencher o vazio que Bella havia deixado.

Por isso, era muito importante que o natal daquele ano fosse memorável. Rose decidiu que faria de tudo para garantir que Charlie tivesse um dia especial, mesmo que isso significasse abrir mão de seus próprios planos.

No dia, a ideia era passar o dia na casa do tio Billy e da tia Sarah na Reserva. Eles também haviam convidado tio Harry, tia Sue, Seth, Leah e o namorado dela, Sam, para o almoço. Seria um dia cheio e barulhento, mas Rose sentia que era exatamente disso que o tio Charlie precisava no momento.

Ela decidiu acordar bem cedo para ajudar a tia Sarah a decorar a casa com luzes e enfeites. Enquanto penduravam guirlandas e colocavam velas nas janelas, Rose sentia uma animação contagiante. É claro que ela sentia falta das velas flutuantes de Hogwarts, do banquete extravagante e de todo o clima, literalmente, mágico; mas havia algo igualmente mágico em se preparar para o natal trouxa, em usar as próprias mãos em vez de uma varinha para pendurar visco, montar uma árvore ou fazer a comida; em sentar ao redor da lareira com a família e trocar presentes, sem se preocupar se o chocolate vai pular para fora da embalagem ou se as fotos vão se mover.

Era normal, mas era estranhamente reconfortante. E ela queria que o tio Charlie pudesse sentir isso também para que, com o tempo, ele pudesse curar o seu coração partido.

— Como Charlie está se saindo agora que Bella decidiu não voltar mais para Forks? — Tia Sarah sussurrou, enquanto elas sentavam juntas à mesa da cozinha para descascar batatas.

Rose suspirou.

— Não muito bem, tia. — Ela admitiu, com um tom baixo. — Eu tenho me esforçado para levantar o ânimo dele em casa, mas eu sei que está sendo difícil pra ele. Ele tenta disfarçar, mas… dá pra ver que ele tá sofrendo.

— Claro que está. — Tia Sarah respondeu, com um olhar de compaixão. — Pobre homem. Ele sempre colocou Bella em primeiro lugar, mesmo quando ela não estava aqui. Agora, saber que ela não quer voltar… deve ser um golpe muito duro.

— Eu o peguei chorando um dia desses. — Rose confessou, com um nó na garganta. — Ele estava olhando uma foto que eu tirei da Bella no verão passado. Ele nem percebeu que eu estava lá.

— Sério? — Tia Sarah ergueu as sobrancelhas surpresa. — Nunca pensei que viveria o suficiente para ver Charlie Swan chorar.

Rose bufou, tentando aliviar um pouco o clima pesado.

— Bem, agora você já pode morrer em paz.

Tia Sarah deu uma risada baixa, mas logo seu olhar ficou sério novamente.

— E você? Como está se sentindo com tudo isso?

Rose hesitou, descascando uma batata com mais cuidado do que o necessário.

— Não tenho certeza. — Ela admitiu, finalmente. — Eu estou triste também, eu acho…

— Você acha? — Tia Sarah lançou um olhar perspicaz para Rose.

— Bem… — Rose respirou fundo, tentando organizar os pensamentos. — Acho que você não sabe, mas eu tinha um pouco de ciúme de Bella no início.

— Oh querida… Era perceptível.

— Bem, ok, enfim… — Rose continuou, sentindo-se levemente exposta. — Eu aprendi a lidar com isso e passei a gostar dela. Mas agora que ela se foi, eu não posso deixar de me sentir ressentida. Quer dizer, eu nem tenho meus pais vivos, e aqui está um excelente pai presente e bem vivo, enquanto Bella prefere, o quê? Fugir? Tratá-lo como se fosse um favor ou uma obrigação ela vir de Phoenix pra cá só duas semanas por ano?

As palavras saíram mais rápido do que ela esperava, enquanto ela esfaqueava as batatas em suas mãos. Rose sentiu um misto de alívio e culpa por ter dito qualquer coisa, mas Tia Sarah apenas ficou em silêncio por um momento, observando-a com cuidado.

— Você estava com isso preso na garganta, não é?

Rose parou de cortar as batatas e olhou para ela, sentindo as lágrimas pressionarem o canto dos seus olhos.

— Eu não queria jogar tudo isso em você, tia Sarah. — Ela admitiu, com um tom de voz mais baixo, quase um sussurro.

— Não tem problema nenhum, querida. Eu já te disse isso antes, eu sou toda ouvidos. E tá tudo bem chorar, pode colocar pra fora.

Rose respirou fundo, sentindo um pouco do peso sair de seus ombros.

— É só… eu vejo o tio Charlie sofrendo, e eu não consigo entender como ela não vê o quanto ele se importa com ela. Ele é um pai incrível, e ela… ela simplesmente vai embora.

Rose se sentia péssima em odiar Bella um pouco, mas não conseguia evitar. Era como se cada lembrança da menina trouxesse consigo uma pontada de frustração.

Bella era tão egoísta, sempre pensando nela — em como ela não gostava de Forks, em como ela não conhecia ninguém, em como ela não queria ficar presa naquela casa. Mas, na verdade, ser uma estranha sempre foi uma escolha de Bella.

Ela nunca se esforçava para se integrar, para conhecer as pessoas ou para aproveitar o que a cidade tinha a oferecer. Em vez disso, ela se isolava, sempre presa aos livros ou ao telefone, conversando com Renée, enquanto tio Charlie se esforçava para agradá-la, para fazer com que ela se sentisse em casa.

Bella e Rose saíram e se divertiram juntas algumas vezes, é claro.

Rose lembrava dos dias em que levava Bella para a Reserva, onde ela e Jake costumavam brincar, ou das noites em que assistiam filmes juntas, com tigelas de pipoca e cobertores.

Mas, mesmo assim, era difícil não se sentir uma merda quando parecia que apenas Rose havia se esforçado para se aproximar de Bella. Quando apenas Rose tentou puxar conversa, incluir Bella em seus planos, mostrar a ela que Forks não era tão ruim assim.

Porque, no final, sempre parecia que Bella estava apenas tolerando tudo.

E se Rose se sentia assim, ela conseguia apenas imaginar que tio Charlie deveria se sentir duas vezes pior.

Ele, que sempre tentou de tudo para fazê-la feliz, mesmo quando ela mal olhava para ele, que fazia Rose cozinhar as suas comidas favoritas, arrumava o quarto dela com cuidado, e até tentava puxar conversa sobre coisas que ele achava que ela gostaria.

No entanto, na maioria das vezes, tudo o que ele recebia em troca eram respostas monossilábicas e um olhar distante.

Rose via a dor nos olhos de Charlie, mesmo quando ele tentava disfarçar. Ela o pegava olhando para fotos antigas, ou parado no corredor, como se estivesse esperando que Bella aparecesse a qualquer momento.

Então, quando Bella finalmente partiu, decidindo que não queria mais passar os verões em Forks, foi como se Charlie tivesse levado um soco na cara.

— É complicado, Rose. — Tia Sarah disse, com um olhar cheio de compreensão. — Bella ainda é jovem, ela mal é adolescente. Não significa que ela seja uma pessoa má, mas tudo ainda é preto no branco pra ela. Ela ainda está aprendendo.

— Eu sei. — Rose murmurou, limpando uma lágrima que escapou, e sentindo a culpa corroer a boca do seu estômago. — É só… é difícil vê-lo assim. Eu me sinto tão… ridícula, impotente, fraca.

E também muito culpada .

Rose tinha 17 anos, Bella tinha apenas 10. A diferença de idade entre elas era grande o suficiente para Rose entender que Bella ainda estava descobrindo o mundo, ainda tentando entender os seus próprios sentimentos e as mudanças na vida.

Além disso, enquanto a Bella de 10 anos tem apenas a escolha de ver ou não o seu pai, Rose de 11 anos já era grande o suficiente pra entender que os Dursleys nunca a amariam; que ela era uma bruxa; que seus pais haviam sido assassinados; que ela a Garota que Sobreviveu; e, se isso tudo não bastasse, que também ela era capaz de conter o assassino dos seus pais com as suas próprias mãos novamente.

Era uma situação completamente diferente. Rose teve que crescer muito antes de poder ser chamada de criança. Bella era, de fato, apenas uma criança.

Mas era difícil não se sentir frustrada ao ver o tio Charlie sofrendo por algo que parecia tão óbvio para ela. Ele era um pai presente, amoroso, que faria qualquer coisa por Bella — e, no entanto, ela parecia não enxergar isso.

— Você não é nada disso, querida. — Tia Sarah respondeu, colocando uma mão sobre a de Rose. — Você está aqui, cuidando dele, fazendo o que pode. E isso já significa muito. Charlie sabe disso, mesmo que ele não diga. E você está fazendo a diferença, mesmo que não pareça.

— Você acha? — Rose sussurrou, sentindo-se novamente como aquela garota de 14 anos que chegou em Forks completamente perdida, sem ter certeza se realmente poderia ser feliz ali como uma trouxa.

— Eu tenho certeza. — Tia Sarah afirmou, com um sorriso caloroso. — Você não sabe o quão incrível você é, Primrose. Você é doce, gentil, determinada, esforçada. Você pode ser um pouco cabeça dura e impulsiva às vezes…

Rose gargalhou sem conseguir se conter.

— ...Mas é exatamente isso que torna você ainda mais especial. — Continuou Tia Sarah, sua voz carregada de um afeto que sempre pegava Rose desprevenida. — Você não desiste, Rose. Nunca desistiu. Sempre lutando pelo que é certo, e protegendo as pessoas que você ama como uma mamãe lobo faria pelos seus filhotes. E é por isso que você é tão forte. 

Rose olhou para ela, os olhos úmidos, enquanto Tia Sarah segurava suas mãos com firmeza.

— É por isso que eu sei que isso deve despedaçar você também. — Tia Sarah suspirou, e encarou Rose com uma seriedade que a fez prender a respiração. — Mas, me escute bem, a vida vai te testar de maneiras que você nem imagina. Pior do que perder os pais tão cedo, ir embora para outro país ou sentir essa dor por causa de Bella. Haverá dias em que você vai sentir que o chão sumiu debaixo dos seus pés, e não há mais como seguir em frente. Mas você vai seguir em frente. Porque você é mais forte do que qualquer problema, mais resistente do que qualquer dor. E quando esse dia chegar, e ele vai chegar, você precisa se manter firme.

Rose sentiu um calafrio percorrer sua espinha, mas não desviou o olhar. Tia Sarah apertou suas mãos com mais força.

— Me prometa, Primrose. Me prometa que, não importa o quão difícil seja, o quão impotente você se sinta, você vai se manter firme.

Rose gaguejou, sem realmente entender como a conversa pulou de “Eu acho que odeio um pouco a Bella” para “Um dia sua vida vai ser pior do que isso”.

No entanto, ela não ousou questionar o rumo da conversa ou como tia Sarah parecia tão estranha. Ela apenas prometeu.

— Eu prometo, Tia Sarah.

— Vai ficar tudo bem, querida.

Rose não tinha certeza disso.

E ela nunca desejou tanto que estivesse errada.

 

*

 

Mais tarde — um tempo depois daquela conversa bizarra com a tia Sarah —, toda a família sentou na sala para trocar presentes e tomar chocolate quente, enquanto a neve caía lá fora, cobrindo toda a extensão de terra da casa dos Black com um manto branco e fofo.

Rose sentou-se no sofá, envolta em um cobertor macio e quente, segurando uma caneca com as duas mãos, sentindo o calor do chocolate quente aquecer seus dedos frios.

Ela observou a cena ao redor: Charlie abrindo um presente com aquela expressão desconfiada que ele sempre fazia, enquanto tio Billy e tio Harry riam baixinho ao lado dele. Jake e Seth, sentados juntos no chão, rasgando os papéis de presente com uma energia interminável.

Do outro lado da sala, Tia Sue e Tia Sarah estavam tomando uma caneca que, claramente, não tinha chocolate quente. Provavelmente era gemada com álcool, o que fez Rose bufar baixinho, tentando disfarçar um sorriso.

E Leah estava abraçada com o namorado, Sam, os dois parecendo completamente alheios ao resto da família, envolvidos naquele romance meloso que fazia Rose querer vomitar e rir da cara de Leah ao mesmo tempo. 

Primmy , sua vez! — Jake chamou, estendendo um pequeno pacote em sua direção. — Primeiro o meu.

Rose bufou para o apelido. Era sempre muito engraçado, quando Jake tinha apenas 5 anos, vê-lo tentar falar Primrose sem a língua enrolar. No entanto, em vez de adotar o Rose como todo mundo, ele decidiu que Primmy era muito mais adequado.

Ela ergueu as sobrancelhas, surpresa, e ergueu as mãos para pegar o presente embrulhado de forma desleixada, como só uma criança de 9 anos seria capaz de fazer.

— O que você aprontou dessa vez, Jake?

— Só abre e para de enrolar! — Jake revirou os olhos, enquanto Seth dava uma cotovelada nele.

Com cuidado, ela começou a desembrulhar o presente, rasgando o papel com uma lentidão deliberada só para irritar Jake, que já estava se contorcendo de impaciência.

— Primmy, eu juro, se você não abrir logo… — Ele começou, mas foi interrompido pela risada dos adultos ao redor.

— Relaxa, Jake. Ela tá só te enrolando. — Tio Billy bagunçou o longo cabelo de Jake, fazendo-o gritar ofendido.

Finalmente, Rose abriu o pacote e encontrou um papel enrolado como um pergaminho, amarrado com uma fita preta simples. Ela desenrolou-o com cuidado, sentindo a textura grossa do papel sob seus dedos. Era um desenho.

Nele, Rose estava parada no meio de uma floresta, cercada por árvores altas, cujos galhos se entrelaçavam no topo. Seus cabelos longos, vermelhos como fogo, brilhavam sob a luz do sol que atravessava as folhas.

Ao seu lado, havia um enorme lobo cinza, de olhos dourados e penetrantes, que parecia olhar para ela com uma expressão de proteção feroz.

Era óbvio que o desenho havia sido feito por uma criança de 9 anos. As linhas eram um pouco tremidas, os traços desiguais, e as proporções não eram exatamente perfeitas — o lobo, por exemplo, parecia um pouco grande demais em comparação com Rose.

Mas havia algo naquele desenho que não parecia inocente. Algo que fez os pêlos da nuca de Rose se arrepiarem. Ela ficou sem palavras por um momento, seus dedos tremendo levemente ao tocar as bordas do papel, enquanto ela ignorava os estranhos olhares trocados entre tio Billy e tio Harry, e encarava longamente o desenho.

Ela olhou para Jake, que estava observando-a com um sorriso tímido, como se não tivesse certeza de como ela reagiria.

— É lindo, Jake. Vou ter certeza de colocar em um quadro e pendurar no meu quarto.

O sorriso de Jake se iluminou, seus olhos brilhando com alívio e orgulho. Ele a abraçou com força e correu para se jogar nos presentes novamente.

— Agora é a minha vez! — Leah gritou, pulando do seu assento e arrastando Sam até o sofá onde Rose estava. — Toma aqui!

Ela empurrou uma caixa para Rose com uma falta de delicadeza que a fez bufar. A caixa era grande, embrulhada em um papel azul-escuro com estrelas prateadas, completamente torto e mal feito.

— Uau. — Rose ergueu as sobrancelhas, com uma falsa surpresa, segurando o pacote horrível de Leah. — Jake, de 9 anos, superou você no quesito embrulho de presentes, Leah.

— SIM! — Jake gritou do outro lado da sala, levantando os braços em vitória.

— Ah, me poupe. — Leah revirou os olhos.

— Você poderia pelo menos fingir que se importa com a sua melhor amiga, sabe?

Leah jogou uma almofada do sofá em direção a Rose, que desviou com uma risada.

— Só abre logo isso, idiota.

— Leah! — Tia Sue ofegou, com um tom de repreensão.

Leah fez uma careta.

— Desculpe, mãe.

— Não é comigo que você tem que se desculpar.

— É, não é com ela que você tem que se desculpar, Leah. — Rose abriu um enorme sorriso travesso, aproveitando a deixa.

— Desculpe, Primrose. — Leah respondeu entredentes, com um tom que deixava claro que ela não estava nem um pouco arrependida.

Rose gargalhou.

— Você é tão doce. — Ela disse, sarcástica, mas finalmente começou a desembrulhar o presente.

Sam, ao lado de Leah, apenas deu uma risadinha baixa, apertando o ombro dela com o afeto e deixando Leah se recostar em seu peito.

Dentro da caixa, havia uma enorme tartaruga de pelúcia, que fez Rose erguer uma sobrancelha para Leah, com uma expressão incrédula.

— Sério? Outra tartaruga?

Leah abriu um sorriso maroto, como se estivesse muito feliz com a própria piada.

— Foi você que disse que era uma tartaruga emocional. Eu estou apenas seguindo o tema.

— Sim. Eu disse. Há dois anos. — Rose respondeu secamente.

Leah apenas encolheu os ombros com uma indiferença exagerada.

— Sério? Nem notei.

— Aham. Naquele mesmo ano você me deu um monte de material escolar com tema de tartaruga.

— Foi um bom presente, você tinha começado na escola há pouco tempo.

— E no ano seguinte foi um colar de tartaruga.

— Sim, todo mundo agora jóias…

— E agora isso? Sério?

Rose balançou a tartaruga de pelúcia no ar, pronta para arremessar na cara de Leah, por nunca esquecer dessa bobagem.

Leah olhou para ela por um momento, e então gargalhou alto.

— Nunca deixa de me divertir.

Rose revirou os olhos.

— Muito engraçado. Obrigada, Leah.

— Eu sei. — Leah respondeu, enquanto se aconchegava novamente em Sam, que apenas ignorou toda a conversa sem sentido.

Rose seguiu em frente, abrindo presente por presente. Havia um casaco de tricô feito por tia Sue — que ela vestiu imediatamente —, um diário encadernado em couro marrom da tia Sarah, livros clássicos de romance trouxa do tio Harry — que ela realmente estava precisando ler mais —, um presente dos Dursleys — nenhuma novidade, todos os anos eles enviavam a mesma coisa, um vale-presente de alguma loja ou alguns dólares na conta do tio — e, finalmente, uma pequena caixa preta do tio Charlie.

Ela olhou para ele, curiosa, e então abriu a caixa. Dentro, havia uma chave.

— Tio Charlie… — Ela começou, mas parou, sentindo as palavras sumirem.

— É a chave do seu carro. — Ele sorriu com orgulho. — Você merece, Rose. Eu sei que você vai cuidar bem dele.

Rose correu para os braços de Charlie, sentindo as lágrimas encherem seus olhos.

— Eu amei. Obrigada, tio Charlie.

— Você ainda nem o viu, garota. — Ele respondeu, com um brilho feliz nos olhos que fez a dor e a preocupação no peito de Rose se aliviar brevemente. — Vamos lá fora!

Rose mal esperou que as pessoas levantassem. Ela disparou para fora, com o coração acelerado e as pernas tremendo de empolgação. A neve cobria o chão, mas o frio não importava. Lá, estacionado na frente da casa, havia um carro vermelho reluzente.

Ela não fazia ideia do modelo, mas podia perceber claramente que era de segunda mão. Havia alguns arranhões na lataria, e os faróis tinham um aspecto um pouco desgastado, mas nada disso importava.

Porque agora, Rose tinha um carro.

Rose sentiu as lágrimas escaparem, rolando por suas bochechas enquanto ela olhava para o carro.

— Er, bem… Ele não é nenhum luxo, mas é confiável. — Ele gaguejou, claramente tímido. — E, mais importante, é seu.

Rose riu mais uma vez, tão feliz que seu corpo tremia. Ela teve muita dificuldade em aprender a dirigir — provavelmente, porque era algo completamente fora da sua zona de conforto ou porque o único carro que ela dirigiu era um Ford Anglia enfeitiçado —, e suspeitava que Charlie não tinha permitido que ela tivesse um carro antes por causa disso.

Mas agora, depois de tanto esforço e dedicação, ela até conseguia dirigir na neve. Era realmente alguma coisa.

— Posso testar agora? — Rose já estava pulando de empolgação, a sua mão coçava para abrir a porta e acelerar pelas estradas ao redor.

— Não sei, querida. — Charlie respondeu, cruzando os braços e olhando para o céu cinzento, onde a neve havia parado, mas ainda caiam flocos aqui e acolá. — Tem muita neve. Tem certeza que consegue?

— Eu já aprendi a dirigir na neve, tio Charlie.

Ele franziu a testa preocupado.

— Rose…

— Por favor, tio Charlie. — Ela insistiu, colocando as mãos juntas em um gesto dramático de súplica. — Tia Sarah pode ir comigo.

Charlie olhou para Sarah, que estava parada na porta, observando a cena com diversão.

— Você se importa, Sarah?

— Claro que não, Charlie. — Ela abriu um sorriso e caminhou direto para o lado do passageiro no carro. — Vou ter certeza de que ela voltará em segurança.

— Tudo bem. — Ele disse, levantando as mãos em sinal de rendição. — Mas, Rose, você dirige com cuidado, entendeu? Cuidado com a velocidade, não acelere demais para não escorregar na pista e me ligue se precisar de ajuda.

— Prometo, tio Charlie — Rose respondeu, com um sorriso que iluminou todo o seu rosto.

Rose pulou no banco do motorista, girou a chave na ignição e sentiu vontade de gritar de felicidade quando o motor roncou suavemente.

— Pronta? — Tia Sarah se acomodou no banco ao lado, as mãos indo direto para o cinto de segurança, enquanto Rose se preparava para acelerar.

— Mais do que nunca.

Rose ligou o rádio imediatamente, girando o botão até que uma música familiar preencheu o ar. I’ll Stand by You começou a tocar, a batida suave ecoando dentro do carro e fazendo elas sorrirem imediatamente.

— Essa é boa. — Tia Sarah murmurou, batendo levemente no colo ao ritmo da música.

Rose acelerou suavemente, manobrando o carro para fora de La Push, em direção à Rodovia 110. As árvores cobertas de neve passavam ao redor, seus galhos pesados balançando levemente com o vento. A estrada estava quase deserta, apenas o carro vermelho brilhante em destaque no meio do branco.

Elas cantaram juntas, rindo o tempo todo, enquanto Rose batia levemente no volante e tia Sarah balançava levemente os ombros. Com a estrada que parecia se estender infinitamente à frente, parecia que elas haviam saído de uma cena de um filme.

Mas foi no clímax da música, quando Rose virou o rosto para cantar com Tia Sarah, que tudo aconteceu.

Ela não tem certeza dos minutos seguintes. Foi em uma curva fechada, quando Rose já estava relaxada e confiante de que não havia ninguém na estrada, que ela percebeu tarde demais. Um caminhão surgiu do nada, virando bruscamente na direção do seu carro.

Talvez Tia Sarah tenha gritado. Ou pode ter sido a própria voz de Rose — trêmula e aterrorizada —, mas ela mal conseguiu dizer nada. O instinto tomou conta. Rose virou o volante com força para o lado errado da pista, tentando desviar, mas não foi o suficiente.

O impacto foi brutal. O caminhão atingiu o lado direito do carro com uma força que fez o mundo parar. Diretamente em tia Sarah.

O som de metal se esmagando, vidros estilhaçando e a música do rádio cortando abruptamente preencheu o ar. Tudo aconteceu tão rápido que Rose mal teve tempo de processar.

Talvez o carro tenha capotado, ou apenas sido arrastado longamente na pista. Talvez ela tenha batido a cabeça no volante, ou desmaiado por alguns segundos. Talvez ela tenha sentido dor, ou foi apenas a descarga de adrenalina correndo em seu corpo.

Rose não tinha certeza. Ela não se lembrava.

Mas ela lembrava de abrir os olhos e perceber que tudo parecia aterrorizantemente silencioso. Seus ouvidos ainda zumbiam, e o gosto de metal enchia sua boca.

Ela tentou se mover, mas algo a impedia — o cinto de segurança, o airbag, ou talvez era apenas o choque.

— Tia Sarah... — ela sussurrou, sua voz trêmula e quase inaudível.

Não houve resposta.

Rose virou a cabeça com dificuldade, sentindo uma dor aguda na lateral do pescoço. O lado direito do carro estava completamente destruído, amassado como papel. Tia Sarah estava ali, imóvel, a cabeça inclinada para o lado, os olhos fechados.

— Tia Sarah! — Rose gritou, desta vez mais alto, sua voz quebrando no meio.

Ela tentou se soltar, mas as suas mãos tremiam tanto que mal conseguia desapertar o cinto. Quando finalmente conseguiu, quase caiu para o lado, sentindo a cabeça girar. O cheiro de gasolina e borracha queimada enchia o ar, e o som distante de sirenes começou a ecoar ao longe.

— Por favor, por favor, por favor... — Rose repetia, enquanto tentava alcançar Tia Sarah.

Mas o corpo dela não respondia.

Rose sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto, misturando-se ao sangue que pingava de um corte em sua testa. Ela não sabia o que fazer, não sabia como ajudar. Tudo o que conseguia pensar era que aquilo não podia estar acontecendo. Não podia.

As sirenes se aproximavam, mas o tempo parecia ter parado. Rose segurou a mão de Tia Sarah, sentindo os dedos dela ainda quentes contra os seus.

— Não… — Ela sussurrou, sua voz quebrada e cheia de desespero. — Por favor…

Rose se sentia inútil.

Talvez se ela soubesse aqueles movimentos de ressuscitação que via nos filmes, se ela tivesse noção sobre o que fazer em seguida, se ela tivesse a capacidade para tomar alguma atitude… Mas ela não sabia. Não sabia de nada. Suas mãos tremiam, seu corpo parecia pesado demais para se mover, e sua mente estava em frangalhos, incapaz de pensar com clareza.

Rose tentou se lembrar de algo, qualquer coisa que pudesse ajudar. Os filmes, os livros, as séries, as histórias que ela via na televisão — tudo parecia distante e inútil agora. Ela não sabia como fazer compressões no peito, não sabia como verificar os sinais vitais, não sabia nem mesmo se deveria mover Tia Sarah ou deixá-la ali.

Se ela soubesse, poderia fazer algo, ajudar.

Se ela soubesse, poderia ter tomado uma ação, em vez de ficar parada como uma idiota.

Se ela soubesse, poderia se sentir menos culpada por sobreviver mais uma vez, enquanto outra pessoa morria por ela.

Se Rose soubesse de qualquer coisa, tia Sarah ainda estaria viva.

Por isso, quando os bombeiros chegaram, Rose mal conseguia falar. Ela assistiu, paralisada, enquanto eles tentavam reanimar tia Sarah, enquanto a colocavam na maca e a levavam para uma ambulância. Alguém tentou falar com ela, perguntar se ela estava bem, mas as palavras pareciam distante, como se ela estivesse debaixo d’água, se afogando, enquanto alguém gritava de cima, distante.

Rose só conseguia pensar que, mais uma vez, ela foi incapaz de ser corajosa.

Chapter 9: NOVE

Notes:

Alerta de gatilho: depressão e tentativa de suicídio.

Chapter Text

“Ela teve tanta sorte.”

Rose conseguia ouvir os sussurros das enfermeiras quando achavam que ela não estava ouvindo. Fofocando ao redor da sua cama, enquanto ela fingia dormir. Sendo indiscretas, falando abertamente e cuspindo comentários insensíveis, como se Rose fosse apenas mais um dos móveis no quarto, incapaz de sentir ou entender.

“Apenas alguns arranhões, hematomas e um braço quebrado.”

“O carro estava todo destruído, mas ela saiu praticamente ilesa.”

“Que milagre.”

“Um anjo da guarda forte, tenho certeza.”

“E a tia?”

“Morta. Coitada. Nem teve chance.”

“Era tão jovem.”

Foi assim que Rose descobriu que a tia Sarah realmente estava morta, enquanto Rose era a Garota que Sobreviveu mais uma vez.

Foi assim que Rose descobriu que ela saiu quase intacta de um acidente de carro que reduziu o veículo a uma carcaça retorcida de metal.

Foi assim que Rose descobriu que tinha muita sorte.

“Ela teve tanta sorte.”

Mas Rose não se sentia nada sortuda.

Como isso poderia ser sorte quando ela apenas perdeu? Como poderia ser um milagre se apenas abriu um buraco em seu peito? Como poderia ser uma benção quando o corpo de tia Sarah estava lá frio e imóvel em algum lugar desse mesmo hospital, enquanto Rose ainda respirava, vivia, sobrevivia ?

“Ela teve tanta sorte.”

Não era sorte.

Ficar para trás era uma maldição. Ser obrigada a ser aquela que precisa ouvir as condolências, os sussurros, os lamentos, as fofocas para saber como o acidente aconteceu, os suspiros de “graças a Deus ela sobreviveu” , como se a sua sobrevivência fosse um consolo, uma redenção para a tragédia.

Como se o fato de ela estar viva pudesse apagar o vazio que tia Sarah deixou.

Rose odiava cada palavra, cada olhar de pena, cada abraço indesejado, cada sinto muito que parecia apenas esmagar ainda mais a sua dor, enfiar um dedo nas suas feridas, arrancar a pele de seu corpo.

Ela não queria ser lembrada por sobreviver.

Ela não quis quando seus pais morreram, e não quer isso agora.

“Ela teve tanta sorte.”

Mas ela não tinha. Nunca teve.

Porque Rose sabia que, por trás daquelas palavras, sempre havia perguntas não ditas.

“Por que você sobreviveu e ela não?”

“Por que você merece isso?”

“O que ela fez de errado?”

“O que você poderia ter feito diferente?”

Não era sorte quando era ela quem carregava o peso de ser a única que poderia contar a história, a única que sabia o som do último grito de tia Sarah; a única que sabia como o mundo desmoronou em câmera lenta ao seu redor; a única que sabia como o silêncio tomou conta de tudo e foi mais doloroso do que a pancada na sua cabeça.

Não era sorte quando ela era a única que sabia que era culpa dela ter girado o volante pro lado errado. A única culpada por ter ficado nervosa, não ter tido reflexos mais rápidos, não ter feito diferente.

“Ela teve tanta sorte.”

Como poderia ser?

Como poderia ser sorte se Rose deixou um pedaço do seu coração na curva da Rodovia 110?

Como poderia ser sorte, quando Jake não tinha mais mãe e tio Billy não tinha mais esposa, enquanto ela era obrigada a carregar o fardo de viver?

Como poderia ser sorte se o mundo continuava a girar, indiferente, mas ainda havia tanta dor aqui?

“Ela teve tanta sorte.”

Mas Rose não se sentia sortuda.

 

*

 

Rose não quis falar mais nada pelas próximas horas.

Tio Charlie a abraçou com força, enquanto chorava abertamente. Ela quase riu cruelmente pensando em como disse para tia Sarah, naquele dia mais cedo, que ela poderia morrer em paz agora que presenciou Charlie Swan chorando. A ironia era tão amarga que quase a sufocou.

Tio Billy e Jake estavam desolados, mas abraçaram ela com alívio claro em seus rostos, desejaram melhoras, disseram que estavam felizes em vê-la. Rose tinha certeza de que era tudo mentira, palavras vazias, apenas para satisfazer alguma necessidade social de dizer as coisas certas. Como poderiam? Ela matou a família deles afinal.

Leah também apareceu no hospital com tia Sue, tio Harry e Seth. Haviam palavras de felicidade e alívio, mas Rose não se importou. Eles trouxeram a sua tartaruga de pelúcia e a deixaram na ponta da cama, ignorada. Agora era apenas uma piada sem graça.

Rose não queria falar com nenhum deles.

Eles entravam e saíam constantemente. Havia choro, gritos e conversas a todo tempo, mas Rose não queria saber, não queria ouvir. Ela queria dormir e fugir desse pesadelo. Dormir e nunca mais acordar. Dormir e trocar de lugar com a tia Sarah, que deveria estar aqui — não ela .

Ela olhava para as paredes brancas, para o teto, para a janela que mostrava um céu cinzento e pesado. Qualquer coisa era melhor do que encarar os rostos daqueles que ainda estavam vivos.

Alguém tentava fazê-la comer, e Rose geralmente o fazia. Mas a comida era sem gosto, como papelão molhado na sua boca.

“Ela está em choque. É normal.”

Ela ouviu alguém dizer isso em algum momento, e sentiu vontade de bufar.

Nada daquilo era normal.

Nada daquilo deveria estar acontecendo.

Ela fechou os olhos, tentando bloquear o mundo ao seu redor. Mas, mesmo no escuro, as imagens voltavam. O rosto de Tia Sarah, sereno e imóvel. O som do impacto, o grito que ela nunca mais esqueceria. O silêncio que veio depois.

Então esse era o castigo de Rose por sobreviver?

Ser capaz de reviver o mesmo momento repetidas vezes, até que seus olhos começassem a sangrar? Até que ela queira bater a cabeça na parede até abrir um buraco no seu crânio? Até ela desejar parar de respirar?

Rose virou de costas para a porta, torcendo para que o próximo que entrasse entendesse a dica e a deixasse sozinha.

Em silêncio.

 

*

 

Em algum momento da manhã do dia seguinte, Rose foi levada para casa.

Charlie estava lá, ao seu lado, ajudando-a a sair do hospital, a entrar na viatura, depois a entrar em casa e ir para o seu quarto. Ele segurava seu braço com cuidado, como se ela fosse feita de vidro, como se qualquer movimento brusco pudesse quebrá-la.

Rose não reagiu. Ela se deixou guiar, como um fantasma, como se seu corpo não pertencesse mais a ela.

Durante todo o trajeto, ele tagarelou de uma maneira que nunca fez antes. Enchendo o silêncio de histórias sobre a sua mãe, sobre Bella, sobre sua juventude e mais um monte de outras coisas que Rose ignorou solenemente.

Ela apenas olhou pela janela, fixando os olhos nas árvores que passavam, sem realmente ver nada.

Ela não queria ouvir sobre histórias felizes, sobre memórias que pareciam tão distantes agora. Então, apenas fechou os olhos, tentando bloquear o som da voz dele.

Ela só queria ficar em silêncio.

Não queria sentir.

Não queria existir.

Charlie acabou recuando, com um olhar que misturava preocupação e frustração. Ele não disse mais nada, mas Rose sabia que ele estava lá, ao seu lado, como sempre esteve.

 

*

 

O funeral aconteceu ao pôr-do-sol.

Seria lindo, se Rose não estivesse se sentindo completamente perdida.

Havia essa sensação de desconexão, como se Rose estivesse apenas pairando sobre o seu corpo, como se a sua pele estivesse descolada da carne, como se ela estivesse num estranho tipo de projeção astral, enquanto observava a si mesma, completamente de preto, caminhar até o cemitério da Reserva.

Ela não conseguia enxergar ou sentir direito. Como se as cores tivessem perdido o brilho e os sentimentos tivessem abandonado o seu peito.

O tempo inteiro, Rose permaneceu agarrada ao braço do tio Charlie, os olhos fixos nos próprios sapatos, enquanto era levada de um lado para o outro, como uma boneca obediente.

Em algum momento, o funeral aconteceu, mas Rose não registrou nenhuma palavra.

Ela se sentia estranhamente inadequada, como se ela não devesse estar ali, como se ela fosse uma intrusa naquele cemitério, como se, há qualquer momento, alguém fosse apontar um dedo para ela, gritar que ela não merecia estar ali. Que ela era culpada.

Houve discursos. Houve choro. Houve cantos. Houve palmas.

Rose não levantou a cabeça nenhuma vez.

E quando ela sentiu que o funeral havia chegado ao fim, Rose virou as costas e caminhou em direção à floresta.

Talvez alguém tenha chamado seu nome, tentando caminhar atrás dela e outro alguém tenha impedido.

“Deixe ela ir”

“Ela precisa de tempo, Charlie”

“Ela ainda está em choque”

“Ela precisa ficar sozinha”

Rose não prestou atenção em nada disso.

Ela caminhou.

E caminhou.

E caminhou.

Até que seus pés a levaram à beira de um penhasco.

O vento soprava forte, agitando seu vestido em suas panturrilhas e os fios soltos de seu cabelo. Ela olhou para o abismo, observando o oceano se estender, infinito e indiferente, as ondas quebrando contra as rochas.

Era ali que tudo poderia acabar.

Ela poderia recomeçar.

Rose ficou parada, os pés na beirada, o coração batendo devagar, como se já estivesse se despedindo.

Ela pensou em como seria fácil.

Um passo à frente, e o vazio a engoliria.

Um passo à frente, e ela poderia cumprir a sua pena.

E então, Rose fechou os olhos e respirou fundo. O vento salgado cortou seu rosto, e por um instante, o mundo pareceu parar.

O penhasco, o oceano, o céu — tudo se fundia em uma única palavra, cruel e dolorosa.

Adeus.

— O que você pensa que está fazendo?

Um braço forte a puxou pela cintura, arrancando-a da beirada do penhasco. Rose foi lançada contra um peito duro, onde um coração acelerado batia descompassado, quase em fúria, contra sua nuca. O calor do corpo que a segurava era um choque após o frio cortante do vento.

Ela precisou olhar para saber quem era, mas não o reconheceu. Era um garoto, e havia algo familiar em seus olhos escuros raivosos, mas ela não conseguia lembrar onde poderia tê-lo visto.

— Você enlouqueceu?

Ela não respondeu. O que dizer? A resposta provavelmente seria sim.

Ela estava mesmo louca, cansada, culpada.

— Primrose. — Ele disse, mais suave agora, mas ainda firme, como se tentasse mantê-la ancorada à realidade. No fundo de sua mente, Rose se questionou como ele sabia seu nome, mas ela não ousou falar. — Olhe pra mim.

Ela não queria. Não queria ver os olhos dele cheios de reprovação. Ele não a conhecia, seria ainda mais fácil para ele odiá-la por fugir, por ser tão inútil. Ela não queria ver como esse estranho a veria como nada além de uma covarde.

Mas ele não deu escolha. Suas mãos grandes e ásperas seguraram seu rosto, forçando-a a encará-lo.

— O que você está fazendo aqui?

— O que você está fazendo aqui? — Rose retrucou, fazendo-o apenas erguer uma sobrancelha, surpreso pela firmeza na voz dela, apesar de estar tremendo como uma folha ao vento.

— Eu gosto de ficar aqui.

— Bem… er, eu também. — Ela murmurou, tentando desviar o olhar, mas as mãos dele não permitiram.

— Sério? Você tem o hábito de ficar na beira dos penhascos?

— Não — Ela admitiu, a voz quase um sussurro. — Mas hoje… hoje pareceu adequado.

Ele soltou um suspiro pesado.

— Por quê?

— Por que você quer saber afinal? — Ela revidou, a voz mais áspera do que pretendia. — Você não me conhece. Nós nem somos amigos. Nem mesmo conhecidos.

O garoto não recuou, como ela esperava que ele fizesse. Ele apenas ficou em silêncio por alguns momentos observando-a com aqueles olhos escuros.

— Nós precisamos ser amigos para que eu queira salvar você de se matar?

— Eu não estava fazendo isso.

Ele ergueu uma sobrancelha, os lábios se curvando em um sorriso sarcástico.

— E o quê? Você só queria pular do penhasco para tomar um banho de mar?

Rose sentiu um calor subir pelo rosto, uma mistura de raiva e constrangimento. Ela saiu de perto dele, cruzando os braços, e desviando o olhar para o oceano lá embaixo.

— Talvez eu só quisesse pegar um ar.

— Não dava pra fazer isso longe da borda?

— Eu gosto de estar ao ar livre. Nem notei que estava ali.

— Aham, claro.

— Ou talvez eu só quisesse parar de pensar por um tempo.

— E funcionou?

Ela hesitou, os olhos ainda fixos nos dele.

— Não — Ela admitiu finalmente, a voz quase inaudível. — Ainda estou pensando.

— Então, talvez, você precise de outra estratégia — Ele sugeriu. — Algo que não envolva penhascos.

Rose olhou para ele, sentindo uma pontada de desconfiança.

— Como o quê?

Ele encolheu os ombros.

— Sei lá. Aprender a esculpir em madeira?

Roso olhou para ele, os lábios tremendo como se estivesse tentando não rir.

— Esculpir... em madeira? — Ela repetiu, incrédula.

— Foi a primeira coisa que eu pensei, ok? — Ele levantou as mãos em sinal de rendição, mas o sorriso em seus lábios era travesso. — Se você não gostou, eu tenho outras ideias.

— Tipo?

— Tipo… aprender a tocar um instrumento. — Ele sugeriu, assentindo solenemente. — Ou aprender uma receita nova. Tipo aqueles bolos de frutas, sabe? Aprender a dobrar guardanapos em formatos de cisnes também parece bem legal.

Rose soltou uma risadinha, tentando disfarçar.

— Isso é ridículo.

— Você não é nada aventureira.

— E você é um pouco louco.

O garoto riu alto, um som surpreendentemente caloroso.

— Já me chamaram de coisa pior. Mas ei, pelo menos eu não sou o tipo de estranho que vem tomar um ar na beira de um penhasco.

Ela riu, mas se calou rapidamente, lembrando do motivo de estar ali em primeiro lugar.

Foi então que ele respirou fundo, como se estivesse se preparando para algo.

— Olha, Primrose… — Ele começou, a voz mais séria agora.

— Rose. — Ela interrompeu.

— Rose. — Ele assentiu, corrigindo-se. — Eu sei que a gente não se conhece direito. E eu sei que, na única vez que a gente se viu antes, eu fui um babaca com você.

Rose franziu a testa, tentando se lembrar.

Sim, foi há dois anos, quando Rose estava na praia com Leah. Ela esbarrou nele, ele a chamou de imbecil e ela o chamou de babaca.

Paul Lahote.

— Eu lembro — Ela disse, a voz neutra.

Paul fez uma careta, como se estivesse revivendo aquele momento com desconforto.

— Eu estava passando por um momento difícil naquela época — Ele admitiu, os olhos fixos no chão por um instante antes de encontrarem os dela novamente. — Eu sei que isso não é desculpa, só… eu sempre quis me aproximar e pedir desculpas. Mas eu nunca soube como, e nem tive coragem.

Rose ficou em silêncio, surpresa com a honestidade dele.

— Eu até pedi para a sua amiga, Leah, intermediar, enviar uma mensagem minha, sei lá, qualquer coisa — Ele continuou, os lábios se curvando em um meio sorriso amargo. — Mas ela brigou comigo. Disse coisas que eu não gostaria de repetir na sua frente.

Rose quase riu, imaginando uma Leah furiosa defendendo-a com aquela sua língua afiada.

— Ela é uma boa amiga. Muito protetora.

— É, talvez um pouco demais. — Paul concordou, o tom leve, mas ainda sério. — Mas eu devia ter tentado de qualquer jeito. Então… desculpa, sabe? Por ter sido um idiota.

— E ter me chamado de imbecil.

— É… e ter te chamado de imbecil. — Ele admitiu, fazendo uma careta.

— Obrigada. — Rose disse, a voz mais suave agora. — Desculpa por ter te chamado de babaca.

Paul olhou para ela, surpreso. Mas abriu um sorriso irônico.

— Eu não me lembrava disso.

— É, pois é… — Ela respondeu, com um leve encolher de ombros. — Foi por isso que você me salvou, então? Porque você queria se desculpar?

— Não. — Ele respondeu imediatamente, a voz firme. — Eu te salvei, porque… porque eu já estive aqui também, Rose. Nesse mesmo penhasco. Eu sei como é sentir que não há saída.

— E o que te fez mudar de ideia?

Paul hesitou, como se estivesse revivendo algo doloroso.

— Meu pai me ligou na hora. Ele bebia quase todos os dias depois da morte da mãe, mas naquele dia ele estava sóbrio. Ele me ligou para dizer que comprou burrito pro jantar. Era de um lugar em Port Angeles que a minha mãe sempre quis ir, mas nunca tivemos tempo.

Rose ficou em silêncio, apenas ouvindo enquanto Paul falava calmamente.

— Eu pensei que se eu me jogasse, eu perderia tudo isso, sabe? — Ele continuou, os olhos fixos no horizonte. — Todas as coisas que ela queria viver, mas não teve chance quando o câncer a levou, e também todas as coisas que ela queria que eu vivesse. E eu tinha essa chance. Eu não poderia jogar fora.

Eles ficaram em silêncio por alguns segundos, com Rose observando-o calmamente, enquanto ele apenas encarava o mar.

— Eu não sei se nada disso faz sentido. — Ele admitiu, com uma risada baixa. — Mas naquele momento, eu só pensei… eu não queria perder a chance de viver por ela, sabe. É ridículo, né?

— Não — Rose respondeu. — Não parece ridículo.

Paul olhou para ela, os olhos escuros procurando os dela, tentando decifrar se ela estava sendo realmente sincera.

— Ela deixou uma carta pra mim. Eu descobri depois. Ela deixou uma lista de coisas que eu deveria fazer antes de morrer.

Rose assentiu silenciosamente, pedindo que ele continuasse.

— Era bobagem, coisas simples. — Ele continuou. — Tipo… aprender a cozinhar algo que não fosse macarrão instantâneo. Conhecer o maior vidro de ketchup do mundo. Me apaixonar.

Rose olhou para ele, sentindo algo dentro dela se desfazer.

— E você fez alguma dessas coisas?

Paul fez uma pausa, como se estivesse pensando se contaria a verdade ou não.

— Só o burrito. Era a primeira coisa da lista.

Rose sentiu um pequeno sorriso se formar nos lábios.

— Eu espero que você consiga terminar.

— Eu também. — Ele sorriu para ela. Então, ficaram novamente em silêncio, apenas sentindo o vento em seus rostos. — Bem, você quer dar uma caminhada?

Paul estendeu a mão, e Rose olhou para seu braço estendido e depois para o oceano lá embaixo. Ela respirou fundo e, finalmente, deu um passo à frente, entrelaçando seus dedos com os dele.

— Só uma volta?

— Só uma volta.

E então eles caminharam juntos, cada vez para mais longe da borda.

Paul ouviu enquanto Rose falava sobre o acidente, sobre a tia Sarah e a culpa que corroía as bordas do seu coração. Rose ouviu enquanto Paul falava sobre a sua mãe, como o câncer surgiu de repente e ele não foi capaz de fazer nada.

Não era o suficiente para fazê-la se sentir melhor, mas era um passo na direção certa.

De repente, Rose se sentiu um pouco sortuda.

Chapter 10: DEZ

Chapter Text

Forks, WA

1998

As coisas não melhoraram imediatamente, é claro, afinal isso não é ficção. É a vida real. Ninguém perde uma pessoa, tira um cochilo e, puff, meses depois está curada.

A dor não funciona assim.

Ela não desaparece com um estalar de dedos ou com um discurso motivacional. Ela fica. Entra nas frestas, gruda nos cantos, se mistura com o ar que você respira.

Rose ainda acordava algumas noites com o coração acelerado, o peito apertado, como se ela estivesse novamente naquele carro, como se o mundo estivesse prestes a virar de ponta cabeça novamente, como se o corpo de tia Sarah ainda estivesse ao seu lado.

Ainda havia dias em que ela mal conseguia sair da cama, dias em que o silêncio parecia gritar mais alto do que qualquer coisa.

Foi por isso que Rose decidiu não voltar mais para La Push.

Tio Charlie insistia quase todos os dias, tentando convencê-la a visitar a Reserva, argumentando que todos sentiram sua falta, mas Rose sempre negava.

Ela queria ficar longe. Não por covardia, mas por culpa.

Cada vez que pensava em La Push, o peso no seu peito parecia aumentar. Ela não sabia como olhar para o tio Billy e Jake e não chorar imediatamente. Não sabia como encarar aqueles rostos familiares sem sentir que deveria se ajoelhar e implorar por perdão.

Ela estava no mesmo carro que a tia Sarah. Ela era responsável.

Ela não queria ver os olhares de reprovação deles. Não queria ver a dor que ela ajudou a causar. Era mais fácil ficar longe, onde a culpa podia ser carregada em silêncio, sem o peso adicional de enfrentar aqueles que ela sentia ter traído.

Ela ainda conseguia sentir o cheiro da borracha queimada, ouvir o som do vidro quebrando, o grito que saiu da garganta da tia Sarah. Ela ainda conseguia sentir o volante escorregando entre seus dedos, o carro girando descontroladamente, o mundo virando de ponta-cabeça.

Ela estava lá.

E, por mais que Tio Charlie tentasse convencê-la do contrário, ela sabia que poderia ter feito algo diferente. Poderia ter dirigido mais devagar. Poderia ter parado antes. Poderia ter evitado aquela curva. Poderia ter girado o volante para o outro lado.

Era culpa dela.

E essa culpa era uma companheira constante, um peso que ela carregava no peito, dia após dia.

Rose não explicava nada disso para o tio Charlie. Como poderia? Como poderia explicar que a culpa não era algo que ela escolheu sentir, mas algo que estava entranhado nela, como uma segunda pele? Algo que respirava com ela, que batia no mesmo ritmo do seu coração, que sussurrava em seus ouvidos todas as noites, lembrando-a de cada detalhe, cada "e se" , cada "eu deveria ter" .

O penhasco foi apenas uma escolha desesperada. Um momento de fraqueza, um instante em que o peso da culpa parecia maior do que ela podia suportar.

Mas Rose tinha certeza de que viver com a culpa era uma punição muito maior.

Porque a morte seria um alívio rápido, um fim.

E ela não merecia um fim.

Ela merecia carregar o peso, dia após dia, noite após noite.

Rose merecia sofrer.

 

*

 

Ela voltou para a escola depois do feriado. Afinal, fisicamente, Rose estava bem.

Ninguém olhava para ela e via as cicatrizes. Ninguém sabia que, por dentro, ela ainda estava em pedaços. As pessoas sorriam para ela nos corredores, cumprimentavam-na como se nada tivesse acontecido, como se a vida tivesse seguido em frente normalmente.

E, de certa forma, para eles, realmente tinha seguido.

O mundo continuava a se mover normalmente, como se nada tivesse mudado.

Mas para Rose, cada passo era uma batalha.

Cada sorriso forçado, cada conversa superficial, cada pergunta bem-intencionada sobre como ela estava — tudo parecia exigir uma energia que ela não tinha.

Ela se sentava na sala de aula, olhava para o quadro, para os livros, para os colegas, e tentava se concentrar. Mas a mente dela sempre voltava para o mesmo lugar.

Para o carro. Para a neve brilhando no capô do carro. Para o grito da tia Sarah.

— Srta. Potter? — A Srta. Borson chamou seu nome, e ela piscou, voltando à realidade.

— Sim? — Ela respondeu, a voz mais baixa do que pretendia.

— Você pode responder à pergunta? — A professora perguntou, com os olhos cheios de uma preocupação que Rose não queria ver.

— Eu… não ouvi — Ela admitiu, os olhos fixos na mesa.

A sala ficou em silêncio por um momento, e Rose sentiu o peso dos olhares de pena sobre ela. Ela sabia o que eles estavam pensando.

“Você soube o que aconteceu com ela?”

“Ela não é a garota que sobreviveu ao acidente na Rodovia 110?”

“Ouvi falar que a tia dela morreu na hora”

“Você acha que ela ficou louca?”

— Tudo bem — A professora disse finalmente, a voz suave. — Alguém mais quer tentar?

Rose olhou para o caderno em frente a ela, as palavras borradas que ela se recusava a tentar focar. Ela não sabia como explicar que, mesmo fisicamente bem, ela ainda estava longe de estar inteira.

 

*

 

Foi assim a semana toda.

Rose continuava a ir para a escola de viatura, já que o carro dela não poderia ser consertado — e ela realmente não queria dirigir novamente. O simples pensamento de sentar atrás de um volante a fazia sentir um frio na espinha. Então, ela aceitava as caronas do tio Charlie, mesmo que isso significasse chegar à escola sob os olhares curiosos dos colegas.

Na escola, Emma, Zoe e Abigail ainda andavam com ela, tentando manter uma aparência de normalidade.

Elas sorriam, faziam piadas, tentavam puxar conversa, mas Rose se mantinha em silêncio, respondendo com monossílabos ou acenos de cabeça.

Ela evitava as conversas, os olhares de pena, as perguntas bem-intencionadas que só a faziam sentir mais culpada.

— Rose, você quer vir com a gente para Port Angeles depois da aula? — Emma perguntou uma vez, tentando puxá-la para um plano qualquer.

— Sim — Zoe engatou, animada. — Nós vamos ver aquele novo filme que saiu no cinema. Titanic , eu acho? Tá todo mundo falando dele.

— Você ia adorar — Abigail concordou — Tem muito drama e romance.

— Não, obrigada — Rose respondeu, com os olhos fixos no chão, como se pudesse evitar a decepção nos rostos delas.

— Tudo bem — Emma disse, a voz cheia de uma gentileza que Rose não conseguia suportar. — Se mudar de ideia, é só avisar.

Rose acenou com a cabeça, mas sabia que não mudaria de ideia. Ela não queria sair, não queria socializar, não queria fingir que estava tudo bem quando não estava.

As três amigas trocaram olhares sobre a sua cabeça, mas não insistiram. Em vez disso, continuaram a conversa entre si, falando sobre o filme, sobre os planos para o fim de semana, sobre coisas que pareciam tão distantes da realidade de Rose que ela mal conseguia acompanhar.

Então, Rose fez de conta que não estava ali.

 

*

 

Na sexta-feira, Paul Lahote estava no estacionamento da escola.

Rose o viu assim que saiu do prédio. Ele era bem difícil de ignorar — alto, bronzeado, musculoso, com aquela postura de cara rebelde que fazia as pessoas olharem duas vezes.

Ela hesitou por um momento na saída, sentindo o coração acelerar.

— Oi — Ele disse, quando ela se aproximou, a voz descontraída e casual, como se fosse a coisa mais normal do mundo estar ali.

— Como você sabia que eu iria sair mais cedo hoje?

— …Eu não sabia — Ele admitiu, os lábios se curvando em um meio sorriso, como se estivesse se divertindo com a situação.

— Você está aqui há muito tempo, então? — Ela arregalou os olhos, incrédula.

— Faz algum tempo sim. Desculpe não ter avisado.

— Tá tudo bem.

— Bom… que bom que você acha isso. — Ele respondeu, o sorriso dele se ampliando. — Porque, na verdade, eu não tenho seu número de telefone.

Rose olhou para ele, sentindo uma risada escapando por entre seus lábios.

Mas, de repente, ela parou, quando foi atingida por uma lembrança.

— Eu não tenho mais telefone, na verdade. — Ela encarou os sapatos dele, já sentindo as suas lágrimas encherem seus olhos e tentando forçá-las a voltar. — Quebrou no acidente.

Eles ficaram em silêncio por alguns segundos. Paul não sabia exatamente o que dizer, enquanto Rose apenas se sentia uma idiota.

— Bem — Paul pigarreou, quebrando o silêncio. — De qualquer forma, eu vim aqui, porque pensei que você poderia querer uma carona.

Ele arrastou os pés timidamente, sentindo-se um pouco constrangido e tolo, como se toda a confiança que ele geralmente carregava tivesse evaporado no caminho de La Push até Forks.

— Eu tenho carona — Ela respondeu, os olhos procurando a viatura do tio Charlie, que ainda não estava à vista.

— Eu sei — Paul respondeu, sentindo o coração acelerar e todo o seu discurso ensaiado fugir pela janela. — Eu sei que não combinamos nada naquele dia… no penhasco… mas, er, bem… eu queria ver como você estava.

Rose olhou para ele, se sentindo bastante surpresa.

Ele foi bastante gentil naquele dia e realmente a ajudou bastante, mas ela não esperava que Paul fosse falar com ela novamente ou esperar por ela no estacionamento da escola.

— Eu estou… — Ela começou, mas as palavras falharam. Dizer que estava bem era uma grande mentira, mas ela também não queria dizer pra ele que, apesar do bom momento no penhasco, ela não tem certeza se mudou alguma coisa.

— Você não precisa responder — Paul disse rapidamente, percebendo a luta interna dela. — Eu só… eu só queria ter certeza de que você está bem. Se está ficando longe das bordas.

— Eu estou ficando longe das bordas. — Ela sussurrou, sentindo-se bastante grata. — Obrigada por ter vindo, Paul.

Ele acenou com a cabeça, um sorriso pequeno e gentil nos lábios, mas os olhos dele traíam um pouco de nervosismo. Ele esfregou a nuca, tentando disfarçar a timidez repentina.

— Você precisa ir pra casa agora?

— Na verdade, não. Minha última aula foi cancelada, então eu tenho algumas horas livres antes de precisar ir pra casa.

— Certo. — Paul acenou levemente e deu uma olhada rápida para o lado, como se estivesse se certificando de que falaria corretamente cada palavra. — Você topa ir tomar um café?

Rose hesitou por um instante, os dedos brincando com a alça da mochila.

Não é que ela não quisesse ir, afinal ela vinha recusando sair com as suas amigas ou ir para La Push há dias. Por outro lado, foi tão fácil estar com Paul naquele dia.

Eles não eram próximos, longe disso, mas ele parecia genuíno ao se desculpar e, bem, Rose gostava dele o suficiente para fazer um novo amigo, mesmo que ela ainda sentisse que não merecia nada disso.

— Tudo bem.

Paul sorriu brilhantemente, enquanto virava para abrir a porta do passageiro para ela. Ele parecia um pouco desajeitado, como se não soubesse exatamente o que fazer com as mãos depois.

— Vamos lá — Ele apontou para o banco do passageiro. — Eu conheço um lugar bom.

Rose entrou no carro e foi pega de surpresa pelo cheiro fresco e salgado que preenchia todo o ambiente. Ela, no entanto, decidiu não perguntar o porquê parecia que toda a praia havia sido encapsulada dentro do automóvel.

Paul entrou no lado do motorista e ligou o carro, os olhos fixos na estrada à frente, como se estivesse tentando não olhar para ela por muito tempo.

— Então… — Ele começou, a voz um pouco mais rouca do que o normal, tentando bravamente disfarçar o nervosismo. — Você gosta de café?

Rose riu baixinho, o bufo suave escapando sem querer.

— Um pouco. Eu sou mais fã de chá.

— Chá? Muito britânico.

— É, bem, eu sou fiel às minhas raízes.

Paul riu, o som rouco e caloroso, e Rose sentiu algo dentro dela se aquecer.

— Como era lá? Em Londres, eu quero dizer.

Rose prendeu a respiração. Ela não andava muito por Londres, principalmente depois que ela foi para Hogwarts. E nos verões ela ficava presa em casa, em Surrey.

No entanto, como explicar sobre o mundo que ela deixou para trás? Que, em vez de ir a uma escola comum, ela foi para uma escola de magia aos 11 anos?

Como explicar que ela não sabia quase nada sobre Londres, porque ela passava mais tempo em Hogwarts e Hogsmeade, do que em qualquer lugar da Inglaterra?

— Tá tudo bem, se você não quiser falar… — Paul começou, percebendo o silêncio dela.

— Ah, não, não é isso. É que eu não andava muito em Londres. Eu cresci em Surrey e depois estudei em um internato na Escócia.

— Sério? Que incrível. — Os olhos dele brilharam com curiosidade. — Como era o seu internato?

— Era incrível, quase mágico. — Ela riu sozinha da sua piada particular. — A escola ficava em um castelo.

Paul olhou para ela, os olhos se estreitando, como se estivesse tentando decifrar se ela estava brincando ou não.

— Um castelo? Tipo, um castelo de verdade? Com torres e tudo mais?

Rose riu da cara incrédula de Paul, enquanto acenava com a cabeça.

— Sim. Com torres, salões enormes, corredores secretos… era como algo saído do Senhor dos Anéis .

— Puta merda. — Ele abriu a boca, encarando-a ainda incrédulo, por alguns segundos antes de voltar os olhos para a estrada. — Parece incrível. O mais longe que eu fui fora dos Estados Unidos, foi o Canadá. Minha mãe queria conhecer o Parque Capilano, então nós dirigimos de Tacoma até Vancouver e comemos um sanduíche incrível em frente ao rio Fraser no caminho.

— Fazia parte da lista dela?

Paul a encarou surpreso por ela ter lembrado, e estranhamente emocionado.

— Fazia sim. Ela queria ir ao Canadá pelo menos uma vez na vida, então fizemos essa viagem juntos quando eu tinha 14 anos. Foi um ano antes de, você sabe…

Rose assentiu levemente, os olhos cheios de compreensão que fez Paul se sentir aquecido por dentro.

— Sinto muito.

— Tá tudo bem agora. Eu fico feliz de termos feito essa lembrança juntos antes dela morrer.

— E então você se mudou para La Push depois?

— Sim, com 15 anos. Meu pai nos levou de volta para La Push e começou a beber, eu comecei a ter problemas de raiva. E, bem, você viu isso em primeira mão naquele dia na praia.

— Você já pediu desculpas, tá tudo bem.

— Eu sei, mas às vezes ainda volta tudo e, você sabe, ainda é difícil controlar isso.

— Mas você está tentando, é isso que importa.

Paul ficou em silêncio por um momento, como se estivesse dirigindo as palavras dela.

— Você também está tentando?

— O que você quer dizer?

— Depois do acidente e do penhasco. Você está tentando? Ou apenas empurrando a vida com a barriga, sabe?

Rose fechou o rosto imediatamente, sentindo-se bastante exposta.

— Não sei o que você quer dizer.

— Olha, eu sei que não sou ninguém pra você, a gente nem é tão próximo assim… mas eu acho você legal, sabe? Uma boa companhia.

Paul engoliu em seco, sentindo que as palavras saíam meio desajeitadas, como se não conseguissem expressar direito o que ele queria dizer.

— É que… eu tô tentando te ajudar, não ser seu inimigo. Entende?

— Eu sei. Eu só… er, eu aprecio isso.

Paul assentiu em silêncio, esperando que ela continuasse.

— Você ainda não me respondeu.

— Eu não acho que eu esteja… tentando.

— Eu entendo. O que você está fazendo então?

— Me afogando em culpa na maior parte do tempo.

— Culpa? Porquê? Você não acha que o acidente foi culpa sua, acha?

— Eu poderia ter feito algo diferente. Não ter saído na neve, ter virado o volante para o outro lado, reagido mais rápido… se eu tivesse feito isso, talvez ela ainda estaria aqui.

Paul esticou o braço em direção à perna de Rose, e apertou o seu joelho em solidariedade.

— Rose… não foi culpa sua. O que aconteceu foi um acidente, realmente. Uma fatalidade. Você foi tão vítima quanto ela.

— Mas eu me pergunto: por que eu? Sabe? Por que eu sobrevivi e ela não?

— Eu não sei por que você sobreviveu, Rose. Ninguém sabe essas coisas. Mas… talvez tenha um motivo. Talvez você ainda esteja aqui porque tem algo pra fazer, algo que só você pode fazer.

Ela olhou para ele, os olhos marejados, mas sem deixar as lágrimas caírem.

— Tipo o quê? Salvar o mundo?

Ela tentou rir, mas o som saiu mais como um suspiro cansado.

— Não precisa ser algo grande assim. — Ele encolheu os ombros, tentando aliviar o clima. — Pode ser só… viver. Lembra do que eu falei antes? Sobre quando eu também estava no penhasco e percebi que eu ainda tinha muito pelo que viver? Bem, é o mesmo pra você. Você ainda tem muito pelo que viver.

— Eu não sei se consigo ver isso ainda…

— Eu sei. — Ele respondeu, suavemente. — Mas você não precisa ver tudo agora. Só precisa dar um passo de cada vez. É horrível passar por essa dor, mas vai passar.

— Você acha?

— Eu tenho certeza. Eu sei muito bem que às vezes é mais fácil colocar a culpa em outro lugar, como em si mesma, do que admitir que algumas coisas simplesmente estão fora do nosso controle.

Rose deu um suspiro trêmulo, sentindo seus olhos arderem novamente.

— Eu sinto que deveria pagar por essas sessões de terapia improvisada.

Paul sorriu, aliviada por ver um pouco do humor dela voltando.

— Bem, você pode pagar o nosso café.

Ela olhou para ele, e pela primeira vez em dias, um sorriso genuíno apareceu no rosto dela. Paul fez uma curva e passou em frente a uma loja de eletrônicos. Rose podia ver diversos aparelhos na vitrine e uma placa de “aberto” brilhando na porta.

— Que tal a gente parar nessa loja antes? — Ela sugeriu, apontando para loja pintada de azul do outro lado da rua. — Eu gostaria de comprar um celular.

Paul concordou imediatamente, feliz que ela decidisse tomar uma pequena atitude para começar a seguir em frente.

— Ótima ideia, Rose.

Antes de saírem do carro, ela segurou o pulso dele, impedindo que ele saísse.

— Obrigada, Paul.

Ele olhou para ela, e por um momento, pareceu que todas as palavras do mundo não seriam suficientes. Então, ele simplesmente sorriu.

— Não é problema nenhum, Rose.

Eles saíram juntos, ombro a ombro, rindo o tempo todo, enquanto Rose pedia detalhes da viagem de Paul para Vancouver e o que diabos era um Walkman que, aparentemente, ele ganhou de sua mãe durante aquela viagem.

Rose comprou um aparelho simples e Paul salvou seu número imediatamente, prometendo enviar mensagens e ligar sempre.

Ela aproveitou para ligar para tio Charlie e avisar que iria tomar um café com o amigo e, mesmo pelo telefone, Rose conseguia sentir o alívio na voz de Charlie quando ele concordou que ela deveria se divertir um pouco.

No final do dia, Paul e Rose tinham dividido duas tortas de sabores diferentes e compartilharam seus cafés e chás como se fossem melhores amigos há eras.

Ela falou um pouco mais sobre o seu internato, tomando cuidado para excluir as partes sobre magia, enquanto Paul falou sobre seus dias em La Push e como ele começou a surfar para lidar com os problemas de raiva. Rose ficou feliz em descobrir o motivo do carro dele cheirar tanto à água salgada e insistiu que ele a ensinasse a nadar.

Quando ele a deixou em casa, Rose ainda sentia uma dor surda em seu peito, mas pela primeira vez em meses, ela ousou sentir esperança.

Chapter 11: ONZE

Chapter Text

Sábado

“Amanhã vai fazer sol. Topa ir comigo para La Push? Tô pensando em surfar.”

“Tenho muita lição de casa acumulada. O último ano tá difícil. Que tal no próximo fim de semana?”

“Combinado. Posso te ligar mais tarde, então?”

“Claro, 5pm é um bom horário?”

“Sim, até mais.”

 

*

 

Domingo

“Bom dia, Prim. Vai fazer o que hoje?”

“Prim?”

“Eu queria testar um apelido diferente. Gostou?”

“Tudo bem, eu aceito. Hoje estou com vontade de donuts, na verdade.”

“Sorte sua que eu conheço um ótimo lugar em Port Angeles. Topa fazer uma pequena viagem?”

“Você sabe como conquistar o coração de uma mulher, com certeza.”

“Te pego em 1 hora?”

“Combinado.”

 

*

 

Segunda-feira

“Animada para a escola?”

“Não vejo a hora de acabar, na verdade.”

“Vai falar com as suas amigas hoje?”

“Sim. Obrigada pelos conselhos. Estou realmente distante delas.”

“Elas vão entender o porquê. Não se preocupe.”

“Obrigada, Paul.”

“Qualquer coisa por você.”

 

*

 

“Conversamos na hora do almoço. Obrigada novamente.”

“Que bom, Prim. Fico feliz em ajudar. Como foi?”

“Foi ótimo. A gente conversou sobre tudo, e elas entenderam que eu só precisava de um tempo.”

“Eu sabia que ia dar tudo certo.”

“Obrigada pelo apoio, Paul.”

“Sempre. E, hey… já pensou no que a gente vai fazer no fim de semana?”

“Além do surf, você quer dizer?

“Sim. Que tal um piquenique na praia? Eu levo a comida, você leva o sorriso.”

“Bajulador Haha Tem certeza? Eu também faço uma torta de maçã de morrer.”

“Leve o sorriso e a torta, então.”

“Perfeito. Combinado.”

 

*

 

Terça-feira

“Parece que você dormiu durante a ligação. O seu ronco foi a coisa mais adorável que eu já ouvi. Tenha bons sonhos, Prim.”

 

*

 

Quarta-feira

“Teve um bom dia?”

“Tirando a aula de inglês, tudo ótimo.”

“Qual a sua matéria favorita?”

“Com certeza biologia e matemática.”

“Vou precisar de aulas particulares, então. Sou péssimo nessa.”

“Haha Estou livre às 16h.”

“Combinado, professora”

 

*

 

Quinta-feira

“Não acredito que você odeia Dickens. Você não é britânica?”

“Eu não moro na Inglaterra há anos.”

“Então, você também abandonou o chá?”

“Que blasfêmia. Nunca abandone o chá. O chá é sagrado.”

“É só uma sopa de folhas. Prefiro café.”

“Você não é mais meu amigo.”

“Eu não quero ser seu amigo mesmo…”

“E o que você quer ser?”

“Te conto no sábado”

 

*

 

Sexta-feira

“Não vejo a hora de te ver. Te pego às 11h amanhã?”

“Claro. Estarei te esperando.”

 

*

 

Pela primeira vez em muitos dias, Rose estava saindo da escola com um sorriso de orelha a orelha que iluminava o seu rosto.

De repente, Zoe sugou uma respiração rápida, engasgando dramaticamente.

— AH! O que é esse sorrisinho feliz aí, hein? — Ela berrou no ouvido de Rose, e sua voz ecoou pelo estacionamento, fazendo com que pelo menos três fileiras de estudantes virassem para encará-las.

— Não é nada! — Rose protestou, tentando disfarçar enquanto Zoe pulava feito uma criança hiperativa ao seu lado, fazendo suas tranças balançarem.

Emma ergueu as sobrancelhas, enquanto tentava olhar o celular por cima do ombro de Rose.

— É… pra quem você anda enviando tantas mensagens a semana toda hein, Primrose ?

Rose sentiu o rosto pegar fogo, tentando, em vão, esconder o celular que ainda segurava com mensagens abertas para Paul, mas não foi suficiente, Emma conseguiu visualizar o nome e abriu um sorriso que era quase criminoso de tão sabichão.

Paul? É pra ele que você continua enviando mensagens e passando a semana sonhando acordada?

— Eu não fico sonhando acordada! — Rose engasgou, sentindo seu rosto ficar ainda mais vermelho e trair completamente a sua negação inútil.

Zoe congelou no meio da sua coreografia imaginária.

— Paul? Tipo, como PAUL LAHOTE? — Zoe gritou novamente. — O mesmo Paul que te chamou de imbecil há anos e você passou dias reclamando como aquele cara lindo era tão babaca ?

— Oh, sim! — Abigail murmurou discretamente, com um sorrisinho maroto. — É aquele cara que você saiu pra tomar um café na semana passada, certo?

— E você não falou isso pra gente? — Zoe engasgou de indignação, agarrando o braço de Rose com força dramática. — Primrose Potter, você está nos escondendo um romance proibido?

— Não é proibido! — Rose protestou, mas a voz saiu mais aguda do que pretendia. — E não é nenhum romance!

As garotas gargalharam, adorando como Rose estava da cor do seu cabelo e escondendo o celular no bolso da calça.

— Então, como você explica esses corações nos seus olhos?

— Eu não… isso não… — Rose engasgou, sentindo-se completamente encurralada. Seu olhar fugiu involuntariamente pelo estacionamento, procurando uma rota de fuga, e foi então que ela viu.

Leah.

Parada a poucos metros de distância, com os braços cruzados e um olhar penetrante que poderia derreter aço. A visão de sua amiga fez o estômago de Rose embrulhar. Ela não via Leah desde o funeral, desde que começou a evitar a Reserva e tudo o que a lembrasse de tia Sarah.

— Leah... — O nome saiu como um suspiro, cortando instantaneamente a animação das amigas.

As amigas de Rose perceberam a mudança, e o clima mudou completamente.

— Você quer que a gente...? — Abigail começou, mas Rose já estava sacudindo a cabeça.

— Não, tá tudo bem — mentiu, os dedos tremendo enquanto ajustava a alça da mochila. — Eu... eu vejo vocês na segunda.

Rose sentiu as pernas tremerem, enquanto caminhava em direção a Leah. Ela não precisou nem dizer oi antes que Leah começasse a falar.

— Primrose — Leah começou imediatamente, sem preâmbulos. Rose sentiu-se estremecer ao ouvir seu nome completo. — Precisamos conversar. Agora.

— Eu tenho que ir pra casa. O tio Charlie vem me buscar.

Leah soltou um riso sem humor.

— Eu já liguei pra ele e avisei que viria aqui.

— O que você quer, Leah? — A pergunta saiu mais áspera do que Rose pretendia, carregada de todas as semanas em silêncio, das visitas evitadas, das ligações não atendidas.

Leah finalmente baixou os braços, e pela primeira vez, Rose notou como seus olhos estavam vermelhos e inchados, como se ela também tivesse chorado recentemente.

A visão foi um soco no estômago.

— Você está me ignorando. — A acusação de Leah veio em um sussurro rouco, mas cada palavra doía em Rose como um corte profundo. — Você está ignorando todo mundo.

Rose sentiu as mãos começarem a tremer.

— Não é isso, eu só…

Sua voz falhou quando Leah avançou um passo, com os olhos brilhando cheio de lágrimas.

— Só o quê, Primrose? — Leah cuspiu o nome como se fosse um insulto. — Você acha que é a única que está sofrendo? A única que tem o direito de sumir? Eu também a conhecia, sabia?

— Eu sei... eu não... — As palavras morreram na garganta de Rose quando viu uma lágrima escorrer pelo rosto de Leah, que a limpou com um movimento brusco e irritado.

— Jake está destruído. Billy mal sai de casa. — Leah engoliu em seco, tentando recuperar o controle. — E você... você está aqui, sorrindo com essas suas amiguinhas como se…

O resto da frase se perdeu no ar, mas Rose ouviu mesmo assim.

Como se nada tivesse acontecido.

Como se não fosse culpa dela.

Estava tudo indo bem demais para ser real. Os dias rindo com Paul ou voltando à normalidade com as suas amigas eram apenas uma ilusão da realidade, um fingimento.

— Eu só preciso de tempo, Leah

— Tempo?! — Leah soltou uma risada seca, incrédula. — Você sumiu! Parou de visitar, de responder, de se importar! Nem com o Jake! Ele é só uma criança!

— E você acha que é fácil pra mim? — A voz de Rose tremeu. — Ir pra lá e lembrar de tudo?

Leah avançou, a raiva escorrendo de cada palavra:

— Você é uma egoísta do caralho , sabia? A Sarah morreu, e você finge que nada aconteceu! Anda por aí, rindo, vivendo, enquanto todo mundo na Reserva se afunda sem você.

Cada palavra foi uma facada, mas Rose revidou:

— Você não tem ideia do que eu—

— Ah, poupe-me! — Leah interrompeu, os lábios tremendo de raiva. — Você acha que é a única que sofre? Pelo menos você teve a chance de vê-la antes de morrer. O Jake é apenas uma criança e nem teve a chance de se despedir quando ela—

A voz de Leah engasgou por um segundo, mas ela continuou, mais cruel:

— Sabe qual é o pior pesadelo do Jake? O barulho do carro batendo. Mesmo que ele nem estivesse no acidente. Ele acorda gritando. Mas você não está lá pra ajudá-lo, está? Você está ocupada demais dando trela pro Paul Lahote. Você acha que eu não sabia disso?

Rose recuou como se tivesse sido atingida.

— Isso não é justo — ela sussurrou, pálida.

— Justo? — Leah riu sem humor e deu mais um passo à frente, invadindo o espaço de Rose. — Toda a Reserva te tratou como filha. Te acolheu quando ninguém mais queria você. E o que você faz? Vira as costas na primeira oportunidade.

Uma lágrima escorreu pelo rosto de Rose, mas Leah não parou.

— Ela morreu pensando em você. E você nem teve a decência de ir ao aniversário de um mês dela no cemitério.

Rose sentiu as pernas falharem. Ela não sabia disso.

Leah percebeu que tinha acertado o golpe final e abaixou a voz para um sussurro venenoso:

— Às vezes, acho que o tio Charlie devia ter te deixado naquela casa de merda dos seus tios. Pelo menos assim, ela ainda estaria viva.

O silêncio foi ensurdecedor.

Rose ficou sem ar. O peito apertou, a culpa queimando como ácido.

— Você acha que eu não sei disso? — Sua voz quebrou, desesperada. — Você acha que eu não me lembro TODOS OS DIAS que eu estava no carro? Que eu poderia ter feito algo?!

Leah hesitou por um instante. Um instante. Mas a raiva venceu, e seu rosto se fechou de novo.

— Então, na verdade, você só é uma covarde . Fingindo que a vida continua.

EU NÃO ESTOU FINGINDO NADA! — Rose berrou, as lágrimas escorrendo. — Eu só não consigo olhar pra vocês, Leah! Eu não consigo entrar naquela casa, ver o Billy, ver o Jake e lembrar que ELA NÃO ESTÁ LÁ POR MINHA CULPA!

Leah congelou, os olhos arregalados.

— Você… — A voz dela saiu rouca, hesitante. — Você realmente acha que foi sua culpa?

Rose não respondeu. Só ficou ali, tremendo, as lágrimas queimando seu rosto como ferro em brasa.

O silêncio entre as duas era insuportável.

Leah respirou fundo, e o rosto dela mudou. A raiva se desfez, dando lugar a algo mais profundo. Mais dolorido.

— Rose… — Ela começou, a voz mais baixa, quase gentil.

Mas Rose já estava recuando.

— Não. Eu não quero sua pena. — Sua voz saiu áspera, mas quebradiça. Ela virou de costas, engolindo o choro. — Só me deixa em paz.

Leah ficou parada, como se quisesse dizer algo.

E Rose continuou andando, determinada a ir para casa a pé, enquanto fingia que ainda conseguia respirar.

Alguns metros depois, o som de pneus rangendo contra o asfalto a fez pular. Um carro parou bruscamente ao seu lado.

— Entra no carro, Rose! — Leah gritou pela janela.

Rose apertou os punhos e acelerou o passo, ignorando-a.

— Rose! — Leah insistiu, mais firme. — Pelo amor de Deus, entra no carro.

O coração de Rose martelava. Seu instinto era continuar andando, continuar fugindo. Mas suas pernas hesitaram.

O silêncio entre as duas pareceu se estender por horas.

Por fim, com um suspiro trêmulo, Rose deu meia-volta e abriu a porta do passageiro, afundando no banco sem dizer uma palavra.

Leah também não disse nada. Apenas engatou a marcha e dirigiu.

O carro seguiu pela estrada, passando direto pela casa de Rose e seguindo em direção à Reserva.

— O que você tá fazendo? Minha casa não fica pra cá.

— Não estou te levando pra casa.

O estômago de Rose se revirou.

— Eu não quero ir pra Reserva, Leah.

— Eu quero te mostrar uma coisa. — A voz de Leah estava firme, sem espaço para discussão. — Dá pra ficar quieta por um instante?

O tom dela não era mais agressivo, mas também não era gentil. Era simplesmente inegociável.

Rose soltou um suspiro tenso, cruzando os braços e desviando o olhar para a estrada à frente.

Ela não queria estar ali.

Alguns minutos depois, o carro desacelerou, o motor roncando baixo antes de parar na beira da Rodovia 110.

Rose sabia onde estavam antes mesmo de olhar pela janela. O frio na espinha foi imediato.

Não.

O pânico subiu como uma onda sufocante, prendendo-a ao assento.

Do lado de fora, Leah saiu do carro e bateu a porta com força. O som ecoou no silêncio da estrada, fazendo Rose encolher os ombros.

Ela não queria estar ali.

Se ficasse quieta, se não olhasse, talvez Leah desistisse e a levasse para casa.

Mas Leah não desistia fácil.

A porta do passageiro se abriu de repente, e dedos firmes agarraram seu braço.

— Sai do carro.

Rose se encolheu, tentando se soltar.

— Leah, para. O que você tá fazendo?

— Olha a estrada.

— Eu não quero olhar.

Olha. — A voz de Leah soou como uma ordem.

Rose apertou os olhos com força, os pulmões doendo na tentativa de respirar.

Ela sabia o que veria.

O asfalto escuro. A curva traiçoeira.

O lugar onde a vida dela tinha se partido em dois. Antes. Depois.

Mas Leah não a soltou.

— O que você quer que eu veja? — A voz de Rose saiu fraca, quase infantil.

— As marcas de pneu. — Leah apontou para frente. — Olha direito, Rose.

O peito de Rose subia e descia rápido demais, o sangue pulsando nos ouvidos.

Mas ela olhou.

E viu.

As marcas de pneu cortavam o asfalto como cicatrizes mal fechadas. No lado oposto da pista, na contramão.

A respiração dela travou.

Do outro lado, bem antes da curva… a marca da frenagem.

A marca do carro dela.

A marca da tentativa desesperada de parar.

Rose cambaleou um passo para trás, o coração martelando contra as costelas.

— Não foi culpa sua. — Leah apontou, com firmeza.

O caminhão estava na contramão.

Ela não podia ter evitado.

Mas então… então por que todo esse tempo ela acreditou que podia?

Rose apertou a cabeça entre as mãos, os dedos cravando no couro cabeludo, tentando sufocar o caos dentro dela.

— Eu… — Sua voz falhou. — Eu jurei que podia ter feito algo diferente.

Leah a observava, os olhos firmes, mas sem raiva. Apenas cansaço.

— O cara tava bêbado. Era um caminhoneiro irresponsável. Ele tá preso por isso. — Leah murmurou. — Você poderia ter perguntado ao Charlie. Você poderia ter perguntado pra mim.

Rose piscou, as lágrimas queimando sua visão.

O caminhão estava na contramão.

Não tinha sido culpa dela.

Então por que ainda doía tanto?

Ela apertou os braços ao redor do próprio corpo, tremendo. O vento frio da estrada parecia cortante contra sua pele, mas nada se comparava ao turbilhão dentro dela.

Leah suspirou.

— Não foi sua culpa, Rose.

Mas Rose já estava se afastando, sacudindo a cabeça em negação.

Porque mesmo que a lógica dissesse o contrário, seu coração ainda gritava que, de alguma forma, tudo aquilo era sua culpa.

Antes que ela se afastasse mais, Leah a pegou em um abraço esmagador.

— Não foi sua culpa, Rose. Não foi. — Ela sussurrou baixinho contra seu cabelo, enquanto apertava Rose em seus braços.

Rose afundou no abraço, os punhos apertando a camisa de Leah, enquanto ela desmoronava.

Ela chorou até a culpa ficar indistinguível da dor. Até não saber mais se tremia por causa do frio ou pelo peso que finalmente começava a ceder. Até perceber que, mesmo de luto, não estava completamente sozinha.

O choro de Rose foi diminuindo, até restarem apenas soluços espaçados e respirações trêmulas. Ela ficou ali, afundada no ombro de Leah, enquanto o mundo ao redor parecia suspenso, silencioso.

Leah foi a primeira a falar, a voz hesitante:

— Sinto muito. — Sua mão deslizou suavemente pelas costas de Rose, um gesto que, meses atrás, teria sido natural, mas agora parecia estranho. Como se elas não fossem mais melhores amigas. — Sinto muito por ter pensado mal de você. Por ter dito aquelas coisas horríveis.

Rose balançou a cabeça veementemente, afastando-se apenas o suficiente para olhar para Leah. Seus olhos estavam vermelhos, inchados, ainda derramando algumas lágrimas em suas bochechas.

— Não. Eu sinto muito. — Sua voz quebrou. — Sinto muito por ter desaparecido. Por não ter ligado. Por ter deixado vocês sozinhos.

Leah franziu os lábios, desviando o olhar por um instante, como se tentasse conter algo dentro de si.

— Eu só… — Ela respirou fundo. — Eu só tava sentindo falta da minha amiga.

Rose fechou os olhos, exausta.

— Eu também senti sua falta.

— Especialmente agora… — Leah acrescentou, algo diferente no tom dela.

Rose franziu a testa.

— Por que especialmente agora?

Leah hesitou, apertando os lábios antes de responder.

— O Sam está estranho.

Rose piscou, confusa com a mudança repentina de assunto.

— O quê? O que tem o Sam?

— Ele… mudou. — Leah passou a mão pelo rosto, como se tentasse encontrar as palavras certas. — No Natal, ele tava bem. Ele foi no funeral comigo, ficou do meu lado o tempo todo.

Leah fez uma pausa, mordendo o lábio inferior antes de continuar:

— E então, ele adoeceu. Sumiu por alguns dias e, quando voltou… ele tava com o cabelo cortado, mais calado. E… distante… diferente.

— Diferente como?

Leah olhou para a estrada, o olhar perdido no vazio.

— Como se… como se não fosse mais ele, sabe? Ele também não me diz o que está errado. Nós costumávamos falar tudo um para o outro, e agora ele simplesmente fica calado.

— Isso é muito estranho. Qual foi a última vez que vocês falaram?

— Eu ligo pra ele quase todos os dias, mas nos vemos apenas uma vez por semana. Às vezes nem isso.

— Talvez ele esteja passando por alguma coisa e precise de tempo?

Leah soltou uma risada curta, sem humor.

— Talvez. — Ela concordou, mas a dúvida em seu tom dizia o contrário.

Rose abaixou os olhos e mexeu nos próprios dedos antes de dizer, num sussurro:

— Sinto muito por não ter estado ao seu lado.

Leah ergueu a cabeça, surpresa.

— Está tudo bem, Rose. Eu também sinto muito.

Por um instante, parecia que tudo estava se encaixando de novo. Que, mesmo com as cicatrizes, elas poderiam reconstruir aquilo que foi quebrado.

Rose respirou fundo e, com um olhar determinado, perguntou:

— Você me leva até a casa do tio Billy?

Leah assentiu sem hesitar.

— Sim, claro.

— Mas antes, você vai me contar tudo sobre Paul Lahote. Como isso aconteceu?

Rose revirou os olhos, mas uma risada escapou contra sua vontade.

— Ah, não… Nem pensar.

Leah ergueu uma sobrancelha, divertida.

— Ei, eu sou sua melhor amiga. Eu mereço saber.

— Podemos falar disso depois? O que acha de irmos para La Push?

Leah fingiu considerar.

— Hmm… acho que posso adiar meu interrogatório por algumas horas.

Rose sorriu.

— Ótimo. Vamos lá.

A dor ainda estava lá — provavelmente sempre estaria —, uma presença constante, como um fantasma que se recusava a partir.

Mas não era mais como antes.

Não era mais algo que a rasgava de dentro para fora, como se um animal faminto estivesse devorando suas entranhas, deixando apenas um vazio insuportável no lugar.

Agora, era diferente.

Era um peso no peito, sim, mas não uma âncora. Era a saudade e o luto guerreando silenciosamente dentro dela, cada um puxando para um lado, enquanto ela tentava seguir em frente.

Mas, pela primeira vez, Rose percebeu que seguir em frente não significava esquecer.

Não significava deixar a tia Sarah para trás.

Significava apenas aprender a carregar a sua ausência sem se afogar nela.

Ela fechou os olhos por um instante, sentindo o carro se mover pela estrada. O vento frio entrou pela fresta da janela, bagunçando seus cabelos, trazendo consigo o cheiro da chuva que se aproximava.

E, pela primeira vez, Rose permitiu a si mesma respirar.

Chapter 12: DOZE

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

O dia seguinte amanheceu com uma luz dourada cintilante, o sol brilhando no céu como não fazia há dias. A claridade inundou o quarto de Rose, projetando cores e sombras nas paredes e tornando tudo simplesmente alegre.

Por um instante, ela se permitiu apenas ficar deitada e observar a poeira dançar nos raios de sol, sentindo o calor tímido atravessar a janela.

Parecia um prenúncio positivo depois dos acontecimentos do dia anterior.

Ainda que Leah tenha sido um pouco radical demais na sua abordagem em tentar tirar Rose do fundo do poço, valeu a pena enfrentar seus medos e encarar uma verdade que Rose se recusava a ver: ela não era capaz de controlar tudo.

E, por mais doloroso que tenha sido, depois de gritos, lágrimas e desculpas, havia valido a pena.

Rever tio Billy e Jake depois de tanto tempo foi como atravessar um campo minado de memórias e culpa, mas, em vez de dedos apontados e acusações, Rose só recebeu abraços e sussurros de saudades, tão genuínos que a fizeram perder completamente a compostura.

Não era o que ela esperava, e foi igualmente um lembrete e um tapa na cara.

Fez Rose, finalmente, perceber que Leah estava certa. Ela não estava sofrendo sozinha. Não estava perdida em sua dor, nem era a única a carregar o peso da perda da tia Sarah. E a vida, por mais dolorosa que ela fosse às vezes, continuava mesmo quando parecia impossível, porque haviam pessoas por quem ainda valiam a pena viver.

E então, depois de mais lágrimas e mais desculpas, foi quase como se nada tivesse mudado. Rose ainda sentou no chão com Jake, rindo e brincando como se o tempo não tivesse passado; tio Billy ainda a mimou com o mesmo carinho de sempre, como se ela fosse a sua própria filha; Charlie, chegando mais tarde exausto do trabalho, mas claramente feliz por ver Rose em seu normal novamente; e ela e Leah deixando a briga de lado e sentando juntas em La Push com as cabeças unidas, criando teorias da conspiração sobre o comportamento bizarro de Sam, fofocando sobre os novos acontecimentos entre ela e Paul e depois correndo pela areia, rindo e perseguindo uma à outra.

No final das contas, foi um dia bom.

Portanto, um sábado de sol parecia, de fato, um prenúncio para algo ainda melhor.

Como combinado, ela se encontraria com Paul às 11h para eles irem juntos para First Beach, já que ela não tinha carro. Ela ainda não tinha contado para o tio Charlie sobre isso, mas esperava fervorosamente que ele não tivesse uma crise e atirasse bem no meio da testa do pobre Paul.

Decidiu, então, esperar alguns minutos antes das 11h para que ele não tivesse a chance de ficar "preparado" para o que poderia ser apenas uma conversa constrangedora ou uma cena de crime.

Então, Rose saiu em uma arrumação desenfreada pela casa. A torta de maçã que ela prometeu levar já estava no forno. O seu longo, ainda úmido, estava penteado e solto, caindo sobre seus ombros. E ela já estava vestida com uma roupa leve, em uma tentativa patética de parecer um pouco mais bonita.

Rose não sabia o que esperar, mas depois de dias se falando por mensagem e ligações o tempo todo, ela quase esperava que aquilo fosse um encontro de verdade e não uma saída entre amigos.

Mesmo assim, ela não conseguiu deixar de se esconder atrás das incertezas — de que Paul poderia facilmente conquistar qualquer garota de La Push, e não perder tempo com ela .

Rose respirou fundo, tentando se convencer de que, mesmo que não fosse um encontro, estava tudo bem. Era apenas um piquenique na praia. Eles ainda poderiam ser amigos.

Finalmente, uma buzina a tirou de seus pensamentos.

— Vai sair? — Tio Charlie murmurou, enquanto olhava atentamente para a torta que esfriava no balcão da cozinha, uma mão indo em direção à comida.

— Sim — Rose bateu levemente na mão distraída do tio. — Paul me chamou para ir em First Beach. Estou levando torta para um piquenique.

— Paul Lahote? — Ele ergueu uma sobrancelha, a expressão um tanto desconfiada.

— Sim.

— Eu não sabia que vocês eram amigos… ou… outra coisa.

Rose deu uma risada nervosa, tentando evitar o olhar mais atento do tio. Ela se sentia estranhamente inquieta, com medo de que ele a desaprovasse ou a proibisse de sair com um garoto.

Não era a primeira vez que ela gostava de um garoto, é claro. Em Hogwarts — e ela jurou nunca repetir isso em voz alta —, ela até teve uma quedinha por Malfoy quando ele voltou do verão aos 13 anos, sem gel no cabelo; e os irmãos de Ron, que ela conheceu na Copa do Mundo, também não eram nada horríveis de se olhar.

Mas dessa vez era diferente. Era a primeira vez que ela realmente decidia sair com alguém.

— É recente. Não é nada demais. Ele me chamou para surfar.

— Desde quando você sabe surfar? — Um sorriso meio cético se abriu em seus lábios, e Rose se sentiu relaxar.

— Bem, eu sei nadar. Quão difícil deve ser?

— Se você diz — Ele resmungou baixinho. — Eu devo falar com ele? Repreender? Mostrar a minha arma? Eu nunca fiz isso antes.

Rose quase engasgou com a risada, surpresa com o tom solene de tio Charlie.

— Por favor, não… apenas seja normal. — Ela respondeu, mas saiu quase como uma pergunta.

Ele não respondeu, apenas seguiu em direção à porta com uma expressão séria, como se estivesse realmente considerando todas as possibilidades. Rose, por outro lado, se apressou em colocar a torta em uma caixa, pegar a sua bolsa com pressa, jogando-a sobre o ombro, e correr atrás do tio Charlie, desesperada para impedi-lo de fazer algo que a envergonhasse pela próxima década.

Lá fora, Paul estava ao lado de uma caminhonete preta, com as costas retas como uma tábua, enquanto tio Charlie conversava baixinho com ele. Rose, por sua vez, se enredava na porta, tentando equilibrar a torta e a bolsa, tudo enquanto lutava para fechá-la com uma mão só.

O movimento desajeitado só aumentava sua sensação de pressa e nervosismo, e Rose só desejava poder desaparecer naquele momento.

Mas, ao contrário do que esperava, sua pressa não foi suficiente. A conversa foi rápida, e, de repente, Paul já estava ajudando-a a carregar suas coisas e abrindo a porta do carro para ela com um sorriso discreto.

— Volte cedo, querida. Nada de ir muito fundo no mar. — tio Charlie disse, sua voz cheia de um cuidado quase paternal.

— Tudo bem, tio Charlie. Amo você. — Rose respondeu com um sorriso, fazendo tio Charlie apenas resmungar de volta timidamente.

— E lembre-se do que eu disse, garoto. — Ele olhou seriamente para Paul, que engoliu em seco, claramente tentando esconder sua apreensão.

Rose ergueu uma sobrancelha, enquanto Paul manobrava cuidadosamente para sair o mais rápido possível, e dentro da lei, da frente do Chefe de Polícia.

— O que ele fez com você?

— Uma grande ameaça. Talvez eu precise de alguns minutos para que as minhas pernas parem de tremer. — Paul abriu um sorriso meio nervoso.

Rose riu surpresa.

— Sério? Eu nunca pensei no tio Charlie como uma pessoa de ameaças.

— É, bem, bom pra você. Eu não tive tanta sorte. — Paul olhou rapidamente no retrovisor, como se temesse que tio Charlie ainda estivesse ali, vigiando o encontro deles.

— Tenho certeza de que a minha torta de maçã especial vai ajudá-lo a superar.

Paul abriu um enorme sorriso, a expressão suavizando.

— Tenho certeza que sim. Você está linda, a propósito. — Ele disse, olhando para ela com um brilho nos olhos.

Rose sentiu o seu coração disparar com o elogio e o rosto esquentar imediatamente. Ela baixou os olhos timidamente sem saber o que dizer, e fingiu não ouvir o comentário, enquanto um sorriso teimoso se forçava a surgir em seus lábios.

— Bem… er… eu não sei nada sobre surfe. Você tem paciência o suficiente? — Ela disse, tentando mudar o foco da conversa e disfarçar a sua timidez.

Paul deu uma risada suave, apertando um pouco mais o volante.

— Não se preocupe, Prim, eu sou um ótimo professor.

— Contanto que você não me deixe afundar.

— Vou me certificar de segurá-la com força, então.

E então ele piscou para ela.

Foi imediato, Rose sentiu o calor subir novamente pelo seu rosto, mas desta vez duas vezes pior, como um incêndio fora de controle. Suas mãos se apertaram contra o colo, e por um momento ela teve certeza de que havia esquecido como respirar.

Que tipo de olhar era aquele? Que tipo de piscadela era aquela?

Ele estava flertando? Ele estava flertando. Definitivamente estava flertando

— Ótimo — ela murmurou, desviando o olhar para a janela, tentando desesperadamente esconder a animação que ameaçava escapar em todo o seu rosto.

Paul riu baixo, como se soubesse exatamente o efeito que tinha sobre ela.

Rose aproveitou a oportunidade para engatar em outro assunto e distrair seu cérebro daquela conversa — ou pelo menos de qualquer coisa para impedir seu rosto de pegar fogo ali mesmo.

Felizmente, Paul parecia disposto a seguir o fluxo, respondendo suas perguntas despreocupadamente.

Vinte minutos depois, o carro parou suavemente em First Beach.

O cheiro salgado do mar invadiu os sentidos de Rose assim que ela saiu do carro, a brisa bagunçando seus cabelos. As ondas quebravam contra as rochas com um som rítmico e convidativo, e o céu estava azul, sem nenhuma ameaça de chuva.

Estava incrível.

— Você trouxe biquíni, certo? — Paul perguntou, pegando uma prancha na caçamba da caminhonete, enquanto Rose puxava uma cesta que ele havia preparado e deixado no banco de trás e a sua caixa com a torta ainda morna.

— Eu… — Rose hesitou. — Eu trouxe um maiô.

Paul ergueu uma sobrancelha, um sorriso puxando o canto dos lábios.

— Perfeito. Menos distrações pra mim.

Ele piscou de novo.

Rose sentiu as pernas ficarem fracas.

Talvez aprender a surfar fosse um problema menor comparado a sobreviver a esse encontro.

Ela respirou fundo, ajustou a bolsa no ombro e o seguiu pela areia, rezando para que as suas pernas voltassem a funcionar antes que ela precisasse se equilibrar numa prancha.

Eles chegaram à praia, e Paul fincou a prancha na areia enquanto Rose se ajoelhava para estender a toalha de piquenique, organizando cuidadosamente as coisas que trouxeram.

Paul não perdeu tempo em puxar a camisa sobre a cabeça, revelando um peito definido e uma barriga que fizeram o cérebro de Rose entrar em curto-circuito por alguns segundos. Ela piscou rápido, tentando não encarar, forçando seus olhos a olharem para o chão — mas seus olhos traiçoeiros continuavam a subir a cada poucos segundos descaradamente.

— Você pode olhar, sabia? — Paul disse, um sorriso maroto brincando nos lábios enquanto jogava a camisa de lado.

— Não sei do que você está falando.

Paul arqueou uma sobrancelha, claramente se divertindo com o sofrimento de Rose.

— Ah, não?

Rose forçou uma expressão indiferente, mas seu rosto em chamas provavelmente a denunciava.

— Não faço ideia.

— Certo. Então, eu vou fingir que você não está aproveitando a vista.

— Presunçoso. — Ela murmurou, jogando um dos guardanapos no rosto dele.

— Realista. — Ele piscou para ela. De novo. Maldito .

Aquela história de que isso não poderia ser um encontro estava muito enterrado no cérebro de Rose para ela questionar agora. Claramente era um encontro, e ela já estava perdida.

— Você não disse que ia me ensinar a surfar? — Ela ergueu uma sobrancelha, cruzando os braços como se isso fosse suficiente para manter a compostura.

Paul se levantou com agilidade e foi até a prancha, a pegando com um sorriso travesso no rosto.

— Claro, Prim. Vamos ver se você tem talento ou se só vai se agarrar a mim o tempo todo. — Ele abriu um sorriso descarado e confiante. — Não que eu vá reclamar.

Rose bufou, fingindo desinteresse, mas a sua barriga deu um salto traidor.

Mas, bem, que não digam que ela não sabe se vingar.

Rose se levantou com um sorriso travesso, sabendo exatamente o que estava fazendo. Com um movimento lento e deliberado, ela começou a tirar a blusa, deixando Paul sem desviar o olhar. Ela podia sentir o calor crescente na pele enquanto, com um gesto casual, retirava o short e ficava apenas de maiô.

— Você já está babando, Lahote?

Paul piscou, como se tivesse sido retirado de um transe, mas o sorriso travesso no rosto dele não desapareceu. Ele se aproximou um pouco mais, sem desviar os olhos dela.

— Quem, eu? — Ele fingiu surpresa. — Não posso ser culpado por admirar uma boa vista.

— Idiota. — Ela deu um leve tapa no braço de Paul, sorrindo de canto, antes de dar as costas e caminhar em direção ao mar. Ele a seguiu rapidamente.

Não era preciso ser um gênio para perceber que Rose era uma negação no surfe. Ela era incapaz de subir na prancha sem escorregar, então os planos de tentar ficar em pé foram imediatamente cancelados nos primeiros minutos. 

Depois de muitas tentativas, ela conseguiu ficar de bruços sobre a prancha, mas percebeu que nadar contra as ondas exigia muito de seus braços finos, então isso também foi cancelado.

No final das contas, Rose apenas ficou sentada na prancha, com Paul entre suas pernas, curtindo a água e conversando distraidamente, enquanto ele aproveitava qualquer oportunidade para agarrar sua cintura.

Não houveram novas tentativas de surfe. Nenhum dos dois se importou muito.

Um tempo depois, eles voltaram exaustos para a areia — provavelmente Rose mais do que Paul —, e prontos para devorar as comidas que trouxeram. Paul atacou a torta de maçã, engolindo um gemido lamentável de prazer e, por pouco, não ajoelhou e beijou o chão por onde ela pisava em agradecimento. Rose não conseguiu evitar a gargalhada, e aproveitou para espiar a cesta e comer um dos sanduíches de pasta de amendoim e geleia com suco de laranja que ele trouxera.

— Então, como está? — Rose perguntou, ainda sorrindo.

— Você é uma bruxa, Prim. Isso não é uma torta, é magia. — Paul respondeu, ainda com um pedaço enorme na boca.

Ele não poderia estar mais certo nessa afirmação, no entanto. Rose se segurou para não rir nervosamente.

Eles ficaram em silêncio por alguns segundos, saboreando a sua refeição improvisada na praia, desfrutando do calor do sol que secava lentamente a água do seu corpo e rindo juntos, enquanto trocavam comidas.

Finalmente, Paul quebrou o silêncio depois de comer metade da torta.

— E então, você está animada para a sua formatura?

— Com certeza. — Rose respondeu imediatamente, sorrindo. — Não vejo a hora de terminar o ensino médio.

— E você já sabe o que quer fazer agora?

Rose se mexeu nervosamente, sem olhar nos olhos de Paul por um momento.

— Na verdade, sim. Eu pensei bastante sobre isso nos últimos dias.

— E você quer me contar? — Ele sorriu para ela encorajadoramente.

— Sim, er… eu quero ser médica.

— Puta merda! Sério? — Paul exclamou, surpreso.

— É, sim. Depois do acidente eu fiquei pensando nisso, sabe? Como eu me sentia inútil e que eu poderia ter feito mais, sei lá. Eu também penso na minha infância e acho que poderia ter sido útil se uma médica ou professora tivesse notado… — Ela hesitou um pouco.

— O que você quer dizer?

— Eu não vivia com o tio Charlie, você já sabe disso. Eu morava na Inglaterra com os meus tios depois da morte dos meus pais. Eles não eram abusivos, nem nada, mas eles realmente não me queriam. Então, eu não vivia exatamente em perfeitas condições.

— Isso é uma merda. Você está bem agora? — Paul perguntou com sinceridade, o olhar carregado de preocupação. Ele levantou a mão e, quase sem pensar, segurou as mãos de Rose com firmeza, como se quisesse garantir que ela soubesse que estava ali, ao seu lado.

— Claro, viver com o tio Charlie é ótimo, e eu não sinto a menor falta de Surrey. Mas as lembranças nunca vão embora de verdade. — Rose deu de ombros. — É por isso que eu quero ser médica. Eu quero poder ajudar as pessoas, sabe? Como a tia Sarah ou crianças como eu.

Paul apertou as mãos dela com mais força, um sorriso orgulhoso se espalhando em seu rosto.

— Isso é incrível, Prim. De verdade.

— Você acha? Eu ainda não contei pra ninguém.

— Por que não? Isso é fantástico.

Rose suspirou profundamente, sentindo subitamente ansiosa.

— Eu não sei. Só… sei lá, parece uma coisa inalcançável. E eu só decidi agora, eu nem sei se vou conseguir.

— Você é inteligente pra caramba, Prim. Sério. Claro que você vai conseguir.

— Eu espero que sim. Obrigada, Paul.

Eles ficaram em silêncio por alguns segundos, enquanto Paul encarava as suas mãos entrelaçadas com uma carranca.

— E… er, você já sabe onde quer ir?

Rose sorriu timidamente, os dedos de uma mão brincando tocando distraidamente a palma dele.

— Eu não tenho ilusão de que vou conseguir uma vaga em uma universidade chique, e eu também não quero ficar longe de Forks. Então, eu pensei na Universidade de Seattle ou na Universidade de Washington e passar os fins de semana em casa.

Paul soltou um suspiro, e seus ombros relaxaram visivelmente.

— Fico feliz. — Ele abriu um sorriso provocador. — Seria uma pena ter que pedir para namorar você à distância.

Rose arregalou os olhos, completamente surpresa.

— Namorar?

Paul a encarou fixamente, observando, arrebatado, a maneira como o sol tornava seus olhos verdes ainda mais vívidos e brilhantes.

— Bem, esse era um pedido para final de encontro, mas agora é uma boa hora também. Você é linda, inteligente, gentil… e com certeza poderia ter alguém melhor do que eu, mas eu sou realmente egoísta e não quero deixar essa oportunidade escapar. Então, você gostaria de ser minha namorada?

Rose encarou com Paul sem reação, com apenas o coração trovejando no peito e um calor escaldante, que nada tinha a ver com o sol, subindo pelo seu peito e pintando suas bochechas e orelhas de vermelho.

Mas ela não precisou pensar muito para responder.

— Com certeza.

Paul abriu um sorriso ainda maior, tão genuíno que parecia iluminar todo o ambiente ao redor deles, como se sua felicidade fosse contagiante.

— Eu posso beijar você? — Ele sussurrou, aproximando-se lentamente de Rose.

Ela não fez questão de responder, jogou-se impulsivamente em seu colo e o beijou, deixando a praia desaparecer ao redor deles.

Foi um beijo casto e tímido e, embora houvesse desejo e emoção, ainda era inexperiente e nervoso, como se eles não soubessem o que fazer, para que lado virar, onde colocar as mãos. Paul agia com delicadeza, sem pressa, provavelmente como nunca fez com outra garota antes; Rose explorava com curiosidade e inocência, sem saber como reagir adequadamente ao seu primeiro beijo.

Era doce e apaixonado, com corações batendo forte ao mesmo tempo e a confirmação silenciosa de que havia algo mais profundo ali.

Eles não demoraram muito, se afastando depois de alguns minutos e permitindo apenas apoiar as testas uma na outra, olhar nos olhos um do outro e sussurrar baixinho perto da boca, como os casais apaixonados fazem.

— Isso foi incrível. — Ela quebrou o silêncio, seus dedos ainda acariciando o pescoço dele com ternura, se certificando de que ele era real, de que isso estava acontecendo.

— Foi sim. Eu estou feliz. — Ele sussurrou de volta, uma mão na cintura dela e a outra exigindo ceder ao desejo de entrelaçar os dedos em seus cachos ruivos tão macios.

— Eu também.

E então, eles se beijaram novamente.

E de novo. E de novo. E de novo.

E ficaram assim por alguns longos minutos, agarrados na areia sobre a toalha de piquenique, emocionados por poder se tocar sem restrições, e completamente felizes.

Era suficiente.

— E você? Já pensou no que vai fazer depois do ensino médio? — Rose perguntou mais tarde, quando eles já estavam na água novamente.

— Eu gosto de construção. Eu pensei em engenharia civil e trabalhar com empreitaria. Talvez até abrir a minha própria empreiteira seria bacana.

— Isso é muito legal, Paul. Para onde você quer ir?

— Eu penso o mesmo que você. Eu não quero ficar muito longe de casa, então provavelmente o Peninsula College. Eles têm programas que combinam treinamento em construção e gestão, então seria perfeito pra mim.

— Isso é demais. Fico muito feliz por você. — Rose abriu um sorriso orgulho para Paul, entrelaçando os braços em seu pescoço e boiando juntos na água.

— Ou eu também posso ir para Seattle, e expulsar os garotos da faculdade para longe de você. — Ele ergueu uma sobrancelha, fazendo Rose soltar uma risadinha.

— Eu nunca teria olhos para garotos de faculdade.

— Bom saber.

E então ele a beijou novamente. Só porque agora, ele podia .

 

*

 

A vida estava boa.

Rose agora tinha um namorado — para a completa consternação de tio Charlie, tio Billy e até o pequeno Jake —, eles saíam juntos todo final de semana, mas conversavam diariamente no celular.

Ela conversou com o tio Charlie sobre o seu desejo de fazer medicina e foi recebida com uma emoção e orgulho inesperado. Quase imediatamente, ela fez questão de enviar a sua inscrição para as universidades que planejou.

Emma e Abigail passaram, respectivamente, na Universidade de New York e na Caltech, enquanto Zoe também aguardava uma resposta da Universidade de Seattle e Washington.

Leah e Sam ainda estavam estranhamente distantes, mas a amizade delas estava mais forte do que nunca e, pelo menos, isso foi bom para manter Leah com a cabeça no lugar em vez de pirar sem saber o que estava acontecendo com o seu namorado.

Foi também o fortalecimento da amizade delas que deu coragem para Rose, finalmente, revelar seus segredos. Numa tarde chuvosa, enquanto elas comiam pipoca e viam um filme horrível na televisão, Rose contou tudo sobre sua ex-vida no mundo mágico, Hogwarts, o Cálice de Fogo, Voldemort e até mesmo sobre a capa de invisibilidade para provar que não era louca.

Bem, Leah acreditou, é claro. Mas a sua cara era impagável, Rose desejou muito ter uma câmera para registrar esse momento.

Com um segredo tão grande entre elas, elas se tornaram ainda mais próximas e unidas, como se faltasse esse tipo de abertura e vulnerabilidade para solidificar o relacionamento que elas construíram ao longo dos anos.

No final do ano letivo, Rose se formou no ensino médio trouxa e realmente chorou ao ver toda a sua família a aplaudindo de pé, enquanto ela recebia seu diploma.

Os Dursleys não estavam lá, apesar de tio Charlie tê-los avisado antecipadamente sobre a sua formatura. Mas, na verdade, se ela não sentiu falta deles nenhuma vez ao longo dos últimos anos, agora não foi muito diferente. Eles sempre prometiam visitar, mas no final enviavam apenas um cartão de presente genérico, o que foi obviamente repetido na formatura de Rose.

Mas estava tudo bem, porque Paul estava lá, e também tio Charlie, tio Billy, Jake, tio Harry, tia Sue, Leah e Seth. Suas amigas estavam se formando com ela e, naquela manhã, ela e Zoe haviam recebido as suas cartas de aprovação para a Universidade de Seattle e iniciariam na faculdade juntas em setembro.

Paul também foi aprovado na Peninsula College, e Leah, apesar de não desejar fazer uma faculdade, já tinha planos para começar a trabalhar no café da sua mãe em La Push.

A vida estava muito boa.

 

*

 

Mais tarde naquele dia, todos eles se reuniram na casa do tio Billy para um jantar em comemoração à formatura de Rose e sua aprovação na faculdade.

— Rose, venha conhecer minha prima — Leah gritou do outro lado da sala. Rose sorriu, beijou a bochecha de Paul e seguiu até a amiga, que estava ao lado de uma garota de cabelos negros e olhos castanhos que sorria gentilmente para ela. — Esta é Emily. Emily, esta é a minha melhor amiga, Primrose.

— Prazer em conhecê-la, Primrose. — Emily disse, com um sorriso aberto e gentil.

— Só Rose está bem. É bom te conhecer também, Emily.

— Você viu Sam por aí, Rose? Eu quero apresentar Emily para ele também. — Leah olhou por cima das pessoas na casa, e deixou Emily com Rose, enquanto buscava o namorado perdido.

— Você vai ficar muito tempo por aqui? — Rose puxou assunto.

— Provavelmente até o final do verão. Eu adoraria morar na Reserva, mas ainda não tenho recursos para isso. E você? Já vai para a faculdade? Parabéns pela aprovação, inclusive?

— Ainda não, só em setembro. Vou ter tempo para descansar até lá, e nós sempre podemos marcar de sair. O que acha?

— É claro, eu adoraria.

— Emily — Leah voltou à sala, trazendo Sam pelo braço. Rose quase engasgou ao vê-lo. Leah havia comentado que ele parecia diferente, mas ela nunca imaginou o quanto. Seus cabelos, antes longos, agora estavam curtos, e ele parecia muito mais alto, com o corpo mais musculoso. — Sam, esta é a minha prima Emily. Emily, esse é o Sam, meu namorado.

E então, algo estranho aconteceu.

Enquanto Emily sorria gentilmente e estendia a mão para cumprimentá-lo, Sam pareceu hesitar. Ele sorriu de volta, mas, ao olhar nos olhos de Emily por apenas um segundo, seu sorriso desapareceu como se tivesse visto algo inesperado.

Sam não disse nada à princípio, mas as suas mãos começaram a tremer, enquanto ele gaguejava um pedido de desculpas e fugia correndo pela porta.

Emily, Leah e Rose ficaram em um silêncio constrangedor por alguns segundos, trocando olhares perplexos, como se tentassem entender o que acabara de acontecer.

Rose voltou lentamente para os braços de Paul; Emily, visivelmente desconcertada, se dispersou pela sala, tentando disfarçar a tensão; e Leah ficou em silêncio em um canto, com uma carranca pensativa.

Nenhuma delas disse nada.

Sam não voltou mais naquela noite.

Notes:

Pesquisei sobre o processo de aceitação nas universidades norte-americanas e tenho certeza que o processo é mais complicado do que fiz parecer aqui, mas como eu não nasci nos EUA, tomei a liberdade de ser vaga o suficiente para vocês preencherem os espaços vazios sobre como foi fácil para Rose ir para uma faculdade, mesmo só tendo o ensino médio trouxa.

Também descobri que não se faz um curso de medicina imediatamente nos EUA, mas sim primeiro pre-med e depois, de fato, a faculdade de medicina. Vou tentar explicar isso nos próximos capítulos, mas, como sempre, de forma vaga, já que não tenho tanto embasamento, mesmo com a pesquisa.

Chapter 13: TREZE

Chapter Text

Seattle, WA

1999

Rose começou a faculdade pouco tempo depois daquela festa na casa do tio Billy.

Tio Charlie deu um pequeno jantar de despedida para ela, mesmo que ela estivesse a apenas 4 horas de distância de carro e prometesse visitá-lo em quase todos os finais de semana. Foi adorável, no entanto.

Ela e Paul passaram os últimos dias agarrados pelo quadril, beijando-se como se não houvesse amanhã e fazendo mil e uma promessas de amor. "Todo fim de semana" , ela havia jurado entre beijos. "Eu te ligo todo dia" , ele havia prometido, os lábios seguindo a linha de seu maxilar.

Leah, por outro lado, estava em péssimo humor. Seu relacionamento com Sam estava ainda pior depois do jantar de formatura e era impossível ter uma conversa com ela sem horas especulando se ele estava ou não a traindo com outra pessoa. Mesmo assim, Rose prometeu ligar para a amiga sempre que pudesse.

A despedida foi agridoce, mas Rose estava feliz.

A Garota que Sobreviveu havia ficado para trás há muitos anos e ela estava orgulhosa de si mesma por ter conseguido construir uma vida sem a pressão do mundo mágico.

De vez em quando ela ainda se lembrava de seus amigos, das aulas, dos feitiços, e matava a saudade vestindo a sua capa de invisibilidade, vendo as fotos se moverem em seu álbum ou pegando a sua varinha nas mãos, mesmo que agora fosse apenas um pedaço de madeira morto.

Mas Rose não mudaria nada.

 

*

 

Rose correu em disparada da sua classe de Biologia, os pés quase flutuando sobre o chão do corredor, enquanto ela cortava o campus da universidade com uma urgência desesperada. Ainda faltavam 5 minutos para a sua segunda aula do dia — Química, com o maldito professor Williams —, mas ela sabia que, mesmo chegando exatamente na hora da aula, ele ainda encontraria um jeito de soltar algum tipo de ofensa para ela.

Ela comparava o professor Williams aos professor Snape com bastante frequência. Na aparência, eles eram completamente opostos — enquanto Snape era alto, pálido e de longos cabelos negros, Williams era baixo, loiro e tinha um nariz pontudo que a lembrava de um pássaro irritado.

Mas na personalidade? Eles poderiam ter sido irmãos.

A mesma ironia afiada, o mesmo prazer em fazer os alunos se sentirem burros, e aquela mania irritante de encarar as pessoas como se elas fossem insetos sob o seu microscópio.

E, assim como Snape, o professor Williams a odiava sem motivo algum.

O pior era que ela nem sequer tinha culpa dessa vez. A aula de Biologia tinha terminado atrasada, porque o professor decidiu estender a discussão sobre expressão gênica, e Rose, sendo uma das poucas estudantes de pre-med da turma que realmente participava , não teve coragem de sair antes.

E agora ela estava pagando o preço.

Seus tênis escorregaram levemente no piso lustrado quando ela virou uma esquina para entrar em outro corredor, ignorando os olhares de alguns estudantes sentados nos bancos.

Faltava apenas um minuto.

Foi então que, ao virar em mais uma curva, seu pé escorregou em uma poça molhada — alguém havia derramado café ali, e agora o universo estava conspirando contra ela.

Não. Não. NÃO…

Ela fechou os olhos, já se preparando para o impacto, quando dois braços firmes a agarraram pela cintura, impedindo-a de cair de cara no chão.

— Ei, devagar aí, Usain Bolt .

Rose ofegou, virando o rosto para cima, e suspirou aliviada ao ver quem era.

— Obrigada, Riley. — Ela agradeceu, enquanto aceitava a ajuda de seu amigo para se reequilibrar.

— De nada.

Ela ofegou, sentindo o coração ainda trovejar em seu peito.

— Agora, eu realmente preciso ir.

Ela já ia se virar para correr de novo quando Riley pegou sua mochila, que havia escorregado de seu ombro no susto.

— Por que a pressa, Rose?

Ela piscou, confusa.

— O quê? Como assim? O professor Williams vai me matar se eu não chegar na hora.

Riley soltou uma risada, os olhos brilhando de diversão.

— A aula de química foi cancelada. Williams teve um compromisso de última hora. Todo mundo já foi embora.

Rose congelou no lugar.

— …O quê?

— Eu tentei te avisar. — Ele ergueu as mãos, como se estivesse se rendendo. — Zoe também. Ela mandou uma mensagem dizendo que você voou da aula de Biologia antes que ela pudesse falar com você. Fiquei te esperando aqui, então.

Ela rapidamente pegou o celular do bolso. Duas mensagens não lidas de Zoe, três do Riley. Todas enviadas há cinco minutos.

Rose sentiu o rosto esquentar.

— Eu não ouvi a notificação.

Riley balançou a cabeça, divertido.

— Provavelmente porque você estava focada em correr como se o prédio estivesse pegando fogo.

Ela respirou fundo, derrotada.

— Eu odeio minha vida.

Riley riu e pegou a mochila dela, jogando sobre seu próprio ombro.

— Vamos lá. Já que você não vai morrer hoje, temos tempo até o almoço para eu te pagar uma bebida.

— Eu quase morri de infarto aqui, Riley, tenha mais compaixão.

— Que bom que você está estudando medicina então, não é?

— Você é um colega da área, seria a sua responsabilidade me salvar.

— Da última vez que eu chequei, eu estava estudando Farmacologia e não Medicina.

Rose bufou.

— Qual é o seu procedimento, então? Me dar um remédio e torcer pra dar certo?

— Exatamente. Mas eu escolheria o comprimido mais caro, é claro, só pra você saber que eu me importo.

Ela deu uma risadinha, afastando um fio de cabelo do rosto.

— Idiota.

Riley gargalhou, o som ecoando no corredor agora vazio.

— Vem, Primrose. — O uso do nome completo dela fez Rose revirar os olhos. — Zoe já está nos esperando no café.

— É claro que está. Zoe nunca estuda?

— Ela decidiu faltar a aula de Escrita Acadêmica para nos agraciar com a sua presença… e alguma fofoca nova.

— Eu me sinto realmente lisonjeada. — Rose suspirou dramaticamente. — Qual será a dessa vez? Ela arranjou uma nova namorada?

Riley fez uma pausa antes de empurrar a porta da cafeteria.

— Pior — Ele baixou a voz. — Dizem que o Williams está sendo investigado pelo departamento.

Rose quase tropeçou nos próprios pés.

— O quê? Por quê?

Mas antes que Riley pudesse responder, uma voz aguda cortou o burburinho do café.

FINALMENTE!

Zoe estava em uma das mesas, acenando fervorosamente para eles. Algumas pessoas ao seu redor a olhavam rindo, ou claramente incomodadas.

— Eu estava aqui há vinte minutos. Vinte minutos. Sozinha. Com apenas um café e tantas, tantas coisas para falar. — Ela apontou para Riley. — Você me deve um croissant de chocolate por isso, Biers.

— Então, faça a fofoca valer a pena, Yorkie.

Zoe sorriu, lenta e deliberadamente, antes de puxar Riley pela camisa e arrastá-lo para a cadeira ao seu lado.

— Oh, meu querido Riley-Bear… — Ela inclinou-se para frente, os olhos brilhando. — Você vai adorar essa.

Antes que ela começasse seu monólogo, Rose interrompeu, chamando a atenção de Riley.

— Ei, você me prometeu uma bebida.

Zoe nem pestanejou, estalando os dedos na direção de Riley.

— Aproveite e traga meu croissant, Biers.

Riley olhou entre as duas, com os braços cruzados.

— Então, deixe-me ver se eu entendi: eu pago, eu sirvo e ainda tenho que ouvir a fofoca depois?

— Sim! — Elas responderam em uníssono.

— Justo. — Ele se levantou com um suspiro exagerado, mas não antes de dar uma leve puxada no rabo de cavalo de Zoe, que revidou com um chute direcionado à sua canela.

Ele gargalhou, virando-se a tempo de deixar um beijo na cabeça de Rose e correr para a fila da cafeteria.

Enquanto Riley se perdia no mar de pessoas, Zoe voltou-se para Rose com um sorriso maroto no rosto.

— Ele tá caidinho por você.

Rose quase engasgou com o próprio ar.

— O quê? Não, ele não está.

— Oh, por favor — Zoe revirou os olhos com força suficiente para ver seu próprio cérebro. — Ele te ajuda com o Williams, carrega sua bolsa, traz o seu chá do jeito horroroso que você gosta e agora isso? — Ela apontou teatralmente para onde Riley estava na fila e depois para a cabeça dela, como se fosse a prova final. — Ele é um cachorrinho perdido, Rose.

— Eu tenho namorado, Zoe.

— Sim, um namorado que está agora a mais de 200 milhas de distância e você mal o vê por causa da faculdade. Quando você foi a última vez que você e o Paul realmente passaram um tempo juntos? Um mês? Dois?

Rose sentiu um nó se formar no estômago. Três meses, na verdade.

Foi no final do último verão. Pre-med não era brincadeira, e Paul sabia disso — mas isso não foi suficiente para aliviar a culpa que a consumia por não conseguir vê-lo como antes.

Então, naquele último dia de julho, antes do caos da faculdade recomeçar, eles combinaram de comemorar o aniversário dela apenas passando horas grudados em seu quarto, assistindo filmes ruins e trocando beijos lentos, como se pudessem armazenar carinho para os meses seguintes.

Paul também não tinha muito tempo livre. Entre o emprego de meio período na loja de construção em Forks e as aulas no Peninsula College, mesmo quando Rose conseguia voltar aos fins de semana, eles ainda mal se viam.

Um almoço rápido no domingo. Uma hora roubada antes dele correr para o trabalho. Era apenas o que eles conseguiam ter juntos.

Eles ainda se falavam todos os dias, é claro. Mensagens rápidas entre aulas, ligações tardias quando Paul saía do trabalho ou quando ela conseguia um tempo livre para falar. 

Mas não era a mesma coisa. Rose sentia falta física dele — do cheiro que grudava em sua roupa no final do dia, do jeito que ele a puxava para um abraço sem aviso, da maneira como a sua pele era tão quente em comparação com a dela.

Especialmente agora, com o relacionamento de Leah e Sam desmoronando cada vez mais, Rose sentia a negatividade respingar nela como chuva ácida. Era horrível pensar assim, mas ela não conseguia evitar. Ela realmente amava Leah, mas ela estava se transformando em uma versão amarga de si mesma, e aquela energia parecia contagiosa.

— Isso não importa. Nós…

— Vocês o quê? Trocam mensagens fofas todos os dias? — Zoe não estava deixando escapar. — Rose, eu te amo, mas você tá vivendo de migalhas.

— É complicado, Zoe.

— A vida é complicada, querida. Isso não é desculpa. — Zoe suspirou, encostando-se na cadeira. — Mas ei, pelo menos você tem um cachorrinho farmacêutico para te distrair.

Rose sentiu o rosto esquentar, mas antes que pudesse responder, Riley voltou, equilibrando duas bebidas e um prato com croissants.

— Alguém pediu café e fofoca?

Zoe pegou seu croissant com um sorriso inocente.

— Oh, obrigada, Riley-Bear. Você é tão precioso, sabia? — Ela deu uma longa olhada para Rose. — Alguma garota teria tanta sorte de te namorar um dia.

Riley engasgou no gole de café.

Rose desejou ainda ter magia para tentar lançar a maldição da morte com um olhar.

— Zoe…

— O quê? — Zoe piscou os olhos para Riley. — Só estou dizendo a verdade, querido.

Riley limpou a boca, corando até as orelhas.

— Yorkie, você não faz o meu tipo.

Zoe deu uma mordida lenta no croissant, os olhos brilhando com pura malícia.

— Me poupe, Riley. — Ela lambeu um fio de chocolate do dedo, deliberadamente. — Da fruta que você gosta eu lambo até o caroço.

Rose travou. Riley congelou.

— Porra, Zoe — Riley cobriu o rosto com as mãos. — Isso foi… gráfico .

— E verdadeiro — Zoe sorriu, satisfeita, e apontou para Rose com o croissant. — Pergunte a ela.

— Não me envolva nisso. — Rose ergueu as mãos. — Eu achei que estávamos aqui para ouvir uma fofoca. Você está perdendo o jeito, Zoe?

Foi o suficiente. Em segundos, ela esqueceu do tópico proibido e começou a falar longamente sobre o professor Williams, o seu possível caso com uma aluna de Enfermagem do último semestre e alguma coisa sobre uma gravidez e demissão.

Rose ficou aliviada com a mudança de assunto, mas não conseguiu parar de pensar nas palavras de Zoe.

Ela deveria se preocupar com o seu relacionamento com Paul? Quer dizer, eles não poderiam ser o primeiro casal do planeta a ter um relacionamento à distância, certo? E nem era tão distante assim, Rose ainda tentava ir para casa todos os finais de semana para ver o tio Charlie e sempre passar em La Push para ficar um tempo com todo mundo, incluindo o seu namorado.

Não era o fim do mundo não ter um tempo livre. Eles não iriam terminar por causa de um pequeno gargalo no relacionamento deles.

Talvez ela estivesse exagerando. Talvez toda essa inquietação fosse reflexo da saudade de casa, da amargura de Leah e do dom de Zoe em sempre plantar sementes de dúvidas com sua língua afiada.

Talvez fosse apenas algo passageiro, que logo se resolveria.

Certo?

— Seu telefone está tocando, Rose — Riley agarrou seu ombro com delicadeza, trazendo-a de volta à realidade. Seus dedos largos se acomodaram no contorno de sua clavícula por um segundo a mais do que o necessário antes de se afastarem.

— Opa, desculpe — Ela murmurou, e olhou para o celular vendo o nome de Leah brilhar na tela. — Certo, eu volto já, pessoal.

Rose se afastou do barulho do café, procurando um canto silencioso para atender a ligação.

Era estranho que Leah estivesse ligando no meio da semana. Com todo o problema com Sam, ela raramente fazia alguma ligação, geralmente apenas na sexta quando sabia que ela estaria a caminho de Forks ou no final de semana, se Rose não tivesse tido tempo de voltar para casa.

— Leah? Tudo bem? Você…

A voz áspera da amiga cortou sua saudação.

Ele terminou comigo.

Rose respirou fundo, sentindo-se perdida.

— Oh, Lee… eu sinto…

Não! — A voz de Leah endureceu, o familiar tom raivoso voltando com força. — Eu não quero a sua pena. Só… você ainda vem esse final de semana, né?

Rose imaginou Leah na outra ponta da linha — os punhos cerrados, o queixo tremendo de raiva, os olhos cheios de dor, mas se recusando a chorar.

— Claro que eu vou. É a última semana de aula antes do feriado. Eu estarei aí por algumas semanas.

Ótimo. — Leah engoliu seco, a voz se fragmentando por um instante antes de se recompor. — Porque eu comprei tequila suficiente para afogar a porra de um cavalo.

Rose sentiu o coração apertar.

— Você tá bem?

Um ruído entre um riso e um soluço ecoou do outro lado.

O que você acha? Eu tô péssima. Nunca me senti pior.

Rose fechou os olhos, a cabeça descansando na parede da cafeteria.

— Ele te disse alguma coisa?

Só… só alguma besteira sobre o problema ser ele e não eu. — Leah imitou a voz de Sam com um desprezo que queimava. — Qual é? Ele viu alguma comédia romântica barata e decidiu repetir as falas mais clichês de término?

Rose suspirou profundamente, sem realmente saber o que dizer.

— Eu chego no sábado de manhã. — Ela prometeu, os dedos apertando o telefone. — E a gente vai beber até esquecer da cara feia do Sam.

Leah soltou um som que quase poderia ser uma risada.

Te vejo no sábado, então.

A ligação caiu, deixando Rose sozinha com o eco da dor da sua melhor amiga e uma pergunta que não parava de crescer em sua mente:

Se Sam e Leah, que cresceram e estudaram juntos e se amavam tanto, não conseguiram manter o seu relacionamento, então que esperança restava para ela e Paul?

 

*

 

Zoe parou suavemente em frente à casa de Rose no sábado de manhã.

Rose ainda não se sentia confiante ao volante — dirigir sempre a deixava tensa, mesmo depois de tanto tempo. E, embora ela já estivesse na faculdade, nunca havia comprado um carro novo depois do acidente. Por isso, sempre que precisava voltar para Forks, ela dependia do ônibus ou, na maioria das vezes, das caronas que Zoe oferecia.

A despedida foi rápida — Zoe nunca foi uma pessoa matinal, e aquela saída antes do amanhecer de Seattle a deixou como um zumbi. Rose mal teve tempo de murmurar um "até logo" antes que Zoe, ainda sonolenta, respondesse com um grunhido e um abraço meio desengonçado. Quando a porta do carro bateu, Rose já corria em direção à casa, com os flocos de neve derretendo em seus cabelos.

Lá dentro, o calor aconchegante da casa e o cheiro de molho de tomate a receberam.

— Cheguei, tio Charlie.

Tio Charlie a recebeu calorosamente, como sempre, e Rose finalmente suspirou, sentindo-se em casa.

— Sue deixou aquele macarrão que você adora — Ele resmungou, mexendo um prato no micro-ondas. — Disse que não queria você voltando para casa e almoçando cereal de novo.

Rose riu divertida.

— Graças a Deus! — Exclamou, fingindo um desmaio contra o balcão. — Eu estava realmente com medo de ter que enfrentar a culinária de Charlie Swan.

— Ei, garota, respeite os mais velhos.

Ele agarrou um pano de prato próximo e jogou em sua direção, mas Rose já estava em movimento, desaparecendo pela escada, enquanto o pano atingia o degrau onde ela estivera segundos antes.

No quarto, ainda sorrindo, Rose começou a desempacotar suas roupas quando seu olhar caiu novamente no celular silencioso. Seu humor se dissipou imediatamente.

Ela apertou os lábios, sentando-se na beirada da cama com uma camiseta ainda dobrada nas mãos. Rose tinha planejado seu sábado tão cuidadosamente — primeiro encontraria Paul, e depois passaria na casa de Leah.

Mas ele não a respondia há dois dias, e ela estava cada vez mais preocupada conforme as horas passavam sem resposta.

O sábado escorregou devagar. Rose almoçou com tio Charlie na sala, enquanto viam uma partida de baseball juntos, ajudou a lavar a louça enquanto ele secava, organizou seus trabalhos da faculdade — qualquer coisa para ocupar as suas mãos e distrair a mente daquele silêncio doloroso.

E, mesmo depois de horas, o telefone permanecia mudo.

Finalmente, quando ela estava pronta para pular na viatura de tio Charlie e se forçar a dirigir até La Push, seu celular vibrou.

O seu coração acelerou — e então desabou.

“Desculpe pela demora, Rose, eu estou doente. Fique bem.”

Era tudo.

Nenhum apelido carinhoso, nenhuma tentativa de prolongar a conversa, nenhuma explicação real.

Rose ficou parada, os dedos tremendo levemente, enquanto relia a mensagem várias vezes até as palavras perderem o sentido. Sua mente acelerou, pulando de possibilidade em possibilidade. E se ele estivesse mentindo? E se fosse isso que Zoe queria dizer com migalhas? E se ela estivesse certa?

Um nó se formou em sua garganta. Ela fechou os olhos por um instante, respirando fundo. Quando os abriu novamente, a mensagem ainda estava lá, inalterada.

Talvez ela estivesse apenas sendo paranóica. Rose não podia culpar Paul por adoecer. Talvez ele só quisesse descansar e dormir para se recuperar, e não ficar digitando longas explicações.

Era isso. Rose não precisava se preocupar tanto.

E então, ela enterrou todas as dúvidas no fundo do peito, como quem esconde um segredo. Vestiu o primeiro casaco que encontrou e pegou um ônibus até La Push.

E então, ela passou o dia com Leah, oferecendo seu ombro para ela chorar, compartilhando uma tequila, bebendo direto da boca da garrafa, e inventando os piores, mais criativos e cruéis xingamentos para Sam.

E então, sentaram-se juntas no chão do quarto de Leah, entre as roupas espalhadas e revistas velhas, pintaram as unhas, cada uma com uma cor berrante, e inventando tatuagens nos braços com canetinha colorida; corações raivosos, caveiras sorridentes e frases em latim que eram, em sua maioria, feitiços que Rose não havia esquecido, enquanto a televisão cuspa luzes coloridas, com algum clipe pop tocando ao fundo.

E então, ela deixou que todas suas inseguranças, dúvidas e medos fossem afogados na segunda garrafa de um licor de amarula que elas encontraram escondido nos fundos do armário da cozinha. Era uma coisa velha e empoeirada, com gosto de chocolate, leite azedo e cachaça, que ardia em seus olhos e ferrava a sua garganta, mas pelo menos fazia elas esquecerem.

Elas continuaram assim por horas. Não — por dias.

E elas riram juntas.

Até a garganta doer.

Até Leah começar a chorar.

Até Rose parar de olhar para o celular constantemente.

E Paul não respondeu mais nenhuma vez.

Chapter 14: QUATORZE

Chapter Text

La Push, WA

2000

Leah jogou uma garrafa de tequila vazia no chão com um baque surdo, virando-se para Rose com os olhos vermelhos, mas focados.

— Tudo bem. Chega disso.

Rose ergueu lentamente a cabeça do travesseiro onde estava aninhada. Seus cachos estavam embaraçados de um lado do rosto.

— O quê?

— Isso já tá durando tempo demais. Você está sendo muito deprimida. — Leah esfregou os olhos com os nós dos dedos. — E chata. — Uma pausa. — E isso vindo de mim, que sou naturalmente deprimida e chata.

Rose jogou o travesseiro nela, mas faltou força.

— Ah, cala a boca, Leah.

— Se você quer tanto saber o porquê o idiota do Paul não responde as suas mensagens, por que você não vai na casa dele? — Ela apontou para a janela, onde a chuva fina batia contra o vidro. — Ele mora há 10 minutos daqui.

Rose mordeu o lábio inferior até ficar branco.

— Sim, mas… sei lá, se ele quisesse falar comigo, ele teria me dito, certo?

Leah soltou um riso amargo que terminou em tosse.

— Qual foi a desculpa da última vez?

— É sempre a mesma coisa. Ele estava doente, estava trabalhando demais, estava cansado…

Leah se inclinou para frente, com os cotovelos nos joelhos.

— E você só vai saber se isso tudo é verdade se for atrás dele.

Rose encolheu os ombros como se tentasse desaparecer dentro do seu moletom grande demais.

— Eu tenho medo de me decepcionar.

— Você pode se decepcionar agora e ter tempo para superar isso, ou passar o resto dos seus dias se perguntando o que ele está fazendo.

O silêncio se instalou enquanto Rose olhava para as próprias mãos, encarando suas unhas roídas — um hábito que ela adquiriu depois de dias se sentindo ansiosa com o silêncio de Paul.

— Você acha que ele vai terminar comigo?

Leah engoliu uma resposta ácida.

— Eu não sei, Rose…

Rose não aceitou essa resposta. Ela a encarou então, realmente encarou, e viu a verdade escondida nos cantos tensos da boca de Leah.

— Você acha que ele está fazendo a mesma coisa que o Sam fez com você, né?

— Pode ser que não. — Leah forçou as palavras para fora. — O Paul não é o Sam — Mentira. — E não seria justo eu julgá-lo como tal. — Mentira. — Talvez ele realmente esteja cansado e trabalhando demais. — Mentira. Mentira. Mentira.

Rose sabia. Ela viu a contração quase imperceptível nos dedos de Leah, o tremor na mandíbula cerrada, a sombra que passou por trás de seus olhos antes que pudesse disfarçar. Mas nenhuma delas disse nada.

Nenhuma delas mencionou como Sam também disse que estava doente e desapareceu por dias, mantendo Leah à distância com mensagens curtas e evasivas.

Assim como Paul.

Nenhuma delas lembrou em voz alta como Sam também deu desculpas, também disse que estava trabalhando demais, que não tinha tempo ou que era só uma fase. Até que as palavras perderam o sentido, esvaziadas da verdade.

Assim como Paul.

Nenhuma delas falou como, no fim, Sam havia se tornado um estranho. Como ele evitava tocar Leah, como seus beijos tinham virado fantasmas e, como, num dia comum qualquer, ele a olhou longamente nos olhos e dissera algo sobre “não conseguir mais fazer isso” , como se estivesse cancelando um plano banal, e não destruindo um coração.

Assim como Paul poderia estar fazendo agora.

— Certo, bem, eu vou lá, então.

Rose engoliu em seco, o coração batendo acelerado de medo no peito. 

Mas ela foi.

Ela caminhou em silêncio pela estrada de cascalho até a casa de Paul, as pedras rangendo sob seus passos, enquanto ela lutava contra a vontade de virar as costas e voltar para o quarto de Leah.

A casa de Paul não era um lugar que eles costumavam ir com frequência. As paredes fediam a mofo e cerveja azeda, e o sofá da sala — onde o Sr. Lahote sempre desmaiava bêbado — tinha muitas manchas que ela preferia não tentar decifrar.

Ela só estivera ali poucas vezes, sempre de passagem, sempre com Paul a puxando para longe, para um lugar que fosse mais tranquilo, com ar puro, com menos fantasmas.

E ainda assim, a casa parecia ainda estranha e distante agora do que nunca.

As cortinas estavam fechadas, a grama estava irregular, alta demais, e o silêncio estava tão espesso que Rose quase podia ouvir seu próprio coração batendo acelerado contra o peito.

Rose parou diante da porta, a mão pairando sobre a maçaneta enferrujada. Ela respirou e bateu.

A porta se abriu minutos depois, e um homem alto, magro e desengonçado apareceu diante dela, arrastando os passos preguiçosamente, a camisa manchada colada ao peito, os olhos vidrados percorrendo o corpo dela com desdém.

Rose sentiu um calafrio.

— Ah, oi, Sr. Lahote. O Paul está em casa?

— Ah, olha só, mais uma. — Ele arrastou as palavras com dificuldade. — O inútil do meu filho tá colecionando vagabundas agora, né?

Rose apertou as mãos em punhos, cravando a ponta dos dedos na palma.

— Eu… sou Primrose Potter. A namorada dele.

Os lábios dele se curvaram em um sorriso repulsivo.

— Namorada? Essa é a nova.

Ela travou o maxilar, sentindo as lágrimas queimando atrás dos olhos e o sangue congelando em suas veias.

— O senhor poderia me dizer se Paul está em casa?

— Ele não está. Ele não para em casa. — Ele riu, mostrando os dentes manchados. — Provavelmente procurando uma nova vagabunda para brincar. Pelo menos você é gostosa.

Ela sentiu o estômago embrulhar, mas forçou a voz a não tremer.

— Ele volta logo, senhor?

O homem deu de ombros, virando as costas e deixando a porta completamente aberta.

— Eu não sei, garota. Mas se quiser esperar, a sala é sua.

Ela não respondeu. Apenas recuou, sentindo o chão balançar sob seus pés.

— Obrigada, senhor, mas não precisa.

Rose não perdeu tempo, ela praticamente correu de volta para a estrada de cascalho. As lágrimas transbordaram de seus olhos, suas mãos tremendo, enquanto ela ardia de tristeza, de raiva, de desespero.

Ela não aguentava mais isso. Ela precisava de respostas.

Rose arrancou o telefone do bolso do casaco e ligou para Paul mais uma vez. Para a sua surpresa, Paul atendeu no segundo toque.

O quê?

— Eu estava na sua casa. Fui atrás de você.

Ele ficou em silêncio por alguns segundos, a respiração forte contra o telefone.

O que você quer, Rose?

— Sério? — A risada que escapou de Rose era ácida. — Depois de semanas em silêncio, é isso que você diz, Paul? O que eu quero?

Olha, Rose, também não é pra tanto…

Rose não aguentou isso, ela apertou o telefone até doer, quase gritando.

— O que você acha que eu quero, porra?

Ele ficou em silêncio novamente, suspirando profundamente como se ela fosse um grande incômodo.

Eu não sei, Rose.

— O que tá acontecendo, Paul? Você não é assim…

Você não sabe de nada, Rose. Você não sabe como eu sou. — Não era a voz que Rose estava acostumada. Não era gentil. Era áspera, como um grunhido animalesco.

— Então, me explica! — Ela implorou, as lágrimas queimando em suas bochechas. — Porque eu não entendo. Há poucos meses você disse que me amava, e agora você age como se eu fosse uma estranha.

Ele respirou fundo.

Eu não posso, Rose.

— Como assim você não pode, Paul? Você pode ou não quer?

Eu não posso, porra. — Ele gritou.

Rose pulou assustada, o telefone quase caindo de suas mãos.

— Paul…

Olha, acho que isso não está dando certo.

— O quê?

Eu não consigo mais. — A voz dele estava cansada, mas firme. — Não é você, tá? Sou eu. Eu não tenho tempo, não tenho cabeça pra isso agora.

— Isso é mentira. — Ela sacudiu a cabeça, mesmo sabendo que ele não podia vê-la. — Você está mentindo. Você sempre arrumava tempo.

Não era real, Rose. — Ele soltou um som baixo, quase um riso amargo. — Nós não podemos ficar juntos. Eu estava me enganando. E estava te enganando também.

Silêncio. Ela sentiu o seu estômago afundar até seus pés.

— Então, foi tudo mentira?

Ele não respondeu imediatamente. Quando falou, a voz estava mais suave, mas ainda final.

Adeus, Prim.

E antes que ela pudesse responder, antes que pudesse gritar, implorar ou xingar…

A linha morreu.

E Rose ficou ali, parada na estrada de cascalho, sob a chuva fina que lavava as suas lágrimas, com o telefone mudo na mão e o coração partido em mil pedaços.

 

*

 

O que fazer com um coração partido?

Talvez arrancá-lo do peito e guardar em um pote de formol, deixá-lo na prateleira mais distante e empoeirada da sala e observá-lo aos poucos murchar, encolher, até virar apenas uma lembrança seca e inofensiva. Até parar de doer.

Ou então costurá-lo à mão, com linha grossa e agulha cega, ignorando o sangue que escorre pelos seus dedos. Afinal de contas, quem precisa de sutura delicada quando se pode ter cicatrizes visíveis, brutais. As provas irrefutáveis de que você sobreviveu, mesmo que mal.

Há quem prefira jogá-lo fora, é claro. Despejá-lo na calçada como um sofá velho, esperando que o lixeiro recolha e jogue-o em algum aterro sanitário reservado para corações maltratados.

Mas os corações são teimosos. Insistem em bater mesmo quando estão partidos, em lembrar mesmo quando foram feridos, em pular com lembranças mesmo quando foram abandonados.

Você pode enterrá-lo, vendê-lo, afogá-lo com álcool ou distração — mas um dia, no meio da noite, ele vai sussurrar para você.

Vai te encher de lembranças de dedos entrelaçados, peitos quentes, lábios rachados, bocas sorridentes, risadas altas. Lembranças de pés descalços na areia da praia, mergulhos no mar gelado, dias preguiçosos na cama, peles arrepiadas e corações acelerados.

Ele vai te lembrar de promessas sussurradas, ligações até de madrugada, palavras que pareciam eternas e juras de amor.

E então, ele vai te machucar.

Ele vai te encher de lembranças de silêncios dolorosos, olhares desencontrados, de frustrações que ardiam a garganta e da raiva que doía como um soco no estômago.

Ele vai te lembrar o porquê dói, o porquê você chora quando vê uma torta de maçã e o porquê agora você odeia piqueniques, caminhadas na florestas e músicas de rock.

E ele também vai te lembrar do inevitável fim.

E você não pode fazer nada, exceto observar seu coração permanecer pulsando dentro do peito, lembrando você de que seu corpo ainda está vivo — mesmo que preferisse estar morto.

E a sua única alternativa será carregá-lo.

Até ele parar de sangrar.

Até as feridas cicatrizarem.

Até o dia em que, quem sabe, ele esteja pronto para bater por alguém de novo.

 

*

 

Seattle, WA

2000

Rose não tentou fingir que estava tudo bem.

Ela não queria vestir sorrisos falsos, e engolir as suas lágrimas como se fosse um veneno. Ela queria deixar a sua dor exposta, sangrando à vista de quem quisesse ver — crua, feia, mas real.

Ela queria chorar até secar, até que o sal lavasse toda a angústia para fora do seu corpo. Gritar até ficar rouca, até que a sua voz se partisse e só restasse os ecos da sua raiva, batendo furiosamente nas paredes do seu quarto. Queria pensar, e remoer, e afundar na miséria, até alcançar o fundo do poço, até encontrar uma resposta, mesmo que a resposta fosse aceitar que não havia nenhuma.

Porque ela sabia que essas dores não poderiam ser consertadas com distração. Ela sabia que a agonia a faria sofrer, mas pelo menos ela estava enfrentando, nadando na dor até encontrar o alívio do outro lado.

Mas estava tudo bem.

Rose não esperava alívio imediato. Ela sabia que até mesmo arrancar o coração para fora do peito não tornaria tudo mais fácil.

Então, ela seguiu.

No começo foi difícil. Ela voltou para a faculdade desolada, triste e carente. Riley e Zoe passavam mais tempo em seu dormitório do que fazendo qualquer outra coisa.

Ela arrancou todas as fotos com Paul das paredes, todos os presentes e camisas dele e queimou em uma fogueira no estacionamento da faculdade, enquanto chorava no ombro de Riley.

Nos dias mais difíceis, ela chorava ao telefone com Leah.

Nos dias um pouco mais fáceis, era Leah quem chorava no telefone com ela.

Ela parou de ir a Forks nos fim de semana.

Tio Charlie ficou magoado, ela sabia. Mas seria temporário. Ela precisava se curar primeiro. Aprender a existir sem Paul, sem aquele peso constante na sua nuca, sem a sensação de que ele sempre estava tão perto e tão longe ao mesmo tempo.

Então, Leah começou a visitá-la em Seattle.

Elas exploravam Pike Place Market juntas, viam as esculturas de vidro coloridas do Chihuly Garden and Glass, tomavam cerveja juntas no Freemont Brewery usando identidades falsas ou comiam ostras no Taylor Shellfish Farms.

Às vezes elas conheciam pessoas novas sob nomes falsos. Um dia Primrose virou January e Leah virou April, enquanto elas fingiam que eram irmãs adotivas de um casal hippie que costumava morar em uma van e explorar o mundo.

Naquele dia elas riram alto demais, beberam rápido demais e beijaram estranhos em um bar à meia noite.

Então, elas fizeram isso outras vezes. Tornando-se Willow, Meadow, Skye, Aurora, Sage, River, Blossom, e gargalhando até faltar o ar.

Era frágil, falso.

Mas pela primeira vez em meses, doía menos.

E então, quando o semestre acabou, Rose estava pronta para passar o verão em Forks.

Chapter 15: QUINZE

Chapter Text

La Push, WA

2000

Elas estavam na praia novamente.

Por algum milagre, aquele verão estava sendo generoso. O sol brilhava sem piedade, o mar estava calmo, e a areia até queimava um pouco sob seus pés descalços. Era fácil fazer alguma analogia boba sobre o sol depois da tempestade, a luz depois da escuridão.

Rose e Leah estavam bem. 

Talvez não perfeitas, provavelmente nunca estariam, mas elas estavam bem. Elas já conseguiam rir sem precisar de álcool para isso, conseguiam olhar no espelho sem ver fantasmas, conseguiam respirar sem sentir o peso de certos nomes que elas preferiam ainda não dizer em voz alta.

Mas elas estavam bem.

E, por enquanto, isso era o suficiente, porque aquele verão estava sendo o melhor que elas já tiveram em meses.

Tio Charlie ficou em êxtase quando ela voltou para casa depois de 6 meses longe de Forks, e quase a esmagou em um abraço como se ela ainda fosse aquela menina de 14 anos, com cachos bagunçados e joelhos nodosos, que ele precisava proteger.

Tio Sue e tio Harry também estavam felizes em ver Leah e Rose voltarem a sorrir, e a agradeceram efusivamente por estar lá pela filha deles, por tê-la trazido de volta — ela apenas balançou a cabeça, porque a verdade era que Leah a trouxera de volta também.

E até o tio Billy e Jake pareciam aliviados. Jake, agora um adolescente de 13 anos, estava quase da altura dela — algo que Rose notou com um susto quando ele veio abraçá-la. Ela não precisou se abaixar como antes, quando ele ainda era apenas um bebê e trazia carrinhos de brinquedo para o seu colo.

— Caramba, Jake, você tá quase me empurrando pra baixo agora.

Ele sorriu, meio sem jeito.

— Logo eu passo de você, Primmy.

O apelido escorregou naturalmente, e Rose revirou os olhos, mas não pôde evitar um sorriso. Ainda haviam algumas coisas que não mudaram, e ela estava feliz por isso.

Mais do que feliz, ela estava bem.

Então, agora elas estavam na praia.

Desta vez, Leah e Rose sentaram em um tronco como nos velhos tempos, afundando os dedos dos pés na areia úmida, enquanto Jake, Embry, Quil e Seth pulavam no mar como um bando de cachorrinhos animados.

— Como você está se sentindo agora com 21 anos? — Rose perguntou, balançando os pés descalços.

Leah ergueu o queixo e abriu um sorriso com um ar de vitória.

— Como se eu, finalmente, pudesse comprar a nossa bebida sem uma identidade falsa com um nome ridículo como April.

Rose bufou.

— Do que você tá reclamando? Foi você que escolheu.

— Você escolheu January. — Leah revirou os olhos. — Eu deveria ser a sua irmã, fazia sentido escolher April.

Rose deu uma cotovelada nela, uma gargalhada escapando de seus lábios.

— Não fazia o menor sentido, Leah.

Leah cruzou os braços, desafiadora.

— E que tipo de nome é January, afinal?

— Um nome que um casal de hippies colocaria na sua filha, obviamente.

— Ah, sim, claro — Leah debochou. — A irmã mais nova seria February?

— Cala a boca, April Green — Rose cuspiu, rindo. — Pelo menos meu nome não parecia marca de shampoo orgânico.

Do mar, onde os meninos observavam a discussão, Jake gritou:

— Vocês duas são muito estranhas!

Elas viraram para ele simultaneamente e gritaram de volta:

— Cala a boca, Jacob!

Elas se entreolharam por um segundo em silêncio, e começaram a rir como loucas.

E então, a risada de Leah congelou no ar, quando ela parou subitamente, seus olhos fixos em algo atrás de Rose.

— Leah? — Rose sussurrou, confusa, antes de se virar.

Não muito longe dali, um grupo caminhava juntos à beira mar, iluminados pelo sol poente. Rose teve que apertar os olhos contra a luz para enxergar quem eram, até que ela percebeu.

Paul, um outro cara que ela nunca viu antes e Sam.

Mas foi a quarta pessoa que fez o estômago de Rose afundar: Emily Young, a prima de Leah, agarrada ao braço de Sam com uma intimidade que não dava espaço para perguntas.

O ar saiu dos pulmões de Rose como se ela tivesse levado um soco, como se tivesse acontecendo com ela. Porque ela sabia, antes mesmo de ver Leah, que isso iria despedaçá-la. Ela sabia, pelo modo como a mão de sua amiga se fechou na areia como uma garra, as unhas arranhando a superfície, que talvez ela não se recuperaria desse baque.

— Leah… — Ela tentou, mas as palavras morreram quando viu o brilho úmido nos olhos da amiga.

Do mar, os meninos ainda gritavam, alheios. O contraste era cruel - a felicidade barulhenta deles contra o silêncio doloroso que caíra sobre as duas.

Sam olhou para frente então. E a viu.

O sorriso dele morreu. Emily segurou seu braço com mais força. Paul, seguindo seus olhares, congelou no lugar.

Leah levantou tão rápido que o tronco tremeu. Rose a seguiu instintivamente, sem saber o que dizer. Não havia palavras para isso. Apenas a dor crua de ver Sam parado ali, com outra mulher — não qualquer mulher, mas a sua prima —, enquanto Leah…

Leah já estava correndo.

Avançando como um furacão direto para Sam e Emily.

— Samuel Uley, seu filho da puta!

A voz de Leah ecoou na praia. Os meninos no mar pararam de brincar, virando-se de repente, prontos para sair da água e correr em direção à confusão.

Sam arregalou os olhos, pronto para intervir.

— Leah, espera…

— Cala a boca! — Ela chegou tão perto que Emily recuou, mas Leah nem olhou para ela. — Toda essa meda de “não é você, sou eu”, e no fim você estava enfiando a língua na garganta da minha prima?

— Por favor, Lee, você não entende... — Emily tentou falar, mas Leah finalmente girou para ela, o rosto distorcido por uma raiva que Rose nunca tinha visto.

— Por que você não me explica então, Emmy? — Ela cuspiu o apelido como se fosse veneno.

— Eu não posso, Leah… Você não entenderia...

— Eu entendo… Eu entendo que você é apenas uma vadiazinha traiçoeira. Que ele é um mentiroso e um covarde. Isso eu entendo perfeitamente.

Emily tremia, as palavras saindo entre soluços.

— Eu não queria que você descobrisse assim… Não era para ter sido assim… Eu não posso dizer…

— Por quanto tempo você me viu chorar por ele, hein? Quantas vezes você me abraçou e disse que ele não merecia alguém como eu? E agora você tá com ele? Sua vadiazinha.

— Não, Lee… Nós não planejamos isso, aconteceu…

Leah deu uma risada afiada, cruel.

— Ah, claro. Porque beijar o ex-namorado da sua prima é tipo tropeçar e cair de boca nele, né? Que conveniente, Emily.

O rosto de Sam endureceu, enquanto ela tentava se aproximar e intervir novamente, mas Leah apenas cuspiu no chão perto dos pés dele.

— Leah, chega. A culpa é minha, não dela.

— Oh, não se preocupe, Samuel. — Leah rosnou. — Eu sei que a culpa é sua também. Você acha que eu esqueci do que você fez comigo? Me ignorar? Me descartar como se eu fosse lixo?

Ela olhou para Emily de novo, os lábios arreganhados em um sorriso sem humor.

— Mas agora eu sei o porquê. — Ela deu um passo à frente, a voz baixa e venenosa. — É porque você é uma puta oportunista e traidora, Emily. Nem esperou o nosso relacionamento terminar direito, antes de pular no pau dele, né?

Emily empalideceu, os lábios tremendo.

— Sinto muito, sinto muito… Não foi assim, Leah…

E então, quando Rose achou que ela ia bater neles, Leah deu um passo atrás. Seu peito subia e descia rápido, os punhos tremendo.

— Mas parabéns, viu? — Ela riu, um som amargo e partido. — Agora vocês são perfeitos um pro outro. Dois mentirosos, dois falsos. Que se fodam.

E antes que alguém respondesse, Leah se virou e saiu pisando duro, deixando Sam pálido, Emily em lágrimas e Rose ali, parada, com o coração batendo forte.

Ela não sabia o que fazer. Provavelmente era uma péssima ideia seguir Leah agora quando ela estava com tanta raiva.

Rose sentiu uma mão no seu ombro quando Jake se aproximou.

— Você vem, Primmy?

— Sim, claro, Jake.

Rose não olhou novamente para nenhum deles, apenas se virou pronta para ir embora. Mas a voz suplicante de Emily a fez parar.

— Rose, espera.

Ela se virou. Emily estava ali, o rosto manchado de lágrimas, as mãos apertadas contra o peito como se tentasse segurar o próprio coração antes que ele se partisse de vez.

— Você pode falar com ela? Por favor.

— Eu não acho que ela vai me ouvir…

— Eu sei que ela não quer me ver ou ouvir falar de mim agora — Emily interrompeu, a voz um fio frágil. — Mas você… você é a única que ela ainda escuta.

Jake, ao lado de Rose, cruzou os braços, seu rosto impassível, mas os olhos revelavam uma centelha de impaciência.

— Primmy, vamos. Ela não vai resolver isso agora.

Emily ignorou-o, os olhos suplicantes fixos em Rose.

— Eu preciso que ela entenda. Eu nunca quis magoá-la, nunca quis que fosse assim.

Ela começou a chorar novamente, o rosto contorcido de dor. Rose observou quando Sam tentou se aproximar, mas Emily ergueu uma mão impedindo-o.

Rose não disse nada, mas isso não impediu que Emily continuasse.

— Por favor. Diga a ela que eu… que eu não tive escolha. — Sua voz se partiu. — Eu não planejei isso. Eu só… aconteceu, eu me apaixonei, e não consegui evitar. E agora eu preciso que ela me perdoe, porque eu não aguento viver sabendo que ela me odeia.

Rose observou-a, a frustração crescendo dentro dela, enquanto encarava Emily que ainda estava ali, trêmula, comovente em sua dor — mas tão profundamente egoísta mesmo em seu desespero. Sempre ela. Sempre suas necessidades, suas dores.

Como se Leah não fosse a pior vítima aqui, dilacerada pela traição de duas pessoas que ela amava, sem saber os motivos para isso, porque nenhum deles teve a coragem de olhar nos olhos dela e dizer a verdade. Nenhum deles quis explicar o porquê.

E então restava apenas deduzir que o problema era ela.

Que Leah é que não era boa o suficiente. Que não merecia ser escolhida. Que havia algo intrinsecamente errado nela, algo que fez Sam fugir direto para os braços de sua prima, algo tão horrendo que fez Emily — sua própria família — esfaqueá-la pelas costas sem hesitar.

Rose sentiu o gosto amargo da injustiça na sua língua.

Emily estava ali, implorando por perdão, por alívio, como Leah lhe devesse algum tipo de absolvição. Como se, depois de arrancar o coração dela, Leah ainda tivesse a obrigação de ser madura e confortá-la.

— Por que você acha que isso é sobre você? — A voz de Rose saiu mais cortante do que deveria.

Emily arregalou os olhos, como se a pergunta fosse um golpe, como se ela nunca tivesse parado para se questionar sobre isso.

— Eu só…

— Não. — Rose interrompeu, erguendo uma mão. — Você quer que Leah te perdoe para aliviar a sua culpa e permitir que você faça o que está fazendo sem peso na consciência? Ou você procura perdão porque realmente se sente mal pela sua prima?

Emily recuou como se tivesse sido queimada.

— Você acha que eu não sei que magoei ela? — Seu pranto se tornou mais agudo, quase histérico. — Eu me odeio por isso todos os dias! Mas eu não posso mudar o que senti, o que aconteceu…

— Então, lide com isso. — Rose interrompeu novamente. — Aguente o peso do que você fez, sem exigir que Leah alivie isso pra você.

— Mas ela deveria…

— Não, Emily. — Rose suspirou cansada. — Ela não deveria fazer nada. Ela está triste e magoada. Ela não te deve nada. Você fez as suas próprias escolhas e precisa aguentar. Leah não tem obrigação de perdoar você ou te dar a benção que você está procurando.

— Mas ela é a minha família! — Emily gritou, as lágrimas escorrendo sem controle pelo rosto. — Como eu vou viver sabendo que destruí isso?

Rose olhou para ela com exasperação.

— Do mesmo jeito que Leah tem vivido até agora achando que não era boa o suficiente. E do jeito que ela vai viver a partir de agora sabendo que o homem que ela amava preferiu a prima dela, em vez dela.

Emily engasgou, como se cada palavra fosse um soco no estômago.

— Eu não acho que você seja uma pessoa má, Emily. — Rose continuou, a voz mais suave. — Mas se você não quer explicar o que está acontecendo, então você não pode exigir que ela entenda.

— Eu sei... — Emily murmurou entre soluços, as mãos tremendo.

— Vocês já tiraram muito dela. Por favor, não tire também o direito dela de sentir raiva.

Emily abriu a boca para responder, mas nenhum som saiu. Seus ombros afundaram, como se o peso daquela verdade a esmagasse por completo.

Seus olhos, ainda cheios de lágrimas, encontraram os de Sam por um instante — e então, sem aviso, ela se virou e saiu correndo pela praia, deixando para trás apenas a marca de seus passos na areia. Sam não hesitou em segui-la, nem sequer se dando o trabalho de se despedir de Rose.

Rose observou o grupo pela última vez, uma tristeza profunda afundando seu coração. Seu olhar então voou para Paul, que durante todo o conflito permaneceu imóvel e silencioso, seus traços tão inexpressivos quanto uma estátua.

Ele não parecia mais o Paul que ela conheceu. Estava mais alto, mais largo, mais bravo. Os seus músculos tensos sob a camiseta, os cabelos cortados rentes ao couro cabeludo — tudo nele parecia ter sido lapidado para se tornar mais duro, mais impenetrável.

Rose sabia que ele não era a alma mais gentil, ele tinha problemas de raiva antes mesmo de conhecê-la. Mas agora ele parecia uma pessoa completamente diferente, mais bruta.

— Paul...? — Ela tentou, a voz quase um sussurro.

Ele não se moveu, nem sequer fez um esforço para encará-la.

— Vá embora, Rose. — Suas palavras caíram como uma lâmina. — Ninguém quer você aqui também.

Por um momento, ela ficou paralisada, esperando que doesse. Esperando que aquela rejeição final despertasse nela a mesma dor dilacerante de antes, aquele aperto no peito que a fazia sentir que estava se afogando em terra firme.

Mas a única coisa que encontrou foi resignação.

Era estranho como o coração podia se acostumar até mesmo com a perda. Como os dias de dor, choro e distância havia, pouco a pouco, arrancado as raízes que ainda existiam entre eles. Se em algum momento ela havia nutrido a esperança de que seu relacionamento com Paul pudesse brotar novamente das cinzas…

Essa esperança morreu sem fazer barulho.

Não houve lágrimas. Não houve gritos. Apenas o silêncio vazio de quem finalmente entende que algumas histórias não têm reviravoltas, não têm finais felizes.

Apenas finais.

Rose respirou fundo, sentindo o ar salgado encher seus pulmões. E quando soltou o ar, foi como se soltasse também o último fio que a prendia àquela ilusão.

Paul não era mais dela.

Jake tocou levemente no ombro de Rose, um sinal de que era hora de ir.

E ela se foi sem olhar para trás.

Chapter 16: DEZESSEIS

Chapter Text

— Tudo bem, chega de tristeza.

Leah esfregou os olhos com força, os punhos cerrados contra as pálpebras.

— Eu não estou chorando de tristeza. É ódio. — Sua voz saiu rouca, carregada de veneno. — Eu queria matar aqueles dois com as minhas próprias mãos.

Rose deitou na cama de Leah para olhá-la nos olhos.

— Bem, seja o que for, eles não merecem as suas lágrimas.

Leah abriu espaço na cama, enquanto soltava um riso amargo.

— Por que você está tão bem, afinal? — Seus olhos vermelhos fixaram-se em Rose. — O Paul foi um babaca com você.

Rose encolheu os ombros.

— Bem, ele adoraria que eu passasse o resto dos meus dias sofrendo por ele, né? Mas eu não quero mais fazer isso. Eu estou cansada de sofrer pelo Paul, quando claramente ele não se importa. Então, eu superei.

Leah bufou, revirando os olhos.

— É, claro.

Rose sentou-se na cama, desta vez encarando a amiga com seriedade.

— Leah, eu sei que isso tudo isso é uma merda, mas olha o caminho que a gente percorreu até agora. Não deixe que eles te arrastem para baixo de novo, por favor.

Leah fechou os olhos por um momento, a respiração ainda pesada.

— E o que eu deveria fazer, então? — Ela abriu os olhos novamente, o olhar desafiador. — Voltar para First Beach e ficar assistindo os dois pombinhos se lambendo?

— Não… nós deveríamos cortar o cabelo.

Leah piscou, surpresa.

— O quê?

— Sim. Um corte novo. — Rose pegou uma mecha do cabelo comprido de Leah, examinando-o com ar pensativo. — Algo que faça você se sentir renovada, poderosa. Leah 2.0. Uma nova mulher.

Leah arqueou uma sobrancelha, os lábios se curvando em um misto de incredulidade e curiosidade.

— Você bebeu?

— Ainda não. Talvez depois do corte de cabelo?

Por um segundo, Leah pareceu hesitar — e então, lentamente, um sorriso igualmente malicioso começou a se formar em seu rosto.

— Bem, na verdade… — Ela puxou o cabelo para o lado, expondo a linha da mandíbula e a curva elegante da orelha. — Eu sempre quis cortar bem curto aqui, tipo assim. — Sua mão desenhou uma linha imaginária logo abaixo da orelha. — Mas o Sam… Bem, ele sempre preferiu mulheres de cabelo comprido.

Rose gargalhou, o som vibrante ecoando pelo quarto.

— Ótimo, então está decidido.

Leah sentou na cama em um pulo, cruzando os braços e estudando Rose com um olhar desafiador.

— E você? — Seu dedo apontou para os longos cachos ruivos de Rose. — Vai ficar aí toda empoderada me convencendo a mudar, enquanto mantém esse cabelo de Rapunzel?

Rose levou as mãos aos próprios cabelos, os dedos se enrolando nos fios que desciam em cascata até sua cintura. 

— Esses cachos sobreviveram a uma maldição da morte, um Lorde das Trevas e um ex-namorado idiota. — Ela disse, a voz cheia de falso drama. — Eles têm status de veterano.

Leah bufou.

— Isso é medo que eu ouço, Potter?

— Claro que não! Tudo bem, vamos lá. — Ela ergueu as mãos em sinal de rendição. — Mas eu quero aquilo chique que chamam de 'long bob’, sabe, curto, elegante, e que parece caro.

Leah esfregou as mãos com um entusiasmo que beirava o maníaco, e Rose sentiu um frio na espinha — como se tivesse, inadvertidamente, vendido a sua alma ao próprio Satanás.

Antes que pudesse reconsiderar, uma tesoura apareceu magicamente das profundezas de uma gaveta. Em um piscar de olhos, Rose já estava encurralada em uma cadeira, com Leah à sua frente, brandindo a tesoura no ar e fazendo movimentos ziguezagueantes perigosamente perto de suas orelhas.

— Leah Clearwater, se você me deixar careca—!

— Relaxa, eu vi um tutorial em uma revista uma vez!

UMA REVISTA?

— Shhh, silêncio. Artista trabalhando aqui.

E então, o primeiro snip ecoou pelo quarto.

Um pedaço generoso de cabelo ruivo caiu no colo de Rose, que olhou para ele com horror crescente.

— Isso foi mais da metade do meu cabelo, Leah.

— Detalhes!

Leah já estava imersa no processo, língua presa entre os dentes enquanto cortava mais cabelos com uma concentração assustadora.

Rose olhou para o espelho e empalideceu. Um lado estava visivelmente mais curto que o outro.

— LEAH. — Ela agarrou os pulsos da amiga, paralisando a próxima investida assassina. — Um lado está mais curto que o outro!

Leah piscou, avaliando o seu trabalho.

— Eu posso corrigir.

— Ah, meu Deus. Eu vou matar você.

— Ah, cala a boca, Rose. Isso cresce.

— Você vai falar isso de novo se eu cortar a sua cabeça fora?

— Que drama desnecessário. Olha só.

E Rose olhou.

Piscou.

…Estava bom.

Um pouco torto nas laterais, sim, mas parecia muito bom, moderno — como aqueles cortes caros de revista que pareciam ter sido feitos por alguém bêbado, mas custavam uma fortuna. Ela mexeu nos fios, que caíam leves e soltos, sem o peso de antes.

— Estou esperando meu obrigada.

— Vai pro inferno, Leah. — Rose revirou os olhos, mas então seus lábios se curvaram em um sorriso. — Obrigada.

Leah bateu no ombro dela, triunfante.

— De nada. Ficaria ainda melhor se você pintasse de roxo.

NÃO, LEAH!

 

*

 

No final das contas — especialmente depois que Rose também tentou cortar o cabelo de Leah —, elas tiveram que pegar o carro de Leah e dirigir até Port Angeles à procura de um salão de beleza que pudesse consertar o dano.

No final das contas, ficou melhor do que elas esperavam. Rose agora ostentava um long bob dos sonhos e Leah optou por um corte curtíssimo, deixando a nuca de fora e acentuando cada curva de seu rosto. Elas se sentiam lindas pra caramba, na verdade.

Faltava apenas mais uma coisa antes que elas finalizassem essa crise dos 20 anos: roupas novas.

Não muito longe do salão de beleza, Rose e Leah encontraram um shopping e, duas horas depois, parecia que elas haviam redescoberto a própria confiança.

Rose encarou o próprio reflexo no provador da loja e quase não se reconheceu usando aquela roupa — o vestido preto era simples, mas bem cortado e com uma fenda lateral tão ousada que teria feito a versão de si mesma de uma semana atrás corar.

O tecido caía perfeitamente sobre seu corpo, destacando cada curva que antes ela escondia sob roupas bastante conservadoras.

Ela girou na frente do espelho, meio incrédula.

— Eu pareço…

— Uma deusa vingativa? — Leah completou, aparecendo atrás dela com seu novo visual.

Quer dizer, visual era pouco para aquilo.

Leah havia optado por um conjunto de couro preto — calça justa e um top decotado que deixava pouco para a imaginação. O contraste com seu novo corte de cabelo era mortal.

— E você parece uma vilã de cinema. — Rose riu, divertida.

— Exatamente o efeito que eu queria.

Quando finalmente saíram do shopping, a noite já havia caído sobre Port Angeles. As luzes refletiam sobre seus sorrisos largos, enquanto elas caminhavam juntas, rindo o tempo todo, e atraindo olhares em todas as esquinas.

— E agora? — Leah apoiou o quadril no seu carro, seus novos anéis de metal batendo na lataria. — Vamos voltar para La Push só pra provar que somos independentes ou sei lá o quê?

Rose mordeu os lábios, pensativa.

— Eu conheço um bar três ruas daqui que não pede identidade…

— Você tá sugerindo que a gente termine nossa noite bêbadas e com ressaca moral? Que filme de romance clichê você anda assistindo? Eu conheço esse combo de corte de cabelo, banho de loja e drinks com nomes duvidosos.

Rose bufou. Seu celular vibrou no exato momento. Quando leu a mensagem, um sorriso lento surgiu em seu rosto.

— Na verdade, novo plano. — Ela anunciou. — Riley nos convidou para uma festa em Seattle.

Leah ergueu uma sobrancelha.

— Seattle não está há, tipo, 3 horas de distância daqui?

— Duas horas e meia se a gente for pela WA-3. — Rose interrompeu, já abrindo a porta do passageiro. — Duas horas se você acelerar.

Leah soltou uma risada, já sentando no banco do motorista e ajustando o seu cinto de segurança.

— Bora lá, então. — Ela pisou no acelerador com determinação. — Esse Riley… não seria aquele gatinho de Farmacologia que é muito afim de você?

Rose apertou os lábios, os dedos brincando nervosamente com a barra do seu vestido novo.

— Sim… é ele.

— E ele sempre costuma ir a essas festas nos verões, certo? — Leah continuou, os olhos fixos na estrada, mas o sorriso crescendo a cada palavra.

— Sim…

— E ele sempre convida você, mas só agora você aceitou… — Leah cantarolou, fingindo interesse súbito pela paisagem noturna.

Rose virou bruscamente no carro, os olhos estreitando.

— Onde você quer chegar, Leah?

— Ah, nada… — Ela disse no tom mais inocente que conseguiu. — É que você está solteira há alguns meses…

Rose cruzou os braços, sentindo o calor subir pelo pescoço.

— Não começa.

— E você está disponível… E esse Riley também… — Continuou Leah, como se estivesse apenas comentando o clima.

— Leah, nós somos apenas amigos.

— Ele é bem bonito, na verdade, você não acha?

Rose virou o rosto para a janela, tentando esconder o sorriso teimoso que insistia em aparecer.

— Você é tão insuportável.

— E você tá tão vermelha! — Leah gritou, apontando para o rosto da amiga. — Olha só! Você tá gata pra caralho. Cabelo novo, roupa nova e disponível. Por que você não aproveita?

— Eu te odeio tanto.

— Mentira. — Leah acelerou, satisfeita. — Você me ama. E sabe que eu tô certa.

— Leah, sério, nós somos amigos. Eu não vou estragar isso.

— Certo, se você diz. — Leah soltou um suspiro dramático, os dedos batendo no volante. — Então, que tal finalmente ficar com outra pessoa?

— Como assim? Eu já fiquei com outras pessoas.

— Sim, você beijou dois ou três caras quando a gente mentia nossos nomes. — Leah fez um gesto vago com a mão. — Não é isso que eu quero dizer.

— E o que você quer dizer?

— Encontre uma nova pessoa como você mesma . Apenas Rose, sabe? Em vez de esconder sob o nome January ou alguma outra coisa ridícula que você gosta de inventar.

— Eu não acho que a resposta esteja em encontrar outra pessoa.

Leah bufou com desdém.

— Por favor, claro que não. Eu tô falando de curtir a sua liberdade sem se esconder, não de conseguir um novo namorado.

Rose ficou quieta por um momento, observando as luzes da estrada passarem.

Ela sabia que Leah estava certa. Ela só queria, mesmo que por algumas horas, ser alguém que não fosse a Rose que Paul havia deixado para trás. Alguém que não tinha tido o coração quebrado, e que podia se entregar à paixão fugaz sem medo de se machucar de novo.

Era mais fácil ser corajosa quando se fingia ser outra pessoa. Foi exatamente por causa de seu nome que ela fugiu do Torneio Tribruxo, afinal de contas.

Mas com o seu nome verdadeiro era outra história. Primrose Potter carregava histórias demais, dores demais. Esse nome vinha com cicatrizes que doíam ao toque, com memórias e pensamentos que a faziam hesitar antes de se entregar.

Talvez fosse a hora de enfrentar a realidade de que ela nunca poderia fugir de si mesma.

— Certo, eu faço isso se você fizer a mesma coisa.

Leah riu.

— O quê?

— Você ouviu. Se eu tenho que sair da minha zona de conforto, você também precisa. Nada de procurar apenas caras altos, com cabelo liso e preto, olhos castanhos ou exatamente a cara do Sam, como se…

— Ok, eu entendi. — Leah acelerou bruscamente, cortando o assunto. — Eu faço isso.

— Excelente. — Rose deu uma risadinha, relaxando no banco.

Leah bufou, mas não discutiu.

Elas passaram a próxima hora ouvindo o rádio e cantando juntas, enquanto o carro seguia pela estrada e todo o drama ficava para trás.

Mais cedo ou mais tarde, ambas sabiam que teriam que encarar o que estavam evitando.

Mas por enquanto… uma noite de festa em Seattle era um bom começo.

 

*

 

O carro estacionou em frente uma grande casa, com luzes piscando e música alta ecoando pelas janelas.

Riley já esperava por elas na entrada, apoiado no portão de entrada, com uma garrafa de cerveja pendurada nos dedos. Seu fôlego escapou ruidosamente no instante em que os faróis iluminaram Rose descendo do carro. A garrafa quase escorregou de sua mão quando seu queixo caiu, os olhos arregalados como se tivesse levado um soco no estômago.

Leah, caminhando logo atrás de Rose, soltou um suspiro exagerado.

— Amigos, é claro … — Ela murmurou, antes de passar por eles com um cumprimento casual para Riley, que nem sequer pareceu notar sua existência, e desaparecer dentro da casa.

Rose sentiu o calor subir pelo pescoço, mas manteve a postura, os lábios se curvando em um sorriso lento.

— Oi, Riley.

Ele engoliu em seco, os dedos apertando inconscientemente o gargalo da garrafa de cerveja.

— Rose… — A voz dele saiu mais rouca do que o normal. — Você tá… caramba, você tá linda. Você cortou o cabelo…

— É, bem, eu e Leah queríamos mudar. Então, cortamos o cabelo e compramos algumas roupas novas também. — Ela ajustou a posição, deixando a fenda do vestido revelar um pouco mais de perna.

O som que escapou da garganta de Riley foi quase um gemido estrangulado.

— Porra — Ele esfregou o rosto com uma mão, como se precisasse se recompor. — Você sempre foi a mulher mais linda que eu já vi, mas isso aqui… deveria ser ilegal.

Rose soltou uma risadinha, envergonhada.

— VAMOS, ROSE! — A voz estridente de Leah ecoou de longe, interrompendo o momento. Ela estava pendurada em uma das janelas, uma garrafa de cerveja já na mão. — Vocês podem ficar se olhando como dois idiotas apaixonados depois!

Rose finalmente pareceu notar que estava encarando Riley por tempo demais, e corou levemente, enquanto Riley estendia a mão em sua direção.

— Vamos lá?

Rose apertou a mão dele com força, sentindo o calor da pele dele contra a sua, enquanto eram engolidos pelo turbilhão dentro da casa. O impacto foi quase físico — a música tocava alto, fazendo o seu peito vibrar, os corpos se esfregavam sem cerimônia no espaço mínimo entre eles e uma mistura sufocante de perfumes, suor e cerveja derramada parecia se espalhar pelo ar.

Luzes estroboscópicas cortavam a escuridão em intervalos brutais, congelando cenas em flashes desconexos — um casal se beijando contra a parede, um grupo de garotas rindo com copos transbordando, um grupo de garotos apostando quem conseguia beber mais cerveja por uma mangueira, e Leah, já no meio da pista de dança, com os braços erguidos como se estivesse em transe.

Riley puxou Rose pela cintura, sua boca quase tocando seu ouvido para ser ouvido.

— Tá tudo bem?

Ela sentiu o arrepio antes mesmo de processar as palavras, o sopro quente dele contra sua pele mais eficaz que qualquer bebida para deixá-la embriagada. Em resposta, Rose apenas assentiu com um sorriso brilhante e se deixou levar pelo fluxo, seu corpo começando a se mover instintivamente com a música, puxando Riley pelas mãos para dançar com ela, deixando a energia elétrica encher ainda mais o ar entre eles.

Rose mal percebeu quando a primeira garrafa virou a segunda, e a segunda se transformou na terceira. As cervejas apareciam em suas mãos como por magia, como se essa fosse apenas mais uma festa na Sala Comunal da Grifinória — um desconhecido de boné enfiando uma garrafa em seus dedos aqui, uma garota de piercing no nariz brindando com ela ali. Todos a tratavam como uma velha amiga, e ela, com o álcool aquecendo suas veias, retribuía com sorrisos largos e abraços desajeitados.

Em algum momento, Zoe apareceu em um furacão de franjas douradas e cachos bagunçados, arrastando-a para uma coreografia que claramente acabara de ser inventada ali mesmo. Rose mal teve tempo de entender antes que seus próprios braços fossem guiados em movimentos exagerados, seu quadril balançando sem cerimônia ao ritmo da música, batendo ocasionalmente contra o de uma desconhecida com glitter no rosto, enquanto ela e Zoe deixavam-se levar entre risadas e gritos animados.

O salão girava suavemente em seu campo de visão, as luzes piscantes criando rastros coloridos no ar, a batida pulsando em suas costelas. Entre flashes de movimento, Riley aparecia e desaparecia na multidão, seu sorriso malicioso iluminado brevemente pelos holofotes, sempre observando-a.

Em algum lugar entre o quarto e o quinto shot de tequila — que Leah apareceu do nada e enfiou em suas mãos —, Riley a estava girando na pista de dança, suas costas coladas contra o peito dele, suas mãos firmes em seus quadris, seus corpos balançando juntos no mesmo ritmo — Rose percebeu, então, que não gostava mais de fingir ser outra pessoa.

Ela gostava de ser ela. Só ela. Apenas Rose.

Ela podia aproveitar isso.

— Ainda consegue acompanhar? — Riley falou contra seu ouvido.

Rose sentiu um arrepio percorrer a sua espinha, mas respondeu com um movimento deliberado dos quadris, sentindo-o prender a respiração.

— Eu mal comecei. — Ela retrucou, sorrindo pelo ombro.

A mão dele desceu mais baixo em seu quadril, puxando-a ainda mais atrás.

— Prove. — Ele desafiou.

A música explodia em seus tímpanos, a batida acelerada ecoando direto em seu esterno. Cada pulsação da música era apenas mais uma desculpa para pressionar-se contra Riley, seu corpo encontrando o ritmo dele.

Ela arqueou as costas, fazendo seu vestido deslizar perigosamente para cima, revelando mais pele das suas coxas. Quando esfregou-se contra ele dessa vez, sentiu os músculos de Riley endurecerem sob sua camisa, suas mãos apertando com mais força.

Rose jogou a cabeça para trás, seus cabelos roçando no pescoço dele, e riu — um som rouco que fez Riley inclinar-se para capturá-lo com seus próprios lábios. Mas ela se virou no último segundo, deixando-o beijar apenas o ar.

Ele rosnou de frustração, seus lábios, em vez disso, raspando entre seu pescoço e ombro.

Rose riu mais alto ainda, envolvendo-se novamente em sua dança, fazendo os dois perderem o fôlego. E então, num movimento rápido, ela se virou.

De repente, eles estavam cara a cara.

Riley a puxou ainda mais perto, sua mão na base de suas costas, os olhos escuros queimando-a com intensidade.

— Eu quero muito te beijar agora. — Ele confessou, a voz em um sussurro.

Rose segurou o olhar dele, determinada.

— Por que você não faz isso?

E ele não precisou de mais convite.

Quando seus lábios finalmente se encontraram, a música, a festa e todos os problemas dos últimos meses — tudo desapareceu.

E então, todo o resto foi um borrão.

Os momentos se embaralharam em sua mente — o gosto de cerveja nos lábios de Riley, as mãos dele na sua cintura, um beijo apaixonado em um corredor apertado, a música alta demais, o chão balançando um pouco quando tentou focar os pés. Tequila queimando a sua garganta quando Leah forçou mais um shot nela. Riley puxando ela para mais um beijo no meio da multidão, o cheiro do suor dele misturado com perfume.

De repente, a música ficou distante, abafada, como se ela tivesse mergulhado a cabeça na água. Ela lembrava do banco do carro de Riley, seus lábios ardendo com beijos apaixonados, as mãos dele subindo pela fenda do vestido, descobrindo a pele nua da coxa, um som abafado de gemido.

De repente, já não havia mais música, apenas o som de respirações aceleradas ecoando em um quarto escuro. Suas costas contra uma porta, o vestido deslizando para cima, mãos quentes percorrendo seu corpo com urgência, elogios sussurrados contra a pele da sua mandíbula, do seu pescoço, da sua clavícula, da curva do seu seio.

De repente, havia apenas fragmentos de calor e pele, o peso do corpo dele, o sabor salgado do seu corpo suado, lábios a devorando, mãos desesperadas se agarrando, arranhando, puxando, movimentos frenéticos e descoordenados, gemidos altos.

E, em meio a algum momento de lucidez, Rose só conseguia pensar: o que ela estava fazendo?

Chapter 17: DEZESSETE

Chapter Text

O despertador não tocou. Em vez disso, foi uma facada pulsante atrás dos olhos que arrastou Rose de volta à consciência. Ela gemeu, virando o rosto contra o travesseiro, tentando escapar da luz que insistia em furar suas pálpebras mesmo fechadas.

Em vez de alívio, o movimento brusco fez sua cabeça girar e seu estômago se revirar.

Rose engoliu em seco, a língua grudando contra o céu da boca. O gosto de tequila e morte ainda queimava em sua garganta, um lembrete bastante cruel de cada shot que ela aceitou na noite passada.

Quando finalmente conseguiu abrir os olhos, a visão turva revelou uma bagunça completa: roupas espalhadas, uma garrafa de cerveja vazia e o cheiro inconfundível de suor e sexo que impregnava o ar.

Ela começou a se mover lentamente, tentando escorregar para fora da cama. Mas seu corpo traiu-a — o mundo inclinou violentamente, e seus pés descalços encontraram o chão gelado como um choque de realidade.

Ela se deitou novamente, sem conseguir se levantar sem cair de cara no chão.

Foi então que ouviu.

Um suspiro pesado atrás dela.

O som de lençóis se movendo.

— Já vai fugir?

Ela enterrou o rosto no travesseiro com um gemido que veio direto da sua alma.

— Não, só tô morrendo.

Riley deu uma risada baixa, o som fazendo latejar sua têmpora como um tambor. Ele se apoiou no cotovelo, os músculos do peito tensionados sob a pele pálida, os dedos traçando um caminho preguiçoso nas costas nuas dela.

— Bem, você bebeu feito um marinheiro ontem.

— Nunca mais, Riley. — Ela ergueu um dedo trêmulo, como se jurasse solenemente. — Nunca mais vou beber.

Ele soltou um "hmm" cético, os dedos agora brincando com uma mecha rebelde do seu cabelo.

— É, todo mundo diz isso.

Rose revirou os olhos — erro fatal. O movimento fez o mundo girar violentamente, e ela agarrou a cama com os dedos trêmulos.

— Você é um monstro sem coração. — Ela murmurou, a voz abafada pelo travesseiro. — Como diabos você pode estar tão bem? Eu vi você bebendo também.

Riley inclinou-se, o hálito quente tocando a nuca dela quando sussurrou.

— Eu adoro uma boa prática.

O arrepio que percorreu a espinha dela não tinha nada a ver com a ressaca. Riley riu, baixo e satisfeito, ao sentir o corpo dela responder.

— Eu vou buscar água e um remédio pra você.

Foi só quando ele se afastou que Rose percebeu: ambos ainda estavam nus.

Riley vestiu a cueca e a calça jogada no chão com movimentos despreocupados. Ele saiu do quarto sem camisa, deixando Rose sozinha com seus pensamentos — e com a imagem chocantemente sexy dos músculos das suas costas.

Aproveitando a ausência dele, Rose pegou a primeira camisa de Riley que encontrou e vestiu às pressas. O tecido mal alcançava a metade de suas coxas, mas pelo menos cobria o essencial.

Quando Riley voltou, dois copos d'água e comprimidos na mão, seus olhos escureceram ao vê-la envolta em sua roupa.

— Ficou bem melhor em você do que em mim.

Rose bebeu a água avidamente, evitando seu olhar. Ele a observou o tempo todo, o movimento de sua garganta, o modo como seus dedos tremiam levemente ao redor do copo, como ela respirou aliviada depois de engolir os dois copos d’água.

— Então… o quanto você tá arrependida?

Rose olhou para cima apenas para ver Riley sentado em uma poltrona. Ele parecia visivelmente tenso, os olhos fixos em algum ponto no chão, os dedos entrelaçados com força enquanto evitava olhar para ela.

Ela não se lembrava de tudo da noite passada, mas não significava que ela fez alguma coisa contra a sua vontade ou somente por causa do álcool. Rose estava bem ciente do que estava fazendo, ou ela realmente não teria participado tão ativamente.

— Eu não me arrependo.

Ele ergueu os olhos rapidamente, surpreso.

— Tem certeza. Talvez você estivesse muito bêbada ou eu tenha pressionado você demais…

— Riley! — Ela cortou seu raciocínio com um olhar firme. — Eu bebi muito, sim. Mas eu não estava inconsciente, eu lembro de tudo. Bem, a maior parte… A parte principal eu lembro. E não me arrependo.

Riley pareceu parar de respirar por um segundo. Seus olhos percorreram o rosto dela, procurando qualquer sinal de dúvida.

— Você tem certe…

— Sim, eu tenho certeza. — Ela continuou, erguendo-se da cama. A camisa dele subiu um pouco mais em suas coxas, mas ela não se importou. — Ontem à noite, eu quis você. Muito.

Riley respirou fundo, as mãos se abrindo e fechando à sua frente.

— Eu sei que você terminou seu namoro há pouco tempo. Se você não estiver pronta, Rose…

Rose fechou a distância entre eles em dois passos, pegando seu rosto entre as mãos.

— Eu fiquei com o coração partido, você sabe disso. — Ela admitiu, a voz mais suave agora. — Mas isso já faz meses, Riley. Eu acho que está na hora de eu parar de ignorar a felicidade que está bem na minha frente.

Riley prendeu a respiração. Seus olhos percorreram cada centímetro de seu rosto, como se estivesse memorizando o momento.

— Você não tem ideia de quanto tempo eu esperei ouvir isso.

Antes que Rose pudesse responder, Riley levantou-se em um pulo. Mãos grandes envolveram as suas coxas nuas sob a camisa e, num piscar de olhos, ela estava sendo levantada no ar e depositada sobre a cama com um cuidado que contrastava com a urgência nos olhos dele.

— Riley…

O protesto se perdeu quando seu corpo cobriu o dela, os lábios se encontrando em um beijo feroz. Seus dedos se enterraram nos cabelos dele, puxando-o ainda mais perto enquanto Riley murmurava "finalmente" contra sua boca entre um beijo e outro.

Quando se separaram, Riley a encarou com intensidade.

— Você quer mesmo isso?

A voz dele estava carregada de uma vulnerabilidade que fez seu coração acelerar. Rose ergueu a mão para acariciar sua mandíbula, sentindo a tensão nos músculos dele.

— Eu quero.

Ele prendeu a respiração, como se não acreditasse no que estava ouvindo.

— O que te fez mudar de ideia? Quer dizer, eu tenho dado em cima de você há meses.

Rose sorriu, um pouco sem graça.

— Eu sei. Mas eu realmente não estava pronta para nada disso.

— E agora você está?

— Eu não tenho certeza de nada. — Ela admitiu, olhando diretamente em seus olhos. — Mas eu gostaria de dar uma chance a isso. O que você acha disso?

A expressão de Riley se transformou completamente — seus olhos brilharam, seus lábios curvaram em um sorriso que iluminou todo o seu rosto. Ele baixou a cabeça para encostar sua testa na dela.

— Eu acho perfeito. Você não vai se arrepender, Rose. Eu vou fazer valer cada segundo.

E então ele a beijou novamente, desta vez com uma doçura que a fez derreter contra os lençóis. E então Riley surpreendeu-a ao rolar para o lado, deitando-se de costas com um suspiro.

— Nós fizemos tudo errado.

Rose ergueu-se num cotovelo, os cabelos ruivos desgrenhados em torno do rosto.

— O quê?

Riley virou a cabeça para encará-la.

— Eu quero fazer as coisas do jeito certo. — Ele sentou-se na cama, passando a mão pelo rosto. — Quero levar você em um encontro num restaurante chique. Te entregar flores que combinem com seu cabelo. Segurar sua mão enquanto caminhamos lado a lado depois do jantar. Te dar um beijo de despedida na porta do seu dormitório. E então, só então, pedir pra você ser minha namorada.

Rose sentiu algo quente se expandir em seu peito. Observou o perfil dele — a mandíbula tensionada, as mãos inquietas — e percebeu que o sempre confiante Riley Biers estava nervoso.

— Você sabe que não precisamos…

— Eu preciso. — Ele interrompeu gentilmente. — Porque você merece mais do que uma noite bêbada e uma ressaca, Rose. Você merece alguém que mostre que você é importante.

Rose ficou sem palavras. Riley aproveitou o silêncio para continuar, seu polegar agora acariciando os nós dos dedos dela.

— Então hoje à noite, às oito, eu vou te buscar. Vamos naquele francês que você sempre quis ir em Capitol Hill. Vou te presentear com rosas vermelhas. E no final da noite... — Ele inclinou-se, seus lábios pairando a centímetros dos dela. — Você me diz se realmente quer que isso seja oficial.

O coração de Rose batia tão forte que ela temia que ele pudesse ouvir.

— E se eu disser a resposta agora? — Ela provocou, fechando a distância entre eles.

Riley riu, o som vibrante contra seus lábios.

— Paciência, Potter. A esperança vai fazer o beijo de boa noite valer o dobro.

Ele a beijou novamente.

O beijo deles terminou com um suspiro compartilhado, seus lábios se separando lentamente, como se nenhum dos dois quisesse realmente parar. Riley tinha os dedos enterrados nos cabelos de Rose, quando ela se afastou com um sorriso trêmulo.

— Eu devia ir. — Ela murmurou.

— Fica. — A voz dele saiu mais áspera do que pretendia. — Só... mais um pouco.

Rose riu baixinho.

— Se eu ficar mais um pouco, não vou conseguir ir embora.

— Exatamente o ponto. — Ele retrucou, puxando-a de volta para outro beijo rápido.

Mas Rose colocou as mãos em seu peito, afastando-se com determinação.

— Oito em ponto, Biers. — Ela se levantou da cama, tirando a camisa dele e revelando seu corpo nu sem vergonha. — E não se atrase.

Riley observou, hipnotizado, enquanto ela recolhia suas roupas do chão e desaparecia no banheiro.

Quando saiu, vestida e com os cabelos levemente arrumados, ele ainda estava exatamente onde ela o deixara — sentado na cama, os olhos ardentes seguindo cada um de seus movimentos.

— Você está esquecendo algo. — Ele lembrou, segurando sua bolsa que estava no chão.

Rose se aproximou para pegar, mas Riley usou a alça para puxá-la de volta, selando seus lábios com um último beijo que deixou os dois sem ar.

— Trapaceiro. — Ela acusou, tentando não sorrir.

— Apenas um adiantamento. — Ele corrigiu, soltando-a relutantemente. — Agora vai, antes que eu mude de ideia sobre fazer as coisas do jeito certo.

Ela saiu do quarto com uma risada, fechando a porta antes que ele decidisse prendê-la na cama.

Sozinho no quarto, Riley caiu de costas na cama, esfregando o rosto com as mãos. O cheiro dela ainda impregnava os lençóis.

Oito horas nunca pareceu tão longe.

 

*

 

Rose empurrou a porta do dormitório, ainda com os lábios formigando do último beijo de Riley. A cena que encontrou a fez parar abruptamente.

Leah estava deitada sobre a escrivaninha, o rosto colado à madeira como se tentasse se fundir com o móvel. Seu cabelo parecia um ninho de pássaro e ela vestia a mesma roupa do dia anterior, só que mais amarrotada.

— Leah... — Rose aproximou-se com cuidado, balançando o ombro da amiga. — Leah? LEAH!

— Ah, o quê?! — Leah ergueu a cabeça, revelando os olhos vermelhos e uma marca de tecido estampada em sua bochecha. — Finalmente você tá aqui, porra!

— Você dormiu aqui?

O rosto de Leah ficou vermelho instantaneamente.

— Er… mais ou menos?

Rose estreitou os olhos, a suspeita inundando sua mente.

— Onde você dormiu, então?

Leah murmurou algo inaudível, enterrando o rosto nas mãos.

— Hã? Não entendi.

— EU DORMI COM A ZOE, OK?! — Leah explodiu, antes de encolher-se novamente. — Zoe Yorkie. Sua amiga Zoe.

Rose ficou paralisada por um segundo. Depois, seus lábios começaram a tremer.

— Puta merda. — Ela caiu na cama, rindo. — Quando eu disse para você procurar alguém diferente do Sam, eu não queria dizer tão literalmente.

Leah atirou um papel amassado nela.

— Ah, vai à merda! Você tá... tá brava?

— Brava? Por que eu estaria?

— Bem, ela é sua amiga, e eu não falei nada... Código das amigas e tal?

Rose bufou.

— Leah, eu nunca namorei a Zoe. Esse código só vale pra ex-namorados.

— Oh. — Leah piscou. — Então... tá tudo bem?

— Melhor que tudo bem. — Rose caminhando até uma pequena geladeira no canto do quarto, os olhos brilhando de curiosidade. — E então? Como foi?

Leah cobriu o rosto com as mãos novamente, mas Rose não perdeu o sorriso bobo que escapou.

— Foi incrível. — Sua voz saiu abafada. — Eu descobri coisas sobre meu corpo que nem sabia que existiam.

Uau. — Rose arqueou as sobrancelhas. — E vocês vão se ver de novo?

— Ah, não. Foi só uma noite mesmo. — Ela encolheu os ombros. — Foi legal, mas acho que não sou lésbica.

— Bissexual, talvez? — Rose sugeriu, pegando uma garrafa d'água.

Leah ficou quieta por um momento, depois deu um sorrisinho tímido.

— Talvez.

Rose jogou a garrafa para ela, que a pegou com reflexos surpreendentes para alguém de ressaca.

— Bem, seja o que for, eu quero todos os detalhes.

Leah, porém, ergueu um dedo acusador.

— Epa, calma aí. Você não estava aqui também. — Ela apontou para Rose, depois para a cama vazia. — Onde você dormiu, hein?

Rose mordeu o lábio inferior, tentando — e falhando miseravelmente — disfarçar um sorriso, enquanto se sentava em sua cama.

— Com o Riley.

Leah explodiu da cadeira como se tivesse sido eletrocutada.

— Eu sabia, porra! Vocês transaram? Por favor, me diga que vocês transaram. Por favor, por favor, por…

— Nós transamos.

— Isso aí! — Leah berrou, batendo as mãos na mesa com força suficiente para fazer a garrafa d’água pular. — Finalmente você tirou essas teias de aranha da sua…

Rose jogou uma almofada diretamente no rosto da amiga, mas não conseguiu conter o sorriso bobo que insistia em aparecer.

— Cala a boca, Leah.

Ignorando o pedido, Leah se jogou na cama ao lado dela, os olhos cheios de curiosidade maliciosa.

— E então? — Ela cutucou o lado de Rose. — Como foi?

— Ótimo! Ele me convidou pra um encontro.

— Sério? E aquela história de “somos amigos”, “eu não quero nenhum namorado”.

— Bem, sei lá, Riley é um cara legal, sabe? — Ela sorriu, olhando para as mãos. — Eu só quero dar uma chance, sabe? Ver onde isso pode dar.

Leah ficou em silêncio por um longo segundo, os olhos observando atentamente o rosto de Rose.

— Caramba.

— É… — Ela respirou fundo. — Bom, chega disso. Nós temos um encontro às 20h e eu ainda gostaria de passar em Forks para o tio Charlie ver que eu ainda estou viva e depois voltar para Seattle.

Elas dirigiram de volta para Forks com o corpo ainda sofrendo dos efeitos da ressaca, mas nunca se sentiram tão felizes.

Era bom ser jovem e despreocupada pelo menos uma vez na vida. Era bom ser livre — para sair, rir, simplesmente existir sem o peso dos problemas que estavam acumulados em La Push. Por uma noite, elas haviam sido apenas duas garotas quaisquer, vivendo sem pensar no amanhã.

Leah esticou o braço para fora da janela, deixando o vento brincar entre seus dedos.

— A gente devia fazer isso mais vezes.

— O quê? Ficar bêbada e transar com outras pessoas?

— Isso — Leah concordou, rindo. — Mas principalmente... isso aqui, sabe? Viver. Eu acho que coloca as coisas em perspectiva. Eu não preciso colocar todas as minhas expectativas em cima do… em cima de alguém.

Havia essa leveza na voz de Leah — algo que Rose não ouvira desde que Sam terminou com ela.

Rose sorriu feliz, sentindo o calor do sol da manhã em seu rosto.

— É. — Ela concordou suavemente — A gente devia mesmo.

O carro seguiu adiante, levando-as de volta para casa — mas, pela primeira vez em muito tempo, Rose não sentia aquela familiar tensão no peito ao pensar em Forks. Porque agora, ela tinha algo para esperar. Algo bom.

E às oito em ponto, ela sabia exatamente onde estaria.

 

*

 

Rose estava em seu dormitório novamente às 20h em ponto.

Riley apareceu exatamente como combinado. Vestido com esmero — uma bela calça e uma camisa branca que destacava seus músculos — e segurando um buquê de rosas vermelhas.

Ele a beijou febrilmente quando se encontraram, como se não se vissem há dias, um sorriso feliz em seus lábios que ele exibia desde que Rose confessou naquela manhã que estava disposta a dar uma chance para eles, o que fez o coração de Rose disparar em seu peito, uma bolha de felicidade percorrendo seu corpo.

Ele a levou até o restaurante combinado, abriu a porta e estendeu a mão como o cavalheiro que era. A noite estava clara e estrelada, e eles caminharam juntos, chegando ao restaurante incrivelmente chique.

As portas estavam abertas, deixando o som suave de um piano tocando lá dentro ecoar para o lado de fora, mesas com toalhas brancas estavam espalhadas pelo lugar, velas acesas em cada mesa. A decoração era de um tom de madeira e todos os garçons estavam usando trajes formais.

Riley os acompanhou até a entrada, onde um anfitrião estava esperando, anotando os nomes das reservas e mostrando as mesas aos clientes. Eles foram levados ao andar de cima, com as luzes fracas, contra a grande janela que lhes dava uma vista perfeita de Seattle.

Eles jantaram lado a lado, indo contra qualquer regra absurda de etiqueta, a julgar pelos olhares dos outros casais, e dividiram a comida, risos e olhares, enquanto tomavam uma garrafa de vinho e sussurravam no ouvido um do outro.

Rose sentia seu corpo flutuar sempre que Riley a olhava com olhos afetuosos, fazendo seu coração bater mais rápido e seu rosto esquentar.

Quando as sobremesas chegaram, eles roubaram pedaços um do outro, os dedos se encontrando ocasionalmente, os sorrisos se misturando. Era tão casualmente romântico que Rose não acreditava que aquilo fosse real.

Quando o jantar chegou ao fim, Rose estava com as bochechas rosadas, uma onda de sentimentos se revirando em seu estômago de quão completamente encantador Riley tinha sido a noite toda.

Em vez de ir embora, eles decidiram caminhar sem pressa pelas ruas de Capitol Hill. A cidade parecia pulsar naquela noite — a arte brilhava por todos os lados, os murais coloridos, os grafites, os músicos de rua.

Eles absorveram tudo, enquanto compartilhavam um sorvete, rindo de qualquer bobagem, conversando sobre seus sonhos, suas vidas, e sobre as coisas pequenas que só fazem sentido quando você divide com outra pessoa.

E, entre um passo e outro, as suas mãos se entrelaçaram mais forte, os beijos foram roubados a cada esquina e a noite parecia não ter pressa de acabar.

Até que alguém esbarrou em Rose.

— Peço desculpas, minha senhora. — Um homem murmurou, caminhando apressadamente na outra direção. Rose ergueu os olhos, um "sem problema" pronto na ponta da língua, mas as palavras morreram em sua garganta.

O desconhecido vestia uma túnica longa e escura, de tecido pesado e corte antiquado.

Um bruxo.

Seu sangue pareceu gelar nas veias. Com um esforço quase sobre-humano, ela manteve a expressão serena enquanto Riley se distraía com um dos artistas de rua. Mas seus olhos perseguiram a figura estranha até vê-lo subir uma calçada — e desaparecer direto através da parede ao lado da livraria que ficava escondida entre as árvores da esquina.

Ela observou por mais alguns instantes, notando que algumas pessoas entravam e saiam da parede — alguns com vestes discretas, outros ostentando chapéus pontudos e capas esvoaçantes com passos apressados. Foi então que seus olhos captaram uma pequena placa dourada no topo da entrada escondida, cintilando sob a luz dos postes: Travessa Encantada.

O seu coração acelerou. Aquilo era como um Beco Diagonal, talvez? Um restaurante bruxo? Um bairro mágico? Seus pés coçaram para correr até lá e investigar, mas com Riley junto era impossível e ela ainda não estava pronta para falar sobre essa parte da sua vida para ele.

O aperto firme de Riley arrancou Rose de seus pensamentos.

— Você tá bem? — Sua voz carregava uma preocupação doce, os olhos escaneando seu rosto. — Eu estava te chamando.

Rose piscou, forçando um sorriso rápido.

— Ah, desculpe. É que... aquela livraria me chamou a atenção.

Riley virou-se, seguindo seu olhar fixo. Seu rosto se contorceu em confusão.

— Que livraria? — Ele inclinou a cabeça, examinando o mesmo lugar que ela encarava há alguns segundos. — Só tem lojas abandonadas ali. Esse lugar tá meio decadente, na verdade.

Ele não conseguia ver.

— Ah... eu devo ter me confundido. — Ela riu, o som um pouco alto demais para soar natural. Apertando sua mão com mais força, puxou-o gentilmente. — Vamos continuar andando?

Enquanto se afastavam, Rose não resistiu a um último olhar sobre o ombro, observando novamente a livraria e a entrada enfeitiçada, apenas para ter certeza de que ela não era louca, que ainda estava lá, e que, apesar de ser um aborto agora, ela ainda podia entrar novamente no mundo mágico.

Provavelmente era uma coisa boa que Riley estivesse com ela, ou Rose teria sido impulsiva e entrado naquele lugar sem um plano, apenas com a curiosidade ardendo no seu peito.

Agora, no entanto, ela sabia que precisava falar com o tio Charlie, e sabia que precisava descobrir o que havia naquela Travessa Encantada e o quão segura ela e seu tio estavam.

Rose não se permitiu focar demais nisso. Em vez disso, ela voltou sua atenção novamente para Riley e aproveitou o resto da noite, enquanto aproveitavam um pouco mais de Capitol Hill.

No final das contas, ela decidiu aceitar o pedido dele para ser sua namorada e, em vez de voltar para Forks, ela passou mais uma noite na cama dele. Na cama do seu namorado.

Antes de dormir, no entanto, ela não conseguiu parar de pensar naquele lugar e o que poderia estar escondido atrás daquelas paredes.

Chapter 18: DEZOITO

Chapter Text

Capitol Hill, Seattle

2000

Não foi difícil convencer o tio Charlie, mesmo que ele não gostasse da ideia e não confiasse tanto assim no mundo mágico — afinal, eles a machucaram, a perseguiram e, no final, a deixaram sem magia.

No entanto, ele sabia que ela era teimosa. Ele não podia impedi-la, não quando, mesmo depois de seis anos longe daquele lugar, ela ainda carregava tantas perguntas sem respostas.

Será que alguém a procurou? Será que ainda estavam à sua procura? Ou será que, depois de tanto tempo, todos a deram como morta? Será que seus amigos — Hermione, Ron, Neville, Ginny, Luna — tinham perdoado ela, tinham esquecido dela, ou talvez agora guardassem rancor por ela ter desaparecido sem uma palavra de despedida? E Sirius — ele a considerou uma traidora, uma covarde? Ou pior: será que ninguém sequer notou a sua ausência?

E havia mais perguntas…

A segurança dela e do tio Charlie ainda estava intacta? Forks era suficientemente distante, suficientemente escondida para mantê-los longe dos olhos do Ministério da Magia Britânico? Dos Comensais da Morte? Ou, em algum lugar, havia um rastro de pistas que poderia levá-los facilmente até Forks, até a frágil vida que ela havia construído longe de tudo o que ela um dia conheceu?

E se alguém sempre soube onde ela estava? E se a sua ausência, na verdade, era esperada e vigiada de perto?

Rose não sabia, e até algumas semanas atrás ela realmente não se importava. Ela sempre achou que estava segura, porque ignorava — porque não procurava respostas, porque fingia que o passado não existia.

Mas a magia não desapareceu, apenas porque ela a rejeitou. Aquela maldita travessa estava ali, tangível, real, provando que o mundo que ela tentou deixar para trás nunca deixou realmente de existir e ainda funcionava perfeitamente bem ali, logo na esquina.

E agora, o que ela faria com isso?

Ela tinha uma vida agora. Uma vida boa. Um teto seguro, um tio que a amava como uma filha, amigos que não sabiam do seu segredo e um namorado que a via apenas como Primrose, a estudante dedicada, a futura médica. Ela tinha um futuro — algo que, aos quatorze anos, ela achou que jamais teria novamente.

Mas era essa ignorância que a consumia, que a empurrava em direção à Travessa Encantada, mesmo sabendo que cada passo ali poderia ser um erro. Ela não tinha varinha, não tinha mais magia — ela tinha apenas o direito de saber. 

Rose respirou fundo, os dedos tremendo levemente. Ela não precisava fazer isso. Poderia virar-se agora, voltar para casa, continuar fingindo que nunca viu aquela entrada. Ela poderia simplesmente enterrar o passado de vez e seguir em frente.

Mas ela não podia. Então, Rose deu um passo à frente e atravessou a parede de tijolos.

O impacto contra a parede nunca veio. Em vez disso, uma sensação familiar — como mergulhar em um lago morno, como ser puxada através de um vórtice de ar denso — envolveu-a por um instante. E então, de repente, ela não estava mais em Seattle.

A Travessa Encantada se desenrolava à sua frente, larga e reluzente, pavimentada com um material escuro que parecia absorver a luz e devolvê-la em pequenos reflexos prateados como estrelas no asfalto. Haviam diversas lojas e prédios altos, com fachadas que mudaram de cor, letreiros que se moviam sozinhos e placas flutuantes. Era no meio da semana, então a rua estava quase vazia, com apenas alguns poucos bruxos caminhando pelas calçadas.

Ela não esperava isso.

Era moderno. Quase futurista.

Rose esperava algo que lembrasse o Beco Diagonal — ruas de paralelepípedos, construções tortas de madeira envelhecida, aquele ar vitoriano que pairava sobre o mundo bruxo britânico. Não havia nostalgia empoeirada ou um ar de mistério — aqui a magia era exibida, orgulhosa, adaptada ao novo século.

Seu coração acelerou no peito, uma mistura de alegria e terror. Alguém a reconheceria? O Ministério tinha alertas fora da Grã-Bretanha? Os Comensais da Morte ainda tinham algum interesse em caçar a Garota que Sobreviveu?

Ela olhou para trás, de volta para a parede de tijolos, por um momento tentada a fugir novamente. Mas então lembrou-se da promessa feita ao tio Charlie — ao menor sinal de perigo, ela voltaria imediatamente.

Por enquanto, não houve nenhum motivo para ela ir para casa. Ela mal havia dado dois passos depois da entrada.

Ela poderia fazer isso.

Rose engoliu em seco e deu um passo em direção à calçada. Ela se permitiu observar as lojas. Havia a Oficina das Varinhas, que vendia varinhas personalizadas criadas na hora; Outra chamada Arena Nimbus, uma megaloja de Quadribol com simulador de voo e vassouras mais rápidas e inteligentes; A Tinta Mágica, uma papelaria enorme com cadernos trouxas encantados; a Arca das Criaturas, um pet-shop com diversas criaturas mágicas que ela nunca tinha ouvido falar durante o seu curto período em Hogwarts, como um Pássaro-Trovão e um Pelúcio; e, ali logo na esquina, também havia uma loja inteira de produtos para abortos.

Mas o que a fez parar bruscamente no meio da calçada, foi ver que ali, há apenas alguns metros de distância, havia um grande prédio, com a sua imponente fachada de mármore, grandes portas de bronze polido e uma placa com letras douradas que dizia: Gringotes - Filial Norte-Americana.

Sua respiração ficou presa na garganta. Ela pensou no cofre que seus pais deixaram para ela antes de morrer. Talvez ela ainda pudesse acessar o dinheiro que estava lá? Talvez ela pudesse ter acesso aos outros objetos do seu cofre, mesmo que não tivesse mais magia?

Rose não hesitou, ela correu até o banco, impressionada como nada mudou. Como o prédio ainda era tão majestoso, e como os goblins ainda eram tão rabugentos.

Ela parou em frente a um deles, que não se preocupou em levar os olhos da pilha de pergaminhos à sua frente.

— Em que posso ajudá-la?

— Eu gostaria de acessar um cofre da filial da Grã-Bretanha.

— Varinha, por favor.

— Desculpe… eu não tenho mais varinha.

O goblin finalmente olhou para ela, os dedos ossudos pousando sobre o balcão e um olhar de quem, claramente, estava longe de estar impressionado.

— Eu sou um aborto. Não tenho mais varinha. — Ela admitiu então, esperando por qualquer tipo de reação, mas o goblin apenas bufou.

— São 5 galeões para um teste de sangue.

— Tudo bem.

Rose foi levada para uma sala lateral e, então, todo o resto aconteceu em minutos. O goblin — que se apresentou como Razook —, puxou uma adaga fina de prata da gaveta e, sem cerimônia, puxou a mão de Rose. A lâmina cortou sua palma num movimento rápido, quase indolor. Sangue escorreu sobre um pergaminho amassado que ele estendeu sobre a mesa, formando letras, depois palavras: Primrose Lily Potter.

O goblin ergueu uma sobrancelha, os olhos percorrendo o texto com um interesse ganancioso. Finalmente, ele dobrou o pergaminho com cuidado e guardou em uma das gavetas da mesa.

— É um prazer… inesperado vê-la novamente no mundo mágico, Srta. Potter. Eu vejo aqui que o cofre britânico foi selado após a sua… deserção . — Ele disse, escolhendo cada palavra com cuidado. — Mas, considerando o seu status como única herdeira das Casas Potter e Black-

Black? O que você quer dizer com Black? — Rose interrompeu, os olhos arregalados.

O goblin exibiu uma fileira de dentes afiados em algo que poderia ser interpretado como um sorriso.

— Aqui diz que você é herdeira de ambas as Casas, Srta. Potter. Continuando… se você quiser, podemos fazer uma transferência de todos os cofres, ouro e bens para a nossa filial. Por uma taxa , é claro.

Que porra era essa?

Sirius a tinha nomeado sua herdeira? Desde quando?

— E para um banco trouxa? Você faz?

Razook a encarou duramente por alguns longos segundos.

— Todo o dinheiro?

— Não. Apenas os cofres dos Potter e o meu cofre pessoal dos Black.

— A conversão resultaria em uma transferência de milhões de dólares. Você tem certeza?

— Eu tenho certeza.

— E quanto aos seus bens?

— Eu gostaria de conferir quais são e enviar tudo para um cofre trouxa também, por favor.

Razook soltou um som entre um grunhido e uma risada abafada.

— Como desejar, Srta. Potter.

 

*

 

Rose estava parada, chocada, nos degraus da frente do banco, com duas pastas em suas mãos. Uma delas continha todos os comprovantes das transferências realizadas entre Gringotes e o seu banco trouxa. A outra pasta era a escritura de uma casa — a casa de seus pais em Godric’s Hollow.

Ela foi informada de que, desde a sua partida, os goblins trabalharam para deixar todas as contas em ordem até que ela decidisse aparecer no banco novamente, e que agora estariam trabalhando por alguns dias para garantir que todos os seus bens — no plural — estivessem seguros em um banco trouxa.

Mas não foi isso que a fez se sentir incapaz de ficar de pé. Quando saia de Gringotes, Rose espiou a primeira pasta, apenas para ver uma quantia absurda de números. Ela, então, se abaixou ali mesmo para sentar nos degraus e se permitiu ficar em choque — ela percebeu, de repente, que não precisaria trabalhar tão cedo. Quão absurdo era isso?

Ela passou de uma situação de fugitiva e completamente perdida e insegura, para uma em que ela estava mais segura, mais tranquila e — porra —, rica pra caramba.

Parecia impossível que ela tivesse tanta sorte, e ainda assim…

Com uma risadinha, ela apertou as duas pastas contra o peito, erguendo o rosto para o sol e agradecendo a quem ou o que quer que tenha tornado isso possível.

Quando uma sombra caiu sobre ela, ela não tirou o sorriso do rosto. Ela mal podia esperar para contar ao tio Charlie e se perguntou se talvez eles devessem tirar férias no natal, ou se ela deveria comprar uma televisão nova para o tio, ou, finalmente, ter um carro novo.

Agora ela podia.

Mas, por enquanto, ela só queria ter mais um momento para si mesma, para celebrar a sua sorte impossível.

— A maioria das pessoas não fica tão feliz sentada nos degraus de um banco.

— Eu sou rica. — Ela abriu os olhos e se viu admitindo para o estranho que a observava nas escadas, e ele piscou surpreso.

— Do seu marido, então?

Ela balançou a cabeça, levantando-se para observá-lo melhor. Ele parecia estranhamente familiar.

— Não. É meu. Só meu.

— Eu acredito que os parabéns sejam devidos? — Ele ofereceu.

Rose deu uma risada borbulhante, misturada com a emoção da descrença.

— Eu suponho que sim. — Ela apertou as pastas ainda mais contra o peito, como se elas fossem desaparecer se ela não as segurasse com toda a força. — Eu achei que tinha perdido tudo, que, provavelmente, até o legado da minha família teria sido perdido. Mas, não! Está tudo bem aqui. Intacto! Vai ser uma dor de cabeça administrar isso, mas valerá a pena.

— Você sabe como administrar?

Por um momento, a expressão de Rose ficou nublada. Então, as suas bochechas coraram de vergonha.

— Bem, mais ou menos. Mas eu sempre ajudei meu tio com as finanças de casa, então não acredito que será um problema.

Ele sorriu para ela, covinhas apareceram em suas bochechas e seus olhos castanho-avermelhados brilharam de diversão. Onde ela já tinha o visto antes?

— Talvez devêssemos nos apresentar. — Ele ofereceu uma mão, e Rose sentiu as bochechas ficarem vermelhas novamente.

— Primrose Potter. — Ela ofereceu a própria mão. Ele aceitou, virando-a para levar aos lábios, roçando um beijo em seus dedos.

— Marvolo Gaunt.

— Que curioso. Nós já nos conhecemos antes?

— Eu acredito que não. Eu nunca teria perdido uma jovem tão adorável de vista, se tivesse conhecido.

As bochechas de Rose conseguiram ficar ainda mais vermelhas, enquanto ela sorria timidamente.

— Bem, foi um prazer conhecê-lo, Sr. Gaunt. Eu realmente preciso ir agora, no entanto.

— Deixe-me andar com você, então. — Ele virou a mão dela novamente, colocando-a na dobra de seu braço, começando a descer os degraus. — E fique à vontade para me chamar de Marvolo.

— Claro… Marvolo. Me chame apenas de Rose, por favor.

— Onde você gostaria de ir agora?

— Na verdade, eu pretendo passar em uma livraria antes de ir para casa.

Eles caminharam juntos de braços dados em um silêncio confortável. Marvolo não disse nada, e Rose estava feliz demais para conseguir pensar em puxar assunto.

Quando pararam nos degraus da livraria, ele sorriu para ela com um charme notável. Ela não tinha notado, mas ele parecia mais velho, mas incrivelmente conservado. Claramente ele era um bruxo rico, bem vestido e bonito.

— Aqui estamos. Foi um prazer encontrá-la, Rose.

— Obrigada por me acompanhar, Marvolo.

— Eu tenho certeza que vamos nos encontrar muito em breve. — Ele beijou novamente os dedos de suas mãos, virou as costas e caminhou lentamente até o ponto de aparatação do outro lado da rua.

Rose sorriu feliz e satisfeita com a gentileza desse estranho, refletindo sobre a estranha sensação de que ela já tinha visto Marvolo em algum lugar.

Logo tudo isso ficou no fundo da sua mente, no entanto, quando ela se viu em frente a uma seção de jornais antigos em uma das estantes. Haviam edições de todos os países. Cada edição era organizada por ano, alguns com as bordas amassadas ou o pergaminho velho e gasto.

De repente, Rose sentiu a necessidade de saber. Ela precisava saber.

Então, armada com uma pilha de jornais, ela sentou no chão ao lado da estante para ler. As manchetes passaram diante de seus olhos fazendo sua cabeça girar.



O Profeta Diário - Novembro de 1994

“Primrose Potter Não Aparece na 1º Tarefa do Torneio Tribruxo”

Alarme geral em Hogwarts. A Garota que Sobreviveu e segunda campeã de Hogwarts desaparece horas antes da prova contra os dragões. O diretor Dumbledore e o Ministério mantêm silêncio sobre o seu paradeiro.



O Profeta Diário - Janeiro de 1995

“Tragédia no Lago Negro: Gabrielle Delacour Morre na 2ª Tarefa do Torneio Tribruxo”

Prova de resgate termina em desastre. Irmã da campeã Fleur Delacour é encontrada sem vida nas profundezas do Lago Negro. França acusa Hogwarts de negligência. Relações diplomáticas estremecem.



Le Sorcier Libre (França) – Fevereiro de 1995

"Incompetência Britânica Mata Criança Francesa: França Convoca Embaixador para Esclarecimentos"

A Confederação Internacional exige respostas. Ministro francês pede suspensão imediata do Torneio Tribruxo. O clima de guerra se forma entre os dois países.

 

 

O Profeta Diário - Abril de 1995

"Ministério Fracassa em Encontrar Primrose Potter"

Após meses de buscas infrutíferas, o Ministério admite não ter pistas concretas sobre o paradeiro de Primrose Potter, aumentando a pressão sobre Dumbledore e autoridades bruxas.

 

 

O Profeta Diário – Junho de 1995

"Campeão de Hogwarts Morre na Terceira Tarefa do Torneio Tribruxo"

Horror nos labirintos. Cedric Diggory é encontrado sem vida ao lado da Taça Tribruxo. Versões conflitantes sobre a causa da morte. Hogwarts entra em luto.



O Profeta Diário – Julho de 1995

"Dumbledore Alega Retorno Daquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado Ministério Chama de ‘Delírio Perigoso’"

Após o enterro de Cedric Diggory, Albus Dumbledore declara publicamente que "Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado retornou". O Ministério desmente e começa investigação sobre a sanidade do diretor.



O Profeta Diário – Setembro de 1995

"Dumbledore Acusado de Espalhar Pânico: Ministério Considera Afastá-lo de Hogwarts"

Fontes internas do Wizengamot confirmam: acusações formais estão sendo preparadas. A Subsecretaria Dolores Umbridge é enviada para “observar de perto” as atividades de Dumbledore.

 

 

O Profeta Diário - Novembro de 1995

"Um Ano sem Primrose Potter"

Completado um ano desde o desaparecimento da Garota que Sobreviveu, o mundo bruxo ainda aguarda respostas — e teme o pior.



O Profeta Diário – Julho de 1996

"Ministério em Ruínas: Rebelião Interna, Cornelius Fudge Desaparecido"

Departamento de Mistérios tomado por forças desconhecidas. Fudge sumido. Ministério paralisado. Ninguém assume oficialmente o poder. Dumbledore se recusa a ocupar o cargo de Ministro.



O Pasquim – Agosto de 1996

"Voldemort Já Está no Poder, Só Não Vestiu a Túnica"

Xenofílio Lovegood denuncia infiltração dos Comensais da Morte nos altos escalões mágicos. “O Ministério não caiu. Ele foi entregue.”



O Profeta Diário – Julho de 1997

"ALBUS DUMBLEDORE ESTÁ MORTO!"

Hogwarts em luto. Fontes afirmam que o diretor foi morto por Comensais da Morte, após confronto com forças das trevas dentro do castelo. Estudantes evacuados. Comunidade bruxa em choque.



O Profeta Diário – Setembro de 1998

"Nova Era em Hogwarts: Ordem, Pureza e Tradição Retornam ao Castelo"

Sob a liderança do estimado Diretor Severus Snape, a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts entra em uma nova era. O currículo foi ajustado para refletir os verdadeiros valores da tradição mágica britânica. O Ministério elogia os resultados já visíveis entre os alunos.



The New York Ghost – Janeiro de 1999

"Comunidade Mágica Internacional Rompe Contato com o Ministério Britânico"

Após meses de instabilidade e denúncias de tortura, o Congresso Mágico dos EUA, junto à Confederação Internacional, rompe oficialmente os laços com o Ministério Britânico. A fronteira mágica entre os países é selada. “Não podemos compactuar com o que está acontecendo”, afirma a presidente Seraphina Lewinsky.



O Profeta Diário – Fevereiro de 1999

"Heróis Modernos: Comensais da Morte Garantem Segurança Nacional"

Lucius Malfoy, novo Chefe do Departamento de Execução das Leis da Magia, anuncia queda de 75% em crimes mágicos. “A sociedade está mais segura do que nunca graças à coragem dos verdadeiros patriotas do mundo bruxo”, declara.



The New York Ghost – Julho de 1999

"Refugiados Bruxos Britânicos Procuram Asilo na América e Europa"

Cada vez mais famílias bruxas buscam escapar do regime. As comunidades Bruxas do Brasil, Argentina e Uruguai autorizam campos mágicos de proteção para refugiados. França nega a entrada de qualquer cidadão bruxo britânico, “até segunda ordem”. Crise se alastra.



The New York Ghost – Janeiro de 2000

"Reino Unido Mágico Está em Total Isolamento Há Anos"

Só agora revelado, o isolamento do Reino Unido mágico começou anos atrás: ninguém entra, ninguém sai. Corujas somem, feitiços de comunicação falham, e bruxos ou criaturas presos atrás das barreiras permanecem sem contato — e quem consegue escapar se esconde em campos de asilo ao redor do mundo. A comunidade internacional teme um colapso ou genocídio em território britânico.



Pasquim (Cópia clandestina) – Janeiro de 2000

"Os Nomes que o Ministério Quer Que Você Esqueça"

Mortos confirmados da resistência em Hogwarts e arredores:

  • Aberforth Dumbledore
  • Albus Dumbledore
  • Andromeda Tonks
  • Arthur Weasley
  • Augusta Longbottom
  • Bill Weasley
  • Dean Thomas
  • Garrick Ollivander
  • Nymphadora Tonks
  • Percy Weasley
  • Ted Tonks



The New York Ghost – Março de 2000

"Inglaterra Mágica: A Coreia do Norte Bruxa?"

A reportagem investigativa sugere que toda uma geração de jovens bruxos está crescendo sob doutrinação. Vidas moldadas por ódio, medo e vigilância. Há rumores de experimentos mágicos com “varinhas sintonizadas à pureza do sangue”.



The New York Ghost – Julho de 2000

“0,00001%: Número Estimado de Corujas Que Conseguem Cruzar os Céus Fechados da Inglaterra"

Nova pesquisa do Departamento de Comunicação Mágica dos EUA revela que menos de 1 em cada 10.000 mensagens enviadas por coruja atravessam os céus britânicos.



Rose dobrou os jornais com mãos trêmulas, os dedos pressionando com força contra o papel, como se pudesse apagar as palavras que acabara de ler.

Eles ainda estavam vivos. Tinham que estar.

Sirius, Neville, Hermione, Ron…

Eles estavam em algum lugar, resistindo. Escondidos.

Mas ela não poderia procurá-los.

Não porque não quisesse, mas porque ela seria inútil. O que uma aborto sem magia poderia fazer contra um Ministério controlado pelos Comensais? 

Nada. Absolutamente nada.

Além disso, ninguém a mencionava nos jornais desde 1995. Ela era um fantasma agora, uma nota de rodapé esquecida. Se voltasse agora, só colocaria todos em perigo — inclusive o tio Charlie.

Com um último olhar para os jornais amontoados no chão, Rose ergueu-se, os joelhos ainda fracos, mas a decisão firme.

Não havia lugar para ela naquele mundo em ruínas.

Mas havia um lugar fora dele.

Ela tinha uma vida aqui fora, e ela não gostaria de ser aquela garota impulsiva novamente — a que corria para o perigo sem pensar, a que colocava tudo a perder, colocava todos em risco ao tomar decisões estúpidas, especialmente para salvar pessoas que não se lembravam mais dela.

Era terrivelmente egoísta, mas ela não queria abrir mão de sua vida em Forks pela insegurança do mundo mágico. E, acima de tudo, estava bastante claro de que, enquanto ela e tio Charlie ficassem longe daquele lugar, estariam seguros.

Rose respirou fundo, enxugando discretamente os olhos com as costas da mão antes de sair da seção de jornais.

Ela só tinha mais uma coisa para fazer.

Antes de voltar para casa, ela entrou na loja para abortos — era um lugar pequeno, abarrotado de prateleiras com objetos que bruxos, como ela, poderiam usar. Havia itens quase sem fim nas estantes: pedras de proteção para casas trouxas — contra pessoas má intencionadas e criaturas mágicas —, jóias de proteção contra leitura, ataque e controle da mente, uma agulha e linhas infinitas para costurar roupas que pudessem repelir feitiços básicos, pomadas e poções de cura, relógios de pulso que vibravam na presença de magia negra, chaves de portal de emergência que poderiam ser configuradas e acionadas sem a necessidade de magia.

Rose encheu duas sacolas com centenas de itens, muitos deles ela, provavelmente, nunca usaria em anos e talvez fossem precauções exageradas, talvez ninguém a procurasse mais depois de todos esses anos.

Mas depois do que lera nos jornais, ela não podia arriscar.

Então, ela gastou uma grande quantia de ouro sem pensar duas vezes. Se isso mantivesse ela e o tio Charlie mais seguros, ela estava satisfeita.

Rose, então, se foi sem olhar para trás.

Não quando atravessou a porta da loja, sentindo o peso dos seus segredos sobre seus ombros.

Não quando passou, sem perceber, pelo homem que a conduziu até a livraria, que a observava com interesse calculista do outro lado da rua.

E especialmente não quando a parede de tijolos se fechou atrás dela, separando-a novamente — dessa vez para sempre — do mundo que um dia foi seu.

O vento gelado de Seattle a atingiu em cheio, mas Rose não se abalou.

Ela tinha uma casa para voltar.

E um futuro para abraçar.

Chapter 19: DEZENOVE

Notes:

Eu acho que todos nós precisávamos de uma perspectiva do Paul para respirar antes de seguir em frente.

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Paul estava sempre com raiva.

No início, eram coisas pequenas — acordar cedo pra escola, o trânsito de merda nas viagens com a mãe, o pedágio caro pra porra na estrada. Coisas bestas que fariam qualquer um resmungar e seguir em frente, mas nele fazia seu sangue ferver.

Depois, ele ficou com raiva dos médicos inúteis que não salvaram a mãe dele. Raiva de Deus, se é que existia um, por levá-la tão cedo. Raiva da própria mãe, por não ter se cuidado o suficiente e prevenido a porra do câncer, por não ter feito exames todo ano, por ter deixado ele sozinho nesse mundo de bosta.

E então ele começou a ter raiva do seu pai. Por ser um velho bêbado que não aguentou a dor da morte da esposa e afundou na garrafa. Do covarde que jogava toda a merda nele quando a bebida falava mais alto. Do inútil que não conseguiu ser homem suficiente para segurar as pontas, para cuidar do próprio filho, para ser alguma coisa além de um peso morto. Paul odiava ele com cada fibra do corpo. Odiava o cheiro de bebida barata, o olhar vidrado, as brigas sem motivo.

Então, Paul se segurou em sua raiva.

A raiva era o que mantinha ele em pé. Era o combustível, o casaco, a desculpa perfeita. Sem ela, sobrava só o vazio.

Então, veio Rose.

Rose, com seus olhos verdes desafiadores, sua língua afiada, com aquele jeito de rir alto que ecoava longe, que olhou para ele e não viu o animal raivoso que todos evitavam, e não hesitou, não recuou.

Ela ficou como se ele valesse a pena. Como se houvesse algo dentro dele além de violência e ruína.

E ele a amou por isso.

Amou com toda a fúria de um incêndio — consumindo, implacável, arranhando tudo pela frente. Amou como se amar como outra forma de violência, outra zona de guerra.

Não era um amor de filme, feito de poema e prosa, rosas vermelhas e restaurantes caros. Era feito dele mordendo o próprio punho para não gritar quando ela ficava triste. Era ele aprendendo o que falar, como falar, mesmo quando todas as suas células gritavam para ele apenas segurá-la forte. Era ele ao lado dela, tirando ela — com unhas, dentes e seu sangue correndo a toda velocidade nas veias — do buraco escuro onde ela entrou. Era ele engolindo a raiva quando ela merecia a paciência que ele não tinha.

Ele a amou com as mãos sujas, com os dentes cerrados, com o coração batendo contra um martelo contra as costelas. Amou como um condenado, com tudo de si.

Até que ele começou a se odiar.

Ele odiou quando o primeiro tremor apareceu, os músculos se contraindo como se algo dentro dele tentasse escapar. Ele odiou quando a temperatura do seu corpo subiu de repente, como se estivesse pegando fogo por dentro, queimando seus órgãos até ficarem crocantes. Ele odiou tudo ainda mais — fervendo em sua raiva, uma velha conhecida, transbordando ao menor sinal de um barulho alto, um cheiro forte, um olhar torto.

Ele odiou a dor que veio em ondas, lenta, agonizante. Como se cada pedaço dele estivesse sendo desfeito e remontado contra a própria vontade.

Ele odiou quando os músculos começaram a se contorcer, esticar, se transformar em algo que não era humano. Quando a sua pele se rasgou em pêlo. Quando seus dentes se alongaram, os caninos afiados pressionando contra a sua língua até rasgá-la. Quando as suas mãos se tornaram garras, unhas alongadas, curvadas e mortais.

Onde havia espaço para o amor quando ele acumulava tanto ódio?

Como ele — feito agora de garras, pêlos e raiva — seria capaz de amar sem destruir? Como tocar quando ele era agora tinha uma força sobre humana? Como prometer a eternidade quando a sua alma estava condenada?

Nos meses seguintes, ele tentou. Porra, como tentou. Controlar os seus surtos era como tentar parar um furacão com as próprias mãos. Cada célula do seu corpo implorava por liberdade, por cravar os dentes em algum lugar, por algo quente e vermelho que acalmasse a fera rastejando sob a sua pele.

Mas ele resistia. Mordia o próprio braço até sangrar, enchia o quarto de marcas de garras nas paredes em vez de deixá-las na carne de alguém, destruía árvores, cercas, cadeiras, portas. Uma vez atingiu Jared, outra vez chegou perto demais de Sam.

Ele não conseguia se controlar.

Então, era bom que Rose estivesse em Seattle. Seria mais fácil assim.

Ela voltava todo final de semana para Forks. Por causa dele.

Era a única coisa que ele esperava durante a semana inteira — aqueles dois dias em que ela aparecia, cheia de histórias da faculdade, com aquele sorriso que fazia o peito dele doer. Ele costumava contar as horas, os minutos, como um maldito carente.

Até que a primeira transformação involuntária aconteceu com ela por perto. Foi só um segundo. Um lapso. Ele achou que poderia fazer uma surpresa, vê-la novamente sem problemas, mas foi só ele chegar perto da casa do Sr. Swan que, de repente, sentiu as garras pressionando contra a sua pele, prontas para rasgar.

Ele não estava pronto.

Paul voltou pra casa, se trancou no banheiro e quebrou o espelho com um soco. Depois disso, as desculpas começaram.

“Eu tô doente” , ele mentiu pela primeira vez, sua voz rouca — não de doença, mas de tanto rosnar para si mesmo na floresta na noite anterior.

“Eu te vejo na semana que vem” , ele dizia. Mas ele mal conseguia ficar 15 minutos como humano, mal conseguia manter a mente intacta.

“Eu estou ocupado” , não era exatamente mentira, mas ele nunca explicou os porquês. Que ele passava as noites andando pela floresta, patrulhando a reserva, cavando buracos no chão com as garras, uivando para a lua.

“Hoje não dá” , ele nem tentou elaborar, inventar uma desculpa. Ele desligou na cara dela.

Quando ela apareceu na casa dele, ele ouviu cada palavra da conversa dela com seu pai, escondido na floresta ao redor, as garras cravadas no tronco de uma árvore.

Ele ouviu enquanto seu pai cuspia insultos; ele tremia enquanto o velho mentia; e ele rosnava enquanto pensava nos olhos cheios de dor de Rose.

Parte dele esperou que Rose cuspisse na cara de seu pai. Que chamasse ele de mentiroso, que dissesse que nunca acreditaria em nada daquilo. Que subisse as escadas à procura dele, talvez caminhasse ao redor da casa sem se importar com nada do que seu pai idiota havia dito.

Era uma fantasia boba e infantil, porque Rose apenas se virou e foi embora.

Mas estava tudo bem, era melhor assim.

Era melhor ela acreditar que ele era um babaca, um covarde que não merecia o tempo dela. Era melhor ela odiá-lo.

Melhor do que descobrir que ele se afastou não por falta de amor, mas por excesso dele — porque ele jamais se perdoaria se, um dia, a machucasse.

Quando o telefone tocou minutos depois, ele atendeu já sabendo.

Sabia pelo ritmo acelerado da sua respiração do outro lado da linha, pelo tremor quase imperceptível da sua voz quando ela falou com ele, que ela estava destruída — e que ele era o responsável.

Ele segurou a própria dor, a vontade de correr até ela e confortá-la. Engoliu o rosnado que subia pela garganta, o som que misturava angústia e fúria contra si mesmo. Ele mordeu a própria língua, até sentir o gosto de ferro inundar a boca, para se impedir de contar a verdade, e como punição por cada mentira que saia de seus lábios, enquanto do outro lado o choro engasgado dela apertava o coração dele.

E mesmo a metros de distância, através da linha telefônica, Paul quase podia farejar o sal das lágrimas dela, o cheiro da decepção que ele mesmo plantou. Cada soluço que ela engolia era um golpe, cada palavra um desafio que ele suportava. Tinha que suportar. Porque esse era o preço que ele estava disposto a pagar: tornar-se o vilão da história.

Ele preferia ser conhecido como o babaca, o ex-idiota, aquele que, graças a Deus, se afastou de Rose; o lobo mau que prefere afastar a Chapeuzinho Vermelho para que ela nunca descubra que o perigo real não estava na floresta, mas dentro dele, latente em cada célula, rastejando em sua carne, esperando o momento de fraqueza para devorar tudo o que ele mais amava; do que ser conhecido como o cara que arruinou tudo.

Quando finalmente desligou, deixando escapar um último “Adeus, Prim” como nos velhos tempos — soou como uma sentença. Paul caiu de joelhos no chão, as unhas arranhando o próprio peito, transformando-se em um lobo imediatamente, uivando baixinho para não ser ouvido por ela, enquanto ela caminhava pela estrada em lágrimas — porque até em seu desespero, ele a protegia, mantendo seu segredo enterrado onde ela nunca poderia alcançá-lo.

Ele voltou para casa naquela noite como um espectro, um corpo pesado não apenas pelo cansaço das patrulhas, mas pelo fardo de uma decisão que lhe abrira o peito e arrancara o seu coração.

Os meses que se seguiram foram a porra de um inferno — acordar, transformar, patrulhar, repetir. Ele esmurrou tantas árvores que estava acostumado a ver os nós dos seus dedos cicatrizando toda noite. Ele corria até seus pulmões pegarem fogo, até não conseguir cheirar nada além do próprio suor.

Sam ficou em cima dele como a porra de uma mãe galinha.

— Para com essa merda antes que você se mate, Paul.

— Vai cuidar da tua vida, cacete.

Depois disso Paul quebrou três árvores com um soco na mesma noite, ele avançou contra Jared para morder seu pescoço, ele brigou com Sam até ele obrigá-lo a ceder.

Ele só queria uma desculpa para Sam castigar ele com mais horas de patrulha, com mais tempo ocupando a sua mente com nada além de árvores, terra e suas patas batendo forte no chão — como se pudesse correr longe o suficiente de si mesmo, como se o esforço físico pudesse queimar a memória dela de seu sistema.

A merda é que não adiantava. Nem as brigas, nem as horas gastas correndo como um louco pela floresta. Ela estava sempre lá. O rosto dela invadia a mente dele quando menos esperava. Até a porra do shampoo que ele usava cheirava quase como ela, e ele jogou a garrafa contra a parede do banheiro, deixando um rastro de líquido escorrendo pelo azulejo.

O pior eram as noites. Quando o corpo exausto dele finalmente apagava, e a mente traiçoeira dele lhe pregava peças.

Começava sempre do mesmo jeito. Ela aparecia na praia, banhada pelo sol brilhante que nunca existia em Forks, os pés descalços afundando na areia branca e fofa como se ela caminhasse sobre nuvens, seus longos cabelos ruivos caindo em cachos desordenados pelos ombros.

Ela sorria. Sempre sorria. Aquele sorriso largo, de dentes imperfeitos, mas lindos, e lábios rosados, que ele conhecia a cada curva.

Ela o chamava com a voz doce, mas ele nunca conseguia responder. Porque as suas mãos já estavam tremendo, os dentes alongando em caninos, as garras rasgando a própria pele enquanto a transformação o consumia no pior momento possível.

Ela caminhava em sua direção, os olhos verdes brilhando como jóias sob o sol. Ele tentava rosnar, mas o som saía como um gemido animal.

Para, Prim. PARA.

Mas ela nunca parava.

Nunca via o perigo.

Nunca entendia.

E então, quando ela estava perto o suficiente para tocar, quando ele podia sentir o calor dela contra sua pele, acontecia.

Ele pulava.

No sonho, suas garras rasgavam aquele pescoço como papel. Seus dentes afundavam na carne macia da garganta dela. O gosto do sangue de Rose inundava sua boca, quente, metálico, errado.

Ela nunca gritava.

Apenas olhava para ele, os olhos verdes arregalados, enquanto o sorriso lentamente desmoronava em dor. Em decepção.

E então, ele acordava. Dentes cravados no travesseiro, garras destruindo o colchão, o coração acelerado dentro do peito.

Nos momentos em que ele queria correr até a casa dela e implorar de joelhos por perdão, era quando ele se lembrava desse sonho e continuava dizendo a si mesmo de que ele era um monstro.

E os monstros mereciam apenas cada segundo de agonia possível.

Ele merecia a dor de vê-la na praia meses depois, mais linda do que jamais poderia imaginar, com o vento brincando em seus cachos vermelhos e a luz do sol pintando sua pele.

Mas ele nunca a olhou nos olhos.

Não diretamente.

Permitiu-se apenas vislumbres pelo canto do olho, capturando pedaços dela como um homem faminto recolhendo migalhas. Observou a maneira como ela enroscava os dedos em volta de um cacho, o hábito antigo de morder o lábio inferior quando ficava pensativa, a sombra de seus cílios curvados contra as maçãs do rosto, sua gargalhada quando Leah contava uma história.

Cada detalhe era ao mesmo tempo uma tortura e um tesouro, algo que ele recolhia avidamente enquanto se mantinha a uma distância segura.

Claro que Leah, como a vadia amarga que era, não ia deixar as coisas em paz. Assim que avistou Sam e Emily caminhando na praia, perto dele e Jared, ela partiu como um furacão pra cima deles.

— Samuel Uley, seu filho da puta! — Leah cuspiu as palavras como veneno, os olhos brilhando de raiva.

Sam tentou se impor, ergueu as mãos, mas ela não estava ali para negociar.

— Leah, espera…

— CALA A BOCA! Toda essa meda de “não é você, sou eu”, e no fim você tava enfiando a língua na garganta da minha prima?

Paul mal ouvia.

Seu olhar estava preso em Rose, que permanecia alguns passos atrás, observando tudo com uma expressão fechada. Ela não gritou, não se jogou na briga a favor de ninguém, não tentou intervir.

Ela nem sequer olhou para ele.

Isso doía mais do que qualquer coisa.

Ele devia ter ficado puto. Devia ter intervindo, puxado a Leah pelo braço, mandado todo mundo se acalmar. Mas ele só conseguia pensar em chamar a atenção dela.

Um passo à frente. Um aceno. Um "Prim" sussurrado.

Qualquer coisa.

Só pra ela olhar pra ele.

Só pra ver se, ao olhar nos olhos dela, algo mudaria.

Mas então Leah, depois de mais uns insultos bem colocados, cuspiu na areia perto dos pés de Sam e saiu pisando duro na areia, deixando um silêncio pesado no ar.

Rose finalmente se mexeu.

Não para ele.

Para Emily.

Elas trocaram mais algumas palavras que ele realmente não se importava. Ele só pensava em puxá-la pelo braço e olhar em seus olhos. Só uma vez. Só para ter certeza.

Mas as dúvidas corroíam seu estômago.

E se não fosse ela?

E se ele olhasse e nada acontecesse? Se os olhos verdes dela fossem só isso – olhos comuns, nada mais?

A ideia era um soco no estômago.

Porque ele a amava. Já a amava. E se o destino — a maldita, estúpida magia dos lobos — dissesse que ela não era dele? Como ele sobreviveria a isso?

Mas e se fosse?

E se ele olhasse e o mundo desabasse, e o imprinting batesse como um raio, e ele soubesse, sem sombra de dúvida, que ela era sua alma gêmea?

Aí seria pior.

Porque Paul já era um perigo para Rose, mas se o imprinting acontecesse, então ele não teria escolha. Não conseguiria ficar longe. Não conseguiria protegê-la dele mesmo. Seria obrigado a envolvê-la em todas as suas merdas.

E aí, uma noite, ele sonharia com dentes e sangue de novo.

Só que, dessa vez, não seria um sonho.

Rose conversou com Emily, baixinho, os dedos enroscados no próprio braço como se estivesse segurando algo — ou se segurando.

Ele podia chegar perto. Podia chamá-la. Podia exigir que ela olhasse.

Mas no fim, ele só apertou os punhos até as unhas virarem garras e cortarem a própria pele.

Não.

Melhor viver na dúvida.

Melhor sofrer em silêncio.

Melhor ser um covarde do que ser o motivo do sangue dela escorrer na areia.

O som do próprio nome na voz dela quase o fez desmoronar.

— Paul...? — Doce. Cautelosa. Como se ainda houvesse alguma esperança escondida ali.

Ele manteve os olhos no chão, nos próprios pés enterrados na areia, nos dedos que já não eram totalmente humanos – as unhas grossas, escuras, prontas para se transformarem em garras se ele perdesse o controle por um segundo sequer.

Não.

Não podia olhar.

Não devia.

— Vá embora, Rose. — As palavras saíram ásperas, cortantes, como se ele quisesse machucá-la. Talvez ele quisesse. Talvez, se ela o odiasse o suficiente, fosse mais fácil. — Ninguém quer você aqui também.

Mentira.

Ele queria.

Queria mais do que o ar nos pulmões, mais do que a luz do sol, mais do que a própria maldita vida.

Mas o que ele queria nunca importou.

O silêncio dela doeu mais do que qualquer grito. Ele a imaginou parada ali, os olhos verdes dilatados, a boca entreaberta como se ainda esperasse que ele fosse desmentir tudo aquilo. Como se, de alguma forma, ele fosse capaz de sorrir e dizer que era brincadeira.

Mas ele não fez isso. Ele ficou calado. Ele deixou que ela tirasse as próprias conclusões sozinha.

A areia rangeu quando ela se virou.

Ele não levantou os olhos.

Não até o cheiro dela se dissipar no ar salgado, não até os passos dela sumirem na distância, não até saber, com absoluta certeza, que ela estava longe.

Aí, e só então, ele olhou.

Para o nada.

Para o lugar onde ela estivera.

Para as pegadas dela na areia, que o vento já estava apagando.

— Você poderia ter simplesmente olhado nos olhos dela, então você iria saber.

Jared jogou a merda da verdade na cara dele como se fosse fácil. Como se fosse só isso que faltava — um olhar, uma confirmação, um alívio.

— Não valeria a pena.

Ele não explicou. Jared não entenderia que não era sobre saber ou não — era sobre o que vinha depois. O idiota resmungou algo sobre “babaca dramático” e virou as costas.

Paul não o seguiu.

Notes:

Há muitos argumentos nos comentários contra e a favor de Paul; ou contra e a favor de Rose; ou contra e favor de Riley também.

Isso não vai ser um triângulo amoroso, isso é apenas duas pessoas que estão aprendendo como amar a outra, que cometem vários erros e se arrependem depois que a merda bate no ventilador, que ainda estão crescendo e continuarão crescendo por muito tempo, porque isso é a vida.

É a primeira vez de todos nós, estamos fazendo muitas coisas pela primeira vez, estamos errando, quebrando a cara, agindo sem pensar ou talvez pensando demais nas coisas, tornando elas mais difíceis do que o necessário.

Eu preciso esclarecer que adoro as discussões, isso não sou eu tentando ir contra nenhum de vocês. Na verdade, achei tão bons argumentos, que eu trouxe essa perspectiva antes do previsto, para que não se arrastasse por mais tempo.

Obrigada pelas contribuições, continuem comentando e criticando. Eu quero continuar trabalhando para melhorar a história e ter essas discussões me ajuda a aprofundar os sentimentos, razões e personalidade dos personagens. ❤️

Chapter 20: VINTE

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

La Push, WA

2002

O cheiro de madeira serrada e tinta fresca enchia o ar da pequena sala que Paul usava como escritório — se é que podia chamar aquele cubículo de merda de escritório. Era mais um depósito de ferramentas com uma mesa amassada no canto, onde ele anotava orçamentos em pedaços de papel que sempre perdia.

Ele estava usando a garagem abandonada de casa. O velho pai dele nunca usava aquele espaço para nada além de empilhar tralhas enferrujadas e caixas de cerveja vazia, mas Paul, num dia particularmente ruim, jogou fora todo o lixo acumulado, empurrou as tralhas enferrujadas para um canto e pintou as parede com uma tinta branca.

Não era bonito, mas era dele.

Ele já não ia mais para o Peninsula College. O diploma de Construção Civil estava pendurado na parede, emoldurado só para não parecer tão patético. Trabalhar na loja de materiais de construção em Forks não era mais uma opção — depois da terceira vez que ele quase esmagou a mão de um cliente quando ficou puto, o gerente sugeriu “um tempo”. Paul não voltou mais.

Agora, ele pegava bicos. Reformas aqui, um telhado ali, o que desse pra fazer sem ter que lidar com gente demais, sem correr o risco de se estressar e matar um cliente sem querer. Os moradores da Reserva eram mais receptivos, no entanto, eles não se importavam se ele era rude, cabeça quente e, ocasionalmente, grosseiro. Alguns até preferiam — ninguém mexia com uma casa que um cara do tamanho como o dele ajudou a construir.

No início, cada martelada era uma batalha. As mãos dele tremiam não de cansaço, mas da raiva constante que fervia por baixo da pele — aquela fúria que transformava seus ossos e músculos em um animal raivoso. Ele quebrou tantas ferramentas nos primeiros meses que quase desistiu.

Sam vinha observar o estrago que ele fazia de vez em quando, sempre silencioso, depois jogava um saco de ferramentas novas no chão da garagem e ia embora.

Ele odiava essa merda.

Odiava a paciência na voz de Sam. Odiava a implicação de que havia conserto para algo como ele. Mas ele odiava ainda mais a ideia de desistir. Então, Paul pegava o saco de ferramentas novas e seguia em frente. Aprendendo da maneira mais difícil, como sempre.

Em algum momento, Paul aprendeu um pouco de controle. Obviamente, ele não se tornou o Santo da Paciência da noite para o dia, nem aprendeu a respirar fundo como aqueles livros de autoajuda que Sam deixava “esquecidos” no banco da sua picape, diziam.

Ele apenas descobriu que segurar um martelo direito dava menos trabalho do que consertar a merda que ele fazia quando perdia a cabeça. Que medir duas vezes antes de cortar evitava o desperdício de madeira — e de dinheiro. Pequenas vitórias de um homem que sempre preferiu a destruição à paciência.

O dinheiro se acumulava aos poucos, devagar. Não muito, mas o suficiente para ele sonhar com um lugar de verdade, que fosse realmente dele e tivesse uma placa com o seu nome. Um lugar onde ninguém olharia pra ele e veria primeiro o babaca, o monstro — e só depois o homem.

Por outro lado, nenhum projeto, nenhum cálculo de orçamento, nenhuma pilha de dinheiro suado conseguia preencher aquela dor que ainda latejava dentro dele. Mentiu quem disse que o tempo apagava a dor. O tempo não apagava porra nenhuma — só empurrava a dor para debaixo do tapete, até ele tropeçar nela de novo.

De vez em quando, ele encontrava algum objeto que ela o presenteou ou um elástico de cabelo que ficou na casa dele; ele congelava, as narinas dilatadas, os músculos tensos como se estivesse sob ataque, coração acelerado contra as costelas.

Dois anos não eram suficientes para apagar a memória dela do seu sangue.

Dois séculos não seriam.

Então, Paul levantava. Pegava as ferramentas. Trabalhava.

Se ele não pudesse ter ela, pelo menos teria isso — o suor honesto, o trabalho cansativo, o orgulho amargo de ver algo sair de suas mãos que antes só sabiam quebrar.

Não tinha nada de bonito — nenhum milagre, iluminação, anjos cantando ou a porra de uma epifania digna de um filme. Era acordar com gosto de sangue na boca, porque teve um pesadelo e trincou os dentes dormindo de novo. Era levantar e colocar uma perna na frente da outra mesmo quando cada passo pesava como chumbo. Era segurar suas ferramentas com as mãos trêmulas, com um esforço brutal para não deixar o lobo escapar.

Cada dia era uma guerra consigo mesmo. Algumas vezes ele vencia — conseguia passar horas sem rosnar pra ninguém, terminava um serviço sem destruir suas ferramentas, resistia à vontade de idiota de seguir o rastro do cheiro dela. Outros dias, ele perdia feio — se transformava no meio da garagem, perdia a paciência com Sam e Jared, gritava com Emily, uivava até ficar rouco no meio da floresta.

Progresso era isso — sangrar, lamber as feridas e voltar pra briga no dia seguinte.

 

*

 

Quando Jared o convidou para uma festa na fogueira, ele esperava qualquer coisa — o que ele não esperava era aparecer na celebração da formatura de Prim sem ter sido convidado.

— Que porra é essa? — Ele rosnou para Jared, as garras já pressionando contra as pontas dos dedos.

Jared, o filho da puta, estava sorridente, e apenas deu de ombros, muito tranquilo para alguém prestes a ter o pescoço quebrado.

— Billy organizou e convidou Sam e Emily. Eles me convidaram. Eu te trouxe.

— Você mentiu.

— Eu omiti. — Jared entregou-lhe um refrigerante, ignorando o fato de que Paul estava a um passo de esmagar a lata na cara dele. — Relaxa, cara, tá todo mundo aqui.

Paul olhou de novo para o círculo ao redor do fogo — Sam com o braço em volta de Emily; Jacob, agora com 15 anos e mais alto do que Paul lembrava, jogando algo na direção de Quil, enquanto Embry ria; Billy Black sorrindo como um velho malandro ao lado de uma fogueira gigante; Leah, amarga e carrancuda do outro lado da fogueira.

E nenhum sinal dela.

Ele suspirou profundamente. Talvez se ele ficasse em um tronco afastado, onde a luz do fogo não o alcançava, ele podia ver todo mundo sem ser visto e poderia ficar escondido até o fim da festa.

Mas então, ela chegou.

Não a menina que ele lembrava, mas uma mulher — ainda em seu vestido de formatura, um tecido azul-escuro que parecia quase brilhar sob a luz do fogo. O cabelo, um pouco mais curto do que ele lembrava, balançava em cachos desobedientes ao redor do rosto. Ela sorriu ao se aproximar, e Paul sentiu o ar sair de seus pulmões como um soco.

Ela abraçou Billy primeiro, correndo para seu abraço com aquele afeto fácil que ela sempre teve com o velho. Depois Jacob, que a levantou do chão como se ela não pesasse nada, fazendo-a rir — aquele som claro que Paul sempre lembrava em seus momentos mais sombrios. Ela foi parabenizada por diversas pessoas, passando de abraço em abraço com um sorriso brilhante no rosto. Até Emily e Sam receberam um abraço, ainda que contido e claramente desconfortável, fazendo Leah bufar com raiva da interação.

Prim pegou uma lata de refrigerante, brindou com Leah, e por um segundo — um maldito, insignificante segundo — seus olhos verdes e afetuosos encontraram os dele através da fumaça da fogueira.

E o mundo explodiu.

Paul sentiu o calor inundar seu corpo, mas não era como o fogo da raiva ou da transformação. Não queimava. Iluminava.

Era resplandecente.

Tudo nele se desfez.

Suas incertezas, suas raivas, seus medos, suas mentiras — tudo se dissolveu como areia entre os dedos enquanto encarava o rosto de Primrose. As cordas que o prendiam à vida se romperam em golpes rápidos, como se alguém cortasse as amarras de um barco à deriva.

Ele flutuou, sem peso, sem resistência, sem passado.

Mas ele não estava perdido.

Porque no mesmo instante em que todas as peças se desfizeram, algo novo nasceu.

Um clique audível ecoou em seu crânio, como um cadeado sendo aberto após anos enferrujado. A raiva que sempre o consumiu, o medo que o mantinha afastado, a dor que o moldou — tudo fazia sentido agora. Dois anos fugindo. Dois anos lutando. Dois anos se odiando por algo que já estava escrito.

Desde o primeiro instante em que a viu na praia, aos quinze anos.

Desde o primeiro sopro de ar que compartilharam.

Desde sempre.

Ele não estava à deriva.

Um novo fio o prendia à terra.

Seu coração batia em uníssono com o dela. Seu sangue cantava em suas veias, uma melodia tão familiar, mas que ele nunca soube que conhecia. Seu corpo — antes uma gaiola de instintos selvagens — agora tinha um propósito.

Era ela.

Sempre ela.

Então, as suas pernas se moveram antes que seu cérebro ordenasse. A areia voou sob seus pés enquanto ele se lançava para longe do fogo, do círculo, dela. Vozes o chamaram — Jared, Sam, até Emily — mas ele não parou. Não podia.

A floresta o engoliu como um abraço escuro, os galhos arranhando seus braços enquanto corria mais fundo, mais longe. O vento uivou em seus ouvidos, ou talvez fosse ele mesmo uivando — um som dilacerado, cheio de terror e êxtase.

Ele caiu de joelhos entre as árvores, as mãos enterradas na terra úmida, o corpo tremendo como se estivesse prestes a se desfazer em átomos.

Imprinting.

A palavra ecoou em seu crânio como um tiro.

Alguma parte dele sempre soube. Desde o primeiro dia na praia, desde cada briga, cada mentira, cada noite passada sonhando com o que não podia ter.

Primrose Potter estava gravada em sua alma antes mesmo dele saber que tinha uma.

E agora ele estava perdido.

 

*

 

Primrose não estava feliz.

Não, isso era mentira. Ela obviamente não tinha motivos para isso.

O ano que se seguiu depois da visita à Travessa Encantada transcorreu em um suave fluxo de tranquilidade. Ela não teve nenhum problema depois daquela pequena viagem ao mundo mágico.

As aulas do penúltimo ano de pre-med ocuparam cada hora do seu dia, é claro, preenchendo a sua mente com protocolos de emergência e terminologia clínica até não sobrar espaço para mais nada, mas ela não estava insatisfeita. Ela ainda conseguiu se esforçar em dobro para conseguir uma vaga na Faculdade de Medicina de Washington e continuar seus estudos depois de terminar a faculdade e, somente depois disso, se tornar uma médica residente.

Tio Charlie parecia mais relaxado também, os vincos de preocupação em sua testa suavizados agora que os meses passavam sem incidentes. Os cabelos grisalhos agora ostentavam menos fios brancos.

Foi preciso meses de insistência, mas Rose finalmente conseguiu convencê-lo a aceitar parte do dinheiro que ela converteu em Gringotes. No começo, ele resistiu, orgulhoso, argumentando que não precisava de ajuda, que era capaz de sustentá-la como sempre fez. Mas ela sabia que os anos como chefe de polícia não deixariam muitos recursos no futuro, e a ideia de vê-lo trabalhando além da aposentadoria a incomodava.

Eventualmente, ele cedeu, ainda que relutante. O dinheiro foi usado para pequenos reparos no telhado, para trocar o velho sofá que rangia há anos, para comprar uma nova televisão e até para um novo carro para ambos — embora Charlie insistisse em manter a sua antiga picape como "reserva". Rose sorria ao vê-lo planejar pequenas viagens de pesca com mais frequência.

Eles estavam seguros. Rose havia se certificado disso.

As pedras de granito, enterradas nos quatro cantos do terreno, emitiam uma barreira invisível que afastava qualquer criatura mágica ou pessoa com intenções hostis. O relógio em seu pulso - idêntico ao de tio Charlie - permanecia silencioso, seus ponteiros imóveis, sem detectar nenhum traço de magia ao redor. Seus anéis de prata, gravados com runas, queimavam levemente contra a pele sempre que houvesse alguma tentativa de ataque ou controle mental.

Mas nada aconteceu no último ano, então eles seguiram em frente.

E, se tudo isso não fosse o suficiente, ela também tinha o namorado perfeito. Riley, que estava na primeira fileira durante a sua formatura, ao lado do tio Charlie, segurando uma dúzia de rosas vermelhas e sorrindo de orelha a orelha.

Riley, que era tão metódico. Acordava cedo, fazia exercícios, nunca se atrasava, nunca esquecia um compromisso.

Riley, que nunca perdia a cabeça, nem quando ela queria que ele perdesse, que tinha até os encontros deles milimetricamente planejados, sem nenhuma surpresa.

Riley, que era bom. Genuinamente. O tipo de pessoa que doava para orfanatos, ajudava velhinhas a atravessar a rua e lembrava do aniversário da tia-avó do professor de química.

Quando eles começaram a namorar, os seus colegas não ficaram surpresos. Zoe disse algo sobre eles serem o perfeito ‘casal de comercial de margarina’, Leah disse que eles eram como o Ken e a Barbie, e alguns colegas da Universidade até disseram que os filhos deles poderiam ser modelos de revista.

Eles eram lindos juntos. Como uma pintura renascentista ou uma escultura grega — Riley, alto, loiro, olhos azuis que pareciam saídos de um anúncio de clínica oftalmológica, postura impecável, sorriso que nunca falhava. Rose, ruiva, cabelos cacheados e um pouco desalinhados, olhos verdes, esbelta.

Eles pareciam feitos um para o outro.

Mas Rose era tão imperfeita. Ela ria alto demais, era descontrolada — tomava decisões no impulso, dizia “sim” quando deveria dizer “não”, beijava quem não devia, brigava com quem não merecia, e depois se afogava em arrependimentos que Riley não era capaz de entender.

Ela era egoísta — esquecia de coisas importantes, ouvia, mas às vezes realmente não escutava. Riley nunca pedia nada, nunca exigia nada, nunca precisava demais, mas ela precisava de tudo .

Ela era furiosa — com o mundo, com a vida, com ela mesma. Riley era calmo e paciente, nunca levantando a voz, sempre pedindo que ela respirasse fundo. Como se fosse só isso. Como se ela pudesse simplesmente tocar um botão e parar de sentir.

Rose era apaixonada — amava com a intensidade de uma tempestade, destruindo tudo, pegando fogo e queimando rápido demais, doendo até o âmago. Enquanto Riley amava de forma segura, equilibrada, moderada. Como se o amor fosse algo a ser dosado.

Rose era uma zona de guerra — emoções explosivas, cicatrizes mal curadas, arrependimentos que ainda a assombram, histórias e segredos que ela não contava. E Riley era um museu de arte moderna: lindo, impecável, sem nada para tocar.

Ela se sentia uma idiota. A maior idiota do mundo.

Enquanto caminhava até o reitor para buscar o seu diploma, com as mãos suadas e o coração batendo num ritmo que não combinava com a solenidade do evento, Rose sabia exatamente o que viam nela. Elas sorriam, olhavam, cochichavam. Elas teciam elogios sobre seu futuro brilhante, seu namorado perfeito, sua vida impecável.

Mas dentro, lá no fundo, onde ninguém conseguia ver, ela sentia apenas um vazio. Um buraco negro de frustração, de culpa, de uma raiva sem direção que ela não sabia nomear.

Era estúpido querer se sentir viva.

Estúpido desejar andar descalço na praia, acordar tarde, comer pizza de café da manhã.

Estúpido querer um amor bobo, que arrancasse risadas tolas, que queimasse como fogo, que a fizesse tropeçar e levantar — em vez desse amor polido, seguro, morto, com o futuro feito de uma casa perfeita no subúrbio e duas crianças de cabelos loiros e olhos verdes.

E o pior de tudo é que não era culpa de Riley Biers.

Ele nunca a pressionou. Nunca exigiu mais do que ela podia dar. Nunca a fez se sentir pequena ou errada por não conseguir dizer que também o amava.

Ele era gentil, era paciente, era tão bom. E isso, de alguma forma, tornava tudo ainda mais difícil.

Só mostrava o quanto ela foi estúpida, impulsiva, egoísta.

Ela nunca poderia culpá-lo, ou odiá-lo, ou gritar por ele por nunca ter escalado a janela do seu quarto no meio da noite, por nunca ter feito um piquenique na areia da praia para ela, por nunca ter feito seu coração acelerar com apenas um olhar.

Riley era estável, seguro, tranquilo, fácil.

Ela amava Riley.

Mas não do jeito que ele merecia.

Talvez ele sempre soubesse disso, porque ele a convidou para caminhar pelos jardins da universidade depois da cerimônia, deixando tio Charlie esperando por ela no estacionamento. Ela ainda segurava as rosas que ele lhe deu, os espinhos pressionando levemente seus dedos. Ele ficou em silêncio o caminho todo.

Quando ele finalmente falou, foi sem rodeios.

— Eu recebi a aprovação para o mestrado em Oregon.

Primrose virou-se para ele, sentindo um sorriso automático surgir em seu rosto.

— Isso é incrível, Riley. Eu sabia que você ia conseguir!

Ele olhou para ela então, com um sorriso que não alcançava seus olhos.

— É o que eu sempre quis. Um programa forte, uma boa universidade, fica mais perto dos meus pais também… — Ele respirou fundo, hesitando por um instante. — Você poderia vir comigo.

O silêncio que se seguiu foi tão denso que Primrose quase pôde ouvir o próprio coração batendo acelerado no peito.

— Eu… Riley, eu…

— Eu pensei que a gente ficaria junto para sempre, Rose. — A voz dele quebrou, apenas um pouco, mas o suficiente para fazer seu estômago se contrair. — Eu imaginei tudo. O casamento. A casa branca com varanda e um cachorro. Até os nomes dos nossos filhos, sabia?

Rose sentiu as lágrimas queimando atrás dos olhos.

Oh, Riley.

— Eu achei que você precisava de tempo, que você olharia diferente pra mim em algum momento, que você se apaixonaria. — Ele murmurou, os olhos nublados por um instante.

— Eu realmente sinto muito, Riley.

— Está tudo bem, Rose. Não precisa explicar.

Ele encostou a testa na dela, num gesto tão familiar que fez o peito de Rose doer, porque ela sabia que aquilo era mais despedida do que afeto.

— Não, não está tudo bem. — Ela soluçou, sentindo as lágrimas encherem seus olhos. — O que eu fiz com você foi péssimo. Eu usei você, eu aproveitei o fato de você gostar de mim para tentar preencher o meu vazio, cobrir a minha dor, com você. Foi errado.

Riley afastou-se apenas o suficiente para olhar em seus olhos.

— Não, meu amor. — Seu polegar acariciou sua bochecha, enxugando uma lágrima que ela nem percebeu que tinha caído. — Você me deu ótimos dois anos. Nós nos divertimos e eu fui feliz com apenas metade do seu coração, mesmo que eu visse a culpa em seus olhos sempre que eu dizia que te amava.

— Eu sou uma pessoa horrível. Eu sei disso. E eu sinto tanto, Riley. Eu tentei tanto amar você, eu queria tanto isso, mas eu nunca consegui.

— Está tudo bem, eu já perdoei você.

— Eu não mereço seu perdão.

— Mas você o tem, mesmo assim. — Ele sorriu, ridiculamente suave. — Eu te perdoo, porque eu amo você. Eu te amei, e ainda amo, com tudo o que eu tenho. Até quando eu sabia que você estava comigo pensando em outro.

— Me desculpe, Riley. — Rose sentiu as lágrimas queimando em seu rosto, mas não as enxugou.

— Está tudo bem, querida. Eu quero que você seja feliz. Dói muito, e eu queria tanto ser alguém que grita e briga, que esmaga copos no chão e exige explicações... mas eu te amo tanto que eu prefiro ver você feliz com outro do que apenas meio satisfeita comigo.

Ele pegou o rosto dela entre as mãos, os polegares enxugando as suas lágrimas com uma ternura que a destruiu por completo.

— Você é a melhor pessoa que eu já conheci.

E então, eles se beijaram pela última vez.

Seus lábios se encontraram com uma doçura que cortava como navalha — um beijo de despedida, de perdão, de infinitos "e se" . Primrose sentiu o gosto salgado de lágrimas e não sabia dizer se eram suas ou dele.

Ele a segurou como se fosse sagrada, como se mesmo agora, mesmo depois de tudo, ela ainda valesse todo o cuidado do mundo. E quando se afastaram, Riley deixou ir — não apenas seu corpo, mas toda a esperança que ainda insistia em viver entre eles.

— Eu te amo, Primrose Potter. — Ele sussurrou, com um sorriso que doía de tão gentil. — Adeus.

Riley Biers virou-se e caminhou para longe.

E Rose, com o último beijo de seu ex-namorado ainda ardendo em seus lábios, se sentia horrível. Por nunca ter superado completamente seus sentimentos passados, por ter se jogado em Riley tão descaradamente, usando-o como um casaco emprestado, por ter sido tão egoísta.

E também por sentir o alívio se espalhar em suas veias — era doce, vergonhoso, mas era libertador.

Era hora de, finalmente, enfrentar as sombras que ela sempre empurrou para o canto e correu para não encarar.

O sol se pôs.

E Primrose Potter começou a caminhar sozinha.

 

*

 

Rose voltou para o tio Charlie com os olhos vermelhos. Ele não perguntou. Apenas colocou uma mão no ombro dela enquanto caminhavam em silêncio até o carro, onde o diploma repousava esquecido no banco de trás, ao lado das rosas que Riley que lhe deu e que agora pareciam pertencer a outra vida.

Ele a levou de surpresa para La Push naquela noite. Rose sorriu para a enorme fogueira, os balões coloridos e as tantas pessoas queridas esperando por ela.

Antes que pudesse processar, tio Billy abriu os braços no meio da roda, seu sorriso tão amplo quanto sempre. Jacob estava ao seu lado, já mais alto do que ela lembrava.

Primrose saiu do carro correndo.

O abraço de Billy a envolveu no cheiro de tabaco e madeira queimada que sempre significou lar.

— Parabéns, querida.

Jacob a ergueu, em seguida, em um giro, fazendo-a gargalhar — uma risada alta que ecoou longe e afastou, por um momento, o peso daquele dia.

— Parabéns, Primmy! Finalmente, uma médica na família. — Jake sorriu, os olhos escuros brilhando de orgulho.

Quil apareceu atrás dela como um fantasma, enfiando o cotovelo nas suas costelas.

— E eu preciso de um atestado para faltar à escola amanhã, por favor, Doutora Rose.

— Eu só terminei pre-med, idiota. — Rose revirou os olhos. — E que tipo de má influência vocês acham que eu vou ser?

As risadas se misturavam ao estalar da fogueira, enquanto Rose ia de pessoa em pessoas, recebendo diversos abraços. Curiosamente, até Sam e Emily estavam lá. Rose foi educada, mas não deixou de estremecer com a maneira como Leah bufou de desgosto com a sua polidez.

Ela sentou ao lado da amiga momentos depois, com um refrigerante gelado nas mãos.

— Parabéns pela formatura, Rose.

Rose abriu a lata com um dedo, sorrindo suavemente.

— Obrigada, Leah. Estou feliz que finalmente acabou.

Leah revirou os olhos e soltou um riso curto, jogando um graveto no fogo.

— Sim, agora só faltam mais quatro anos de med school.

Rose bebeu um gole, deixando a espuma do refrigerante queimar em sua língua antes de responder:

— Bem, melhor estar na metade do que ainda não ter começado.

Leah ergueu sua lata de cerveja, o metal cintilando contra o fogo.

— Um brinde a isso, então.

Os recipientes se tocaram com um tilintar frágil, quase perdido no barulho das conversas. Eles ficaram ali, conversando e rindo ao redor do fogo, e, por um momento, ela esqueceu o olhar partido da Riley, sua culpa e seus arrependimentos.

Até que um calafrio subiu pelos seus braços, um formigamento familiar na nuca, a pele arrepiando-se antes mesmo de seu cérebro processar o porquê.

Primrose virou-se lentamente.

Lá, na borda da escuridão, onde a luz das chamas não alcançava, uma silhueta familiar se mantinha imóvel.

Primrose sentiu algo estranho acontecer — uma corrente elétrica percorrendo a sua espinha quando seus olhares finalmente se encontraram após anos. Era como se algo dentro dela tivesse despertado , batendo contra suas costelas como um pássaro enjaulado.

Paul a encarava sem piscar. Sem respirar.

Ele apenas a encarou com uma intensidade que a fez esquecer como seus pulmões funcionavam.

Antes que ela pudesse articular um pensamento, Paul levantou em um pulo. Então, virou-se e desapareceu na floresta.

Primrose ficou paralisada, uma mão instintivamente pressionada sobre seu esterno, onde seu coração batia em um ritmo irregular.

— Que porra foi essa? — Leah perguntou, encarando o local onde Paul estava segundos antes.

Rose engoliu em seco, confusa.

— Não sei.

Leah soltou uma risada ácida.

— Que babaca.

Rose não respondeu.

Mas nas horas seguintes, ao longo da festa, seus olhos voltavam sempre para o mesmo ponto na escuridão, onde Paul tinha sumido, e ela pensava ter ouvido um lobo uivar.

Notes:

Muita coisa ainda precisa acontecer daqui pra frente para que Paul e Rose fiquem juntos, mas é bom chegar até aqui.

Apesar dos sentimentos controversos ao longo dos capítulos, sempre se tratou sobre vê-los como seres humanos com capacidade para sentir múltiplas coisas. Ninguém é 100% nada, porque somos muito mais profundos do que isso.

Então, Paul ainda é um pouco babaca, mas ele tem um coração. E Rose é apaixonada, mas também é um pouco egoísta.

Está sendo uma aventura tentar dar vida a esse casal sem comprometer o cronograma, sem ser irreal (além do fato de ter lobos, vampiros e bruxas nessa história) e ainda colocar tantos sentimentos complexos para fora, mas os comentários são sempre de grande apoio para a minha escrita.

Obrigada por ter lido até aqui. ❤️

Chapter 21: VINTE E UM

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Forks, WA

2002

O telefone quase escapou dos dedos de Rose quando a voz de Zoe explodiu no seu ouvido:

O QUÊ?!

Ela se encolheu, afastando o celular como se pudesse amortecer o choque da próxima frase. Mesmo a quilômetros de distância, conseguia imaginar a expressão de incredulidade da amiga — sobrancelhas arqueadas, boca entreaberta, os dedos abrindo e fechando como sempre fazia quando estava exasperada.

— Isso não é nada demais, Zoe.

Do outro lado da linha, o silêncio durou exatamente dois segundos antes que:

Não é nada demais? Como assim não é nada demais, Primrose? Que porra é essa? Você bateu a cabeça?

Rose esfregou a têmpora, sentindo uma enxaqueca se formar.

— Não era pra ser, nós não combinávamos e foi melhor assim.

Foi melhor assim, ela diz. — Zoe imitou a sua voz num tom exasperado. — Você terminou com o Riley, Rose. Riley Biers. O cara que literalmente todo mundo na faculdade queria. O único ser humano decente naquele maldito campus .

Rose podia quase ver a amiga gesticulando freneticamente, como sempre fazia quando estava empolgada ou prestes a ter um aneurisma por estresse.

— Nós não somos perfeitos juntos tanto quanto você pensa…

Você está com algum tumor cerebral? — Zoe cortou, a voz agora alta e dramática. — Eu sempre posso mudar de área de especialização para tratar você, se for esse o caso. Já vi uma história assim em Dr. House.

Rose interrompeu, rindo apesar da situação.

— Eu não tenho um tumor cerebral, Zoe.

Bem, essa é a única explicação plausível para essa loucura que você fez.

Zoe bufou, e Rose podia ouvir o som distante dela se jogando em algum sofá.

— As pessoas ainda podem terminar amigavelmente, sabia? Nem tudo precisa ser sobre brigas, traição ou sei lá o quê.

Do outro lado da linha, Zoe emitiu um som entre um suspiro e um grunhido.

Ah, minha ingênua e doce Primrose. — Ela respondeu, o tom agora mais suave, mas ainda carregado de ironia. — Isso é o que as pessoas dizem quando não querem admitir que estão cometendo um erro colossal.

— Não foi um erro.

Claro que não. — Zoe concordou, sarcástica. — Assim como não foi um erro cortar seus lindos cachos, beijar um monte de caras estranhos em Seattle, namorar aquele cara de La Push…

Rose engasgou com o próprio ar.

— Isso não tem nada a ver com o Paul.

E no entanto, — Zoe continuou, triunfante. — Essa foi a única coisa que você destacou em toda a minha colocação anterior. Ou seja, eu estou certa.

Rose quase podia ouvir o sorriso de satisfação de Zoe atravessando a linha telefônica.

— Você é insuportável.

E você é um livro aberto. — Zoe retrucou. — Eu só não quero que você cometa os mesmos erros novamente, Rose. Você lembra de como ficou da última vez? Você ficou destruída.

Um uivo distante ecoou do lado de fora, longo e melancólico. Rose pulou do sofá assustada. Seu olhos escanearam freneticamente a janela, procurando por algo.

Nada.

Só escuridão.

Zoe não percebeu.

Olha, eu te amo, tá? Mas você faz escolhas muito questionáveis, fala sério. Terminar com Riley Biers, tá de brincadeira.

Rose ignorou seu coração acelerado, forçando os dedos trêmulos a segurarem o telefone com mais força.

— Eu te amo também. Mesmo você sendo uma intrometida.

Zoe riu, mas a sua gargalhada morreu rápido. Quando falou novamente, sua voz estava mais séria.

Rose, você realmente acha que fez a coisa certa?

— Não sei. — Ela admitiu. — Mas eu sei que não era justo continuar com ele quando meu coração não estava ali por completo.

Zoe ficou em silêncio por um momento.

Bem, pelo menos você está sendo honesta consigo mesma. Mesmo que eu discorde veementemente. — Zoe suspirou. — Mas prometo tentar não ser tão insuportável no café. Só um pouquinho.

Rose sorriu contra a vontade.

— É o máximo que eu posso esperar. — Seu cérebro então processou. — Espera aí. Que café?

O café que você vai pagar pra mim amanhã no Outfitters Grind, às 10h. — Zoe declarou, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

— Eu não sabia que você estava vindo para Forks.

É, eu vou ficar com meus pais por algumas semanas antes de ir pra med school. — Zoe fez uma pausa dramática. — E pra impedir você de tomar decisões que vão exigir que eu diga “eu te avisei” no futuro, aparentemente.

Rose revirou os olhos com tanta força que quase viu o próprio cérebro.

— Claro, Zoe.

Ótimo! Então, amanhã, 10h, Outfitters Grind. Não se atrase.

A ligação terminou com um clique.

Antes de subir as escadas e voltar para o seu quarto, Rose olhou mais uma vez para a janela — uma chuva fina caia tranquilamente sobre as calçadas, as árvores balançavam com o vento, a rua vazia estava iluminada pelos postes.

Uma corrente de ar frio a fez sentir um arrepio percorrer a sua espinha. Rose esfregou os braços, sentindo o corpo estremecer.

Com um último olhar desinteressado para a escuridão lá fora, Rose subiu lentamente para o quarto, tendo cuidado para não acordar o tio Charlie. A porta fechou com um click suave e ela se acomodou na cama quente para dormir.

Lá fora, entre os pinheiros, uma sombra grande demais para ser um animal comum se dissolveu na escuridão.

 

*

 

O cheiro de bacon queimado invadiu o quarto de Primrose antes mesmo do despertador tocar. Ela enterrou o rosto no travesseiro, tentando ignorar os sons familiares do tio Charlie cometendo um assassinato na cozinha.

Quando desceu, encontrou o tio sobre a pia, raspando os restos carbonizados de algo que poderia ter sido bacon em outra vida.

— Bom dia, querida. — Ele disse sem virar, dedos grudentos de gordura. — Tem café pronto.

Rose resmungou, ainda sonolenta, enquanto se servia da única coisa que seu tio sabia fazer sem risco de incêndio. O primeiro gole queimou a língua — perfeito.

Tio Charlie largou a espátula com um tilintar dramático.

— Então… — Ele se apoiou no balcão, bigode tremulando. — Você quer falar sobre o garoto?

— Qual garoto? — Rose murmurou, sabendo muito bem qual.

— Aquele que era seu namorado há menos de 24 horas. — Ele abriu a geladeira com o pé, habilidade adquirida em anos de solteirice, e sacou um pote de geleia. — O Riley.

— Não tem nada demais, tio Charlie. Ele passou em um mestrado no Oregon e nós decidimos terminar.

Charlie fez aquele ruído gutural que só homens na casa dos 40 e pais sabem fazer — algo entre “hmm” e “não me venha com essa”.

— Sei. — Ele espetou uma colher na geleia. — Eu pensei que você ia tentar med school em Oregon, então. Para ficar perto dele, sabe?

— É… nós achamos melhor eu não fazer isso.

O tio inclinou a cabeça, os olhos se estreitando, enquanto ele se sentava à mesa e passava a geleia no pão bem devagar.

— Você parecia bem chateada ontem.

Ela encolheu os ombros, tentando parecer despreocupada.

— É, bem, foi difícil.

— Mas você parece muito bem hoje.

Rose forçou um sorriso.

— Bem, eu não quero sofrer por isso…

— Isso não tem alguma coisa a ver com aquele garoto Paul, tem? — Seus olhos seguiam cada micro expressão do rosto dela. — Eu vi ele te olhando ontem na Reserva. Parecia que ele queria te comer… e não de um jeito bom.

Rose engasgou, o café indo pelo lugar errado.

Tio Charlie!

— O quê? Eu não sou cego, garota.

Rose esfregou o rosto, sentindo a conversa escorregar para terrenos perigosos.

— Certo, tudo bem. — Ela soltou o ar num suspiro. — Eu não fui muito legal. Fiquei com o Riley porque... você sabe. Pensava que poderia superar meus sentimentos passados. Riley me amava. Eu não o amava de volta. Quando ele me chamou para ir embora para o Oregon com ele... bem, não seria justo. Então, terminamos.

Charlie ficou quieto por um longo momento, os olhos perdidos no fundo de sua xícara de café como se buscasse sabedoria no borrão de pó no fundo.

— Hmm. — Ele finalmente declarou. — Isso é realmente difícil.

Rose esperou. E esperou. Um segundo. Dois.

— Sério? Esse é o seu grande conselho?

O tio ergueu uma sobrancelha, ofendido.

— O que você quer que eu diga? Eu sou um ótimo ouvinte! — Ele apontou para si mesmo com a faca de manteiga.

Rose bufou, divertida.

— Obrigada, Sr. Chefe de Polícia.

Ele limpou o bigode com ar solene, mas seus olhos castanhos brilharam maliciosamente.

— E então? O que você vai fazer?

Ela franziu a testa, desconfiada.

— Nada?

— Billy me disse que o garoto Paul se formou, está começando a sua própria empresa de construção…

Rose sentiu o rosto esquentar.

— De onde veio isso? Não foi você que odiou ele por ter quebrado o meu coração?

— Bem, ele era um adolescente irresponsável, mas agora ele é um adulto e você também. — Ele pegou a chaleira e encheu a sua xícara novamente, deixando o silêncio se alongar entre eles. — Sabe, Rose… Eu vi o quanto você sofreu por causa desse garoto, primeiro trancada em seu quarto, depois com aquela fase de viajar para Seattle com Leah todo fim de semana, e agora todo esse negócio com o Riley.

Rose apertou a xícara entre as mãos, sentindo o calor quase queimar as suas palmas.

— Não foi tão simples…

— Nunca é. — Charlie suspirou, o bigode tremendo. — Mas olha só, eu sei pelo seu olhar que você cometeu muitos erros e quer consertar isso. Não sei se isso significa voltar com o Paul ou não, mas o que você não pode fazer é ser irresponsável com os sentimentos das pessoas, você entende isso, certo? Isso faz mal pra todo mundo. Principalmente pra você.

— Você acha que eu não sei? — Ela murmurou, a voz mais baixa. — Que eu não me odeio um pouco por ter feito isso com o Riley? Ele não merecia nada disso.

— Ódio não resolve nada, querida. Só dói mais. — Ele apontou para ela com a faca. — O que você faz agora é que é importante.

— E se eu não souber o que fazer?

Tio Charlie soltou um riso rouco.

— Ah, mas você sabe. Só tá com medo de admitir. — Ele levantou com um gemido, levando as xícaras agora vazias para a pia. — Vocês dois cometeram muitos erros e vão precisar de tempo e muita conversa para se resolver. Mas só faça isso se você estiver realmente disposta a enfrentar todos os problemas que vão surgir, porque não vai ser fácil… Mas, olha, o Paul cresceu. Você cresceu. Riley merece seguir em frente em paz. E você merece ser honesta consigo mesma. Pela primeira vez.

— Não sei se eu estou pronta.

Tio Charlie acenou com a cabeça, o bigode escondendo um sorriso.

— Não precisa ter pressa.

E então eles ficaram em silêncio.

Tio Charlie começou a lavar a louça do café da manhã, enquanto Rose limpava as superfícies e secava os pratos.

Rose observou o homem que um dia era apenas um estranho de bigode, olhos cansados e o alcance emocional de uma colher de chá. Quando ela ainda tinha apenas 14 anos, trêmula e insegura, eles foram forçados a aprender juntos como viver em um mesmo espaço. Tio Charlie mal sabia abraçar sem ficar tenso, e Rose tinha medo até de falar mais alto.

Eles ainda não aprenderam tudo, com certeza não — mas era nesses momentos que ela enxergava mais do que apenas o tio e a sua sobrinha, eles pareciam pai e filha de verdade.

Uma família.

Não apenas sangue compartilhado, mas silêncios compreendidos, conselhos na mesa do café da manhã, portas sempre abertas.

Rose saiu para encontrar Zoe com o coração mais leve.

E atrás dela, Charlie observou pela janela, como sempre, até o carro desaparecer na esquina.

 

*

 

— Mal posso acreditar que nós duas vamos para a University of Washington School of Medicine juntas. — Zoe bateu as mãos na mesa, fazendo as xícaras tremerem e atraindo olhares dos outros clientes do café.

Rose afundou um pouco mais na cadeira, tentando se esconder atrás do menu.

— Sim, Zoe, eu entendi da primeira vez que você falou.

A amiga inclinou-se sobre a mesa, os olhos estreitando.

— Você tá muito rabugenta.

Rose ergueu uma sobrancelha.

— Por que você tá tão maluca, afinal?

Zoe mergulhou o croissant no café antes de falar com um sorriso orgulhoso.

— Eu liguei pro Riley hoje cedo, sabia? Ele…

— Não quero saber. — Rose cortou, colocando a xícara na mesa com força desnecessária.

Zoe ignorou o tom, mastigando pensativamente.

— Sim, sim… — Engoliu e apontou o garfo para a amiga. — Mas ele tá arrasado, Rose. O cara literalmente…

— Zoe. — Rose fechou os olhos por um segundo. — Sério. Não.

Zoe suspirou, recostando-se na cadeira, com um beicinho exagerado.

— Você é tão rude.

— Eu acho melhor deixar o Riley em paz, só isso.

— E eu só acho que você deveria ter se esforçado mais.

Zoe, por favor!

Zoe abriu a boca para protestar, mas ao ver a expressão de Rose, desistiu.

— Tá, tá, vou mudar de assunto.

— Obrigada. — Rose ergueu a xícara de café em um brinde silencioso.

— Então… — Zoe começou de novo, abrindo um sorriso. — Você já viu quais serão as suas disciplinas?

E, por um momento, tudo voltou ao normal.

Notes:

Charlie Swan: policial, tio, pai e casamenteiro.

Chapter 22: VINTE E DOIS

Chapter Text

Forks, WA

2003

Rose dirigiu para casa, após finalmente terminar o seu primeiro ano na Faculdade de Medicina, e sentiu os primeiros sinais de inquietação. A sensação se instalou em sua pele como uma coceira, e ela se viu forçada a acelerar um pouco mais o carro quando viu a placa de boas-vindas da cidade.

Para se distrair, ela ligou o rádio — uma música pop tocou de plano de fundo na estrada — e tentou se concentrar nos últimos meses. O primeiro ano da Faculdade de Medicina tinha sido um furacão de teoria, laboratório e muito café. E apesar de ela e Zoe ainda dividirem todas as suas aulas, pelo menos a amiga parecia ter superado a fase de você-jogou-fora-o-homem-perfeito. Agora, a sua única preocupação era passar em patologia sem enlouquecer ou vomitar no professor, o que Rose agradecia aos céus.

Já Leah, por outro lado, não havia esquecido ou perdoado, o que era completamente irracional. Rose sabia que, provavelmente, Leah só se sentia assim, porque se via em Riley — sendo jogado fora por uma pessoa que não o amava. Mas, obviamente, não foi bem assim, e Leah não parecia querer ouvir nenhum de seus argumentos.

Então, normalmente, seus encontros eram repletos de comentários cortantes e mensagens subliminares — especialmente agora que Paul parecia surgir sempre nos lugares mais inusitados, lançando estranhos e longos olhares para Rose, e fazendo Leah ferver em seu descontentamento, como se tudo fosse apenas um grande plano dela para se tornar um tipo de Sam 2.0, ou sei lá o quê. Rose, realmente, não sabia e não se preocupou em decifrar o cérebro de Leah.

O GPS marcava quinze minutos restantes quando o celular tocou. Rose tirou os olhos da estrada por um segundo para atender.

Oi, querida. Você está perto?

A voz áspera do tio ecoou pelo viva-voz.

— Chegando, tio Charlie. Já estou em Beaver.

Ótimo. Você pode passar no Outfitters e trazer alguns bifes pro jantar?

Rose sorriu. Bife grelhado era realmente a única coisa que o tio fazia muito bem na cozinha, e era sempre o jantar compartilhado quando ela voltava para casa.

— Claro, tio. Te vejo em breve.

Rose desligou e, em alguns minutos, virou na saída seguinte, em direção ao mercado local. O estacionamento estava quase vazio, como de costume. A chuva havia diminuído para um leve chuvisco, e ela correu para dentro, evitando as poças no caminho.

O interior do Outfitters estava quente e Rose suspirou, enquanto pegava um cesto e seguia para a seção de açougue, onde os bifes estavam arrumados em filas perfeitas sob as luzes do balcão refrigerado.

A sua inquietação havia retornado como um enxame de formigas sob a sua pele — um formigar insistente que a fazia querer arranhar os próprios braços ou gritar para aliviar a pressão. Rose ficou diante do balcão de carnes, com os olhos fixos nas embalagens de bifes, sem realmente enxergar o que estava diante dela.

Alguém a observava.

A percepção arrepiou todos os pelos da sua nuca, fez o ar ficar mais pesados, seus músculos tensionando-se em alerta, e ela engoliu o gosto ácido do medo em sua boca

Foi quando sentiu: um calor agudo circundando seu dedo anelar. Havia algo ou alguém tentando atravessar as barreiras da sua mente.

Rose pegou duas embalagens de carne ao acaso, os dedos tremendo levemente contra o plástico frio. Virou-se com movimentos deliberadamente lentos, deixando os cachos ruivos caírem diante do rosto, enquanto seus olhos varriam o mercado.

E então, ela o viu.

Um homem. Parado entre as prateleiras de enlatados, pegando produtos sem realmente olhar para eles. Imóvel como uma estátua e pálido demais para estar vivo. Seus traços eram esculpidos com uma perfeição que não pertencia ao mundo humano, seus cabelos cor de bronze eram artisticamente bagunçados e seus olhos dourados queimavam na direção de Rose com uma curiosidade quase científica.

Quando seus olhares se encontraram, Rose sentiu o anel queimar com força renovada — uma dor aguda que a fez cerrar os punhos.

Saia.

Saia agora.

Rose ouviu seus instintos gritarem em sua cabeça como um alarme. Antes de pensar, seu corpo reagiu — ela jogou os bifes no balcão de caixa, enfiou uma nota na mão da atendente e saiu em passos largos, ignorando o seu troco.

O estacionamento estava vazio demais.

A chuva fina criava um véu fantasmagórico no ar, distorcendo as luzes dos postes. Seus tênis esmagaram poças esquecidas enquanto ela andava rápido, o coração batendo tão forte que doía, o sangue rugindo em seus ouvidos. As chaves escorregaram em seus dedos trêmulos, enquanto Rose tentava tirá-las do seu bolso.

O clique do carro destrancando parecia alto demais no estacionamento silencioso. Ela agarrou a maçaneta…

…E uma mão grande e quente fechou sobre a sua.

Rose soltou um grito engasgado, girando para encontrar Paul a menos de um palmo de distância, seus olhos castanhos encarando-a com preocupação.

— Você está bem?

Ela engoliu em seco, os olhos escaneando freneticamente o estacionamento atrás dela. Nada. Apenas névoa, chuva fina e o estacionamento vazio.

— Sim. Não é nada. — Ela sussurrou, puxando a porta do carro com força. — Eu só achei que tinha visto alguma coisa.

Paul não soltou seu pulso. Seus dedos queimavam contra a sua pele.

— Você tem certeza?

Foi então que Rose realmente percebeu com quem estava falando. Ela arrancou o braço do seu toque como se tivesse sido queimada.

— O que você está fazendo aqui, afinal?

Paul recuou um passo, as mãos se erguendo em um gesto de rendição.

— Eu, er, eu vim comprar uma coisa. — Ele gaguejou.

Rose olhou para as suas mãos vazias, depois de volta para o seu rosto, uma sobrancelha arqueada.

— Sério?

Ele segurou seu olhar por um segundo antes de desviar, esfregando a nuca.

— É, sim, bem… não tinha nesse mercado.

— Hum. Ok, então. — Rose deu de ombros, não querendo realmente desvendar esse… problema. Ela entrou no carro. — Tchau.

Paul agarrou a borda da porta antes que ela pudesse fechá-la.

— Espera. Rose, olha, eu sei que a gente não tem se falado muito, mas, olha… eu… — Ele respirou fundo, tentando encontrar as palavras. — Você poderia me dar uma carona?

Rose franziu a testa.

— Como você chegou até aqui?

— Er… eu corri. — A frase saiu mais como uma pergunta do que afirmação.

— Você correu.

— Sim…

— De La Push até Forks?

— Sim…?

— Você sabe que isso dá umas seis horas de caminhada, né?

Paul olhou para os próprios tênis encharcados, depois para o céu cinza, como se esperasse que uma resposta caísse das nuvens.

— Eu… corro rápido?

Ela levantou uma sobrancelha, pronta para continuar a argumentar e tentar entender o que estava acontecendo ali — especialmente quando ela e Paul não se falavam há anos e ele decidiu, do nada falar com ela —, quando o homem pálido saiu do mercado.

— Entra no carro. — Ela disse rispidamente, o coração acelerando novamente.

Paul não precisou ser convidado duas vezes. Ele deu a volta no carro, pronto para sentar no banco de passageiro.

— Você o conhece? — Paul perguntou, observando-a encarar o homem do outro lado do estacionamento.

O motor roncou quando Rose começou a manobrar em direção à avenida.

— Não. Eu o vi no mercado, ele é… muito estranho.

Paul fez um ruído de concordância no fundo da garganta.

— Sim.

— E você? Sabe quem é?

— Um dos Cullen. — Ele disse o nome como se fosse uma maldição. — Eles chegaram há alguns meses na cidade. Uma família inteira.

A chuva batia no para-brisas como pequenos dedos insistente. Rose apertou o volante até os nós dos dedos ficarem brancos, lembrando da queimadura anterior.

— Eu não sabia.

— Você não estava por perto.

E então eles ficaram em silêncio.

Foi a conversa mais estranha que ela já teve na vida, provavelmente, porque ela ainda tentava se acalmar do susto anterior ou, muito provavelmente , porque ela estava tendo uma conversa com um homem com quem ela não interagia há anos.

Rose percebeu o quão estranho era aquilo.

Ela deveria estar com raiva. Deveria frear o carro e jogá-lo para fora na próxima curva. Mas em vez disso, ela ofereceu uma carona e estava ali, sentada a menos de um metro de distância dele, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Como se não houvesse tantas histórias e perguntas sem respostas entre eles. Como se seu coração não batesse forte demais apenas em vê-lo novamente.

A vida tinha um senso de humor perverso.

— Onde você quer que eu te deixe? — Ela perguntou, quebrando o silêncio.

— Pode ir para a sua casa, eu posso caminhar de lá.

— Ok…

Quando o carro parou em frente à casa, nenhum dos dois fez qualquer movimento para sair. O silêncio pesava como um cobertor úmido, abafando qualquer palavra que tentassem dizer.

Foi Paul quem finalmente falou, as palavras saindo em um sopro, como se ele não tivesse certeza se deveria dizê-las.

— Rose… Eu estava pensando, er, talvez a gente possa sair um dia desses?

O coração dela deu um salto no peito, mas em vez de responder, Rose ficou em silêncio, mastigando cada palavra antes de respondê-las.

— Eu sinto muito, Paul…

Ele encolheu os ombros, rápido demais, como se tivesse levando uma facada no estômago, como se já esperasse a rejeição.

— Eu sei, tudo bem… Foi besteira…

— Não é isso. — Ela respirou fundo. — Olha, eu não consigo agora. Eu não quero repetir a mesma coisa de antes.

Paul baixou os olhos, as mãos trêmulas se fechando no colo.

— Eu sei…

— Esquecer você foi a coisa mais difícil que eu já fiz, e eu não sei se eu conseguiria fazer isso de novo. — Ela olhou para o parabrisa, sem coragem para encará-lo. — Eu não quero ser precipitada.

Ele não respondeu de imediato. A chuva batia no teto, marcando os segundos. Quando ele finalmente ergueu o rosto, havia uma aceitação triste em seus olhos.

— Talvez um dia?

Rose sorriu, pequeno e dolorido.

— Talvez um dia.

Paul acenou com a cabeça, abriu a porta e saiu na chuva sem olhar para trás.

Rose ficou ali parada, as mãos ainda grudadas no volante, observando a sua silhueta pela janela embaçada até ele desaparecer na névoa. A imagem dos ombros largos de Paul encolhidos contra o vento, da cabeça baixa enquanto ele desaparecia no fim da rua, ficou gravada atrás de suas pálpebras.

Você fez a coisa certa, tentou se convencer.

Mas então, por que ela se sentia como a pior pessoa do mundo?

 

*

 

Foi só mais tarde, quando Rose estava com a barriga cheia de bife e purê de batatas, ainda sorrindo das piadas ruins do tio Charlie — enquanto empurrava toda a interação com Paul para o fundo da sua mente —, e quentinha sob o edredom da sua cama que ela lembrou do homem pálido.

Seus dedos encontraram automaticamente o anel no escuro — agora frio e inócuo. As lembranças daqueles olhos dourados fixos nela no mercado ainda faziam seu estômago embrulhar.

Havia algo errado naquele homem.

Algo que fazia cócegas no fundo de seu cérebro, como se uma lembrança antiga estivesse presa no fundo da sua mente, tentando vir à tona.

Rose virou de lado, o travesseiro cheirando a sabão em pó, os dedos se contraindo no edredom, enquanto tentava puxar das memórias as suas lições sobre criaturas. Era uma aula do professor Lupin, ela lembrava disso.

Ele falou sobre criaturas de pele fria e pálida, mais fortes e rápidas do que qualquer bruxo, com olhos que brilhavam em vermelho quando sentiam fome.

Qual era o nome?

A memória escapulia como água entre seus dedos. Lupin mencionou algo sobre dietas alternativas, certo? Ou eram criaturas que podiam se passar por humanas.

Talvez fosse uma criatura diferente? Ele não tinha olhos vermelhos, afinal. Ou então ele era um bruxo das trevas?

Não era isso, havia algo mais… Ela estava esquecendo de algo…

O cansaço finalmente venceu a sua curiosidade. Antes que Rose pudesse chegar a qualquer conclusão, o sono a puxou para baixo, levando consigo as perguntas sem resposta.

Na manhã seguinte, tudo pareceria um sonho estranho — exceto pelo anel ainda firme em seu dedo e a lembrança de olhos dourados.

Chapter 23: VINTE E TRÊS

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Rose acordou com a sensação de que algo estava errado.

O quarto estava parcialmente escuro, iluminado apenas por um feixe da luz da lua que brilhava através de uma fenda na cortina, pintando listras fantasmagóricas no chão. Ela se sentou na cama, sentindo-se estranhamente alerta, e então ela ouviu algo — era um arranhão, um sussurro do lado de fora.

Sem pensar, seus pés tocaram o chão frio. O assoalho rangeu sob seu peso, mas o som parecia abafado, como se ela estivesse debaixo d’água. Ela levantou. A porta estava entreaberta, embora ela jurasse tê-la fechado.

Ela caminhou pelo corredor, com os pés descalços batendo suavemente no piso de madeira. A casa estava deserta, mortalmente silenciosa, e o ronco familiar do tio Charlie não vinha do quarto dele. A cozinha, iluminada apenas pelo brilho azulado do relógio sobre a geladeira, estava mais fria do que o normal. Não era difícil adivinhar o porquê — a porta dos fundos estava aberta, balançando levemente contra o vento noturno.

Rose não queria sair de casa. Mas seus pés a levaram mesmo assim.

A grama estava úmida e gelada. A floresta se erguia como uma catedral de sombras, seus galhos se retorcendo em formas que não eram naturais. E o coração de Rose estava acelerado, batendo contra as suas costelas dolorosamente

Ela sentiu antes de ver.

Um sopro gelado escorregou por sua nuca.

Mãos invisíveis acariciaram seus ombros.

Rose girou devagar, seus músculos pesados como chumbo, e lá estava — um par de olhos dourados.

Não, vermelhos.

A figura por trás deles era apenas uma silhueta alta demais, pálida demais, sorrindo, de orelha a orelha, com dentes afiados demais.

E então, um uivo dilacerou a noite.

A criatura virou a cabeça num ângulo impossível, como um pássaro de rapina detectando uma presa distante.

Foi sua chance.

Rose girou nos calcanhares, pronta para correr.

Quando levantou os olhos, a criatura estava de volta à sua frente, como se Rose nunca tivesse se movido.

E então, ela acordou engasgando.

Seu próprio grito estava preso na garganta, o suor frio colando seus cabelos na nuca. Seus dedos arranharam a própria pele, procurando marcas que tinham que estar lá.

Nada.

Apenas sua pele intacta, úmida de suor frio, e o batimento acelerado do coração que parecia querer escapar do peito.

Fora da janela, as primeiras luzes do amanhecer filtraram-se pelas cortinas, tingindo o quarto de um laranja pálido. O relógio na mesa de cabeceira marcava 6h17 da manhã.

Rose engoliu em seco, os olhos ardendo de cansaço, mas sabendo que não dormiria mais. Esfregou os olhos com as mãos em concha, pressionando as palmas contra as pálpebras até ver explosões de luzes coloridas.

Ela se sentia uma idiota por ter ficado remoendo histórias de criaturas antes de dormir, por ter deixado a imaginação correr solta. E agora, ela havia tido uma péssima noite de sono, deixando seu corpo pesado pela noite mal dormida e sua mente cheia de bobagens.

Desceu as escadas com passos silenciosos, evitando os degraus que rangiam. Rose ligou a cafeteira, acendeu o fogão e começou a preparar o café da manhã, enquanto pensava novamente no homem pálido.

Ela estava inquieta, sentindo que algo estava realmente errado, mas não sabia dizer o quê. Rose não tinha certeza se aquele homem era um bruxo, uma criatura ou apenas uma trouxa muito estranho.

De qualquer forma, ela esperava lembrar de algo ou torcer para nunca mais encontrá-lo novamente em Forks.

— Bom dia, querida.

A voz do tio Charlie fez ela dar um salto, quase derrubando a xícara que estava pegando.

— Deus! — Ela colocou a mão no peito, respirando fundo. — Ah, desculpe, tio. Bom dia.

Ele franziu a testa, examinando o rosto dela atentamente.

— Você dormiu bem? Você parece doente.

— Não… sim. — Ela encolheu os ombros, virando para se acomodar à mesa. — Estou bem, só tive um pesadelo.

— Você poderia ter dormido mais, querida. — Ele pegou a garrafa de leite na geladeira e balançou, verificando se ainda tinha. — Você está de férias.

— Sim, bem, eu não consegui. — Ela mordeu o lábio, hesitante. — Você sabe quem são os Cullen?

— Os Cullen? — Ele pausou, a tampa da garrafa meio aberta. — Eles se mudaram pra cá há alguns meses, enquanto você ainda estava na faculdade. Por quê?

— Nada. Eu encontrei um deles no mercado ontem… — Ela girou a xícara entre os dedos. — Ele parecia estranho.

Tio Charlie congelou, os olhos fixos nela.

— Você acha que são bruxos?

— É difícil dizer, talvez não, mas… bem… — Ela evitou o olhar dele.

— Ele fez alguma coisa com você?

— Não… mas meu anel esquentou.

O silêncio que se seguiu foi pesado. O tio Charlie fechou a garrafa de leite devagar.

— Isso significa…?

Rose respirou fundo.

— Tentativa de leitura, ataque ou controle mental.

— Você acha que está em perigo? Eu sei que você disse que as jóias e pedras nos protegem, e que o mundo mágico não te procura mais, de acordo com os jornais, mas… você acha que ele é uma ameaça?

Rose enrolou a ponta do cabelo no dedo, evitando o olhar do tio.

— Eu ainda não sei. Ele parecia mais curioso do que perigoso ontem… — Curioso como um gato olhando para um pássaro que ele quer caçar, ela pensou, mas engoliu a comparação.

Ele estudou o rosto dela por um segundo a mais do que o confortável.

— Eu vou ficar de olho. Se ele der um passo errado, nós vamos dar um jeito, certo?

— Tudo bem. Obrigada, tio Charlie.

— Então, Billy nos convidou para passar lá hoje. — Ele mudou de assunto. — Vai ter jogo dos Mariners. Você quer ir?

— Claro, eu posso ficar um pouco com o Jake e ver Leah.

— Como ela está, afinal?

— Um pouco mais rabugenta do que o normal. — Rose fez uma careta.

Tio Charlie deu uma risada seca, balançando a cabeça.

— Ela vai superar isso, eu tenho certeza.

Rose bufou.

— É, eu espero que sim.

 

*

 

O carro do tio Charlie estacionou no terreno de terra batida em frente à casa do tio Billy. Antes mesmo de Rose descer, uma voz levemente rouca gritou da varanda.

— Olha só, é a Primmy. — Jake desceu os degraus da frente em dois saltos, os braços abertos.

Rose deu uma risada ao ver o garoto — não, quase um homem — que agora tinha uns bons dez centímetros a mais que ela.

— Deus, Jake! O que o tio Billy está te dando de comer? Fermento?

— Pura genética dos Black, querida — Tio Billy respondeu, os ombros encostados no batente da porta, erguendo uma latinha de cerveja em saudação. — Vamos lá, pessoal, entrem. Charlie, a geladeira tá cheia pra compensar a surra que o Mariners vai levar dos Rangers hoje.

Tio Charlie grunhiu ao passar por Jake e Rose e entrar na casa ao lado do tio Billy.

— Só porque o seu time tem um arremessador decente pela primeira vez em dez anos…

— Decente? O cara tá voando! — Jake abriu a porta com um floreio exagerado, os olhos brilhando de diversão. Rose aproveitou para esgueirar-se por baixo de seu braço estendido e correu em direção ao tio Billy.

Ela o envolveu em um abraço apertado, e caminharam lado a lado para dentro da casa. De repente, o pé esquerdo de Billy arrastou-se levemente no chão, fazendo-o cambalear. Rose segurou seu braço com firmeza.

— Opa. Você tá bem, tio Billy?

Billy deu uma batida afetuosa nas costas da mão que o segurava,

— Eu tô bem, garota. Só um formigamento nos pés há um tempo, mas é bobagem.

Rose franziu a testa, os dedos apertando involuntariamente o braço dele.

— Você deveria ir a um médico.

— Só por causa de um formigamento? — Ele resmungou, os olhos cintilando de divertimento.

— Sim, claro.

Tio Billy bufou.

— Claro, querida. Quando você se formar, eu me consulto com você toda semana, pode ser?

O riso que se seguiu ecoou pela casa de madeira, e Rose revirou os olhos.

Dentro da casa, eles sentiram o cheiro de pipoca, peixe frito e cerveja, e a televisão já ligada nos primeiros minutos de jogo. Jake colocou um cobertor xadrez no sofá desgastado antes de se jogar, puxando Rose pelo braço para sentar ao seu lado.

Rose riu, afundando no lugar enquanto Jake dividia o cobertor sobre os dois como costumavam fazer quando crianças — ele sempre reclamava que ela roubava a parte maior, ela sempre respondia que as primas mais velhas tinham direitos especiais, ainda que eles se vissem mais como irmãos.

Na TV, o jogo começava ao som das vaias animadas do tio Billy e dos protestos fingidos do tio Charlie.

Rose sorriu, sentindo o aconchego familiar e o peso nos ombros aliviar brevemente. Por um instante ela permitiu-se esquecer do seu pesadelo, da imagem do homem pálido e da lembrança constante de olhos castanhos.

 

*

 

Quando já passava mais da metade do jogo, Rose sentiu uma cutucada firme nas costelas. Seu corpo afundou mais pesadamente no ombro de Jake antes que ela percebesse que tinha cochilado.

— Ei, dorminhoca. — Jake sussurrou, o tom baixo da voz fazendo vibrar levemente seu ombro onde ela estava encostada. — Você tá babando em mim.

Rose ergueu o rosto com um piscar pesado de olhos, sentindo a marca do tecido na bochecha.

— Eu não babei em nada. — Ela murmurou, esfregando os olhos com as costas da mão. Mas quando olhou para o ombro de Jake, uma pequena mancha úmida no tecido cinza a traiu. — Ok… talvez só um pouquinho. Desculpe, Jake, eu não dormi bem essa noite.

— Sério? Por que não?

— Pesadelos.

— Sobre o quê?

— Bem, er… Eu não sei, na verdade. — Ela puxou os joelhos contra o peito. — Eu lembro que saía de casa na madrugada e ia até o quintal, então havia esse homem pálido e de olhos vermelhos na minha frente, e então um lobo uivou.

Na poltrona, o tio Billy fez um ruído estranho com a garganta, como se tivesse engasgado com a cerveja. Jake, porém, soltou uma gargalhada despreocupada.

— O que você anda lendo para sonhar com os Frios?

Rose piscou, confusa.

— Os… o quê?

— Vampiros, Primmy. — Jake fez uma careta dramática. — São as histórias da nossa tribo, sabe? Os Frios são os inimigos e nós somos os espíritos dos…

Na poltrona, tio Billy tossiu abruptamente.

— Jake. — Ele disse, a voz mais áspera do que o normal. — Você pode trazer mais uma cerveja da geladeira, filho?

Quando Jake saiu, resmungando, Rose ficou sentada atordoada, enquanto os fragmentos da sua memória se encaixavam, lembrando-a sobre o quê exatamente era aquela aula do professor Lupin anos atrás.

Vampiros.

O homem do mercado — não, não um homem —, aquela coisa de pele pálida e fria, os olhos dourados que a fitaram com um interesse anormal, uma intensidade que não era humana. O seu corpo imóvel demais para ser considerado algo que não fosse uma criatura.

Ela olhou para a mão, a pele ainda lembrando da maneira como o anel queimou. Não era a sua imaginação lhe pregando peças.

Havia um clã inteiro de vampiros em Forks.

— E aí? Quer passar nos Clearwater?

A voz de Jake a fez saltar no sofá como se tivesse levado um choque.

— Claro, vamos lá.

Levantou-se rápido demais, quase tropeçando no próprio casaco ao vesti-lo. Jake arqueou uma sobrancelha, mas não comentou — apenas segurou a porta para ela passar.

Atrás dela, Billy Black a encarou com olhos escuros e carregados de preocupação.



 

— O que você disse antes sobre os… Frios? O que você queria dizer, Jake? — Rose insistiu, desviando de um galho baixo, enquanto seguiam a estrada em direção à casa dos Clearwater.

Jake deu um suspiro exagerado, empurrando um ramo de abeto para que Rose pudesse passar.

— Ah, bem. Essa é uma das lendas da nossa tribo, sabe?

— Sério? Tipo o quê?

— Olha, a história real - a que meu avô contava, pelo menos - começa com K'wa'iti , o Transformer .

Uma brisa súbita agitou as folhas do chão, e Jake pegou uma e começou a rasgá-la em pedaços enquanto falava.

— Nós não "somos descendentes de lobos" como alguns livros dos brancos dizem. — Ele fez aspas no ar com os dedos. — Nós fomos transformados, sabe? Moldados de lobos para humanos, mas mantivemos a nossa essência do caçador, o espírito do protetor. Por isso é que dizem que o nosso sangue ainda canta quando o perigo se aproxima. É o nosso instinto, entende?

Rose observou como ele evitava cuidadosamente qualquer tom sobrenatural.

— Agora esses tal de Frios? — Jake fez uma careta, jogando os restos da folha para longe. — Pff. Isso aí é conversa de missionário. Meu avô dizia que os padres inventaram essas histórias de vampiros para assustar o povo e fazer a gente esquecer da nossa verdadeira história.

Ele parou abruptamente quando a casa dos Clearwater apareceu entre as árvores à frente — uma estrutura de madeira modesta com fumaça saindo da chaminé.

— Mas sabe como é... — Jake continuou. — Depois que os brancos chegaram com as suas bíblias e suas armas, até as lendas deles começaram a se misturar com as nossas. É aí que entra a história dos Frios. E até tem gente que jura que eles existem de verdade, e que nosso sangue de lobo pode ser a única coisa que os detém.

— Você não acredita? — Rose sussurrou, atenta.

— Eu não sei… — Ele encolheu os ombros. — Eu acredito na minha cultura, mas não acho que existam vampiros e lobos de verdade. Mas meu avô jurava que essas histórias eram reais, e até o pai sempre fica sério quando eu falo delas. Você viu o jeito que ele ficou quando eu tentei te contar lá em casa.

Quando pisaram no alpendre da casa, Jake já tinha esquecido completamente da conversa, empurrando a porta sem bater enquanto gritava:

— Seth! O Embry e o Quil chamaram para jogar Need For Speed! Vamo—

O resto das palavras se perdeu quando ele desapareceu no corredor, deixando Rose parada na entrada, ainda perplexa, com os dedos gelados.

Jake acreditava que tudo isso eram apenas histórias da tribo, mas se magia existia, se dementadores e lobisomens eram reais, então por que também não acreditar que existem homens-lobos e vampiros lá fora?

A verdadeira questão, na verdade, era: o que eles querem aqui em Forks?

— Você vai ficar aí parada a noite toda?

A voz cortante de Leah a fez pular. A garota estava encostada no batente da porta do corredor, os braços cruzados no peito, e uma expressão de completo tédio em seu rosto.

— Ei, Leah.

Leah virou as costas e caminhou até o seu quarto sem sequer dizer uma palavra, onde se jogou na cama de costas. Rose a acompanhou, e se acomodou em uma cadeira perto da janela.

— Tá tudo bem? — Rose insistiu.

— Ótima. Maravilhosa. — Leah fez uma careta. — Especialmente agora que o Sam pediu a perfeita Emily em casamento.

— Er, sei… — Rose realmente não sabia. Ela achava que Leah tinha superado tudo isso, mas ultimamente ela parecia duplamente chateada e se tornando mais irritada e amarga a cada dia.

Parecia que todo aquele tempo tentando superar o Sam tinha ido por água abaixo e ela estava de volta na estaca zero.

Rose tentou mudar de assunto.

— Eu… encontrei um cara estranho no mercado ontem. — Ela tentou manter a voz casual. — Pensei que você talvez soubesse quem é. Um tal de Cullen?

Leah ergueu uma sobrancelha.

— Cullen? — Repetiu o nome, confusa. — Não é a família que se mudou para Forks no início do ano? O que tem eles?

— Nada, só… — Rose mordeu o lábio, pensando como tornar esse assunto interessante e reduzir um pouco da ira diária de Leah. — O cara era só muito esquisito. Pálido demais, e tinha esses olhos estranhos. E o Paul comentou que…

— Paul? — Leah sentou-se de repente, os olhos escuros faiscando. — O que o Paul tem a ver com isso?

Merda.

— Nada. — Rose levantou as mãos. — Nós só, er, nós nos encontramos rapidamente ontem.

O rosto de Leah se fechou em uma carranca.

— Ah, vocês são amiguinhos agora?

— Claro que não, foi só um encontro ao acaso.

— Com certeza foi. — Ela soltou um bufo irônico. — Tão ao acaso que vocês até tiveram tempo para uma fofoquinha.

Rose sentiu as unhas cravando na própria palma.

— Ele só me pediu uma carona…

— E você, é claro, não pensou duas vezes. — Leah cruzou os braços e abriu um sorriso cortante. — Ele te dá meia dúzia de migalhas e você corre atrás dele como um cachorrinho faminto.

— O que eu deveria fazer, Leah?

— Sei lá, dizer não? Como uma pessoa normal? — Leah revirou os olhos. — Sam dizia e fazia as mesmas coisas, mas tá aí ele agora, feliz com a Emily.

— Por favor, Leah. Isso não tem nada a ver, foi apenas uma carona. Que mal tem nisso?

— Se você quer continuar caindo na lábia dele e quebrando a cara, é problema seu. Mas depois não volta chorando pro meu colo de novo igual da última vez.

Rose suspirou, cansada.

Era sempre a mesma coisa. Se Paul ou Sam surgissem na conversa e Rose tentasse argumentar de forma madura, elas acabavam tendo brigas infantis como se ainda fossem duas adolescentes. Ela até tentava ficar calada, mudar suas opiniões ou simplesmente mudar de assunto para evitar brigas, mas com o temperamento de Leah às vezes era impossível fugir de outra discussão.

— Leah, ele me encontrou lá por acaso, estava chovendo e ele me pediu uma carona. Não é realmente uma coisa de outro mundo, mesmo que ele seja meu ex-namorado.

— Você é burra ou só carente mesmo?

Rose recuou como se tivesse sido esbofeteada.

O silêncio que se seguiu foi cortante. Leah respirou fundo, virando os olhos para a janela e evitando encarar Rose.

Isso também havia se tornado bastante comum.

Leah falava alguma coisa que magoava Rose profundamente, mas nunca se desculpava. Ela, geralmente, se deixava levar pela raiva e soltava alguma bobagem que a fazia se sentir péssima ou culpada, como agora. Então, geralmente alguns dias depois, Leah a convidada para ir à La Push ou andar por Port Angeles e tudo voltava ao normal, sem elas realmente terem falado sobre o que havia acontecido.

Dessa vez, Rose nem se preocupou em responder. Ela se virou e foi embora. A porta se fechou com um baque que fez as fotos na parede tremerem.

Seus pés desceram as escadas quase sem tocar nos degraus, o coração batendo num ritmo descompassado. A casa estava vazia agora — Jake e Seth haviam desaparecido, provavelmente enterrados em algum jogo na casa de Embry.

Rose empurrou a porta da frente com tanta força que as dobradiças gemeram. O ar fresco da tarde não conseguiu limpar a névoa de confusão em sua mente. Ela não tinha energia para decifrar os ataques de Leah hoje — cada interação com a amiga ultimamente era como caminhar num campo minado emocional onde ela sempre saía mutilada.

Ela se sentia mental e fisicamente exausta com os seus próprios problemas para ainda tentar compreender os humores de sua amiga. 

Por um lado, havia essas histórias de lobos e vampiros, e a percepção de que, provavelmente, o homem no mercado era, de fato, um deles. E do outro lado, havia Paul e o seu súbito interesse em Rose depois de anos em silêncio. Leah podia ser amarga, mas não estava errada sobre a estranheza disso tudo.

Mas Rose não queria se debruçar nisso agora, ela só queria alguns minutos de paz e um ombro para lamentar. Será que era pedir muito?

O caminho de volta parecia mais longo do que o normal. Quando a casa do tio Billy finalmente apareceu em vista, Rose sentiu os ombros relaxarem levemente.

Por um instante, ela parou, olhando para trás. Ela avistou ao longe as silhuetas familiares de Paul, Sam e o terceiro garoto que ela nunca descobriu o nome. Paul levantou a mão, num cumprimento descontraído, mas Rose desviou o olhar, fingindo não ter visto.

Hoje não.

Hoje ela não tinha energia para nada disso.

Notes:

Tentei pegar um pouco das lendas reais dos Quileutes, em vez de seguir o caminho da autora. Elas estão no seu site oficial e há até um livro gratuito sobre as histórias e a sua cultura, caso vocês queiram dar uma olhada.

E, vale lembrar, a cada dia que passa Leah vai ficando mais irritada. Isso vai ser importante para a história, porque aponta a transformação dela, mas também porque vai desgastando os laços que ela possui com Rose. Achei que seria interessante lembrar disso, mas não aparecer que Leah é apenas incoerente e uma vadia (ela também é um pouco vadia, sim).

E para os Cullen, eles não são ruins aqui, mas ninguém tem um primeiro encontro com um vampiro e acha tudo incrível (tá me ouvindo, Bella Swan??).

Chapter 24: VINTE E QUATRO

Chapter Text

Rose viu os Cullen novamente algumas semanas depois.

A tinta do seu quarto estava descascando e ela queria aproveitar as férias para trocar a cor das paredes. Leah havia prometido ajudá-la com a pintura, mas depois do seu último ataque de estresse, Rose nem cogitou ligar para ela.

E foi assim que ela acabou sozinha na seção de tintas da loja, encarando uma dúzia de tons de lavanda e se perguntando como era possível existirem tantas cores iguais com nomes diferentes.

Foi quando ergueu os olhos e os viu no corredor ao lado.

Agora que ela sabia o que eles eram, Rose se sentiu uma idiota por não ter percebido antes. Os sinais eram muito óbvios. Estava ali na maneira como as duas mulheres se moviam — com gestos calculados, como se tivessem ensaiado exaustivamente como um ser humano normal se comportaria —, nos sorrisos forçados, na postura perfeita demais — como duas estátuas gregas ganhando vida —, nos movimentos fluidos, na artificialidade de cada ação.

Havia essa palidez sobrenatural, o silêncio perturbador — nenhum movimento no peito, nenhum suspiro, nenhum dos pequenos ruídos que os vivos fazem sem perceber —, a maneira como as pessoas ao redor pareciam, inconscientemente, se afastar delas, como animais sentindo o perigo.

E havia aqueles olhos dourados.

Rose realmente não lembrava o porquê eles tinham essa cor. Ela lembrava, ainda de suas aulas, alguma explicação superficial sobre olhos vermelhos, mas se perguntava se essas duas criaturas usavam lentes de contato para parecerem um pouco mais humanas.

Rose não pensou duas vezes. Pegou a primeira lata de tinta ao alcance da mão — algo chamado essência de lavanda —, e marchou direto para o caixa, os dedos tremendo levemente ao entregar o dinheiro.

Mal esperou o atendente terminar de embalar sua compra antes de sair quase correndo, o coração batendo forte no peito. Foi então que colidiu com algo sólido e quente.

— Umph!

Mãos firmes a seguraram pelos ombros antes que pudesse cair para trás.

— Parece que a gente tá se esbarrando muito ultimamente. — Disse Paul, com um sorriso brilhante, mas os olhos escaneando rapidamente o ambiente atrás dela. Suas narinas dilataram quase imperceptivelmente, os músculos dos braços tensionando sob a camiseta.

— É… parece que sim.

Rose tentou se desvencilhar, mas os dedos dele apertaram por uma fração de segundo a mais do que o necessário antes de soltá-la.

Seu olhar fugiu para o lado, buscando a saída, mas Paul bloqueou sutilmente seu caminho, o sorriso ainda lá, mas agora mais tenso.

— Tá tudo bem?

Rose apertou a tinta contra o peito como um escudo.

— Claro, por que não estaria?

Paul abriu a boca, depois a fechou, cerrando os dentes por um instante. Seu olhar voou por cima do ombro dela novamente, para dentro da loja. Quando falou de novo, a voz vinha de algum lugar mais profundo, quase um rosnado.

— Te levo em casa. — Não era uma oferta.

Rose recuou um passo.

— Não precisa, eu…

— É melhor eu levar. — Ele já estava guiando-a gentilmente, mas firmemente em direção à sua caminhonete, um braço protetor quase tocando suas costas sem chegar a tocar.

Rose parou de repente, fazendo Paul quase tropeçar nela.

— Por quê? — A pergunta saiu como um estalo. — Nós mal somos conhecidos agora.

Paul congelou. Seu queixo se contraiu, os músculos da mandíbula firmemente tensos.

— Bem, eu… — Ele começou, depois parou, esfregando a nuca com uma mão áspera de calos. Um tique nervoso que ela lembrava de anos atrás.

— Paul, eu realmente não consigo entender o que você quer de mim.

Algo passou por trás dos olhos dele — um lampejo de dor, de raiva, de alguma coisa que ela não conseguia nomear.

— É isso o que os amigos fazem.

Rose soltou um riso sem humor.

— É isso que nós somos? Amigos?

Ele pareceu levar um soco no estômago. Como se até mesmo falar as próximas palavras fosse doloroso.

— Se você quiser…

— Eu realmente não sei o que eu quero.

A confissão saiu em um sopro, como se tivesse sido arrancada contra a sua vontade. Paul olhou para os pés, os ombros curvados sob o peso do próprio corpo.

— Olha, eu sinto muito, Rose. Eu realmente quero conversar com você. — Suas mãos se abriram e fecharam, impotentes. — Será que nós podemos sair daqui primeiro?

O olhar dele fugiu para o interior da loja novamente. Rose segurou a lata de tinta com mais força, sentindo o metal frio contra seus dedos.

— Minha casa fica a 10 minutos de caminhada daqui. — Ela tentou argumentar, hesitante. — Eu posso andar.

Paul pareceu lutar consigo mesmo por um momento, os músculos do maxilar tensionados. Quando respondeu, a voz estava estranhamente rouca:

— Não. — A negativa saiu mais brusca do que pretendia. Ele fez uma careta e tentou novamente. — Não é... seguro. Deixa eu te levar.

Rose realmente não fazia ideia do que ele queria dizer. Exceto o par de vampiros há poucos metros de distância, o que havia de perigoso em uma simples loja de material de construção?

A não ser que Paul soubesse o que elas eram…

O clique metálico da porta da loja se abrindo fez ambos se virarem. A loira saiu primeiro, acompanhada da outra mulher com rosto em formato de coração.

Paul reagiu como se tivesse levado um choque — seu corpo se enrijeceu, os dedos se curvando levemente em posição de alerta antes que ele os forçasse a relaxar, os ombros se arqueando instintivamente enquanto um rosnado quase inaudível escapava de sua garganta.

— Por favor. — Ele acrescentou, tão baixo que quase se perdeu no barulho do estacionamento. — Só até você estar em casa.

Rose suspirou resignada, mas assentiu finalmente.

Paul a conduziu até a caminhonete com movimentos rápidos e precisos, sua mão grande abrindo a porta do passageiro antes que ela pudesse alcançar a maçaneta.

Quando ele se inclinou para ajustar o retrovisor, Rose viu seus olhos fixarem-se nas duas figuras pálidas que deslizavam em direção a um conversível vermelho parado do outro lado do estacionamento.

Seu lábio superior se curvou num rosnado silencioso.

— O que foi isso? — A pergunta escapou dos lábios de Rose antes que pudesse pará-la.

Paul girou a chave na ignição com um movimento brusco.

— O quê?

— Seu olhar para aquelas mulheres... — Rose apertou o cinto de segurança, os dedos tremendo levemente.

O motor rugiu quando Paul acelerou demais ao sair da vaga. 

— Não é nada. Elas são um dos Cullen. — Suas mãos se apertaram no volante até os nós dos dedos ficarem brancos.

Rose observou seu perfil tenso — a mandíbula cerrada, a veia saltada na têmpora.

— Certo... — Ela escolheu as palavras com cuidado, testando as águas, tentando descobrir o quanto Paul sabia. — E qual é o problema exatamente? Você sabe algo sobre elas?

Paul congelou por uma fração de segundo.

— Huh... Eles são estranhos, é só isso. — Ele mudou de marcha com força desnecessária. — Ninguém na reserva gosta muito deles.

Rose não caiu na mentira óbvia. 

— Sei. Então foi por isso que você insistiu tanto em me levar para casa? — Ela inclinou-se para frente, estudando sua reação. — Só porque os Cullen são... estranhos?

O silêncio que se seguiu foi cortante. Paul respirava fundo pelo nariz, como um touro prestes a atacar. Quando finalmente falou, cada palavra saiu como se estivesse sendo arrancada:

— Rose... — Seus olhos brilharam no escuro do interior do carro. — Tem coisas que eu não posso explicar. Acredite em mim, é melhor você ficar longe deles.

E pelo jeito que ele disse — com uma mistura de raiva e pavor genuíno — Rose percebeu que ele sabia.

A questão era: como diabos Paul Lahote sabia sobre vampiros?

O restante do trajeto foi silencioso. Rose mantinha as mãos firmemente presas no colo, os dedos girando seu anel de prata ocasionalmente, enquanto ela continuava se perguntando como ele sabia, como ele havia descoberto. E por que ele estava tão interessado em proteger Rose?

Quando a caminhonete finalmente parou em frente à casa, Rose já tinha a mão na maçaneta antes mesmo do motor desligar completamente.

— Obrigada pela carona. — Ela murmurou, evitando olhar para Paul.

— Espera, Rose. — A voz dele veio mais suave do que esperava, quase vulnerável. — Eu queria falar com você, se estiver tudo bem?

Ela suspirou, sentindo o peso do cansaço nos ossos.

— Paul, eu realmente não acho que...

— Por favor, vai ser rápido, eu prometo. — Ele interrompeu. — Eu posso te ligar mais tarde?

Rose suspirou, mas antes que concordasse a porta da frente se abriu com um estrondo. Leah surgiu como uma tempestade, os pés descalços batendo no gramado com força desnecessária.

— Bem, olha só quem apareceu. — Leah cuspiu as palavras, os olhos negros faiscando entre Rose e Paul. — Paul Lahote, o maior covarde da reserva. O que você tá fazendo aqui?

Dentro da caminhonete, o ar ficou instantaneamente pesado. Rose viu as mãos de Paul tremerem violentamente antes de se fecharem em punhos tão tensos que os tendões saltavam sob a pele.

— Leah, não se mete nisso…

Leah deu uma risada curta e afiada.

— Ah, mas eu me meto. — Ela se inclinou para dentro do carro, tão perto que Rose podia ver as veias pulsando em suas têmporas. — Porque se a Rose é idiota e ingênua demais pra perceber que você é igual ao Sam, um merda que uma hora ou outra vai apenas quebrar o coração dela novamente e fugir, eu não sou.

Paul reagiu como se tivesse levado um tiro. Seu corpo todo se contraiu, os músculos do pescoço tensionados como cordas de violino prestes a arrebentar. Quando ele engoliu em seco, Rose viu seu pomo de adão subir e descer com dificuldade, como se estivesse engolindo vidro moído.

Rose não estava melhor, ela sentiu as lágrimas arderem atrás dos seus olhos, sua garganta se fechar e sua coragem de se intrometer nessa briga se esvair.

— Você não sabe do que tá falando. — Ele rosnou.

— Ah, eu sei o suficiente. — Leah bateu com a palma da mão na porta do carro, fazendo o metal tremer. — Você some e aparece quando bem entende. Você a trata como um babaca e agora volta com o rabo entre as pernas como se ela devesse te receber de braços abertos. Rose merece mais do que receber apenas migalhas de um idiota como você.

— Tá bom, Leah. Chega! — Rose interveio, mas a sua voz saiu mais como um sussurro.

Os olhos de Paul suplicaram para ela por cima de Leah.

— Prim… — O apelido antigo a atingiu como um soco no estômago. — Eu posso ligar pra você mais tarde? Por favor. — Ele tentou ignorar os resmungos de Leah.

— Você já falou pra ele que seguiu em frente com outro? — Leah cortou a conversa, os olhos brilhando de satisfação cruel.

O silêncio que caiu foi tão abrupto que ela sentiu sua pele arrepiar.

Paul virou para Rose com os olhos arregalados, uma mistura de choque e dor crua em seu rosto que a fez se sentir a pior pessoa do mundo.

— É… é verdade?

Antes que Rose pudesse responder, Leah a cortou:

— Claro que é! — Ela cuspiu, aproveitando cada segundo. — Diferente de você, ela não fica correndo atrás de quem não a quer.

Paul ficou imóvel por um instante que pareceu durar séculos.

Então, sem uma palavra, engatou a marcha com tanta força que a alavanca quase quebrou. Seus olhos brilharam no retrovisor por um último instante antes que a caminhonete arrancasse, deixando para trás apenas poeira e o eco do motor rugindo.

Leah ficou parada na calçada, os braços cruzados com força.

— Idiota. — Ela cuspiu no chão com raiva.

— Por que você disse isso, Leah? — Sua voz saiu mais alta do que pretendia, ecoando nas casas vizinhas.

— Como assim por quê? — Leah girou nos calcanhares, seu rosto contorcido de surpresa. — Eu estava ajudando você.

Rose agarrou suas próprias têmporas, os dedos afundando nos cabelos.

— Ele só estava conversando comigo. Você está exagerando sem motivo.

— Claro, sempre começa assim. “É só uma conversa”,  “É só uma carona”, até que você está no meu quarto de novo, chorando no meu ombro como da última vez. — Seu peito subia e descia rapidamente. — Por que diabos você estava no carro dele, afinal?

— Ele me deu uma carona. — Rose bateu o pé no chão, sentindo-se infantil, mas incapaz de parar.

— De novo? — Leah soltou uma risada ácida. — Quantas vezes você vai inventar essa desculpa?

— Não é nenhuma desculpa. — Ela sentiu as lágrimas queimando atrás dos seus olhos. — Ele me deu uma carona e nós estávamos apenas conversando antes de você chegar.

— Você é cega, porra? — Lean avançou até ficarem nariz a nariz. — Ele estava te enganando, Rose. Você não vê que ele só vai te machucar de novo?

Rose sentiu algo dentro dela se romper, a raiva lambendo suas veias.

— Não é a sua decisão fazer nada! — Sua voz baixou para um tom gelado e cortante. — Você acha que só porque o Sam te trocou pela Emily, tem o direito de controlar a minha vida para compensar a sua frustração?

Leah recuou como se tivesse levado um soco.

— Isso não tem nada a ver com o Sam! — Mas a sua voz falhou no meio da frase.

Rose avançou desta vez, cada palavra calculada para causar dano máximo.

— Não? Então, por que você continua me culpando pelo meu relacionamento com o Riley? Ou por que eu tomei a decisão de me arrepender por ter me jogado nele tão rápido? Ou por que eu decidi que era melhor terminar com ele, do que continuar machucando-o? Você me trata como seu projeto pessoal de reabilitação. — Seus dedos se apertaram em punhos. — Você está tão presa no passado que é incapaz de pensar racionalmente por um segundo? Qual foi a última vez que você pensou em algo além dessa mágoa que você cultiva como um troféu?

O rosto de Leah se contorceu em algo entre raiva e dor aguda.

— Pelo menos eu enxergo a verdade, Rose. Paul anda com Sam todos os dias. — Seus olhos negros brilharam com lágrimas não derramadas. — Ele vai te usar e te descartar exatamente como Sam fez comigo… E eu espero que ele realmente faça isso, porque você vai merecer cada lágrima.

Rose engoliu em seco, sentindo as palavras como facadas no peito. Abriu a boca para responder, mas fechou novamente quando um nó quente se formou em sua garganta. Melhor silenciar do que deixar escapar o choro que ameaçava explodir.

Leah, por outro lado, apenas respirou fundo antes de cuspir:

— E sabe qual é a parte mais triste? Quando ele te largar, sou eu que vou ter que aguentar você chorando no meu ombro... de novo.

Rose sentiu as palavras perfurarem sua pele, mas não disse nada. Ela cerrou os punhos até as unhas deixarem marcas crescentes em suas palmas, usando a dor física para se ancorar contra a emocional.

Por um instante, as duas ficaram paradas na calçada, separadas por anos de amizade e apenas alguns meses de mágoas não resolvidas.

— Eu vim ajudar você a pintar seu quarto. — Leah deu um passo atrás, seu corpo antes tenso agora desinflando como um balão furado. — Mas acho melhor voltar para casa.

Rose ainda estava calada, não confiava em sua própria voz.

Ela simplesmente ficou na calçada, assistindo, enquanto Leah se virava com um movimento brusco, suas mãos tremendo e as costas rígidas como uma armadura.

Então, ela se foi.

Rose permaneceu parada na calçada por um longo tempo, suas lágrimas escorrendo pelo rosto.

Dentro de casa, as paredes descascadas de seu quarto ainda aguardavam a reforma — um projeto que agora parecia insignificante diante das rachaduras muito maiores que se abriram naquela noite.

 

*

 

O toque insistente do celular a arrancou das profundezas de um sono confuso e pesado. Rose abriu os olhos inchados com dificuldade — as pálpebras secas e grudadas pelas lágrimas derramadas. A luz do entardecer filtrada pelas cortinas tingia o quarto de um azul profundo e melancólico, aumentando a sua desorientação.

O relógio na mesa de cabeceira marcava 19h40. Aparentemente ela havia chorado até desabar no sono, e dormido direto durante toda a tarde.

Rose sentou-se com um gemido baixo. Seu corpo doía como se tivesse brigado fisicamente, não apenas verbalmente. A blusa ainda estava úmida no peito, manchada de lágrimas. Ela passou a língua pelos lábios rachados — o gosto salgado das horas chorando ainda impregnado em sua boca.

O celular vibrou novamente, ela puxou o aparelho e atendeu a ligação sem realmente olhar.

— Alô?

Do outro lado da linha, uma respiração hesitante. Então, aquela voz que ela conhecia tão bem.

Ei… Prim?

Rose sentou-se abruptamente na cama, esfregando os olhos inchados.

— Quem é? — Perguntou, mesmo já sabendo.

…Paul. Er, Paul Lahote? — Ele soava estranhamente desconfortável e formal, como se estivesse se apresentando para um estranho pela primeira vez.

— Ah! Oi, Paul… — Rose sentou-se novamente na cama, puxando os joelhos contra o peito, os dedos dos pés se enrolando no lençol.

Um silêncio pesado. Rose podia quase ouvi-lo escolhendo as palavras:

Olha, eu… eu sinto muito por ter saído correndo da sua casa… — Uma pausa. — Eu não queria, eu só… Porra. — Seu suspiro ecoou na linha. — Olha, eu acho que eu fiquei chateado como um idiota, mas eu sei que não tenho motivos pra isso, então… — Outra pausa. — Eu só queria dizer que sinto muito, eu acho.

A voz dele vacilou no final, e Rose apertou o telefone contra o ouvido, sentindo-se momentaneamente sem palavras.

Por um lado, ela acreditava que não havia motivos para se ressentir de Paul, quando já haviam se passado tantos anos. Que o perdão seria o gesto adulto. Mas a verdade era mais complicada.

Ninguém nasce com um manual da vida. Não há regras claras sobre quando perdoar, quando guardar mágoa, ou quando simplesmente seguir em frente. As pessoas esperavam que, com o tempo, você se torne racional, que deixe as dores do passado para trás como roupas velhas que não servem mais, que tome decisões perfeitas e sem erros, como se o fato da adolescência ter ficado para trás também significasse que agora você sabe todas as respostas da vida.

Então, por outro lado, Rose podia entender que esse Paul não era mais o mesmo garoto que a magoou anos atrás. Ela podia aceitar que ele merecia pelo menos a chance de ser ouvido. Mas isso não apagava o fato de que, quando ele desapareceu, ela passou noites em claro, questionando o que havia feito de errado. Que ela o procurou ativamente. Que ela o amou à distância — enquanto estava na faculdade. Que ela voltava para Forks todos os finais de semana por causa dele, sempre com o coração na garganta. Que ela sofria sempre que as suas ligações não eram atendidas, e as suas mensagens não eram respondidas.

E em nenhum momento ela recebeu uma explicação, exceto um término por telefone. Como era justo que ele ficasse com raiva por ela ter tentado seguir em frente um ano depois?

É verdade que ela não tomou a melhor decisão quando se tratou de Riley — que ela o tratou como estepe, que o usou como escada para ela sair do fundo do poço. Isso ainda a assombrava, ainda apertava o seu coração sempre que pensava nisso.

E, bem, talvez ela realmente fosse tão culpada quanto Paul.

Mas ele sumiu. E ela tentou sobreviver.

E agora ele estava sempre por perto. Nos estacionamentos, na frente das lojas, do outro lado da rua, do outro lado da linha.

E ela não sabia o que fazer com isso.

Ela não sabia como perdoá-lo sem trair a dor que sentia, sem causar mais danos à sua amizade com Leah, sem ter medo de tudo acontecer novamente.

Ela não sabia como perdoar a si mesma, por ter magoado Riley, por mentir para si mesma dizendo que já o havia superado.

Ela não sabia, principalmente, porque ele reapareceu agora, depois que ela finalmente aprendeu a viver sem esperar por ele.

Você… você está aí? — Ele perguntou, tão baixo que ela quase não ouviu.

— Estou.

Eles ficaram em silêncio novamente.

Tudo bem… eu vou indo, então… — Paul murmurou, a voz entrecortada, e ela podia quase vê-lo coçando a nuca.

— Paul…

Sim, Prim? — A resposta veio imediata, quase faminta, revelando o quanto ele ainda guardava aquele apelido que só ele usava.

— Você precisa entender que eu não fiquei bem quando você terminou comigo… — A voz dela se partiu na última palavra.

Eu sei…

— Então, você precisa me perdoar se eu não consigo entender o porquê você tem me procurando quando nunca me procurou antes.

Ele ficou em silêncio por um tempo tão longo que ela achou que ele tinha desligado. Que, mais uma vez, ele iria desaparecer sem dar-lhe nenhuma resposta.

Eu tentei ficar longe. — A voz dele estava mais firme agora, quase desesperada. — Você não faz ideia do quanto eu tentei.

— Você nunca me deu nenhuma explicação. — Ela fechou os olhos, sentindo o nó na garganta apertar, suas mãos tremerem. — Você sabe qual é a sensação de não saber se a culpa era minha? Se eu fiz algo errado?

Ele soltou um som baixo, quase um gemido e uma maldição abafada.

Não foi culpa sua…

— Se não foi culpa minha, então por que foi tão fácil pra você me deixar?

Nada disso foi fácil, Prim. — A voz dele rachou no meio. — Nem por um segundo.

— Você não fala comigo há anos, Paul. — Ela sacudiu a cabeça, mesmo sabendo que ele não podia ver. — E agora aparece como se… como se eu devesse simplesmente aceitar?

Eu não espero nada agora. Eu só… — Ele fez uma pausa, frustrado consigo mesmo. — Eu só queria que você soubesse que eu nunca parei de…

— Não. — Ela interrompeu, com um fio de pânico na voz. — Por favor, não diga isso.

Tudo bem. — Ele sussurrou, e a resignação em sua voz doía mais do que qualquer grito. — Você ainda… você poderia sair comigo um dia desses? Para conversar. Só conversar. — Ele acrescentou quando ela começou a protestar.

— Eu posso tentar. Mas não agora.

A voz dele veio suave, quase reverente, carregada de tanta esperança que fez seu estômago embrulhar.

Isso… isso já significa mais do que qualquer coisa.

— Eu não prometi nada, Paul.

Eu sei. — Uma pausa. Ela podia ouvi-lo respirar fundo, como se estivesse decidindo o que falar. — Prim, eu…

O coração de Rose acelerou sem permissão.

— O quê?

Nada. — Ele recuou, um suspiro escapando de seus lábios. — Eu não vejo a hora de te ver. Boa noite, Prim.

A ligação terminou antes que ela pudesse responder. O telefone escorregou de seus dedos para o colchão, ainda quente de tanto ser apertado. Do lado de fora, a chuva começava a cair novamente sobre Forks.

Rose se enrolou sob os cobertores, os dedos se contorcendo no tecido do lençol. Uma onda de calor subiu por seu pescoço enquanto o arrependimento a inundava — por um momento ela se permitiu sentir raiva.

Raiva por ainda sentir. Raiva por ainda se importar. Raiva porque, mesmo agora, parte dela já calculava quantos dias deveria esperar antes de aceitar aquele maldito convite para "apenas conversar".

Raiva por cada batida acelerada do seu coração traidor. Raiva porque a sua mente lhe culpava por não ouvir Leah. Mas acima de tudo, raiva pela confusão que a consumia, pela forma como seu corpo e mente pareciam traí-la a cada respiração. Uma parte dela queria gritar, outra queria chorar, e a pior parte — a mais humilhante — já pensava quanto tempo seria "aceitável" esperar antes de ceder.

Ela enterrou o rosto no travesseiro e soltou um grito abafado, um som primitivo de frustração que a chuva lá fora imediatamente engoliu. As lágrimas que vieram em seguida queimavam como ácido, corroendo sua ilusão de controle e maturidade.

Naquela noite, Rose não percebeu quando tio Charlie chegou em casa. Ela não pensou na família de vampiros que vivia tão próximo dali — ou no fato de que Paul sabia sobre a existência deles. Ela não ouviu um uivo doloroso e solitário que cortou a floresta naquela noite.

Naquela noite, Rose apenas chorou até dormir.

 

Chapter 25: VINTE E CINCO

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Morri de novo, porra!

Quil arremessou o controle no sofá com força suficiente para fazer Embry desviar, rindo.

— Você não sabe perder, cara.

— Cala a boca, pelo menos eu não fico trapaceando. — Quil revidou, apontando o saco de salgadinhos ameaçadoramente.

Jake aproveitou o momento de distração para atirar uma batata chips direto no rosto de Quil, que engasgou indignado.

Traição! Traidores, todos vocês!

— Chora mais. — Jake riu alegremente, pegando outro punhado de salgadinhos enquanto na tela seu personagem fazia uma comemoração exagerada.

Rose observava tudo do canto do sofá, com as pernas cruzadas e uma expressão notavelmente perplexa, enquanto sua cabeça virava pra lá e pra cá como se estivesse numa partida de tênis. Ela nem estava jogando — só estava na casa dos amigos de Jake, porque estava entediada e, principalmente, pelo entretenimento gratuito.

Adolescentes eram mesmo criaturas estranhas, ela pensou, enquanto via Quil agora tentar equilibrar um salgadinho no nariz de Embry contra a vontade dele.

— Parem tudo! A próxima rodada já vai começar. — Jake avisou, sacudindo o controle na frente deles.

— Só se o Quil prometer não chorar quando perder de novo. — Embry cutucou, conseguindo finalmente se livrar do salgadinho que o amigo insistia em colocar no seu rosto.

Rose bufou, pegando um punhado de pipoca da tigela no colo de Jake. Era bom estar ali, apesar das piadas sem graça e brigas bobas, ainda era melhor do que a alternativa, que consistia em, basicamente, ficar em casa revirando a sua última briga com Leah ou analisando pela centésima vez cada palavra com Paul.

— Quem perder vai pro time da Primmy. — Jake anunciou, o cotovelo dele encontrando suas costelas com uma familiaridade irritante.

Com licença? — Ela protestou entre risos, jogando uma pipoca nele. — Eu jogo muito bem, obrigada!

Os garotos gemeram em uníssono, zombando dela com expressões exageradas.

— Claro, da última vez você só quase quebrou o controle apertando todos os botões. — Quil lembrou, inclinando-se para frente para roubar a pipoca que Rose dividia com Jake e desviando rápido quando ela tentou bater na sua mão.

— Era a minha estratégia. Vocês, meros mortais, nunca entenderiam. — Rose retrucou.

Jake soltou uma risada, jogando o braço sobre seus ombros num gesto descontraído.

— Claro que era. Muito eficiente também, especialmente quando você grita e fecha os olhos.

Ela tentou dar uma cotovelada nele — que provavelmente doeu mais nela do que nele —, mas riu junto.

— Mas eu ganhei, não foi?

— Sorte de principiante. — Os três garotos gritaram em uníssono, tão perfeitamente sincronizados que pareciam ter ensaiado.

Rose gargalhou.

— Beleza, então. Passa esse controle pra cá. — Ela desafiou, pegando o controle e apertando os botões aleatoriamente só para vê-los reclamar. — Vamos ver quem ri por último.



 

— HA! Vitória da rainha! — Rose jogou os braços para cima, quase acertando Jake no queixo quando seu personagem na tela fez a pose da vitória. Os garotos gemeram em protesto, mas ela já estava pulando do sofá e fazendo uma reverência exagerada para eles. — Por favor, curvem-se, meus súditos.

— Trapaceira! — Quil atirou seu controle no sofá, de novo , enquanto Embry desabou dramaticamente sobre o ombro do amigo. — Impossível! Você deve ter mexido nas configurações.

— Aceitem a derrota, queridos! — Sua voz era melíflua, fingindo falsa modéstia. — Aceito dádivas em forma de comida e refrigerante.

Enquanto os garotos resmungavam e jogavam almofadas nela, Rose aproveitou o caos para escapar em direção à cozinha.

A cozinha estava mais fria que a sala, o ar que entrava pela porta dos fundos fazendo seus braços arrepiarem. Rose abriu a geladeira, o brilho da luz interna iluminando seu sorriso ainda aberto da vitória. O barulho dos controles sendo batidos e das reclamações dos garotos ainda chegava até ela, e Rose soltou uma risada contida, balançando a cabeça para si mesma.

O rangido súbito das tábuas do assoalho nas suas costas a fez olhar para cima.

— Ei, não consegui falar com você mais cedo. Tá tudo bem? — Jake encostou na porta da geladeira, bloqueando parte da luz.

Rose mordeu o lado de dentro da bochecha antes de responder, concentrando-se em pegar duas latas de refrigerante.

— Claro. Por que não estaria?

— Fiquei sabendo da sua briga com a Leah.

Ela fechou a porta da geladeira com um pouco mais de força do que o necessário, o baque ecoando pela cozinha.

— Sério? Como?

— Bem, você falou pro Charlie, o Charlie falou pro meu pai, então… — Ele fez uma pausa dramática, erguendo as sobrancelhas.

Rose bufou, revirando os olhos.

— Aqueles dois são iguais duas velhas fofoqueiras. — Ela estendeu uma das latas para Jake, que a aceitou com um grande sorriso.

— Eles se preocupam, você sabe. — Ele girou a lata entre as mãos, a condensação já formando pequenas gotas no alumínio. — Eu também.

Rose olhou para baixo, traçando um círculo na mesa com a unha.

— Não é grande coisa. Só… Leah sendo Leah, sabe? — Ela levantou os ombros em um encolher que tentou parecer mais despreocupado do que se sentia.

— Sei. — Jake abriu sua lata com um estalo alto que fez Rose piscar. — Qual foi o problema dessa vez?

A desculpa saiu quase no automático:

— Leah só está estressada.

Jake deu um gole longo antes de responder, dando tempo suficiente para ela perceber o quanto aquela desculpa era fraca.

— Me poupe, Primmy. — Ele disse finalmente, encostando-se no balcão da cozinha. — Leah está estressada há exatamente quatro anos.

— Bem… — Rose começou, a voz perdendo força no meio da frase. — Você pode culpá-la? — A pergunta saiu mais como um suspiro do que uma defesa real, e a réplica parecia oca até para seus próprios ouvidos.

— Quando ela te deixa magoada, eu posso sim. — Seus olhos escuros estudaram seu rosto. — E então? O problema era o Paul?

Rose o encarou assustada, a lata quase escapando dos seus dedos.

— Como você sabe disso? Eu não contei essa parte pro tio Charlie.

— Bem, não foi difícil juntar os pontos… — Ele fez um gesto com as mãos, apontando para ela e, bem, para fora de casa, aparentemente.

Rose fez uma careta, sentindo-se exposta.

— Ok, bem, sim… Foi por causa do Paul. — Ela cruzou os braços, como se pudesse se proteger daquela conversa. — Mas não é o que você está pensando.

— E o que exatamente eu estou pensando, Primmy?

— Que eu… que a gente… — As palavras morreram em sua garganta. Como explicar algo que ela mesma não entendia? Como colocar em palavras aquela mistura de raiva, saudade e medo que Paul trazia consigo?

— Ok, você quer saber o que eu acho?

Rose assentiu, os lábios pressionados numa linha fina.

— Você ainda gosta do Paul. — Jake foi tão direto ao ponto que Rose sentiu seu coração cambalear. — Mas fica tão preocupada com o que isso significa para a Leah, que esquece de se perguntar o que isso significa para você.

Rose piscou, subitamente perplexa com aquela avaliação precisa.

— Eu só não quero chatear ela, sabe? Ela foi a minha primeira amiga quando eu cheguei em Forks.

— Eu sei. — Uma pausa. — Mas você já parou pra pensar que Leah pode estar usando isso contra você?

Rose ergueu os olhos, surpresa.

— O quê? Claro que não...

— Primmy. — Jake interrompeu suavemente. — Desde quando você precisa da permissão de alguém pra sentir o que sente? Especialmente de uma pessoa que deveria ser sua melhor amiga e te apoiar?

— É mais complicado do que isso. — Ela murmurou. — Depois de tudo o que aconteceu com ela e Sam… Como eu poderia…

— Mas você não é Leah. — Jake fechou a distância entre eles, colocando uma das mãos nos ombros tensos de Rose. — E Paul foi um baita de um babaca, sim, mas ele ainda não é o Sam. Vocês merecem a sua própria história. Não viver refém dos erros dos outros.

Rose sentiu algo se apertar em seu peito.

— E se eu machucar ela?

— E se você continuar se machucando para poupar os outros? — Ele contra-argumentou, a mão apertando levemente seu ombro. — Você não pode viver se colocando em segundo lugar, Primmy.

— Eu só não quero ser egoísta de novo. — Rose engoliu em seco. — Da última vez que eu fui tão egoísta, não acho que acabou muito bem.

— Você errou. Mas lidou com as consequências e aprendeu com elas, certo? — Ele inclinou a cabeça aguardando uma resposta, e Rose apenas assentiu. — Eu não sei o que aconteceu, mas não importa. Ficou no passado. Agora você nem está se dando o direito de errar.

Na sala, uma explosão de risadas ecoou, seguida pelo som de algo quebrando e uma enxurrada de xingamentos criativos. O contraste com a conversa na cozinha quase fez Rose rir — um riso trêmulo e sem graça.

— Merda, Jake. — Ela respirou fundo, esfregando os olhos com as costas das mãos. — Quando você se tornou tão sábio?

Ele soltou um suspiro, aliviando a pressão no ombro dela.

— Eu sempre fui o mais sábio, querida Primrose.

— Eu não me lembro disso. — Rose fez uma pausa dramática, colocando o dedo no queixo. — Na verdade, minha memória mostra algo bem diferente.

— Ah, é? — Jake ergueu as sobrancelhas em desafio. — Ilumine-me.

— Eu só lembro — Ela começou, os lábios tremendo para conter o riso. — de você comendo torta de lama com os garotos.

Os olhos de Jake se arregalaram.

— Foi uma experiência científica.

— Não foi nada sábio da sua parte.

— Você nunca entenderia os deveres de um homem sábio.

— Mas pelo menos você era uma gracinha. — Ela apertou as bochechas de Jake como se ele ainda fosse um garotinho de oito anos e então correu, fugindo de sua tentativa de esmagá-la em um abraço.

— Volta aqui, Primrose. — Jake rugiu, mas ela já estava em movimento, pulando sobre o sofá para se esconder atrás de Quil.

— O que foi? — Embry abriu um sorriso de orelha a orelha.

— Jake está envergonhado, porque eu falei que ele era muito fofo comendo torta de lama quando era criança. — Rose anunciou, espiando por cima do ombro de Quil.

— Ah, eu lembro disso. — Quil esfregou o queixo pensativamente. — Não era sempre o Jake que pensava nas ideias mais idiotas e depois chorava por causa disso?

— Era ou o Jake ou o Seth. — Embry concordou, jogando pipocas no ar e pegando com a boca.

— Mentiras! Calúnias! Eu sempre tive as melhores ideias!

— Sempre? — Rose inclinou-se para frente, os olhos brilhando com malícia. — Até mesmo daquela vez que você disse que seu nome era Jasmine e me convidava para tomar chá na sua casa?

A sala inteira explodiu em gargalhadas, exceto Jake, que lançou-se através da sala como um tornado, mas Rose já estava em movimento pulando sobre os móveis. Seu riso ecoou pela casa, misturando-se com os protestos de Jake e as gargalhadas dos outros.

— Conta mais, Rose! — Embry incentivou, jogando mais pipoca no ar.

— Ele tinha sotaque britânico.

EU NÃO…

— Ele me enviava cartas e assinava como Lady Jasmine.

MENTIRA!

— Ele até usava meus vestidos.

ERA CONFORTÁVEL!

— E uma vez ele… — Rose não terminou. Jake finalmente a alcançou, agarrando-a pela cintura e tapando sua boca com a mão.

— Eu vou me vingar de você, Primmy. — Ele rosnou, o que só fez os outros rirem mais.

Rose lambeu a palma dele até ele soltar um “Eugh!” e tirar a mão.

— Não existe nada que me envergonhe. — Ela anunciou, orgulhosa.

— Ah, é? — Jake abriu um sorriso lento e calculista, puxou o celular do bolso e digitou algumas palavras. — Pronto.

Rose franziu a testa.

— O que você…

— Chamei o Paul pra vir aqui.

O QUÊ?? — Rose saltou como se tivesse sido eletrocutada, os olhos arregalados. — JACOB BLACK!

Desta vez, era Jake que estava em movimento, segurando o celular acima da cabeça como um troféu enquanto era perseguido por Rose pela sala.

EU VOU TE MATAR!

— Você não faria isso com o seu primo-praticamente-irmão favorito, faria?

EU FARIA COM PRAZER!

Rose lançou-se atrás dele com um rugido, pulando em suas costas e tentando arrancar o celular das mãos dele, enquanto Jake ria demoniacamente.

ME DÁ AQUI, JACOB!

— Nunca! — Ele riu, andando pela casa com Rose presa em suas costas, como se ela fosse apenas um parasita.

EU VOU CONTAR PRO SEU PAI, JACOB. — Rose apertou os braços em volta do pescoço dele, sufocando-o só um pouco.

Jake parou bruscamente

— Não. Você não vai.

— Ah, vou sim! — Ela cantarolou, ainda se segurando nas costas de Jake, mas desta vez com um sorriso brilhante. — Vou dizer pro tio Billy que você estava fazendo bullying com a pobre e indefesa Primrose.

INDEFESA? — Jake ergueu as mãos para o céu, como se pedisse ajuda aos seus ancestrais. — Você acabou de tentar me estrangular.

— Detalhes. — Rose abanou a mão, antes de se contorcer novamente, esticando os dedos em direção ao celular.

Jake recuou com uma gargalhada, mas então—

Congelou.

— O que…? — Rose franziu a testa, seguindo o olhar petrificado de Jake.

E então ela viu.

Paul.

Parado no batente da porta — que o traidor do Embry abriu silenciosamente —, seus olhos arregalados, a boca tremendo levemente enquanto claramente lutava para não rir.

Rose sentiu o sangue drenar do seu rosto.

Ela pulou de Jake como se ele estivesse pegando fogo, aterrissando desajeitadamente no chão.

— Oi, Paul.

— Oi, Prim. — Ele olhou para Jake, depois de volta para ela. — O Jake disse que você queria falar comigo?

Rose virou-se lentamente para Jake, com um olhar mortal.

— Eu vou matar você enquanto você dorme. — Ela sussurrou, baixo o suficiente para só ele ouvir.

Jake colocou a mão no peito, fingindo-se ofendido.

— Eu só quis ajudar!

— Você vai ajudar meu pé a encontrar seu traseiro. — Rose rosnou entre dentes cerrados.

Paul limpou a garganta.

— Então… era mentira?

Rose engoliu em seco.

— Não! Quer dizer, sim! Quer dizer… — Ela fechou os olhos, respirou fundo, e tentou novamente. — Eu não pedi pro Jake te chamar… Mas eu gostaria de conversar com você… Se você quiser.

Paul ficou imóvel por um segundo que pareceu durar uma eternidade. Então, muito devagar, como se tivesse medo de assustá-la, ele estendeu a mão.

— Quer caminhar comigo?

Rose olhou para a mão dele, depois para o seu rosto — aquele rosto que ela ainda conhecia tão bem, mesmo depois de tudo.

Ela pegou a mão dele.

— Tudo bem. — Ela murmurou, sentindo os dedos dele se entrelaçarem com os seus.

Antes de sair, ela chutou a canela de Jake com o pé livre.

— Ai! Por quê?!

— Porque sim. — Ela resmungou, mas seguiu Paul para fora, os dedos ainda firmemente presos nos dele.

A última coisa que ouviu foi Jake gritando:

DE NADA, PRIMMY!

— Ah, que idiota! — Ela suspirou dolorosamente. — Sinto muito por isso. Jake é um imbecil.

Paul deu uma risada baixa, o som fazendo cócegas em seu peito.

— Ele não mudou muito, então.

— Não. — Rose concordou, um sorriso pequeno escapando. — Só que agora ele é um adolescente.

Paul riu novamente.

Segundos depois ele ficou sério, os olhos buscando o dela.

— Você queria mesmo falar comigo?

— O Jake realmente fez uma brincadeira. — Ela admitiu, os dedos se apertando levemente nos deles. — Mas eu já estava pensando em falar desde aquela última ligação.

— E por que não falou?

Ela ficou quieta por um momento, enquanto eles caminhavam lado a lado, mãos entrelaçadas, em direção à praia.

— Eu queria chegar a alguma conclusão primeiro.

— Sobre o quê?

Rose respirou fundo, sentindo o sal no ar queimar seus pulmões.

— O porquê você terminaria comigo, e quebraria o meu coração, apenas pra falar comigo novamente quase quatro anos depois.

Paul estremeceu com a sinceridade das suas palavras.

— Eu era um covarde, Prim. — Seus dedos se apertaram nos dela, quase dolorosamente. — Eu fiquei com medo. Eu achei que estava fazendo o certo…

— Eu não entendo, Paul.

Ele olhou para o mar, evitando seus olhos.

— Eu era um adolescente, e eu estava passando por um momento difícil e estava com muita raiva o tempo todo, magoado… Eu não queria passar isso para você, era melhor terminar tudo.

— Isso não é desculpa, Paul. — Rose cortou, firme.

— Eu sei que não é. — Ele engoliu em seco. — É por isso que eu engoli o meu arrependimento a cada dia, eu juro pra você, Prim.

— Você não poderia ter me explicado isso? Conversado comigo? — Ela puxou a mão dele, forçando-o a encará-la. — Eu era sua namorada.

O coração de Paul acelerou.

— Eu sei. Você não tem ideia do quanto eu sei disso, Prim. — Sua voz quebrou. — Eu repassei cada momento na minha mente, pensando no que eu poderia ter feito diferente. No que eu deveria ter dito. Eu pensei em bater na sua porta milhares de vezes, mas eu nunca tive coragem.

— E o que mudou agora? — Rose insistiu.

Paul respirou fundo.

— Nada mudou os meus sentimentos, mas eu tenho muito mais medo de perder você novamente do que continuar ouvindo meus demônios.

Rose riu baixinho, um som sem humor.

— Você entende como é difícil pra mim confiar em você de novo?

— Eu entendo. — As palavras doíam.

— E você entende que eu estava tão triste e magoada, que eu fiz de tudo pra te esquecer? — Ela segurou seu olhar. — Inclusive, ficar com outras pessoas?

Paul sentiu os dentes afiados pressionarem contra o interior da sua boca.

— Eu… sei.

— Eu não estou tentando magoar você ou jogar essas coisas na sua cara, Paul. — A voz dela suavizou. — Eu vi como você ficou naquele dia, lá em casa, por causa daquilo que Leah falou, mas você precisa entender que eu não esperava que nós fossemos voltar. Eu precisava superar você e seguir em frente.

— E você… — Paul engoliu o nó na garganta. — Você está com alguém agora?

— Não. — Rose olhou para as suas mãos, ainda unidas. — Eu não achei justo continuar com o Riley, quando eu estava com ele só pra tapar buracos.

— Buracos? — Paul sentiu-se ficar animado contra sua vontade.

— Paul… — Ela suspirou profundamente. — Eu não posso mentir dizendo que deixei de gostar de você. Eu ainda gosto muito, mas você me magoou, e eu sei que também te magoei.

Paul baixou os olhos, sem responder, mas Rose não precisou de confirmação para saber que era verdade.

— Mas eu realmente não consigo fazer isso agora. — Ela concluiu.

— Eu sei... Eu acho que eu... também não.

— Você entende que não pode ficar com raiva por eu ter decidido buscar outra pessoa depois de um ano sem você?

— Sim, eu sei… Eu só... Eu fiquei triste. — Paul baixou os olhos, sentindo o peso da culpa. — Eu continuei pensando se foi tão fácil assim pra você ficar com outra pessoa, quando eu passei quatro anos apenas pensando em você.

— Eu sinto mu...

— Você não tem por que se desculpar. — Ele interrompeu. — Na verdade, eu é quem sinto muito por ter sido um babaca e ter te tratado tão mal, ter terminado com você da forma mais covarde possível. Eu só… é só impossível não me sentir um pouco… traído, mesmo que seja irracional.

— Eu sei como você se sente. — Rose apertou sua mão. — Eu ainda gosto de você, mas não consigo deixar de ter medo que você vá quebrar a minha confiança de novo.

O som das ondas preencheu o silêncio que caiu entre eles. Paul sentiu o pulso de Rose acelerar contra seus dedos — tão rápido quanto o dele, embora nenhum dos dois admitisse.

— Talvez… — Ele começou devagar, escolhendo cada palavra como se pisasse em gelo fino. — Talvez se a gente fosse devagar?

— Talvez como amigos primeiro? — Ela sugeriu suavemente.

A expressão dele se contraiu por uma fração de segundo — rápido demais para quem não o conhecesse tão bem, mas ela viu. Viu o modo como seus olhos escuros piscaram, como a mandíbula se tensionou antes de responder:

— Amigos. — Ele concordou, embora fosse óbvio em seu rosto que a palavra doía nele quase fisicamente. — Posso ser um bom amigo, Prim.

Ela sorriu, pequeno e trêmulo.

— Eu sei que pode. — Uma pausa. — Eu só quero conhecer você novamente, Paul. Até eu confiar novamente em você, e você confiar novamente em mim. Eu não quero que sejamos apressados e que a gente tome decisões que possamos nos arrepender mais tarde.

— Você está certa, é claro. — Ele murmurou, com um sorriso que não alcançou seus olhos.

— Eu só estou cansada. — Rose admitiu, deixando a cabeça pender levemente para o lado. — De ser machucada… e de machucar os outros também. Eu não quero entrar nisso de cabeça, eu quero ter certeza. E eu também quero te dar tempo para você também ter certeza.

Paul ficou imóvel por alguns segundos. Ela podia ver seus pensamentos girando atrás daqueles olhos escuros.

— Claro, tempo. — Ele repetiu, como se testasse a palavra. — Eu posso te dar isso. Posso te dar o que você quiser, Prim.

Rose sentiu algo se desfazer dentro dela — um nós que existia há anos, apertado demais, doloroso demais. Não se soltou completamente, mas o suficiente para que ela diminuísse a distância entre eles e envolvesse Paul em um abraço.

Seu corpo contra o dele era quente, familiar, como voltar para casa depois de muito tempo longe. Ele ficou rígido por um segundo — surpreso — antes de ceder, seus braços envolvendo-a com uma cautela que quase a fez chorar. Como se ele não acreditasse que tinha sequer permissão para tocá-la.

Era um começo.

Um re começo.

Era frágil. Incerto. Como a primeira onda que quebra na praia depois da maré baixa, testando o terreno. Como o primeiro sopro depois da tempestade, suave e hesitante.

Mas era deles .

Aquela frágil trégua, construída sobre promessas quebradas e uma confiança ferida, mas ainda assim deles . Rose sentiu o peso da escolha em seu peito — o medo de se entregar novamente, de confiar, de acreditar que dessa vez seria diferente.

Mas ela não tinha o direito de dar um salto de fé?

E quando Paul inclinou a cabeça para repousar levemente sobre a dela, Rose deixou os olhos se fecharem.

— Eu sinto muito. — Ele sussurrou roucamente, um sopro contra seu rosto. — Por tudo.

Ela não respondeu imediatamente. Em vez disso, ficou ali, naquele espaço entre o passado e o futuro, onde as memórias ainda doíam, mas já não queimavam como antes.

— Eu também sinto muito.

Não era perdão — esse ainda teria que ser conquistado, gota a gota, dia a dia, com paciência e tempo.

Também não era reconciliação — essa ainda precisaria ser construída, tijolo a tijolo, sobre os escombros do que haviam perdido.

Era apenas um primeiro passo vacilante na direção certa.

Por enquanto, isso era o suficiente.

Notes:

Queridos amigos, vejo seus comentários ansiosos e fico me coçando para dar spoilers.

Mas, acalmem os corações, vai ser lento, mas eles vão se reconciliar. Estamos chegando lá!

*

Eu não esperava colocar Jacob nessa posição de um bom ouvinte, amigo e conselheiro, afinal no cânone ele é um pouco babaca, mas imaginei que praticamente crescendo com Primrose, as coisas poderiam ser diferentes.

Chapter 26: VINTE E SEIS

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Dizer que as coisas mudaram drasticamente seria uma mentira.

O mundo ainda girava no mesmo eixo. O sol ainda se punha sobre Forks, tingindo as árvores de dourado e vermelho. As ondas ainda quebravam em La Push, levando e trazendo areia como sempre fizeram. A cidade de Seattle ainda fervilhava de pessoas, carros e cultura.

E o coração de Rose ainda carregava as mesmas cicatrizes.

Mas estava indo tudo bem.

Apesar da estranheza daquela conversa com Paul, apesar do acordo de serem amigos por tempo indeterminado — uma decisão que deixou os olhos dele escuros de dor mesmo quando concordava —, Rose se sentia mais leve.

Como se tivesse tirado uma mochila pesada das costas depois de anos carregando-a. Aquela bagagem invisível cheia de “e se” e “por quê” e “talvez” .

Eles ainda estavam quebrados. Ainda estavam assustados. Ainda estavam duvidando de cada palavra não dita que pairava entre eles.

Mas agora, pelo menos, teriam tempo.

Tempo para descobrir se aquela frágil trégua era o início de algo novo ou apenas um novo adeus — desta vez mais gentil.

Tempo para entender se valeria a pena tentar reconstruir o que haviam perdido ou se o melhor seria deixar tudo para trás, fingir que nada aconteceu.

Tempo para aprender, talvez pela primeira vez, como eles deveriam ser honestos um com o outro — e consigo mesmos.

E quando Paul estendeu a mão para ajudá-la a subir a pequena encosta de volta à estrada, seus dedos se entrelaçaram com os dela novamente com uma familiaridade que doía.

Rose percebeu, então, que não sabia o que o futuro guardava, mas, para a sua própria surpresa, descobriu que estava muito animada para descobrir.

O grande problema dessa equação era Leah.

Desde aquela briga na porta de sua casa, as coisas com a sua amiga estavam instáveis. O verão inteiro se passou sem que se vissem, e as mensagens que trocavam eram esparsas e cuidadosas, como se estivessem com medo de falar uma palavra errada e gerar uma nova discussão.

Foi por isso que Rose guardou segredo.

Não contou a Leah sobre a conversa que ela teve com Paul na praia. Não contou sobre o acordo de serem amigos — uma mentirinha por omissão que queimava a sua língua toda vez que ela sorria para as mensagens que Paul enviava diariamente. Não contou como ele ficou parado na porta da sua casa no dia de sua partida de volta para Seattle — com tio Charlie sorrindo largamente por causa disso —, as mãos enfiadas nos bolsos, assistindo-a ir embora.

Rose sabia que estava errada. Leah merecia a verdade. Mas cada vez que pegava o celular para contar, imaginava o rosto da amiga se fechando em uma carranca, os olhos escurecendo em fúria — e então as palavras morriam em seus dedos.

Ela via Sam sempre que olhava para o Paul , e Rose usava essa justificativa para si mesma, enquanto continuava mentindo e ignorando o nó de culpa que se formava na boca do seu estômago.

O problema, provavelmente, era saber que, no fundo, ela tinha medo de ter que escolher entre Paul e Leah. E mais medo ainda da resposta que já habitava seu coração, quietinha e covarde, como um segredo que ela ainda não tinha coragem de admitir nem pra si mesma.

Então, ela deixou o tempo passar.

Deixou que os dias se transformassem em semanas, as semanas virassem meses, e que o tempo escorresse como areia entre seus dedos, levando consigo a coragem e a urgência de contar qualquer coisa à Leah. Em vez disso, mergulhou em mais um semestre de medicina ao lado de Zoe — que, surpreendentemente, aceitava toda aquela situação com Paul com um encolher de ombros, enquanto murmurava algo sobre “até os mais complicados merecem uma segunda chance”.

Rose não sabia se merecia. Mas se permitiu, mesmo assim.

Permitiu-se responder às mensagens de Paul, descobrindo aos poucos a vida que ele levou nos anos em que estiveram separados.

Descobriu que o pai dele havia ido embora mais de um ano atrás, sem aviso, sem explicação. Paul, aos 23 anos, ficou sozinho naquela casa cheia de memórias ruins, ainda fedendo a álcool, aprendendo a cozinhar para um, a dormir em uma casa que já não tinha mais família. Rose não sentiu a menor empatia pelo Sr. Lahote — especialmente depois de descobrir que ele havia afundado ainda mais no vício nos últimos anos. E que, da última vez que ela esteve na casa deles, o Sr. Lahote havia mentido para ela.

Descobriu que Paul havia se formado no Peninsula College com sucesso, mesmo depois de quase desistir. Que fazia pequenos trabalhos pela reserva — consertando telhados, ajudando na construção de novas casas, oferecendo obras e reparos. Que estava juntando dinheiro, centavo por centavo, para começar um negócio próprio.

Rose sentiu um calor estranho no peito — era orgulho de Paul.

E então ela também contou sobre seus últimos anos. Como ela havia terminado pre-med com honras, surpreendendo até a si mesma. Como a Faculdade de Medicina era um desafio muito maior, com as noites sem dormir e a constante dúvida se estava à altura. Ela contou sobre a herança de seus pais — excluindo, por enquanto, todo o plano de fundo sobre magia e bruxos —, e como ela ajudou tio Charlie a reformar a casa e trocar o carro.

Mas foram seus planos de estagiar e fazer sua residência no Hospital de Forks que fez Rose sentir o enorme sorriso de Paul mesmo através das mensagens de texto.

As conversas difíceis chegaram com o tempo.

Na véspera de natal, Rose foi para a casa do tio Billy, como sempre, onde passou o jantar com toda a família, incluindo tio Harry, tia Sue, Seth e Leah — que passou a maior parte do tempo emburrada no canto da sala, os olhos fixos em uma revista velha, e ignorando Rose.

Ela se forçou a ignorar isso, mesmo que doesse, e focou na sua família, que estava sentada ao redor da mesa, em uma sinfonia de conversas sobrepostas — Tio Harry, tio Charlie e tio Billy contando histórias de pesca, que se tornavam mais absurdas a cada ano, Seth rindo alto demais de piadas que só ele entendia, tia Sue forçando Rose a comer mais um prato e Jake inalando toda a comida, como se estivesse sem comer há uma semana.

Rose tentou, mas cada risada que Leah não compartilhou foi uma facada, e cada olhar que Leah evitou foi um fio de esperança se desfazendo.

Quando o jantar terminou, e a família se reuniu na sala para tomar chocolate quente, Jake sussurrou no ouvido de Rose:

— Ele quer te ver.

— Quem? — Rose perguntou, distraída, os dedos enrolando-se na xícara fumegante para aquecer seus dedos.

Jake revirou os olhos, exasperado.

— A Rainha da Inglaterra. — Ele sibilou, sarcástico. — Paul, né, claro.

O chocolate na xícara de Rose balançou perigosamente, quase derramando em seu vestido, quando ela quase derrubou-a.

— Ele está lá fora? — Sua voz saiu mais aguda do que pretendia.

Jake sorria, aquele sorriso malicioso de quem sabia demais e se divertia com cada segundo disso.

— Vai lá. Eu distraio as pessoas.

Ele piscou, e Rose não pôde evitar o riso que escapou de seus lábios. 

Como se precisasse de ajuda para escapar, quando todos os tios na sala, de repente, pareciam extremamente interessados em discutir o clima ou olhar para o teto com intensidade suspeita. Até a tia Sue, normalmente tão atenta, decidiu que era o momento perfeito para obrigar Leah e Seth a ajudá-la a recolher todas as xícaras vazias que nem estavam vazias ainda.

Ridículos. Todos eles.

Rose correu até a varanda da frente e encontrou Paul encostado na árvore, vestido com apenas uma camisa de manga longa fina e calças jeans.

— Você tá louco? — Ela gritou, o vapor saindo de sua boca.

Paul ergueu as sobrancelhas, confuso.

— O quê?

— Cadê seu casaco? — Ela gesticulou as mãos pelo corpo dele. — Você vai congelar até a morte. Você não está com frio?

Paul olhou para suas próprias roupas, depois para Rose — toda enfiada em um casaco grosso, cachecol, luvas e provavelmente três pares de meias — e deu de ombros.

— Eu estou bem, Prim. Eu sou bem quente.

Ela revirou os olhos, mas não conseguiu evitar um suspiro exasperado antes de arrancar seu próprio cachecol e enrolá-lo com firmeza — talvez um pouco mais apertado que o necessário — em volta do pescoço dele.

— Toma aqui, antes que eu tenha que explicar ao tio Billy, porque você virou um picolé no quintal dele.

Paul riu baixinho, o vapor do hálito dele se misturando ao ar gelado.

— Não se preocupe. Eu vou ficar bem.

— Espero que sim. — Ela esfregou os braços, tentando não notar como ele observou o gesto. — E então, o que você está fazendo aqui?

Ele hesitou por um segundo, como se estivesse revendo mentalmente o que planejava dizer.

— Eu vim desejar feliz natal. E te entregar o seu presente.

Rose piscou, surpresa.

— O quê? Mas eu não comprei nada para você.

Paul encolheu os ombros, mas seus olhos estavam suaves.

— Não precisa. — Ele enfiou a mão no bolso e tirou uma pequena bolsa de tecido, levemente desgastada, como se tivesse sido aberto e fechado inúmeras vezes. — É… algo que eu fiz há muito tempo, mas nunca tive a oportunidade de te dar.

Rose pegou a bolsa com cuidado, os dedos afundando levemente no veludo macio. Quando abriu, sentiu a respiração falhar.

Dentro, havia uma caixa de madeira que parecia ter saído de um conto de fadas. Era escura, como se estivesse envelhecida, mas polida até ganhar um brilho suave. Cada centímetro estava entalhado com flores delicadas — lírios e prímulas —, entrelaçadas com caules e folhas que pareciam dançar ao redor.

Na tampa, seu nome. Primrose Lily.

Quando levantou a tampa, uma melodia suave preencher o ar entre eles.

Seus olhos arderam.

— Isso é lindo, Paul. — Ela mal conseguia falar. E então, ela percebeu. — Você esculpiu isso?

Paul acenou com a cabeça, os olhos fixos nela, como se tentasse decifrar cada microexpressão.

— Comecei quando ainda estávamos juntos. Depois aconteceu tudo aquilo e eu nunca terminei. — Ele fez uma careta, evitando detalhes. — Eu decidi recomeçar há alguns meses.

Rose tocou a madeira com a ponta dos dedos, com uma reverência estampada em cada expressão do seu rosto, imaginando Paul sentado em sua mesa, moldando a madeira com as mãos — mãos que eram enormes, brutas, mas que se revelaram surpreendentemente delicadas com os detalhes.

— Isso é incrível, Paul.

Paul esfregou a nuca, desviando o olhar.

— Ah, não foi nada.

Ela sentiu um sorriso teimoso se formar em seus lábios. Rose se aproximou, colocando uma mão timidamente no braço de Paul.

— Sério, muito obrigada, Paul. Isso significa muito.

Ele encolheu os ombros, mas ela notou como seus olhos brilhavam de satisfação.

— Valeu a pena, só para ver essa expressão no seu rosto agora.

Rose sentiu um calor subir pelo seu pescoço até as bochechas.

— Bem… — Ela pigarreou, torcendo os dedos ao redor da caixinha de música antes de encontrar coragem. — Você quer dar uma volta?

Paul sorriu, parecendo encantado pela sugestão.

— Sim, claro.

Ela colocou a caixa de volta na bolsa de veludo, deixando-a com cuidado no banco da varanda do tio Billy. Quando voltou para Paul, ele estava com as mãos enfiadas nos bolsos, esperando por ela.

Começaram a caminhar sem pressa, lado a lado, as botas afundando levemente na neve fresca. Não havia destino, apenas o silêncio confortável entre eles, quebrado apenas pelo rangido da neve sob seus pés.

Quando seus braços se roçaram acidentalmente, nenhum dos dois se afastou.

— Sabe, eu nunca te agradeci…

Paul deu um meio sorriso, os olhos brilhando sob as luzes de Natal de uma das casas.

— Você acabou de fazer isso.

— Não por isso. — Ela soltou uma risada suave, o vapor formando uma nuvem branca no ar frio. — Por aquele dia no penhasco.

Ele encolheu os ombros, as mãos enfiadas mais fundo nos bolsos do jeans.

— Você não precisa me agradecer, qualquer pessoa teria feito isso.

— Não, não teria. — Sua voz ficou mais firme, embora não fosse rude. —E você nem me conhecia, nós só tínhamos nos visto uma vez antes daquele dia e você ainda foi lá e me salvou.

Ele ficou quieto por um momento, os olhos perdidos em alguma memória distante.

— Eu nunca deixaria você cair, Prim. — O apelido saiu naturalmente, como sempre.

Ela sentiu um nó se formar na garganta.

— Você fez mais do que isso, Paul. — A voz dela era quase um sussurro. — Você me tirou do buraco no qual eu estava. Literalmente me salvou da morte.

O silêncio que se seguiu foi quente, apesar do frio.

— Eu sempre lembro dela no natal, sabe? — Rose continuou, os olhos fixos na paisagem branca à sua frente. — Tia Sarah. Especialmente do que ela me disse naquele último natal. Ela me disse que a vida iria me testar de maneiras que eu nem imaginava, e que eu precisava seguir em frente. Ser forte. Eu prometi a ela isso. Que eu me manteria firme.

Paul parou de caminhar, virando-se para olhá-la completamente. Ele estendeu a mão, limpando uma lágrima teimosa que havia escapado de seus olhos.

— Você manteve sua promessa — Murmurou ele. — Olha pra você. A mulher mais teimosa que eu conheço.

Rose soltou um riso molhado, sentindo o peso de anos começando a levantar de seus ombros.

— Só porque você estava lá. — Ela respondeu, seus dedos encontrando os dele. — Você não desistiu de me mostrar como me levantar.

— E eu faria tudo de novo.

A neve continuava caindo ao redor, mas Rose já não sentia frio. Não quando Paul a puxou suavemente contra seu peito quente, envolvendo-a completamente — seus braços fortes ao redor dela, sua camisa áspera sob seus dedos, o bater constante de seu coração contra o dela.

— Obrigada. — Ela sussurrou contra o peito dele.

Paul apertou-a mais forte, os lábios pressionaram suavemente os seus cachos antes de responder.

— Você não precisa me agradecer. Eu prometo, se você me deixar, eu pretendo nunca mais sair do seu lado.

— Eu vou deixar. — Ela respondeu, simples assim.

Eles ainda tinham tanto para acertar, tantas palavras não ditas acumuladas em quatro anos de silêncio. Feridas que precisavam ser limpas antes de se cicatrizar, histórias que precisavam ser contadas sem pressa, sob uma nova perspectiva.

Mas ali, naquela noite de neve, eles sabiam que não precisava ter pressa.

Não era impulsivo, intenso, cheio de beijos roubados e promessas feitas no calor do momento. Dessa vez, seria diferente. Mais lento. Mais consciente.

Um passo de cada vez.

Era assim que se reconstruía um amor que valia a pena. Sem explosões de raiva, palavras afiadas, erros do passado esfregados na cara um do outro. Sem noites passadas em silêncios cheios de rancor, sem a ânsia desesperada de quem teme perder.

Eles estavam aprendendo, cada um à sua maneira, que o amor que valia a pena era feito de mais do que labaredas e paixão cega, mas de brasas que ardiam lentamente, capazes de aquecer sem consumir.

Porque eles eram paixão e fogo desmedido, e eles precisavam aprender a queimar devagar.

Havia algo de inacreditavelmente belo nessa reconstrução paciente. Em não apressar os movimentos, em permitir que as feridas se fechem no seu próprio ritmo. Em entender que o perdão não era um momento, mas um caminho percorrido lado a lado, onde cada passo era mais importante do que o destino final.

Não havia necessidade em se agarrar com desespero, com medo de que o outro desaparecesse. Podiam simplesmente estar juntos, deixando que as mãos se encontrassem naturalmente, que os olhos se cruzassem sem pressa, que os sorrisos surgissem como coisas vivas.

Era um amor que amadurecia nas ausências, nas saudades, nas noites solitárias em que cada um estava aprendendo, lentamente, a entender o que realmente importava.

Paul e Rose não eram mais duas metades em busca da completude, mas duas pessoas inteiras, escolhendo um ao outro todos os dias.

Sem exigências. Sem cobranças. Sem pressa. Sem medo.

Porque o amor, quando é bom de verdade, não precisa de grandiosidade.

Quando Rose voltou para a casa do tio Billy, ela perdeu os olhares cúmplices e sorrisos trocados entre os tios. Ela só tinha olhos para a sua caixa de música, constantemente traçando os entalhes gravados na madeira, enquanto seu peito guardava um calor novo, que teimava em crescer.

Nos meses seguintes, contar a verdade para Leah era a última coisa que se passava em sua mente, porque a única coisa em que ela conseguia pensar era no quanto ela estava feliz.

Notes:

Para conhecimento geral: eu atrasei a chegada de Bella em 1 ano. No cânone, ela chega em Forks em 2005, mas aqui eu troquei para 2006.

Chapter 27: VINTE E SETE

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Forks, WA

2004

“Boa sorte no seu primeiro dia”

A mensagem de Paul piscava na tela do celular, enquanto Rose terminava de amarrar os cadarços. Um sorriso involuntário surgiu em seus lábios antes que pudesse contê-lo. Com uma mão ocupada, ela respondeu a mensagem às pressas, plantou um beijo rápido na bochecha do tio Charlie e saiu correndo pela porta.

O seu coração martelava em seu peito — metade pela ansiedade do primeiro dia de estágio, metade por mal acreditar que, depois de tanto tempo esperando, esse momento finalmente havia chegado. Nos últimos meses, Paul esteve ali, como um apoio constante e silencioso, sem pressa de forçar nada além da amizade. E ela estava realmente satisfeita por isso.

E Leah... bem, Leah enviou um "parabéns" seco por mensagem e elas tiveram algumas conversas rasas. Nada mais. Nada sobre a briga que ainda pairava entre elas. Nenhuma brecha para iniciar uma conversa. E Rose também não tentou puxar assunto.

Mas hoje não era dia de pensar nisso. Em vez de cair nessa espiral e continuar tentando desvendar os problemas de Leah, Rose só conseguia pensar em jalecos brancos, estetoscópios e o seu futuro como médica.

Rose inspirou fundo dentro do carro, ajustou a sua bolsa e acelerou o passo no estacionamento até a entrada do hospital.

E então seu coração despencou.

Havia um vampiro ali.

— Olá! Você deve ser Primrose Potter. — A voz dele era suave, educada e perfeitamente humana. Se não fosse por aquela entonação quase certa demais, aquele tom que nunca vacilava, como se cada palavra tivesse sido medida antes de ser pronunciada, ou o fato de que ela reconhecia os sinais, talvez ela nunca suspeitasse daquela fachada.

Rose não conseguiu responder. Seus dedos se apertaram em volta da alça da bolsa até os nós dos dedos ficarem brancos.

Ela assentiu, apenas um movimento quase imperceptível da cabeça, enquanto o instinto gritava para ela correr, fugir, sobreviver.

— É um prazer conhecê-la. Eu sou o Dr. Carlisle Cullen.

Outro Cullen? O pensamento atravessou a mente de Rose como um raio. Quantos Cullen moravam nessa cidade? Ela conheceu o homem com cabelos cor de bronze no mercado e as duas mulheres na loja de construção. E, sinceramente, ela já havia esquecido que essas criaturas viviam na mesma cidade que ela.

E agora havia mais um? Quantos mais poderiam existir?

Ele estendeu a mão, e Rose não pôde evitar notar como a pele dele parecia muito pálida sob a luz fluorescente do hospital, quase translúcida, como porcelana. E quando ela apertou a mão de volta, sentiu um calafrio percorrer a sua espinha. A mão dele era gelada, como apertar a mão de um cadáver — perfeito, imóvel, gelado, não vivo.

— Serei seu preceptor durante o estágio.

Bem, que merda.

Seu coração acelerou como se tentasse fugir do peito, e os olhos dourados do Dr. Cullen a observaram com interesse por alguns segundos.

— Você está bem para começarmos, Srta. Potter?

— Sim, senhor. — Rose forçou um sorriso, soltando sua mão como se tivesse queimado. — Só… nervosismo de primeiro dia.

O Dr. Cullen ainda a estudava, como se conseguisse ouvir as mentiras pulsando em suas veias.

— Compreendo. — Seus lábios se curvaram em um sorriso gentil, que apenas fez Rose engolir em seco. — Você é a única estagiária que aceitou a vaga em Forks, sabia? A maioria prefere Seattle.

Ela quase riu. Claro que preferem. Todos devem fugir de medo depois de verem o vampiro na sala.

Mas Rose — sempre a grifinória — apenas assentiu, sem responder, ajustou a bolsa no ombro e aceitou ser guiada pelo corredor iluminado do hospital. Ele caminhava ao seu lado com uma naturalidade desconcertante, as mãos no bolso do jaleco branco, tão à vontade que quase — quase — a fazia esquecer o que ele realmente era.

O Dr. Cullen era surpreendentemente gentil e com uma calma que contrastava com o turbilhão dentro dela. Suas explicações eram pacientes e didáticas. Mas cada palavra dele fazia o seu coração acelerar um pouco mais.

— Como única estagiária, você terá uma experiência bastante pessoal. — Explicou ele, entregando-lhe uma folha enquanto caminhavam.

— O seu horário de chegada será sempre às 6h30, exceto nos finais de semana em que você estiver de plantão. — Comentou, passando pela recepção vazia. — Pela manhã, sempre revisamos os pacientes internados antes que o hospital acorde.

Ao passarem pela enfermaria, ele apresentou uma mulher alta, de cabelos escuros e óculos de armação grossa.

— Dra. Daphne Jones, nossa residente mais experiente. Ela está no último ano e liderará a maioria dos rounds com você.

— Um prazer conhecê-la, Srta. Potter.

— Prazer, Dra. Jones.

O Dr. Carlisle começou a andar novamente, dessa vez abrindo algumas portas e mostrando consultórios, ambulatórios, salas de exames, copa, sala de reuniões e outros ambientes do hospital, enquanto conversava amigavelmente com Rose. No ambulatório, ele a apresentou às enfermeiras com um sorriso simpático e bastante agradável, que fez todas aquelas pobres humanas derreterem com corações nos olhos. Era desconcertante.

Eles terminaram o tour em um escritório. O Dr. Carlisle sentou na grande mesa de mogno e estendeu o braço para que Rose se acomodasse em uma poltrona. Ele inclinou levemente a cabeça, as mãos cruzadas à frente do corpo com uma postura impecável.

— Diariamente, você terá tanto as responsabilidades clínicas do hospital quanto as exigências acadêmicas da faculdade. Você já recebeu o plano de tarefas?

Rose mordeu levemente o lado interno da boca antes de responder, evitando olhar diretamente para os seus estranhos olhos dourados.

— Sim, senhor.

— Pode repassá-las comigo? — A voz dele era calma, encorajadora.

Ela respirou fundo, tentando manter a voz estável.

— Certo. Nas tarefas clínicas, tenho que fazer a evolução diária dos pacientes, acompanhar os internados e registrar notas no prontuário. Também há apresentações semanais de casos, auxílio no preenchimento de admissões e participação em discussões.

Ele sorriu gentilmente, um gesto quase humano, se não fosse a perfeição assustadora.

— Excelente, muito bem. E as obrigações acadêmicas?

— Preciso registrar procedimentos no logbook e desenvolver um estudo paralelo para as provas teóricas bimestrais.

Ela enrolou a ponta do jaleco entre os dedos, esperando que ele não notasse o tremor sutil.

O Dr. Cullen observou-a por um segundo a mais do que o necessário — como se conseguisse sentir o cheiro do seu pânico — antes de acenar com aprovação.

— Perfeito. Então, vamos começar.

Rose suspirou silenciosamente, aliviada por estar livre para sair de perto do vampiro, e então seu dia começou.

As horas se desenrolaram em um ritmo mais tranquilo do que ela esperava. A maior parte do tempo, ela acompanhava um dos outros três residentes, auxiliava as enfermeiras ou ajudava em tarefas burocráticas. Só quando o fluxo diminuía, ou quando o Dr. Cullen decidia que ela precisava de orientação prática, é que ele a chamava de volta para o seu lado.

De repente, o relógio marcava 17h.

Rose piscou, surpresa. O dia havia passado mais rápido do que ela esperava — e, para seu próprio espanto, bem mais tranquilo. Nenhum paciente atacado. Nenhum olhar faminto disfarçado. Apenas um médico competente, paciente, e gentil.

Ela deveria se sentir aliviada. E, de certa forma, estava. Mas também havia uma inquietação persistente instalada em seu peito, como se ela estivesse esperando o outro sapato cair. Ainda restavam dois anos de estágio. Três de residência. Cinco anos convivendo com um predador que até agora se comportava como o mais dedicado dos médicos.

Rose mordeu o lábio enquanto guardava seu jaleco na bolsa. Talvez fosse assim que eles caçavam — com paciência de séculos, esperando que a presa baixasse a guarda.

Rose não sabia o que pensar.

O ar úmido de Forks a envolveu quando cruzou a saída. Ela respirou profundamente.

— Srta. Potter.

A voz fez seus ombros se contraírem antes que pudesse controlar a reação. O Dr. Cullen estava ali, ao lado da porta, imóvel como uma estátua.

— Como foi seu dia?

— Foi ótimo. — Ela respondeu, suas mãos tremendo levemente. — Obrigada pela paciência e ajuda, Dr. Cullen.

— É a minha obrigação, e um prazer. — Ele inclinou levemente a cabeça. — Posso acompanhá-la até o seu carro?

Rose engoliu em seco.

— Não precisa se incomodar. Você deve ter trabalho a fazer.

— Nada urgente. — Seus olhos dourados brilharam levemente sob a luz. — E eu realmente adoraria conhecer melhor minha nova estagiária.

Rose abriu a boca para recusar, quando um calor familiar envolveu sua cintura. Ela não precisava virar para saber que eram os dedos de Paul que a puxavam para perto de seu corpo.

— Eu posso levá-la daqui, Cullen.

O ar pareceu cristalizar. Carlisle permaneceu imóvel, seus olhos dourados piscando lentamente ao observar a cena.

— Eu não sabia que você tinha uma ligação com a Reserva.

A voz do Dr. Cullen mantinha a sua calma habitual, mas algo na frase fez Rose franzir o cenho. Ela sentiu os dedos de Paul se contraírem involuntariamente em seu quadril, sua respiração acelerando de forma perceptível — como se as palavras tivessem atingido algum gatilho invisível.

Os alertas mentais de Rose começaram a piscar. Por que isso importava?

Ela olhou alternadamente entre os dois homens — o médico com a sua expressão serena, mas agora com um leve franzir de sobrancelha que denunciava genuína curiosidade; e Paul, cujos músculos tensionados e respiração ofegante sugeriam uma fúria fervendo sob a pele, prestes a explodir.

— Isso não é da sua conta. — Paul rosnou, o peito vibrando contra suas costas.

Carlisle simplesmente inclinou a cabeça em uma reverência educada.

— É claro que não. Peço desculpas pela intromissão.

Mesmo sendo uma resposta inofensiva, a mão de Paul ainda apertou involuntariamente, quase dolorosamente, o quadril de Rose, fazendo-a conter um gemido de dor.

— Paul… — Ela murmurou em advertência, colocando uma mão sobre a dele.

Carlisle ainda os observava com interesse, e parecia ter chegado a alguma conclusão, porque ele finalmente disse:

— Bem, peço desculpas por incomodar. Eu vejo você amanhã, então. — Ele recuou um passo com graça sobrenatural. — Boa noite, Srta. Potter. Sr. Lahote.

Seu olhar dourado pousou em Paul por um segundo a mais antes que ele se virasse e desaparecesse novamente nos corredores do hospital.

Paul só relaxou quando o último vestígio do Dr. Cullen se dissipou, seu corpo finalmente descontraiu-se contra o dela.

— Sinto muito por isso.

Rose virou para encará-lo, as mãos ainda tremendo ao lado do corpo, embora ela estivesse muito mais curiosa do que com medo. Era a confirmação que ela precisava.

Paul sabia sobre os vampiros da cidade. A questão era: como?

— O que foi aquilo?

Paul desviou o olhar, a mandíbula tensionada sob a pele bronzeada.

— Eu só não gosto dele.

— Sério? Ele parece bem educado pra mim. — Ela blefou.

— É exatamente isso que me preocupa. — Sussurrou baixinho, puxando-a para perto. — Eu gostaria que você pudesse ficar longe dele.

— É meio impossível ficar longe dele quando ele é basicamente meu chefe.

Paul soltou um som baixo, quase um rosnado.

— Você poderia trabalhar no hospital da Reserva?

— Eles não aceitam estagiários ou residentes.

— É, eu imaginei isso.

Ele suspirou, os dedos apertando levemente seus braços.

— Agora você vai me dizer o porquê de toda essa preocupação?

Paul hesitou, seus olhos escuros buscando algo no rosto dela. Finalmente, murmurou:

— Ninguém na Reserva gosta dos Cullen. Eles chegaram há pouco tempo e... mexem com a floresta perto de La Push. — Uma pausa. — Eles são um incômodo.

Rose assentiu, sem realmente ter certeza se aquilo era verdade ou se Paul, de fato, sabia que os Cullen eram vampiros — mas simplesmente não queria dizer.

Ela podia entender, até certo ponto. Afinal, como alguém admitiria algo assim sem soar como um completo lunático? “Ei, a propósito, seu chefe é um vampiro” não era exatamente uma conversa casual.

Por outro lado, havia um “mas” insistente martelando em seus pensamentos. Algo que a incomodava profundamente — não o segredo em si, mas o fato de ele não confiar nela o suficiente para dividi-lo. Depois de tudo que haviam passado, depois de todas as promessas de reconstruírem coisas melhores... ele ainda mantinha aquela barreira entre eles.

— Paul… — Ela começou, mas interrompeu-se. O que exatamente ela poderia dizer? Meu chefe é um vampiro, e eu sei que você sabe disso? Com você sabe disso, afinal de contas? Ah, como eu sei? Bem, eu era uma bruxa, sabe.

— Sim, Prim?

Rose balançou a cabeça. Ela não estava pronta para contar sobre a sua vida como bruxa, então era bastante hipócrita da parte dela exigir que Paul contasse como sabia sobre os vampiros.

Por enquanto, ela teria que confiar nele.

— Nada. — Ela sorriu. — O que você está fazendo aqui, afinal?

Paul esfregou a nuca, adoravelmente nervoso quando tentava ser casual.

— Eu… bem… Eu queria te buscar no seu primeiro dia, mas como você já veio de carro… — Os dedos dele tamborilaram na porta do hospital, onde ainda estavam encostados. — Então, eu dirigi até a sua casa, e acabei caminhando até aqui, e…

— E?

— E talvez a gente pudesse tomar um café? Antes de você ir para casa. — Ele falou apressadamente. — Só se você quiser. Não precisa.

Rose mordeu o lábio para não rir.

— Café seria ótimo. — Ela concordou, os passos já se direcionando para o carro antes mesmo de terminar a frase. O cansaço do dia ainda pesava em seus ombros, mas de repente a ideia de passar mais algumas horas acordada não parecia mais tão ruim.

Rose sentou no banco do motorista, e esperou enquanto Paul se acomodava ao lado dela, seu corpo grande demais quase preenchendo todo o espaço do carro compacto. Ele apontou o endereço, e Rose abriu um enorme sorriso.

— Sério? — Ela perguntou, as mãos no volante enquanto o carro ganhava vida. — O mesmo café de sempre?

Paul encolheu os ombros, mas seu sorriso traía o quão feliz ele estava.

— Eu não sabia se você lembrava.

— Claro que lembro.

— Ainda é o único lugar em Forks que faz aquela torta de melaço que você adora.

Rose sentiu o seu estômago roncar alto em resposta, e Paul soltou uma risada. Aquele café foi um marco na sua adolescência. O lugar com as mesmas mesas de fórmica rachada, o mesmo cheiro de café passado e a mesma torta que eles devoravam depois da escola, quando Paul a buscava na sua caminhonete depois da escola.

Mais tarde, sentados lado a lado no canto mais afastado do café, dividindo uma fatia generosa de torta de melaço entre dois cafés fumegantes, o mundo lá fora parecia ter desaparecido.

Rose pegou um pedaço da torta com o garfo, o doce derretendo na língua com um gosto de nostalgia, e não pôde conter um sorriso quando Paul acabou com um pouco de açúcar no queixo. Ela riu, estendendo o guardanapo sem pensar, como fizera tantas vezes antes, para limpar seu rosto.

Paul congelou por apenas um instante, e então abriu um sorriso brilhante que quase fazia seus olhos desaparecerem.

Nenhum dos dois disse algo sobre isso.

Foi fácil esquecer.

Fora dali, o mundo continuava a girar. Ainda existiam vampiros andando tranquilamente pela cidade, amizades fraturadas e relacionamentos sendo reconstruídos. Mas naquela mesa riscada, com as cadeiras desconfortáveis e o prato dividido, tudo parecia simples de novo.

Eles riram. Das piadas horríveis que Paul contava, dos episódios embaraçosos que o tempo transformou em histórias queridas, dos momentos que só tinham algum significado porque os dois estavam lá para vivê-los. O café esfriou lentamente entre eles, enquanto a luz do fim de tarde desenhava sombras douradas em suas mãos unidas.

E por algumas horas, nada importou. Exceto o pedaço de torta que Paul insistiu que ela ficasse com a última mordida; o modo como seus dedos se entrelaçaram naturalmente, como se os anos de distância nunca tivesse existido; a maneira como os seus olhos dele nunca a deixavam, como se cada pequeno movimento dela fosse algo tão precioso que ele não podia perder.

Paul pigarreou, os dedos se mexendo freneticamente.

— Na verdade, esse não foi o único motivo para eu te chamar aqui hoje.

— Sério? O que houve?

Ele respirou fundo, os ombros se erguendo e caindo, como se ele estivesse procurando as palavras certas.

— Bem, eu… Olha, Prim, eu queria dizer que sinto muito. De verdade. Por tudo. Por ter sumido, por ter te afastado, por ter deixado você sozinha e confusa quando eu devia ter sido o contrário disso. — A voz dele estava mais baixa agora, mais áspera. — Você teria todo o direito de me odiar, de gritar comigo. E mesmo assim, você não tem sido nada além de gentil. Eu não sei se mereço isso.

— Paul…

— Não, Prim, está tudo bem. — Ele ergueu a mão gentilmente, os olhos implorando por paciência. — Eu fiquei pensando por semanas em como provar que eu mudei. E cheguei à conclusão de que só tentar ser paciente não era suficiente. Que pedir perdão não limpa o que eu quebrei. Então… eu decidi fazer algo.

A mão dele desapareceu no bolso do casaco, voltando com um papel meio amassado, dobrado com pressa. Rose pegou com hesitação, os olhos escaneando as linhas rapidamente antes de erguer uma sobrancelha em sua direção.

— É uma aprovação. Minha. — Ele explicou, o rosto sério. — Para um trabalho voluntário no orfanato de Port Angeles.

Ela piscou, surpresa. Ele continuou mais devagar.

— Eu fiz um serviço lá na semana passada e descobri que precisavam de voluntários. E eu pensei… bem, que talvez isso me ajudasse a mostrar a você o quanto eu estou disposto a mudar. — Ele desviou os olhos por um segundo, como se essa fosse a conversa mais difícil que ele já teve. — Eu não tô fazendo isso pra te impressionar, Prim. Nem pra ganhar pontos com você. Tô fazendo isso porque… bem, eu quero ser alguém melhor. Por mim. Mas também porque eu quero que, um dia, você possa olhar pra mim sem se lembrar apenas da dor que eu te causei.

Ele fez uma pausa, antes de continuar. Rose ainda não conseguia falar.

— E se eu conseguir fazer uma criança confiar em mim, mesmo que isso demore… talvez eu possa aprender a reconstruir as coisas que eu quebrei com você.

Rose ainda segurava o papel, mas agora olhava para ele com os olhos marejados.

— Por que… um orfanato? — Perguntou, a voz dela mais suave, quase um sussurro. — Por que não algum outro lugar?

— Bem, depois que a minha mãe faleceu, eu senti que não era parte de lugar nenhum. — Ele passou a mão pelos cabelos, como se isso ajudasse a organizar os pensamentos. — Eu ainda tinha meu pai, mas isso não era mais o suficiente. E depois que eu… depois que eu comecei a crescer, saí da adolescência, eu fiquei pior. Sempre com raiva. Era como se eu estivesse sempre tentando me encaixar num lugar que não me queria. Só que me tolerava.

Seus olhos encontraram os dela por um momento, sinceros, despidos de qualquer orgulho.

— E havia mais do que isso, é claro. Eu estava sempre reagindo ao que eu sentia. A raiva, o medo, a insegurança, o abandono. Era tudo sobre como eu me sentia, sobre o que eu achava que era certo. E eu até te afastei, achando que estava tomando a melhor decisão. — Ele sorriu, mais leve agora. — O orfanato vai me obrigar a sair de mim, porque as crianças de lá não se importam com o que eu fiz ou deixei de fazer. Elas não me acham nada especial. Elas só querem que eu escute. Eu quero fazer isso, quero aprender a ouvir, a ser melhor. Eu quero ser alguém que não tenta consertar tudo com força ou silêncio, mas com presença.

Ele respirou fundo, e sua voz ficou mais baixa, quase um sussurro:

— Quero aprender a estar ali por alguém, mesmo quando não é fácil. Mesmo quando nada volta pra mim. Porque, se um dia eu tiver a chance de estar de novo na sua vida, Prim, eu quero ser alguém melhor para você. Alguém que sabe esperar. Que sabe ouvir. Que sabe ficar. E se isso não for suficiente… tudo bem. Eu só não quero ficar esperando que as coisas se resolvam sozinha. Eu quero me esforçar para me tornar alguém melhor.

Rose não respondeu.

Por um longo minuto, ela apenas ficou ali, o olhar alternando entre Paul e o papel em suas mãos, como se buscasse nas entrelinhas algo que ele não colocou em palavras.

Então, devagar, ela se levantou da cadeira.

Paul recusou com um suspiro, os ombros afundando. Os olhos dele escureceram, a expressão se fechando como se já soubesse o que viria a seguir. Ela iria embora. O silêncio tinha sido apenas uma despedida educada, afinal. E tudo bem. Ele merecia isso. Merecia muito mais.

Mas, quando ele menos esperava, ela estava sentada no colo dele, os cachos vermelhos escorrendo sobre seu ombro, seus braços enroscados ao redor de seu pescoço com uma urgência que tirou o fôlego dele.

Paul ficou imóvel por um segundo, o coração tropeçando dentro do peito. Depois, retribuiu o abraço com força. Seu rosto enterrou-se no pescoço de Rose, respirando fundo, tentando gravar aquele momento na pele.

— Eu estou muito orgulhosa de você. — Ela sussurrou no seu ouvido, a voz tão suave quanto o toque de seus dedos nos cabelos curtos da nuca dele.

Mais tarde naquele dia, ela chegou em casa com um sorriso que teimava em não sair dos lábios. Tio Charlie suspeitava de algo, mas ficou calado.

Seus dedos traçaram, inconscientemente, todos os lugares onde ela ainda podia sentir o calor das mãos de Paul. O coração ainda batia forte contra as costelas, trovejando dentro do peito, de um jeito que ela só sentiu quando era uma adolescente. As suas bochechas ardiam sempre que lembrava da própria ousadia.

O teto do quarto testemunhou o seu sorriso bobo. Ela rolou para o lado, abraçando o travesseiro contra o peito, os pés descalços se agitando contra os lençóis como se ainda estivesse cheia da energia que a tomara quando se jogou nos braços dele.

Era ridículo. Era maravilhoso. Era assustador.

Lá fora, o vento noturno balançou os galhos contra sua janela, mas Rose mal ouviu. Seus pensamentos estavam ocupados demais revivendo cada instante — o cheiro da pele dele, a temperatura de seu corpo, o som de sua respiração presa quando ela se aproximou, o coração batendo com força sob a pele, a forma como seus braços fortes se fecharam ao redor dela.

Naquela noite, Leah enviou uma mensagem, estendeu um ramo de oliveira, que Rose aceitou timidamente, mas sem nunca citar o nome de Paul — ela sabia que no momento em que fizesse isso, tudo desmoronaria. Elas iriam brigar, e toda a felicidade e tranquilidade que Rose construiu com Paul ao longo dos últimos meses iria por água abaixo. Então, ela escolheu não dizer nada.

Por enquanto, Rose queria apenas acreditar que o amor podia ser simples.

Notes:

Eu pensei bastante no que seria adequado para ajudar na remição de Paul. Pedir desculpas, estar presente ou contar a verdade sobre os lobos imediatamente seria legal, mas não achei que seria suficiente — ou real.

Então, surgiu a ideia do voluntariado. Paul está dando o tempo dele, que é escasso (entre trabalhar, construir o próprio negócio e ser um lobo), para se doar para outras pessoas. Crianças, nesse caso. Que realmente não estão nem aí para ele, porque elas tem problemas maiores. Ele vai ter que aprender a ser gentil, paciente, empático. Tudo isso vai ajudá-lo a ser uma pessoa melhor para si próprio e para os outros.

Digo, por experiência própria, que atuar no voluntariado para crianças é uma experiência que tira você da zona de conforto e mostra o quão pequeno alguns dos seus problemas são e que o bem que você pode fazer pelos outros, por menor que seja, é sempre gratificante.

Me digam se isso faz algum sentido para vocês. ❤️

P.S: Quanto aos problemas com Leah, nada vai ser totalmente resolvido até que ela se torne uma metamorfo também. Então, muitas águas ainda vão rolar.

Chapter 28: VINTE E OITO

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

No dia seguinte, Rose mal conseguia conter o sorriso que insistia em surgir a cada pensamento da noite anterior. Seus passos pelo corredor do hospital eram mais leves, os dedos tamborilavam inconscientemente nas prateleiras de prontuários, e até mesmo os pacientes mais difíceis recebiam sua atenção com um brilho extra nos olhos.

— Você descobriu onde ficam guardados os antidepressivos no segundo dia? — Um dos residentes brincou, mas Rose apenas riu e mudou de assunto.

Até mesmo Zoe, que ligou na hora do almoço para compartilhar o andamento do seu próprio estágio no Centro Médico de Harborview, em Seattle, conseguiu sentir a felicidade de Rose pelo telefone e insistiu em saber todos os detalhes sobre seu último encontro com Paul.

Nem mesmo o Dr. Cullen conseguiu diminuir seu bom humor. Ela cumprimentou-o com um sorriso feliz e acompanhou-o em todas as atividades necessárias com o ânimo nas alturas, como se não estivesse ao lado de um vampiro de sei lá quantos anos, mas apenas mais um colega de trabalho.

No final do plantão, o hospital estava quieto, as luzes do entardecer pintavam as paredes de um laranja enferrujado, enquanto Rose organizava os prontuários na enfermaria. Ela ouviu passos se aproximando.

— Srta. Potter?

A voz do Dr. Cullen era sempre baixa, sempre educada, sempre controlada. Ela ergueu os olhos para encontrá-lo parado a uma distância cuidadosa, sua postura impecável de médico, as mãos nos bolsos do jaleco.

— Preciso revisar alguns exames na minha sala. — Ele disse, o tom neutro, mas as palavras muito medidas. — Você poderia me acompanhar?

Rose engoliu seco. Era um pedido que não soava como pedido. Ela assentiu, deixando a caneta cair sobre a mesa com um click alto no silêncio.

O caminho até a sala dele foi curto demais. O Dr. Cullen fechou a porta com um movimento suave e se apoiou na mesa, a luz da janela iluminava o seu perfil como uma escultura renascentista.

— Eu não sabia sobre o seu… vínculo com a Reserva. — Ele começou depois de alguns segundos de silêncio.

Rose, no entanto, manteve a expressão neutra.

— Eu não sei o que isso quer dizer, senhor.

E ela realmente não sabia o porquê isso era relevante para ele. Talvez Paul estivesse certo em dizer que as pessoas da reserva não gostavam dos Cullen, mas ela duvidava que o Dr. Cullen fosse explicar alguma coisa sobre isso.

Ele ergueu uma sobrancelha e estudou-a por um momento. Assim como no dia anterior, ele pareceu ter chegado a alguma conclusão satisfatória e seguiu em frente.

— Você é observadora. — Ele mudou de assunto, os dedos entrelaçados. — Imagino que já tenha percebido que a minha família não é exatamente… comum.

Rose respirou fundo, as costas eretas na poltrona.

— Eu notei algumas coisas.

O Dr. Cullen simplesmente inclinou a cabeça, o cabelo loiro capturando os últimos raios de sol.

— Posso saber quando você descobriu?

— Ano passado. Eu vi um dos seus… parceiros de clã… no mercado.

Os lábios do Dr. Cullen se curvaram em um sorriso genuíno, os olhos dourados brilhando com uma centelha de humor.

— Eu o considero meu filho, na verdade. Era Edward.

Ela franziu a testa, a curiosidade superando temporariamente a cautela. As palavras saíram antes que ela pudesse pará-las.

— Então, vocês realmente… vivem como uma família?

— Há mais de um século. — O Dr. Cullen simplesmente assentiu, como se aquela frase por si não fosse absurda.

Rose mordeu o lábio inferior ao pensar nisso. Vampiros que fingiam ser humanos não era uma novidade — mas vampiros que brincavam de casinha? Fingiam ser uma família e mantinham relacionamentos duradouros? Isso parecia muito mais perigoso.

— E como você descobriu, se me permite perguntar? — Ele insistiu.

— Não foi difícil descobrir. — Ela suspirou. — Eu já sabia antes.

Um silêncio pesado se instalou entre eles, cada um estudando o rosto do outro como se estivessem lendo nas entrelinhas, procurando respostas para as perguntas que não estavam sendo ditas. 

— Você não é exatamente humana, é? — Dr. Cullen finalmente quebrou o silêncio.

— O quê?

— Seu cheiro… — Ele franziu o nariz. — Não é exatamente dos melhores.

— Que rude. — Ela retrucou sem pensar.

Carlisle soltou uma risada baixa, o som quase musical no consultório silencioso.

— Você me entendeu mal. Os humanos normalmente têm um cheiro bastante… tentador para nós. É especialmente difícil para aqueles que estão há pouco tempo sem provar o sangue humano. — Ele explicou, e Rose arquivou mentalmente aquela última informação para mais tarde. — Mas você… nada. Meu filho lembra do seu encontro no ano passado, e ele também não sentiu um cheiro… humano em você.

— Eu sou humana. — Rose afirmou, os dedos se contraindo involuntariamente.

— Mas não um ser humano comum.

— Não.

O Dr. Cullen estudou-a por um momento antes de concordar com a cabeça.

— E você não vai me contar o que você é.

— Não.

— Entendo. — Ele suspirou, ajustando o jaleco no corpo sem necessidade. — Espero que você confie em mim com o passar do tempo, já que estaremos trabalhando juntos pelos próximos anos.

Rose cruzou os braços.

— Como posso confiar em você quando você, provavelmente, usa seu disfarce de médico para beber sangue humano?

— Nossos olhos. — Ele disse simplesmente. — O dourado significa que nos alimentamos… diferentemente. Apenas animais. Eu mesmo nunca provei sangue humano em toda a minha existência.

— Isso significa que olhos vermelhos…?

— Exatamente. — Dr. Cullen confirmou, a voz baixando um tom. — Olhos vermelhos significam sangue humano. Eu e a minha família escolhemos um caminho mais… pacífico.

— É por isso que a Reserva não gosta de vocês? Porque vocês desmatam a fauna local? — Ela zombou, mas a curiosidade por trás da pergunta era genuína.

O Dr. Cullen soltou uma risada sincera, o som surpreendentemente humano.

— Você pode dizer que sim. — Ele admitiu, os olhos brilhando de divertimento. — Os problemas com a Reserva, no entanto, são um pouco mais complicados do que disputas por território de caça.

— Complicado como?

O Dr. Cullen assumiu uma expressão quase humana de constrangimento.

— Peço desculpas. Infelizmente, essa não é uma história que eu tenho permissão para contar. — Então, ele ergueu uma sobrancelha perfeita. — Por enquanto, quero apenas ter certeza de que você não vai compartilhar os nossos segredos por aí, Srta. Potter.

— Não irei. — Ela respondeu, levantando-se da cadeira. — Até porque muitos podem me achar louca.

Os lábios do Dr. Cullen curvaram-se em resposta.

— Eu retribuirei gentilmente a cortesia, é claro. Ninguém saberá sobre o seu cheiro peculiar.

Rose franziu o nariz. Que maneira horrível de descrever isso.

— Eu agradeço, Dr. Cullen.

E então, ela foi embora da sala.

Rose caminhou pelos corredores do hospital com passos mais leves, mas a sua mente parecia pesar toneladas com tantas revelações e perguntas que giravam.

A primeira descoberta — e a mais perturbadora —, era o fato de que, mesmo sem magia, ela ainda carregava algum traço do seu passado como bruxa no seu sangue. Isso não deveria ter sido uma surpresa para ela, já que Rose foi capaz de ver uma rua bruxa em Seattle e não ser atingida pelos feitiços anti-trouxas. Por um lado, ela estava grata que isso, aparentemente, repelia os vampiros. Por outro lado, se criaturas podiam senti-la, isso a destacava entre os humanos. Ela precisava ficar sempre atenta.

A segunda peça do estranho quebra-cabeça era a Reserva Quileute e, portanto, Paul. Ela ainda não conseguia entender o porquê ele não contou sobre nada disso, mas enquanto ela não tivesse coragem para falar sobre o seu passado, ela também não seria capaz de perguntar como ele sabia sobre os vampiros. Era uma faca de dois gumes, e ela não queria pensar sobre isso agora.

E, por fim, a terceira descoberta foi um alívio: os Cullen não eram assassinos. Aquele pequeno detalhe mudava as coisas. Ela se sentia um pouco mais segura, e estava grata que não precisava se preocupar com o tio Charlie, tio Billy, Jake e outras pessoas da sua família.

Obviamente, Rose ainda não estava pronta para aceitar os vampiros como vizinhos inofensivos. Isso era pedir demais. Mas, pelo menos, agora ela poderia voltar a focar na sua vida sem se preocupar se alguém viraria o próximo jantar.

Antes de encerrar o dia, o Dr. Cullen acenou amigavelmente e Rose, pela primeira vez, retribuiu o gesto sem achar que o movimento tinha segundas intenções.

 

*

 

Forks, WA

2005

— Entra! — A voz da Dra. Jones veio do outro lado da sala, seguida pelo som de papéis sendo arrumados.

Rose abriu a porta, prontuário em mãos.

— Você me chamou, Dra. Jones?

— Sim, Potter. Há uma paciente aqui para um check-up pós-cirúrgico. Cirurgia de apendicite, três semanas atrás. Preciso que você avalie a cicatrização e faça um exame físico rápido. Normalmente, eu a acompanho nisso. Mas essa é uma tarefa básica e eu estou bastante ocupada. Você consegue seguir sozinha?

— Claro. — Rose assentiu, os olhos escaneando o prontuário. — Heather Lowell, 8 anos, órfã, apendicectomia laparoscópica. Simples. Ela está na sala 3?

— Sim. E o acompanhante dela já está lá. — A Dra. Jones fez uma pausa dramática, seus olhos brilhando de curiosidade mal disfarçada. — Acho que você vai gostar bastante.

Rose franziu a testa, mas não teve tempo de questionar. Quando empurrou a porta da sala 3, quase perdeu o fôlego com a cena.

Sentado na cadeira de acompanhantes, com as mãos grandes demais segurando as de uma garotinha magricela de tranças loiras, estava Paul. A menina — Heather — balançava as pernas inquietas, os olhos arregalados ao redor da sala como se esperasse que alguma coisa saltasse das paredes.

— Prim? — Paul levantou os olhos, as sobrancelhas se erguendo quase até a linha do cabelo. — Eu não sabia que você ia atender ela.

— Surpresa. — Rose respondeu, seus lábios se curvando em um grande sorriso e o seu coração traidor se acelerando ao ver uma cena tão adorável. — O que você está fazendo aqui?

— Eu vim acompanhar Heather para uma consulta de rotina.

Rose assentiu com um sorriso feliz.

Ela sempre ficava emocionada quando Paul contava sobre seus dias no orfanato. No início, ele estava lá apenas para fazer reparos e ajudar em pequenas obras. Mas, com o tempo, quando as matronas começaram a confiar nele e se acostumar com a sua presença, Paul também ajudava as crianças, às vezes levando-as para a escola ou acompanhando elas no hospital, por exemplo.

Rose via a mudança nele a cada história compartilhada. Como seus olhos brilhavam sempre que ele falava sobre alguma conquista das crianças, como o orgulho iluminava suas feições quando qualquer menção aos pequenos aparecia nas conversas e até a sua paciência parecia melhor depois de ter que se esforçar para responder perguntas infinitas e amarras pequenos sapatos.

Foi então que Heather se inclinou para Paul, os lábios quase tocando seu ouvido — embora Rose ouvisse perfeitamente o sussurro:

— É ela?

— Sim, é ela.

A menina puxou o braço dele, insistente.

— Ela é muito mais bonita do que você falou.

Rose sentiu as orelhas queimarem, enquanto Paul ficava visivelmente tímido.

Heather. Shh! — Ele resmungou.

A garota, no entanto, não estava nem um pouco intimidada.

— Você disse que ela era bonita e inteligente, mas não falou que ela tinha cabelo de princesa. — Acusou, apontando descaradamente para Rose.

Rose não conseguiu conter a risada alta e genuína que ecoou pela sala.

— Esse é um elogio adorável vindo de uma moça tão bonita quanto você.

— Você acha mesmo, Doutora Prim? — Heather abriu um sorriso enorme, que iluminou todo o seu rosto.

O apelido fez Rose rir ainda mais — não havia dúvidas de que vinha direto do vocabulário de Paul.

— Com certeza. — Confirmou, gesticulando para Heather deitar na maca. — Mas agora, Heather, vamos dar uma olhada nessa barriga, tá bom?

— Vai doer? — Heather perguntou, os olhos arregalados.

— Vai doer menos do que quando você veio fazer a cirurgia. — Rose balançou a cabeça gentilmente. — E eu sei que você nem chorou naquela hora.

Enquanto avaliava a pequena cicatriz rosada da menina, a conversa fluiu fácil — sobre a escola, sobre os amigos do orfanato, sobre Paul e sobre a família que queria adotar a pequena Heather.

Durante todo o exame, Rose sentia os olhos de Paul em si o tempo todo — pesados, quentes, persistentes. Como se, mesmo depois de anos, ele ainda estivesse tentando memorizar cada movimento dela.

— Tudo perfeito, Heather. Você foi muito corajosa. — Olhando para Paul, ela disse. Rose sorriu para a menina antes de se virar para Paul. — Eu preciso só coletar a assinatura do médico e então vocês serão liberados.

Alguns minutos depois, com a papelada em ordem, Rose os acompanhou até a saída do hospital.

— Tchau, Doutora Prim! — Heather acenou animada, os olhos brilhando de malícia. — Que bom que vimos você. O Paul queria te ver.

Rose arqueou uma sobrancelha, os lábios se curvando em um sorriso travesso.

— Ah, é mesmo?

— Sim, ele não parava de falar como…

Antes que Heather pudesse terminar, Paul agiu rápido. Com um movimento fluido, ergueu a menina no colo e tapou sua boca com a mão.

— Agora eu fiquei curiosa. — Rose cruzou os braços. — Sobre o que você não parava de falar, Paul?

Ele hesitou por um segundo, os olhos escuros buscando os dela como se procurasse coragem. Então, com uma voz tão baixa que Rose quase não ouviu, confessou:

— Como eu sentia a sua falta.

O sorriso de Rose se tornou ainda mais doce. Sem pensar duas vezes, ela se inclinou e beijou sua bochecha, sentindo o calor da pele dele contra seus lábios. Paul congelou no lugar, os olhos arregalados em surpresa antes de se transformarem em adoração.

— Eu também senti sua falta. — Ela sussurrou, o rosto ainda próximo do dele.

Paul respirou fundo, os braços ainda segurando Heather, que agora se contorcia com um ar de vitória.

— Eu venho buscar você mais tarde. — Ele prometeu.

— Estarei aguardando. — Rose respondeu, os dedos brincando com a ponta do estetoscópio que pendia em seu pescoço.

Ela acenou da porta, enquanto Paul voltava para o carro com uma Heather borbulhante de felicidade.

 

*

 

A madrugada no hospital de Forks era silenciosa, apenas o zumbido das luzes fluorescentes e o ocasional bip dos monitores quebrando a quietude. Raramente ela trabalhava nos plantões da madrugada, mas quando acontecia, geralmente ela aproveitava para atualizar relatórios da faculdade e estudar casos clínicos para as suas provas. Raramente acontecia alguma coisa atípica, especialmente numa cidade tão pequena quanto Forks.

Exceto nos primeiros minutos do amanhecer, quando o Dr. Cullen passou quase correndo por ela.

— Srta. Potter, preciso da sua ajuda. Temos uma emergência na entrada. Paciente masculino, 53 anos, perda súbita de movimentos nos membros inferiores acompanhada de febre alta.

O Dr. Cullen mal terminou de falar quando Rose já corria em seu encalço pelos corredores, o jaleco branco esvoaçando atrás dela.

Na entrada da emergência, Rose sentiu o sangue sumir do rosto, o coração deu um salto.

— Tio Billy…

Billy Black estava pálido na maca, o suor escorrendo pelas têmporas. As pernas repousavam inertes no lençol. Jake estava ao lado, as mãos trêmulas pairando sobre o pai.

— Rose… — Billy tentou seu sorriso habitual, mas um tremor de dor o transformou numa careta. — Dessa vez não pude adiar a visita ao hospital.

Seus dedos encontraram o pescoço dele antes mesmo de perceber, a pele queimando sob seu toque. Enquanto segurava o termômetro, os números dispararam como um alarme: 40,3°C. Do outro lado da maca, Carlisle já avaliava os reflexos com movimentos rápidos.

— Quando começou? — O Dr. Cullen perguntou, os dedos já avaliando os reflexos ausentes.

— Ele acordou assim. — Jake respondeu, a voz rouca de preocupação. — Ainda discutiu pra vir aqui. Queria o hospital da Reserva.

— É mais perto. — Billy resmungou, a voz rouca de febre, mas ainda cheia de obstinação.

— Aqui também tem um médico. — Jake contra-atacou, os olhos piscando em direção ao Dr. Cullen num pedido silencioso de desculpas. — E a Primmy também.

Tio Billy resmungou, mas seu estado era muito crítico para ele reclamar mais.

— Vamos precisar de hemograma completo, painel metabólico, hemoculturas e ressonância da coluna. — Dr. Cullen ordenou, as mãos já puxando a maca. — E insulina IV agora.

Rose correu na frente, já falando com as enfermeiras e organizando a UTI.

A manhã foi agitada e Rose ficou bastante ocupada trabalhando ao lado do Dr. Cullen, seus movimentos sincronizados, enquanto ele inseria o acesso venoso central e Rose já preparava a bomba de insulina, os números alarmantes da glicose piscando no monitor.

— Punção lombar primeiro ou esperamos a ressonância? — Rose perguntou, os olhos fixos no monitor cardíaco de Billy.

— Vamos direto para a ressonância. — Dr. Cullen decidiu, os dedos pressionando suavemente o pescoço do paciente para avaliar a rigidez da nuca. — Precisamos ver o grau de compressão antes de qualquer intervenção.

As horas se arrastaram em um ritmo frenético, com as enfermeiras colhendo amostras de sangue e o zumbido baixo da equipe focada.

No final das contas, tio Billy precisou ser estabilizado às pressas para entrar na cirurgia, mas o Dr. Cullen não precisou de palavras para Rose saber que o tio provavelmente nunca mais andaria.

Enquanto o Dr. Cullen se preparava para a cirurgia, coube a outro médico dar as notícias ao Jake. Rose foi afastada do procedimento — conflito de interesses, afinal, ela era praticamente da família.

Enquanto as horas se arrastavam, Rose já havia encerrado o seu plantão, mas decidiu não largar o expediente ainda. Ela aproveitou a troca de plantão para ligar para o tio Charlie e tia Sue, checar Jake na sala de espera e enviar uma mensagem para Paul, avisando do ocorrido e informando que sairia do hospital mais tarde.

— Rose?

A voz familiar fez ela erguer o rosto. Tio Charlie estava ali, ainda em seu uniforme policial, os ombros tensos.

— Oi, tio. — Ela respondeu, a voz mais cansada do que gostaria. —  Que bom que você veio.

Ele se aproximou, os passos pesados no chão de linóleo, e abraçou Rose suavemente.

— Como ele está?

— Ainda na cirurgia. — Rose explicou, os dedos torcendo o seu crachá sem perceber. — O Dr. Cullen disse que vai demorar mais uma hora.

Tio Charlie fez uma careta ao ouvir o nome do médico, mas assentiu, seus olhos escuros passando dela para Jake, que estava encolhido num canto da sala de espera, com as mãos penduradas entre os joelhos.

— Ei, Jake. — Tio Charlie se aproximou, uma mão no ombro de Jake. — Você está bem, garoto?

Jake ergueu a cabeça, os olhos vermelhos e a boca numa linha dura.

— Tudo bem, Charlie.

— Ele vai dar conta. — Murmurou, mais para si mesmo do que para eles. — O Billy sempre dá.

Eles se sentaram juntos nas cadeiras desconfortáveis da sala de espera, enquanto esperavam.

Alguns minutos mais tarde, tia Sue, tio Harry, Seth e Leah chegaram no hospital. Provavelmente era a primeira vez que Rose via Leah depois de meses, e a primeira vez que a amiga a via em seu novo trabalho. Mas ela realmente não queria iniciar nenhuma conversa naquele momento, então elas apenas assentiram uma para a outra e nada foi dito.

Leah sentou do outro lado da sala, sua postura rígida e emburrada como sempre, e Rose se preocupou em tirar todas as dúvidas da sua família e confortá-los da forma que pudesse.

Finalmente, o Dr. Cullen apareceu.

— A cirurgia foi bem. — Ele anunciou, a voz calma, mas sem rodeios. — O Sr. Black está estável, mas a infecção na coluna causou uma compressão severa na medula. A cirurgia foi feita para aliviar essa pressão, mas no caso dele, mesmo com a cirurgia, a lesão pode ser irreversível.

O ar saiu da sala como se alguém tivesse aberto uma janela.

O Dr. Cullen continuou.

— O tratamento agora tem três frentes. Ele precisará ficar internado por alguns dias para tratarmos a infecção. Saindo daqui, ele precisará de um controle rigoroso da glicemia e fisioterapia imediata para evitar complicações.

Jake foi o primeiro a regir.

— E as pernas dele?

— Infelizmente, o dano na medula é grave. — O Dr. Cullen olhou diretamente para ele, sem hesitar. — Neste momento, tudo indica que a paraplegia será permanente.

— Então, isso significa que ele não vai voltar a andar? — Tia Sue perguntou em um sussurro.

O Dr. Cullen acenou em concordância.

— Precisamos transferi-lo para a UTI agora. — Ele disse, os seus olhos encontrando os de Rose. — Dra. Potter, você pode me ajudar?

Rose assentiu e se levantou, sentindo o peso do olhar da família nela.

— Eu trago notícias assim que ele estiver instalado. — Prometeu, antes de seguir o Dr. Cullen.

Mais tarde, quando o tio Billy já estava estável na UTI, monitorizado e com os antibióticos correndo em seu soro, o Dr. Cullen permitiu que Rose levasse visitantes.

No entanto, quando voltou para a sala de espera, Rose ficou surpresa ao ver outras três pessoas ocupando as cadeiras de plástico: Paul, Sam, Emily e um terceiro cara.

O ar na sala ficou instantaneamente mais pesado. Rose não precisou seguir a direção do olhar de Leah para saber que ele estava cravado em Sam e Emily. Provavelmente ela estava dando tudo de si para não começar uma briga no meio do hospital.

— O Dr. Cullen liberou visitas. — Rose anunciou, a voz propositalmente neutra para não alimentar ainda mais a tensão. — Mas só podem ir dois de cada vez, e por apenas alguns minutos.

Jake levantou-se primeiro, seguido pelo tio Charlie. Os dois desapareceram pelo corredor, acompanhados de uma enfermeira.

Foi então que Paul se aproximou, sua presença calorosa e familiar ao seu lado.

— Como você está? — Ele perguntou, baixinho, só para ela.

— Não sei. — Ela admitiu, a voz quase um sussurro. — Ele vai ficar bem, mas o processo de cura e aceitação vai ser demorado. Não consigo deixar de me preocupar.

Paul não respondeu. Apenas deixou a sua mão encostar suavemente o ombro de Rose, um toque rápido o suficiente para não chamar atenção.

— Eu estou aqui por você. — Ele murmurou, os olhos escuros buscando os dela.

— Obrigada, Paul. — Ela respondeu, o coração batendo um pouco mais rápido.

O olhar dele mudou dela para o grupo onde Sam e Emily estavam sentados.

— Tudo bem se eu te apresentar ao pessoal?

Rose hesitou. Da última vez que ela falou com Sam e Emily, Leah estava brigando com eles na praia e ela também não foi a mais gentil com Emily. E se isso não bastasse, Leah também estava observando cada movimento deles e não fazia ideia de que Rose e Paul estavam se reaproximando.

A situação era uma bomba-relógio prestes a explodir.

Mas aquilo era trabalho. Leah não tinha direito de reclamar.

— Claro. — Ela acabou cedendo.

Paul a guiou em direção ao grupo, e Rose conseguia sentir o peso do olhar de Leah queimando em suas costas.

— Pessoal, esta é a Primrose. — Apresentou Paul. — Prim, estes são Sam, Emily e Jared.

Rose assentiu, satisfeita em finalmente saber o nome do terceiro integrante do grupo.

— Olá, Dra. Primrose. — Jared abriu um sorriso e arqueou as sobrancelhas de modo sugestivo entre ela e Paul, fazendo Rose soltar um bufo.

— Apenas Rose, por favor. — Ela corrigiu, então virou-se para os outros dois. — Oi, Sam. Emily.

Apesar dos sorrisos de cortesia, a tensão no ar era palpável e o silêncio extremamente constrangedor. Emily foi a primeira a quebrar o silêncio.

— Como o Billy está?

— Ele está bem. — Rose respondeu, relaxando um pouco ao ficar em um assunto seguro. — Ele saiu da cirurgia e está na UTI em observação.

— Por que ele precisou de cirurgia? — Sam franziu a testa.

— Tio Billy desenvolveu uma infecção grave na coluna por causa de diabetes não tratada. — Explicou, mantendo o tom profissional. — A infecção causou uma compressão severa na medula espinhal. A cirurgia foi necessária para aliviar a pressão e evitar mais danos, mas no caso dele, mesmo com a intervenção rápida, a lesão pode ser irreversível.

Emily baixou os olhos, enquanto Sam esfregava seus ombros com carinho.

— Então, ele não vai andar de novo? — Jared perguntou, direto ao ponto.

— Ainda é cedo para dizer. O Dr. Cullen está monitorando a evolução dele…

— Cullen? — Jared fez uma careta, suas mãos trêmulas. — Por que diabos ele está cuidando do Billy? Por que não você?

— Eu ainda não sou residente, então não tenho autorização.

Paul puxou Rose para trás num movimento protetor enquanto Sam avançava:

— Jared! — Sam alertou. — Se acalme ou saia.

Rose observou a veia pulsando na têmpora de Jared, a maneira como seus olhos vidrados fixaram nela. Quando ele finalmente recuou, seu suspiro pareceu sair de um lugar profundo.

— Sinto muito, Rose. — Sam murmurou depois que Jared se acalmou. — Por favor, continue.

— Bem, a evolução dele está sendo monitorada, mas as chances são altas de que ele tenha sequelas e não consiga mais andar.

Depois disso, a conversa não evoluiu muito. Obviamente todos estavam preocupados e as emoções estavam à flor da pele, então Rose ignorou o breve surto de Jared.

— Eu te ligo mais tarde, certo? — Paul sussurrou, seus dedos escorregando levemente pelo pulso de Rose antes que ela se afastasse.

Ela respondeu com um aceno silencioso, o sorriso nos lábios surgindo imediatamente, enquanto eles se olhavam nos olhos um do outro.

Mal deu alguns passos em direção ao corredor quando um braço esguio a agarrou com força, arrastando-a para um canto isolado da sala de espera.

— Que porra é essa? — Leah cuspiu as palavras, seu hálito quente batendo no rosto de Rose. Seus dedos finos apertavam seu braço com força suficiente para deixar marcas.

— O quê? — Rose tentou se soltar.

Você. — Leah fez o pronome soar como um insulto. — Falando com eles como se fossem seus melhores amigos. Fazendo aquela carinha de médica compreensiva para aquele lixo do Sam e a vadia da minha prima.

Rose fechou os olhos por um segundo, contando até três mentalmente.

— Leah, eu trabalho aqui. Era a minha obrigação explicar…

— Ah, me poupe! — Leah soltou uma risada afiada. — Eu vi como você sorria, como deixou o Paul te tocar. Você está caindo de novo nos braços dele, não está? Depois de tudo que ele fez? Mesmo depois que eu te avisei que você ia se arrepender.

Rose baixou a voz.

— Não é o momento para isso, Leah. Eu tenho um paciente crítico na UTI…

— Sempre uma desculpa de merda! — Leah a interrompeu, a voz subindo para um sussurro estridente. — Você sumiu por meses, Rose. Nem uma maldita mensagem. Mas aparece sorridente para esse bando de falsos como se nada tivesse acontecido. Como se eles não tivessem acabado comigo.

Rose sentiu o calor subir pelo pescoço.

— Você também não me procurou, Leah.

Era verdade que Leah havia enviado algumas mensagens, mas não houve conversa real e fazia meses que elas não se viam pessoalmente.

— Ah, então agora é minha culpa? — Ela forçou uma risada, mas os seus olhos brilhavam, como se ela estivesse prestes a chorar de raiva. — Você acha que o Paul é diferente, né? Acha que vai ser diferente, que ele não vai fazer o mesmo que Sam.

Rose respirou fundo, mas Leah não deu espaço para resposta.

— Ele vai te enrolar, te iludir, e quando você estiver completamente dependente dele… — A voz dela quebrou, mas logo se recompôs em um tom ácido. — Ele vai te trocar por alguém mais fácil. De novo. Assim como o Sam fez comigo. É só questão de tempo.

— Leah, isso não tem nada a ver com o Paul. Sempre que você tem essas conversas comigo, você acaba projetando…

Projetando?! — Leah aumentou o volume da voz, atraindo os olhares de outras pessoas na sala de espera. Ela se inclinou para frente, abaixando o tom de voz novamente. — Eu estou te avisando. Mas você é ingênua e carente demais para perceber.

Rose sentiu um misto de raiva e pena.

— Eu não vou ficar aqui ouvindo isso. O tio Billy acabou de sair de uma cirurgia e está na UTI, e você está aqui procurando confusão sem motivo nenhum, Leah. Esse não é o momento. Cresça por um instante, por favor.

Virou-se para ir embora, mas Leah agarrou seu pulso com força.

— Vai lá, foge então. É o que você sabe fazer melhor, não é? Ser a porra de uma covarde. Sempre fugindo quando a briga esquenta.

Rose girou nos calcanhares, os olhos faiscando com uma determinação que fez Leah recuar meio passo involuntariamente.

— Chega. — Uma única palavra, tão cortante que fez Leah estremecer como se tivesse levado um tapa. — Eu não sou seu saco de pancadas emocional e muito menos seu espelho para você projetar as suas frustrações.

Leah abriu a boca, mas Rose ergueu a mão num gesto irrefutável.

— Não. Dessa vez você vai me ouvir até o fim. — Seus olhos faiscavam. — Você parou no tempo, Leah. Enquanto eu foquei em reconstruir a minha vida, você ficou obcecada com um passado que ninguém mais liga. Sam te trocou? Que pena. Eu realmente fiquei muito triste por você e te defendi naquele dia na praia. Você merecia ficar com raiva, Leah. Você tinha o direito de odiar ter seu coração quebrado, foi péssimo e eu estive lá com você em cada momento. Mas pare de usar isso como uma desculpa para ser uma pessoa amarga e venenosa, e comece a ser uma adulta de verdade.

Leah empalideceu, os dedos se contorcendo na barra da blusa.

— Você não tem ideia do que eu…

— Eu tenho sim. Eu, mais do que ninguém, tenho muita ideia do que você passou. Eu estive lá quando você chorou, gritou, bebeu, quebrou coisas, cortou seu cabelo e até quando dormiu com a Zoe para tentar superar o Sam. — Rose aproximou-se, desta vez invadindo o espaço pessoal de Leah e sussurrando baixo. — Eu também sofri junto com você, mas escolhi não viver mais assim. O Paul não é o Sam. E eu não sou a Emily. E você precisa parar de se alimentar desse drama pra sempre, Leah. Eu amo você profundamente. Você foi a minha primeira amiga em Forks. Mas se você não crescer, você vai passar o resto da sua vida sozinha.

Um silêncio cortante caiu entre elas.

— Quando você decidir agir como a mulher adulta de vinte e cinco anos que é, e conseguir olhar para trás sem querer queimar todas as pontes… Aí você me procura.

Rose não esperou por uma resposta. Virou-se e caminhou em direção à UTI, o seu foco direcionado ao seu tio internado.

Ela não precisou olhar para trás para saber que Leah tinha ido embora.

Notes:

Eu pensei em dividir em dois capítulos, mas achei melhor reunir tudo aqui. É uma passagem de tempo e marcos importantes da história.

Um ponto importante que eu não acrescentei até agora foram as cicatrizes de Emily. Sinceramente, ainda estou na dúvida se isso seria relevante para essa história.

Eu acho muito triste que isso aconteça no cânone, como se fosse um castigo em Emily. Todo mundo sofreu (e ainda sofre) com a separação e o drama do triângulo amoroso, eu não gostaria de acrescentar ainda o acidente para adicionar um drama extra.

Vocês podem ficar à vontade para dar as suas opiniões. Um abraço. ❤️

Chapter 29: VINTE E NOVE

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

O tempo, como sempre, seguiu em frente. As folhas douradas finalmente cobriram Forks, e o ar ganhou aquele frio que anunciava mudanças — não apenas na estação, mas na vida de todos.

Tio Billy já estava em casa, aprendendo a dominar os movimentos da cadeira de rodas e a lidar com a diabetes que agora fazia parte da sua rotina. A família toda se unira em torno dele: tia Sue e Emily levavam potes de comida, Paul, Sam, Jared e até o tio Charlie ajudavam nas reformas para adaptar a casa, Jake passou a cuidar da casa e do seu pai, mesmo ainda sendo tão jovem, Rose assumiu a responsabilidade de monitorar a saúde do tio Billy de perto, se certificando de passar lá constantemente para verificar como ele estava, e até mesmo outras pessoas da Reserva faziam pequenas tarefas para mostrar o seu apoio.

Leah, por outro lado, não mudou em nada. Ela ficou em silêncio e cortou todo o contato com Rose. Nem mesmo aparecia na casa do tio Billy para demonstrar o seu apoio ou ajudar com as mudanças. Rose já esperava por isso, mas ainda doía saber que a sua amiga tinha sido tão… mesquinha. Que ela havia escolhido trocar a amizade delas por uma birra que já durava anos. Não era saudável, e Rose realmente não tinha o que fazer ali.

Enquanto isso, Rose e Paul estavam cada vez mais próximos. Ele ficou um ano como voluntário no orfanato de Port Angeles, e Rose percebeu o quanto essa decisão foi importante e mudou algo fundamental nele — descobrir que a raiva não constrói nada, que há valor na paciência e no silêncio, que às vezes é necessário dar um passo para trás e respirar fundo.

Havia um novo normal entre eles, conquistado a duras penas — nos dias em que Paul ainda se sentia um pouco ressentido, mas se esforçava mesmo assim; nos dias em que Rose engoliu o orgulho para admitir os próprios erros; nos momentos em que eles falaram novamente sobre o passado e abriram as feridas. Cada desculpa trocada era como tirar uma farpa antiga da carne.

Aos poucos, Rose sentiu seu coração cicatrizar.

Ela sentia isso quando Paul levava almoço para ela no trabalho, com um bilhete escrito numa letra adoravelmente torta, que dizia o quanto ela era linda. Ela sentia isso quando ela acordava com um sorriso que vinha antes mesmo do pensamento, a mão já buscando o celular para a primeira mensagem do dia. Ou quando os fins de plantão tinham virado promessas. Às vezes ele a levava até a cafeteria deles. Outras vezes iam direto para casa, onde se acomodavam juntos no sofá, enquanto tio Charlie assistia o baseball e fingia não ver como os dedos deles se entrelaçavam sem que percebessem.

Ela sentia seu coração se curar quando eles caminhavam juntos em La Push. O vento salgado bagunçando os cabelos dela, enquanto Paul falava sobre a sua empresa, que agora tinha nome e um pequeno escritório em Forks; ou ela falava sobre o seu último ano na Faculdade de Medicina e a expectativa para a residência.

Não foi nenhuma surpresa quando ela percebeu que o amava.

Não foi dramático — não houve trovões nem declarações sob as estrelas. Foi um entendimento que chegou devagar, e quando Rose percebeu, seu coração estava cheio e pulsante.

Era mais do que ela sentia naqueles dias ardentes da adolescência, quando tudo era paixão crua e urgente. Mais do que nos primeiros meses difíceis, quando cada palavra errada podia virar silêncio ou briga. Mais do que nos tempos separados, quando o amor estava ofuscado pela dor. Mais até do que no ano passado, quando ela achava que já conhecia todas as formas de amar Paul.

Esse amor era diferente — tinha cicatrizes bem costuradas. Carregava as marcas das noites em que ele a ignorou, dos dias em que ele a havia abandonado, das vezes em que ela tomou atitudes sem pensar. Mas também trazia memórias doces: Paul esculpindo uma caixa de música à mão, ela se esforçando para entender o lado dele, ele aprendendo a ser paciente, os dois descobrindo como pedir desculpas antes que fosse tarde demais.

Ela o amava.

Não um amor feito de contos de fadas, mas esse amor real — com erros e tentativas, que às vezes se perde, mas sempre volta. Um amor feito de raízes fortes, que poderia balançar com um vendaval, mas nunca mais cairia com as próximas tempestades.

Só faltava uma coisa, no entanto, para que tudo ficasse perfeito: ela precisava contar ao Paul sobre o seu passado.

Rose aproveitou a sua folga no trabalho e o horário de trabalho do tio Charlie para chamar Paul para almoçar em casa. Ela cozinhou duas lasanhas enormes, na tentativa de que isso aliviasse um pouco a reação de Paul, para ele não se assustar com as grandes revelações.

O ronco do motor de Paul chegou antes dele, e Rose sentiu o coração acelerar como se tentasse fugir do peito. As mãos suavam levemente quando ela ajustou o vestido pela décima vez.

— Oi, Paul. — A porta se abriu antes mesmo dele bater, e ela abriu um sorriso brilhante. Ele a beijou na bochecha antes de entrar.

— Oi, Prim. — Os olhos dele se estreitaram de prazer ao farejar o ar. — Aqui cheira muito bem.

— Eu fiz lasanha.

Paul ergueu uma sobrancelha enquanto a seguia até a cozinha, seus passos pesados ecoando no piso encerado.

— Uau. Qual é a ocasião?

— Nada. Eu queria passar um tempo com você. — A resposta saiu mais suave do que pretendia, fazendo com que Paul parasse no meio do caminho para olhá-la com aquela expressão que sempre a derretia: os olhos brilhando de admiração e incredulidade.

— Por favor, sente-se, enquanto eu sirvo.

Na mesa posta com cuidado, Paul se serviu com porções generosas enquanto Rose observava divertida. Quando a primeira garfada chegou à boca dele, foi como assistir a uma tempestade se acalmando — seus ombros desceram, os olhos se fecharam e um gemido profundo ecoou em sua garganta.

— Meu Deus. Isso é tão bom que poderia ser um crime.

Ela riu, os nervos se dissipando, enquanto eles comiam tranquilamente, conversando sobre os seus dias, trocando piadas bobas, contando histórias dos seus dias no trabalho.

Em algum momento entre a segunda porção e a sobremesa (uma torta de maçã que Paul devorou em três garfadas), ela percebeu que a tensão havia sumido completamente.

Rose sentou-se no sofá da sala ao lado de Paul, os dedos torcendo nervosamente o tecido do vestido. As palavras que ela ensaiou a manhã inteira agora pareciam grudar em sua garganta.

— Tá tudo bem, Prim? — A voz de Paul era carregada de preocupação. Seu polegar áspero acariciou os nós dos dedos dela.

— Sim, eu queria conversar com você.

Ela viu a expressão dele mudar, o sorriso fácil se transformando em algo mais cauteloso. Suas sobrancelhas se franziram, marcando aquela linha vertical que aparecia sempre que ele se preocupava.

— Certo…?

Rose respirou fundo, o ar saindo trêmulo.

— Eu não te contei algumas coisas sobre a minha vida na Inglaterra e eu queria que você soubesse. — Ela respirou fundo, seu coração batia forte contra as costelas. — Eu era uma bruxa.

Ele ficou em silêncio, encarando ela.

— Eu sei que é difícil de acreditar. — Ela levantou, os joelhos fracos, e foi até a poltrona. De trás do encosto, tirou um tecido prateado que brilhava sob a luz como água corrente. — Foi por isso que eu trouxe isso. — O tecido escorregou entre seus dedos, tão leve que parecia feito de ar. — É a minha capa de invisibilidade.

Rose levantou o tecido até os ombros, e então seu corpo desapareceu como se tivesse sido cortado.

Caralho!

Paul saltou do sofá como se tivesse levado um choque, quase derrubando a mesa de centro. Seus olhos arregalados pareciam prestes a saltar das órbitas, e ele girou em círculos como um cão perseguindo o próprio rabo, tentando entender o que via.

— Isso… isso é… — As palavras falharam enquanto ele apontava para a cabeça flutuante de Rose.

Ela sorriu, e deixou o tecido cair um pouco, revelando novamente os seus ombros.

— Isso é real? — A voz dele saiu em um sussurro rouco, como se temesse quebrar o encanto com volume demais.

— É muito real.

Ele engoliu seco, os olhos ainda grudados no vazio onde seu corpo deveria estar.

— E você é uma bruxa?

— Eu era uma bruxa. — Ela corrigiu, deixando a capa escorregar completamente dos seus ombros, seu corpo reaparecendo gradualmente como uma foto se revelando.

Paul franziu a testa, a confusão substituindo o assombro.

— O que isso quer dizer?

Rose enrolou o tecido mágico com cuidado, levando tempo para organizar os pensamentos.

— Eu perdi a minha magia quando tinha quatorze anos. Eu não sou mais uma bruxa. — Explicou, acariciando o tecido. — Eu estudava em uma escola de magia na Escócia, mas havia esse homem… Lord Voldemort… que matou meus pais e realmente queria me matar. Me inscreveram em um torneio mortal e eu fiquei com tanto medo que eu fugi. Eu não sabia que havia um contrato mágico em vigor. Se eu fugisse do torneio, o contrato seria quebrado e eu perderia a minha magia. Foi o que aconteceu.

Paul piscou, confuso.

— Certo… Você pode me contar tudo? Do começo.

Então, Rose contou.

Ela contou sobre a noite em que seus pais morreram, sobre a traição de Pettigrew, sobre a maldição que deveria tê-la matado, mas que, em vez disso, deixou apenas uma cicatriz em forma de raio em sua testa. Paul não disse nada, mas seus dedos se apertaram em torno dos dela quando ela descreveu como foi deixada na porta dos Dursley e como as pessoas começaram a chamá-la de “Menina que Sobreviveu”.

Quando chegou a parte sobre Hogwarts, no entanto, algo em Rose se acendeu. Ela descreveu o Salão Principal, o teto enfeitiçado que mostrava o céu, os quadros que se moviam sozinhos. Paul interrompeu várias vezes, fazendo perguntas sobre os detalhes mais mundanos — como funcionavam as vassouras, o que os alunos comiam, como era ter aulas de feitiços. Ela o mostrou o seu álbum de fotos, a maneira como as imagens se moviam nas páginas e quem eram os seus pais.

Então, Rose contou sobre os restos de um homem na nuca do seu professor. Como ele a ameaçou. E como ela o matou com as próprias mãos.

Ela falou sobre o segundo ano, ouvir vozes nas paredes, um diário que ela, vergonhosamente, acreditou que era o seu amigo e sentiu o coração se partir quando descobriu que não era. E então, ela falou sobre a Câmara Secreta debaixo da escola, uma cobra gigante, uma espada e as lágrimas de uma fênix.

Rose contou sobre o terceiro ano. Um homem louco que fugiu da prisão e depois descobriu-se que era seu padrinho, de quem ela sentia tanta falta agora. Falou novamente sobre o traidor. E também sobre um lobisomem de verdade, que realmente se transforma com a lua cheia, o que fez Paul franzir o cenho levemente interessado.

— Então ele realmente vira um lobo? Tipo, peludo e com dentes e tudo?

— Todo mês.

— Sempre na lua cheia?

— Isso aí.

— Igual nos filmes?

— Sim.

— Isso é incrível.

Mas então veio o quarto ano, e Rose contou sobre a Copa Mundial de Quadribol, os Comensais da Morte, sobre a sua fuga do Torneio Tribruxo, a perda da sua magia e como os Dursleys a receberam de braços abertos e a mandaram para morar em Forks com o tio Charlie.

Paul ficou em silêncio por um longo momento, seus dedos traçando círculos lentos no tecido da capa de invisibilidade que agora repousava no colo de Rose.

— Então, você não tem mais nenhuma magia?

— Não, nada. — Rose sacudiu a cabeça. — A única coisa que prova que eu tinha magia é a minha capa e este álbum de fotos.

— E seus amigos? Eles nunca tentaram…

— Eu acho que ninguém mais se lembra de mim — Rose interrompeu suavemente. Mas então ela hesitou, os dedos apertando a ponta da capa. — Mas... eu fui até Seattle há alguns anos. Descobri que existe um lugar como o Beco Diagonal lá.

— Sério? — Paul pareceu surpreso.

— Sim. Achei que, sem magia, eu não conseguiria voltar a nenhum lugar do mundo bruxo. Mas consegui. Entrei no banco, acessei a herança dos meus pais, transferi tudo para um banco trouxa… — ela parou por um instante, olhando para baixo — …e depois li todos os jornais dos últimos anos.

Eles ficaram em silêncio enquanto Paul processava a informação. Rose podia quase ver os pensamentos passando por sua mente.

— E então? — Ele finalmente perguntou. — O que você descobriu?

— Que eles estão em guerra. Muitas mortes. Mas meus amigos sobreviveram. E ninguém… ninguém mencionou meu nome. Nem uma vez. Isso foi o suficiente pra mim.

Paul a estudou por um momento antes de pegar sua mão.

— Você nunca pensou em...

— Não — ela respondeu antes que ele terminasse a pergunta. — Aquele não é mais o meu mundo. Eu tenho uma vida aqui agora. E mesmo se eu quisesse fazer algo para ajudá-los seria em vão, já que eu não tenho mais magia.

— E esse… Voldemort — Ele pronunciou cautelosamente, como se tivesse medo de dizê-lo errado. — Ele poderia… você acha que ele ainda poderia vir atrás de você?

Rose sentiu um frio percorrer a sua espinha, mas balançou a cabeça com firmeza.

— Não. Ninguém mais lembra de mim. Eu não sou mais uma ameaça para ele. — Ela baixou os olhos por um instante. — Antes eu estava lá o tempo todo, frustrando os planos dele. Mas eu sumi, e nem tenho mais magia. Pelo que li nos jornais, ele está ocupado demais com o governo britânico. Eu não sou mais importante.

Paul não parecia totalmente convencido.

— Mas você disse que ele matou seus pais. Que tentou matar você quando era bebê. — Seu queixo endureceu. — Um ódio assim não some só porque você desapareceu e perdeu a sua magia.

— Tecnicamente, você está certo. — Rose deu um meio sorriso sem graça. — Mas já se passaram anos e nada aconteceu até agora. Nem meus amigos. Nem meu padrinho. Ninguém tentou me encontrar. Acho que todo mundo... desistiu de mim. Ou pensa que eu morri.

— Isso não faz sentido. — Ele finalmente disse, franzindo a testa. — Mesmo que você tenha perdido a sua magia… Eles simplesmente esqueceriam de você assim?

— Eu me perguntei isso por um tempo, mas eu não sei dizer. — Ela deu de ombros, a voz mais baixa. — Eu acho que talvez o fato de eu ter perdido a minha magia tenha a ver com isso?

— Isso faria sentido?

— Eu… não sei. Eu não estudei o bastante em Hogwarts pra entender como essas coisas funcionam.

— E se ele descobrir que você ainda tem a capa? — Ele apontou para o tecido prateado. — Isso ainda é magia, não é?

— É. Mas é diferente. É uma relíquia antiga, com magia própria. Não depende de mim. Se estivesse ligada à minha magia pessoal… ela já teria parado de funcionar.

— Mesmo assim… — Ele disse, o cenho franzido. — Eu não consigo deixar de pensar que você ainda corre perigo.

— Eu pensei nisso também. Depois que voltei de Seattle. — Ela deu de ombros. — Mas nada aconteceu até agora, eu não estou preocupada com isso. Mesmo assim, eu me preparei.

— Como assim?

— Quando estive em Seattle, naquela rua bruxa… encontrei uma loja. Vendia encantamentos de proteção, amuletos, jóias mágicas... tudo feito para abortos. Bruxos sem magia, como eu.

— E você comprou?

— Tudo o que consegui carregar. — Um sorriso curto apareceu no canto dos lábios dela. — Pedi pedras de proteção, joias para mim e para o tio Charlie e vários outros materiais que achei relevantes.

Paul arqueou uma sobrancelha.

— E o Charlie sabe disso tudo?

— Claro que sabe. Foi uma das primeiras coisas que fiz quando me mudei para cá. Era a melhor maneira de mantê-lo seguro.

— E funcionam? Essas pedras? As joias?

— Até agora, sim. — Rose respondeu com firmeza. — A casa está cercada por uma barreira simples, mas poderosa. As pedras repelem criaturas e pessoas com más intenções, e tem feitiços menores espalhados por todo canto.

Paul estudou o rosto dela por um longo momento antes de suspirar, seus ombros relaxando um pouco.

— Tá bom. Isso me deixa um pouco menos preocupado. Mas me promete uma coisa, Prim. — Ele se aproximou e pegou seu rosto entre as mãos, os olhos fixos nela. — Se você sentir qualquer coisa estranha, qualquer sinal de que algo está errado, você me conta. Imediatamente.

Rose sorriu com ternura, segurando gentilmente seus pulsos.

— Prometo. Mas não se preocupe. Ninguém vai me incomodar.

Ela inclinou-se para frente, encostando a testa na dele.

Paul riu, mas o som era trêmulo, um medo que ele não conseguia disfarçar.

— Só estou dizendo… se algum bruxo maluco aparecer por aqui, ele vai ter que lidar comigo primeiro.

— Você está lidando com isso melhor do que eu esperava. — Rose murmurou, surpresa com as reações dele.

Paul hesitou por um segundo, como se buscasse coragem, e então disse:

— Na verdade… eu também tenho algo para falar com você.

— O que aconteceu? — Seus olhos se estreitaram com preocupação.

— Isso vai ser bem mais fácil do que eu imaginava, eu acho. — Ele riu nervosamente, passando uma mão pelo rosto. — Bem… eu sou um metamorfo.

— Um metamorfo? Tipo… um animado? — Rose inclinou a cabeça, confusa.

— Não exatamente. — Paul balançou a cabeça. — Eu não sou um bruxo como você, apenas metamorfo. Eu posso me transformar em um lobo.

— Como um lobisomem?

— Quase. Eu posso me transformar quando eu quiser. Onde quiser.

Ela o encarou por um momento, e depois soltou uma risada abafada, balançando a cabeça.

— Claro que pode. É claro que você também teria algum segredo absurdo.

— Achei que você ia surtar. — Ele admitiu, aliviado.

— Depois de tudo que eu te contei? Virar um lobo parece… bem normal, na verdade.

— Que bom que você acha isso. Emily quase teve um ataque cardíaco quando Sam contou para ela.

— Sam? — Rose arregalou os olhos. — Você não é o único?

— Não. — Paul balançou a cabeça. — Sam foi o primeiro a se transformar, depois eu e Jared. Isso é uma herança Quileute, na verdade. Nossos ancestrais eram lobos e ainda temos o espírito protetor dentro de nós.

— Espírito protetor… — Ela repetiu, piscando. — Isso tem algo a ver com K'wa'iti ? E algo sobre os Frios?

Paul piscou, surpreso.

— Você conhece as lendas?

— Não exatamente. Jake me contou há alguns anos, mas ele realmente não deu detalhes.

Paul assentiu lentamente.

— Sim, bem, na verdade as lendas são verdadeiras. O espírito do protetor corre nas veias daqueles que são descendentes diretos dos nossos primeiros ancestrais.

— Isso significa que outras pessoas podem se transformar?

— Sim. Jacob Black é um deles.

Rose suspirou chocada, seus pensamentos voltando para Jake — seu irmão em tudo menos no sangue, e como ele lidaria com tudo isso.

— Isso é uma certeza? Vocês têm alguma previsão?

— Não exatamente, mas é ativado quando surge algum perigo para a comunidade.

— Perigo? — Rose ergueu as duas sobrancelhas, ligando as peças. — Vampiros?

— Então, você sabe. — Não era uma pergunta.

— Eu estudei sobre vampiros em Hogwarts. Não demorei para reconhecê-los. Na verdade, eu já sei há algum tempo.

— E nunca disse nada? Nós poderíamos ter tido essa conversa há mais tempo.

— Bem, eu suspeitava que você sabia, mas não fazia ideia de como confrontar você. Eu não queria parecer louca. — Rose deu de ombros com um sorriso zombeteiro. — Eu também não sabia se isso era algo de conhecimento comum.

Paul sorriu de volta, divertido.

— Nós temos uma espécie de tratado com eles. Os Cullen.

— Que tipo de tratado?

— Eles não podem cruzar as nossas terras, nem caçar ou transformar humanos por aqui. Em troca, nós permitimos que eles vivam em Forks… até decidirem que é hora de partir.

Rose franziu levemente a testa.

— E vocês confiam neles?

— Não exatamente. — Ele deu de ombros, como se isso fosse óbvio. — Mas eles têm cumprido a parte deles até agora. Nunca deram motivo pra gente quebrar o acordo. Sam fica de olho. Todos nós ficamos.

— O que acontece se eles quebrarem o tratado?

Paul a encarou, o rosto endurecendo.

— Então, nós os atacamos. Sem hesitar.

Rose mordeu o lábio inferior, o olhar perdido por um momento.

— E já aconteceu algo desse tipo antes?

— Só tensão. Desconfiança. — Ele suspirou. — Mas não guerra. Eu só não confio neles. Especialmente sabendo que você trabalha tão perto de um deles, Prim.

— Eu sei, Paul. Acredite em mim, eu fiquei apavorada nos primeiros dias. — Ela suspirou, passando a mão pelo cabelo. — Mas eu tive uma conversa com o Dr. Cullen. Aparentemente o meu sangue de bruxa não é exatamente apetitoso para eles.

Paul arregalou um pouco os olhos.

— Eles sabem sobre você?

— Não, e eu pretendo manter assim. — Rose cruzou os braços. — Eu só concordei em não espalhar o segredo deles por aí. Em troca, ele também não vai sair espalhando que sou uma humana esquisita que não cheira “certo”.

Paul soltou um riso curto, aliviado.

— Isso me deixa muito tranquilo. Mas… você sabia que o seu vínculo com a Reserva é mais uma proteção contra eles, certo?

— Que tipo de vínculo? — Ela franziu a testa. — O Dr. Cullen mencionou isso, mas eu realmente não entendi.

Paul hesitou. A temperatura ao redor deles pareceu subir alguns graus por um instante.

— Essa era a outra coisa que eu queria te falar. — Ele respirou fundo, desviando os olhos por um segundo antes de voltar a encará-la. — Há alguns anos… quando você estava em La Push comemorando a sua formatura na faculdade… aconteceu algo comigo. É algo que pode acontecer com todos os metamorfos. É quando o nosso espírito reconhece a pessoa certa. Um tipo de ligação ou alma gêmea, você pode escolher como chamar. É chamado de imprinting. É mais do que amor, Prim. É como se, a partir daquele momento, nada mais fizesse sentido sem aquela pessoa. Como se o mundo se reordenasse, e não fosse mais a gravidade que nos segurasse no chão… mas ela.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos, os olhos arregalados, a respiração acelerada, o arrepio percorrendo o seu corpo, enquanto ouvia as palavras de Paul.

— Paul…

— Foi com você, Prim. — Ele disse, com firmeza. — Desde o momento em que eu olhei nos seus olhos naquele dia. Mas não foi apenas isso que me fez voltar pra você. Eu já te amava antes disso. Eu só terminei com você, porque eu era um lobo instável. Eu me transformava facilmente ao menor sinal de estresse. Eu não queria machucar você. Se a gente brigasse ou se eu ficasse com raiva, eu poderia me transformar e você estaria muito perto. Às vezes acontecia até mesmo enquanto eu estava dormindo. Eu fiquei com tanto medo.

— Oh, querido. — Ela murmurou, tocando o rosto dele com as pontas dos dedos.

Paul fechou os olhos por um instante sob o toque.

— Eu achei que te afastar era a única maneira de te proteger. Mas eu nunca deixei de te amar. Nunca. E naquele dia… quando te vi de novo… foi como se meu coração soubesse. Como se gritasse por você. Eu soube que não conseguiria mais viver longe de você. Não dessa vez.

Os olhos de Rose se encheram de lágrimas enquanto ela absorvia cada palavra. O coração batia forte no peito, como se buscasse confirmar tudo aquilo que ela já sentia, mas ainda não tinha colocado em palavras.

— Você não precisa me dizer nada. — Paul disse, com a voz embargada de emoção. — Eu sei que nós estamos levando isso tudo com calma, e eu ainda preciso conquistar a sua confiança novamente, mas eu tenho paciência, Prim. Está tudo bem. Eu posso esperar o tempo que for.

Rose sentiu um calor subir pelo peito, pelas bochechas, até os olhos brilharem. Ela mordeu o lábio, lutando para conter o sorriso que ameaçava escapar.

— Isso é... meio injusto. — Ela disse baixinho, com uma pontinha de riso. — Porque eu ia dizer que te amava hoje. Eu me preparei para te contar sobre o meu passado primeiro, porque eu queria te contar toda a verdade antes.

Ele arregalou os olhos, perplexo.

— Sério?

— É claro que sim. — Ela se inclinou, os olhos cheios de ternura. — Eu confio em você para não quebrar meu coração novamente, Paul.

Os olhos dele se encheram de lágrimas, e ele a puxou suavemente para o seu colo, segurando-a reverentemente pela cintura, como se não acreditasse que aquilo realmente estivesse acontecendo.

— Então, você não vai sair correndo?

— Eu não vou.

— E você me ama mesmo?

— Eu amo você.

— Diz de novo. — Ele pediu, num sussurro trêmulo.

Ela não resistiu. Seus dedos traçaram a linha de seu queixo, subindo até os cabelos curtos na nuca, puxando-o para perto.

— Eu amo você, Paul Lahote.

— Eu também amo você, Primrose Potter. — Ele encostou a testa na dela, o toque suave. — E eu quero tanto te beijar agora.

Rose soltou uma risadinha baixa, o coração martelando tão forte no peito que ela quase temeu que ele ouvisse.

— Você pode. — Ela sussurrou, os olhos presos aos dele.

Paul não hesitou.

Ele se aproximou como se estivesse cruzando um limiar sagrado, cada movimento lento, calculado, como se temesse que ela fugisse se ele fosse rápido demais. Suas mãos ainda estavam em sua cintura, segurando-a com uma mistura de reverência e posse, puxando-a para perto.

O beijo veio quente, sincero, carregado de tudo o que haviam guardado por tanto tempo — a saudade dos anos afastados, o medo de se machucarem de novo, a esperança teimosa de que, no fim, ainda haveria um caminho de volta para o coração um do outro.

E, mais que tudo, amor.

Rose perdeu-se nele. Seus dedos enterraram-se em seus cabelos, puxando-o ainda mais perto, como se ele fosse a única coisa que a mantivesse ancorada ao mundo. Seu corpo curvou-se contra o dele, cada ponto de contato uma afirmação silenciosa: Estou aqui. Não vou a lugar nenhum.

Quando finalmente se separaram, ainda tão próximos que compartilhavam o mesmo ar, Rose manteve os olhos fechados por um segundo, saboreando o momento.

— Eu esqueci de te dizer uma coisa… — Ele sussurrou, interrompendo o silêncio.

Rose abriu os olhos desconfiada.

— O quê?

— A matilha vai saber sobre toda essa conversa em breve. Nós meio que… compartilhamos os nossos pensamentos quando estamos na forma de lobo.

O quê?!

Notes:

Quase 100.000 palavras para eles se resolverem. Esse foi o capítulo mais difícil de escrever, eu acho.

Conseguir dar toda essa volta pra chegar aqui foi uma viagem, então precisava amarrar os pontos pra gente começar a jornada a partir daqui, mas acho que deu certo.

E Bella Swan está chegando.

Chapter 30: TRINTA

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Forks, WA

2006

A última vez que Rose viu Bella Swan, ela tinha apenas dez anos, era magricela e desengonçada, estava enfiada em um vestido azul-claro que odiava, tinha os cabelos presos com uma fita torta, e jurava que nunca mais pisaria em Forks.

Bem, crianças dizem muitas coisas.

Oito anos depois, Bella estava voltando para Forks.

E Rose não sabia exatamente o que sentir.

Ela se lembrava do silêncio desconfortável naquela manhã em que Bella foi embora e disse que não voltaria no próximo verão — da forma como o tio Charlie ficou parado na varanda, com as mãos nos bolsos do casaco, fingindo não esperar um abraço de despedida. Lembrava da forma como ele passou a trabalhar mais, a comer menos, a chorar escondido.

Renée dissera que Forks era um lugarzinho triste. Que Bella precisava dos amigos, que era independente. Que uma menina tão cheia de escolhas e ideias não podia apodrecer em uma cidade onde a neblina parecia pesar nos ossos. Como se o tio Charlie fosse uma gaiola e não um pai. Como se aquele homem quieto e gentil, que aprendeu a trocar fraldas e fazer tranças sozinho, não tivesse dado tudo de si para ser o melhor pai possível para Bella mesmo à distância. Como se ele não tivesse esvaziado pedaços de si mesmo, pouco a pouco, ano após ano, só para caber nos poucos dias que Bella lhe concedia.

Duas semanas por verão.

Quatorze dias de um amor que ele esticava como um elástico, tentando fazer durar até o próximo ano.

E mesmo assim, mesmo com os olhos dele suplicando, ela foi embora.

Rose tentou muito não odiá-la por isso.

Ela tentou lembrar que Bella era apenas uma criança, que mal conhecia o pai que via tão pouco. Tentou entender a saudade que devia apertar seu peito por Phoenix, pelo sol, pela mãe que sempre a colocou em primeiro lugar.

Mas então ela olhava para o tio Charlie.

Via o jeito como ele ficava perto do telefone nos aniversários, os dedos tamborilando na mesa enquanto os ponteiros do relógio avançavam — primeiro com esperança, depois com resignação, até que a noite caía e ele desistia com um suspiro. Via como ele se arrastava no verão, aquele vazio nos olhos que nem mesmo os esforços de Rose para distraí-lo conseguiam preencher. Como, ainda no início, ele engolia a vergonha e ligava para Renée, pedia novamente para ela trazê-la e era apenas repreendido.

Mas Rose sabia que crianças esquecem. Sabia que a vida puxava as pessoas para direções diferentes. Mas também sabia — com uma certeza que a enchia de amargura — que Bella não era ingênua, não era mais uma criança. Que oito anos eram suficientes para entender o peso de um abandono. Para perceber o silêncio que se alongava do outro lado da linha.

E ainda assim… nada.

E quando Bella finalmente decidiu voltar, não foi por ele. Foi porque precisava de algo. Porque Renée queria viajar com o novo marido. Porque Bella não queria ser um fardo para a mãe, e Forks era o único lugar onde ela poderia se esconder.

Rose apertou as mãos no volante até os nós dos dedos ficarem brancos. Ela não odiaria Bella. Não permitiria que esse veneno a consumisse. Não poderia. Porque o tio Charlie — o homem que a acolheu como uma filha quando o seu próprio mundo a rejeitou — estava feliz, radiante até.

Ele até pediu, timidamente e com os olhos cheios de uma esperança que ela não tinha forças para esmagar, se ela poderia buscá-la no aeroporto, enquanto ele resolvia pendências na delegacia. Como dizer não? Como negar aquela felicidade genuína?

Então, Rose foi.

Mesmo depois de dezoito horas intermináveis de plantão na madrugada, com os olhos ardendo de cansaço e cada músculo do corpo protestando em dor. Mesmo sabendo que Bella não merecia metade desse esforço, que não merecia o quarto arrumado com cuidado, a colcha de cama nova, muito menos o brilho nos olhos de Charlie.

Mesmo assim, Rose engoliu o gosto ácido do desgosto, e parou em frente ao aeroporto, enquanto observava os passageiros desembarcarem.

Então, a porta do terminal se abriu.

E lá estava ela.

Bella Swan — não mais a criança de vestido azul e fita torta, mas uma jovem com ombros curvados sob o peso de uma mala desproporcional. Seus movimentos eram lentos, arrastados, como se cada passo a custasse bastante. Quando seus olhos percorreram o estacionamento e finalmente pousaram em Rose, houve um breve lampejo de reconhecimento.

Ela se aproximou com passos hesitantes, arrastando a mala pesada como se fosse uma âncora amarrada ao seu pé.

Rose inclinou a cabeça para baixo, olhando Bella por cima da armação dos óculos escuros. A luz pálida do dia refletia nas lentes, escondendo seus olhos cansados:

— Oi, Bella. — Cumprimentou Rose, mantendo as mãos firmemente enfiadas nos bolsos do casaco. — Eu sou a Primrose Potter, sobrinha do tio Charlie. Eu vim te buscar.

Bella piscou, surpresa pelo tom gelado.

— Oi… — Respondeu, os dedos se contorcendo na alça da mala. — Sim, eu lembro de você.

— Sério? — Rose arqueou uma sobrancelha. — Você nunca ligou, eu não tinha certeza.

Bem, e lá se vai todo o esforço para não odiar Bella.

Mas como não odiá-la quando ela estava ali, inteira, saudável, sem uma única cicatriz visível para justificar oito anos de silêncio? Talvez se lhe faltasse uma perna, ou se carregasse marcas na pele, Rose poderia engolir a ausência de ligações. Poderia até tentar entender.

Mas não. Bella estava perfeita. Apenas relutante.

Rose respirou fundo, sentindo o peito queimar com o rancor. Mas então lembrou-se do brilho nos olhos do tio Charlie ao saber que a filha voltaria. E, com um esforço hercúleo, engoliu o veneno.

— Pode colocar a mala aqui. — Disse, abrindo o porta-malas com um movimento brusco, o metal rangendo em protesto. — O tio Charlie já deve estar nos esperando em casa.

Bella engoliu em seco e obedeceu em silêncio.

O porta-malas fechou com um baque seco quando Bella terminou de arrumar as malas. A chuva fina começava a pintar pequenos círculos no capô do carro.

— Você… você ainda mora com ele? — Bella perguntou, os olhos fugindo para as árvores encharcadas que cercavam o aeroporto.

— Sim. — Rose respondeu sucintamente. — Na mesma casa.

Bella mordeu o lábio inferior por um instante.

— Entendi. Achei que você já morasse sozinha.

— Talvez quando eu me formar. — Rose abriu a porta do motorista. — Ou me casar.

O motor roncou quando ela girou a chave. Bella hesitou antes de entrar, como se o assento do carro pudesse queimá-la viva.

— Você estuda o quê? — A pergunta saiu forçada, claramente uma tentativa de preencher o silêncio desconfortável.

Rose olhou pelo retrovisor enquanto saía da vaga.

— Medicina. Me formo no verão.

Bella assentiu, os dedos brincando com a pulseira no pulso.

— Isso é… impressionante.

Rose não respondeu.

O carro seguia em frente, engolindo quilômetros de asfalto encharcado, e nenhum som, além do motor e do tamborilar da chuva, preenchia o espaço entre elas.

— Ainda chove tanto assim? — Bella perguntou, olhando para fora, onde as árvores dançavam sob o peso da neblina.

Rose assentiu com um leve movimento de cabeça.

— Sim. Mais, até.

Bella não comentou nada. Voltou a brincar com a pulseira no pulso, o rosto virado para a janela como se esperasse reconhecer alguma paisagem dos seus verões na infância.

Rose respirou fundo, pensando em perguntar sobre Phoenix, sobre Renée, sobre qualquer coisa que preenchesse aquele vácuo sufocante entre elas. Mas nenhuma palavra lhe pareceu boa o bastante. Nenhuma neutra o suficiente. Nenhuma que não fosse menos ácida ou venenosa.

— Você nunca pensou em sair daqui? — Bella perguntou, ainda sem olhar para ela.

Rose não hesitou.

— Eu amo Forks. Eu nunca iria embora.

Depois disso, o silêncio se instalou de vez.

Rose manteve os olhos fixos na estrada, guiando com firmeza entre curvas molhadas e árvores encharcadas. Bella continuou olhando para fora, encarando a paisagem com uma concentração impressionante.

Finalmente o carro virou na rua familiar, a casa do tio Charlie já aparecendo no final do caminho. Ela estacionou em frente e desligou o carro.

O motor morreu com um suspiro, e a chuva fina assumiu o silêncio.

— Chegamos.

Foi tudo o que disse.

Bella assentiu, murmurando um quase inaudível “obrigada” antes de empurrar a porta e sair.

Rose ficou alguns segundos no carro, as mãos ainda firmes no volante, mesmo com o motor já desligado. Ela se sentia um pouco culpada por ainda estar tão ressentida com Bella.

Ela deveria ser a adulta aqui. A madura. A pessoa responsável por engolir aquele gosto amargo na língua, sorrir e dizer algo idiota como “seja bem-vinda de volta”.

Mas não conseguia.

Através do para-brisa, ela viu o tio Charlie descendo os degraus da varanda, seu rosto iluminado por uma esperança que ela não tinha coragem de destruir. E ali, ao seu lado, Bella — quieta, tensa, como se estivesse prestes a enfrentar um tribunal, não seu pai.

Rose respirou fundo, fechando os olhos por um segundo e, finalmente, abriu a porta do carro.

Ela pegou a conversa pela metade.

— Ih… Pai, eu não entendo nada de carros. — Bella dizia, mordendo o lábio inferior. — Não conseguiria consertar se alguma coisa desse errado, e não posso pagar um mecânico…

— Na verdade, Bella. O troço funciona muito bem. Não fazem mais carros assim.

— É barata, barata mesmo?

— Bom, querida, já está quase comprado para você. Como presente de boas vindas.

Bella piscou, surpresa.

— Não precisava fazer isso, pai. Eu mesma ia comprar um carro.

— Tudo bem. — Ele respondeu, suavemente. — Quero que seja feliz aqui.

Rose não pôde evitar um sorriso ao se aproximar, os braços cruzados.

— Você comprou a velha picape do tio Billy, tio Charlie? — Perguntou, arqueando uma sobrancelha. — Ele aceitou as suas negociações?

Tio Charlie virou-se para ela, os olhos estreitando-se em falsa indignação.

— Eu sou um bom negociador, garota.

Rose bufou, divertida.

— Jake vem deixar a picape?

— Mais tarde. — Tio Charlie sorriu para ela, depois para Bella, claramente animado. — Vamos aproveitar para ver o jogo. Você vem?

Rose esboçou um sorriso cansado, esfregando discretamente os olhos.

— Claro. Quero só dormir um pouco antes.

— Claro, querida. Bom descanso. — Ele disse, inclinando-se para deixar um beijo paternal em sua testa.

Enquanto ajudava Bella a carregar as suas coisas para dentro, Rose observou discretamente as suas expressões — um misto de surpresa e desconforto ao ver a intimidade entre ela e o tio Charlie. Como se esperasse que Rose tivesse passado os últimos anos como ela — distante e fria.

— Seu quarto é o mesmo. Ao lado do meu. — Rose informou, apontando para a escada. — Tio Charlie limpou tudo ontem.

Bella mordeu o lábio, e assentiu timidamente.

Rose não esperou resposta. Com um aceno breve, desapareceu em seu próprio quarto, fechando a porta com um clique suave. O cansaço das dezoito horas de plantão finalmente a alcançou, mas mesmo deitada, ouvindo os murmúrios distantes do tio Charlie mostrando a casa para Bella, o sono demorou a vir.

Ela sabia que deveria estar feliz por ele. E estava.

Mas também sabia que aquela esperança era frágil. E quando Bella partisse novamente, seria ela quem estaria lá para recolher os pedaços.

O som da porta do quarto de Bella se fechando ecoou pelo corredor. Rose fechou os olhos, finalmente cedendo ao cansaço, enquanto do lado de fora a chuva de Forks começava a cair mais uma vez.

 

*

 

Rose acordou em um pulo, o coração batendo forte contra as costelas. O som ensurdecedor de um motor antigo e o chiado característico dos freios da velha picape do tio Billy a havia arrancado de seu sono pesado como um band-aid.

Ela esfregou os olhos, ainda turvos de cansaço, enquanto o som do motor se apagava lá fora. A luz do entardecer filtrada pelas cortinas dizia que ela havia dormido apenas algumas horas.

Ela resmungou algumas palavras incoerentes, enquanto jogava as pernas para fora da cama.

O assoalho rangeu sob seus pés descalços quando se aproximou da janela. Lá embaixo, Jake ajudava tio Billy a descer da picape, com aquele jeito desengonçado de sempre, lançando alguns olhares para a casa com uma expressão que Rose não conseguia decifrar à distância.

Com um último olhar melancólico para a cama quentinha, ela se virou e alcançou uma camiseta da poltrona mais próxima, que vestiu com movimentos automáticos antes de sair do quarto.

Foi então que quase colidiu com Bella no corredor estreito. Rose realmente não estava acostumada com tantas pessoas em casa.

Bella recusou um passo, surpresa.

— O que foi isso?

Rose esfregou o rosto com uma mão, bocejando entre as palavras.

— Jake trouxe a picape.

Bella hesitou, depois seguiu-a, os pés descalços fazendo pouco barulho nos degraus.

— Jake?

Rose não diminuiu o passo.

— Jacob Black. Lembra dele? Vocês brincavam em La Push quando eram crianças.

Bella murmurou evasivamente, mas não respondeu. Rose também não esperou por uma resposta — já estava virando o corrimão e empurrando a porta da frente antes que Bella pudesse articular qualquer coisa.

O ar fresco do final da tarde atingiu seu rosto quando saiu para a calçada, onde tio Billy, Jake e tio Charlie estavam reunidos ao redor da nova aquisição.

A picape era um monstro de aço — um modelo antigo em um vermelho desbotado que parecia ter sobrevivido a décadas de uso intenso. Seus para-lamas eram grandes e arredondados e com uma cabine bulbosa que dava ao veículo uma aparência antropomórfica.

Jake foi o primeiro a notá-la, seus olhos escuros iluminando-se instantaneamente.

— Primmy! Vem ver o presente da Bella. — Chamou, erguendo a mão em saudação.

Rose aproximou-se, um sorriso no rosto.

— Incrível, Jake. Você que consertou?

— Claro que sim. Eu sou um talento nato.

— Eu nunca duvidei disso. — Rose bufou, virando-se para o tio Billy com um olhar de censura. — Como você está, tio Billy? Comendo direito?

— Claro que sim, você nunca para de me encher.

— É claro que sim, é o meu trabalho. — Rose insistiu, apontando um dedo acusatório. — Qualquer coisa você sabe que pode me ligar, certo?

— Eu sei, querida. Fique tranquila! Eu não vou morrer tão cedo.

A conversa foi interrompida pelo som da porta da frente se abrindo. Todos se viraram para ver Bella emergir, seus olhos arregalaram-se ao ver a picape.

 Para a grande surpresa de Rose, ela realmente adorou o veículo.

— Caramba, pai, adorei! Obrigada!

Tio Charlie corou visivelmente, esfregando a nuca com uma mão.

— Que bom que você gostou, querida.

Rose percebeu como Jake praticamente flutuava ao redor de Bella, seus passos desajeitados de repente cheios de uma graça desastrada. Ele ajustava o retrovisor que não precisava de ajuste, abriu a porta para ela com um floreio exagerado, seus olhos brilhando com uma admiração que era impossível não reconhecer.

Ah, por favor.

— Percebeu também, né? — Tio Billy cochichou para Rose, os olhos cheios de diversão enquanto observava Jake e Bella entrarem na picape para uma volta teste.

Rose franziu o nariz, assistindo Jake inclinar-se perigosamente sobre Bella para mostrar os controles do rádio, seu sorriso tão largo que quase dividia o rosto ao meio.

— É meio impossível não notar. — Resmungou. — Jake parece ter corações saindo pelos olhos.

Tio Billy riu, sacudindo a cabeça.

— Vamos entrar? Os garotos devem demorar um pouco. — Tio Charlie retornou para eles, empurrando suavemente a cadeira de rodas para dentro de casa. — Os Rangers vão sofrer hoje, Billy.

— Você que pensa, Charlie. — Rebateu tio Billy, virando-se o máximo que podia para encarar o amigo. — Seu time é que vai chorar hoje.

Rose seguiu os dois para dentro, bufando baixinho enquanto se acomodava no sofá. A discussão continuava, cada insulto aos times mais criativo que o anterior. Eles pareciam duas crianças grandes demais.

Ela pegou um punhado de pipoca que Charlie havia deixado na mesa, preparando-se para o espetáculo habitual, quando o telefone tocou.

Rose correu para a cozinha.

— Alô?

— Oi, querida. — A voz de Paul vinha carregada de preocupação. — Liguei pro seu celular, mas você não atendeu. Tá tudo bem?

Ela sentou na cadeira mais próxima, baixando a voz enquanto os tios discutiam algo sobre um lance duvidoso.

— Sim, fui buscar Bella no aeroporto.

— Hmm. Como foi?

— Dolorosamente desconfortável. — Confessou, mordiscando seu lábio. — Espero que eu me acostume com o passar do tempo, mas não estou contando com isso.

Do outro lado da linha, Paul fez um ruído de compreensão.

— Você sabe que sempre pode ficar aqui em casa, certo?

— Eu sei, querido. — Ela sorriu, apenas de tudo. — Vou me lembrar disso. E você? Como tem sido com o pessoal?

Paul baixou a voz, como se alguém pudesse ouvir.

— Tenho tido sucesso em esconder os meus pensamentos sobre as nossas conversas. Você estava certa. Aparentemente eles só escutam os meus pensamentos imediatos. Memórias não são vistas ou ouvidas pela matilha, então estou seguro, por enquanto.

— Que pena que o anel não deu certo pra você. — Murmurou, lembrando o quanto eles tentaram usar os anéis enfeitiçados para esconder a conversa sobre o passado de Rose, mas, aparentemente, o anel protegia todos os pensamentos de uma pessoa e não somente uma memória específica.

Neste caso, Paul agora teria que se esforçar para não pensar sobre isso, enquanto estivesse em sua forma de lobo. Era bastante arriscado, mas era a única opção deles, por enquanto.

— Está tudo bem, querida. — Paul respondeu, sua voz mais leve agora. — Eu tenho outras formas de me proteger. Você está livre hoje?

— Sim. Você vem pra cá?

A hesitação de Paul foi quase palpável.

— Na verdade, o pessoal tem insistido para eu te trazer. Todos querem te conhecer.

Rose soltou um suspiro que carregava meses de conflito interno.

— Você não precisa vir, se não estiver pronta. — Ele completou, antecipando a sua preocupação.

— Não é isso. — Ela franziu a testa, escolhendo as palavras com cuidado. — Eu não fui exatamente simpática com a Emily, sabe, no início. E, mesmo entendendo o imprinting… Não sei se consigo ser amiga do Sam. Eles são seus amigos, e eu sei que Leah e eu não estamos nos falando agora, mas…

— Você é mais importante do que meus amigos, meu amor. — Paul a interrompeu.

Rose sentiu um calor familiar subir pelas bochechas.

— Eu sei, mas eu acho que eu preciso me esforçar um pouco.

— Você não precisa.

— Eu sei que não. — Ela sorriu. — Você vem me buscar?

— Tudo bem. — Ele suspirou. — Eu te pego em 30 minutos. E Prim?

— Hmm?

— Se você não se sentir à vontade, nós vamos embora. Sem discussão.

— Obrigada, Paul. — Ela desligou com um sorriso enorme no rosto.

Rose estava confusa sobre tentar conhecer a matilha, muito mais do que a confusão para se encaixar no mundo de Paul. Mas ela estava decidida a tentar.

Não por Sam, que mesmo sem querer havia quebrar o coração de Leah. Elas podiam não se falar agora, e Rose ainda estava magoada com a amiga, mas ela ainda era a amiga dela. Um sentimento como esse não se esgota em tão pouco tempo. Rose também não estava decidida a tentar por Emily, que não havia se esforçado nenhum pouco para compreender o lado de Leah. E certamente não por Jared, que ela mal conhecia.

Ela tentaria por Paul.

Porque no meio de todos os sentimentos confusos com a chegada de Bella, Paul permaneceu firme. Constante. Sempre com os ouvidos atento para ouvi-la falar sobre isso sem parar nas últimas semanas.

E se ele era capaz de equilibrar sua lealdade à matilha com o seu amor por ela — incluindo seus segredos —, então Rose podia pelo menos tentar ser civilizada.

Talvez não fosse grande coisa conhecer Jared, ou sorrir para Emily, ou até mesmo trocar meia dúzia de palavras educadas com Sam. Talvez não mudasse nada.

Mas também talvez tornasse as coisas um pouco mais fáceis daqui pra frente. Especialmente com Paul. E isso, no fim, era tudo o que importava.

Com essa decisão tomada, Rose voltou sua atenção para os tios na sala.

— Estou indo para La Push, tio Charlie.

— Casa do Paul?

— Não, ele quer que eu conheça Sam, Emily e Jared, na verdade.

Do outro lado da sala, tio Billy não conseguiu conter um sorriso largo, seus olhos escuros brilhando de satisfação. A reação dele fez Rose revirar os olhos, mas um cantinho da sua boca curvou-se contra a própria vontade.

Quando ela descobriu que Billy sempre soube sobre os lobos — e pior, que torcia avidamente por ela e Paul o tempo todo — foi um choque. O velho quase saltou da cadeira de rodas quando soube da reconciliação deles, exibindo um entusiasmo que deixou Rose completamente vermelha.

Aparentemente, desde o imprinting, ele não parava de importunar Paul para tomar uma atitude.

E agora, lá estava tio Billy, lançando olhares satisfeitos para Rose através da sala, seu sorriso tão maroto que ela teve que desviar o olhar para não rir.

— Tudo bem, querida. Volte cedo. — Tio Charlie disse. Rose deixou um beijo na bochecha dos seus tios.

— Se comportem enquanto eu não estiver aqui.

— Eu sempre me comporto. — Tio Billy protestou, mas seu olhar travesso para o tio Charlie dizia o contrário.

Quando Rose estava pronta, um barulho de dois carros aproximando-se anunciou a chegada de Paul e de Jake e Bella.

Lá fora, ela só tinha olhos para o seu Paul. Ele estacionou com aquela confiança natural, saltando do veículo com um sorriso que fez seu estômago revirar. Seus passos largos devoraram a distância entre eles, e quando seus corpos se encontraram em um abraço esmagador, Rose sentiu o calor familiar afastando qualquer nervosismo.

Antes que pudessem falar qualquer coisa, Jake desceu da outra picape, ajudando Bella a sair. Foi então que Rose percebeu os olhares estranhos que Jake lançava para Paul — havia curiosidade, talvez alguma apreensão contida. Rose sabia que ele ainda não era um metamorfo, mas se perguntava se Jake já sentia os sinais se aproximando.

Quando percebeu que Rose estava os observando, Jake limitou-se a um aceno distante que ela retribuiu com um sorriso.

Paul apertou a sua mão suavemente, chamando a sua atenção de volta.

— Vamos?

Rose assentiu, decidindo ignorar aquele ignorar aquele clima estranho. 

Havia coisas mais importantes para lidar agora — como conhecer a matilha, enfrentar o desconforto de estar na mesma sala que Sam e Emily, e tentar não estragar tudo antes mesmo de começar.

Notes:

Algumas considerações sobre a linha do tempo: Como eu adiei um ano para a chegada de Bella, ela já tem 18 anos e chegou em Forks na metade do último ano do ensino médio. Então, Jake já tem 17 e está próximo de se tornar um metamorfo.

Obviamente, se isso mudou, muita coisa vai mudar em relação ao cânone. Mas não direi mais nada.

Para encerrar essas notas, direi apenas o quão difícil é escrever sobre Bella. Reli o início de Crepúsculo para escrever esse capítulo e tive a impressão de que ela realmente foi para Forks bastante relutante. Ela estava pronta para odiar tudo, o quanto era verde demais, ou chovia muito, ou a certeza de que ela seria infeliz.

Achei um pouco insensível, mas acho que é de se esperar de uma adolescente que mal falava com o pai há anos.

Mas como aqui estamos vendo da perspectiva de Rose, é claro que as impressões dela serão diferentes, talvez um pouco mais duras.

No final das contas, foi mais uma transição para todo o caos que Bella traz para Forks.

Chapter 31: TRINTA E UM

Chapter Text

Rose pulava pra lá e pra cá pela cozinha apertada, as mãos ágeis cortando legumes enquanto o molho borbulhava no fogão. Tio Charlie tinha sugerido que ela chamasse Paul para jantar — uma chance de Bella conhecer melhor o namorado dela, e talvez, quem sabe, de todos se acostumarem com a nova dinâmica da casa.

A ideia a deixava com os nervos à flor da pele.

Sua relação com Bella tinha sido até agora, por falta de uma palavra melhor, razoável. Diferente da versão de 10 anos, essa Bella mais velha era ainda mais silenciosa, mais introspectiva — quase um fantasma se movendo pela casa com passos leves, exceto quando ela tropeçava em superfícies lisas, e sempre com a mesma edição surrada de Morro dos Ventos Uivantes debaixo do braço.

Elas não tinham nada em comum.

As interações que elas tinham se resumiam a bilhetes colados na geladeira e pratos lavados em silêncio. Até agora o único momento de conversa real que elas tinham era no jantar, já que Rose, na maioria dos dias, saia de casa antes do nascer do sol e, quando retornava, Bella havia retornado da escola, mas estava sempre trancada em seu quarto estudando ou fazendo sabe-se lá o quê.

Todos os dias, quando Rose chegava em casa, ia direto para a cozinha, como sempre fazia. As mãos moviam-se automaticamente — cortando, mexendo, temperando — enquanto o cheiro do jantar se espalhava pela casa. Nos primeiros dias após a chegada de Bella, ela ainda pegava dois pratos sem pensar, só para perceber seu erro quando já estava pondo a mesa.

Agora eram três, mas o terceiro parecia sempre deslocado.

Os passos firmes de tio Charlie anunciavam a sua chegada. O tilintar metálico do coldre sendo pendurado no cabide, a porta do armário rangendo onde ele guardava a arma — esses sons familiares sempre a faziam sorrir.

— Oi, querida. — Seu bigode áspero roçava sua testa no beijo de sempre. — Cheiro bom hoje.

— Obrigada, tio. — Ela sorria, afastando um fio de cabelo do rosto com o dorso da mão.

Ele já puxava sua cadeira, garfo em punho antes mesmo de se sentar.

— Como foi o dia?

— Corrido. Dois partos, uma pequena cirurgia e uma fratura exposta. — Água corrente lavava suas mãos enquanto falava. — Ah, e a Sra. Donnelly quer saber, pela quarta vez este mês, se você está solteiro e disponível

Charlie tossia, as orelhas ficando vermelhas como sempre. Rose gargalhava feliz. E então Bella descia as escadas em silêncio, tímida, e afundava em uma das cadeiras como se quisesse se fundir com o estofado.

Era assim todas as noites.

Bella aparecia como uma sombra, deslizando para a sua cadeira como se tentasse não perturbar o ar ao seu redor. Seu "obrigada" ao pegar o prato era mais um movimento de lábios do que propriamente um som.

A conversa continuava entre eles — Tio Charlie contava todas as fofocas da delegacia e Rose complementava com os boatos do hospital. Eles riam alto, cúmplices, como se fossem duas velhas fofoqueiras. Enquanto isso, Bella comia em silêncio, os olhos fixos no prato.

Assim que a última garfada desaparecia, ela sussurrava um "Obrigada. Boa noite” , lavava seu prato silenciosamente e então sumia de novo, subindo as escadas quase correndo.

— Ela vai se acostumar. — Tio Charlie sempre dizia, olhando para a escada vazia.

Rose concordava com um aceno mudo, mas na privacidade de seus pensamentos, ela duvidava disso. Algumas paredes eram muito altas para serem escaladas, mesmo com toda a boa vontade do mundo.

Ela fazia o que podia. Preparava o jantar, perguntava sobre o dia de Bella na escola — sempre recebendo respostas curtas — e seguia com a sua rotina como se nada tivesse mudado. Como se Bella estivesse apenas de passagem.

Por isso, ela não entendia a insistência do tio Charlie em apresentar Paul à Bella. A garota mal parecia confortável durante os jantares, sentada à mesa como se cada garfada fosse um esforço. Algumas noites, Rose quase conseguia acreditar que Bella preferiria estar em qualquer outro lugar — menos ali, com eles.

Talvez fosse o seu jeito de policial, acreditando que a solução para tudo era a integração forçada. Que se Bella conhecesse Paul, ela se sentiria mais à vontade naquela pequena dinâmica familiar. Ou talvez fosse apenas o desejo ingênuo de fazer Rose e Bella se aproximarem através do namorado de Rose, como se eles estivessem em um filme de comédia romântica ou algo do tipo.

Se ao menos fosse tão simples quanto o tio Charlie imaginava. Se bastasse apenas um jantar e algumas interações educadas, para fazer com que Bella se sentisse em casa.

Mas algumas pessoas não queriam se sentir em casa. Algumas pessoas, Rose suspeitava, preferiam permanecer estrangeiras — era mais fácil assim.

Mas Rose não queria questionar o tio Charlie, então ela estava ali fazendo o jantar e esperando que todos chegassem em casa para esse jantar que tinha tudo para ser desconfortável e sem sentido.

O fogão chiou em protesto quando ela aumentou o fogo. Bella já estava em casa, trancada em seu quarto como sempre, Paul e tio Charlie chegariam em alguns minutos. E ela estava, ali no meio, tentando controlar a ansiedade em forma de molho de tomate enquanto preparava o jantar mais constrangedor da história de Forks.

— Precisa de ajuda?

Rose quase saltou para fora da própria pele. Bella estava parada no limiar da cozinha, tão quieta que poderia ter se materializado do ar. Rose quase deixou cair a massa.

— Jesus, Bella. — Ela pressionou uma mão cheia de farinha no peito, sentindo o coração acelerado. — Não ouvi você chegar.

Bella encolheu os ombros, o rosto vermelho de vergonha contrastando com a sua palidez habitual.

— Desculpe.

Rose limpou as mãos no avental, respirou fundo.

— Pode… cortar os tomates, se quiser. — Indicou a tábua com um aceno de cabeça. — Precisam ficar em cubos.

— Você gosta de cozinhar? — Bella perguntou sem levantar os olhos da tábua. — Percebi que você sempre faz o jantar.

— Bem, era isso, ou comer pizza todo dia. — Rose mexeu o molho, enquanto sorria feliz com o resultado. — Ou arriscar uma intoxicação alimentar com as experiências culinárias do tio Charlie.

— Ele ainda é tão ruim assim? Lembro que ele queimou minha sopa três vezes seguidas quando eu era pequena.

— Pelo menos agora ele sabe fazer ovos e bacon.

Bella soltou um riso abafado, rápido demais para ser capturado. Rose quase sorriu de volta.

— E então, como você conheceu seu namorado? Paul…? — A pergunta veio junto com o ruído da faca cortando tomate.

Rose ergueu os ombros.

— Sim. Bem, nós namoramos quando éramos adolescentes, na verdade. Depois ficamos um tempo distante enquanto eu estava na faculdade e nos reencontramos novamente. — Rose resumiu, não querendo entrar nos detalhes mais profundos do seu relacionamento.

— Uau. Isso é muito legal. — O tom de Bella soou genuíno, mas havia uma hesitação no ar, como se ela não tivesse certeza se poderia falar algo.

Rose virou-se, franzindo a testa.

— Quer perguntar alguma coisa?

Bella mordeu o lábio inferior.

— Você conhece todo mundo em Forks?

— Acho que sim. Porquê?

— Eu queria saber se você já ouviu falar dos…

A campainha estrondou na casa silenciosa. Rose enxugou as mãos às pressas.

— Deve ser o Paul. Um minuto!

Rose abriu a porta e seu coração deu um salto. Paul estava ali, iluminado pela luz do entardecer, e ela jurou que o universo conspirava para torná-lo ainda mais bonito a cada dia que passava.

Seus olhos beberam cada detalhe dele com sede, e antes que pudesse pensar, seu corpo reagiu por conta própria e Rose já estava voando em sua direção. Seus braços se enroscaram em seu pescoço, os dedos ainda levemente sujos de farinha deixando marcas na gola impecável de sua camisa.

Quando seus lábios se encontraram, Rose sentiu o tempo desacelerar, como sempre acontecia quando ela estava beijando Paul. Ele a puxou para mais perto, uma mão perdendo-se em seus cabelos enquanto a outra se firmava na sua cintura, como se tentasse fundi-la a si mesmo. Rose sentiu o sorriso dele se formar no meio do beijo, enquanto seu coração parecia bater em sincronia com o dele, um ritmo acelerado que ecoava em seus ouvidos.

Quando finalmente se separaram, ofegantes, Rose percebeu que havia deixado não apenas farinha, mas também a marca de seus lábios em seu rosto. Paul, no entanto, não parecia se importar — seu sorriso era completamente radiante e atordoado.

— Parece que alguém estava com saudades. — Ele suspirou, sua testa repousando contra a dela.

— Faz tempo que eu não te vejo.

— Faz só uns dois dias. — Ele riu, o som vibrante ecoando entre seus corpos tão próximos.

Ela puxou-o mais perto, os dedos encontrando os fios de cabelo na sua nuca.

— É como se fossem anos. — Ela suspirou dramaticamente.

Ele riu feliz, como sempre ficava quando Rose ela se permitia ser ousada, apaixonada e carente — algo que só ele conhecia.

— Eu também estava com saudade. — Ele admitiu, suas mãos apertando a cintura dela com força. — Me desculpe por não ter te buscado no hospital nos últimos dias…

Ela calou-o com um beijo rápido.

— Paul, amor, você está se dividindo entre as patrulhas e a sua empresa, enquanto eu preciso lidar com os plantões malucos no final do estágio.

Quando ele abriu a boca para protestar, Rose esmagou o nariz contra o dele, fazendo cócegas com seus cílios.

— Mas olha… — Ela sussurrou, seu hálito quente misturando-se ao dele. — Eu vou me formar em alguns meses, e terei férias antes da residência começar. — Seus lábios se curvaram num sorriso malicioso, seus dedos brincando com os fios mais curtos da sua nuca. — Posso passar mais tempo na sua casa. Imagina quantas manhãs preguiçosas podemos ter…

Os olhos de Paul iluminaram-se imediatamente, ele a puxou mais perto, suas mãos firmes em sua cintura.

— Eu adoro cada sílaba desse plano. — Ele rosnou, capturando seus lábios novamente com uma fome que fez seus joelhos fraquejarem.

Foi então que um “Ahem” estridente cortou o ar como um machado.

Os dois se separaram em um salto. Tio Charlie estava parado na calçada, os braços cruzados, o rosto vermelho como um pimentão.

— Paul, eu gosto muito de você, praticamente te considero da família. — Ele falou, apontando um dedo acusador. — Mas se eu pegar você agarrando minha sobrinha na minha porta de novo, juro por Deus, eu vou dar um tiro na sua perna.

Paul ficou pálido. Rose arregalou os olhos para o seu tio.

— Tio Charlie! — Ela exclamou, colocando-se instintivamente entre os dois, como se esperasse vê-lo sacar a arma a qualquer momento.

Tio Charlie manteve a expressão séria por exatos três segundos antes que um tremor nos lábios o traísse.

— É claro que eu nunca faria isso. — Ele disse, os olhos brilhando de diversão ao ver a reação deles. — Eu sou um oficial da lei, afinal de contas.

Tio Charlie entrou em casa rindo de suas próprias ameaças, e Paul passou uma mão nervosa pelo rosto.

— Ele está brincando sobre o tiro, né?

Rose mordeu os lábios para conter o riso.

— Querido, você sabe que é um lobo, né?

— Eu posso ser um lobo, mas o tiro ainda dói pra caramba.

A gargalhada de Rose ecoou pela rua silenciosa. Ela puxou Paul pela camisa, arrastando-o para dentro.

— Não se preocupe, querido, eu posso te proteger do policial mau. — Zombou, fingindo-se de séria.

Ele a seguiu, mas não sem antes sussurrar em seu ouvido:

— Você ainda não respondeu a minha pergunta.

Rose apenas acelerou o passo em direção à cozinha, escondendo o riso no punho. O cheiro de alho e manjericão tomava o ar, provavelmente Bella adiantando a receita enquanto Rose estava lá fora.

— Paul, essa é Isabella Swan, minha prima. — Apresentou, gesticulando entre os dois. — Bella, esse é o meu namorado, Paul.

— Oi, Isabella. — Paul estendeu a mão com um sorriso.

— Só Bella. — Ela corrigiu suavemente, apertando seus dedos com cuidado. — É um prazer conhecê-lo. Rose falou muito bem de você.

— Ah, é mesmo? — Paul arqueou uma sobrancelha na direção de Rose, que revirou os olhos enquanto voltava ao fogão, onde o ravioli borbulhava.

— Não dê ouvidos a ela. Senta aí, a massa está quase no ponto.

Enquanto Paul e tio Charlie se acomodavam à mesa, mergulhando imediatamente numa discussão animada sobre o último jogo dos Mariners, Rose sentiu Bella se aproximar silenciosamente do balcão.

— Precisa de ajuda com mais alguma coisa? — Bella sussurrou, observando as mãos de Rose moldarem os últimos raviolis.

Rose então entregou-lhe a escumadeira.

— Pode tirar esses da água quando flutuarem, pode ser?

Bella assentiu, seus dedos fechando-se com cuidado no cabo do utensílio, enquanto na mesa, a risada estrondosa de Paul ecoava contra as paredes.

Alguns minutos depois, os pratos estavam cheios e o jantar corria em meio a conversas leves.

— Isso daqui está incrível, Prim. — Paul elogiou entre uma garfada e outra, os olhos castanhos brilhando em sua direção.

Tio Charlie concordou com um grunhido satisfeito, já servindo a segunda porção.

— Sim, está ótimo, querida. — Disse, seu bigode balançando com cada movimento de mastigação. — Você se superou dessa vez.

Ela sentiu o rosto esquentar.

— Obrigada. — Murmurou baixinho, antes de voltar sua atenção para Bella. — E você, Bella? Está gostando?

— Está ótimo. — Bella murmurou, espetando outro ravioli com cuidado. — Obrigada pelo jantar.

— Claro, sem problemas. — Rose limpou os lábios com o guardanapo. — Como tem sido a escola até agora? Você não disse muita coisa.

— Sim, querida. — Tio Charlie concordou. — Você já fez algum amigo?

A tentativa do tio Charlie de tentar ser casual falhou miseravelmente, mas Rose ignorou.

— Bom, tive aulas com uma menina chamada Jessica. Sentei para almoçar com os amigos dela. E tem um garoto, Mike, que é muito simpático. Todo mundo parece legal.

— Deve ser Mike Newton. Garoto bom… uma boa família. O pai é dono da loja de produtos esportivos perto do centro. Você não estudou com o irmão dele, Rose?

Rose gemeu como se tivesse engolido algo azedo.

— Matthew Newton. Deus, que chato insuportável. — Cobriu a boca com a mão. — Desculpe, tio Charlie.

Ele bufou, mas seus olhos brilharam de diversão.

— Conheceu alguém mais?

— Bem… — Bella olhou para o seu copo de suco, girando o líquido hesitantemente. — Vocês conhecem a família Cullen?

A mesa congelou.

O garfo de Paul tilintou contra o prato. Rose sentiu os músculos das costas se contraírem. Até o som da geladeira pareceu cessar.

Mas Bella continuou, alheia à tensão da mesa ou simplesmente ignorando.

— Eles… os filhos… são meio diferentes. Não parecem se adaptar muito bem na escola.

— Claro que não. — Paul murmurou baixo demais para os outros ouvirem.

Rose enfiou o cotovelo nas costelas dele com força suficiente para derrubar um humano comum — o que só fez os olhos de Paul brilharem de diversão, os músculos abdominais rijos como aço sob a camisa.

— Eles são bastante reclusos. Ninguém fala muito com eles. — Tio Charlie tentou contornar o assunto sutilmente. — Exceto Rose, que trabalha com o… pai deles. O Dr. Cullen.

Ninguém notou a tensão de tio Charlie na palavra pai , muito menos no olhar de traição total que Rose lhe lançou.

— É mesmo? — Bella perguntou interessada. — Eles parecem bastante legais pra mim, mas ninguém conversa com eles. Talvez porque eles são muito reservados... distantes. Todos são muito bonitos.

Paul engasgou com seu suco, enquanto Rose sentiu um suor frio escorrer pelas suas costas. A mão dela encontrou a de Paul sob a mesa, os dedos se entrelaçando num aperto silencioso de alerta.

— Bonitos sim. — Rose concordou rápido demais, buscando desesperadamente uma mudança de assunto. — Mas você sabe como é… gente nova na cidade sempre chama atenção. Você tem passado por isso também?

Bella, é claro, ignorou a tentativa óbvia de mudança de assunto como se não tivesse ouvido.

— Eu fiz parceria com Edward Cullen na aula de biologia. Ele me evitou no início, mas… parece que somos bons parceiros agora…

— Nós não temos muito contato com os Cullen, Bella. — Rose respondeu incisivamente.

— Por que não? — Bella ergueu os olhos, desafiante.

— Diferenças culturais, provavelmente.

— Você não é britânica? — Bella argumentou. — Você também teve problemas com diferenças culturais quando chegou aqui?

— Olha, Bella… — Tio Charlie tentou intervir. — Eles se mudaram há poucos anos e são reservados, não gostam de interagir com as pessoas da cidade. Nós apenas respeitamos isso, sugiro que você faça o mesmo.

— E nós preferimos assim. — Paul acrescentou com firmeza, cortando um ravioli com mais força do que o necessário.

Bella não disse mais nada, apenas assentiu e baixou os olhos para o prato. Mas Rose conhecia bem aquela expressão teimosa, ela via a mesma sempre que olhava para o espelho, sempre que alguém tentava impedi-la de descobrir algo. O maxilar tensionado, a testa franzida em concentração, os olhos fixos em um ponto distante, o leve tremor das pálpebras enquanto revivia cada pensamento, o lábio inferior preso entre os dentes.

O tilintar dos talheres contra a louça soava anormalmente alto no silêncio que se instalou no cômodo. Rose encontrou os olhos de Paul sobre a mesa — uma conversa inteira em um piscar de olhos.

A conclusão era óbvia: Bella não ia desistir facilmente.

 

*

 

— Você acha que ela vai investigar mais sobre os Cullen? — Paul encostou na parede da varanda, seus dedos se contraindo involuntariamente.

Eles se esconderam no escuro do lado de fora, logo depois do jantar, enquanto Bella e tio Charlie subiam para se preparar para dormir.

— Eu não sei. Ela pareceu muito interessada.

— Isso é preocupante. — Paul fechou os olhos por um instante longo demais. Quando abriu, o castanho parecia queimar no escuro. — E isso também pode colocar você em perigo.

A mão de Rose encontrou a dele, segurando-a com firmeza.

— Talvez se contarmos a verdade…

— Ela não parece do tipo que vai aceitar apenas ouvir a verdade. — Paul interrompeu gentilmente. — Ela vai querer provas. Vai querer ver com os próprios olhos. E aí…

Rose não precisou que ele terminasse. Os Cullen podem ser “civilizados”, mas e se ela encontrar um dos outros? E se ela cometer um erro e sangrar sem querer na frente de um deles? E se um deles perder o controle?

— Você está certo. — Rose concordou. — E ainda tem o fato de corrermos o risco dela descobrir sobre você.

— Exatamente. — Paul assentiu, a voz mais baixa agora. — Não posso colocar a matilha em risco.

— E o tio Charlie nem sabe sobre vocês também.

— Eu sei, meu amor. — Ele puxou Rose para perto. — Mesmo que ele saiba sobre você e os vampiros, Sam nunca aprovaria que ele soubesse sobre os lobos.

Rose olhou para as luzes do andar de cima, onde Bella devia estar se preparando para dormir.

— Você vai falar para os outros? — Rose perguntou.

Ela tinha quase certeza de que Sam não faria nada. Pelo que ela percebeu da última vez que conversaram — o que não foi nenhuma conversa notável, já que quando ela foi até a casa de Emily, ela e Paul logo foram embora —, era que ele só arriscava se envolver quando a situação estava fora de controle e ameaçava a Reserva. Fora isso, tudo era absolutamente irrelevante.

— Eu preciso avisá-los, sim. — Paul esfregou a nuca, o cansaço pesando seus ombros. — Pelo menos para ficarem atentos.

— Talvez ela desista depois de um tempo… assim como todo mundo na cidade.

— Eu espero que sim. — Paul segurou seu queixo gentilmente. — Mas fique de olho nela.

— Claro, é tudo o que podemos fazer. — Rose completou, encostando a testa em seu ombro.

Rose queria acreditar que Bella desistiria depois de um tempo — que assim como todos em Forks, ela acabaria aceitando que os Cullen eram um mistério. Mas era difícil sustentar essa crença quando ela viu o brilho de curiosidade em seus olhos.

Ela ainda podia sentir um nó de ressentimento no peito ou até odiá-la um pouco, mas nunca, nem por um segundo, Rose desejaria ver Bella morta ou transformada em um deles.

Rose só poderia torcer para que tudo isso fosse apenas curiosidade, e nada mais.

Chapter 32: TRINTA E DOIS

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Estava mais frio do que o normal. No entanto, em vez da neve fofa e branca, havia apenas uma camada vítrea que cobria todas as superfícies — os galhos das árvores, os postes, até as grades da varanda brilhavam suavemente sob a luz fraca do amanhecer.

Tio Charlie havia colocado correntes nos pneus dos carros de Rose e Bella na noite anterior, e ela sorriu amorosamente, sabendo que ele manifestava seu amor com essas pequenas ações do que com discursos eloquentes.

Rose dirigiu para o seu turno no hospital mais tarde do que o habitual, com o sol já raiando tímido sobre o gelo. Antes de partir, Bella já estava acordada, tomando café na cozinha com os olhos fixos na janela. Elas trocaram pouco mais do que um “bom dia”, “bom trabalho” e “boa aula”.

Desde o jantar com Paul há algumas noites, Bella parecia ter se recolhido ainda mais para dentro de si mesma. Sempre presa em seus próprios pensamentos, provavelmente virando e revirando os fatos até que fizessem algum sentido.

O carro derrapou levemente numa curva, trazendo-a de volta ao presente. Bella podia vasculhar, questionar, procurar pistas o quanto quisesse — algumas verdades estavam enterradas fundo demais para serem desenterradas por ela. Pelo menos era nisso que Rose precisava acreditar enquanto estacionava seu carro e caminhava em direção ao hospital.

Ela não queria pensar em tudo o que poderia dar errado se a curiosidade dela fosse longe demais, então Rose focou em seu trabalho. Organizou prontuários, preencheu fichas, trocou curativos e, principalmente, ignorou com esforço os olhares pensativos do Dr. Cullen.

Quando a ambulância estacionou na emergência, Rose mal prestou atenção — até ver o cabelo castanho desalinhado de Bella contra a maca branca. Seu coração parou por um segundo antes de despencar no estômago.

— Bella?! — Rose correu, os dedos já avaliando os sinais vitais da prima antes mesmo de pensar. — O que aconteceu?

— Eu estou bem. — Bella murmurou, tentando se sentar, mas Rose a segurou pelo ombro com firmeza. Suas mãos já examinando as pupilas de Bella com uma lanterna que ela puxou do bolso.

— Fique deitada, Bella. — Rose ordenou.

— Tyler Crowley, 18 anos, condutor do veículo. — Ouviu alguém dizer enquanto um enfermeiro pressionava uma gaze acima da sobrancelha do garoto.

— Me desculpe, Bella. — Tyler Crowley balbuciava ao seu lado, pálido. — Eu estava indo rápido demais, o gelo… Eu perdi o controle do carro.

— Não se preocupe com isso; você não me acertou. — Bella tranquilizava o garoto, enquanto Rose já empurrava a maca em direção ao leito 3, uma enfermeira ao seu lado imediatamente começou a anotar os sinais vitais no prontuário.

— Como foi que saiu do caminho tão rápido? — Tyler insistiu, a enfermeira ainda focada em seu curativo. — Você estava lá e de repente tinha sumido…

Bella hesitou.

— Hmmm… Edward me puxou de lá.

Rose congelou no meio da checagem da pressão arterial, a mão esquerda ainda pressionando o aparelho contra o braço de Bella.

— Quem? — Tyler perguntou, genuinamente confuso.

— Edward Cullen… Ele estava do meu lado. — Bella mentiu, Rose sabia disso.

Rose engoliu em seco e sinalizou para a enfermeira Smith.

— Radiografia de crânio, incidências AP e perfil. E uma TC se houver qualquer alteração. Para ambos, por favor.

— Eu não preciso disso, Rose. Eu estou bem. — Bella protestou, mas Rose já ajustava o colar cervical com movimentos precisos.

— Faça pelo tio Charlie, então. — Apertou o botão elétrico para elevá-la.

No exato momento em que as rodas da maca começaram a se mover, a porta da enfermaria se abriu. Edward Cullen e o Dr. Cullen entraram em passos sincronizados.

— Dra. Potter, presumo que esteja tudo bem? — O Dr. Cullen perguntou, os olhos dourados avaliando os prontuários.

Rose lançou-lhe um olhar fulminante. Ele percebeu imediatamente que ela sabia que Edward estava envolvido, de alguma forma, nesse acidente.

— Paciente feminina, 18 anos, vítima de quase-atropelamento. Escala de Glasgow 15, sem perda de consciência ou queixas de cefaléia. — Suas mãos profissionais apontaram para Tyler, que gemia em outro leito. — O condutor é quem precisa de atenção. Laceração de 3 cm em arcada supra orbital direita, provável concussão moderada.

Ela manteve o tom neutro ao continuar, forçando-se a manter o profissionalismo ou ela descobriria hoje se um vampiro poderia levar um soco.

— Solicitei radiografia de crânio AP e perfil para Bella apenas por protocolo. Mas ela parece bem. — Ela lançou um olhar significativo. — Sem sinais de trauma físico aparente, já que o seu filho tirou ela do caminho. Mas eu prefiro prevenir.

O silêncio que se seguiu foi cortante. Os dois Cullen a encararam por um segundo interminável antes que o barulho das rodas da maca anunciasse o retorno de Bella, enquanto Tyler era levado para a tomografia.

— Então, Srta. Swan — Disse o Dr. Cullen, ignorando Rose completamente. — Como está se sentindo?

— Eu estou bem — Bella resmungou, tentando se sentar.

Rose  pegou os exames com a enfermeira e prendeu no negatoscópio com um estalo seco. O Dr. Cullen inclinou-se para avaliar as imagens, seu perfil imóvel como uma estátua.

— Sua radiografia está limpa. Nenhuma fratura. — Disse ele. — Está com dor de cabeça? A Dra. Potter disse que você bateu a cabeça.

— Eu estou bem. — Ela suspirou, lançando um olhar azedo para Rose.

— Algum lugar dolorido? Hematomas?

— Na verdade, não. Só quero ir embora.

— Bem, seu pai está na sala de espera… Pode ir para casa com ele agora. Volte se sentir vertigem ou tiver algum problema de visão.

— Posso voltar para a escola? — Bella interrompeu.

— Não, Bella. — Rose se intrometeu, cruzando os braços. — É melhor você descansar hoje, é protocolo pós-trauma. Pelo menos 24 horas de observação domiciliar. Dr. Cullen, se puder assinar a alta? Eu gostaria que ela voltasse para o tio Charlie.

Ela estendeu o prontuário com força suficiente para fazer o papel tremer.

— Naturalmente. — Ele sorriu, sua caneta deslizando na folha com um floreio desnecessário. — Tome um analgésico caso sinta dor.

— Não está doendo tanto assim. — Bella insistiu, descendo do leito com um movimento brusco que fez Rose estender a mão instintivamente.

— Parece que vocês tiveram muita sorte. — Dr. Cullen comentou, seu olhar pousando brevemente em Edward, que permanecia imóvel ao seu lado.

— A sorte foi que Edward por acaso estava parado ao meu lado. — Bella corrigiu. Rose lançou outro olhar cheio de ódio para Edward, que manteve-se o tempo todo em silêncio ao lado do pai.

— Ah, sim, claro. — Concordou o Dr. Cullen, seu olhar buscando o de Rose em um pedido silencioso de compreensão antes de se virar para Tyler.

— Posso falar com você? — Bella perguntou ao Edward, mas Rose interrompeu.

— Primeiro, fale com o tio Charlie. Ele está na recepção há vinte minutos imaginando o pior. — Seu tom não deixava espaço para discussão. — O Sr. Cullen pode esperar.

Bella hesitou, abrindo a boca para protestar, mas Rose lançou um olhar duro que a fez recuar.

— Vá, Bella. Diga ao tio Charlie que eu vejo vocês em casa.

Com um suspiro dramático, Bella se virou e saiu arrastando os pés.

Assim que a porta se fechou, Rose aproximou-se de Edward, sua voz um sibilo controlado:

— Precisamos conversar.

O Dr. Cullen interceptou com um gesto calmo.

— Vamos usar meu escritório.

Eles caminharam pelos corredores em silêncio — Rose um passo atrás, seus olhos fixos nas costas dos Cullen, enquanto seus dedos digitavam rapidamente uma mensagem de texto no seu celular que ficava sempre escondido no bolso do jaleco. Ela não iria enfrentar dois vampiros sem a ajuda de Paul.

O Dr. Cullen abriu a porta do escritório com um gesto cortês que não combinava com a situação. O ambiente era impecável — diplomas nas paredes, fotos de família em molduras caras, tudo meticulosamente organizado como um cenário perfeito de um homem completamente humano.

— Por favor, sente-se, Dra. Potter. — Ele ofereceu, mas Rose permaneceu em pé, suas costas contra a porta fechada.

— Vamos pular as formalidades. — Ela disse, os dedos formando punhos inconscientemente. — O que diabos aconteceu?

— Sinto muito. — Edward falou, olhando primeiro para o Dr. Cullen, depois para Rose. — Não era a minha intenção colocar ninguém em risco. Foi algo impensado, e assumo total responsabilidade pelas minhas ações precipitadas.

— Isso não responde a minha pergunta, Cullen.

O Dr. Cullen se intrometeu, tentando apaziguar a situação.

— Parece-me, Dra. Potter, que Edward agiu em proteção de Bella. Ela estava no caminho da van, e ele usou a sua velocidade e força para pará-la.

Rose bufou.

— Claro, e agora que você é o herói dela, ela nunca mais vai deixar de tentar descobrir o que você é.

— Você preferia que eu a deixasse morrer? — Edward avançou subitamente, seu movimento tão rápido que Rose mal viu, parando a centímetros dela.

Rose não recuou.

— Prefiro que vocês mantenham distância da minha família. Seu heroísmo só colocou um alvo nas costas dela.

— Edward, controle-se. — O Dr. Cullen ergueu as mãos em um gesto de pacificação, mas seus olhos dourados estavam fixos em Rose. — Ninguém aqui deseja prejudicar a Srta. Swan.

— Mas é exatamente isso que acontece quando vocês se envolvem com humanos! — Rose retrucou. — Você acha que ela sobreviveria ao que você realmente é? Ao seu mundo? Você é um perigo.

Edward sorriu então, um flash de dentes brancos demais.

— Não seja hipócrita, Dra. Potter. — Seu olhar endureceu. — Você também é um perigo e todos nós sabemos disso.

— Eu não sou a porra de um vampiro. — Ela cuspiu, avançando meio passo.

— Mas não é exatamente humana, é? E ninguém sabe exatamente o que você é…

— Edward, chega! — O Dr. Cullen interveio, posicionando-se entre eles com a velocidade sobrenatural que Rose nunca conseguia acompanhar. — Estamos todos do mesmo lado aqui.

— Estamos? — Rose questionou ironicamente. — Eu trabalho com você há anos, Dr. Cullen, e o respeito muito pelo seu trabalho. Mas eu não gosto e não confio na sua espécie. Então, não pense, nem por um segundo, que nós estamos do mesmo lado. Meu lado é proteger a minha família.

O silêncio que se seguiu foi tão denso que Rose podia ouvir seu próprio coração batendo alto dentro do escritório.

— Não sei qual é o seu problema, você nem gosta dela. — Edward murmurou, quebrando o silêncio.

— O meu relacionamento com a minha prima não é da sua conta, Sr. Cullen. — Ela respondeu friamente. — E mesmo que eu a odiasse, preferia mil vezes vê-la viva e humana do que morta, ou transformava numa de vocês.

Edward avançou com um rosnado, mas o Dr. Cullen interceptou seus movimentos.

— Eu tenho certeza de que podemos chegar a um acordo, Dra. Potter.

— Nós já temos um acordo, Dr. Cullen. Inclusive, devo lembrar que não apenas o nosso acordo está em vigor, como também o tratado de 1936. — Seus olhos pularam para Edward. — E sabemos o que acontece se os vampiros quebram tratados em território Quileute, não é?

— Não há necessidade de envolver os Quileutes nisso, Dra. Potter. — O Dr. Cullen ficou subitamente imóvel. — Nenhum de nós tem a intenção de quebrar acordos. Edward agiu por instinto protetor, não por desejo de expor a nossa natureza ou causar qualquer mal para a Srta. Swan.

— Então proteja ela mantendo distância.

— Nada vai acontecer. — Edward tentou retrucar, mas o Dr. Cullen o segurou com mais força.

— Sim, até que ela sangre e você perca o controle.

— Certamente não precisamos decidir nada agora. — Dr. Cullen falou novamente, a voz suave e controlada. — Edward parece certo do silêncio da Srta. Swan. Podemos esperar e ver o que vai acontecer, Dra. Potter. Você tem a minha palavra que iremos embora de Forks no minuto em que sua prima estiver correndo perigo.

Rose encarou os olhos do Dr. Cullen por alguns longos segundos, então assentiu e, sem esperar uma resposta, abriu a porta com um movimento brusco e saiu do escritório sem olhar para trás.

Um estalo de raiva rastejava sob a sua pele, enquanto ela caminhava pelos corredores de volta para a recepção. Idiota. Que diferença fazia o fato de Edward tê-la salvado hoje? Ou o quanto ele acreditava que podia se controlar? Bella ainda era apenas uma humana.

Frágil, efêmera, absurdamente vulnerável.

O que aconteceria quando o cheiro dela se tornasse irresistível? Eles podiam brincar de serem civilizados o quanto quisessem — mas Rose sabia a verdade. Uma vez vampiro, sempre vampiro.

Rose respirou fundo, os dedos tremendo levemente.

Contar a Bella a verdade seria condená-la. Mentir só a deixaria mais desconfiada. E testar afastá-la à força, faria ela correr direto para ele.

E se tudo desse errado, ainda havia o fato de que isso quebraria completamente o coração do tio Charlie.

O sol da manhã bateu em seu rosto quando ela empurrou a porta do hospital, respirando o ar livre. Ela suspirou feliz quando viu Paul chegando ao estacionamento, a testa franzida em preocupação que logo se transformou em alívio ao vê-la

Não havia escolha fácil. Nenhuma solução perfeita. Mas enquanto ela esperava, pelo menos sabia que tinha Paul ao seu lado.

 

*

 

Rose não tinha certeza se alguma coisa mudou depois do acidente.

Bella ainda era a mesma adolescente tímida e retraída, sempre perdida em pensamentos, com um olhar inquisitivo e uma atenção aguçada em todos os detalhes. No entanto, ela também passou a observar Rose atentamente, como se procurasse alguma pista, uma solução para algo. Como se houvesse algo ali que ela não tinha percebido, mas que talvez Rose tivesse a resposta.

Rose ignorou tudo isso, ciente de que Bella ainda falava com Edward — mesmo com as garantias do Dr. Cullen de que ele nunca a machucaria —, e que ela ainda estava tentando adivinhar o que havia acontecido no estacionamento naquele dia. Ela passava a maior parte do tempo concentrada como se estivesse montando um quebra-cabeça, juntando pelas que não deveriam existir, e Rose forçava o Dr. Cullen — especialmente com olhares duros — a fazer com que o seu filho ficasse longe de Bella.

Era óbvio que isso não estava surtindo efeito.

— Você vai sair hoje? — Tio Charlie perguntou naquela manhã, enquanto eles aproveitavam a sua rara folga para tomar café da manhã juntos.

— Sim, vou para La Push com o Paul.

— É mesmo? — Bella ergueu os ombros com interesse. — O pessoal da escola me chamou para ir em La Push. Você poderia dar uma carona para alguns de nós?

— Claro. — Rose concordou. — Eu te deixo lá e você volta com eles, pode ser?

O sol da manhã banhava a rua do lado de fora, em um raro dia brilhante. Elas caminharam lado a lado juntas até o carro de Rose, depois do café da manhã.

— Rose, você conhece um lugar chamado Great Rocks ou alguma coisa assim? Acho que fica ao sul de Mount Rainier. — Bella perguntou casualmente, depois de alguns minutos em trânsito.

— Já ouvi falar… Por quê?

Ela deu de ombros, os dedos traçando padrões no vidro.

— Um pessoal estava falando de acampar lá.

Rose estreitou os olhos. Nenhum morador de Forks acampava em Great Rocks.

— Não é um lugar muito bom para acampar. — Ela respondeu, curiosa pela pergunta estranha. — Tem ursos demais. Muita gente vai lá na temporada de caça.

— Ah. — Ela murmurou, um brilho de curiosidade em seus olhos. — Talvez eu tenha entendido o nome errado.

Ou talvez você esteja fazendo perguntas demais , Rose pensou, mas não disse nada. O silêncio que se seguiu foi revelador. Bella não estava interessada em nada disso, ela só estava colhendo pistas.

Rose estacionou no local combinado, e os amigos de Bella entraram no carro com sorriso de orelha a orelha, brincando uns com os outros. Rose limitou-se a um aceno seco, os dedos batendo no volante enquanto acelerava em direção a La Push.

— Você vai ficar bem aí? — Rose perguntou, quando todos desembarcaram na praia, seu olhar fixo em Bella enquanto os outros já corriam para a areia.

— Sim, eu estou bem.

Rose engoliu a vontade de perguntar o que se passava na cabeça de Bella.

— Claro.

Estava prestes a se virar quando um garoto magricela com óculos de aro grosso se aproximou hesitante.

— Você é a Primrose Potter, né?

— Sim, eu sou.

— Eric Yorkie. — Ele completou, estendendo a mão. — Irmão mais novo de Zoe.

— Ah, claro! — O riso que escapou de Rose foi genuíno. — Você é a cara dela aos quinze anos. Um prazer em conhecê-lo. Como ela está em Seattle?

— Está ótima, ela sempre fala muito de você. — Eric respondeu, os olhos brilhando de alegria. — E ela sempre reclama que o estágio separou vocês duas.

— Ela sempre foi dramática. — Rose sacudiu a cabeça com uma risada. — Diga para ela que meu telefone ainda funciona, sabe?

Eric acenou com um sorriso.

— Te vejo mais tarde, Bella. — Rose acenou, quando viu Paul esperando por ela na praia. — Me ligue se precisar de algo.

Paul a alcançou no meio do caminho e a puxou para seus braços.

— Como você está, querida? — Seu sopro quente acariciou sua têmpora.

— Estou bem. — Rose murmurou, deixando a cabeça repousar contra seu peito por um segundo.

Paul afastou-se o suficiente para estudar seu rosto, seus polegares traçando círculos sob seus olhos.

— Você parece cansada. Ainda se preocupando com a Bella?

— Infelizmente sim, o tempo todo. — As palavras saíram como uma confissão. — Ela estava perguntando sobre Great Rocks hoje, Paul.

Ele ficou rígido por um instante antes de soltar um suspiro profundo.

— Você não pode protegê-la, Prim. — Suas mãos apertaram a cintura dela. — Se ela estiver determinada em saber sobre os Cullen, você sabe que não pode impedi-la.

— Eu sei disso. Mas odeio que a curiosidade dela possa colocar o tio Charlie em perigo. — Seus olhos encontraram os de Paul, buscando por uma solução que nem ele tinha. — Ela pode causar uma grande confusão. Ou os Cullen podem decidir que ela sabe demais.

Paul puxou-a contra si novamente, seu queixo repousando em seu cabelo.

— Nós protegemos os nossos. — Ele sussurrou, os lábios movendo-se contra seu couro cabeludo. — Se isso acontecer, o tratado estará encerrado, você sabe disso.

Rose suspirou, sentindo os ombros caírem levemente com a sensação de segurança que Paul lhe passava.

— Tudo bem.

— Venha, meu amor. — Disse, a voz mais suave agora. — Vamos caminhar um pouco, depois podemos ir para a minha casa. O que você acha?

— Eu acho perfeito.

Rose deixou que ele a guiasse pela areia, os dedos entrelaçados e a espuma do mar beijando seus pés, enquanto eles sorriam um para o outro, trocando histórias e carinhos.

Antes de irem embora, seus olhos se voltaram para trás, onde agora Jake, Embry e Quil se aproximavam dos amigos de Bella. Mas ela já estava longe demais para acenar.

Paul a puxou suavemente para perto, e ela sorriu, ignorando todo o resto.

Notes:

Eu sei que parece que estamos um pouco centrados em Bella, mas algumas coisas precisam acontecer para a história andar; e tudo é relevante.

Então, o relacionamento entre Paul e Rose está em segunda mão por um breve momento, mas depois vamos focar novamente nele.

Parece estranho que Rose queira proteger Bella? Eu penso que não. Não gostar de Bella, não significa que ela queira vê-la morta ou vampira, o que machucaria muito o Charlie, por mais que ela ache a curiosidade de Bella desnecessária e perigosa.

Chapter 33: TRINTA E TRÊS

Chapter Text

Dias haviam se passado desde a viagem a La Push, mas Bella parecia ainda mais estranha, mais distante, mais absorta em si mesma. Passava horas trancada no quarto, mergulhada em livros ou digitando algo no computador com uma concentração quase febril. Nada incomum, visto que ela já estava assim antes mesmo da viagem à praia, não fosse por um brilho em seus olhos — como se tivesse descoberto algo importante.

Naquele dia, Bella foi para Port Angeles com Jessica e Angela depois da escola, supostamente para ajudar na escolha de vestidos para o baile de formatura. Rose aproveitou a ausência dela em casa para conversar com o tio Charlie.

— Você sabe que esse interesse dela está indo longe demais.

Tio Charlie suspirou, esfregando a mão nos olhos.

— Talvez você devesse contar tudo para ela, Rose.

— Eu contei para você, porque sabia que você seria maduro sobre isso, tio Charlie. — Rose baixou a voz, embora soubesse que estavam sozinhos. — Se eu contar para Bella que eu era uma bruxa e que a cidade está cheia de vampiros, só vai alimentar a curiosidade dela.

— Eu não gosto disso tanto quanto você, mas acho pior mantê-la no escuro.

Rose apertou os lábios, hesitando antes de soltar o que realmente a preocupava.

— Ele também está interessado nela.

Tio Charlie congelou, o olhar afiado.

— O que você quer dizer?

— Naquele dia, no hospital, Edward Cullen estava lá, porque salvou Bella da van. E, claramente, o Dr. Cullen acredita que ele é capaz de se controlar… por causa de algum sentimento que ele nutre por Bella.

O silêncio pesou entre eles. Tio Charlie fechou os olhos por um momento, como se estivesse exausto.

— E o quê? Há um vampiro apaixonado pela minha filha?

Rose esfregou as mãos no jeans, enquanto buscava as palavras certas.

— Eu não sei se consigo chamar isso de amor, paixão… ou o que seja, tio Charlie. — Ela suspirou pesadamente. — Mas eu não quero preocupar você. Obviamente há alguma verdade nas palavras do Dr. Cullen sobre eles serem pacíficos, ou já teríamos notícias de mortes ou desaparecimentos. E não houve nada nos últimos anos. Mesmo assim eu não confio completamente neles.

— Você tem razão. Talvez você possa conversar com Bella, então?

Rose hesitou. Seus dedos se apertaram em torno do próprio braço, as unhas deixando marcas brancas na pele. Ela realmente não queria ter que falar com Bella.

É claro que nos últimos dias elas haviam se dado bem. Quer dizer, se dar bem era um exagero. Não eram exatamente inimigas, mas tampouco poderiam ser consideradas amigas. No máximo, haviam alcançado uma convivência pacífica.

Bella era tudo o que Rose desprezava: teimosa como uma mula, com uma curiosidade doentia que ultrapassava todos os limites do bom senso, e um egoísmo velado que se manifestava na forma de querer se jogar de cabeça no perigo sem pensar em quem ficaria para lidar com as consequências.

Cada vez que ela a via se aproximando dos Cullen, cada vez que observava aqueles olhos escuros brilhando com descobertas perigosas, Rose sentia um frio na espinha.

Mas quando ela ergueu os olhos e viu a expressão do tio Charlie — aquela mistura de cansaço, medo e preocupação paternal —, algo dentro dela cedeu. Não era por Bella. Nunca seria por Bella. Mas por ele.

— Eu… — Ela começou, engolindo em seco. — Eu vou falar com ela. — As palavras saíram como se fosse farpas em sua garganta. — Mas não espere que ela me ouça. Bella sempre foi teimosa demais para o seu próprio bem.

Tio Charlie esticou o braço e a envolveu em um abraço apertado.

— Obrigado, querida. É tudo o que eu peço.

Rose permitiu-se afundar no abraço por um breve momento antes de se afastar, os olhos sérios.

— Mas ela não pode saber que você está por dentro disso. E os Cullen muito menos. — Seu dedo indicador apontou para o peito dele com ênfase. — Quanto mais eles acharem que você é ignorante, mais seguro você fica.

Rose observou tio Charlie pronto para discutir, mas ele aceitou a condição com um resmungo e eles voltaram a atenção para a Roda da Fortuna que passava na televisão.

Ela não sabia o porquê, mas tinha a sensação que nenhuma conversa seria o suficiente para Bella.

 

*

 

A noite já havia chegado há algumas horas quando Rose, imersa em um livro sobre patologia clínica, ouviu o leve ronco de um motor se aproximando.

Seus dedos pousaram na página sobre doenças hematológicas, os olhos desviando para a janela. Não era a picape de Bella — aquela monstruosidade já teria anunciado a sua chegada quilômetros de distância, acordando toda a vizinhança. Era um Volvo prateado.

Rose franziu a testa, fechando o livro devagar. Era óbvio quem estava dirigindo.

Bella saiu do carro com movimentos desajeitados, como sempre, mas havia algo diferente nela — um brilho nos olhos, uma leve cor nas bochechas. Edward permaneceu no veículo, seus dedos pálidos ainda envoltos no volante, mas seu olhar dourado seguiu Bella até a porta com uma intensidade que fez Rose sentir um frio na nuca.

Bella entrou na casa, sem notar Rose sentada na beira da janela. E alguns segundos depois, com um arranque suave, o carro desapareceu na noite.

Imediatamente a raiva subiu como fogo nas veias de Rose antes mesmo que ela percebesse que estava de pé. O livro caiu no chão com um baque surdo, mas ela nem se importou — os dedos já se apertavam em punhos, as unhas cravando-se nas palmas das mãos.

Sem pensar, atravessou o corredor com passos silenciosos até o quarto de Bella. A porta estava entreaberta, e ela entrou como uma tempestade, fechando-a com um clique audível atrás de si.

Com um breve olhar para a cama, Rose sentiu seu coração acelerar. Havia um livro ali sobre as lendas Quileutes, aberto na página dedicada aos Frios. O computador, ainda ligado em sua mesa, exibia uma tela com uma pesquisa sobre vampiros. Um caderno ao lado com esquemas, teorias, anotações.

Rose respirou fundo e cruzou os braços esperando.

Foi então que a porta do quarto rangeu atrás dela.

— Rose? — Bella parou no limiar, os olhos arregalados de surpresa.

Rose não deu tempo para explicações.

— O que diabos você pensa que está fazendo? — A voz saiu em sibilo irritado, baixa o suficiente para o tio Charlie não ouvir, mas ainda dura e afiada.

Bella piscou, confusa.

— Do que você está…

— Pare. — Rose avançou um passo, puxando Bella para dentro do quarto e fechando a porta. — Você acha que eu não sei o que ele é?

Bella empalideceu. Seus lábios se abriram em choque.

— Como você sabe disso?

— Como eu sei disso? É isso que você pergunta? Você tá louca, Bella?

— Ele não vai me machucar, Rose.

— Sério? E o que acontece na próxima vez que você tropeçar e machucar o joelho?

Bella cruzou os braços, os queixo erguendo-se em teimosia.

— Ele já esteve perto de mim antes. Nunca fez nada.

— Por enquanto. — Rose ergueu as mãos, exasperada. — Você sabe quantas pessoas provavelmente já disseram a mesma coisa que você antes de acabarem mortas?

— Edward é diferente.

— Todos eles são! — Rose quase gritou, mas conteve-se a tempo, baixando novamente a voz. — Até o dia em que não são mais. E aí, Bella? O que acontece quando ele escorregar? Você acha que ele vai chorar no seu funeral? Porque o tio Charlie certamente vai chorar no seu. Você já pensou nisso?

Bella estremeceu, então ficou em silêncio por um momento, mas então seus olhos se estreitaram.

— Você não sabe disso. Os Cullen são diferentes, eles não…

— Não o quê? — Rose interrompeu, a voz cortante. — Não bebem sangue humano? Ah, é claro, porque um par de olhos dourados apaga séculos de instinto assassino. Você não faz ideia do perigo que está trazendo para dentro dessa casa.

Bella tremeu novamente, mas sua voz saiu firme.

— Edward nunca faria mal a vocês.

— Não é somente ele que me preocupa. — Rose baixou a voz para um sussurro cruel. — É o que ele atrai. Você acha que existem somente os Cullen no mundo? Você não acha que outros vampiros podem aparecer por aí? E o que você acha que eles vão pensar de um clã de vampiros brincando de casinha com uma humana?

Os olhos de Bella se arregalaram levemente.

— Ele… ele vai me proteger.

— Até quando, Bella? — Rose cuspiu as palavras. — Até a próxima vez que você cortar um dedo? Até algum vampiro mais forte decidir que você é um bom lanchinho?

Bella abriu a boca para responder, mas Rose não deu chance.

— Eu deveria contar para o tio Charlie e mandar você de volta para Phoenix. — Ela viu o pânico cruzar o rosto de Bella e aproveitou. — Mas eu não vou. Porque você vai parar com isso. Hoje.

— Você não entende… — Bella murmurou, os olhos agora cheios de lágrimas teimosas. — Eu o amo.

Você o ama? — Ela inclinou a cabeça, os olhos estreitando-se. — Você o conhece ele há o quê? Dois meses? Três?

— Você não entende. — Bella repetiu. — Ele é tudo pra mim.

— Você não sabe nada sobre amor, Bella. Isso é obsessão. Você está fascinada por algo que não entende.

Bella enxugou as lágrimas com força, o queixo tremendo.

— Você não pode decidir o que eu sinto.

— E você não pode decidir que vai sobreviver a um relacionamento com um vampiro! — Rose bateu o pé no chão, fazendo o livro pular na cama.

— Não depende de você, Rose. — Bella disse, com a voz mais baixa, mas firme.

Rose deu um passo à frente, com as mãos tremendo de fúria mal contida.

— Você está brincando com fogo, Bella.

— Ele não vai me machucar. — Bella não recuou. Seus olhos brilhavam com uma determinação que fez Rose hesitar por uma fração de segundo. — E se algo acontecer, eu sempre posso… me transformar.

Rose sentiu seu coração parar na garganta. Por um momento, ela apenas olhou para Bella, como se não tivesse ouvido direito.

O quê?

Bella respirou fundo, os dedos se apertando na barra da sua camisa.

— Edward me explicou. Se… se algo der errado… comigo… — Ela engoliu em seco. — Eu posso me tornar como ele.

Rose sentiu as pernas amolecerem. Ela recuou um passo, como se tivesse levado um soco no estômago.

— Então, esse é o seu plano? Você está falando sério? — Seu rosto estava pálido, os lábios tremendo. — Você prefere morrer do que viver sem ele? É isso?

Bella olhou para baixo, mas Rose já tinha sua resposta.

O silêncio pesou entre elas até Bella quebrá-lo:

— Você ama o Paul?

— O quê? O que isso tem a ver, Bella?

— Você não faria o mesmo para ficar com ele?

Rose sentiu o ar falhar em seu peito.

— Eu não preciso morrer para estar com o Paul.

— Mas e se você precisasse? — Bella insistiu.

Rose sacudiu a cabeça, horrorizada.

— Ele nunca pediria isso de mim…

— Rose…

— O que você quer que eu diga, Bella? — Rose explodiu, avançando um passo novamente. — Que está tudo bem, então? Que eu simplesmente concordo com você? Você tem algum plano além desse devaneio? Conhece um vampiro por três meses e já quer virar um? Já pensou no tio Charlie? Na sua mãe? No seu futuro?

— Eu vou dar um jeito. — Ela murmurou, mas sua voz falhou.

Rose a encarou perplexa, sem conseguir encontrar palavras para discutir com Bella.

— Eu não consigo nem olhar pra você agora.

Rose então se virou, passando por Bella com movimentos bruscos. A porta do quarto se abriu com um estrondo quando Rose a puxou, batendo contra a parede com força suficiente para fazer os quadros tremerem.

Seus passos ecoaram pelo corredor, rápidos e pesados, os ombros tão tensos que doíam. Quando finalmente alcançou seu próprio quarto, Rose fechou a porta atrás de si com um clique suave e se jogou na cama, os olhos grudados no teto, as mãos trêmulas.

Não deveria ter sido assim.

Rose não acreditava que Bella aceitaria as suas palavras sem questionar — afinal, ela sabia o quanto a garota era teimosa. Mas isso era pior do que ela imaginava.

Ela não estava apenas disposta a correr o risco de morrer, mas queria se tornar um deles.

Bella estava disposta a jogar sua vida fora, seu futuro, seus amigos, até mesmo os seus pais, sua própria família, por um garoto que ela conhecia há meros meses.

Mas Bella sempre foi assim. Sempre pensando apenas em si mesma. Primeiro, indo embora de Forks sem olhar para trás, porque ela não gostava da cidade. Depois nunca se sujeitando a retornar uma das ligações do tio Charlie, porque ela não tinha tempo. E agora? Se jogando de cabeça nessa obsessão com os vampiros da cidade, porque ela estava apaixonada, como se tudo não passasse de um conto de fadas.

Rose virou-se de lado, as mãos cerradas.

Ela nem poderia contar isso ao tio Charlie. No máximo, avisá-lo de que ela conversou com Bella e não resultou em nada. Se ela contasse a ele, ele tentaria impedir Bella sem pensar duas vezes. E então os vampiros descobririam que ele sabia.

Isso não era apenas sobre Bella. Rose tinha que proteger o tio Charlie, não podia arriscar a sua segurança.

Por outro lado, se Rose ficasse parada, assistindo Bella caminhar para o abismo como se nada importasse, então seria pior. Um dia tio Charlie descobriria que ela sabia de tudo, mas escolheu não fazer nada.

O seu peito doeu como se algo dentro dele estivesse se partindo.

Ela estava encurralada.

O travesseiro sob o seu rosto ficou úmido antes que ela percebesse que estava chorando — lágrimas silenciosas de raiva e impotência.

E tudo porque Bella nunca pensava em mais ninguém além de si mesma.

Com as mãos ainda trêmulas, Rose pegou o celular e discou o número rapidamente. Ela respirou fundo, os dedos apertando o telefone com força.

— Paul? Precisamos conversar.

Chapter 34: TRINTA E QUATRO

Chapter Text

O copo de vidro escapou das mãos de Rose, partindo-se em três pedaços no chão da cozinha. Bella nem piscou. Nem uma palavra. Nem mesmo arriscou um olhar — era como se Rose nem existisse.

Tinha sido assim há dias: como se Rose tivesse cometido um crime ao tentar alertá-la sobre o perigo que estava bem debaixo do seu nariz, ou sobre as consequências das suas próprias decisões.

Era insuportável.

Rose conseguia sentir o rancor subir pela sua garganta, enchendo a sua boca com um gosto ácido. Ela odiava a maneira como Bella se agarrava à negação com tanta força, como se o amor justificasse qualquer risco, qualquer entrega cega. Como se fosse tão fácil largar toda a sua vida por causa de um garoto — nem mesmo um garoto de verdade.

Mas no fundo, mais do que a raiva, era a pena que a consumia.

Porque Bella não estava apaixonada — estava desesperada. Ela não passava de uma adolescente insegura, ansiosa para encontrar algo — qualquer coisa — que lhe desse sentido, que a fizesse sentir que pertencia a algum lugar. Agarrando-se ao primeiro garoto que lhe deu atenção com um náufrago a um pedaço de madeira podre, convencida de que ele era a sua salvação, quando tudo o que ele oferecia era um abismo disfarçado de paraíso.

No final das contas, ela carregava nas costas o medo de ser comum.

E Edward Cullen, com o seu rosto perfeito e as suas garantias silenciosas de eternidade, tinha se tornado a resposta mágica para o que ela queria — a promessa de ser especial, escolhida, diferente.

Não era maduro, nem mesmo era uma escolha consciente. Era a sede faminta de alguém que não conhecia a si mesma — e que, por isso, não tinha ideia do que estava disposta a sacrificar para se sentir vista.

Agarrar-se ao desconhecido parecia mais fácil para Bella do que encarar a própria fragilidade. Do que admitir que ela era só uma garota, um ser humano, tropeçando no escuro, sonhando com imortalidade como se fosse um conto de fadas.

— Está tudo bem, querida?

A voz do tio Charlie arrancou Rose de seus pensamentos, trazendo-a de volta à cozinha, aos cacos de vidro espalhados sob seus pés.

— Hum? Ah, sim, tio Charlie. O copo só… escorregou.

Mas ele não se moveu. Ficou ali, parado no batente da porta, os olhos estreitados em um misto de preocupação e desconfiança. Ele sabia. Não tudo, claro. Mas sabia que quando Rose disse “tentei falar com ela, mas Bella não me ouviu” , havia muitas mais coisas não ditas.

Rose baixou os olhos, fingindo concentrar-se nos cacos de vidro que recolhia, enquanto sentia um nó se formar na garganta. Como explicar que Bella — sua única filha — preferia trocar a sua família, amigos, futuro e até a própria alma, pela eternidade com um garoto que ela conheceu há três meses? Que ela não queria ouvir, porque estava obcecada por um amor doentio? Que ela estava disposta a abraçar promessas perigosas como se fosse contos de fadas?

Tio Charlie suspirou, pesado, mas não insistiu. Em vez disso, apenas pegou a vassoura no canto e começou a varrer os pedaços menores, em silêncio. Quando terminaram, caminharam juntos para a sala. Bella permaneceu calada na mesa da cozinha.

— Você vai sair? — Ele perguntou.

— Sim. Vou me encontrar com os amigos do Paul na casa da Emily.

Tio Charlie a puxou num abraço repentino.

— Fique segura, querida. — Ele a beijou em sua têmpora. — Não se preocupe, vai ficar tudo bem.

Nenhum dos dois acreditava nisso, mas era mais fácil fingir.

Fingir que Bella já não estava perdida para eles, que Rose não era impotente demais para consertar e que o tio Charlie não estava estressado, caminhando no escuro, tentando adivinhar qual era o problema.

Era exatamente por isso que Rose estava indo naquela noite para La Push.

Os anciãos haviam decidido que era hora de falar sobre Bella, e Rose deveria estar lá como parte da matilha — mesmo que ela mal tivesse contato com Sam, Jared ou Emily.

Paul já a esperava na varanda quando Rose estacionou em frente à casa de Emily. Antes mesmo que ela desligasse o motor, ele já descia os degraus com passos largos.

— Oi, querida. — Seus braços fortes a envolveram num abraço que quase a tirou do chão. — Eu iria te buscar.

Rose afundou o rosto no peito dele por um segundo, respirando fundo.

— Eu queria sair mais cedo. — Ela confessou, a voz abafada contra o tecido macio de sua camisa. — O clima não está bom em casa.

Paul apertou-a com mais força, como se pudesse esmagar toda a angústia que ela carregava,

— Sinto muito, amor. — Murmurou contra seus cabelos.

Ele a puxou para dentro de casa, direto para a cozinha. O cheiro de muffins de mirtilo se misturava ao aroma de chocolate quente. Na mesa larga de madeira desgastada, o resto do grupo já estava reunido. Sam ocupava a cabeceira da mesa, Jared mastigava um muffin com expressão concentrada, os cotovelos apoiados na mesa, e Emily circulava entre o fogão e os convidados trazendo pilhas de comida. Do outro lado da mesa, os anciões da tribo já estavam acomodados: tio Harry, tio Billy e o Velho Quil — Rose não o conhecia formalmente, mas sabia que ele era o bisavô de Quil.

— Oi, tio Billy. — Rose se aproximou e deu um abraço rápido no homem, beijando sua face enrugada. — Tá tomando seus remédios direitinho?

— Eu estou bem, garota. — Tio Billy respondeu, dado uma palmadinha no próprio peito. — Forte como um cavalo.

Rose bufou, divertida.

— Continue assim, então.

Ela se virou para Harry Clearwater, que observava a cena com um sorriso.

— E você, tio Harry? Tudo em ordem?

— Nada a reclamar, garota. — Ele respondeu, com os olhos escuros cheios de simpatia. — A Sue vive perguntando de você. O Seth também.

Rose sentiu um aperto no peito. Fazia meses que não pisava na casa dos Clearwater, desde que as coisas tinham ficado estranhas com Leah.

— Fala pra Sue que eu apareço lá essa semana. — Prometeu, sabendo que devia essa visita há tempos.

Seu olhar então encontrou o do Velho Quil, sentado no canto. O homem mais velho da tribo observava tudo com aqueles olhos claros que pareciam ver demais.

— Bom te ver, Sr. Ateara — cumprimentou, respeitosa.

O velho bufou, fazendo questão de bater o cajado no chão.

— Nada disso. Eu sou o tio Quil também.

A mesa inteira explodiu em risadas. Tio Harry revirou os olhos para o Velho Quil.

— Ah, pelo amor de Deus, seu velho invejoso…

Vovô Quil, você quer dizer? — Tio Billy murmurou, fingindo inocência enquanto roubava um muffin do prato do velho.

— É claro que sim, tio Quil. — Rose assentiu, enquanto se acomodava ao lado de Paul na grande mesa, ignorando como os três velhos pareciam três adolescentes brigando entre si.

— E aí, Dra. Rose. — Jared puxou assunto, mastigando um muffin. — Você tá bem vivendo na mesma casa que a amante de sanguessugas ?

Rose franziu a testa.

— O quê?

— É o apelido que ele inventou para a Bella. — Paul sussurrou em seu ouvido, fazendo cócegas em sua pele.

Rose deu uma risada.

— Bem, está um pouco tenso agora, depois que eu a confrontei há alguns dias. Mas está tudo bem.

— Relaxa, se der merda, o Paul te adota. Vocês podem brincar de "médico e paciente" quando quiserem...

Paul não deixou terminar. Com um movimento rápido, deu um tapa na nuca do amigo sobre a cabeça de Rose.

— Cala a boca, seu idiota.

Foi quando Sam resolveu entrar na conversa, interrompendo a briga.

— Oi, Rose.

— Sam. — Ela respondeu no mesmo tom, sem saber muito bem o que acrescentar.

Ela ainda não tinha um bom relacionamento com Sam. Ela o conheceu quando ele namorava com Leah, mas mesmo naquela época eles não eram exatamente amigos. Depois que todo o drama entre Sam, Emily e Leah aconteceu, ela se sentiu mal pela amiga e nunca conseguiu perdoá-lo de verdade.

Mesmo entendendo o imprint e encontrando com toda a matilha há algumas semanas, Rose ainda achava todas essas interações completamente constrangedoras. Da última vez, depois de uma hora de conversa fiada, eles haviam inventado uma desculpa e fugido para a casa de Paul.

Emily surgiu no meio da conversa, colocando uma xícara fumegante de chocolate na frente de Rose.

— Pra você. — Ela sorriu, tímida.

— Valeu. — Rose respondeu, sem realmente saber o dizer para Emily também.

Tio Billy bateu a mão na mesa, chamando a atenção de todos.

— Bem, já que estamos todos aqui, vamos ao que interessa.

Sam, sentado à cabeceira, cruzou os braços.

— Talvez a Rose devesse começar nos contando sobre a sua última conversa com a Bella.

Todos os olhos se voltaram para ela de uma só vez. Rose sentiu a mão de Paul apertando a dela sob a mesa.

— O problema começa antes dessa conversa, na verdade. — Ela começou, limpando as mãos suadas nas calças. — Vocês sabiam que Edward salvou Bella de um acidente mês passado?

Tio Harry franziu a testa.

— Sabíamos do acidente, mas não dessa parte.

— Eu estava de plantão quando Bella chegou na emergência. — Rose explicou. — Um aluno derrapou no gelo e quase a atropelou com uma van. Edward, que estava do outro lado do estacionamento, apareceu do nada e… bem, ele parou o veículo com a mão na frente da Bella.

A mesa explodiu em murmúrios. Emily levou a mão à boca, chocada.

— Bella já tinha uma curiosidade pelos Cullen, mas depois de ver aquilo… — Rose fez uma pausa. — Bem, foi como acender um pavio.

— O que você quer dizer? — Tio Billy inclinou-se para frente.

— Ela ficou obcecada em entender como ele fez aquilo. Como alguém conseguiria se mover tão rápido, tão forte…

Sam soltou um palavrão. O Velho Quil bateu o cajado no chão silenciando a mesa.

— E então?

Rose engoliu em seco.

— Eu confrontei os Cullen no hospital.

Paul ficou tenso ao seu lado, mas ela continuou::

— Pedi que se afastassem dela. Que mesmo tendo salvado sua vida, isso só fez Bella ficar mais fascinada. Desde então ela passava horas trancada no quarto, lendo livros antigos e fazendo anotações...

— E como você acha que ela descobriu a verdade? — Tio Billy perguntou, os olhos escuros cheios de preocupação.

Jared não se conteve:

— Aposto que aquele vampiro leitor de mentes contou tudo pra ela!

— Na verdade, eu encontrei um livro sobre as lendas quileutes no quarto dela — Rose admitiu, e o silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.

Velho Quil fechou os olhos, como se visse o desastre se desenrolando.

— Quem poderia ter citado as lendas para ela? Para que ela sentisse interesse em comprar um livro sobre isso?

O olhar de Tio Billy encontrou o de Rose, e um entendimento silencioso passou entre eles. O velho sacudiu a cabeça lentamente, os lábios formando um nome:

— Jake. — Tio Billy sussurrou, balançando a cabeça em decepção. — Ele não acredita nas lendas. Tenho certeza de que ele contou tudo para Bella.

— E assim ele deu na mão dela todas as peças do quebra-cabeça. — Paul acrescentou.

— Exatamente. — Rose assentiu, os dedos agora apertando involuntariamente a caneca de chocolate que já esfriara. — Ele deve ter contado como se fossem histórias de terror, mas para Bella…

Tio Harry interrompeu.

— E como você sabe que ela descobriu?

— Ela chegou em casa no carro dele.

A sala explodiu em caos. Jared e Sam pareciam enojados, enquanto os anciões murmuravam palavras entre si que Rose realmente não entendia.

O silêncio que se seguiu foi cortado pelo som do cajado de Velho Quil batendo no chão com força.

— Conte sobre a sua última conversa com a Bella.

Rose sentiu a garganta apertar.

— Eu a confrontei em seu quarto, disse que sabia o que eles eram e que era um perigo para Bella e para o tio Charlie… —

— E pra você também! — Paul interrompeu, seu rosto normalmente calmo agora distorcido por uma preocupação feroz. Sua mão encontrou a dela sob a mesa, os dedos se entrelaçando com força quase dolorosa.

Rose respirou fundo antes de continuar:

— … Ela disse que eles eram diferentes. — Ela fez uma pausa, o coração batendo forte contra as costelas. — Que nunca a machucaram, que se alimentavam de animais e que não corriam perigo. Mas o problema é que… 

— Qual o problema, querida? — Tio Billy insistiu.

— Ela disse que se algo desse errado, então ela viraria um deles.

O efeito foi instantâneo. Todos ficaram em silêncio, em diferentes misturas de horror.

Sam foi o primeiro a falar, sua voz tão fria quanto aço.

— Se isso acontecer, então o tratado estará quebrado.

Rose sentiu o estômago embrulhar, mas forçou-se a responder.

— Ela não sabe sobre o tratado.

— Isso não é desculpa. — Sam retrucou, os olhos brilhando sobrenaturalmente.

— Não estou tentando dar desculpas! — Rose explodiu.

— Sam! — Paul alertou, rosnando para Sam. Rose segurou firmemente as mãos dele.

— Eu só estou dizendo que Bella não entende as consequências das suas ações. — Continuou Rose, a voz trêmula de raiva contida. — Ela está vendo tudo sob óculos cor de rosa. Para ela, tudo isso não passa de uma história de contos de fada.

— Bella é maior de idade. Se ela escolher se tornar um deles , então ela escolhe morrer junto com eles.

A frieza da declaração fez até Paul estremecer. Rose sentiu o ódio subir como bile na garganta — ódio por Bella, por sua estupidez, por seu egoísmo. Mas nenhum ódio a faria desistir tão facilmente.

— Então, é isso? — Ela desafiou, os olhos ardendo. — Você vai o quê? Lavar as mãos e deixar que os vampiros façam o que quiser com a humana que está na sua terra?

Sam não recuou um centímetro.

— Não é nossa função salvar humanos de suas próprias decisões estúpidas.

— Não? — Rose ergueu uma sobrancelha. — E o que você vai fazer quando a próxima humana se interessar por um dos vampiros? Quantas Bellas serão necessárias até que você admita que precisa tomar uma decisão proativa em vez de esperar esse tratado virar pó?

Os olhos de Sam brilharam perigosamente.

— Você não tem a menor ideia do que está falando, Rose.

— Sam, chega! — Paul rosnou, segurando Rose com um braço protetor em sua cintura.

— Eu estou tão satisfeita quanto você, Sam. — Rose retrucou. — Eu odeio o fato dela ser tão egoísta e fazer o tio Charlie sofrer, mas isso não significa que eu seria capaz de virar as costas completamente.

— Ela escolheu se tornar uma maldita sanguessuga. — Sam continuou, ignorando a maneira como Paul estava prestes a pular em seu pescoço. — Ela precisa arcar com as consequências das próprias ações.

O Velho Quil bateu seu cajado no chão com força.

— Chega! — O ancião ordenou, seus olhos escuros brilhando. — Rose está certa em uma coisa: ainda há tempo para evitar o pior.

Rose engoliu em seco. Havia uma chance — frágil como uma teia de aranha, mas ainda assim uma chance.

— E qual é a sua sugestão, Rose? — Tio Harry perguntou.

— Vocês precisam confrontar os Cullen. Diretamente.

Tio Harry franziu a testa, mas foi Sam quem explodiu:

— Absurdo! Não negociamos com…

— Não é negociação! — Rose cortou, a voz mais firme do que sentia. — É um ultimato. Reúnam-se com eles e deixem claro: ou cumprem o tratado à risca, ou serão expulsos de Forks…

— Continue querida. — O Velho Quil ordenou, seus olhos escuros brilhando com interesse.

Rose endireitou os ombros.

— Eles alimentaram essas fantasias na cabeça da Bella. Deixaram ela acreditar que se tornar... uma deles seria um conto de fadas. — Ela quase engasgou nas palavras. — Agora têm a obrigação de sentar com ela e explicar a verdade. Sobre as consequências.

Jared soltou um riso amargo:

— Você realmente acha que eles vão ajudar?

— Eles vão. — Rose insistiu. — Porque eles valorizam o disfarce deles acima de tudo.

Sam cruzou os braços, seus músculos tensionados sob a pele.

— E se eles recusarem? E se ela virar uma deles antes?

Foi Paul quem respondeu, sua voz um rosnado profundo:

— Aí mostramos por que nossos ancestrais fizeram esse tratado em primeiro lugar.

Rose sentiu um arrepio percorrer a sua espinha, mas manteve-se firme.

— É simples. — Ela concluiu, olhando cada rosto na sala. — Ou os Cullen consertam a bagunça que fizeram, ou enfrentam as consequências. Mas isso é agir preventivamente, em vez de esperar que vire uma bola de neve.

O Velho Quil estudou-a por um longo momento antes de assentir lentamente.

— A garota está certa. — Ele assentiu. — Eu estou de acordo.

— Eu também. — Tio Billy concordou, seguido por tio Harry.

Sam ainda parecia relutante, mas quando seus olhos encontraram os de Rose, algo passou entre eles — um entendimento, uma trégua temporária.

— Tudo bem. — Ele finalmente cedeu, os dentes ainda cerrados. — Vamos marcar uma reunião com os Cullen.

Rose sentiu seu corpo ceder quando a tensão finalmente se esvaiu de seu corpo. Seu peso desabou contra Paul, que a aconchegou em seu peito, seu calor familiar envolvendo-a como um porto seguro. Ela fechou os olhos por um instante, sentindo a adrenalina se dissipar aos poucos em suas veias, deixando para trás apenas um cansaço profundo e um gosto amargo na boca.

Ela ainda a odiava. Bella e sua teimosia cega, seu egoísmo disfarçado de amor, seu desejo de arrastar todos para o abismo junto com ela. Cada pensamento sobre ela queimava em seu sangue.

Paul a puxou mais perto, seu queixo repousando sobre sua cabeça num gesto silencioso de apoio. E Rose permitiu-se afundar nele, mesmo sabendo que seu ódio por Bella não havia diminuído. Porque no fundo, sob toda a raiva e frustração, havia algo mais forte ainda: a lealdade ao tio Charlie, que a acolheu como filha. E o seu respeito pela tribo.

No final das contas, não importava o quanto ela detestasse Bella, ninguém merecia o destino que ela tão imprudentemente buscava.

— Você fez certo. — Paul murmurou contra os seus cabelos, como se lesse seus pensamentos.

Rose não respondeu. Em vez disso, concentrou-se na batida constante do coração dele em seus ouvidos.

Ainda havia uma longa batalha pela frente. Ainda havia chances de tudo dar errado. Mas por enquanto, neste pequeno momento de trégua, Rose permitiu-se respirar.

E preparar-se para a tempestade que estava por vir.

Chapter 35: TRINTA E CINCO

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

As patas do lobo cravaram no solo úmido, esmagando galhos e folhas com um estalo seco que ecoava como pequenos disparos na noite silenciosa. Seus músculos queimavam sob a pele enquanto ele corria, o pêlo prateado eriçando-se contra o vento noturno que trazia o cheiro deles — excessivamente doce, enjoativo e denso. Como respirar um buquê de flores mortas misturado com açúcar queimado e sangue coagulado.

À sua esquerda, outro lobo avançava em silêncio, os músculos tensos sob a pelagem acinzentada, apenas os ecos da sua raiva ecoando em suas mentes compartilhadas. À direita o alfa liderava com a mesma postura de sempre, embora hoje houvesse uma inquietação rastejando sob a sua pele, uma tempestade prestes a desencadear.

O vento mudou de direção, e o fedor daquelas criaturas intensificou-se, impregnando as suas narinas sensíveis. Paul quase engasgou com o gosto que ficou em sua boca — frutas podres mergulhadas em mel azedo, tão forte que fez os seus olhos lacrimejarem. Seu estômago contraiu-se, mas ele continuou avançando, cada passo mais firme do que o anterior.

Eles chegaram juntos à linha imaginária que separava o território Quileute do deles, em um crescendo de patas contra a terra. Um rosnado escapou da sua garganta antes que ele pudesse se conter. Cada fibra do seu ser parecia tremer com a necessidade de atacar. Seus músculos contraíram-se em espasmos dolorosos lutando para agir, como se a sua própria carne soubesse que aqueles monstros não mereciam existir. Suas mandíbulas latejavam, os dentes afiados cravejando-se uns contra os outros com força suficiente para trincar ossos, as pontas afiadas sobre a carne macia da sua língua, o gosto metálico enchendo a sua boca. E o sangue em suas veias não corria — fervia . Um calor abrasador que se espalhava pelo seu corpo como lava, misturando-se ao cheiro acre de sua própria fúria. Seu coração batia como um tambor, cada pulsação ecoando em seus ouvidos como um chamado para o ataque. Matar. Matar. Matar.

Chega, Paul.

A voz de Sam atravessou o vínculo como um chicote, cortando através do nevoeiro vermelho de sua raiva, fazendo os músculos de Paul contraírem involuntariamente, seu corpo reagindo e curvando-se antes mesmo que a sua mente pudesse processar o ocorrido.

As sanguessugas estão vindo.

O aviso de Sam ecoou inutilmente. Àquela altura era impossível não senti-los se aproximando.

Eu já consigo sentir o cheiro horroroso deles.

Jared projetou, acompanhando o pensamento com uma imagem vívida dos vampiros encurralados, tripas brilhantes espalhadas pelo chão da floresta. Era estranhamente relaxante.

Foco! Prestem atenção!

Sam alertou.

Bastou apenas dois segundos e então, do outro lado da fronteira, eles apareceram. Pareciam esculpidos em mármore sob a luz prateada da lua — belos, imóveis, mortos. Eram como estátuas de cera, tão perfeitas que se tornavam inquietantes. Feições artificiais tal qual bonecas de porcelana, polidas demais para parecerem reais. Pele pálida, ao ponto da transparência, e olhos dourados, brilhando como âmbar derretido. Era enervante.

O líder deu um passo à frente, seus movimentos tão suaves que parecia deslizar sobre o chão em vez de andar.

— Eu soube que você queria falar conosco, Sam?

Três rosnados ecoaram em uníssono. Os pelos ao longo do dorso de Sam se eriçaram completamente, seus lábios se retraíram para expor caninos afiados que brilhavam à luz da lua.

O líder ergueu as mãos em um gesto de paz, mas que só fez Paul e Jared rosnarem mais alto.

Sanguessuga de merda.

Ele é um idiota completo.

Eu queria arrancar a cabeça dele do pescoço.

Sim!

Jared. Paul. Lembrem-se o porquê estamos aqui.

— Estamos aqui em paz — Disse o líder, antes de virar-se para o vampiro ruivo. — Edward, você pode traduzir?

O vampiro ruivo franziu a testa antes de responder.

— Eles não confiam em nós.

Notícia da porra do século.

Jared ecoou pelo vínculo, acompanhando de uma imagem mental tão vulgar que fez Paul grunhir em aprovação.

Sam manteve a postura, mas Paul podia sentir a tensão rolando dele em ondas, antes de pensar claramente:

Estamos aqui para lembrar a vocês sobre o tratado.

O ruivo — Edward — traduziu imediatamente:

— Eles estão aqui para nos lembrar sobre o tratado.

É como se ele fosse a porra de um papagaio.

Paul rosnou mentalmente, sentindo Jared rir através do vínculo.

— O tratado está sendo respeitado. — Respondeu o líder, cada palavra cuidadosamente polida.

Mentira!

Mentiroso!

Ele está mentindo!

Os três lobos pensaram em uníssono, o vínculo vibrando com a sua desconfiança compartilhada.

Sam avançou meio passo, suas garras cravando-se no solo.

Então, expliquem por quê estão alimentando fantasias perigosas na cabeça de uma humana.

O ruivo hesitou por uma fração de segundo, seu corpo encolheu-se levemente como se tivesse levado um golpe físico. Seus dedos longos e pálidos se contraíram involuntariamente, as veias sob a pele de mármore tornando-se visíveis por um instante. Ele hesitou, antes de traduzir para os outros vampiros, seus olhos brilhando com algo que só poderia ser preocupação.

O líder ergueu as mãos novamente, seu rosto tenso.

— Nós nunca machucaremos a Bella.

A mudança no clima da família feliz foi instantânea. Uma loira deu um passo à frente, seus dentes perfeitos brilhando à mostra sob o luar.

Eu avisei! Eu avisei que era um erro se aproximar daquela humana desde o início…

— Rose… — O líder interrompeu, tentando intervir.

— Deixe-me falar, Carlisle. — Ela cortou, os olhos dourados ardendo com fúria contida. — Edward é um tolo irresponsável. Ele está nos colocando em perigo por causa de um capricho . Seria mais fácil matá-la e irmos embora. Humanos morrem dormindo todos os dias.

O ruivo rosnou, transformando-se imediatamente em um predador.

— Ah sim, Rosalie, todos nós sabemos o quanto você é experiente em matar humanos.

— Pelo menos eu estou pensando na nossa segurança. — Ela cuspiu, um rosnado reverberando em sua garganta. — Você está se iludindo, Edward. Brincando de humano com a sua Cantora , como se não fosse ceder e acabar nos arrastando juntos para os seus problemas.

— Eu posso me controlar. Você sabe que eu posso.

Um vampiro alto e musculoso moveu-se para intervir, mas a loira já estava em chamas:

Eu sei? E quantas vezes você quase a matou, hein? Quantas vezes teve que correr do mesmo ambiente que o dela para não rasgar a sua garganta? — Ela vociferou.

— Você está sendo desnecessariamente cruel.

Não vamos tolerar humanos mortos em nosso território.

Sam avançou, seu rosnado ecoando um trovão na floresta e silenciando a discussão dos vampiros. Paul e Jared imediatamente se juntaram a ele, formando uma frente unida.

— Nenhum mal virá à Bella. — O líder olhou entre seu clã dividido, lançando um olhar especialmente duro para a loira. — Você tem a minha palavra.

Suas palavras não significam nada.

Vocês são um perigo, porra.

Isso já foi longe demais.

O ruivo avançou, seus olhos escuros de raiva.

— Vocês não entendem…

Nós entendemos perfeitamente. Uma humana sabe demais. Um de vocês está emocionalmente envolvido. Isso só termina de um jeito.

— Eu sou capaz de me controlar perto da Bella.

Não é só a Bella que corre risco.

Paul não conseguiu conter o rosnado que lhe rasgou a garganta. Imagens involuntárias de Rose inundaram o vínculo.

O vampiro ruivo sorriu, um gesto rápido e afiado que não alcançou seus olhos mortos.

— Sua namoradinha não deveria se meter onde não é chamada.

O ar explodiu.

Paul saltou como um raio, suas patas escavando a terra na exata fronteira do tratado, parando a poucos centímetros do vampiro. Seu rosnado ecoou como o rugido de um trovão, saliva espessa escorrendo de seus caninos afiados.

O vampiro não recuou, mas seus olhos dourados se estreitaram em alerta. Seus dentes à mostra, os tendões sob a pele destacando-se como cordas de um violino tensionadas ao máximo.

— Chega, Edward! — O líder agarrou o braço do vampiro, puxando-o para trás.

Isso já foi longe demais. Nós não vamos aceitar que as suas atitudes impulsivas coloquem todo o nosso território em risco.

O vampiro ruivo sacudiu o braço com violência, libertando-se.

— Nós não estamos violando o tratado. — Protestou, seus olhos ardendo. — O tratado proíbe morder humanos, e isso não aconteceu.

O tratado foi feito para proteger a nossa terra, não para que vocês fiquem tentando encontrar brechas.

O líder interveio antes que a situação piorasse, posicionando-se entre Sam e o vampiro ruivo.

— Tenho certeza que podemos chegar a um acordo.

O ruivo abriu a boca para protestar, mas um olhar cortante do líder o silenciou.

Um galho se partiu sob a pata de Sam, quando ele avançou um passo:

Não há acordo. A relação com a humana termina imediatamente ou vocês serão expulsos de Forks.

O vampiro ruivo recuou como se tivesse sido golpeado.

O quê?!

— Isso é tão injusto. — Uma vampira baixinha reclamou, seu rosto minúsculo marcado pela angústia.

— Eu sabia que isso ia acontecer. — A loira cruzou os braços, parecendo igualmente irritada e triunfante por estar certa.

Mas foi o vampiro ruivo que explodiu:

— Eu não vou me separar de Bella.

O líder girou para enfrentá-lo.

— Edward! Agora não é o momento!

Esse é o acordo. Façam isso ou o tratado estará cancelado.

— Tem certeza de que quer ser tão… radical, Sam? — O líder escolheu as suas palavras cuidadosamente. — Eu tenho certeza de que o seu ancestral não concordaria com essa decisão. Ephraim Black sempre foi um homem de diálogo, não?

Sam não pensou duas vezes, ele abriu a boca em um rosnado que cortou o ar antes mesmo que o líder pudesse terminar sua frase.

Eu sou Sam Uley, o alfa dessa matilha. Eu não sou o meu ancestral.

— É claro. — O líder suspirou, seus ombros caíram em resignação. — Podemos ter um tempo para encerrarmos as coisas com tranquilidade, então?

Até o final do verão. Nenhum dia depois disso.

O silêncio que se seguiu foi quebrado por Edward:

— Isso é ridículo! Você não pode simplesmente…

Essa é a NOSSA terra, sanguessuga. Vocês ainda estão aqui, porque NÓS permitimos. Não ouse falar sobre concessões quando nunca se importou com o tratado.

O vampiro ruivo tremia de raiva.

— Você não entende nada! Ela é…

UMA HUMANA!

Sam rugiu, fazendo o próprio ar estremecer. Sua pelagem escura parecia brilhar com a sua fúria.

— Tudo bem, filho. Isso é o suficiente! — O líder moveu-se em uma fração de segundo, colocando uma mão pálida no ombro do vampiro. — Obrigada pelo aviso, Sam. Vamos começar os nossos preparativos para cumprir o acordo.

O vampiro ruivo estremeceu, como se tivesse sido esfaqueado pelas costas.

— Carlisle, não! — Sua voz angustiada, quase humana.

O líder apertou o ombro com força.

— Edward, chega. Vamos pra casa!

Eles se olharam por um longo segundo.

Então, num piscar de olhos, o vampiro ruivo virou-se com um movimento brusco que agitou as folhas do chão. Seu rosto perfeito estava distorcido por uma mistura de fúria e desespero quando desapareceu na floresta em um sopro de vento.

O líder permaneceu por um momento, seu olhar pesado repousando sobre Sam.

— O verão, então. — Murmurou, aceitando o acordo.

Quando o último vampiro desapareceu entre as árvores, Paul finalmente sentiu a tensão escorrer de seus músculos. Seu corpo, que estava tão rígido quanto o aço durante todo o confronto, afrouxou-se levemente. Um suspiro escapou de suas narinas, fazendo as folhas aos seus pés tremerem.

Através do vínculo, sentiu Jared projetar:

Finalmente, essas sanguessugas vão embora.

Paul respondeu com um grunhido de concordância, sacudindo a pelagem como para se livrar do odor persistente dos vampiros.

Mas Sam permanecia rígido, seus membros ainda tensos, as orelhas erguidas e alertas.

Edward não vai aceitar isso tão facilmente.

Jared cheirou o ar, seu focinho se contraindo em desconfiança.

Você acha que ele vai tentar algo?

Sam finalmente se virou, seus olhos duros e afiados.

Ele não parece ter a intenção de desistir facilmente.

A tranquilidade momentânea que Paul estava sentindo evaporou-se em um segundo. Sua pelagem voltou a se eriçar, seus sentidos se aguçando novamente enquanto encarava cada sombra entre as árvores.

Então, precisamos vigiar a casa dos Swan. Especialmente Rose.

Sam assentiu, seu olhar pesado.

Vamos nos revezar para vigiar a casa dos Swan e o hospital. Carlisle não é tolo o suficiente para tentar ir contra o tratado, mas Edward pode ser.

E com certeza o papai vampiro vai querer apoiar o filho.

Jared completou, rosnando baixo.

Sam ergueu a cabeça, farejando o vento.

Fiquem atentos a qualquer movimento.

Os três lobos trocaram um último olhar antes de se separarem, cada um tomando uma direção diferente.

Paul correu em direção à casa dos Swan — determinado a ver se Prim estava segura —, seus pensamentos giravam em círculos tensos. Nada poderia acontecer nesta noite, ou na próxima, ou na que viesse depois. Mas os vampiros podiam mentir, fingir obediência, jogar seu jogo de espera.

Ele se aninhou entre as sombras de dois abetos, posicionando-se com vista perfeita para o quarto de Prim. Através da janela, podia vê-la enrolada em vários lençóis, dormindo profundamente, seu cabelo vermelho espalhado pelo travesseiro como fogo. Seu peito subia e descia em um ritmo lento e regular, completamente alheia aos perigos que rondavam a sua paz.

O vento mudou, trazendo consigo o cheiro de musgo úmido e pinho. Nenhum traço do cheiro enjoativamente doce dos vampiros. Ainda assim, Paul não relaxou. Seus ouvidos giravam como radares, captando cada farfalhar de folhas, cada estalar de galho. Seus músculos permaneciam tensos como molas comprimidas. Suas garras enterravam-se levemente no solo, prontas para impulsioná-lo em direção àquela janela a menor ameaça.

Seus olhos nunca deixaram a janela, mesmo quando a primeira luz do amanhecer começou a colorir o horizonte e Prim começou a se mover na cama, acordando.

Ele ficaria ali.

Até o final do verão, ou até o fim dos tempos, se necessário.

Notes:

Descobri com esse capítulo que é muito difícil escrever as coisas a partir da perspectiva dos lobos, mas espero, pelo menos, ter atingido o objetivo desse capítulo que é gerar o acordo entre os Lobos e os Vampiros.

Chapter 36: TRINTA E SEIS

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

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Nada aconteceu nas semanas seguintes.

Os dias se arrastaram, monótonos e aparentemente pacíficos, numa tranquilidade que deveria trazer alívio, mas só deixava Rose tensa. Embora a reunião dos lobos com os vampiros tenha acontecido sem maiores problemas, ela concordava com Paul quando ele dizia que tudo parecia perfeito demais, que nada garantia que Edward aceitaria o ultimato de bom grado.

No entanto, ela ainda cruzava com Bella toda manhã e ela continuava a mesma. Nenhum sinal de que soubesse sobre a reunião com a matilha, nenhum indício de que os Cullen tivessem contado a verdade ainda.

No hospital, o Dr. Cullen, apesar de alguns olhares, não agia como se algo tivesse mudado. Cumprimentava-a com um aceno educado, seu rosto sempre impassível e gentil, e continuava a ensiná-la com um profissionalismo sem limites.

Em casa, Bella decidiu anunciar oficialmente o seu namoro com Edward, para o completo horror do tio Charlie. Enquanto, Rose era obrigada a suportar a presença do vampiro buscando Bella ocasionalmente em casa. Ela evitava sair de seu quarto quando ele estava por perto, mesmo sabendo que as pedras ao redor da casa impediam a entrada dele, mas às vezes seus olhares se cruzavam pela janela. Ele a encarava franzindo a testa, ela revirava os olhos. Mas nunca trocaram nenhuma palavra.

Em La Push, os lobos continuavam tensos. Mesmo sem nenhum sinal de ameaça, a matilha mantinha suas patrulhas rigorosas, especialmente nas áreas próximas à casa de Rose e ao hospital. O aviso dado aos Cullen havia sido levado a sério — mas todos sabiam que era impossível confiar totalmente nisso.

Paul, em particular, havia se tornado quase uma sombra de Rose. Sempre pairando protetoramente sobre a namorada. Ele a acompanhava até o hospital todos os dias, mesmo quando ela tinha plantões noturnos. E esperava por ela na saída, para levá-la para casa em segurança.

Enquanto isso, Rose se esforçava para seguir sua vida, finalizando o seu estágio, se preparando para as suas merecidas férias de verão e, finalmente, iniciando a sua residência em setembro.

Mesmo fingindo que estava tudo bem, ela sabia que era só questão de tempo para que tudo virasse de ponta a cabeça novamente.

 

*

 

Doutora Primrose Potter.

Quando seu nome foi anunciado, Rose sentiu um calafrio percorrer a sua espinha. Os aplausos ecoaram ao seu redor, enquanto ela subia o palco para receber o seu diploma, mas o som que mais a emocionou foi o assobio estridente do tio Charlie vindo das arquibancadas, seguido pelo urro inconfundível de Paul — um som tão alto e desinibido que arrancou risadas de diversas pessoas ao redor.

Com as mãos levemente trêmulas, Rose recebeu o seu diploma, em seguida, fez o seu juramento sem vacilar ao prometer sua vida à cura, à ética e ao trabalho de cuidar dos outros.

Assim que a cerimônia encerrou, ela mal conseguiu conter a emoção. Desceu os degraus do palco e correu em direção à sua família, que a aguardava com sorrisos e abraços abertos.

Tio Charlie foi o primeiro. Ele a envolveu em um abraço apertado, amassando a sua beca.

— Minha garota. Doutora. — Ele murmurou, a voz rouca de emoção. — Sua mãe estaria tão feliz.

Rose apertou os olhos para segurar as lágrimas antes de se virar para Paul. Ele estava ali, seu sorriso largo iluminando o rosto. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele a levantou no ar em um abraço que a fez rir alto e protestar.

— Paul! Cuidado! — Rose gritou entre risos, batendo nos ombros largos dele.

Ele a soltou só o suficiente para capturar seus lábios num beijo que fez tio Charlie tossir constrangido e os colegas de turma assobiarem ao seu redor.

— Eu estou muito orgulhoso de você. — Paul sussurrou contra a sua boca, os olhos brilhando de felicidade. — E tem algo muito sexy em ser chamada de Doutora Potter.

— Shh. Cala a boca. — Ela rosnou, mas não conseguiu conter o sorriso enquanto se aconchegava contra seu peito. — Obrigada por estar aqui.

Paul apenas apertou ela mais forte, seu nariz enterrado em seu cabelo.

— Eu nunca perderia isso.

Tio Billy e Jake também estavam presentes, cada um deles se aproximou com seus parabéns e abraços. Até mesmo Bella estava lá, deu-lhe um sorriso tímido e um aperto de mão.

— Eu… é… parabéns, Rose. De verdade.

Rose agradeceu desconfortavelmente. Havia um silêncio incômodo entre elas, que nenhuma das duas estava disposta a quebrar.

Bella abriu a boca como se quisesse acrescentar algo, mas, em vez disso, apenas assentiu e recuou. Rose soltou um suspiro, sentindo-se extremamente cansada dessas interações, antes de sentir a mão de Paul entrelaçando-se na dele, firme e reconfortante.

— Rose! — Ela ouviu um grito, e mal teve tempo de se virar antes de ser quase derrubada por um abraço esmagador, membros e cachos escuros envolvendo-a num aperto sufocante.

— Zoe! Você quase me matou! — Rose riu, recuando para olhar a amiga. — Como você está? Senti sua falta!

— Que bom que eu consegui te achar no meio dessa multidão! Achei que não conseguiria te ver nem no dia da nossa formatura.

Zoe a soltou, mas manteve as mãos nos ombros dela, como se temesse que Rose sumisse.

— Fico feliz em ver você também. Parabéns pela formatura, Doutora Yorkie! — Rose respondeu, dando um tapinha em seu braço.

— Você também, Doutora Potter! — Zoe fez uma reverência exagerada, mas logo puxou-a de volta ao assunto. — Já sabe onde vai fazer a sua residência?

— Em Forks, é claro.

Zoe revirou os olhos com um suspiro dramático.

— Você e essa sua mania de cidade pequena. Você poderia voltar para Londres, sabe? Hospitais grandes, casos complexos… — Ela baixou a voz, mas Rose sabia que Paul ainda conseguia ouvir a julgar pelo seu braço tenso e a maneira como ele apertou levemente a mão dela.

— Eu realmente gosto de Forks. Não há muitos residentes e eu consigo aprender mais. — Rose encolheu os ombros, mas Zoe não desistiu.

— Ou você poderia vir para o Oregon comigo…

— Zoe! — Rose cortou, rindo. — Cadê sua família?

— Ah, claro. — Zoe girou no lugar, gesticulando para um casal sorridente e um garoto que se escondia atrás deles.— Esses são meus pais. John e Katie Yorkie. E o meu irmãozinho, Eric.

— Prazer em conhecê-los. — Rose cumprimentou, antes de se inclinar para o irmão mais novo de Zoe. — Olá novamente, Eric. Eu o conheci por causa de Bella, na verdade. Eles estudam juntos.

— Oi, Rose. E aí, Bella. — Eric praticamente saltitou em direção à Bella, enquanto tio Charlie e tio Billy puxavam conversa com os Yorkie.

Rose aproveitou a distração para apresentar:

— Esse é o Paul, meu namorado. Acho que você nunca o conheceu.

Paul estendeu a mão com um aceno casual, e Zoe apertou alegremente.

— Prazer em finalmente conhecê-lo, Paul.

— E esse é praticamente meu irmão, Jacob. — Rose apontou para Jake, que acenou com a cabeça, um sorriso enorme no rosto.

— Bem, eu preciso ir. Temos uma reserva pra jantar. — Zoe disse, os dedos brincando com a ponta do cordão da beca.

Rose puxou-a para mais um abraço rápido, sentindo a amiga um pouco mais tensa do que o habitual.

— Você promete que vai me ligar? Sem sumir por meses como da última vez?

Zoe engoliu em seco, afastando-se o suficiente para encarar a amiga.

— Prometo. E você também. — Respondeu, com uma risada que soou um tom mais agudo do que o normal. — Não se perca nos plantões e esqueça de responder minha mensagens.

— Tchau, Doutora Yorkie.

— Tchau, Doutora Potter. — Zoe replicou, os lábios se curvando num sorriso. — Quando você se cansar de Forks, minha porta em Oregon está aberta.

Rose respondeu cutucando o ombro da amiga.

— Cuide-se, Yorkie!

— Você também, Potter. — A voz de Zoe suavizou de repente, quase melancólica. — E parabéns de novo! — Ela deu um último aceno antes de se virar para reunir-se à família, desaparecendo entre a multidão que ainda se aglomeravam no local da formatura.

Rose franziu a testa confusa com o comportamento atípico de Zoe, mas atribuiu tudo isso ao nervosismo e tensão pós-formatura. Era natural, racionalizou ela. Eram apenas os nervos à flor da pele, aquela mistura de euforia e medo que vinha com o fim da faculdade. Zoe, assim como ela, estava prestes a mergulhar de cabeça na residência, com toda a pressão e responsabilidade de finalmente ser chamada de Doutora. Era normal que estivesse ansiosa, que parecesse um pouco fora de si.

Com um último olhar para onde Zoe desapareceu na multidão, Rose sacudiu levemente a cabeça, dissipando as preocupações. Não era hora de questionar demais. Com tantos problemas no mundo sobrenatural , às vezes ela esquecia que a vida normal era muito mais simples do que aparentava.

Paul apertou novamente a mão de Rose.

— Pronta para ir? — Perguntou, seguindo seu olhar para onde Zoe havia ido. — Sua família já foi para o estacionamento. Jake já estava reclamando que vai desmaiar de fome se a gente demorar mais.

O comentário fez os lábios de Rose se curvarem em um sorriso, enquanto ela revirava os olhos. Paul puxou-a gentilmente para o seu lado, seu polegar desenhando círculos no dorso da mão dela.

— Eles preparam uma fogueira em La Push para você. — Continuou ele, inclinando-se ligeiramente em direção aos seus lábios. — Jake está planejando envergonhar você com um discurso. E o Sr. Swan provavelmente vai chorar do mesmo jeito.

Rose riu, divertida. Seus olhos brilhavam com uma mistura de diversão e ternura, e Paul não resistiu — fechou a distância que ainda os separava e a beijou suavemente.

— Vamos, querida. — Ele sussurrou, puxando-a delicadamente. — Antes que eu me distraia completamente e o seu tio venha me buscar com a arma dele.

Rose soltou uma risadinha, os dedos brincando com o colarinho de sua camisa.

— Não se preocupe, eu protejo você.

— Nunca duvidei disso. — Ele riu, e finalmente concordou em se mover.

Com as mãos entrelaçadas, eles caminharam em direção ao estacionamento, onde toda a família já os aguardavam. E se os dedos de Paul traçaram pequenos círculos no pulso de Rose durante todo o caminho, bem, isso era só mais uma das mil maneiras silenciosas que ele tinha de dizer que a amava e que sabia que ela estava tensa, talvez um pouco preocupada, mas que ele sempre estaria ao seu lado.

 

*

 

O sol estava perto de se pôr quando chegaram a La Push, onde a família toda os esperava ao redor de uma fogueira crepitante. O cheiro de marshmallows torrados e o som das risadas preenchiam o ambiente, e Rose sentiu a felicidade e amor pela sua família queimando em seu peito.

Rose, no entanto, notou uma ausência imediatamente.

— Onde está a Bella?

— Foi jogar baseball com os Cullen. — Respondeu Jake, revirando os olhos enquanto se acomodava perto da fogueira e espetava um dos marshmallows. — Disse que prometeu ir antes mesmo de saber da nossa festa. Charlie passou para deixá-la em casa.

Rose franziu a testa. Baseball? Isso não fazia o menor sentido. Bella não jogava baseball — a menos que… Seus pensamentos foram interrompidos por uma presença ao seu lado. Paul. Ele não disse nada, apenas a encarou com um olhar intenso.

E então ela entendeu.

Era hoje. Finalmente Edward terminaria com Bella, e as coisas poderiam voltar ao que sempre deveriam ter sido. Sem vampiros, sem perigo, sem drama.

Seus dedos apertaram inconscientemente o copo de plástico que Paul colocou em suas mãos, fazendo a bebida transbordar levemente. Ela nem notou — sua mente muito ocupada pensando em como seriam os próximos dias, uma mistura de antecipação e medo, uma forte sensação de que talvez as coisas não fossem tão fáceis quanto ela esperava.

— Venha sentar, meu amor. — A voz quente de Paul sussurrou em seu ouvido, seu braço envolvendo a sua cintura com facilidade enquanto a guiava para o centro da roda. Rose se deixou levar, tentando deixar Bella no fundo da mente, enquanto era envolvida por mais uma onda de abraços e parabéns.

A noite seguiu com risadas e histórias compartilhadas ao redor da fogueira. Rose recebeu palavras calorosas de todos e nunca se sentiu tão feliz — mesmo que, no fundo, ainda tivesse ficado um pouco decepcionada ao ver a tia Sue, tio Harry e Seth, mas não Leah. Estava tudo bem, no entanto. Ela sabia que demoraria para que a amiga sequer pensasse em falar com ela novamente.

Tio Charlie chegou carregando uma caixa de cervejas para dividir com o tio Billy — mesmo que Rose tivesse aproveitado seu novo título para dar uma bronca e um longo discurso aos dois velhos teimosos —, e tia Sue tinha preparado tortas caseiras para todos, seus olhos o tempo todo marejados sempre que olhava para ela.

Conforme a noite avançava e a lua surgia entre as nuvens do céu nublado de La Push, as pessoas começaram a se dispersar. Paul se aproximou por trás, envolvendo-a em seus braços enquanto ela buscava outro pedaço da torta da tia Sue na mesa. Sua respiração quente fez cócegas em seu pescoço quando ele sussurrou.

— Quer ficar na minha casa hoje? Só nós dois.

Rose girou para encontrar seus olhos castanhos, que refletiam as chamas da fogueira e uma promessa que fez seu estômago girar. Ela acenou com a cabeça, sentindo um sorriso se formar em seus lábios.

— Eu já falei com o tio Charlie, na verdade.

Os olhos de Paul se arregalaram levemente, uma expressão entre surpresa e satisfação iluminando seu rosto.

— Sério?

Rose encolheu os ombros, tentando parecer casual enquanto seus dedos brincavam com a gola da camisa dele.

— Sim. Eu pensei que seria legal ter um tempo tranquilo só para nós dois.

A reação dele foi instantânea — seus olhos escureceram de desejo, a mão encontrando a dela num aperto firme. Rose sentiu o calor subir às suas bochechas.

Não fazia muito tempo que eles haviam recomeçado a namorar, depois de anos de tensão mal resolvido. Mas eles estavam saindo juntos muito antes disso — primeiro como seu amigo, depois como algo mais. Rose sabia muito bem que ele queria mais. Ela realmente só não queria acelerar as coisas.

Agora, no entanto, nada realmente a impedia. Nem a falta de tempo, muito menos a falta de vontade ou o desejo de esperar um pouco mais.

— Então, vamos. — Ele murmurou, os dedos entrelaçando-se com os dela e puxando-a suavemente na direção oposta à fogueira.

Rose deixou escapar uma risada baixa.

— Calma, eu preciso me despedir do tio Charlie.

Paul soltou um suspiro exagerado, mas seu olhar estava cheio de afeto.

— Não demore.

Rose ficou na ponta dos pés para deixar um beijo rápido em sua bochecha.

— Dois minutos. — Prometeu em um sussurro. — E depois sou toda sua.

Tio Charlie, depois de garantir que ela estava bem para voltar para casa no dia seguinte, partiu com um último abraço e um olhar carregado de aviso para Paul.

Rose deu uma última olhada para o círculo dourado da fogueira, onde os rostos familiares ainda riam e conversavam sob o céu estrelado. Despediu-se com abraços e promessas de se ver em breve.

Finalmente, Paul a puxou suavemente para longe das pessoas e a guiou pela estrada de terra, mãos unidas e passos em perfeita sincronia. Ela se encostou um pouco mais nele, sentindo o cansaço do dia em seus ossos, e Paul respondeu envolvendo o braço em seus ombros e apertando-a suavemente.

— Você está cansada?

— Nem um pouco. — Respondeu, tentando disfarçar um bocejo.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Mentira. Você está quase caindo em cima de mim.

— Tudo bem. — Ela admitiu, encostando a cabeça no ombro dele por um instante. — O dia foi longo. Acho que estou mais cansada do que esperava.

— Não se preocupe, meu amor. — Ele beijou a testa dela amorosamente. — Podemos só dormir hoje. Só quero você ao meu lado, já é o suficiente.

Rose afundou no abraço, respirando o cheiro familiar dele.

— É o suficiente pra mim também. — Sussurrou contra seu peito, sentindo seu coração bater acelerado no peito.

Naquela noite, eles se acomodaram juntos na cama de Paul. Trocando beijos lentos e preguiçosos, como se tivessem todo o tempo do mundo, suas pernas se entrelaçaram sob as cobertas e suas mãos indo naturalmente de encontro ao corpo um do outro — Rose enterrando os dedos em seus cabelos, puxando-o para mais perto. Paul deslizando as mãos sobre seus quadris, sentindo as curvas sob suas palmas ásperas e largas.

E quando Rose sentiu seu corpo começar a ceder ao cansaço, ele simplesmente a puxou para seu peito, onde ela podia ouvir o coração dele batendo forte e constante.

— Durma, minha Primrose. — Ele murmurou contra seus cabelos, uma mão desenhando círculos lentos em suas costas. — Estou aqui.

E então, entre um suspiro e outro, eles adormeceram.

 

*

 

Rose voltou flutuando para casa no dia seguinte.

O sol da manhã parecia brilhar mais forte, as cores mais vívidas, os cheiros mais acentuados e cada batida do seu coração parecia pulsar o nome dele.

Paul. Paul. Paul.

Ela ainda sentia o gosto de Paul em seus lábios, o calor de seu corpo contra o dele, a memória vívida de como ele havia acordado ela — com beijos suaves plantados em seu rosto, café quente e torradas levemente queimadas servidas na cama, rindo quando ela reclamou que ele nunca soube cozinhar direito.

Eles tinham passado o início da manhã juntos na cama, entrelaçados, sem saber quando um começava e o outro terminava. Eles sussurravam juntos, as bocas próximas, trocando promessas e risadas, enquanto planejavam que Rose passasse o verão em sua casa.

Quando estacionou em frente da sua casa, Rose ainda ria sozinha, os dedos tocando os lábios como se pudesse guardar a sensação dos beijos dele para sempre. Mal podia esperar para voltar para La Push, para se jogar na cama dele, para fazer muito mais do que beijar. Rose soltou uma risadinha, sentindo-se boba com os pensamentos.

Mas assim que abriu a porta, sentiu como se um balde de água gelada a tivesse atingido em cheio no rosto.

Tio Charlie estava na sala, os olhos vermelhos e inchados como se tivesse chorado a noite toda. Rose correu até ele sem pensar duas vezes, os joelhos batendo no carpete com um baque surdo enquanto agarrava as mãos do tio.

— Tio Charlie? O que houve?

O silêncio que se seguiu foi doloroso. O tio Charlie parecia ter envelhecido dez anos em uma noite. Quando ele finalmente abriu a boca, as palavras saíram arrastadas, como se cada uma doesse ao ser pronunciada:

— Ela foi embora. Bella foi embora.

Rose sentiu o coração parar. Algo estava terrivelmente errado.

Notes:

Respondendo às dúvidas: não vou seguir o cânone à risca e tudo já começa a mudar a partir do final de Crepúsculo. No entanto, ainda vou pegar algumas coisas dos outros livros, exceto a existência da Renesmee.

Chapter 37: TRINTA E SETE

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Rose sabia que esse momento chegaria, mas nada a preparou para a dor crua no olhar do seu tio, como se alguém tivesse arrancado metade do coração dele e levado embora — era pior do que quando Bella havia saído de Forks aos dez anos, porque dessa vez ela escolheu não apenas sair da cidade, mas ser cruel, cravar a faca no peito do Tio Charlie e torcer.

Ele contou como Bella dissera que não queria terminar presa naquela cidade idiota e chata como a sua mãe ficou, como ela não queria cometer o mesmo erro estúpido que Renée cometeu na juventude; e o quanto ela odiava Forks, como não conseguiria ficar mais um minuto naquele lugar.

Mas o golpe baixo foi quando Bella disse que o tio Charlie não precisava se preocupar. Afinal, ele tinha Rose — a sua filha falsa. Como se elas fossem intercambiáveis. Como se anos de amor e dedicação pudessem ser simplesmente substituídos.

Rose estava fervendo de raiva desde então. Ela se ressentia de Bella por muitas coisas — por abandonar tio Charlie, por ignorar o seu amor, por fingir que Forks nunca significou nada. Mas isso? Isso era apenas maldade, crueldade pura. Isso Rose nunca poderia perdoá-la.

No entanto, mesmo com a raiva percorrendo o seu peito como ácido, ela ainda engoliu os seus sentimentos e ficou ao lado do seu tio durante as próximas horas, enquanto ele se encolhia no sofá, os olhos ainda vermelhos e inchados, e murmurava o nome de Bella durante o sono.

Haviam se passado apenas algumas horas desde a partida de Bella, e já era como se o mundo tivesse virado de cabeça para baixo. Eles dormiram na sala — tio Charlie ainda esticado no sofá e Rose tentando caber na poltrona do lado da janela, enquanto lutava contra o sol da manhã que entrava em ângulos agressivos pelas frestas. A casa estava estranhamente silenciosa — sem o habitual barulho da chaleira no fogão, sem o tio Charlie fazendo bacon e ovos. Apenas o tic-tac do relógio cortando o silêncio em fatias iguais.

Rose esticou o corpo com um gemido baixo, sentindo cada músculo protestar depois de passar a noite inteira enrolada em um espaço tão pequeno e desconfortável, recusando-se a deixar o tio Charlie sozinho. Seus ossos estalaram em reprovação, mas ela ignorou.

A cozinha estava fria quando entrou. Rose ligou o fogão com movimentos automáticos, enchendo a chaleira com água, e começou a preparar o café da manhã.

O som de passos pesados a fez erguer o olhar.

Tio Charlie parou na porta da cozinha, parecendo tão acabado quanto ela se sentia. Seus olhos ainda estavam vermelhos, o cabelo despenteado, e a camisa do dia anterior ainda amarrotada em seu corpo.

— Oi, tio. Bom dia.

Tio Charlie assentiu, arrastando-se até a mesa como se cada movimento doesse.

— Bom dia, querida. — Ele sentou-se na cadeira, os ombros largos caíram pesadamente, cansados. — Bella já ligou?

— Ainda não. Quer que eu tente ligar pra ela?

— Se você puder, por favor. — Charlie esfregou o rosto com as mãos ásperas. — Imagino que ela não queira falar comigo agora. Eu só quero saber se ela está segura. Imagino que ela já tenha chegado na Califórnia.

Rose virou-se rapidamente para esconder a expressão de raiva que cruzou o seu rosto. Pegou o pão e começou a preparar as torradas, os movimentos precisos e rápidos — qualquer coisa para ocupar as suas mãos, para não ter que pensar no ressentimento que Bella deixou para trás.

O cheiro de café fresco logo encheu a cozinha, mas nem mesmo o aroma reconfortante parecia ajudar. Quando Rose colocou a xícara diante de Charlie, ele apenas a encarou, como se não soubesse o que fazer com aquilo.

— Você precisa comer, tio Charlie. — Ela insistiu.

Ele pegou a xícara, mas não bebeu. Apenas ficou ali, encarando o líquido escuro.

— Eu queria ter tentado mais. Feito alguma coisa. Qualquer coisa.

A voz de tio Charlie saiu exausta e cheia de arrependimento, como se cada palavra fosse pesada demais para carregar.

— Não é culpa sua. — Ela respondeu, colocando um prato de torradas na mesa, enquanto procurava as palavras certas para confortar o tio. — Adolescentes são complicados, e Bella nunca foi uma adolescente típica. Nós fizemos tudo o que pudemos. Você fez tudo o que podia, o que qualquer pai faria.

Ele não respondeu. Apenas continuou comendo lentamente, enquanto Rose se acomodava à sua frente e tomava o seu próprio café.

No final das contas, mesmo com Rose pedindo para o tio Charlie tirar alguns dias de folga, ficar em casa e descansar, ele ainda decidiu ir trabalhar mesmo assim, determinado a procurar algo para focar a sua mente.

Rose, que não tinha mais nada para fazer, exceto ligar para Bella, decidiu primeiro lavar a louça, arrumar a casa, tomar um longo banho e somente depois de sentir que estava calma o suficiente, fazer a ligação.

Ela sentou na mesa da cozinha, com o telefone nas mãos, enquanto contava até dez antes de discar.

O telefone chamou, mas ninguém atendeu.

Ela tentou mais uma vez.

Nada.

Ela tentou novamente. E de novo.

“Você chegou ao correio de voz de Isabella Swan. Por favor, deixe a sua mensagem após o sinal.”

Rose desligou antes do bip, sentindo a raiva queimar ainda mais forte em seu peito. Como Bella era tão egoísta ao ponto de ignorar as ligações? Ela respirou fundo, contendo a vontade de atirar o telefone contra a parede quando a campainha tocou.

Ao abrir a porta, Rose encontrou Paul na soleira, nu da cintura pra cima, vestindo apenas um jeans rasgado. Seus olhos estavam sombrios, a expressão séria demais para uma visita casual.

— Seu pai está em casa? — Ele falou primeiro, cortando a saudação.

— Não… — Rose franziu a testa, os dedos se apertando na maçaneta. — Está tudo bem? Você não deveria estar trabalhando?

Os músculos da mandíbula de Paul tencionaram-se visivelmente antes que ele falasse:

— Os Cullen foram embora.

O coração de Rose deu um salto doloroso dentro do peito.

O quê?! Sério? Bella também foi embora.

Os olhos de Paul se arregalaram de surpresa, ele avançou um passo em direção à Rose, sussurrando baixinho:

— Como assim a Bella foi embora?

— Ontem à noite. — Rose engoliu em seco, um cenário aterrorizante sendo pintado em sua mente. — Tio Charlie disse que ela chegou em casa dizendo que terminou com o Edward e que iria voltar para Phoenix…

— E então ela simplesmente… foi embora?

— Sim… O que você acha que aconteceu?

Paul suspirou, puxando-a para um abraço apertado antes de responder.

— Não é a partida deles que está preocupando a matilha. — Ele admitiu, hesitante. Seus braços se apertaram um pouco mais em volta dela.

Rose se afastou o suficiente para olhar em seus olhos.

— Paul, o que está acontecendo?

— Nós sentimos o cheiro de novos vampiros em uma clareira não muito longe de Forks. E agora com os Cullen desaparecidos e Bella indo embora…

— Você acha que está tudo relacionado? Que ela não foi embora, mas que talvez eles a levaram? Que ela está ferida?

— Eu não sei se está tudo conectado, amor. Mas preciso avisar a matilha sobre a Bella.

Rose sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Por um lado, ela se sentia culpada por ter ficado com tanta raiva de Bella, mas por outro lado, ela se sentia envergonhada por perceber que estava certa, que uma hora ou outra Bella iria se machucar ao conviver com vampiros.

Paul percebeu e a puxou novamente para perto, deixando um beijo em seu cabelo.

— Não se preocupe, nós vamos resolver tudo. — Ele murmurou contra seus fios. — Fica em casa, por favor. Esses vampiros podem ser diferentes dos Cullen. Promete que vai ficar segura?

Rose aninhou o rosto no peito dele, sentindo o coração acelerado de Paul batendo contra a sua bochecha.

— Estou de férias, vou ficar em casa. — Ela murmurou, a voz abafada contra o peito dele. — Mas e o tio Charlie? Eu tentei convencê-lo a tirar alguns dias de folga, mas ele decidiu ir trabalhar.

As mãos grandes de Paul percorrerem suas costas em um movimento calmante antes que ele respondesse:

— Nós vamos vigiar a delegacia até termos certeza de que está tudo bem.

— Você vai ficar aqui um pouco?

— Não, querida, eu preciso ir. A matilha está um pouco tensa. — Seu polegar acariciou a maçã do rosto de Rose. — Mas posso passar a noite aqui, se você quiser.

— Eu quero.

Um sorriso iluminou o rosto de Paul.

— Ótimo. — Ele sussurrou, inclinando-se para frente até que seu hálito quente tocasse os lábios de Rose. — Na verdade, seria melhor para o meu coração saber que você está segura ao meu lado.

Rose riu baixinho, mas antes que pudesse responder, ele capturou seus lábios em um beijo profundo e lento. Suas mãos se perderam em seus cabelos, puxando-a para mais perto.

Quando se separaram, Rose estava ofegante e atordoada.

— Eu espero por você para o jantar. — Ela disse, tentando recuperar o fôlego. — Vou avisar ao tio Charlie.

Paul assentiu, seus olhos ainda escuros de preocupação. Com um último beijo, ele se virou e desapareceu entre as árvores, deixando Rose na porta, com o coração ainda acelerado.

 

*

 

O dia seguinte foi igualmente monótono.

Rose tentou ligar para Bella mais de uma vez, mas, como nas vezes anteriores, a chamada caiu direto na caixa postal. Os Cullen continuavam desaparecidos. E a matilha patrulhava as fronteiras sem descanso, mesmo que o rastro dos novos vampiros tenha evaporado.

No final do dia anterior, tio Charlie voltou para casa com passos arrastados e um olhar perdido. Jantou em silêncio ao lado de Rose e Paul, mastigando mecanicamente, como se a comida não tivesse sabor. Depois sentou no sofá da sala, a televisão ligada em algum canal qualquer, apenas para preencher o silêncio, até que o sono venceu e ele subiu para dormir em seu quarto.

Paul dormiu com Rose em seu quarto, nenhum dos dois com ânimo para conversar, enquanto suas mentes giravam em torno da mesma pergunta sem resposta.

Onde Bella estava?

 

*

 

Já haviam se passado três dias.

Rose acordou com o celular vibrando sobre a mesa de cabeceira. Ela agarrou o aparelho, o coração acelerado ao ver o nome de Bella.

Já cheguei em Phoenix. Estou bem.

A mensagem era tão curta e sem emoção que Rose sentiu vontade de gritar. Nenhum “me desculpe” , nenhum “como está o meu pai?” , nenhum “está tudo bem por aí?” . Apenas uma informação fria, como se estivesse cumprindo uma obrigação.

Rose ficou parada, os dedos pairando sobre o teclado, tentando decidir como responder. Ela queria gritar, xingar, exigir explicações.

Mas, no fim, ela simplesmente digitou:

“Por que você mentiu?”

E então esperou.

Nada.

Nenhuma resposta veio.

Rose deixou o celular cair no colchão, seus olhos ardendo com uma mistura de raiva e desespero. Ela esfregou os punhos nos olhos, sentindo as lágrimas quentes de raiva que teimavam em se formar. Ela queria gritar. Queria pegar aquele telefone e esmagá-lo contra a parede. Queria sacudir Bella até os seus dentes tremerem.

Mas o que mais ela odiava era o fato de que, sob toda essa raiva, Rose ainda estava preocupada. Porque, por mais que ela odiasse Bella nesse momento, ela tinha medo, mais do que tudo, de nunca mais vê-la.

 

*

 

No sexto dia, tio Charlie estava melhor — um pequeno progresso em comparação aos dias anteriores. Saber que Bella estava em Phoenix — supostamente segura e longe dos vampiros — parecia tê-lo ancorado novamente à realidade. Ele ainda estava triste, é claro. Ainda olhava para o telefone de vez em quando, como se esperasse uma ligação que não vinha. Mas já não parecia mais um fantasma perambulando pela casa.

Era exatamente por isso que Rose não contou a ele sobre as suas suspeitas.

Que os Cullen também não estavam mais em Forks. Que talvez Bella tenha fugido com eles. Que ela poderia estar em perigo naquele momento.

Em vez disso — mesmo com a culpa — Rose ficou calada e esperou.

Paul vinha diariamente, sempre com as mesmas notícias. Os Cullen não voltaram mais. O rastro dos novos vampiros havia sumido. Não havia nenhuma notícia de Bella.

Rose não sabia mais o que pensar.

 

*

 

No oitavo dia, depois que o tio Charlie já tinha saído para o trabalho, Paul bateu na porta de Rose com o rosto sério — seus lábios tensos, os dedos inquietos, a testa franzida em preocupação, como se ele mal conseguisse conter a energia que pulsava sob a sua pele.

Rose sentiu um frio percorrer a sua espinha, antes mesmo que ele começasse a falar:

— Os Cullen voltaram.

Ele não precisou dizer mais nenhuma palavra. Rose já estava se virando, pegando as chaves do carro sobre a mesma, quando Paul finalmente a interceptou a caminho do carro.

— Você não vai sozinha.

Rose não discutiu. Apenas assentiu, os dedos tremendo com raiva contida.

Paul assumiu o banco do passageiro, seu corpo tenso, os músculos rígidos como se estivesse pronto para se transformar a qualquer momento. Em outro momento, ela poderia ter feito uma piada sobre isso. Sobre como ela não iria tirar os pelos do cachorro dos seus bancos se ele se transformasse ou algo do tipo. Mas não havia espaço para nenhum humor. Naquele momento, com as mãos firmes no volante enquanto acelerava em direção à estrada que levava à casa dos Cullen, Rose só pensava no quanto ela queria gritar na cara de Bella e Edward.

Ela quase podia vê-los em sua mente: Bella com seus olhos arregalados e desculpas patéticas. Edward com sua perfeição antinatural e sua melancolia sem fim. O volante gemeu sob seus dedos.

— Esquerda no cruzamento. — Paul orientou.

Rose nunca tinha ido até a casa dos Cullen, mas ela não precisava. Com as janelas abertas e o faro de Paul, era possível sentir o cheiro dos vampiros a quilômetros de distância.

Quando ela se aproximou da casa — a mansão branca e moderna, com suas grandes janelas de vidro, flutuando entre as árvores como um sonho — ela esperava qualquer coisa.

O que ela não esperava era ver os vampiros e lobos, ambos de cada lado, em uma estranha reunião sobrenatural. E no centro de tudo, protegida pelos Cullen como um tesouro precioso, estava Bella.

Rose sentiu o chão desaparecer sob seus pés.

Bella estava imóvel, perfeita de uma maneira que humanos nunca eram. Seus cabelos caíam em ondas impecáveis, brilhando sob a luz como fios de seda, sua pele, lisa e pálida, parecia feita de porcelana. Mas eram os olhos que arrancaram um gemido sufocado de Rose.

Vermelhos.

Um vermelho vivo, profundo, como rubis banhados em sangue.

Não havia dúvidas.

Bella estava morta.

Notes:

Aqui termina Crepúsculo e, como eu disse antes, segue diferente do cânone. Alguns pontos dos próximos livros serão aproveitados, mas não vamos seguir igual.

E, é claro, ainda há muito para acontecer. 👀

Chapter 38: TRINTA E OITO

Chapter Text

— Ela não deveria estar aqui! — Bella disparou, seus novos olhos vermelhos faiscando sob a luz do sol.

Rose ignorou o aviso de Paul atrás dela, dando um passo à frente que fez Sam e Jared rosnarem em suas formas de lobo. Seus corpos enormes estavam tensos, observando cada movimento dos Cullen.

— Essa é a primeira coisa que você me fala, Isabella? Nenhum bom dia antes? Ou uma explicação do porque você decidiu ir embora? De novo.

— Não desconverse. — Bella respondeu, a voz mais melodiosa do que costumava ser. — Você sabe que não é seguro estar aqui.

— Desde quando você se importa com a segurança das pessoas? — Rose soltou uma risada seca, sentindo o gosto amargo da raiva e ressentimento na sua língua. — Você nunca se importou antes. O que mudou agora?

Bella franziu a testa, um gesto tão humano que doía de se ver.

— É diferente agora.

— Ah, sim. Porque agora você é uma deles. — Rose cuspiu, gesticulando para os Cullen que ainda estavam parados como estátuas atrás de Bella. — Você planejava contar para alguém? Ou só deixar todo mundo acreditando que você tinha morrido?

Edward ficou rígido. Ao seu lado, toda a família parecia prestes a adotar uma postura defensiva, enquanto Bella ficou calada. Sua expressão impassível e a postura imóvel diziam tudo, no entanto.

— Você é uma egoísta do caralho, Bella.

Edward se moveu então, um passo fluido que o colocou entre as duas.

— Chega, Rose! — Ele rosnou a centímetros do rosto de Rose.

Paul reagiu instantaneamente. Um estalo seco ecoou quando sua coluna se curvou de forma natural. Roupas rasgando. Ossos se modelando.

Sam e Jared avançaram para flanquear Paul enquanto ele completava a transformação. Pelos prateados surgiram em sua pele, seu rosto alongando-se em um focinho. Unhas virando garras. Dentes se tornando presas.

Em menos de três segundos, onde antes estava um homem, agora havia um lobo gigantesco, quase do tamanho de um cavalo, com olhos castanhos ardentes fixos em Edward, que deu um passo para trás.

Os Cullen reagiram em uníssono — Um grandalhão e outro cara com cachos loiros avançaram, uma loira e vampira que mais parecia uma fada assumiram uma postura defensiva. O Dr. Cullen e uma mulher que, ela presumiu, só poderia ser a sua esposa permaneceram calmos, seus olhos ardendo de preocupação.

Bella, no entanto, não recuou.

Num movimento borrado, ela fechou a distância entre elas, parando a centímetros de Rose.

— Eu sei que você está com raiva, Rose. Mas eu só queria…

Paul emitiu um rosnado profundo que ecoou pela estrada vazia e interrompeu Bella no meio da frase, seu corpo de lobo gigantesco contraindo-se ainda mais. Pelos eriçados, presas à mostra, mas Bella ignorou completamente a ameaça, seus olhos fixos apenas em Rose.

— Raiva? Isso seria simples. Eu estou simplesmente… cansada, Bella. Desgastada. Como se cada decisão sua me drenasse, mesmo quando não tem nada a ver comigo.

Bella piscou, pela primeira vez, mostrando algo parecido com surpresa.

— Eu não sabia que te afetava tanto.

— Claro que não sabia. Porque você nunca olha para além do próprio umbigo, Bella. Você só vê seus desejos, seus dramas, sua história. Você não vê o tio Charlie, a vida que você deixou para trás. Você não me vê.

Atrás delas, Edward fez um movimento súbito, mas o Dr. Cullen ergueu uma mão em um gesto contido. Os outros Cullen permaneceram imóveis, observando a cena com expressões variando entre cautela e curiosidade.

Paul, no entanto, não se conteve. Seus olhos ainda fitavam Bella com ódio puro, enquanto um rosnado contínuo saía de sua garganta.

Bella finalmente recuou um passo, seus novos instintos reconhecendo a ameaça que Paul representava. Mas quando falou novamente, foi diretamente para Rose, ignorando completamente o lobo furioso entre elas.

— Eu amei ele, Rose. Eu ainda amo. E tudo que eu fiz foi… seguir o meu coração.

— É assim que você chama agora? Deixar seu pai e a sua mãe com apenas a metade da filha que ele conhecia? Abandonar a sua humanidade? Largar o seu futuro? Você acha que é poético e romântico, mas você não passa de uma egoísta.

O Dr. Cullen deu um passo à frente, sua postura calma contrastando com a tensão no ar.

— Rose, por favor. A transformação não foi planejada. Bella quase morreu de verdade e nós…

— Eles me salvaram! — Bella interrompeu. — Você não entende! Eu quase morri!

Rose balançou a cabeça, os olhos ardendo.

— Eles salvariam o tio Charlie também? Ou ele não é importante o bastante?

Bella pareceu recuar fisicamente, como se tivesse levado um tapa.

— Isso não é justo.

— E o que você fez foi?

O silêncio pesou entre elas. Bella respirou fundo — um hábito humano que ela não precisava mais.

— É engraçado você falar de egoísmo, quando você é uma hipócrita. — Ela disse, a voz mais baixa.

Rose viu Paul tremer de raiva contida, mas apenas ergueu uma sobrancelha.

— Do que você está falando?

— Você acha que eu não percebi? — Bella disse, examinando Rose de cima a baixo. — Eu consigo sentir agora, Rose. Seu cheiro impregna o lugar a quilômetros de distância… e não é humano. 

Rose sentiu o rosto esquentar, mas manteve a postura.

— Você não sabe do que está falando.

O Dr. Cullen franziu a testa, olhando entre Bella e Rose com preocupação. Mas foi Edward quem tentou intervir, dando um passo à frente.

— Bella, isso não é…

— Cala a boca, Edward! — Bella rosnou sem olhar para trás, sua atenção focada em Rose. — O Charlie sabe sobre isso? Ou você também está mentindo para ele?

Paul emitiu um rosnado baixo, seus ombros tensionados. Sam e Jared, ainda em forma de lobo, avançaram um passo, suas presas à mostra.

— Eu não tenho que me justificar pra você, Bella.

— Rose, nós não podemos exigir que Bella se revele. É muito perigoso. — O Dr. Cullen interrompeu a discussão, e Rose, apesar de ainda odiá-lo, ficou grata por não precisar inventar alguma desculpa para o seu cheiro estranho.

Ela continuou falando, ignorando os lobos e os vampiros agora e focando a sua atenção totalmente em Bella.

— Ele merece saber, Bella. Se você ainda se importa minimamente com ele, você vai contar.

Bella pareceu hesitar por um segundo, mas então seus lábios se curvaram em algo que não era bem um sorriso.

— E você vai contar para ele sobre a sua anormalidade? E sobre o seu relacionamento com o lobo?

— Ele já sabe. — Rose suspirou, sentindo-se imensamente cansada de toda aquela discussão. — Ao contrário de você, eu não tenho a intenção de machucar ainda mais o tio Charlie. Eu nunca escondi nada dele.

O ar pareceu sair do peito de Bella quando ela percebeu o que Rose estava querendo dizer. Ela recuou levemente em choque, e Edward moveu-se para apoiá-la.

— Isso muda tudo. Se um humano sabe… — O Dr. Cullen murmurou.

— Não muda nada. — A loira alta interveio, cortando a conversa com um gesto brusco. — Nós ainda podemos ir embora.

— Por que você faria isso comigo, Rose? — Bella murmurou, atordoada.

Rose soltou um bufo, cruzando os braços com firmeza.

— Isso não tem nada a ver com você, Bella. Eu descobri sobre os Cullen logo depois de conhecê-los. Eu contei imediatamente ao tio Charlie.

Um silêncio pesado caiu sobre o grupo. O Dr. Cullen foi o primeiro a rompê-lo, seu tom visivelmente abalado.

— Você nunca me disse isso.

Rose virou-se para ele com um olhar desafiador.

— Eu nunca tive nenhuma obrigação com vocês, Dr. Cullen, exceto guardar o seu segredo. E eu o fiz. Tio Charlie manteve isso em silêncio todos esses anos. Eu fiz isso para protegê-lo, e não me arrependo. Mas mentir para ele? Fingir um acidente ou morte? Isso eu nunca perdoaria. Eu lhe dei a verdade, porque ele merecia saber.

Bella tremia visivelmente agora, suas mãos perfeitas se contraindo em punhos:

— Você não tinha o direito…

— Eu tinha todo o direito! — Rose explodiu. — É a minha família também, Bella! Enquanto você estava ocupada fantasiando sobre se tornar uma vampira e viver algum tipo de romance gótico, quem você acha que estava lá para o tio Charlie?

Paul aproximou-se de Rose num gesto protetor, seu corpo peludo e quente roçando a lateral do braço dela.

Rose continuou, agora com uma calma perigosa.

— Você escolheu se tornar isso, Bella. Esse é o seu problema. Mas virar as costas para o homem que te criou e te deu tudo? Isso se tornou meu problema também.

— Eu só queria proteger ele… — Bella murmurou.

— Não. — Seu dedo apontou para Bella, acusador. — Você nunca pensou no tio Charlie uma única vez. Nunca parou pra pensar no que significava para ele perder a sua única filha. Nunca considerou que o seu “para sempre” seria uma sentença para quem fica para trás.

Ela viu Edward estremecer, seu rosto perfeito se contorcendo em culpa. Os vampiros ao redor se mexeram desconfortavelmente, mas não disseram nada — alguns apenas olharam fixamente para Rose, como se estivessem concordando com as suas palavras ou considerando-a completamente louca.

— Rose, por favor… há maneiras certas de… — O Dr. Cullen tentou falar.

— Já passou da hora das maneiras certas acontecerem, Dr. Cullen. — Rose cortou secamente. — Você tem até o final do dia pra contar a ele, Bella. Ou eu mesmo conto.

Bella pareceu encolher-se, seus olhos vermelhos escurecendo de angústia.

— Rose…

Mas Rose já tinha virado as costas.

Paul, ainda em sua forma de lobo, esfregou o focinho contra a sua mão, um ronronar baixo saindo de sua garganta. Ela acariciou sua cabeça macia e os dedos enterraram-se na pelagem quente.

— Eu te encontro na casa do tio Billy, querido. — Ela murmurou, a voz suave apenas para ele.

Com um último olhar para os Cullen, Rose entrou no carro e ligou o motor.

Enquanto dirigia pela estrada até La Push, Rose de repente sentiu o medo a golpear como um soco no estômago. Por um lado, ela estava satisfeita por ter dito tudo o que estava engasgado na sua garganta há meses. Por finalmente colocar Bella frente a frente com as consequências de suas escolhas, e forçá-la a enxergar a realidade.

Por outro lado, e se ela tivesse sido impulsiva demais? Ela sabe as regras sobre o mundo sobrenatural — seja vampiro, lobo ou bruxo. Ela conhece o perigo que corre um humano que sabe demais.

Mas qual outro jeito existia? Deixar o tio Charlie definhar em sua dor? Mentir para ele? Assistir ele visitar uma lápide vazia como se a filha morta fosse a única versão de Bella que lhe restou?

Os olhos de Rose permaneciam fixos na estrada, mas a sua mente estava longe dali. Ela ainda conseguia pensar com clareza em tio Charlie a recebendo de braços abertos em Forks. Ele não fez perguntas, apenas a aceitou — mesmo triste, perdida e quebrada. Não fugiu quando ela contou a verdade, lhe deu um lar quando nem mesmo seus tios a queriam mais, deu a ela uma identidade quando ela não era mais ninguém.

Rose engoliu o nó que subia pela sua garganta. Ela devia a verdade a ele — inteira, nua e crua. Mesmo que arriscasse tudo. Mesmo que os Cullen a odiassem por isso. O tio Charlie a aceitou quando ela não tinha nada para oferecer, quando era apenas uma bruxa sem magia, uma estranha no mundo trouxa.

Ela não será a pessoa que vai mentir para ele.

O farol do carro iluminou brevemente a placa de La Push à frente. Rose respirou fundo, o peito doendo com o medo de ter estragado tudo e o alívio em permitir que o tio Charlie não fosse ainda mais magoado.

Não havia como voltar atrás, no entanto.

Ela estacionou em frente a casa do tio Billy, as mãos tremendo levemente no volante. Ela fechou os olhos por um instante, sentindo o peso dos últimos dias pressionando seus ombros.

Finalmente, Rose respirou fundo e saiu do carro.

Tio Billy abriu a porta da frente com um sorriso triste, seus olhos escuros cheios de uma compreensão que doía.

— Imagino que a reunião não tenha corrido bem?

Rose engoliu em seco.

— Foi pior do que eu esperava.

Tio Billy fechou os olhos por um segundo, como se já soubesse o que vinha a seguir.

— Bela é…?

— Sim.

Tio Billy suspirou, os ombros curvando-se sob o peso da confirmação. Ele virou a cadeira de rodas para o lado, deixando-a entrar.

— Como você reagiu? — Ele perguntou, enquanto ela se sentava no sofá, as pernas finalmente cedendo.

— Nada bem. — Ela admitiu, a voz mais áspera do que pretendia. — Eu ainda tenho muita raiva da Bella por ter deixado Forks e nunca ter ligado para o tio Charlie. E agora isso…

— Você está fazendo tudo o que pode, querida. Isso já significa muito. O Charlie sabe disso, mesmo que ele não diga.

Ela engoliu em seco, sentindo algo quente pressionar atrás dos olhos.

— Tia Sarah disse a mesma coisa naquele último natal, sabe? Ela disse que a vida ainda ia me testar de muitas formas, mas que eu deveria me manter determinada. Ela não mentiu.

Tio Billy riu baixinho, o som cheio de saudade.

— Aquela mulher sempre foi a mais sábia de todos nós.

Eles sorriram um para o outro, os olhos cheios de lágrimas ao lembrar de tia Sarah, enquanto ficavam em silêncio.

— E então… — Tio Billy finalmente disse, esfregando o queixo. — Por que você acha que foi tão ruim assim?

— Eu exigi que a Bella contasse a verdade ao tio Charlie.

Tio Billy apenas assentiu, como se já esperasse por isso.

— Mas isso não vai ser uma surpresa pra ele, vai?

Rose arregalou os olhos, então piscou rapidamente.

— Não… não vai ser.

— Ele já sabia sobre os vampiros?

— Sim, eu contei para ele há alguns anos. — Uma pausa. — Como você sabia?

Tio Billy soltou uma risada rouca.

— Eu amo o Charlie como irmão, mas o homem tem a sutileza de uma porta.

Os lábios de Rose se curvaram levemente antes que a dúvida voltasse a assombrar seu rosto.

— Você acha que eu estava errada, tio? Que eu estou errada em exigir que o tio Charlie saiba a verdade?

Tio Billy inclinou a cabeça, estudando-a por um longo momento antes de responder com outra pergunta:

— Você acha que está errada?

— Eu não sei. — Sua voz saiu mais baixa do que pretendia. — Só sei que… se fosse comigo, eu iria querer saber.

— Então você já tem a sua resposta.

Rose franziu a testa.

— Mas e se isso machucá-lo mais? Ou se colocá-lo em perigo? E se ele…

— Rose. — Tio Billy interrompeu gentilmente. — O Charlie já está magoado. Você viu como ele ficou nesses últimos dias. A verdade vai doer com certeza, mas é a mentira que o mata lentamente.

— Eu só não quero vê-lo sofrendo ainda mais.

— E ele não vai. Porque ele vai ter você ao lado dele.

Rose piscou rapidamente, surpresa.

— Isso não é só sobre a Bella, querida. — Um sorriso pequeno surgiu em seu rosto. — Você é praticamente uma filha para ele, sabe? Enquanto a Bella se foi várias vezes, você escolheu ficar. Ele foi abandonado pela esposa e pela filha, isso mexe com a cabeça de um homem. Você acha que eu não percebi como ele mudou desde que você veio para Forks? Mais saudável, mais feliz. E eu sei que você tem segredos, eu nunca exigi saber sobre eles, mas saber que você confia no Charlie o suficiente para confiar isso a ele… isso significou muito para ele. Você trouxe vida, risadas e um motivo para ele acordar de manhã. E agora você está aqui, lutando por ele mais uma vez. Como sempre fez. Contar a verdade é só mais uma prova do quanto você o ama. E eu conheço o Charlie há tempo suficiente para saber que por mais que ele precise de um tempo para lidar com a verdade, ele vai entender. E ele vai ser grato por isso.

Ela não conseguiu responder. Seu peito parecia quente e pesado, sufocante e reconfortante ao mesmo tempo, enquanto ela refletia sobre as palavras do tio Billy.

— Então, me diga… — Seu tom mudou, mais leve agora. — Você realmente acha que está errada?

Rose olhou para as próprias mãos, depois para o tio Billy.

— Não. — A resposta saiu clara, sem hesitação. — Não, eu não acho.

Tio Billy.

— Excelente.

E então, a porta rangeu anunciando a chegada da matilha. Paul entrou primeiro, seus olhos escaneando rapidamente a sala até encontrarem Rose. Em três passos largos, ele estava ao seu lado, as mãos quentes envolvendo as dela num gesto instintivo de proteção.

— Você está bem, querida?

Rose apertou seus dedos em resposta, sentindo a tensão acumulada nos músculos dele.

— Sim, apenas exausta, mas bem. E você? Ficou tudo bem lá?

— Tivemos que fazer um novo acordo com os Cullen. — Sam anunciou, sua expressão séria. — Aparentemente, houve alguma confusão com vampiros nômades. Os mesmos que perdemos o rastro semana passada. Atacaram Bella quando ela estava sozinha.

— Eles chegaram tarde demais para impedir a transformação. — Jared completou, os dentes cerrados. — Mas a tempo de matar um dos vampiros.

O tio Billy rodou sua cadeira para frente, as rodas rangendo no assoalho de madeira.

— Eles vão ter que sair de Forks?

Paul trocou um olhar com Sam antes de responder, sua mão ainda firmemente entrelaçada com a de Rose.

— Bella vai contar a verdade ao Sr. Swan. Em troca, eles pediram alguns anos antes de se mudarem definitivamente.

— Eu sinto muito por ter tomado essa decisão por você, Sam. — Rose baixou os olhos, um peso repentino no peito. — Eu sei que dei a ideia de dar um ultimato para eles, e isso pode ter simplesmente estragado tudo.

Sam surpreendeu-a ao bater levemente em seu ombro.

— Você não tem culpa de nada, Rose. Eu concordo que o Sr. Swan precisa saber a verdade, isso pode ser útil para ele saber onde está o perigo e se proteger.

— Mas os Cullen vão ficar na cidade… — Rose argumentou, a voz quase um sussurro.

— Por um tempo limitado, mas sim. — Jared interveio da porta. — E com regras mais rígidas também.

Paul puxou Rose para mais perto, quase aconchegando-a em seu colo.

— Você fez o certo, querida. — Ele murmurou em seu ouvido, os lábios quase tocando sua têmpora. — Não se preocupe.

O tio Billy observou o grupo com um olhar pensativo antes de anunciar:

— Bem, parece que teremos que marcar uma reunião com todos os anciãos.

Rose afundou no abraço de Paul, seu rosto pressionando contra o peito quente dele, onde podia ouvir seu coração batendo forte. As vozes da matilha e do tio Billy ecoavam acima dela, as palavras perdendo significado, enquanto ela fechava os olhos e se permitiu cochilar por alguns minutos, sem se preocupar com tratados, vampiros e segredos — ou com os olhares curiosos de Sam em sua direção.

 

*

 

Mais tarde naquele dia, Paul a levou para casa em seu carro e a deixou na porta com um beijo carinhoso, e uma saudade das férias que eles ainda não conseguiram ter.

Parecia um dejavú. Tio Charlie estava sentado no sofá da sala, a postura curvada, as mãos grandes repousadas inertes nos joelhos.

— Você sabia? — Foi a primeira coisa que ele perguntou.

Rose não precisou perguntar sobre o que ele estava falando.

— Eu descobri hoje.

Ele assentiu lentamente, os olhos fixos em algum ponto distante além da parede.

— Ela estava aqui há algumas horas.

— Foi… tudo bem? Vocês conversaram?

Um suspiro escapou dos lábios dele.

— Eu ainda a amo. Ela é minha filha, eu nunca poderia deixar de amá-la. Mas eu pedi um tempo. Para… processar tudo isso. Ela vai morar com eles, então não precisamos ter que lidar com isso agora.

— Entendo.

Foi então que o tio Charlie finalmente a olhou nos olhos, e o que ela viu lá a fez estremecer — não havia raiva, nem acusação. Apenas gratidão profunda.

— Ela disse que você exigiu que eu soubesse a verdade.

— Sim.

— Obrigada, querida. — Ele abriu os braços e Rose correu para ele, enterrando o rosto no ombro familiar. E então, como um clique rompido, as lágrimas vieram. De raiva, de exaustão e de alívio. — Nós vamos dar um jeito. Nós sempre damos.

E assim terminava aquele dia — sem grandes resoluções e nem finais perfeitos. Não havia vitórias claras, nem derrotas definitivas.

Não estava tudo bem. Talvez nunca mais estivesse completamente bem. Mas também não parecia que tudo estava perdido.

E, por enquanto, sabendo que o tio Charlie estava satisfeito com a verdade, que Paul estaria ao seu lado no dia seguinte, e que os Cullen não poderiam chegar perto deles por enquanto… isso era suficiente.

Não era um final feliz, estava longe de ser um final.

Mas era o começo de um novo capítulo — mais honesto e difícil, mas finalmente livre de tantas mentiras.

Chapter 39: TRINTA E NOVE

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Forks, WA

2007

A vida depois da grande revelação foi boa.

Rose completou 27 anos no verão, cercada pelas pessoas que mais amava. Tia Sue preparou uma torta de melaço, sua torta favorita, com uma cobertura tão doce que quase doía nos dentes, e Paul apareceu com uma garrafa de vinho que ela fez questão de servir a todos, até mesmo entregando uma taça escondida para Jake, que sorriu maliciosamente antes tomá-la em um só gole.

O resto da noite foi igualmente feliz — com tio Charlie, tio Billy e tio Harry, depois de algumas latas de cerveja a mais, começando a contar uma história mais absurda que a outra e fazendo todos rirem até a barriga doer; e Rose aconchegada entre as pernas de Paul, as costas coladas ao seu peito quente e os braços deles envolvendo-a pela cintura. De vez em quando, ela ria um pouco mais alto, e ele a puxava ainda mais perto, seu nariz encontrava o seu pescoço, fazendo a sua pele arrepiar e seu coração acelerar dentro do peito.

O resto do verão, antes de começar a sua residência, foi passado com doses generosas dessa paz — longas manhãs preguiçosas enrolada na cama de Paul, tardes observando-o trabalhar em seu escritório, caminhadas na praia enquanto a água gelada quebrava em espuma sob seus pés descalços, as suas mãos se entrelaçando naturalmente e os seus lábios se encontrando ocasionalmente. E as noites eram só deles. Encolhidos no sofá, enquanto algum filme servia de plano de fundo e eles se perdiam em explorações silenciosas — toques suaves sob a camiseta, beijos molhados trocados entre suspiros e o calor dos seus corpos entrelaçados, enquanto o mundo lá fora era reduzido a um borrão distante.

Às vezes eles jantavam com o tio Charlie, e Rose se certificava em mantê-lo alimentado e feliz, mesmo sabendo que ele ainda estava lidando com as mudanças com a sua filha. Outras vezes, eles iam para a casa dos Black. Tio Billy os recebia com um sorriso que iluminava seu rosto. Finalmente, ele não precisava mais dançar entre meias verdades com o seu melhor amigo. Tio Charlie sabia de tudo, dos vampiros aos lobos — embora a verdade sobre os lobos o tenha deixado extremamente chocado com o fato de que Rose namorava com um deles. Pelo menos não é um vampiro também, foi o que ele disse. E Jake ainda choramingava com o fato de que Bella, aparentemente, havia fugido para se casar com o seu namorado e que ele nunca teria uma chance. Ninguém estava disposto a lhe contar a verdade até que ele desse algum sinal de que estava próximo da transformação.

Em outras noites, Paul e Rose iam juntos para a casa de Emily. Havia um tempo em que estar no mesmo ambiente que Sam e Emily seria desconfortável, praticamente impensável. Agora, ela conseguia jantar ocasionalmente com eles, rir de uma piada de Sam e até mesmo trocar receitas com Emily. Eles nunca falaram sobre Leah, no entanto, ainda era um tópico sensível que ninguém queria trazer à tona. Rose ainda a amava, ainda a considerava sua melhor amiga. Enquanto, Sam e Emily ainda sentiam muita culpa por tudo o que havia ocorrido, embora nunca tivessem tentando consertar corretamente. Ela realmente não queria pensar muito sobre isso.

Jared, por outro lado, era um poço de entretenimento e piadas sem graça. Ele jogava amendoins em cima dela quando achava que ela não estava prestando, inventava apelidos ridículos e sempre a arrastava para partidas intermináveis de Banco Imobiliário, nas quais ele sempre roubava. Paul revirava os olhos e resmungava “vá atrás do seu próprio imprint, cara”, enquanto puxava Rose para mais perto de si num gesto possessivo que fazia Jared gargalhar.

Enquanto isso, os Cullen permaneciam escondidos. O acordo era que, embora eles fossem permitidos a continuar vivendo em Forks, eles não poderiam circular pela cidade livremente. Todos os “filhos” haviam se formado na escola, então não precisavam estudar, o que era uma vantagem. Rose ficou sabendo, por meio das fofocas no hospital, que eles inventaram algo sobre supostas bolsas de estudos em faculdades de elite. Quanto a Bella, a história, é claro, era que ela havia fugido para se casar com Edward, desaparecendo durante oito dias e deixando o Chefe Swan enlouquecido de preocupação. A fofoca da vez era especular se Bella estava ou não grávida.

Rose não conseguiu evitar. Ela teve que se esconder em um dos banheiros para rir daquele absurdo. Bem, pelo menos era entretenimento gratuito.

O único que escapou da ordem da matilha foi o Dr. Cullen, que apesar de ser um vampiro e culpado, permaneceu com o seu emprego no hospital para evitar ainda mais fofocas ou suspeitas desnecessárias. Rose não se preocupava com isso, no entanto, já que foi designada para a Dra. Jones, como a sua supervisora direta. Então, apesar de se cruzarem nos corredores, um aceno imperceptível e um “Dra. Potter” formal, quando absolutamente necessário, era a única interação que eles tinham. Nada mais.

Rose não tinha notícias de Bella há meses e sabia que às vezes o Dr. Cullen a observava — aqueles olhos dourados pairando sobre ela por um segundo a mais do que deveriam antes de se desviarem. Talvez se perguntando se ela ainda carregava algum rancor, talvez desejando falar sobre a sua nova filha.

Mas ela nunca dava a ele a satisfação de um olhar prolongado, e preferia manter distância pelo maior tempo possível.

Então, a vida era boa.

 

*

 

Rose estava sonolenta no sofá da casa de Paul, vestindo nada além de uma daquelas camisas enormes dele que caíam sobre um dos ombros revelando a curva do seu pescoço. A luz do entardecer pintava listras douradas na pele dela através das persianas, e o cheiro de manteiga derretida enchia o ar — porque Paul estava na cozinha, fazendo pipoca usando apenas uma cueca preta justa que deixava pouco para a pobre imaginação dela.

— Eu consigo sentir o seu olhar queimando nas minhas costas. — Paul provocou, enquanto mexia a panela com movimentos largos que faziam os músculos das costas se flexionarem.

Rose mordeu o lábio, os pés descalços se contorcendo contra o sofá.

— Bem, eu posso fazer você sentir mais do que o meu olhar…

Paul congelou. A colher pairou no ar enquanto ele virava para encará-la, aqueles olhos castanhos já se tornando escuros à medida que a sua pupila dilatava.

Em segundos, ele desligou o fogo e se jogou sobre ela, seu corpo enorme afundando o sofá enquanto as mãos dele envolviam a sua cintura. Rose soltou uma risada abafada quando ele parou a centímetros dos lábios dela, o calor da respiração deles se misturando.

— Você ainda vai me matar, mulher.

Ela sorriu, deslizando os dedos pelos músculos tensos de suas costas, sentindo-os contrair sob seu toque.

— Você gosta.

— Eu amo. — Ele corrigiu.

Então, quando ele se aproximou para beijá-la, o telefone de Rose tocou.

Não. Não atende agora, amor. — Paul sussurrou, os lábios percorrendo o maxilar dela e descendo até o pescoço numa lentidão que fez o estômago dela se encher de borboletas.

— Pode ser do hospital. — Rose gemeu, mais pelo toque dele do que por remorso, tentando alcançar o celular que tocava insistentemente na mesa de centro.

Paul suspirou profundamente, claramente frustrado, mas deu um beijo estalado nos lábios dela, antes de voltar para a cozinha.

— Você vai me pagar por essa interrupção, Dra. Potter. — Ele avisou, enquanto mexia novamente a pipoca.

Rose riu, os lábios ainda formigando do toque dele, e atendeu o celular com um suspiro teatral.

— Doutora Potter. — Ela disse, a voz ainda um pouco sem fôlego.

A voz que veio do outro lado da linha não era o que ela esperava.

— Rose?

Seu corpo reagiu antes mesmo da mente. Os dedos se apertando demais no celular, os músculos travando.

— Oi, Bella. — A resposta saiu cortante.

Ela percebeu como Paul ergueu os olhos rapidamente para ela, imóvel como uma estátua, o corpo tenso como um animal farejando perigo.

Do outro lado da linha, houve uma pausa.

— Eu… — Bella começou, a voz estranhamente humana em sua hesitação, embora ainda tivesse aquela ressonância sobrenatural que fazia os pelos dos braços de Rose se arrepiarem. — Eu queria te convidar para o meu aniversário. 19 anos. Só família… se você quiser.

Rose quase riu.

Bella nunca faria 19 anos. Nunca faria 20, ou 30, ou 50. Ela estava presa naquela mentira, assim como os Cullen.

— Não acho que seja uma boa ideia.

— Rose, por favor. — A súplica soou genuína, mas Rose não estava com disposição para isso. — Eu só quero me desculpar. De verdade.

— Eu preciso de tempo, Bella.

— Tempo? Já se passou quase um ano, Rose.

— E daí? — Rose apertou os olhos, a raiva subindo imediatamente. — Um ano não apaga o que você fez. Não apaga o que o tio Charlie sentiu. Não apaga o fato de que você escolheu essa vida.

— Eu sei. — Bella respondeu, a voz mais baixa. — Mas eu pensei muito sobre tudo. Eu estou tentando consertar. Eu não quero me distanciar de você e do Charlie. Eu tenho um controle melhor agora, sabia? Eu posso…

— Bella, eu nem consigo olhar pra você. — Ela interrompeu, admitindo. — Como você espera que eu te perdoe?

Paul se aproximou silenciosamente, colocando uma mão no ombro de Rose, os dedos firmes, ancorando-a.

Do outro lado da linha, Bella ficou em silêncio por tanto tempo que Rose quase achou que a ligação tinha caído.

— Eu não espero. — Bella disse, a voz tão suave que Rose quase não ouviu. — Mas eu tinha que tentar.

E então a ligação terminou.

Rose ficou parada, o celular ainda pressionado contra o ouvido, o corpo tremendo com emoções conflitantes. Uma onda de sentimentos contraditórios inundava o seu peito.

Por um lado, havia um pouco de culpa. Ela sabia que Bella teve um ano para racionalizar sobre as suas escolhas e, provavelmente, estava sofrendo à sua maneira. Presa naquele limbo entre o que fora e o que se tornara, tentando manter um fio de conexão com a vida humana que ela abandonou. Essa Bella, a que ligou cheia de hesitação, timidez e um fio de esperança, era quase mais difícil de odiar do que aquela que fugiu sem olhar para trás.

Por outro lado, cada palavra de Bella trazia à tona memórias que queimavam como álcool numa ferida aberta. O som do choro abafado do tio Charlie atravessando as paredes de cada na madrugada. O olhar vazio dele diante das palavras de Bella antes de ir embora. A maneira como os seus olhos sempre voltavam para uma fotografia de Bella na sala com culpa, mesmo que ele ainda não estivesse pronto para vê-la. Como ela poderia sequer considerar perdoar isso? Quando cada lembrança ainda era um corte fresco na sua alma.

Rose não tinha conclusão, e não sabia o que pensar sobre essa última interação.

Paul, percebendo a tempestade interna dela sem precisar de palavras, envolveu os braços ao seu redor e a puxou para o seu colo. Rose afundou no abraço, deixando o cheiro familiar dele preencher seus pulmões e acalmá-la lentamente.

Havia uma parte dela que ansiava pela simplicidade do perdão, pela possibilidade de recuperar algum vestígio de família para o seu tio, embora ela própria não se importasse tanto assim com Bella. Mas outra parte, maior e mais ferida, se recusava a conceder esse alívio. Perdoar seria trair todas as noites em que ela dormiu em uma poltrona desconfortável na sala para não sair do lado do tio Charlie. Seria aceitar que o sofrimento dele fosse um preço justo pela felicidade de Bella. E isso Rose não sabia como fazer — talvez nunca soubesse.

Rose apertou os olhos com força, como se pudesse espremer para fora a confusão de sentimentos que a consumia.

— Eu deveria sentir mais pena dela? Porque eu não consigo. Mesmo se eu quisesse… não sei como perdoá-la.

Paul não hesitou. Suas mãos grandes envolveram o seu rosto, os polegares acariciando suas maçãs.

— Então, não o faça. Você não tem obrigação, meu amor.

— Mas ela…

— Ela fez uma escolha. — Paul interrompeu gentilmente. — E as escolhas têm consequências. Você não é responsável por como ela se sente com isso.

Ele a puxou para perto novamente, seu coração batendo forte e constante contra o ouvido dela.

— Eu me preocupo se os meus ressentimentos podem atrapalhar o relacionamento dela com o tio Charlie.

Paul suspirou, seus dedos encontrando os cabelos dela com ternura.

— O Sr. Swan é um homem crescido, querida. Se ele quiser ter algum relacionamento com a Bella, ele pode cuidar de si mesmo.

Ela sacudiu a cabeça, o nariz esfregando contra o peito dele.

— Mas você viu o jeito que ele muda de assunto quando alguém menciona o nome dela?

— Porque ele te ama, não porque você está controlando ele. — A resposta veio imediatamente. — Ele sabe como você se sente em relação à Bella, e ele não quer te machucar ainda mais.

Rose abriu a boca para argumentar, mas depois fechou.

Paul viu a compreensão acender em seus olhos e sorriu amorosamente.

— O único que está colocando condições é o próprio Charlie. E se ele ainda mantém distância de Bella… — Ele encolheu os ombros, os dedos traçando a linha do seu queixo. — É porque ele, no fundo, ainda não a perdoou também.

Rose soltou um suspiro profundo, como se seu corpo estivesse se livrando de um peso.

— E se eu nunca conseguir perdoá-la?

Paul encostou os lábios em sua testa em um beijo suave.

— Então, você nunca perdoa. E tudo bem.

— Você faz parecer tão fácil. — Ela protestou fracamente. — É difícil esquecer tudo isso.

Ele abriu um sorriso maroto que fez as pernas de Rose fraquejarem e a sua espinha derreter. Seus olhos brilharam, e antes que Rose pudesse processar, ele já a levantava do chão como se pesasse nada, suas pernas envolvendo automaticamente sua cintura.

— Eu vou te ajudar a esquecer, então. — Ele sussurrou contra seus lábios, as mãos grandes escorregando sob a camisa que ela vestia com uma intenção tão clara que fez o seu sangue ferver.

E quando seus lábios finalmente se encontraram, Rose esqueceu.

Esqueceu as tantas palavras não ditas, as feridas mal curadas, o telefone abandonado no sofá. Esqueceu as dores de cabeça, os medos e os receios.

Havia apenas isso — o sabor da boca de Paul contra a dela, o cheiro da sua pele quente, as mãos grandes e calejadas que a seguravam como se ela fosse o centro do seu universo, pressionando a sua cintura, afundando na carne macia do seu quadril, envolvendo seus cabelos. E no meio de tudo isso, nos pequenos intervalos em que seus lábios se separaram, Paul murmurava elogios que faziam seu rosto corar, garantias que acalmavam as suas tempestades internas e aquele apelido que só ele usava, num tom que ninguém jamais no mundo conseguiria reproduzir. E Rose respondia arranhando os ombros dele, mordendo seu lábio, puxando-o para dentro de si como se pudesse fundi-los em um só, dissolver a fronteira entre a carne e a alma, e apagar qualquer espaço entre eles.

E por um instante, o resto deixou de existir.

Notes:

Nossa, finalmente chegamos em 2007. Meu deus, desde que Bella chegou nem saímos do mesmo ano. Essa garota é fogo, hein!

De qualquer forma, essa é uma passagem de tempo. Estamos acelerando um pouco as coisas para começar a descida até o final. Afinal, finalmente, passamos da metade dessa história.

Uau, que viagem!

Chapter 40: QUARENTA

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Aconteceu pouco tempo depois.

Rose estava finalizando um longo plantão quando o celular vibrou no bolso do seu jaleco. O cansaço pesava em seus ossos, mas ela resistiu à tentação de checar o aparelho imediatamente enquanto ainda estava no hospital. Foi só quando chegou ao estacionamento, pronta para ir para casa, que ela leu a mensagem de texto — era Paul.

“É o Jake. Aconteceu agora. Casa do Billy.”

Ela sentiu o seu coração pular dentro do peito com a notícia.

No fundo, Rose ainda alimentava a frágil esperança de que talvez Jake não virasse um lobo. Afinal, ainda que houvesse uma grande movimentação de vampiros na região nos últimos anos, a matilha nunca aumentou. Ela não achou que o universo fosse tão cruel ao ponto de fazer de Jake — ainda um adolescente — um lobo, mas, aparentemente, estava errada.

Embora, por outro lado, Paul tenha se tornado um metamorfo mais ou menos na mesma idade, então ela realmente não tinha muitos argumentos.

Rose engoliu em seco, sentindo a garganta apertar. Os seus dedos tremeram levemente ao digitar uma resposta.

“Ele está bem? Precisam de algo?”

“Ele está se acostumando. Bagunçou metade da sala e machucou o Billy no braço. Você pode vir até aqui?

Rose não pensou duas vezes antes de concordar.

Ela enfiou o celular no bolso enquanto corria para o carro. O kit de primeiros socorros estava guardado no porta-malas e ela estava grata por ter pensado em atualizá-lo recentemente.

O motor do carro roncou quando ela virou a chave, e antes mesmo do cinto estar completamente afivelado, Rose já estava acelerando em direção a La Push. A estrada se abriu à sua frente, sinuosa e escura, enroscando-se entre as árvores. Os faróis cortavam a névoa noturna, iluminando faixas de asfalto úmido e depois escuridão novamente, num ritmo quase hipnótico. Seus dedos tamborilavam no volante, acompanhando o tique-taque irritante do pisca-alerta que ela esqueceu de desligar.

Rose apertou um pouco o volante, enquanto pensava em Jake e Billy e em como eles deveriam estar assustados com todas essas mudanças. Um garoto ainda — mesmo que já tivesse 18 anos —, preso num corpo que não entendia, com o coração batendo a mil por hora e o mundo fora do eixo, vendo, sentindo e cheirando de um jeito completamente novo.

O carro derrapou levemente na estrada de terra da casa dos Black, a poeira vermelha levantando como fumaça. A porta da frente estava entreaberta, a luz amarela da sala vazando para a varanda escura.

Rose desligou o motor e, sem hesitar, pegou o seu kit e foi até eles.

Ela empurrou a porta da frente, e o cenário que se abriu diante dela fez o ar sair de seus pulmões. A sala parecia ter sido atingida por um furacão — a mesa de centro estava em pedaços, o sofá rasgado como papel, almofadas espalhadas com o enchimento vazando, pedaços de vidro brilhando no chão, misturados a lascas de madeiras e… era sangue naquele canto?

Antes que Rose pudesse processar completamente, Paul surgiu da cozinha, cruzando a sala em três passos largos.

— Oi, querida. — Ele disse, a voz rouca de alívio, antes de puxá-la para um abraço que quase a tirou do chão. Seus lábios encontraram os dela em um beijo rápido, e Rose agarrou-se às suas costas imediatamente.

— Onde está o tio Billy? — Ela perguntou ao se separar, os olhos já escaneando o ambiente à procura do tio.

Paul apontou para a porta com o queixo, a mão agora firmemente entrelaçada na dela.

— Na cozinha. Cortou o braço com alguns dos pedaços de vidro que voaram, mas ele está bem.

— E o Jake? — Rose sussurrou, os dedos apertando os dele involuntariamente.

— Na floresta. Ele ainda não conseguiu voltar para a forma humana, o Sam está ajudando ele.

— É muito difícil voltar da primeira vez?

Paul fez uma careta, provavelmente relembrando memórias difíceis.

— Sam sofreu mais do que todos nós. Ele foi o primeiro, não tinha ninguém pra ensinar. O Velho Quil teve que ir lá conversar com ele na floresta.

— Deve ter sido horrível. — Ela sentiu um frio na espinha, de repente sentindo uma mistura de compaixão e pena de Sam. — E você?

— Eu estava com muita raiva, você deve se lembrar. — Paul encolheu os ombros levemente. — Foi difícil voltar, porque eu não conseguia me acalmar.

— Entendo. — Rose mordeu o lábio antes de continuar. — Você acha que o Jake vai ficar bem?

— Claro que sim, amor. — Paul a puxou para mais perto, o rosto enterrado em seu cabelo. — Não se preocupe, Prim. Cuide do Billy primeiro. Depois nós lidamos com o resto.

Rose seguiu Paul em direção à cozinha. Quando a porta se abriu, encontrou o tio Billy na sua cadeira de rodas, envolvendo o antebraço esquerdo com um pano já manchado de vermelho.

— Você não precisava se preocupar em vir, Rose. — Billy estalou a língua, mas os seus olhos escuros brilhavam de afeto. — O Paul aqui achou que precisava chamar reforços médicos para um machucado de nada.

Rose cruzou os braços, erguendo uma sobrancelha.

— Deixa eu ver esse “nada” então. — Colocou seu kit sobre a mesa e puxou uma cadeira para se sentar ao lado do tio.

Billy soltou um suspiro dramático, mas esticou o braço na sua direção obedientemente.

— Eu já sofri coisas piores. Isso é só um arranhão. Na minha época…

— Na sua época, vocês provavelmente passavam whisky e amarravam com uma corda. — Rose já examinava o corte profundo que atravessava a pele enrugada. O sangue ainda escorria em filetes finos.

Tio Billy cerrou os dentes quando a ferida ardeu enquanto ela limpava diligentemente, mas um sorriso escapou pelos cantos da boca.

— Eu não sou tão velho assim, garota.

— Só velho o suficiente pra ser teimoso. — Rose retrucou, os dedos já enfaixando o ferimento com movimentos precisos. — Não vai precisar de pontos, isso é bom. Vou passar um remédio caso você sinta dor, tio Billy.

Paul, encostado no batente da porta, riu baixinho, mas disfarçou com uma tosse quando Billy lançou um olhar gélido para ele.

— Traidor. — Ele resmungou, mas não conseguiu disfarçar o sorriso.

Rose ergueu os olhos do curativo, a testa franzida de preocupação.

— Você está bem mesmo, tio?

— Sim, claro. Todos nós sabíamos que isso era possível, e com os nossos vizinhos se multiplicando por aí… era só uma questão de tempo.

Eles ficaram em silêncio por alguns minutos, enquanto Rose finalizava o trabalho.

— O Jake vai ficar bem. — Ela murmurou, mais para si mesma do que para eles.

— Claro que vai. — Paul empurrou-se da porta, fechando a distância entre eles para ajudar Rose a organizar seus pertences e limpar a mesa. — Ele não está sozinho.

Tio Billy soltou um grunhido que poderia ser concordância ou apenas reconhecimento.

— Já que vocês estão aqui, podem me ajudar a arrumar essa bagunça?

— Claro, tio Billy. — Rose concordou rapidamente, já seguindo para a sala para recolher os pedaços de vidro e madeira do chão, enquanto Paul cuidava dos pedaços maiores.

— Onde você quer que eu leve isso, Billy? — Paul perguntou.

— Lá fora, no galpão. — Billy apontou com o queixo, as mãos nas rodas da cadeira, enquanto se movimentava pela sala tentando ajudar onde pudesse.

Rose aproveitou o momento a sós com o tio.

— Tio Billy… Por que você nunca… — Ela hesitou, sentindo-se envergonhada de repente por fazer uma pergunta tão pessoal.

Mas ele entendeu rapidamente.

— O espírito protetor vive em todos nós, querida. Mas ele só desperta em poucos. E nem mesmo acontece frequentemente. O Velho Quil viu os últimos metamorfos surgirem quando ainda era jovem. — Ele suspirou, o som vindo de um lugar profundo. — Eu não nego que passei anos sonhando com isso, especialmente depois que as minhas pernas me traíram. Achava que se virasse um metamorfo, talvez pudesse andar de novo. Só que os espíritos não existem para atender aos nossos desejos mais mesquinhos, não é uma muleta para as nossas vontades. Eles surgem onde a comunidade precisa, não onde o homem deseja.

Rose esticou a mão e apertou o ombro do tio.

— Jake só tem dezoito anos. Não é… não é responsabilidade demais?

— A idade do corpo é irrelevante para os ancestrais, Rose. Ele não escolhe o mais forte, nem o mais velho. Escolhe o que tem a intenção certa. Para que ele se torne um vaso onde o primeiro lobo volte a respirar. Para que, quando ele corra, as outras vinte gerações de protetores corram junto com ele.

— Entendo. Me preocupo se ele é capaz de aguentar.

Tio Billy arqueou uma sobrancelha.

— Você tinha essa mesma preocupação com Paul?

Rose parou para pensar por um segundo e concluiu que era verdade. Ela nunca duvidou de Paul. Ela temia por ele, sim, pela sua segurança, mas nunca questionou a sua força ou capacidade.

Jake, por outro lado, ainda era um garotinho de oito anos na sua mente, sentado na sala de estar, entregando-lhe um desenho torto de um lobo no Natal. Talvez fosse superproteção. Talvez fosse o fato de que, depois que a tia Sarah faleceu, Rose tinha estado próximo dos Black o tempo todo — ajudando Jake a ler um livro, amarrar os cadarços ou brincar com os seus carrinhos. Vendo-o crescer lentamente, tornar-se um adolescente, fazer planos para a sua vida adulta.

Era difícil não sentir o coração se contrair ao imaginá-lo perdido, assustado, sozinho. Um estranho na própria pele que agora o traía.

— Você está certo. — Rose suspirou. — Paul sempre lidou com problemas maiores desde muito novo e eu nunca duvidei que ele conseguiria lidar com isso também, enquanto Jake, bem… talvez eu ainda o veja como um menino que precisa segurar a nossa mão.

Tio Billy observou-a por um momento antes de estender a mão, cobrindo a dela com firmeza que a fez olhar para cima.

— Você apenas tem um coração gentil, querida. Nós somos gratos pelo seu apoio e presença desde o dia em que você pisou em Forks. — Ele disse, simples e direto. — Não se preocupe, Jake vai conseguir lidar com isso. E se ele precisar de ajuda, eu sei que você e eu estaremos lá para continuar segurando a mão dele.

Ela abriu um sorriso pequeno, se sentindo confortada. Não era o suficiente para apagar os seus receios, mas era o suficiente para ela perceber que, embora Jake agora fizesse parte do mundo sobrenatural, isso não apagava quem ele era. E que Rose estava disposta a proteger e apoiar, com tudo de si, o seu irmão em tudo, exceto no sangue.

O som dos passos de Paul se aproximaram da porta, ele não vinha sozinho. 

Entrou primeiro, indo imediatamente sentar ao lado de Rose. Atrás dele, Jake e Sam seguiam, ambos usando apenas um shorts jeans rasgados.

Jake parecia exausto, os olhos abatidos e levemente assustados, como se ainda não tivesse caído a ficha que agora ele era um lobo. Ele esfregou o rosto com as mãos, tentando disfarçar um tremor, mas Rose percebeu.

Sam, por outro lado, parecia tão sereno quanto sempre. Seu olhar passou por tio Billy, depois por Rose, acenando levemente em sua direção.

— Pai… desculpe pela bagunça. — Jake disse, olhando ao redor como se só agora percebesse como a sala estava. — Prometo que vou arrumar.

Tio Billy apenas acenou com a cabeça, despreocupadamente.

— Não se preocupe, filho.

— Ei, Jake. — Rose acenou. — Como você está?

— Primmy. — Ele esticou o apelido, exagerado, e com um sorriso brilhante. — É bom saber que você sabe de tudo isso, eu nunca poderia mentir pra você.

— É mesmo? — Rose cruzou os braços, mas não conseguiu evitar o sorriso que esticava o canto dos seus lábios. — Porque eu me lembro de você mentindo pra mim sobre quem comeu meu pedaço de bolo semana passada.

Eu já disse que isso foi sem querer. Agora cadê o meu abraço? — Jake deu um passo à frente, ignorando a maneira como Paul ficou tenso ao seu lado. — Nossa, você é cheirosa.

— Jake… — Paul avisou, a voz cortante.

Jake riu, despreocupado.

— Relaxa, cara. Tô sabendo de toda essa história de almas gêmeas. — Ele revirou os olhos. — Mas o meu faro é tipo um superpoder agora, sabe? Não dá pra evitar.

Rose caiu na gargalhada, enquanto Paul fuzilava Jake com os olhos e Jake sorria como um idiota.

— Como você está se sentindo?

Jake ergueu as mãos na sua frente, examinando os dedos como se ainda não acreditasse que eram os mesmos de antes.

— Melhor agora. Foi assustador no início, com toda aquela coisa de virar uma bola de pelos e depois descobrir que, aparentemente, as histórias que meu pai conta são reais. E essa coisa de imprint. E não podemos esquecer dos…

A expressão dele mudou. O sorriso desapareceu, substituído por uma feição mais sombria que fez Paul enrijecer e puxar Rose pela cintura, tentando protegê-la.

— Você soube, então?

Jake assentiu, com a mandíbula tensa.

— Bella virou um deles?

— No ano passado.

— Não posso acreditar que ela foi tão idiota. Você sabia que ela me ligou? Depois de tudo aquilo… — Ele cuspiu. Rose ergueu as sobrancelhas, supresa. — Sim, embora eu não soubesse o que tinha acontecido, é claro. Eu só sabia sobre a mentira, sobre ela ter fugido para se casar. Isso realmente aconteceu?

— Não que eu saiba. Na verdade, ela foi pega no fogo cruzado por um ataque de nômades. — Rose balançou a cabeça, os braços cruzando-se automaticamente. — O que ela queria com você?

— Aparentemente reatar a nossa amizade ou algo do tipo. — Jake soltou um riso sem humor. — A gente saía pouco, você sabe disso, mas eu… Eu ainda a considerava uma amiga. Mas de repente ela parou de falar, começou a namorar com esse cara, sumiu de La Push. Não era como se ela tivesse feito algum esforço para manter a minha amizade. Eu não deveria me sentir culpado por não ter me esforçado na tentativa dela agora, certo?

Rose não pensou duas vezes antes de responder.

— Claro que não. — Ela suspirou. — Sinto muito, Jake. Eu sei que você gostava dela.

— Bem, isso ficou no passado agora. Essa coisa não é a Bella.

O silêncio que se seguiu depois dessa declaração foi revelador. Rose manteve o olhar fixo em Jake por alguns minutos, procurando a sombra do garotinho que escalava seu corpo implorando por colo ou do adolescente enorme que ela pulava nas costas, mas encontrando apenas essa nova pessoa. 

Jacob Black, o protetor.

Sam finalmente interveio, deu um passo à frente e falou direto com o tio Billy.

— Jake ainda está aprendendo a controlar a transformação. Mas já é melhor do que Paul, Jared e eu mesmo no início.

— Isso é bom. Temos que marcar uma reunião com os anciões para discutir os próximos passos.

— O quê? Que próximos passos são esses? — Jake perguntou.

— Você é o descendente direto de Ephraim Black, Jake. — Sam disse, seu olhar firme em Jake. — É a sua responsabilidade assumir como Alfa da matilha.

Jake parecia que poderia desmaiar a qualquer momento.

O quê?! Mas eu sou obrigado a assumir?

Tio Billy olhou para o filho com a testa franzida, as rugas se aprofundando em sua pele.

— É a sua responsabilidade e herança, filho.

Jake balançou a cabeça com veemência, os dedos se contraindo involuntariamente, como se as suas unhas já quisessem se transformar em garras.

— Pai, eu descobri há menos de 24 horas que sou um lobo, eu mal aprendi a me transformar novamente em humano. Como diabos eu posso ser um alfa?

Seu corpo estava tremendo agora, e Rose viu os músculos de suas costas se contraírem sob a pele. Antes que ela pudesse reagir, Paul agarrou seu braço e puxou-a para fora do sofá em um movimento brusco, colocando-se entre ela e Jake protetoramente, seu corpo tenso como uma mola prestes a disparar.

Jake não parecia notar. Ele estava olhando para Sam, depois para Billy, buscando algum sinal de que isso era uma piada, um teste, qualquer coisa.

— Eu não pedi por isso. — Ele rosnou, irritado.

Sam cruzou os braços, inabalável.

— Nenhum de nós pediu, Jake. No entanto, aceitamos a responsabilidade como ela é.

Eu não quero!

— Jacob! — A voz do tio Billy ecoou como um trovão, mas Jake já estava se movendo, seus passos pesados contra o chão de madeira.

— Você não pode me obrigar, pai. O Sam pode continuar como alfa. Qual o problema? Eu não quero!

— Não é assim que funciona, Jake.

— Não importa.

E então ele partiu, a porta batendo atrás dele com um estrondo que fez as janelas tremerem.

Tio Billy fechou os olhos por um momento, esgotado, antes de respirar fundo e se virar para Sam.

— Eu vou marcar uma reunião com os anciões para discutir o que fazer. Obrigado, Sam.

Sam assentiu sem dizer nada.

Lá fora, na escuridão, um uivo solitário respondeu.

Foram apenas alguns dias depois que Paul disse para Rose sobre as mudanças — que, na verdade, não mudaram nada. Sam continuaria como Alfa da matilha por tempo indeterminado até Jake decidir que era a sua hora de assumir.

Ou até que ele fosse forçado a assumir.

Notes:

Sinceramente, eu vejo esse capítulo como um interlúdio. Eu precisava encontrar um momento para Jake se transformar e se encaixou aqui.

Acredito que é nesse momento que algumas coisas começam a mudar e tudo se torna mais sombrio(?). Não sei se essa é a palavra certa, mas daqui em diante começa a descida para baixo.

Chapter 41: QUARENTA E UM

Notes:

Tem muito sangue, violência e confusão nesse.

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Forks, WA

2008

Se algo pode dar errado, vai dar errado. Rose não sabia quem inventou a Lei de Murphy, mas estava pronta para apostar que essa pessoa tinha morado em Forks.

Era como se o mundo tivesse escorregado por uma fenda invisível. Primeiro foi Jake virando um lobo, com a pele fervendo como brasa, a voz grave demais e o crescimento anormalmente acelerado. Meses depois foi Embry. Depois Quil. Como peças de dominó inclinando-se umas sobre as outras, caindo em um ritmo regular e acelerado, como se houvesse um plano arquitetado por mãos invisíveis que só agora começavam a mostrar os seus contornos.

E então vieram os desaparecimentos em Seattle.

O tio Charlie falava sobre isso à mesa durante o jantar, com a testa franzida e os olhos apertados. No jornal em suas mãos, as letras pareciam saltar ofensivamente da página, letras duras, quase insultuosas, descrevendo desaparecimentos de jovens e outros corpos encontrados dias depois, dilacerados, marcados por algo que nenhum laudo conseguia explicar com clareza.

Rose ouvia as divagações de tio Charlie em silêncio, o garfo parado a meio caminho do prato, porque ela conhecia aquele padrão. Marcas assim não eram deixadas por animais comuns — e mesmo que os jornais não dissessem, aquelas descrições eram familiares demais para não serem relacionadas a um vampiro.

Um não. Vários vampiros.

Tio Charlie também sabia disso. Rose via na forma como ele mantinha os olhos baixos demais, como dizia “ataque animal” sem qualquer convicção, como hesitava antes de descartar a ideia de um serial killer.

Rose conseguia ver as perguntas girando em seus olhos.

Seriam os Cullen?

Vampiros nômades passando pela região?

Ou… seria Bella?

Quando comentou com Paul numa noite, enquanto se aconchegavam juntos na cama dele, ele rosnou baixo, os olhos escurecendo rapidamente e disse apenas:

— Sam não vai mexer nisso até ter certeza. Enquanto não soubermos que são sanguessugas, a ordem é não se envolver.

Havia tensão no modo como ele falava, para Rose concluir que aquela foi, provavelmente, uma longa discussão dentro da matilha.

Ela assentiu, embora por dentro queimasse de raiva e frustração. Aquilo deveria ser um tempo de recomeço. Agora que Bella havia finalmente conquistado a sua imortalidade e saído de casa; Rose, por sua vez, tinha terminado a residência médica naquele mês e começaria, oficialmente, a atuar como médica. Era para ser o início de uma nova fase, de estabilidade.

Por isso, no seu último dia de residência, Rose sentia apenas cansaço. Não houve glamour, nem emoção exagerada. Só pilhas de papéis, assinaturas, protocolos e orientações que ela já sabia de cor; além da sensação nauseante de que aquele não seria um bom dia.

Encerrava-se assim a residência médica de Primrose Potter.

Ela se despediu dos amigos do Hospital de Forks, ignorando completamente o Dr. Cullen no processo, e cruzou as portas da frente com o jaleco dobrado no braço. O céu estava em um desses raros dias limpos, embora estivesse frio, e o ar tinha aquele cheiro úmido e limpo de floresta que sempre a fazia respirar mais fundo.

No entanto, não foi isso que chamou a sua atenção.

Encostado no carro, de braços cruzados, Paul a esperava com um sorriso que ele só fazia para ela — aberto, brilhante e notavelmente carinhoso, que sempre fazia seu coração acelerar dentro do peito e derreter as suas pernas.

— Então, é isso? — ele perguntou, enquanto ela se aproximava. — Dra. Potter?

— Mais do que oficialmente agora. — Rose tentou retribuir seu sorriso, mas estava cansada. Não apenas o cansaço do seu corpo, mas do peso acumulado em sua mente nos últimos meses. Talvez dos últimos anos.

Paul não respondeu. Apenas puxou-a para perto, e ela afundou o rosto no peito dele por um segundo, inalando o calor da pele sob a camisa e a segurança do seu toque. Os braços dele se fecharam ao redor de sua cintura, fortes, firmes, praticamente engolindo-a inteira.

— Vamos fazer uma fogueira em La Push hoje à noite. — ele disse, a voz baixa perto do ouvido dela. — Quil, Embry, Jake e o resto da matilha já estão montando tudo. O encerramento da sua residência merece alguma comemoração… mesmo que seja com marshmallows queimados e cerveja barata.

Ela soltou um riso abafado contra o peito dele, lembrando que foi exatamente isso que aconteceu na última vez que juntaram todo mundo para fazer uma fogueira.

— Perfeito. Desde que não tenha velhos bêbados contando histórias constrangedoras novamente.

Paul recuou o suficiente para olhá-la nos olhos.

— Hmm… Eu acho que você não vai escapar do Chefe Swan no quesito histórias bêbadas constrangedoras.

— Tudo bem. Então, sem discursos.

— E então perder a oportunidade de elogiar a minha mulher para toda a Reserva?

Ela riu alto dessa vez, e por um instante, apesar do cansaço e de todo o estresse sobre seus ombros, Rose pensou que poderia reservar algumas horas para ir até La Push e relaxar, afinal o que poderia dar errado?

 

*

 

O céu começava a escurecer sobre La Push quando Rose desceu do carro ao lado de Paul. Ela já conseguia ouvir as vozes conhecidas e o som das risadas ao redor da fogueira.

O que não era esperado, era a presença de Leah.

Rose a viu de longe, encostada em uma árvore, com os braços cruzados no peito. Ela parecia descontente, embora tivesse encarado Rose e, por um momento, ela achou que talvez elas fossem se falar novamente. Que talvez Leah tivesse finalmente superado o seu desejo de se isolar e tentaria se aproximar.

Rose sentiu um aperto no peito quando Leah desviou o olhar e encarou o fogo. Ela quis ir até a amiga, dizer qualquer coisa, só um “oi” bastava. Mas sentiu os pés pesarem, e optou por desviar o olhar também. Respirou fundo, ergueu o queixo, e caminhou em direção às pessoas que já começavam a aglomerar ao redor para parabenizá-la.

Jake foi o primeiro a cumprimentá-la com um sorriso torto, segurando um copo de plástico meio amassado.

— Hey, parabéns, Dra. Primmy.

Rose bufou ao ouvir o apelido.

— Obrigada, Jake. Você tem idade pra beber o que tem nesse copo?

— Isso é apenas refrigerante, Primmy.

— Claro que é.

Jake piscou para ela, e Rose revirou os olhos, divertida.

Embry e Quil deram um passo à frente, empurrando Jake para o lado, e caindo em Rose com a mesma energia de sempre, mas agora elevada ao nível de filhotinhos de cachorro. Parabenizaram Rose com tapas nas costas, e logo a levaram em uma longa tangente de perguntas absurdas sobre seus dias de médica.

— Tá, mas qual foi o caso mais nojento que já pegou? — perguntou Quil, já fazendo uma careta antecipada.

— Teve sangue? Claro que teve sangue. — disse Embry, empolgado como se aquilo fosse uma série médica da televisão ou algo do tipo.

Rose revirou os olhos, mas acabou cedendo.

— Ok, vou contar. Teve um dia que apareceu um cara com dor no ouvido. Quando fui examinar, tinha uma aranha lá dentro. Viva.

O coro de reações foi imediato: gritos fingidos, caretas, nojo, gargalhadas. Jake quase derrubou o copo.

Não! Isso não é real.

— Totalmente real — disse Rose, rindo. — Ele sentia cócegas e estalos. A coitada só queria sair, mas ficou precisa.

— Eu nunca mais vou dormir em paz — murmurou Embry, fingindo coçar a orelha.

— E eu que achei que tinha trauma de hospital por causa da minha apendicite — disse Quil, balançando a cabeça.

— Nunca vou me recuperar disso — Jake comentou, perplexo.

Rose apenas bufou, encostando-se no peito de Paul, enquanto todos começavam a rir. O calor da fogueira lambia o céu já escuro, e por um instante, parecia que tudo estava no lugar certo. Que todas as suas preocupações eram infundadas.

Talvez por isso tenha decidido falar.

Ela levantou a cabeça e olhou ao redor — rostos conhecidos, tão familiares que fazia seu coração encher-se de calor. Respirou fundo.

— Ei, pessoal — chamou, com um tom leve, mas que cortou a conversa ao redor. — Já que todo mundo está aqui… acho que é um bom momento para dar uma notícia.

As conversas cessaram, e todos se viraram para ela, curiosos. Paul manteve uma mão em sua cintura, firme, embora também estivesse com uma sobrancelha arqueada em sua direção.

— Eu aceitei a transferência. — Ela fez uma pausa breve. — A partir do mês que vem, vou trabalhar aqui mesmo, como médica geral do hospital de La Push.

Por um segundo, ninguém reagiu. Depois, vieram os gritos e os aplausos improvisados, tapas nas costas e exclamações surpresas.

— Sério? — Embry arregalou os olhos. — Você? Aqui?

— Isso é incrível, Primmy. Parabéns! — disse Jake, com um sorriso de orelha a orelha.

— Que demais. Parabéns, Rose — Jared acenou do outro lado da fogueira. — Eles vão ganhar uma médica brilhante.

— Parabéns, querida. — Tio Charlie deu um passo à frente para parabenizá-la, seguido do tio Billy, tio Harry e tia Sue.

Rose agradeceu entre risos, abraços e comentários entusiasmados.

Finalmente, Paul a puxou um pouco para o lado, só o suficiente para que suas palavras fossem só deles.

— Eu estou tão feliz e orgulhoso por você — disse eles, os olhos queimando com sinceridade. — Mas… por quê? Você não disse nada. Eu achei que você amasse trabalhar no hospital da cidade. Achei que ia querer crescer mais por lá.

Rose olhou para ele, ainda sorrindo. Ela deu de ombros, como se não fosse grande coisa, embora soubesse que era.

— Foi em partes por causa dos lobos, achei que seria uma boa ideia ter uma médica por aqui que entende um pouco sobre a situação deles. Nenhum médico seria capaz de entender o porquê vocês se curam tão rápido, sem representar um perigo para a matilha. Também é um bônus ficar longe dos vampiros. E também, bem… eu achei que seria bom ficar mais perto — respondeu, a voz baixa o bastante para não ser ouvida por mais ninguém, exceto os próprios lobos do lugar. — Sabe… para quando a vida mudar.

Paul arqueou uma sobrancelha, confuso por um instante, mas então entendeu. Ele passou o braço ao redor dela com mais firmeza, encostando os lábios em sua têmpora.

— Então, eu sou um dos motivos — murmurou, quase sem acreditar.

— Talvez — ela riu baixinho, suave. — Um dos bons.

Antes que ele pudesse responder, Emily surgiu sorridente, com os olhos brilhando.

— Rose! Meus parabéns. Eu adorei isso. Você vai ser minha médica quando eu engravidar, certo?

Rose arregalou os olhos surpresa, e riu baixinho.

E então o clima mudou.

Rose percebeu a mudança antes mesmo de ouvir o ranger dos dentes, antes do ar se encher do cheiro de adrenalina e fúria. Em um minuto, Leah estava emburrada na árvore, no outro seu corpo estava trêmulo, os dedos contraindo lentamente em torno de uma garrafa de cerveja que ela segurava.

Vai acontecer agora.

O pensamento atravessou Rose como uma faca.

Leah estava se aproximando, os músculos tensos sob a camisa, a respiração ofegante. Ela sabia. Conhecia Leah melhor do que qualquer um, melhor até do que ela mesma. E o que ela via agora não era a sua melhor amiga — era o lobo, puro e cru, rastejando sob a sua pele, pronto para saltar para fora.

E então, Leah explodiu.

O som da transformação foi úmido, horrível, como músculos se torcendo, ossos se expandindo, carne se desfazendo e se recompondo em outra forma. Do outro lado da fogueira, Seth caiu de joelhos, arfando, e então a sua pele também começou a se contorcer, rasgando-se em pêlo escuro.

Foi rápido demais. Tão rápido que era impossível perceber os detalhes, quando tudo aconteceu em uma fração de segundo. Rose mal percebeu que Emily havia se movido. Que o instinto que a fez se mover também a fez errar. Em vez de recuar, ela foi para o caminho errado. E no exato momento em que Leah saltava, Emily cruzava o seu trajeto.

O impacto foi brutal. Tão brutal que fez o coração de Rose pular na garganta e congelar ao mesmo tempo.

Patas. Garras. Atingiram o rosto dela e o braço direito com força suficiente para jogá-la longe, como se fosse uma boneca de trapo. O som foi seco, ossos contra o chão. O corpo de Emily voou, girando no ar em um grito cortante antes de bater contra a mesa de guloseimas, a madeira estilhaçando sob seu peso. Os cortes se abriram, profundos e irregulares, vertendo sangue quente e vermelho na terra.

Havia sangue. Tanto sangue.

Paul foi o primeiro a se mover. Um rosnado escapou de sua garganta, seus dedos se contraíram, o corpo tremendo, as unhas cravando-se nas próprias palmas, enquanto o lobo dentro dele lutava para sair. Ele não hesitou — pulou na frente de Rose, protegendo-a, e partindo para cima de Leah.

Rose agiu antes mesmo de pensar, os anos de medicina gritando em seus nervos. Seus olhos estavam em Emily, que estava ferida — gravemente — o ombro aberto em três golpes profundos, a carne do rosto dilacerada como papel.

Mas antes que pudesse alcançá-la, tio Harry estava se levantando, o rosto pálido, os olhos arregalados de horror.

— Leah! Não! P-pare…

Sua voz falhou no meio, rouca e quebradiça. Ele levou a mão ao peito, os dedos crispados na camisa, e então—

caiu.

Tio Billy gritou algo — um comando, uma maldição —, mas sua voz foi engolida pelo caos. Tio Charlie correu em algum momento para ligar para uma ambulância, seus olhos brilhando em pânico quando tio Harry caiu para trás.

O som do corpo batendo no chão foi abafado pelos rosnados, pelos dentes que se arreganhando, pelos passos pesados de Seth se transformando, ossos se rearranjando sob a pele, os gritos das pessoas ao seu redor. Mas Rose não ouviu nada além do silêncio do tio Harry, do nada em seu peito quando ela colocou os dedos em seu pescoço.

Não. Não. Não agora. Não assim.

As compreensões começaram antes mesmo que ela percebesse, as mãos firmes, movidas por um pânico frio que não permitia hesitação.

De um canto do olho, ela viu a tia Sue correr para Emily, os dedos já pressionando os ferimentos, tentando estancar o sangue que jorrava.

Um. Dois. Três.

O corpo do tio Harry era pesado, frágil, velho — claramente não conseguia suportar uma simples massagem cardíaca, quem dirá um ataque do coração.

Rose notou que Jared e Jake — em suas formas de lobo — agarravam Seth e Leah pelo pescoço tentando imobilizá-los. Enquanto, Quil e Embry se colocavam entre os lobos, desesperados, tentando conter a confusão de pelos, dentes e garras.

Quatro. Cinco. Seis.

Alguém gritou — Sam, talvez —, mas o som era distante, abafado pelo sangue pulsando em seus ouvidos. Emily choramingava em algum lugar atrás dela, o cheiro do seu sangue misturando-se ao da terra.

Dez. Onde. Doze.

O peito do tio Harry não subia.

Treze. Quatorze. Quinze.

Por favor.

Rose não conseguia respirar.

Dezesseis. Dezessete. Dezoito.

Seus dedos ainda pressionavam o peito de Harry, os dedos afundando no esterno frágil.

Dezenove. Vinte. Vinte e um.

Mas então seu olhar se desviou para Emily — seu corpo estava parado em uma posição estranha, o braço e o ombro dilacerados, o rosto parecia cera derretida. O vermelho escuro se espalhava sob ela, formando um lago grotesco que refletia o fogo agonizante.

— O que eu faço? O que eu faço? Rose?! — Era Sam. Desesperado. Seus olhos selvagens, dilapidados pelo pânico.

Vinte e dois. Vinte e três. Vinte e quatro.

Ele tentou agarrá-la pelo braço, mas os seus dedos estavam trêmulos e Rose ainda estava focada em tio Harry.

Vinte e cinco. Vinte e seis. Vinte e sete.

As frases de Sam pareciam desconexas, enquanto o protocolo martelava no crânio de Rose e algo profundo gritava dentro dela.

Ela está morrendo.

Ele está morrendo.

Rose engoliu o nó de pânico em sua garganta. Ela não era suficiente para lidar com duas tragédias ao mesmo tempo. Eles tinham equipes inteiras para isso no hospital, mas ali só havia ela.

— Sam, escuta! — Ela decidiu intervir, tentar. — Pega algo… uma camisa, um pano… e pressiona o ferimento dela. Com força. Não para. Nem por um segundo.

Ele hesitou, os músculos travados, o olhar perdido.

SAM! Porra!

Ele estremeceu, como se tivesse levado um tapa.

— Sim. Sim, certo…

Ele se jogou no chão ao lado de Emily, arrancando a própria camisa e enfiando o tecido contra o ombro dilacerado, enquanto tia Sue tentava estancar os ferimentos do rosto dela. O sangue, no entanto, ainda jorrava entre seus dedos, e ele pressionou mais forte, os dentes cerrados, os ombros tremendo.

— Isso. Não para! — Rose ordenou, voltando às compressões. — Até a ambulância chegar.

Mas o tio Harry ainda não respirava.

Ela mudou o ritmo, os braços ardendo, o suor escorrendo em sua nuca.

Vinte e oito. Vinte e nove. Trinta.

Ela inclinou a cabeça dele para trás, abriu as suas vias aéreas com um movimento firme, pinçou seu nariz e selou seus lábios sobre os deles.

Um.

Soprou forte, observando pela visão periférica o tórax se elevar. Ventilação adequada.

Dois.

Outro sopro, mais controlado agora. O ar entrando, saindo. Nenhum obstáculo.

E então, ela sentiu.

Havia um pulso. Fraco e irregular, mas estava lá.

O coração do tio Harry estava batendo a 40, talvez menos — era um fio tênue entre a vida e a morte.

— Tem pulso! — Ela anunciou, os dedos ainda pressionando a artéria carótida. — Fraco, mas tem. Sam, mantenha a pressão no ferimento dela até a ambulância chegar.

Sam não respondeu. Estava concentrado demais em Emily, suas mãos ensanguentadas pressionando o curativo improvisado. O sangue ainda escorria, mas mais devagar agora — o corpo dela provavelmente estava entrando em choque hipovolêmico.

Rose sentiu o pânico correr em suas veias. Mas antes que pudesse entrar numa espiral, ouviu os primeiros sons de sirenes. Distantes, como um eco. Depois mais alta, cortando a noite.

Quando chegou, dois paramédicos saltaram do veículo antes mesmo dele parar completamente, kits de emergência nas mãos.

— PCR em bradicardia extrema, retorno espontâneo após RCP! — Rose gritou, tentando ajudar, profissional mesmo com a voz trêmula. — E a paciente feminina está entrando em choque hipovolêmico, laceração grave no ombro direito e no rosto.

Os paramédicos agiram rápido. Um se ajoelhou ao lado do tio Harry, colocando o oxigênio e preparando o monitor cardíaco. O segundo correu para Emily, abrindo o kit de trauma.

A segunda ambulância chegou segundos depois, em um rugido de motor e luzes piscantes.

Sam não pensou duas vezes.

— Eu vou com ela — disse com a voz rouca, pulando na ambulância, sem camisa e com as mãos ensanguentadas, antes que alguém pudesse questionar.

Tia Sue entrou na segunda ambulância com tio Harry, segurando sua mão firmemente, enquanto os paramédicos administravam a medicação.

Rose ficou para trás, sentindo o coração pesar dentro do peito.

— Vamos lá, tio… — Sussurrou.

As portas se fecharam, as sirenes uivaram novamente e os veículos aceleraram em direção ao hospital de Forks.

Notes:

Eu sei que falei que não faria isso com a Emily, mas eu mudei de ideia.

Eu achei que, por um lado, toda essa situação traria uma tensão para este momento da narrativa, e, por outro lado, acrescentaria uma etapa a mais de crescimento para o personagem de Leah.

Embora as circunstâncias sejam terríveis, isso daqui ainda é ficção, então o objetivo era dar um choque de realidade em Leah mesmo.

Chapter 42: QUARENTA E DOIS

Chapter Text

Horas depois, tio Harry morreu por causa de um ataque cardíaco. Foi no dia seguinte que ela soube, quando estava com o tio Charlie. O sol já havia se posto, mas nenhum deles estava disposto a dormir ainda, dividindo o mesmo sofá na sala, enquanto a televisão passava um programa qualquer.

Quando a ligação chegou e o tio Charlie atendeu, Rose já sabia.

Ele desligou sem dizer nada, apenas fitando o vazio, os olhos marejados. Então, virou-se para ela e balançou a cabeça uma vez, e só isso bastou para que algo dentro dela se apagasse.

Eles ficaram em silêncio, a mente em branco, os pensamentos colidindo uns com os outros sem formar nada concreto, o corpo pesado, sem vontade de dormir.

Só depois, bem depois, veio o peso. De saber que o tio Harry não estava mais ali. Que ela não pôde fazer nada. Que toda essa confusão não tinha mais volta.

Foi somente mais tarde também que Rose lembrou de Emily. Ela, por outro lado, ficaria hospitalizada por pouco tempo. Havia perdido muito sangue quando Leah a atacou, mas, por algum milagre, as feridas não eram tão profundas. Haveria cicatrizes, sim. Mas nada que exigisse cirurgia. Nada que ameaçasse a sua vida.

A ironia dessas palavras ainda pairava no ar — como se algo nelas tivesse falhado, como se a vida tivesse escolhido punir outro em seu lugar.

Era uma pensamento terrivelmente mórbido, mas Rose não conseguia deixar de pensar nisso. Uma vida por uma vida.

Ela ficava repetindo a sequência dos acontecimentos, como se pudesse encontrar um erro de lógica, como se houvesse alguma explicação racional que pudesse absolvê-la desse sentimento de culpa que agora se enraizou em seu peito como veneno.

Emily sobreviveu. Mas tio Harry… não.

E não havia consolo nisso.

Rose não foi suficiente. Para quê ela havia se tornado médica, então? Se era incapaz de salvar uma vida.

Não importava quantas aulas tivesse frequentado, quantos livros tivesse devorado com os olhos ardendo de cansaço ou quantas noites tivesse passado em claro revendo diagnósticos, simulando procedimentos, prevendo complicações. Nada disso bastou.

Quando chegou a hora, a verdadeira hora, quando a vida de alguém que ela se importava estava por um fio — ela falhou.

Era isso que ninguém falava sobre salvar vidas.

Que, às vezes, você sabia exatamente o que fazer — e mesmo assim, não era suficiente.

 

*

 

O funeral de Harry Clearwater aconteceu dois dias depois.

Era um dia lindo, com um sol que raramente brilhava sobre Forks e flores colhidas do jardim da tia Sue, prontas para serem colocadas em seu túmulo. O retrato à frente mostrava tio Harry sorrindo, os olhos semicerrados, uma xícara na mão, como se alguém tivesse acabado de dizer alguma coisa engraçada. Como se ele estivesse oferecendo seu último sorriso para as pessoas vestidas de preto que vieram lhe prestar suas últimas homenagens.

Rose não conhecia todo mundo. Ela chegou com Paul e tio Charlie, onde se juntaram a um grupo variado de pessoas. Toda a matilha estava lá. Jared e Embry chegaram com as suas respectivas famílias. Sam estava sozinho, afinal Emily ainda estava internada e Rose sabia que ele não tinha mais família. Tio Billy também foi ao funeral, junto com Jake, que empurrava a sua cadeira para mais próximo do retrato. O velho Quil também estava lá, com o seu neto Quil e uma mulher que ela supôs ser sua mãe.

Observando as pessoas, Rose avistou diversos outros grupos que ela não conhecia, mas que tio Charlie fez questão de apontar. Havia os vizinhos de La Push, amigos do dia a dia, companheiros de pescaria e caçada, colegas do antigo trabalho do tio Harry. E tantos outros que Rose nunca tinha visto. Alguns com os olhos vermelhos, outros com o rosto vazio.

A cerimônia foi breve. Palavras foram ditas. Promessas relembradas. Homenagens oferecidas como oferendas inúteis diante da morte. Mas o que atingiu Rose com mais força não foram os discursos — nem mesmo os dos amigos mais próximos. Não foi a presença silenciosa de tio Charlie, imóvel ao seu lado. Não foi Paul segurando sua mão firmemente. Não foi o suspiro contido do tio Billy. Nem o olhar perdido de Seth ou o choro de tia Sue.

Foi Leah.

Leah, com os olhos cheios d’água, soluçando baixinho. Os dedos apertando a mão da sua mãe com força, como se ela pudesse impedi-la de cair em um buraco que ninguém mais via. Os ombros tensos, o corpo curvado, como se ela mesma tivesse sido quebrada por dentro.

Rose sentiu o coração se partir com a dor dela. A dor dela já era imensa. Mas a de Leah a despedaçava.

Embora elas não se falassem mais, Leah ainda era sua amiga. A ausência de contato nos últimos anos não apagava os anos que vieram antes disso.

Leah foi a primeira amiga de Rose quando ela chegou em Forks, e tinha estado ao seu lado quando tudo era difícil, quando tia Sarah havia morrido, quando Paul e ela haviam terminado, quando Rose se envolveu com Riley; quando crescer parecia nada mais do que um labirinto.

E ainda que agora ela fosse só uma figura distante, ela ainda queria se aproximar. Queria dizer alguma coisa — qualquer coisa.

Queria alcançar a mão de Leah e apertá-la, como faziam quando eram adolescentes e o mundo ainda não tinha girado com tanta força.

Queria dizer alguma bobagem, fazê-la rir, convidá-la para caminhar ou correr uma atrás da outra em First Beach como nos velhos tempos.

Mas ela não sabia se podia.

Não sabia se seria bem-vinda, não depois de anos de silêncio.

E pior: não sabia se teria permissão, não depois de ter falhado em salvar o tio Harry.

Então, Rose permaneceu imóvel, presa em seu lugar, com receio de dar um passo adiante. Com medo de reabrir feridas, e Leah não querer nada com ela.

Ao final da cerimônia, cada um deles depositou uma flor.

Primeiro, tia Sue, com mão trêmulas e lágrimas escorrendo pelo rosto, sussurrando baixinho palavras que Rose não conseguia ouvir. Depois, Seth, tão jovem e doce, com olhos fixos no túmulo, como se esperasse que o pai se levantasse de dentro dele no último minuto e contasse alguma piada, como sempre fazia. E então foi Leah, ainda soluçando, os dedos apertados em torno do caule de uma flor, os passos firmes, embora seu corpo tremesse levemente, sua mandíbula estivesse cerrada e as veias saltassem do seu pescoço.

O restante das pessoas foi se aproximando, uma a uma. Flores foram empilhadas, formando um leito delicado sobre o que restava de Harry Clearwater.

No final, algumas pessoas saíram juntas, outras apenas desapareceram em silêncio. Tio Charlie e tio Billy foram com a tia Sue. O restante da matilha seguiu para a casa de Emily. Sam voltou direto para o hospital, para ficar ao lado da noiva.

Leah, ela percebeu, não foi com ninguém. Ficou ali por alguns segundos a mais, depois correu para a floresta sozinha.

 

*

 

Horas depois, após o velório e as despedidas, Rose acabou na varanda da casa de Paul. O céu já havia escurecido, embora ainda houvesse um restinho de azul se dissolvendo entre as nuvens. Eles ainda vestiam preto, sem energia para trocar de roupa.

Sentaram juntos num banco largo, ela encaixada entre as pernas dele, costas coladas a um peito quente, os braços dele ao redor de sua cintura. De vez em quando, a mão de Paul subia e descia devagar, acariciando seus braços ou sua barriga com uma ternura e cuidado quase automático. Rose mantinha os olhos fixos no horizonte, a cabeça descansando no ombro de Paul.

Houve muitas histórias sobre o tio Harry ao longo do dia, e a dor, naquela altura, deixou de ser uma ferida aberta e se transformou numa pulsação surda. A tristeza de Rose vinha apenas em ondas, e o dia havia drenado as suas últimas energias.

Não havia mais lágrimas. Só um vazio brando. E, no entanto, Rose já não aguentava mais chorar.

Quando ela disse para Paul, ele a deixou sozinha na varanda por alguns segundos, e retornou trazendo bebida.

Eles a dividiram, tomando juntos direto da garrafa. Rose sentiu a ardência descer pela sua garganta, distraindo-a da dor, enquanto as inibições iam embora e ela desabafava sobre a culpa que sentia. Paul a ouviu completamente, sem interrupções. Ele não desviou dela, nem a julgou ou tentou consolá-la com frases feitas.

Eles falaram também sobre Leah e Seth — como a matilha agora parecia desequilibrada, com todos pisando em ovos ao redor dos novos lobos. E como Sam estava afastado, passando mais tempo no hospital do que em casa, foi Jake que teve que lidar com o desastre, sendo obrigado a tomar o lugar dele como Alfa temporário e explicar tudo sobre a nova vida deles. Era uma situação que ninguém sabia ao certo como lidar.

As horas correram soltas, dissolvendo-se no silêncio da noite, enquanto eles conversavam. De repente já era madrugada. A garrafa vazia descansava entre eles, e o frio que vinha da floresta era abafado apenas pelo calor constante do corpo de Paul, seus braços ainda ao redor dela, seus lábios ocasionalmente beijando a sua testa.

Depois de tanta conversa, Rose finalmente respirou fundo e entendeu que havia feito tudo o que podia.

Ela não era perfeita. Nunca seria. Estava tudo bem.

A culpa ainda estava ali, como uma sombra espreitando no canto da sua mente, mas já não era tão sufocante. Já não a impedia de respirar. Ela poderia continuar. Um passo de cada vez.

Foi quando viu algo. Um movimento na beira da floresta.

Leah estava parada ali. Olhando diretamente para ela.

Paul a sentiu se mover e levantou os olhos também. Quando viu Leah à distância, seu corpo se enrijeceu por reflexo, e uma das mãos apertou de leve o braço de Rose, como se quisesse protegê-la.

Leah acenou, convidando Rose para ir até ela.

— Tem certeza? — Paul perguntou.

— Sim, está tudo bem.

Paul não disse nada. Apenas soltou os braços devagar, permitindo que ela se levantasse. A madeira da varanda rangeu sob seus pés enquanto caminhava. E então, Rose desceu os degraus, atravessou a grama úmida da noite e seguiu em direção à floresta.

Quando Rose parou diante de Leah, ninguém disse nada. Ficaram as duas em silêncio, apenas o som da respiração no silêncio da noite e o peso incômodo de todas as conversas que pulavam hesitantes entre elas.

Ficaram ali por alguns segundos longos demais, esperando que alguém começasse.

Foi Leah quem finalmente quebrou o silêncio, a voz rouca e baixa, como se estivesse arrancando as palavras do fundo do seu peito.

— Obrigada… por tentar salvar meu pai.

Rose engoliu em seco, surpresa pelo rumo da conversa. Antes que pudesse responder, Leah continuou, desviando o olhar:

— E… eu sinto muito… por Emily.

Rose respirou fundo, procurando as palavras, e, por alguma razão, a sua voz ainda saiu mais firme do que ela esperava:

— Você deveria dizer isso para ela.

Leah balançou a cabeça imediatamente.

— Eu não consigo.

Mais nada foi dito.

Leah encarou os próprios pés durante alguns segundos, e então virou-se para ir embora.

Rose ficou ali parada, observando a amiga — ou o que restava dela — se afastar entre as árvores. Alguns passos depois, Leah parou por um instante e hesitou. Por um segundo, Rose achou que ela fosse se virar, dar um passo de volta, dizer algo mais, resolver os problemas que ainda pairavam entre elas.

Mas nada aconteceu.

Leah apenas baixou a cabeça, como quem se arrepende por ter um breve pensamento, e deu o primeiro passo, pronta para seguir o seu caminho e desaparecer entre as árvores.

— É só isso que você vai me dizer? — Rose a interrompeu.

— O que mais você quer que eu diga? — Ela retrucou, mas não virou-se.

Rose sentiu o ar sair de seus pulmões.

— Não sei. Talvez… onde você esteve esse tempo todo? Como você está?

Leah finalmente se virou para encará-la, uma sobrancelha erguida como se Rose fosse estúpida.

— Como você acha que eu estou?

— Você poderia ter voltado. Poderia ter…

— O quê? Pedido desculpas? Me jogado aos pés de vocês?

— Claro que não! Não deveria ser assim, Leah. Olha, eu sei que as coisas não foram ideais da última vez que nos falamos, mas nós ainda podemos resolver isso. Você não precisa se isolar. Especialmente agora.

— Isso não é um conto de fadas, Rose. — Leah bufou. — Não é como aquele seu mundo mágico, que basta agitar um pedaço de pau, falar abracadabra e as coisas se resolvem.

Rose quase revirou os olhos. Não era exatamente desse jeito, mas ela não ia brigar com Leah por causa disso agora.

— Por que você sempre escolhe o caminho mais difícil, Leah?

Pare! — A voz de Leah rachou no meio. — Não faça isso. Não finja que você se importa, não agora. Eu só queria passar uma mensagem. Mensagem enviada.

— Eu não estou fingindo. — Rose suspirou, cansada. — Mas eu não vou ficar aqui brigando com uma parede.

— Finalmente algo sensato que você diz.

E então Leah virou as costas de novo, e foi embora.

Rose não tentou segurá-la dessa vez, ficou ali por mais alguns instantes, encarando o lugar onde Leah estava, tentando arrancar algum sentido daquele encontro breve e desconfortável — ela não acreditava que aquilo era suficiente para reatar a amizade entre elas. Não depois de tanto tempo. Não depois de tantas farpas e dores atravessadas.

No entanto, Rose não entendia o porquê Leah se deu o trabalho de procurá-la. Por que ir até ali? Por que não dizer o que precisava ser dito? Por que vir apenas para falar algumas palavras e ir embora?

Por outro lado, ainda havia tanta mágoa e distância, que Rose não sabia por onde começar. E ainda que ela quisesse forçar Leah a sentar e desembaraçar o emaranhado que ainda existia entre elas, provavelmente seria pior, com o luto ainda tão presente, Emily internada no hospital e Leah e Seth ainda se adaptando aos seus novos instintos e deveres como lobos.

Talvez não fosse realmente o momento para discutir ou tentar entender que tipo de relacionamento elas ainda tinham. Talvez aquilo tudo fosse Leah estendendo um ramo de oliveira, dando um primeiro passo para o futuro, ou fosse apenas a dor e o luto falando mais alto.

Talvez um dia, quando as cicatrizes não doessem ao toque, quando o lobo dentro de Leah não rosnasse a cada interação, elas pudessem reencontrar o caminho de volta uma para a outra.

Mas hoje não.

Rose então voltou pelo mesmo caminho, os pés pesando menos a cada passo. Na varanda, Paul ainda estava lá, sentado no banco. Quando a viu se aproximar, abriu os braços em silêncio. E ela foi até ele como se estivesse voltando para casa.

Sentou-se novamente entre as suas pernas, encaixando o corpo no espaço exato que parecia ter sido feito para ela. Paul a envolveu num abraço apertado, os braços firmes e quentes ao seu redor, consolando-a. Ele não fez nenhuma pergunta, e Rose apenas deitou a cabeça no peito dele, ouvindo o som constante do seu coração, e fechou os olhos.

Não havia mais o que dizer. Pelo menos por agora.

Chapter 43: QUARENTA E TRÊS

Notes:

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Chapter Text

Ser imortal aos dezoito anos parecia, por muito tempo, o ápice de tudo o que Bella Swan desejava. Afinal, quem não queria ser jovem e bonito para sempre?

Ela imaginava que, ao cruzar o limite da humanidade — o sangue substituído pelo veneno, o corpo renascido no ápice da força, os sentidos aguçados ao extremo —, encontraria, finalmente, a paz. Estabilidade. O amor eterno.

Ela teria Edward para sempre. Nunca mais a fragilidade humana, nunca mais a incerteza sobre o seu futuro. Apenas liberdade. Um renascimento.

Mas nada foi como ela esperava.

Ela lembrava da sensação ao abrir os olhos pela primeira vez.

Havia luz demais. Cor demais. Ruído demais. Tudo pulsava. Tudo doía — não de verdade, mas internamente, de um jeito agudo e artificial, como se o mundo tivesse sido redesenhado à força e ela fosse forçada a se adaptar a ele.

A dor da transformação durou três dias e ela acordou pensando que sua pele estaria consumida em chamas, uma brasa viva. E, no entanto, só havia o vazio.

No lugar do seu antigo corpo humano, havia um corpo perfeito. Rápido, letal. Cada sensação, nítida demais. Cada movimento, milimetricamente controlado. Mas não havia fome, nem sono. Não sentia cansaço. Não sentia frio, nem calor. O coração não batia. As pálpebras raramente sentiam a necessidade de piscar. O estômago nunca roncava. As lágrimas haviam secado para sempre.

Tudo aquilo que tornava alguém humano havia desaparecido.

A maciez da pele, aquela textura sutil que variava conforme o clima, a idade, o toque. O cheiro da pele depois de um banho. O gosto salgado do suor das lágrimas quando se chora demais. O som da respiração acelerada depois de correr. O prazer repentino depois de rir até doer a barriga. A dor da fome. O alívio de comer. A tontura ao levar rápido demais da cama. As pálpebras pesadas à noite. A sensação gostosa de uma boa noite de sono. O arrepio de medo ou de prazer.

Não havia mais aquela vibração viva que pulsava sob a pele, nas mãos, nas bochechas, no peito. Aquela sensação de estar presente, viva, de ser feita de carne de osso, de ser efêmera e por isso preciosa.

Agora Bella nada mais era do que silêncio. Um corpo sem som e sem cheiro. Olhos que viam demais. Instintos que nunca dormiam. Não havia mais tropeços. Nem espinhas. Nem soluços. Nem hematomas.

Nos primeiros meses, Bella pensou que estava tudo bem. Foi isso que ela quis, afinal. Era uma troca justa. Um corpo perfeito por um corpo frágil. Um amor eterno por uma adolescência passageira. Uma eternidade com Edward por um punhado de anos. Então, por que ela se sentia… menos?

Menos presente. Menos real. Menos humana.

Era como se o que a fazia se sentir parte do mundo tivesse sido arrancado junto com o último batimento do seu coração.

A única coisa que restou naquele corpo foi a sede de sangue.

Mais do que vontade — era um desejo, uma urgência. Um grito contínuo e sufocante que preenchia cada canto da sua mente, cada pensamento, cada célula, como se esse corpo novo fosse apenas um recipiente esculpido para conter essa necessidade. Uma necessidade que começava pequena, como um sussurro seco no fundo da garganta, e então se transformava em uma ânsia insuportável.

Queimava.

A garganta arranhava como se estivesse coberta por espinhos. A língua colava no céu da boca. O ar parecia denso demais. Nada aliviava. Nada saciava.

Nos primeiros dias, Bella achou que podia controlar. Achou que seria forte o bastante, que todo aquele amor por Edward, toda a vontade de ser quem era antes, bastaria para manter a fera dentro dela domada. Mas não era.

Houve momentos.

Momentos em que ela piscou, e quando abriu os olhos, havia cheiro de ferro no ar e mãos sujas de vermelho. Momentos em que alguém gritou e ela só entendeu depois — tarde demais — que não era um animal, era uma pessoa. Que aquilo era sangue de um humano. Que ela tinha falhado.

E então, aconteceu de novo. E de novo. E de novo.

Cada passo perto de um humano era uma tortura. O cheiro era tão doce, provocante, insuportavelmente tentador. Como estar no deserto por dias, a boca em brasa, o estômago embrulhado, e ver um copo de água gelada sendo derramado diante de seus olhos.

Ela sempre queria beber até a última gota.

E às vezes, ela bebia.

Edward nunca falou sobre isso. Nunca houve acusações ou palavras de rancor. Mas ela via nos olhos dele — a dor, a tristeza, o arrependimento. Como se ele se culpasse por cada erro de Bella, cada gota de sangue humano perdida, por cada vida arrancada da inocência e, acima de tudo, por ter puxado Bella para esse abismo. Havia algo de irreversível naquele olhar, uma convicção silenciosa de que ele havia cometido um erro imperdoável.

Edward ainda a amava, ela sabia disso. Mas era um amor que estava tão manchado, machucado e envenenado pela culpa, que parecia mais um castigo do que um consolo. Se antes ele a olhava como se ela fosse valiosa, agora ele a olhava como se estivesse diante de um túmulo que ele cavou com as próprias unhas.

E então ele se afastava em silêncio.

Se isolava nos cômodos da casa, sentado por horas diante da janela, os olhos fixos em algum ponto indefinido do horizonte. Às vezes, ele tocava o piano da sala. Canções melancólicas e tristes — notas que mais pareciam um pedido de perdão, ou talvez um lamento. Em outras vezes, simplesmente desaparecia. Partia em caçadas solitárias e ficava dias, semanas fora, voltando com olhos mais dourados, mas ainda igualmente tristes e vazios.

Bella o sentia se afastar mesmo quando ele estava perto.

Com o passar do tempo, o amor de Edward, aquele que antes parecia ser tudo o que ela conseguia pensar — infinito, imbatível, maior do que o mundo —, já não bastava. Não era o suficiente.

E, às vezes, ela pensava: talvez ele só a ame, porque sente que deve.

Porque salvá-la — ou condená-la, dependendo do ponto de vista — foi escolha dele.

Mas amar por obrigação não sustentava uma eternidade.

Não curava a solidão.

Não preenchia o vazio onde antes havia calor humano, pulsação e esperança.

Então, Bella foi embora.

Não de verdade, e não para sempre — pelo menos, não ainda. Ela só queria sumir por alguns dias, fingir que ainda conseguia respirar, tentar decidir o que fazer com a sua própria eternidade.

Afinal de contas, se eles tivessem que fazer uma escolha, sabia que os Cullen ficariam ao lado de Edward, não ao lado dela.

Então, durante a madrugada, quando Carlisle permaneceu no hospital e os demais partiram em uma caçada, Bella simplesmente saiu de casa. O vento cortante açoitou sua pele imortal, cada rajada sendo a única prova de que ela ainda vivia. Embora, não totalmente.

Nas primeiras horas de caminhada, o telefone vibrou no bolso do seu casaco. Era Alice. Bella atendeu sabendo que ela havia tido uma visão sobre a sua fuga, mas explicou mesmo assim, disse que estava tudo bem, ela não estava indo embora, só precisava de alguns dias — uma desculpa ridícula, mas que pareceu apaziguá-la por enquanto. Afinal, como Bella ainda não havia tomado nenhuma decisão, Alice não saberia o que ela estava planejando.

E assim ela voltou a caminhar sem destino, perambulando por clareiras úmidas e trilhas esquecidas ao redor de Forks, onde a luz do sol mal atravessava o dossel fechado das árvores sobre a sua cabeça. De vez em quando, um cervo ou um urso surgia em seu caminho, e ela caçava obrigando-se a ignorar o desejo em seu peito que queria buscar sangue humano.

Na quarta noite, sob um céu estrelado, ela alcançou um lago escondido em uma grande clareira nos arredores de Seattle, onde as árvores se abriam em um portal de pinheiros erguidos em direção ao céu, como uma cúpula. Sentou-se numa pedra rente à água escura, o reflexo de suas feições pálidas ondulando suavemente aos seus pés. Ao longe, apenas o sussurro das árvores balançando com o vento e o eco distante de um mergulho de um peixe quebravam o silêncio. Ali, com os pensamentos vívidos em sua mente, embora sem nenhuma conclusão satisfatória, Bella permaneceu imóvel, aguardando descobrir se encontraria um caminho de volta para casa — ou se descobriria um caminho completamente novo.

Não demorou muito para que uma figura aparecesse à sua frente, escondida numa fresta entre as árvores do outro lado do lago. O que alarmou Bella por dois motivos. Primeiro: ela não o havia ouvido ou sentido na área, e segundo: não havia como eles terem se cruzado por acaso. Ela não está em uma trilha de fácil acesso ou comum para outras pessoas, mas em um lago localizado em uma clareira distante.

A figura emerge na margem oposta, estatura esguia, postura impecável. Então, ela percebe que ele é um vampiro. Mas não são as características marcantes que fazem o sangue de Bella gelar. São os olhos: um vermelho vivo, como brasas ardentes cravadas em um rosto angelical.

Ele a observa com uma serenidade glacial, olhos avaliando-a sem falar. Os cabelos loiro-escuros esvoaçavam levemente na briga, delineando traços delicados — lábios finos, nariz reto, mandíbula marcada.

Bella não o reconheceu, mas saltou para frente, posicionando-se de forma que, se ele avançar, ela estará pronta para se defender ou correr para se salvar.

A única reação do vampiro é uma sobrancelha erguida.

— Boa noite. — Ele a cumprimenta do outro lado do lago com uma calma gelada, seus olhos percorrendo-a analiticamente. — O que você está fazendo sozinha por aqui?

— Por quê? O que você quer comigo? — Perguntou Bella, com a descarga de adrenalina fazendo cada músculo do seu corpo enrijecer. Se ela ainda fosse humana, seu coração estaria martelando contra as suas costelas.

O homem sorriu, revelando dentes perfeitamente alinhados e afiados.

— Eu me lembro de você. — Ele disse, ignorando completamente a pergunta de Bella, e avaliando-a com um olhar crítico. — A filha do Chefe de Polícia. Você é mais bonitinha do que eu imaginava.

— Então, me perdoe — Bella retrucou em um tom cortante — porque eu não faço ideia de quem você seja.

— Hum. — Ele inclinou a cabeça para o lado, os olhos cintilando. — O que você está fazendo tão longe de casa?

— Você não respondeu a nenhuma das minhas perguntas. Por que eu deveria responder às suas?

— Bem, é você quem está no meu território, não é?

Bella não sabia disso, é claro.

Ela não costumava sair de casa com frequência e as suas excursões para fora da mansão dos Cullen se limitavam a caçadas que eram fortemente vigiadas pelos membros do seu clã. Afinal, ela ainda era jovem, descontrolada e tinha um rastro de mortos em sua sombra do qual toda a família se arrependia ou se envergonhava amargamente.

Então, ela não fazia ideia de como identificar se uma terra era território de outro vampiro. E sabia menos ainda que essa falta de conhecimento a ferraria no futuro.

— Me desculpe. Eu não sabia que esse território estava ocupado.

— Não se incomode com esse fingimento. — O homem bufou. — Eu reconheço a cor dos seus olhos. Você não é uma recém-nascida. E também não é uma vampira qualquer, Cullen.

Bella ainda não fazia ideia do que ele estava dizendo. Mas ela preferia fingir, do que correr o risco de ser morta antes mesmo de decidir o que fazer com a sua longa vida.

— Eu não sou uma Cullen.

— Interessante. — Ele refletiu para si mesmo, os lábios se curvando em um sorriso irônico. — Toda aquela pequena briga para matar James foi em vão? Você corre atrás do vampiro mal, é transformada e finalmente pode ficar com o seu amor para sempre. Não saiu como esperado, não é?

Bella não piscou, mas cada palavra a atingiu bem no peito.

Como ele sabia disso?

Ele era amigo dos vampiros nômades que atacaram os Cullen?

Sua mente acelerou, cruzando possibilidades, mas as suas memórias humanas eram fracas e desbotadas nas bordas da sua mente, então ela não tinha certeza de muitas das coisas que aconteceram naquela noite.

Mesmo assim, ela não lembrava de um quarto vampiro durante o ataque.

— Não é da sua conta.

O vampiro riu então, o som afiado reverberando sobre o lago entre eles.

— Provavelmente, não. Mas eu sempre fui um pouco curioso, eu acho.

— Bem, se isso era tudo…

Bella não esperou para ouvir mais. Girou nos calcanhares, os músculos prontos para lançá-la na floresta em um turbilhão de velocidade sobrenatural-

Mas ele já estava na frente dela.

Ela quase colidiu com ele, recuando no último instante, as presas surgindo instintivamente.

Ele não se moveu para atacar. Apenas sorriu, lenta e deliberadamente, como se a considerasse a maior diversão da noite.

— Indo tão cedo? Mas a conversa estava tão boa.

Bella não respondeu. Avaliou a distância entre eles, os reflexos vampíricos calculando cada possibilidade. Lutar? Ele era rápido demais, talvez mais do que ela. Fugir? Ele a alcançaria antes do primeiro passo.

Então, restava apenas uma opção.

— O que você quer? Dinheiro? Eu posso conseguir. Os Cullen têm bastante.

Ele riu de novo, dessa vez com um toque de divertimento genuíno.

— Eu quero apenas conversar.

— E porque eu deveria acreditar que você só quer bater papo?

Ele suspirou, o olhar perdendo-se momentaneamente no reflexo da lua sobre a água.

— Eu entendo o seu ceticismo. Mas acredite, alguns de nós também precisam de companhia. Especialmente aqueles como nós… os deslocados.

— Deslocados? — Ela sussurrou, confusa.

— Bem, você não está com os Cullen. Está aqui, sozinha, em território desconhecido. Isso me diz coisas, querida Isabella.

— Não me chame assim.

— Como desejar. — Inclinou a cabeça em uma quase-reverência. — Mas isso não muda o fato de que estamos falando agora, não é? Você não está curiosa?

Bella não respondeu. Mas também não se moveu para ir embora.

Ele sorriu então, com triunfo brilhando em seus olhos vermelhos.

— Vamos sentar, então? — Ele a convidou. Sem pressa, sentou-se em uma das pedras à beira do lado, erguendo o braço em direção a outra pedra à sua frente, convidando Bella a acompanhá-lo.

Com um suspiro silencioso, ela sentou-se em frente ao homem, cada músculos ainda tenso, pronta para fugir se fosse necessário.

— E então? Como você me conhece?

— Indo direto ao ponto, então. — Seus dedos elegantes tamborilaram levemente contra a coxa, um ritmo irregular que parecia marcar o tempo de algo que só ele entendia. — Você ficaria surpresa com o quanto os rumores correm entre a nossa espécie.

— Que tipo de rumores?

— Como você atraiu as pessoas erradas, principalmente. Como as suas ações colocam todos os vampiros em risco.

Bella sentiu um frio percorrer a sua espinha.

— Eu não pedi por nada daquilo…

— Claro que não. — Ele interrompeu, levantando uma mão em um gesto pacificador. — Mas você também não evitou, não é?

Bella sentiu a raiva crescer, mas também — inesperadamente — um traço de vergonha. Ele estava certo, embora ela não quisesse admitir abertamente.

Talvez nem precisasse, já que ele ainda sorria para ela, claramente percebendo o rumo dos seus pensamentos.

— E o que isso tem a ver com qualquer pessoa? Ninguém pode me julgar. Eu tomei as minhas próprias decisões.

 O vampiro acenou com a cabeça, os fios loiros caindo sobre a testa de uma forma que era quase humana.

— Da sua perspectiva humana, talvez parecesse algo isolado e pessoal. Mas você não é mais humana. Na nossa sociedade, a sua transformação foi como jogar uma pedra num lago quieto. — Então, ele fez exatamente isso. Pegou uma pedrinha ao lado do seu pé e a jogou perfeitamente sobre o lago. O movimento da pedra na água criou ondas que se espalharam por toda a superfície ao seu redor até alcançar a borda perto deles. — As ondulações alcançam margens que você nem enxerga. Afinal, houve uma afronta à nossa principal lei.

— E qual é essa lei?

— O princípio fundamental que mantém a nossa espécie oculta. — Ele explicou, os dedos se entrelaçando. — Nenhum humano deve saber sobre a nossa existência.

— Mas eu sou uma vampira agora. Qual é o problema? Eu acredito que outros vampiros já se apaixonaram por um humano antes e os transformaram. Eu não posso ter sido a única na história.

— E não foi. No entanto, o problema não está no que você é agora, mas em como você chegou aqui. Seu parceiro não apenas quebrou as regras ao contar o nosso segredo para você, ele também declarou guerra contra um pequeno clã, embora irrelevante, por você. Matou dois vampiros por você. Criou uma rixa com um terceiro. Tudo por um humano que, com todo o respeito, era… insignificante e desnecessário.

— Nada disso foi desnecessário. O rastreador deles, James, queria me matar. O outro, Laurent, estava ajudando ele. Os Cullen me protegeram.

— James via você como comida. — Ele retrucou, a voz suave, mas firme e implacável. — Da perspectiva de um vampiro, isso seria como um humano arriscar toda a sua sociedade para proteger um mero prato de comida. Você realmente acha que isso foi proporcional?

Bella entendia. Droga, agora que ela era uma vampira e havia provado o sangue humano, ela entendia muito bem. Mas isso não significava que aquelas palavras não doíam em seu peito. Ela poderia estar morta agora, mas estava viva e imortal. Então, qual era o problema?

Ele, no entanto, ignorou as emoções dela e continuou:

— Pense no que se seguiu. Dois vampiros foram mortos, um deles sendo o companheiro da terceira integrante do grupo, que fugiu. Uma trilha de vingança foi traçada, e agora estamos lidando com desaparecimentos e humanos em alerta… Tudo porque um de nós decidiu que uma vida humana valia mais do que milênios de segredo.

Bella sentiu os músculos tensionarem.

— O que você quer dizer?

— Bem, você viu as notícias, certo? — Ele ergueu uma sobrancelha com elegância.

— Você quer dizer… os desaparecimentos em Seattle?

Ele deu um acesso quase imperceptível.

— Victoria? — Bella perguntou.

— Finalmente chegamos no cerne da questão. — Seus lábios se curvaram em um sorriso perigoso. — Victoria não está apenas caçando. Ela está… recrutando. E você sabe o que isso significa, não sabe?

Bella sentiu os dentes afiados pressionarem contra o lábio inferior, enquanto analisava os seus pensamentos.

— Ela está criando um exército para se vingar?

— Exatamente. E o que acontece quando um grupo de vampiros recém-nascidos famintos começa uma guerra em território humano?

— Nós chamamos atenção indesejada.

— Muito bem. — Seus olhos brilharam com uma emoção que não era exatamente aprovação. — Boa menina.

O silêncio se estendeu entre eles por um momento antes que Bella notasse algo estranho em toda essa explicação.

— Se Victoria está por trás disso, então… Como você sabe disso? O que você está fazendo aqui? Quem é você?

— Ora, eu fui transformado por Victoria, é claro.

O corpo de Bella agiu antes que ela pudesse processar.

Os músculos das suas pernas se contraíram como molas de aço, lançando-a para frente em um borrão. Seus dedos se curvaram instantaneamente, mirando direto no pescoço do vampiro, pronta para arrancar a sua cabeça. O ar assobiou em seus ouvidos enquanto se movia, tão rápido que o mundo ao redor parecia ter congelado no lugar.

Mas ele já estava preparado!

Com um movimento quase desleixado, ele inclinou o torso para trás, deixando as suas mãos passarem a centímetros do seu queixo. Bella sentiu o ar entre seus dedos — mas antes que pudesse tentar atacá-lo novamente, o homem já estava de pé a alguns metros de distância.

— Você me seguiu! — Ela rosnou, os lábios se retraindo para revelar dentes afiados. — É por isso que sabia onde eu estava.

Ele continuou parado no lugar, embora seus olhos estivessem atentos e prontos para se proteger, se fosse preciso.

Então, Bella atacou novamente, desta vez mirando baixo — uma investida para tentar derrubá-lo. Seu braço direito disparou como um chicote, a palma da mão fechada para golpear seu joelho com força suficiente para esmagar concreto. Mas ele simplesmente… não estava mais ali. Deu um passo para a esquerda, tão rápido que se ela não fosse uma vampira talvez acreditasse no teletransporte, e seu golpe encontrou apenas o vazio.

— Sim. Há meses. — Ele admitiu, a voz inacreditavelmente calma enquanto seu próprio braço se erguia para bloquear o próximo ataque de Bella. O impacto de seus antebraços colidindo ecoou pela clareira como duas barras de aço se chocando. — Mas se eu quisesse te matar, já teria feito isso há muito tempo. Eu poderia fazê-lo agora mesmo.

Desta vez, o homem atacou de volta — ergueu as mãos e agarrou os pulsos de Bella num movimento tão rápido que o ar estalou com o impacto. Seus dedos se apertaram como grilhões de aço e, em um instante, ela a tinha de joelhos na sua frente, presa entre seus braços.

Bella tentou se soltar, torcendo os membros com toda a sua força, mas ele não cedeu um milímetro.

— Pare. — Sua voz não tinha sido pedido. — Eu não vim lutar. Vim para conversar.

Bella respirou fundo, embora não precisasse disso. Seus músculos tremiam de raiva e frustração.

— Solte-me. — Ela rosnou, os dentes expostos em um desafio.

— Promete não atacar de novo?

Bella hesitou, querendo continuar lutando, mas sabia que ele estava a segundos de quebrá-la.

— Eu prometo. — Ela cedeu, o tom ainda cortante, mas menos agressivo.

Ele soltou seus pulsos e recuou um passo, dando-lhe espaço, mas ainda pronto para reagir se ela tentasse algo.

— Obrigado, Bella. — Seus lábios se curvaram levemente. — Agora, podemos conversar como adultos?

— Fale.

Ele assentiu, finalmente relaxando um pouco a postura.

— Você tem algo que eu quero, e eu tenho algo que você quer. Eu coço as suas costas e você coça as minhas, e tudo mais.

Bella cruzou os braços, os dedos pressionando com força os próprios bíceps.

— O que eu posso ter que você quer?

— Você tem uma prima, não é?

— Rose?

— Sim. Primrose Potter.

Bella franziu a testa, confusa.

— Você a conhece?

— Isso não é relevante. — Ele ergueu a mão impedindo-a de fazer perguntas. — Mas no momento certo, eu preciso que você me ajude a levá-la.

— Você está pedindo para eu te ajudar a sequestrar a minha prima? Sério?

Bella soltou uma risada seca, que não pareceu perturbá-lo.

— Não é um sequestro. É apenas um… encontro.

— Isso não parece nada com um encontro.

— Bem, eu não estou pedindo a sua opinião, não é? Estou pedindo a sua colaboração.

— E por que diabos eu faria isso?

Ele avançou então, a mão desaparecendo no bolso interno do casaco e emergindo com um pequeno frasco de vidro. O líquido dentro brilhava em um rosa suave e hipnótico, capturando a luz da lua como se tivesse vida própria.

— Porque em troca, eu vou te ajudar a encontrar a sua felicidade. — Ele balançou o frasco levemente, o líquido espesso girando dentro do vidro. — Basta inserir esse líquido no seu parceiro e ele nunca mais vai deixar de amar você. Você, finalmente, vai ter o seu amor eterno.

O quê?!

Bella olhou para o frasco rosa com ceticismo, seus lábios se curvando em um meio sorriso descrente.

— Você tá brincando comigo? — Ela deu um passo para trás. — Você acha que eu sou idiota? Que eu vou acreditar em… em poções ou qualquer coisa absurda dessa? Isso não é um conto de fadas.

Ele não pareceu ofendido. Em vez disso, ergueu o frasco, deixando o líquido brilhar com um tom que era quase sobrenatural.

— E vampiros também são coisas de conto de fadas, não? Mas, bem, aqui estamos nós.

Bella hesitou. E embora fizesse algum sentido, ela não conseguia crer na ideia de que um líquido traria Edward de volta para ela.

— Você já viu Edward ler mentes? Já viu Alice prever o futuro? O sobrenatural não tem limites, Bella. O mundo é muito mais estranho do que você imagina.

— Como eu posso confiar em você?

— Você não pode. Mas eu não tenho o hábito de contar mentiras.

Ela pensou sobre isso.

Se ainda fosse humana, talvez Bella recusasse imediatamente, talvez a consciência pesasse, talvez ficasse horrorizada com a ideia de vender a sua prima tão facilmente. Mas a frágil moralidade estava longe da sua mente naquele momento, e a única coisa que ela conseguia pensar era que este era um pequeno preço a pagar por algo que ela sempre quis desde o início.

Primrose nunca foi importante para ela, Bella lembrava-se disso de suas memórias humanas. Nunca a amara, nunca sequer a compreendera. E esse vampiro… ele não parecia querer matá-la, ou fazer algo nefasto. E se Bella pudesse usar Primrose como moeda de troca para recuperar o que já era seu por direito, então… por que não fazer isso?

Não havia nada de errado em ser determinada, certo? Nada de errado em lutar pelo que queria. Nada de errado em colocar-se em primeiro lugar.

E era tão fácil.

Apenas algumas gotas, e Edward a olharia novamente como antes. Como ela merecia.

Bella sentiu os lábios se curvarem em um sorriso feroz, e o homem não precisou de palavras para saber que ela já havia concordado com tudo.

— Você só precisa dar um jeito dele ingerir algumas gotas nele a cada semana. E então, todos aqueles sentimentos que ele está tentando enterrar virão à tona novamente. — Ele murmurou, estendendo o vidro para ela. — E tudo o que eu peço em troca… é que você me ajude a encontrar sua prima.

Seus dedos se fecharam em torno do vidro.

— Eu concordo.

— Excelente. — Ele sorriu, largo e satisfeito. — Eu sabia que seria ótimo fazer negócios com você, Bella.

Ela não respondeu. Seus dedos traçavam o contorno do frasco, já imaginando o momento em que Edward a tocaria novamente, o instante em que seus olhos se fixariam nela com aquela devoção que ela tanto sentia falta.

Mas então, uma última dúvida surgiu.

— O que isso tem a ver com o exército de Victoria, no entanto?

— Bem, isso não passa de uma cortina de fumaça para eu encontrar Rose, é claro.

Bella arqueou uma sobrancelha.

— Você mentiu.

— Eu omiti. — Ele corrigiu, os ombros se levantando em um leve encolher que parecia quase humano. — Victoria está construindo um exército? Sim. Ela é uma ameaça? Sem dúvida. Mas eu nunca disse que estava aqui para impedi-la.

— Então, você só quer Rose.

— E você só quer Edward. — Ele ergueu uma sobrancelha, os cantos dos lábios se curvando em um sorriso irônico. — Parece que ambos saímos ganhando, não?

— E toda aquela história da ameaça à nossa existência?

— Ainda é tudo verdade. No entanto, o que você faz com essa informação é problema seu.

— Por que trazer isso à tona, então?

— Ora, — ele deu um passo à frente — porque quando o exército de recém-nascidos chegar à Forks, é quando você trará a Rose para mim, é claro.

Bella sentiu os pedaços se encaixarem em sua mente acelerada.

— Os vampiros e lobos estarão muito ocupados, e ela estará… desprotegida.

— Exatamente. — Ele riu baixinho, satisfeito. — Eu sabia que você era esperta.

— Como você sabia que eu estava aqui?

— Eu tenho amigos poderosos, Bella. Quem você acha que criou essa bebida especialmente para você? Como você acha que eu sei tanto sobre a sua vida? E como você imagina que eu consegui vigiá-la de perto sem alertar os Cullen?

— É algum tipo de dom?

— Isso é algo para eu saber… e você apenas especular.

O vento uivou entre os pinheiros, carregando o cheiro de uma tempestade se aproximando. Bella sentiu o cabelo esvoaçar em seu rosto enquanto encarava aquele vampiro enigmático.

— Como eu vou saber a hora certa? — Ela perguntou.

— Eu enviarei uma mensagem de texto com a data e a localização. Esteja lá e você saberá.

Bella piscou, o absurdo da situação atingindo-a, mas não se deu o trabalho de responder. Ela não iria desistir agora.

Ele assentiu satisfeito, e deu um passo para trás pronto para ir embora.

— Espera… — Bella esticou a mão num gesto involuntário. — Você nunca disse seu nome.

— Riley Biers, ao seu dispor. — Ele fez uma pequena reverência irônica. — Até breve, Bella.

Antes que ela pudesse responder, ele já havia se virado e desaparecido, o casaco esvoaçando para trás como as asas de um morcego — deixando apenas o vidro em sua mão como prova de que aquela conversa não havia sido um sonho.

Com um último olhar para a floresta vazia, Bella apertou o frasco, guardou no bolso e se virou em direção a Forks, pronta para buscar a sua felicidade.

Horas depois, quando já se aproximava de casa, um pensamento estranho arranhou a sua mente: Alice não ligou ou enviou nenhuma mensagem desde que Bella havia saído de casa. Ela parou entre as árvores, os dedos tocando inconscientemente o contorno do frasco no bolso. Alice, que previa até mesmo os acontecimentos mais banais, não tinha visto Riley?

No entanto, em vez de medo, uma curiosidade profunda surgiu: que tipo de vampiro conseguia se esconder das visões de Alice?

Bem, não importava. Ela não iria questionar, especialmente quando isso apenas favorecia os seus planos.

E quando Bella chegou em casa, e os Cullen, é claro, perguntaram onde ela estivera e se estava tudo bem, ela sorriu e deu a resposta mais fácil:

— Eu estava caçando. E precisava de um momento sozinha. — A mentira deslizou facilmente dos seus lábios.

Afinal, o amor eterno merecia alguns desafios, mentiras e pecados.

E no final, os fins sempre justificam os meios.

Notes:

Eu estava esperando por esse momento há tempo tanto tempo, que ainda não tenho certeza se foi satisfatório, mas estou feliz que chegamos aqui. hehe

Vale lembrar que a ideia é que essa conversa fosse bastante enigmática e até mesmo não fizesse sentido em alguns pontos para Bella, afinal Riley não explica nada realmente e apenas guia a conversa para aquilo que sabe que vai interessá-la.

Bem, eu estou animada para os próximos capítulos. ❤️

Chapter 44: QUARENTA E QUATRO

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Rose quase esbarrou em Emily ao virar a esquina do corredor do Hospital de La Push, distraída com a prancheta que segurava.

— Emily? — Ela parou de repente, surpresa. — O que você está fazendo aqui?

Seus olhos percorreram involuntariamente as cicatrizes que agora marcavam o rosto e ombro de Emily. Fazia pouco mais de quatro meses desde o acidente, e agora restavam apenas linhas pálidas e irregulares que serpenteavam pelo seu ombro, subindo pela mandíbula, até a lateral direita da face, como raízes de uma árvore retorcida.

Emily tocou o ombro quase sem querer, como se sentisse o olhar inquisitivo de Rose.

— Eu tenho uma consulta com você, na verdade. — Emily deu de ombros, tímida.

— Oh, sério? — Rose olhou para a prancheta em suas mãos. — Você é a paciente Young, então?

— Exatamente. Espero que não tenha sido incômodo marcar em cima da hora.

— Nada disso. — Rose fez um gesto com a mão em direção à sala de exames mais próxima, abrindo a porta com o quadril. — Vamos lá?

Enquanto Emily passava por ela, Rose sentiu a necessidade de preencher o silêncio. Não era como se elas fossem melhores amigas, mas Rose não tinha o hábito de ser rude sem motivo.

— Como você está se sentindo? Desculpe por não ter ido te visitar. — Ela apontou a cadeira para Emily se sentar e se acomodou atrás da sua mesa. — Com a mudança para o hospital daqui, o tempo tem sido…

— Ah, sim, não se preocupe. O Sam me contou que você tinha começado. — Emily interrompeu suavemente. — Fico feliz que esteja dando certo.

— As pessoas daqui são ótimas. — Ela sorriu. — E embora eu não seja de La Push, ser tão próxima dos Black e estar com Paul praticamente me tornou parte da comunidade aos olhos das pessoas, então eu fui muito bem recebida.

Emily acenou com a cabeça.

— Que bom que você se adaptou. — Ela fez uma pausa. — E… como você está? Sei que também nunca falamos sobre Bella, mas sinto muito por tudo o que aconteceu.

Rose ergueu uma sobrancelha, surpresa com o rumo da conversa.

— Está tudo bem. Já faz quase dois anos, e ela e o tio Charlie estão se falando novamente há algumas semanas.

— Sério? Isso é uma coisa boa? — Emily franziu a testa.

— Ela parece disposta a se reaproximar, então… talvez? — Rose encolheu os ombros. — Eu realmente não tinha um relacionamento tão próximo assim com Bella, pra ser honesta. Acho que isso não mudou muito.

— Entendo. O que o Paul acha disso?

Rose soltou um bufo baixinho.

— Ele odeia, é claro.

Ambas riram, o som ecoando levemente no consultório. O humor morreu naturalmente deixando apenas um silêncio constrangedor, enquanto ambas procuravam mais um tópico banal para preenchê-lo ou esperavam que a outra dissesse algo primeiro.

Rose finalmente limpou a garganta.

— Então… qual é o motivo da sua consulta hoje?

Emily suspirou pesadamente, suas mãos torcendo o tecido do vestido em seu colo.

— Você se importa se for mais de um motivo?

Rose franziu a testa, confusa.

— É claro que não. Alguma coisa está te incomodando? Algum sintoma?

Emily mordeu o lábio inferior antes de responder:

— Não, é que… Bem, eu não sei por onde começar.

— Que tal começar pelo primeiro motivo pelo qual você veio até aqui?

— Certo, ok… — Emily respirou fundo. — Eu queria saber se existe alguma maneira de reduzir as minhas cicatrizes.

— Temos algumas opções, sim. Cremes de silicone, pomadas com corticoides, laser, em último caso uma cirurgia de revisão de cicatriz também pode ser útil… Mas, no seu caso, elas nunca vão desaparecer completamente, Emily.

— Eu sei.

— Elas estão te incomodando? Ou causando dor?

— Não é isso. — Emily suspirou, tentando encontrar as palavras certas. — Na verdade, eu nunca fui muito ligada à minha aparência, por incrível que pareça. Talvez você ache isso bobo, mas… eu vejo como o Sam me olha agora… e, sei lá...

Rose segurou a respiração, preocupada.

— Você acha que ele não gosta?

— Não é isso…. — Emily interrompeu, esfregando a lateral do rosto sem cicatrizes. — É culpa, eu acho… Como se ele tivesse sido o responsável pelo acidente. Eu não quero ter que passar o resto da minha vida recebendo esses olhares, sabe? E além disso…

— O quê?

— Isso me fez questionar o imprinting.

A cadeira de Rose rangeu quando ela se recostou bruscamente.

— Por isso você veio até mim?

— Sim. Sinto muito, Rose. Eu sei que você não é terapeuta e nem nada disso, mas além de mim, você é a única outra garota na matilha que não é um lobo e que entenderia a minha situação. E você também é médica, e poderia me ajudar. É que às vezes parece que o Sam continua comigo apenas por causa do imprinting. — Ela fungou, os olhos enchendo-se de lágrimas. — Ele continua me lançando esses olhares estranhos e me tratando como se eu fosse feita de cristal e fosse quebrar a qualquer momento. E agora com a Leah na matilha, as coisas têm sido ainda piores. Ele está sempre tenso e estressado, e de repente nós agora somos um estranho triângulo amoroso… — Ela se interrompeu, um soluço escapando no meio da sua fala. — Desculpa, eu não queria despejar tudo isso em você.

Rose ficou em silêncio durante alguns segundos, enquanto Emily regulava a respiração e limpava os olhos lacrimejantes com as costas das mãos.

— E você acha que se livrar das cicatrizes vai resolver o problema? — Ela perguntou suavemente.

Emily ficou quieta por um longo instante.

— O que você quer dizer?

— Você acha que se as cicatrizes sumissem, essa dúvida sumiria junto?

Emily baixou os olhos para as próprias mãos, os dedos traçando inconscientemente linhas de cicatrizes menores que pareciam ter atingido aquele local também.

— Eu… não sei. — Admitiu finalmente, a voz saindo fraca.

— Talvez você já tenha pensado sobre isso antes do acidente, então?

— Sim, talvez… — Ela começou, parou, e então tentou novamente. — Não era um pensamento recorrente, foi apenas algo que eu pensei ocasionalmente, sabe?

— Entendo.

— Ela amava ele. Leah. — Ela sussurrou baixinho. — Eu sei que sim. Mas eles não eram felizes. Parece terrível ver o nosso relacionamento de fora, mas as coisas são diferentes quando você não tem a perspectiva completa da situação.

Rose observou como os ombros de Emily se curvavam para frente, como se ela estivesse tentando proteger o próprio corpo.

— Você não precisa provar nada pra mim, Emily.

Emily soltou uma risada seca.

— Será que não? Eu sei como as pessoas na Reserva olham pra mim. A outra. A amante. A destruidora de lares. As pessoas ainda cochicham. — Continuou, os olhos fixos na barra do vestido, os dedos enroscando em um fio solto. — Ainda esperam que eu apareça grávida algum dia, como se fosse a única razão para Sam me querer.

Rose moveu-se para a borda da cadeira, esperando ela finalizar o pensamento.

— E o pior? — Emily ergueu os olhos, brilhantes. — Às vezes eu me pergunto se elas realmente têm razão. Se não é o imprinting nos forçando a ter algo que não deveríamos.

O relógio da parede marcou um tique-taque especialmente alto no silêncio que se seguiu.

— Então, me explique.

— O quê?

— Me explique o porquê ele está com você. Por que Sam te escolheu?

Emily piscou, surpresa com a pergunta direta. Seus dedos se entrelaçaram com força no colo, os nós ficando brancos de tanto pressionar.

— Ele… ele me disse que as coisas com Leah já não estavam boas há tempos. — Começou devagar, hesitante. — Que o relacionamento deles estava… estagnado. Que ele já pensava em terminar, mesmo antes de se transformar. Eles eram mais amigos do que namorados naquela altura.

Rose arqueou uma sobrancelha, surpresa. Isso era algo que ela não sabia, Leah nunca havia mencionado nada parecido. Mas será que ela própria sabia disso?

— E quando o imprinting aconteceu?

— Foi no seu jantar de formatura, na verdade. — Emily continuou, um sorriso pequeno e nostálgico passando por seus lábios. — Eu estava de férias em La Push e Leah me convidou para ir até a casa do Billy e conhecer as pessoas. Sam me viu lá.

— Ele falou com você naquele dia? — Rose franziu a testa, tentando buscar lembranças daquele dia nas suas memórias.

— Não. Foi uma interação bastante rápida. — Emily engoliu em seco. — Eu só fiquei sabendo do imprinting depois que ele terminou com Leah. Quando ele veio atrás de mim… eu o rejeitei.

Rose sentou-se mais ereta, erguendo as sobrancelhas.

— Sério?

— Ele dormiu na varanda da casa da minha tia por quase um mês. Até mesmo quando eu joguei água nele, gritei para ele ir embora e fechei a porta na cara dele. — Emily murmurou, um rubor subindo em suas bochechas. — Um dia ele me encurralou e… bem, ele se transformou na minha frente. Eu quase enfartei.

Um riso breve escapou de ambas, aliviando momentaneamente a tensão.

— Depois disso, eu propus que ficássemos só na amizade. Ele disse que o imprinting era sobre companheirismo, mas não criava sentimentos. Então, ele poderia ser o que eu precisasse. E que os ancestrais haviam nos escolhido, porque somos perfeitos um para o outro, mas apenas porque eu seria o apoio dele, para que ele não perdesse a cabeça. A progressão para um relacionamento romântico era natural, mas não era obrigatória. Mas eu não queria nada disso…

— Por que não?

— Eu não poderia trair a Leah daquele jeito.

— E o que mudou?

— Eu não posso ser julgada por me apaixonar. — Ela sussurrou, a voz embargada. — Ele era um bom amigo e eu gostava de estar com ele. E foi tão bobo quando aconteceu da primeira vez. Ele estava me apressando no carro, nós estávamos atrasados para algo. Eu vinha correndo de casa, ainda tentando prender o cabelo e ele só… Ele sorriu pra mim, disse que eu estava linda e me puxou para um beijo.

— Então, aquele dia na praia…?

— O beijo aconteceu um dia antes. Então, ele me chamou para ir na praia com os amigos dele no dia seguinte. Foi quando a Leah nos viu. Então, você sabe o que aconteceu.

Rose respirou fundo.

— Eu sinto muito, Emily…

— Não, Rose. Você estava certa. — Emily interrompeu, erguendo a mão. — Tudo o que você falou naquele dia ainda é verdade. Eu fui covarde e egoísta. Mesmo se nada tivesse mudado no meu relacionamento com Sam, Leah ainda merecia saber que nós éramos amigos. Mas eu… eu tinha tanto medo. Porque eu já gostava do Sam, mesmo que eu ainda não soubesse disso ou ainda não confirmasse isso para mim mesma, e eu sabia que Leah veria isso imediatamente no meu olhar. Ela sempre foi tão perspicaz.

— Embora eu concorde, eu ainda sinto muito por ter dito aquelas coisas.

— Você não precisa se desculpar. — Emily fungou, a voz mais firme agora. — Alguém precisava me dizer aquilo. Eu foquei demais nos meus problemas, eu sei disso. Eu passava dias ensaiando como contar pra ela, aí eu via como ela estava péssima e como você a ajudava a se curar, e… eu desistia. Era mais fácil fingir que não estava acontecendo nada. Eu me senti uma pessoa tão ruim.

Rose balançou a cabeça lentamente.

— Você não é uma pessoa ruim, Emily. Você apenas cometeu um erro que, infelizmente, virou uma bola de neve. Vai ser muito mais difícil de consertar, no entanto.

— E você acha que é possível? — Emily mordeu a parte interna da bochecha. — Que Leah me perdoaria?

Rose suspirou, franzindo a testa.

— É difícil dizer. Leah é uma pessoa complicada, ela é bastante reativa e acaba levando muitas coisas para o lado pessoal. Talvez agora, que ela também é um lobo, ela consiga compreender melhor a dimensão da situação e o porquê das coisas. Mas ainda é apenas um talvez…

— Entendo.

— Ela não tem obrigação de perdoar você, no entanto. — Ela disse, gentilmente. — Ela ficou realmente muito magoada, e ela tinha direito de se sentir assim quando não fazia ideia do que estava acontecendo.

— Eu sei disso, você está certa. E sinto muito por vocês também.

Rose acenou com a cabeça, aceitando o pedido de desculpas sem comentários.

— Ela vai entender sobre eu e o Paul eventualmente, mas eu não espero que ela entenda.

— E, por falar em Paul… — Ela hesitou. — Como você se sente em relação ao imprinting?

— É diferente, Emily. Nós namoramos antes do imprinting.

— Mas não te incomoda a ideia de que ele só voltou por causa disso?

— Já pensei nisso, é claro, mas é difícil chegar a alguma conclusão quando você olha apenas por esse ângulo. — Rose explicou calmamente. — Do ponto de vista do Paul, ele tinha se tornado uma… entidade sobrenatural, capaz de rasgar uma garganta com os dentes. Ele estava apavorado com o que tinha se tornado, com o que podia fazer e com a possibilidade de me machucar. Quando ele terminou comigo, ele só queria me manter longe do lobo, não dele.

— Então, você não acha que o imprinting é um amor artificial? — Emily franziu a testa.

— O imprinting não cria amor. Ele apenas garante que alguém estará sempre ali para proteger, cuidar e crescer junto, independentemente do que ela sinta de volta. É uma forma de lealdade absoluta, que não cobra, força ou exige nada. É por isso que ele permite que o tempo e as experiências definam o que aquele laço vai se tornar: se será amor, cuidado ou apenas amizade.

— E quanto ao Sam?

Rose hesitou por um segundo.

— Eu não posso falar por ele. — Disse, com honestidade. — Mas eu sei que o imprinting não apaga sentimentos antigos para dar lugar a novos. Não é como virar uma chave e esquecer tudo.

Emily desviou o olhar, lutando com a culpa que nunca a abandonava completamente.

— Eu acho que o amor não desaparece só porque o imprinting acontece. — Rose continuou, respirando fundo. — Mas também não acho que Sam escolheu você no lugar dela por causa do imprinting. Você mesmo disse que ele já pensava em terminar. Talvez tenha sido muito confuso para ele ter tido essa conexão com você, enquanto lutava com os sentimentos entre ele e Leah.

Emily fechou os olhos por um instante, absorvendo o que nunca ousou admitir em voz alta.

— Então, você acha que ele ainda ama a Leah?

Rose fez uma pausa.

— Talvez, sim. De um jeito diferente, no entanto. Eu não acho que o que ele sente por você é menos real por ter vindo do imprinting, ou que ele ainda ama Leah do mesmo jeito que antes. Vocês tiveram tempo juntos suficiente para os sentimentos crescerem. Talvez ele e Leah apenas precisem de um encerramento de verdade, conversar e resolver as mágoas.

Emily assentiu devagar, controlando a respiração.

— Eu entendo.

— Isso te conforta?

— Na verdade, sim. — Emily respondeu, surpresa com a própria sinceridade. — Não muda o aconteceu, é claro. Mas me ajuda a entender que eu não sou apenas um… erro no caminho, sabe? Eu ainda o amo, afinal. E eu sei que ele me ama, embora nada disso tenha começado do jeito normal.

Rose sorriu, compreensivamente.

— O imprinting não tira o livre-arbítrio, Emily. Ele apenas mostra um caminho. Mas cabe a vocês decidirem como vão trilhar por ele.

Emily respirou fundo novamente. E, pela primeira vez em algum tempo, pareceu um pouco mais leve. Como se o peso que carregava em seu peito tivesse, enfim, encontrado palavras para existir fora dela.

No final das contas, ela ainda pediu para Rose examinar as suas cicatrizes e escrever uma receita com recomendações de cremes que poderiam ajudar a reduzi-las, enquanto Rose se sentia incrivelmente satisfeita por ter conseguido algo que não esperava ganhar: o outro lado da história.

Embora Rose ainda achasse que Emily e Sam cometeram muitos erros, e que Leah realmente merecia toda a raiva que sentia, ela entendia que a vida raramente se dividia com tanta clareza entre vítimas e culpados.

Emily não era uma vilã.

Era apenas uma mulher que havia se apaixonado, sem querer, por alguém enrolado com outra pessoa. E, em vez de sentar e conversar, ela se entregou ao imprinting como se fosse algo inevitável, como se amor e destino fosse a mesma coisa.

Rose sentiu-se um pouco mais feliz por ter ajudado a desatar alguns destes nós, e também por ter perdoado Emily — embora ela não soubesse disso. 

Ela só esperava que Leah tivesse a oportunidade de perdoar e ser perdoada também.

Quando Emily deixou o consultório, Rose se recostou na cadeira, respirando fundo. Mas teve pouco tempo para apreciar a pausa quando o celular vibrou sobre a mesa. Ela franziu a testa ao ver o número na tela.

— Oi, Bella.

— Rose! Ah, que bom que você atendeu.

Havia um nervosismo mal disfarçado na voz de Bella.

— Aconteceu alguma coisa?

— Não, claro que não. Bem, eu… olha… — Bella suspirou do outro lado da linha. — Desculpa, eu queria falar com você há semanas e eu não sabia se você estava disposta a falar comigo. Eu tenho falado com o pai novamente, sabe…

Rose ergueu uma sobrancelha, surpresa. Bella raramente se referia ao tio Charlie como “pai”.

— Eu sei. Ele me contou.

— Certo… que bom. — A voz de Bella soou um pouco mais aliviada. — Eu vou fazer 21 anos no início de setembro. Os Cullen querem fazer uma comemoração. Eu convidei o pai, e queria chamar você também.

Rose pensou sobre isso por alguns segundos.

A voz de Bella ainda lhe provocava uma reação instintiva, uma vontade amarga de desligar na cara dela antes que a conversa tomasse um rumo que ela não queria seguir. Ainda havia tanto não dito entre as duas que qualquer tentativa de diálogo poderia se transformar em uma briga.

E Rose, talvez até um pouco incoerentemente, ainda cultivava pensamentos maldosos sobre Bella. Era muito mais fácil pintá-la como egoísta e ingrata do que tentar entender o lado dela.

Mas talvez a conversa com a Emily a tenha feito pensar demais. As histórias sobre Sam, as cicatrizes, o imprinting… Tudo aquilo havia bagunçado o jeito que Rose costumava organizar o mundo: certo ou errado, leal ou traidor, vítima ou culpado.

Talvez Bella também não fosse só o que Rose via. Talvez houvesse nuances, buracos, escolhas difíceis feitas por medo ou desespero — embora Rose ainda revirasse o nariz de desgosto apenas ao pensar nisso.

Talvez, e isso era o mais difícil de admitir, Bella também tivesse sofrido à sua maneira, e só agora estivesse aprendendo a juntar os cacos e crescer.

Rose sabia que elas nunca seriam amigas. Mas talvez houvesse espaço para outra coisa. Uma trégua, ou simplesmente perdoá-la e seguir em frente. Apenas para não ser corroída lentamente pelas mágoas do passado. Para não alimentar o tipo de pensamento que a deixaria amarga por dentro.

Então, quando respondeu, sua voz soou mais determinada do que esperava.

— Tudo bem. Setembro, né? Vou pensar nisso.

Rose poderia tentar. O que poderia acontecer de pior?

Notes:

Eu gosto de escrever sobre perspectivas, eu acho que isso sempre coloca uma luz sobre certas situações que abrem os nossos olhos para detalhes que passaram despercebidos. Quer dizer, ninguém é inerentemente malvado ou bondoso, eu acho.

Esse é o tipo de coisa que pensamentos na adolescência. Tudo é oito ou oitenta. E então nós crescemos e descobrimos que não é bem assim.

Isso se encaixa aqui. Rose viu a situação de Sam, Emily e Leah aos 19 anos e achou um absurdo, uma traição sem tamanho. Mas agora ela tem 28 anos, já se passaram quase 10 anos desde aquela interação na praia e ela percebeu que embora todos tenham cometido muitos erros, o caso é mais sobre mal entendidos e falta de comunicação do que sobre qualquer outra coisa.

E tem um outro ponto: eu escrevi esse capítulo para tentar conceituar o imprinting também (embora eu ainda não achei que ficou perfeito). No cânone, Jacob diz que ele poderia ser o que Nessie quisesse que ele fosse, mas isso não faz sentido se, ao ter o imprint, ele parou automaticamente de "amar Bella". Como se o imprint tivesse o forçado a gostar de Nessie, transferindo o amor pela mãe para a filha. Ficou mal explicado.

Enfim, só estou usando essas notas para refletir sobre isso mesmo. Espero que vocês tenham gostado! ❤️

Chapter 45: QUARENTA E CINCO

Chapter Text

Rose tinha certeza de que aquilo não acabaria bem.

Tudo começou com Paul insistindo em acompanhá-la até a casa dos Cullen para o aniversário de Bella, o que ela já esperava, afinal ele jamais permitiria que ela fosse sozinha ao “covil dos vampiros”. Mas então, Jake captou a intenção de Paul em seus pensamentos e exigiu ir também. E, como era de se esperar, um puxou o outro e então Jared se junto ao grupo alegando proteger seu Alfa — embora as hierarquias estivessem um pouco indefinidas no momento, já que Sam ainda estava focado em Emily e Jake o substituia ocasionalmente —, Quil simplesmente seguiu o grupo sem questionar e Seth o acompanhou, pois não queria ficar de fora da festa.

Agora, em vez de uma visita rápida e uma saída à francesa, Rose se viu tentando enfiar cinco lobos na caminhonete de Paul, enquanto torcia para que os Cullen não pensassem que ela estava os ofendendo de alguma forma ao levar os convidados extras — não que ela se importasse muito com isso, no entanto.

— E então… Eles moram em alguma masmorra? — Perguntou Seth, quase se debruçando sobre o banco da frente na empolgação.

— Talvez tenha caixões lá? — Quil acrescentou, pensativo, os olhos semicerrados em contemplação, provavelmente imaginando algum cenário gótico na sua mente.

— Ou cruzes? — Embry sugeriu, inclinando-se entre os bancos da frente.

Rose bufou, divertida, enquanto acelerava entre as curvas da estrada em direção à casa dos Cullen. Paul, sentado ao seu lado, parecia exasperado.

— Por que eles teriam cruzes, idiota? — Jared revirou os olhos. — Vampiros fogem de cruzes.

— Não, eles fogem de alhos. — Jake declarou com um ar de superioridade.

Seth franziu a testa, genuinamente perplexo.

— Por que eles fogem de um tempero?

— Sim, eu também nunca achei que isso fazia sentido. — Embry confirmou, acenando com a cabeça. — Tipo, se eu jogar um macarrão alho e óleo em um vampiro, ele vai, sei lá, se dissolver no ar? Ou só serve se for alho puro?

— Mas isso não acontece só com prata? — Quil interferiu, esfregando o queixo.

— Isso é só com lobisomens, seu idiota. — Jake bateu na nuca de Quil, fazendo o garoto gritar.

Seth arregalou os olhos ao ouvir isso.

— Então, quer dizer que nós podemos morrer por causa de prata? — O garoto parecia genuinamente perplexo.

— Nós não somos lobisomens, Seth. — Paul acrescentou, embora não parecesse disposto a entrar na conversa que acontecia no banco de trás.

Nós não somos lobisomens?! — Seth gritou, atordoado.

— Nada disso faz sentido. — Jared resmungou.

— Mas gente, e se… — Jake acrescentou dramaticamente, interrompendo a discussão. — E se um vampiro morder um cara que comeu alho? Ele morre por, tipo, intoxicação alimentar?

— Talvez essa seja tipo uma herpes de vampiro. — Embry sugeriu, rindo de sua própria piada.

— Vocês não matam vampiros? — Rose interrompeu antes que a conversa começasse a tomar grandes proporções.

— Claro que sim! — Jake reagiu primeiro, erguendo o queixo com orgulho ferido.

— Então, como vocês não sabem o que mata um vampiro?

A caminhonete ficou em silêncio por apenas um instante.

— Bem… — Embry começou, hesitante.

— É que a gente geralmente só usa… você sabe… — Jake fez um gesto vago com as mãos. — …dentes e garras?

— E a raiva. — Jared completou secamente.

— Muita raiva. — Quil concordou, balançando a cabeça.

— Eu ainda nem vi um vampiro direito... — Seth acrescentou baixinho, encolhido no canto, provavelmente ainda atordoado com a revelação de que ele não era um lobisomem.

— Isso não é um filme, seus imbecis. — Paul bufou, revirou os olhos.

— Não seja hipócrita, Paul, você também teve todas essas dúvidas na primeira vez. — Jared zombou, chutando levemente o banco de Paul, fazendo o veículo balançar.

— Eu pelo menos não falei elas pra todo mundo ouvir.

Jared soltou uma gargalhada divertida.

— Não, só pensou nisso o dia todo, enquanto ansiava pela Rose aqui como um adolescente apaixonado.

— Ah, cala a boca, Jared. — Paul tentou dar um soco para trás, alcançando apenas os cabelos de Embry e fazendo o garoto gritar de susto, enquanto Jared se esquivava rindo enlouquecidamente. — E você? Já falou com a Kim?

O sorriso de Jared desapareceu imediatamente, e o seu rosto ardeu de vergonha.

— Ei, não mete a Kim nisso.

— Oh, quem é Kim? — Rose perguntou com olhos brilhando de curiosidade, enquanto fingia ignorar a tentativa de Paul de disfarçar a sua timidez, afundando cada vez mais no banco. Era adorável. Mais tarde ela o abordaria sobre isso.

— É o imprinting dele. — Paul cantarolou, aproveitando a oportunidade para se vingar. Como uma criança de cinco anos.

O quê?! — Rose abriu a boca, incrédula. — Quando isso aconteceu?

— Só faz alguns dias, eu ainda não tive coragem para falar com ela.

Rose mordeu o lábio para conter um enorme sorriso.

— Bem, nós sempre podemos marcar uma fogueira e você pode chamá-la.

— Isso seria perfeito, Rose. Você é um anjo. Não sei como você suporta o Paul.

— Eu sou incrível, só pra você saber. — Paul argumentou.

Jared bufou.

Antes que eles voltassem a brigar novamente, Seth interrompeu:

— Gente, eu ainda não entendi. Os vampiros têm medo de alho ou não?

A caminhonete inteira explodiu em risadas ou gemidos exasperados.

— Tudo isso é mito, Seth. — Rose esclareceu.

— Até mesmo queimar no sol?

— Bem… — Ela hesitou. — Isso, na verdade, eu não tenho certeza.

E então todos começaram a criar hipóteses novamente. Rose revirou os olhos e continuou a dirigir, ignorando a bagunça que os cinco cachorros faziam no carro.

 

*

 

Quando a caminhonete finalmente estacionou em frente a casa impecável dos Cullen, Rose mal teve tempo de desligar o motor antes que Bella surgisse na porta em um borrão.

— Rose! Você veio! — Bella quase cantou, saltando no lugar como uma criança cheia de açúcar.

Rose congelou com a mão ainda na chave de ignição, os olhos levemente arregalados. Uma Bella feliz era estranho, mas uma Bella feliz em ver Rose era… assustador. Que porra era essa?

Atrás dela, os garotos começaram a sair do veículo um a um, como se aquilo fosse um show e eles fossem palhaços desajeitados saindo de um fusca.

— Uau, ela é… eufórica. — Seth sussurrou, meio passo atrás de Rose, como se Bella não pudesse ouvir tudo o que eles diziam a quilômetros de distância.

Bella, cujo sorriso vacilou por uma fração de segundo ao avistar o grupo, disfarçou a careta e engoliu em seco. Seus olhos dourados piscaram rapidamente antes que ela recuperasse o entusiasmo, abanando as mãos para o grupo com energia renovada.

— Entrem! Esme fez brownies. Ela vai ficar muito feliz em saber que outros humanos vão comê-los. — Seu rosto parecia prestes a partir ao meio com o seu sorriso. — E o pai já está aqui, Rose.

— Hum… Ok… — Rose respondeu eloquentemente. O que diabos ela deveria dizer diante dessa estranha, e acalorada, recepção e hospitalidade?

Dentro da casa dos Cullen, Rose sentiu que poderia cortar a tensão com uma faca de pão. Era constrangedor, e só piorou quando a vampira loira escultural, parada ao lado de um vampiro alto e musculoso, que parecia ter saído de um comercial de televisão abriu a boca ao ver o grupo entrar:

— Olha só, — ela abriu um sorriso afiado — não sabia que a garota traria o canil da cidade. Se eu soubesse, teria preparado biscoitos de cachorro para servir.

— Rosalie, não seja assim com os nossos convidados. — O Dr. Cullen interviu, assumindo uma postura conciliadora que realmente não conciliava nada.

Rose queria revirar os olhos. Em vez disso, exerceu todo o seu decoro e paciência e abriu um sorriso para o Dr. Cullen.

— Sinto muito pelos convidados de última hora, Dr. Cullen. Espero que não seja um problema.

— Nada com que se preocupar. A casa é grande o suficiente para… todos. — Seus olhos dourados pincelaram brevemente sobre os lobos na sala. — E você pode me chamar de Carlisle, Rose. Não somos mais colegas há meses.

Rose mordeu o lado interno da bochecha para não soltar uma risada histérica.

— Claro, Dr. Cullen. — Ela respondeu deliberadamente, deslocando-se pela sala em direção ao tio Charlie, que estava acomodado em uma poltrona, segurando um copo com guarda-chuva colorido e parecendo deslocado e desconfortável em uma sala cheia de seres sobrenaturais.

Seria engraçado, se Rose não estivesse se sentindo igualmente deslocada e desconfortável.

— Oi, querida. — Ele ergueu a bebida estranha de cor azul em sua direção, fazendo ela erguer uma sobrancelha. — Eles não têm cerveja aqui, garota.

— Faz muito mais sentido. — Ela sentou-se no sofá ao lado dele, e Paul como sempre, imediatamente se acomodou ao seu lado, o braço envolvendo seus ombros e puxando-a para perto de si em um aperto protetor. — O que é isso? Césio 137?

— Que engraçado, Rose. — Bella interrompeu alegremente, antes que tio Charlie respondesse, e quase flutuou pela sala, seu vestido balançando suavemente em suas pernas, até se acomodar no sofá em frente à ela. — É apenas uma coisinha que eu inventei, misturado com licor Curaçau.

— Você… inventa drinks agora? — Rose perguntou, incapaz de esconder o tom de incredulidade. Ela tinha entrado em algum universo paralelo no caminho entre Forks e a casa dos Cullen?

Bella balançou a mão no ar em um gesto despreocupado.

— Eu tenho muito tempo livre à noite.

— E quem aprova esses drinks? Eu acredito que você não bebe eles… né?

— Bem, vocês serão as minhas primeiras cobaias, na verdade. — Ela abriu um sorriso deslumbrante. — Embora, às vezes eu peça para o Edward tomar um gole ou outro de brincadeira. Mas até agora não encontrei nenhuma receita que um vampiro goste.

Tio Charlie olhou levemente horrorizado para o copo azul-turquesa em suas mãos que, de repente, realmente parecia uma bebida radioativa.

Bella, no entanto, ignorou completamente o olhar de pânico do pai e levantou em um pulo animado, e rápido demais para qualquer ser humano, e saiu quase correndo até uma mesa de bebidas para buscar uma das suas criações para ela experimentar.

Rose aproveitou o momento de distração e deixou seu olhar percorrer a sala. Do outro lado do cômodo, os lobos estavam atacando uma enorme mesa de guloseimas. Daquela distância, ela conseguia ver sanduíches, bolos, brownies, biscoitos, doces, jarras de sucos e uma montanha de comida que era empilhada desordenadamente no prato deles. Uma vampira corria para lá e para cá no meio da bagunça, trazendo mais bandejas de canapés e repondo os alimentos com uma expressão de pura satisfação. Aquela, provavelmente, era Esme.

O Dr. Cullen, enquanto isso, circulava com uma garrafa de… algo… enchendo as taças dos convidados com um sorriso contido, mas que não escondia a perplexidade em seus olhos dourados. Rose não podia culpá-lo pode se surpreender com as maneiras à mesa dos seus amigos metamorfos. No canto mais distante, o casal de vampiros modelos assistiam à cena como se fossem um par de estátuas, enquanto a loira encarava o grupo com desdém; e o cara musculoso parecia genuinamente entretido.

Rose sentiu os lábios se curvarem involuntariamente.

— Aqui, prove! — Bella reapareceu na sua frente, empurrando um copo comprido com um líquido que, curiosamente, dividia-se em três camadas perfeitas de vermelho, amarelo e verde, com alguns cubos de gelo e folhas de hortelã flutuando no topo e um guarda-chuva roxo na borda. — Se chama Jamaica. A receita diz que deveria ser doce e ácido.

Ela aceitou o copo com cuidado, girando-o lentamente. As cores não se misturaram como ela esperava, o que, contra a sua vontade, a surpreendeu.

— Isso não tá envenenado, né? — Paul farejou o ar com desconfiança.

— Claro que não. — Bella franziu a testa, confusa. — Por que eu envenenaria a minha prima?

Rose teria diversos argumentos a favor do seu próprio envenenamento, se ela fosse Bella. Mas como ela não era, e também estava em algum tipo de jornada em busca do perdão, ela ignorou os alertas vermelhos e levou o copo aos lábios.

O primeiro gole queimou suavemente, depois ela sentiu uma explosão de sabores que misturava maracujá e algo igualmente cítrico, picante e doce. Rose tossiu levemente.

— Bem, é… uma experiência. — Rose limpou os lábios com o dorso da mão, sentindo o calor subir às bochechas por causa da alta dosagem de álcool. — Só um pouco forte demais.

— Oh, é claro. Acho que preciso equilibrar a quantidade de álcool para o metabolismo humano.

E então, Edward apareceu num borrão de movimento. Em apenas um segundo, ele estava ao lado de Bella.

— Ela tentou criar uma bebida que pudesse deixar um vampiro bêbado. — Murmurou, olhando para Bella como se ela fosse alguma deusa andando sobre a terra, com olhos de coração e um sorriso apaixonado. Era desconcertante, e um pouco mal educado também. Especialmente porque ele parecia desconsiderar todos os outros presentes na sala. — Depois de três garrafas de rum, descobrimos que é impossível, não é, amor?

— Sim, querido. — Bella respondeu, devolvendo o sorriso sonhador e o afeto exagerado, o que fez tio Charlie engasgar levemente com a sua bebida e resmungar algo inteligível.

Rose, por outro lado, olhou de um vampiro para o outro sem saber o que dizer. Não era a primeira vez naquele dia que ela se perguntava o que tinha na cabeça quando aceitou o convite de Bella. Talvez ela devesse culpar Emily por isso.

— Bem, eu… eu agradeço o esforço. — Rose gaguejou, sentindo-se um pouco oprimida. Talvez ela devesse ter ficado em casa. Ela depositou cuidadosamente o copo na mesa de centro, e se recusou a perder suas faculdades mentais naquela casa particularmente louca.

Bella girou em seu eixo naquela velocidade desconcertante.

— Você quer comer algo, Rose? — Ela quase cantou.

O que diabos estava acontecendo com a Bella hoje?

— Eu não… — Rose tentou recusar.

— Não se preocupe, eu pego! — Bella desapareceu antes que Rose pudesse completar a frase, deixando um Edward sonhador observando-a de longe com um beicinho desamparado.

— Que porra é essa? — Rose sussurrou, levemente horrorizada. Da última vez que ela e Bella se viram pessoalmente, ambas estavam com raiva e disseram coisas terríveis uma para a outra. Rose tinha certeza de que Bella não tinha superado a discussão, afinal, ela mesma ainda não tinha perdoado Bella por ser mesquinha e egoísta, então por que Bella havia deixado tudo para trás de repente? Parecia incoerente, exceto que Rose realmente não sabia como a mente vampira funcionava. Talvez eles perdoassem mais facilmente?

— Ela parece um pouco fora de si, não é? — Paul ergueu uma sobrancelha, igualmente perplexo com a atitude de Bella.

— Vampiros podem ficar drogados? — Ela rebateu.

Uma risadinha musical soou perto deles, antes que uma vampira baixinha aparecesse sentada na mesa de centro como se tivesse sempre estado ali. Ela parecia uma fada, com sua baixa estatura, braços finos e cabelos curtos espetados.

— Não podem, Rose. — Ela respondeu, balançando os pés como uma criança. — Eu queria tanto conhecer você. Eu sou Alice Cullen.

Rose ergueu uma sobrancelha. Aquela era uma vampira que ela não sabia o que dizer. Elas nunca interagiram, e Rose mal se lembra de tê-la visto durante A Discussão na frente da casa dos Cullen.

— Sério? E por quê?

— Eu gostaria de ver pessoalmente a pessoa que aparece borrada na minha mente. — Explicou, como se isso fosse a coisa mais normal no mundo. — Todo mundo aparece nítido nas minhas visões… bem, exceto os lobos, é claro. Mas eles são mais como… um quarto escuro, eu acho. E você está lá, mas tem esse brilho ao redor que me impede de vê-la nitidamente. Sempre acaba virando um flash branco e fluorescente.

— Suas… visões?

— Sim!

— Você tem visões?

— Sim!

— Tipo, como… como ver o futuro?

— Sim!

Rose piscou, tentando processar a informação.

— E isso é normal?

— Claro que é! E é fascinante, — Alice quase pulou da mesa. — Tipo como um easter egg na minha mente. É curioso. Quase nunca tenho surpresas!

Paul, que até então permanecia em silêncio, prendeu um dos braços na cintura de Rose e a apertou ainda mais contra si em um movimento protetor.

— E isso é bom ou ruim? — Rosnou, seu nariz franzido mostrando o quanto estava desconfiado. Ou o quanto o cheiro da casa o incomodava, provavelmente eram as duas coisas.

Alice deu uma risadinha despreocupada.

— Depende! — Cantarolou. — Pode significar que ela tem algum tipo de dom… ou simplesmente ela é diferente de tudo o que eu conheço. Até onde eu sei, eu só tenho visões sobre aquilo que estou familiarizada. Eu fui humana, então posso ver o futuro dos humanos. E eu sou uma vampira, então consigo ver o futuro dos vampiros.

Rose e Paul trocaram um breve olhar significativo. Se aquilo fosse verdade, fazia sentido que Alice não pudesse vê-la, afinal Rose não era exatamente humana, mas também não era completamente sobrenatural. Ela era uma bruxa, e agora era uma aborto. O que fazia dela apenas meio humana e, portanto, imune aos poderes psíquicos da vampira hipster, aparentemente.

Bella apareceu com uma bandeja cheia de salgadinhos equilibrada em uma das mãos, enquanto, com a outra, deu um tapinha afetuoso no braço de Alice.

— Alice, pare de assustar os meus convidados. — Reclamou, mas seus olhos brilhavam de afeto.

— Bem, nós falamos depois então, Rose.

Alice saltou levemente, aterrissando ao lado de um vampiro loiro que parecia estar com dor do outro lado do cômodo. Rose, apesar do seu amplo desgosto por aquela família, sentiu um sorriso se formar em seus lábios. Embora Alice parecesse ser bastante intrometida, hiperativa e não entendesse nada sobre espaço pessoal, ainda tinha algo cativante em suas ações.

— Aqui está, para vocês. — Bella colocou a bandeja de petiscos sobre a mesa de centro, onde Alice estava há alguns segundos, e Paul e tio Charlie não precisaram de mais incentivos antes de atacar a bandeja.

Rose, no entanto, mantinha os olhos fixos em Bella. Algo parecia fora do lugar naquele dia. Aquela versão feliz e eufórica de Bella era tão estranha quanto o sol aparecer em Forks.

— Bella… — Rose disse, levantando-se. — Podemos conversar?

— Claro! — Respondeu Bella. — Vamos para a varanda?

Rose assentiu, mas antes que pudesse dar um passo, Paul agarrou seu pulso.

— Tem certeza?

— Sim — murmurou. — Eu acho que adiamos essa conversa por tempo demais. — Ela sussurrou, embora soubesse que todos os vampiros e lobos da sala conseguiam ouvi-la perfeitamente.

— Se precisar de qualquer coisa, me chame imediatamente. — Ele disse, mas parecia tenso, obviamente sentindo-se desamparo ao deixar Rose ir sozinha para uma varanda com uma vampira.

— É claro, querido. — Ela inclinou o corpo, pressionando um beijo rápido em sua bochecha, antes de seguir Bella em direção à varanda.

Ao cruzar a sala, seus olhos encontraram Edward, parado como uma estátua, seus olhos fixos em Bella e seu braço a envolvendo num abraço possessivo — embora Rose duvidasse que ele realmente achasse que ela representava alguma ameaça para ela. Provavelmente estava mais preocupado em escutar os pensamentos assassinos de Paul do outro lado da sala.

Bella ergueu-se na ponta dos pés para sussurrar algo no ouvido de Edward, e então ele desapareceu em um borrão, deixando-as sozinhas.

Na varanda, Rose sentiu o ar frio penetrar seu suéter fino enquanto a porta de vidro deslizante se fechava atrás dela com um clique suave. Bella estava parada junto à grade, suas mãos pálidas firmemente cruzadas à sua frente.

Ninguém ousou começar a falar, ainda que ambas tivessem muito a dizer.

— Então… — Bella começou, sua voz finalmente perdendo o tom alegre. — Eu queria dizer que sinto muito.

Rose sentiu as sobrancelhas se erguerem até a linha do cabelo. Não era isso que ela esperava dessa conversa.

— O quê?

— Eu fui tão idiota, Rose. — Ela balançou a cabeça, os cabelos castanhos caindo suavemente sobre seus ombros. — Eu fiquei tão obcecada em me tornar vampira que ignorei todo mundo. Meu pai, minha mãe, você… até o Edward, na verdade. E eu lamento muito por isso.

Rose ficou quieta, observando. Bella nunca tinha sido tão genuinamente arrependida antes.

— Eu via você… antes de me transformar, sabe? Eu achava que você estava com ciúmes, que você sentia inveja do meu namorado ou das minhas escolhas perfeitas. — Bella suspirou. — Mas depois que eu me transformei e comecei a viver essa vida imortal, de verdade, só então eu percebi o quanto eu fui egoísta e imatura. Tão obcecada em me tornar imortal que machuquei todos ao meu redor.

Bella olhou para as próprias mãos, observando a pele pálida e imutável.

— Eu percebo agora o que eu perdi. O direito de envelhecer. De mudar. De ter uma família. E, principalmente, percebi quantas pessoas eu magoei. — Ela engoliu em seco. — Meu pai ainda me olha às vezes com esse olhar tão ferido, sabe? Como se esperasse acordar de um pesadelo, ou sei lá o quê. E você… bem, você tentou me avisar tantas vezes. E eu te tratei que nem lixo. Eu realmente sinto muito, Rose.

Rose sentiu um nó na garganta, embora aquelas palavras ainda parecessem vazias sem uma ação concreta por trás. Bella poderia sentir muito, mas ainda era uma vampira. Ainda havia cometido tantos erros, que nada poderia ser resolvido com uma conversa rápida na varanda da casa dos Cullen.

— E o que foi isso tudo hoje? — Rose perguntou, apontando para dentro.

Bella deu de ombros, meio sem graça.

— Tentando compensar o tempo perdido, eu acho. Eu já conversei com o pai sobre isso, mas eu queria me desculpar com você há tempos. — Ela olhou para Rose, desamparada. — Não sei se funcionou tão bem quanto eu esperava.

Rose soltou um suspiro, sentindo-se cansada.

— Caramba, Bella — ela admitiu. — Você sabe que isso não é suficiente, certo?

— Eu sei. — Bella mordeu o lábio, um hábito humano que ela parecia não ter perdido.

— Quer dizer, eu posso tentar — Rose continuou, a voz mais suave agora. — Mas umas palavras bonitas não apagam tudo o que aconteceu.

O vento trouxe o som distante dos garotos rindo dentro de casa. Bella olhou naquela direção por um breve momento, depois de volta para Rose.

— Não quero que você me perdoe agora — ela disse. — Só queria que você soubesse que eu… que eu finalmente entendi. E que eu estou tentando.

Rose estudou o rosto de Bella — parecia familiar e tão estranho ao mesmo tempo. Como se ela estivesse observando uma imitação barata da prima feita de cera. E no entanto, a raiva que ela carregava por tanto tempo, e que sempre se acendia ao ver aquele rosto perfeito, agora parecia apenas desgastado. Como se ela estivesse guardando um móvel velho e empoeirado há anos e, de repente, tivesse percebido que não precisava tanto assim dele.

— Bem — ela finalmente disse, esfregando os braços contra o frio. — É um começo, eu suponho.

Bella abriu um sorriso brilhante, provavelmente feliz com a pequena iniciativa de Rose.

— Obrigada, Rose.

Dentro de casa, alguém derrubou um prato. O som de vidro quebrando fez ambas piscarem, quebrando o momento tenso.

— Vamos voltar? — Bella sugeriu, indicando a porta. — Antes que o seu lobo ache que eu te devorei.

Rose soltou um riso curto, inesperado. Mas acompanhou ela de volta para a sala, enquanto sentia que algo havia mudado durante essa conversa. Talvez fosse o fato de que havia algo dentro dela, esquentando dentro do seu peito e que ainda estava apertado e dolorido há meses, mas só agora havia começado a se soltar.

Talvez fosse isso.

 

*

 

Era justo dizer que, embora Rose ainda não gostasse de vampiros, eles realmente sabiam dar uma boa festa.

No final das contas, eles dançaram, beberam e até jogaram uma partida de Banco Imobiliário que, como sempre, fez Jared ficar com raiva e acusar todos de roubá-lo, enquanto ele falia miseravelmente.

Ao longo do jogo, Bella fez questão de conversar com Rose, algo que provavelmente ela não fazia desde que tinha dez anos e passava as férias em Forks. Ela insistiu em saber sobre os dias de Rose, seu novo trabalho, quando tinha tempo e em quais momentos ficava com Paul. Foi uma conversa surpreendentemente agradável.

Mas é claro que nada pode ser perfeito.

Foi ainda no meio do jogo, enquanto Rose cobrava o aluguel de uma das suas propriedades a um Edward carrancudo, que não conseguia vencê-la, pois era incapaz de ler a sua mente, que Alice ficou imóvel, os dedos ainda segurando uma pilha de notas falsas, o rosto inexpressivo, os olhos vazios e fixos no chão à sua frente.

— O que foi, Alice? O que você viu? — Bella apareceu ao lado de Alice em um piscar de olhos, suas mãos balançando para tentar chamar a atenção dela. O vampiro loiro, Jasper, envolveu Alice em seus braços, sustentando seu corpo rígido.

Ela não olhou para nenhum deles, em vez disso encarou Edward do outro lado da mesa.

— A decisão foi tomada. — Ela disse em um tom agourento.

— Eles estão indo para Seattle? — Foi Jasper quem perguntou.

— Não.

— Eles estão vindo para cá. — Edward respondeu por ela, sufocado.

— Sim.

— Para Forks? — O vampiro musculoso perguntou, seus punhos se cerrando.

— Sim.

— Por quê? — O Dr. Cullen a questionou suavemente.

Rose olhava de um vampiro para outro, sentindo a adrenalina inundar o seu corpo. As perguntas voavam de todos os lados.

— De quem você está falando? — Ordenou Paul numa voz grave e vigorosa. — O que está vindo?

Alice lançou um olhar gelado sobre ele.

— Vampiros. Um exército deles.

— Um exército? — Seth sussurrou, sua voz ainda jovem quebrando no meio da palavra. A cor havia sumido do seu rosto.

— Por quê? — Jake interrompeu.

— Atrás de Bella. É só o que sabemos.

— E por que eles estariam atrás de Bella? — Jared perguntou, as mãos trêmulas em seu colo.

— Victoria quer vingança. — Edward acrescentou. — Ela era a companheira do vampiro que atacou Bella e a transformou. Nós matamos ele e o outro vampiro do clã. Ela está vindo se vingar de nós.

— Quantos? — Quil perguntou, os olhos duros em direção à Alice.

— Pelo menos vinte… talvez menos. — Ela engoliu em seco.

— Ótimo. Perfeito. — Paul revirou os olhos. — Vocês decidiram matar o namorado de uma sanguessuga psicótica e agora ela trouxe um grupo de amigos para dar o troco?

— Não foi exatamente assim — O Dr. Cullen começou, mas foi interrompido por Jacob.

— Não importa como foi. — Seu corpo tremia com a transformação iminente, rastejando sob a pele. — Sobrou para nós arrumar a bagunça de vocês.

A vampira loira cruzou os braços, seus lindos rosto distorcido em desdém:

— Ninguém pediu para você se envolver, vira-lata.

O clima na sala ficou instantaneamente mais pesado.

— Eles estão no nosso território. — Jake rosnou, os dentes afiados à mostra. — Você acha que nós vamos cruzar os braços, enquanto a sua espécie faz a festa no nosso território?

A loira deu um passo à frente, pronta para atacar, enquanto Jake tremia ainda mais e Paul também se aproximava, seus ombros arqueando-se de raiva.

— Parem! — Bella gritou, colocando-se entre dois grupos — Brigar não ajuda em nada!

O Dr. Cullen apareceu ao lado dela num piscar de olhos.

— Ela está certa. Temos que nos preparar para isso.

Tio Charlie, que permaneceu em silêncio até então, limpou a garganta:

— E… e a polícia? O que eu devo…

— Nada, pai. — Bella cortou. — Você precisa se proteger. Talvez você devesse passar um tempo na casa do Billy?

Jake assentiu, concordando.

— Sim, ele e Primmy podem ficar conosco durante os próximos dias. Pelo menos até a poeira baixar e tudo isso se resolver.

Rose, enquanto isso, não conseguia tirar os olhos de Alice.

A vampira parecia incomodada, como se estivesse tendo espasmos oculares — suas pálpebras tremiam freneticamente num ritmo sobrenatural, como se ela estivesse assistindo a flashes de imagens e luzes sob a pele fina. Algo estava errado. Muito errado.

— Tem mais coisas, não é, Alice? — Rose perguntou.

A sala ficou em silêncio. Por um instante, ela quase podia ouvir o tique-taque do relógio. Até Paul ficou estranhamente imóvel ao seu lado.

Alice encarou Rose, estranhamente lúcida.

— É muito parecido com você. — Ela sussurrou, aérea. — Sempre que eu foco neles… um flash de luz aparece e eles desaparecem.

— Eles quem? — Rose perguntou, os dedos se contraindo involuntariamente no tecido do sofá. Seu peito apertou, uma sensação de reconhecimento, pois ela sabia o que Alice diria em seguida.

— Não parecem vampiros — murmurou, confusa. — Eu consigo apenas milissegundos de visão. Eles usam túnicas e seguram gravetos.

O sangue sumiu do rosto de Rose, o gosto do medo pesou em sua língua.

— Você sabe quem são, não é, Rose? — Alice perguntou, sua voz ecoando estranhamente na sala silenciosa.

Rose sentiu o mundo desacelerar quando seus olhos encontraram os de Paul. Ela viu o exato momento em que a compreensão também o atingiu, ambos cientes do que aquilo significava para ela.

— Sim, eu sei.

Os bruxos estavam vindo para Forks.

Chapter 46: QUARENTA E SEIS

Chapter Text

O clima descontraído do aniversário de Bella foi trocado por um silêncio tenso no meio de uma clareira na madrugada daquele mesmo dia, nos arredores de Forks. A visão de Alice havia cortado a celebração, deixando todos em alerta máximo. Tio Charlie partiu para a casa do tio Billy ainda naquela noite, aceitando que, sendo um humano, seria incapaz de ajudar nesta luta. Enquanto isso, o restante dos Cullen e lobos decidiram se encontrar durante a madrugada para discutir os detalhes sobre a visão e o que fariam a seguir.

Rose era a única peça fora de lugar.

Ela só estava ali, porque a visão de Alice parecia significar algo para ela — havia esses flashes de imagens com homens vestidos de forma estranha, apontando gravetos para o ar, e borrões de cor que a impedia de ver completamente o que poderia acontecer.

Mas estava claro para todos que haveria ameaças diferentes dos vampiros, e Rose sabia o que elas eram.

Na clareira, enquanto todos se acomodavam, Paul fez questão de manter-se humano, embora ela soubesse que ele estava a um fio de se transformar, a julgar pelas suas mãos trêmulas. Mesmo assim ele ficou ao lado dela como uma sentinela, o braço firmemente preso à sua cintura, o outro ocasionalmente passando em seu pulso direito, um gesto discreto que praticamente gritava “eu estou aqui”. Mas nem mesmo o calor do corpo de Paul pressionado ao seu conseguia afastar o frio que percorria as suas veias ao pensar no que poderia significar para ela se bruxos realmente estivessem se aproximando de Forks depois de tantos anos.

Eles teriam finalmente a encontrado? Parecia improvável que, mesmo depois de anos de distância e aparente ignorância, só agora eles tivessem decidido buscar Rose.

A menos que algo tivesse mudado.

E mesmo assim, ainda restavam muitas dúvidas: Por que se aliar a um exército de vampiros? E o que Bella tinha a ver com isso, afinal? Nada disso fazia sentido. Ou será que tudo era apenas uma coincidência? Alice não conseguia ver os motivos para a chegada dos bruxos, então também era improvável que ela soubesse a relação deles com os vampiros. A única coisa que ela tinha certeza era sobre a chegada do exército de vampiros e o objetivo deles.

Então, talvez os bruxos não fossem inimigos aqui? Ela queria acreditar nisso, mas parecia impossível até mesmo na sua cabeça.

Ela fechou os olhos por um instante, enquanto os outros se acomodavam na clareira, tentando afastar todos os pensamentos errados, incluindo a memória da sua última noite no mundo bruxo, que continuava a surgir na sua mente sem permissão. A memória, depois de 14 anos, parecia esmaecida pelo tempo, mas Rose ainda lembrava do medo ao ter o nome sorteado no Torneio Tribruxo, o pavor em saber que teria que participar de uma competição mortal antes mesmo da maioridade, depois vieram os olhos julgadores, os dedos apontados, a dor em seu peito e então, a fuga do castelo.

Mesmo assim, em nenhum momento, alguém a procurou em anos.

Então, por que agora?

Paul pressionou os dedos contra seu pulso, como se conseguisse sentir a aceleração do seu coração. Ele não precisava perguntar para saber que ela estava se despedaçando por dentro, revirando cada pedaço do passado em busca de uma resposta. Se os bruxos estavam vindo, não era por acaso. Alguém deveria saber que ela estava em Forks. Alguém a tinha denunciado.

Ou pior — alguém precisava dela para algo.

Ela engoliu em seco, a garganta apertada. Se fosse verdade, se eles realmente estivessem a caminho para fazer mal a ela, então não haveria tempo para correr. Não havia mais lugares para se esconder. A única coisa que restava era enfrentá-los — e, diferente das últimas vezes, Rose não tinha a sua magia para ajudá-la, uma varinha para lançar um feitiço ou mesmo as próprias mãos para queimar a carne de seus rostos.

Ela só tinha coragem — e teria que usar isso.

Sam, finalmente, deu um passo à frente, o corpo imponente mesmo em sua forma humana, optando por se manter assim e evitar depender de Edward para fazer a tradução da conversa. Sua voz ecoou firme pela clareira:

— Estamos todos aqui. — Seus olhos percorreram o grupo, parando brevemente em Rose com um olhar confuso antes de continuar. — Sobre o que exatamente precisamos falar?

O Dr. Cullen avançou, elegante como sempre, embora seu rosto estivesse mais sério do que Rose jamais vira.

— Hoje cedo, Alice teve uma visão. — Ele indicou a pequena vampira imóvel no canto. — Ela viu um exército de vampiros se aproximando de Forks.

O efeito foi imediato. Os lobos rosnaram em uníssono, suas patas inquietas batendo contra a terra. Paul, instintivamente, apertou ainda mais o braço em torno de Rose.

— Quem são esses vampiros? — Sam interrompeu, sua voz firme cortando o coro de rosnados.

— Recém-criados. — Respondeu o Dr. Cullen, a voz grave. — Vampiros jovens, transformados há poucos meses e sem controle sobre a sua sede.

Sam cruzou os braços, os músculos tensionados.

— E por que esses vampiros viriam para Forks? Quem os criou?

O Dr. Cullen olhou para Edward, cedendo a palavra com um gesto sutil. Edward avançou um passo e começou a explicar:

— Há alguns anos, tivemos um problemas com nômades nestas terras, vocês sabem disso. Um deles atacou Bella. Foi uma caçada… pessoal para ele.

— E vocês lidaram com ele. — Sam concluiu, a voz tensa.

— Sim. — A voz de Edward endureceu. — Eu o matei. E Jasper lidou com Laurent, o outro vampiro do grupo, quando ele tentou intervir. Mas Victoria, a terceira integrante, conseguiu escapar.

— Ela é a criadora, então?

Edward assentiu. Seu olhar desviou por um instante para Bella, que permanecia parada alguns metros atrás com ombros rígidos.

— Acreditamos que sim.

Sam observou Edward atentamente, calculando.

— E por que agora? Por que ela esperou tanto?

— Vingança. — Ele suspirou, a palavra amarga em sua boca. — Ela quer matar Bella.

— Por quê?

— Olho por olho. — Respondeu, cada palavra carregada de tensão. — Eu matei o companheiro dela. Agora ela quer matar a minha companheira.

Sam finalmente assentiu, seu rosto quase esculpido com linhas duras de preocupação.

— Quando?

Foi Alice quem respondeu, dando alguns passos à frente para ser notada pelo grupo.

— No dia 31 de outubro.

Rose sentiu as palavras de Alice como um soco no estômago. Quão irônico seria que tudo isso acontecesse logo nesse dia? Logo no Halloween. No dia em que Voldemort matou os seus pais. E também no dia em que seu nome saíra do Cálice de Fogo e ela fugira, deixando tudo para trás.

Quão cruel poderia ser o destino?

— Tudo bem. Temos pouco mais de seis semanas para nos prepararmos. — Disse Sam, com firmeza.

— Nós agradecemos o seu apoio, Sam. — O Dr. Cullen deu um leve aceno.

Mas Sam o cortou com um olhar duro.

— Não estamos fazendo isso por nenhum de vocês, Cullen. Que isso fique bem claro. E escutem com atenção: se algum humano for ferido, a responsabilidade será de vocês. O acordo será quebrado. E vocês terão que deixar Forks imediatamente.

— O quê? — Bella se adiantou, a voz trêmula de indignação. — Não, Sam, vocês não podem…

O Dr. Cullen levantou a mão, interrompendo Bella.

— Nós entendemos, Sam. E faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar que alguém se machuque.

Sam assentiu, os olhos ainda estreitos de desconfiança.

— Ótimo. Se era só isso…

— Na verdade — disse o Dr. Cullen —, há mais uma coisa.

Quando Alice começou a explicar sobre a segunda parte de sua visão, Rose sentiu seu estômago se revirar. Como se ela estivesse caindo de um penhasco em câmera lenta.

E então, todos os olhos voltaram para ela, aguardando que ela explicasse o porquê Alice estava tendo uma visão que se assemelhava às visões sobre Rose, ou como ela sabia sobre esses novos seres.

— Está tudo bem, amor. — Paul sussurrou em seu ouvido, apertando sua mão gentilmente. — Eu estou aqui.

Rose assentiu, com um esforço. Respirou fundo, buscando coragem em cada célula do corpo.

— Tudo bem. Eu… eu preciso contar tudo desde o começo ou nada disso vai fazer sentido. — Sua voz era firme, mas tensa. — Eu cresci em Surrey, na Inglaterra, com os parentes da minha mãe. Quando eu era criança, me disseram que meus pais haviam morrido em um acidente de carro, quando eu ainda era um bebê. Eu nunca desconfiei que isso pudesse ser mentira. Embora meus parentes não gostassem muito de mim, eu não imaginava que poderiam ser cruéis a ponto de mentir sobre algo assim.

Ela fez uma pausa, controlando a respiração e organizando os pensamentos.

— Quando fiz 11 anos, recebi uma carta. Era de uma escola chamada Hogwarts. Dizia que eu tinha sido aceita, e que eles esperavam minha resposta. O que me chocou, no entanto, não foi a carta em si… mas o que ela afirmava. Dizia que Hogwarts era uma escola de magia. E que eu era uma bruxa.

Por um momento ninguém pareceu saber o que dizer.

— Bruxa? — Bella perguntou em voz baixa, quase reverente, enquanto encarava Rose com uma intensidade desconcertante. — Como… feitiços, magia e essas coisas? Isso existe mesmo?

Rose assentiu, com um pequeno sorriso, embora houvesse tristeza ali.

— Existe. Hogwarts é uma escola de magia e bruxaria para jovens bruxos, escondida na Escócia.

— Você não quer que a gente acredite nisso, não é? — A vampira loira, Rosalie, bufou desdenhosa.

— Existem vampiros e lobos. — Rose respondeu, sem se alterar. — Por que não poderiam existir outras criaturas?

Rose esperava resistência por parte dos lobos, talvez até escárnio, mas nenhum deles se manifestou. Eles a observavam com atenção quase inquietante, como se já soubessem de tudo aquilo. Foi então que Rose notou a figura de Leah, o lobo branco, parcialmente oculto entre os outros. E entendeu. Eles tinham captado seus pensamentos. Provavelmente, sentiram a verdade na mente dela.

Sam encarava Rose por um longo momento, um brilho de compreensão em seus olhos.

— E como é que nunca ouvimos falar de vocês? Por que nunca apareceram ou nunca cruzaram o nosso caminho?

Foi o Dr. Cullen respondeu, surpreendendo a todos com a sua voz serena e firme.

— Porque eles têm seus próprios sistemas, suas próprias leis e, principalmente… porque se escondem do resto da população.

Ele olhou para Rose, seus olhos carregando uma lembrança distante, e ignorou os olhares incrédulos dos outros vampiros.

— Eu conheci bruxos antes. Poucos, é verdade. E foi há muito tempo. Achei que eles eram os únicos.

Rose assentiu, confirmando.

— Nós ficamos invisíveis por necessidade. Durante o século 15, as caças às bruxas na Europa quase dizimaram nossa população. No século 17, foi criado o Estatuto Internacional do Sigilo, uma lei global que obriga todos os bruxos a esconderem sua existência do mundo não-mágico. Desde então, vivemos em segredo.

Sam estreitou os olhos.

— E por que isso nos importa agora? Qual a relação entre essa história e o que Alice viu?

Rose assentiu levemente, como se já esperasse a pergunta.

— É por isso que eu preciso continuar. Sem entender o que aconteceu antes… nada do que está por vir fará sentido. — Ela respirou fundo. — Quando cheguei em Hogwarts, eu descobri que meus tios mentiram. Meus pais não morreram em um acidente de carro. Na verdade, foram assassinados. Antes de eu nascer, o mundo bruxo estava em guerra. Um homem chamado Lord Voldemort queria poder absoluto. Purificar o mundo mágico, exterminando todos aqueles que ele considerava impuros ou indignos… inclusive os nascidos de família não mágica, como minha mãe.

Ela parou por um instante. Todos estavam silenciosos, e até Rosalie parecia menos escarnecedora, apenas desconfiada. Bella, por outro lado, parecia atenta, quase hipnotizada.

— Meus pais lutaram na guerra, então Voldemort os matou. E por isso… ele também veio atrás de mim. Quando eu era apenas um bebê, ele tentou me matar, mas a maldição ricocheteou e voltou contra ele. Ele desapareceu, deixando apenas esta cicatriz na minha testa. Ninguém entendeu exatamente o porquê, mas todos acreditaram que eu o tinha derrotado. Eles me chamavam de “Garota que Sobreviveu”, e eu era famosa no mundo mágico.

Paul a observava com atenção, sua expressão carregada de orgulho e preocupação. Ele a aconchegou ainda mais em seu peito quente.

— Você ficou famosa por virar órfã? — Esme perguntou com delicadeza, embora sua testa estivesse franzida.

Rose assentiu lentamente.

— Sim. Não só por isso, mas… foi assim que tudo começou. No meu primeiro ano em Hogwarts, eu descobri que Voldemort não estava morto, e estava tentando voltar. Mas ele estava fraco demais para ter um corpo próprio… então passou a possuir um professor. Era grotesco. Ele se escondia na nuca dele, como um parasita, vivendo das sobras da vida dos outros e se alimentando do sangue de unicórnios para sobreviver. No final daquele ano, ele tentou me matar novamente. E, de novo, não conseguiu.

Rose encarou as próprias mãos, como se ainda pudesse sentir a sensação do momento em que tudo aconteceu.

— Quando toquei a pele dele… ele se desfez. Virou cinzas bem na minha frente. O diretor da escola explicou que minha mãe, antes de morrer, lançou uma magia muito antiga. Um sacrifício. Uma vida por outra vida. Ela se ofereceu no meu lugar… e isso deixou uma proteção em mim. Uma magia que fazia com que ele não pudesse me tocar.

— Amor. — Foi a voz serena do Dr. Cullen que preencheu o silêncio.

— Sim. Foi isso que ele disse. Amor.

— E ele continuou tentando? — Perguntou Jasper.

— Sempre. — Rose confirmou. — No segundo ano, foi diferente. Ele ainda não tinha corpo… mas havia deixado para trás uma parte de si. Uma espécie de lembrança viva de quem ele foi aos dezesseis anos. Essa memória… estava presa dentro de um diário. O diário caiu nas mãos da irmã do meu melhor amigo. Ela era apenas uma criança. Começou a escrever nele sem saber o que era… e ele começou a responder. A manipular. Aos poucos, ele tomou controle da mente dela. Fazia com que ela fizesse coisas absurdas. Ele usou o corpo dela para abrir a Câmera Secreta, um lugar no subsolo da escola que abrigava um monstro, e atacar os alunos.

— Que tipo de monstro? — Sam perguntou.

— Uma cobra gigante que matava as pessoas com um olhar. Um basilisco. — Rose engoliu em seco, a voz trêmula. — Por sorte, ninguém o encarou diretamente. Todas as vítimas o viram através de alguma superfície, como um espelho, uma poça d’água ou as lentes de uma câmera. Isso as poupou da morte, mas acabaram petrificadas. Foi um milagre que ninguém tenha morrido. No final do ano, ele a levou para a Câmara Secreta. A irmã do meu melhor amigo. Ela estava fraca, à beira da morte, drenada por ele. Eu consegui chegar a tempo. Lutei contra o basilisco e destruí o diário com uma presa nele. Ela sobreviveu, mas Voldemort desapareceu de novo.

— Você era só uma criança — disse Esme, num sussurro.

— Sim. Mas eu nunca tive tempo para ser outra coisa. — Rose respondeu, com um meio sorriso triste. Ela respirou fundo antes de continuar. — No meu terceiro ano, um homem chamado Sirius Black fugiu de Azkaban… a prisão dos bruxos. Diziam que ele era responsável pela morte dos meus pais. Que ele os traiu, contou a localização da nossa casa ao Voldemort… e que por isso eles morreram. Que ele era o melhor amigo do meu pai, mas voltou contra eles. E que depois de 12 anos preso, ele havia escapado. Todo mundo achava que ele vinha atrás de mim, para terminar o que começou. A escola ficou cercada por dementadores… são criaturas que se alimentam da sua felicidade e te fazem reviver os piores momentos da sua vida. E eles… me afetam mais do que qualquer um. Eu desmaiava toda vez que chegavam perto, porque eu ouvia o momento em que minha mãe foi assassinada. De novo. E de novo.

Esme levou a mão à boca, horrorizada. Se ela pudesse chorar, provavelmente estaria em lágrimas naquele momento.

— No final do ano, eu acabei descobrindo que Sirius era inocente. Ele nunca traiu meus pais. Foi outro amigo deles. Sirius tinha escapado da prisão para me proteger. Ele disse que era meu padrinho. Mas ele teve que fugir, senão seria jogado na prisão de novo. Então, nos falamos apenas por algumas cartas.

Alguns vampiros pareciam comovidos, e até Sam desviou o olhar, desconfortável. Bella, por sua vez, parecia absorver cada palavra com intensidade crescente, como se estivesse montando um quebra-cabeça invisível.

— Bem, no quarto ano, Hogwarts sediou uma competição chamada Torneio Tribruxo. — Rose continuou, sua voz ganhando uma nota tensa. — Três alunos, cada um de uma escola diferente, seriam sorteados para uma competição… mortal. Era uma tradição bastante antiga, que tinha sido criada para promover laços entre as escolas de magia da Europa. Mas como era um torneio perigoso, só alunos maiores de idade podiam participar. Eu tinha apenas catorze anos e mesmo assim… meu nome apareceu no sorteio

— Mas como? — Jasper perguntou, suavemente. — Você disse que era apenas para maiores de idade.

— Foi isso que todos quiseram saber. — Rose assentiu. — Ninguém sabia como aquilo tinha acontecido. Ninguém me protegeu. Eles queriam me obrigar a competir, achavam que eu tinha colocado o meu nome de propósito, para chamar atenção. Eu não queria morrer. Então, eu fugi.

Paul segurou a mão dela com mais força, mas permaneceu em silêncio.

— Quando eu fugi, o contrato que me ligava à competição foi rompido à força. Como punição… eu perdi a minha magia. — A voz de Rose vacilou, e por um momento ela hesitou. — Eu me tornei o que o mundo bruxo chama de aborto. Um bruxo sem magia.

Algumas pessoas ofegaram baixinho.

— Meus tios me receberam de volta, mas estavam convencidos de que os bruxos poderiam vir atrás de mim… para me silenciar, talvez.

— Então, eles te mandaram para Forks. — Sam concluiu.

Rose assentiu.

— Sim. Eu moro com o tio Charlie desde então.

Bella deu passo ligeiramente para frente, os olhos fixos em Rose.

— E ele…ele sabe sobre isso?

— Sim, eu contei para ele.

— E você não tem mais… nenhuma magia? Nada para se proteger?

— Não. — Rose balançou a cabeça lentamente. — Eu perdi tudo.

O silêncio se alongou por alguns segundos depois que Rose encerrou a sua história. Ninguém sabia o que dizer, cada um perdido em seus próprios pensamentos — ponderando, talvez, sobre o que significava tudo aquilo. Ou planejando sobre quais seriam os próximos passos a serem tomados.

Finalmente, foi Sam quem quebrou o silêncio:

— Você acha então… que algum desses bruxos pode estar vindo atrás de você?

— Eu não sei. — Rose respondeu, honestamente. — Mas eu acho que seria ingênuo achar que não. Talvez sejam seguidores de Voldemort. Ou talvez sejam bruxos que me conhecem. Mas se há uma ligação entre o exército de vampiros e o meu passado, então acho que todos aqui precisam estar preparados.

Paul pousou uma mão reconfortante nas costas de Rose, em apoio silencioso.

— Existe alguma maneira de nos protegermos dos bruxos? — ele perguntou.

— Sem magia, não. — Ela respondeu, quase envergonhada. — Bruxos podem lançar feitiços à distância, sem nem tocar em você. Podem desaparecer e reaparecer onde quiserem. Podem apagar memórias. Transformar coisas. E… podem matar com uma única palavra.

Sam arregalou ligeiramente os olhos, um tremor percorrendo sua espinha.

— Então estamos vulneráveis? Todos nós?

— Não totalmente. — O Dr. Cullen interveio. — Talvez não possamos enfrentá-los da maneira deles, mas não estamos indefesos. Já lidamos com coisas que pareciam impossíveis antes.

— Além disso — Alice disse, se aproximando de Rose —, minha visão não foi clara. Eu vi apenas flashes de imagens, mas em nenhuma delas havia feitiços sendo lançados ou batalhas com eles. Pode ser que tenhamos tempo. Podemos nos preparar.

— Eu posso tentar ajudar. — Rose disse, mesmo sem muita esperança. — Anos atrás, encontrei uma rua bruxa escondida em Seattle. Lá, comprei alguns itens... relógios que detectam magia negra, e pedras de proteção que criam uma barreira contra invasores em uma casa. Não são perfeitos, mas funcionam. Posso entregar alguns para vocês. Não vão impedir um ataque, mas vão avisar quando for hora de correr. E talvez... manter suas famílias seguras.

Ela olhou diretamente para Sam, sabendo que ele temia por Emily. Ele a olhou de volta, seus olhos brilhando com algo entre gratidão e medo.

No final das contas, Rose esperava desconfiança, medo, talvez até raiva. Mas, para sua surpresa, ninguém se voltou contra ela.

Todos acreditaram na sua história e, em vez de uma briga, começaram a trabalhar em um plano para o dia 31 de outubro e combinar horários e datas para treinos em grupo. Alice também descreveu o lugar onde os vampiros que ela vira em sua visão iriam se reunir antes do ataque — uma clareira aberta no meio da floresta — e onde eles poderiam emboscá-los.

Ficou decidido que Rose e o tio Charlie ficariam temporariamente em La Push, sob proteção de alguns lobos, enquanto o restante do grupo iria para a batalha quando o dia chegasse. Aquilo pareceu acalmar a tensão no olhar de Paul, que parecia cansado e preocupado ao pensá-la em perigo.

Por fim, Rose prometeu que no dia seguinte iria até Seattle buscar pedras, relógios e outros objetos encantados que pudessem, mesmo que minimamente, aumentar as chances de vitória do grupo.

Rose foi embora ao lado de Paul, quando os primeiros raios de sol já começavam a iluminar o horizonte. Ele agarrou sua mãe, e juntos caminharam pela trilha de volta à sua casa, envoltos pela névoa e o vento gelado da madrugada.

A cada passo, Rose sentia uma inquietação crescendo em seu peito — uma certeza de que aquele momento seria um divisor de águas, ou talvez um ponto final. Como se os anos de boa sorte que ela tivera até agora, finalmente tivessem esgotado. Talvez fosse esse o fim.

Quando eles se deitaram juntos na cama, prontos para dormir depois de uma noite exaustiva no meio da floresta, Paul a abraçou por trás, prendendo os braços ao redor do seu corpo como se estivesse com medo de que Rose pudesse desaparecer no ar, então sussurrou em seu ouvido:

— Vai ficar tudo bem.

Rose não tinha tanta certeza disso.

Chapter 47: QUARENTA E SETE

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Forks, WA

30 de outubro de 2008

Rose encarou a caixa de música na sua cômoda por longos minutos em silêncio. Sua mente estava cheia e o seu coração em conflito.

Algo estava errado naquele dia.

Era uma sensação incômoda, pulsando e rastejando sob a sua pele, como uma eletricidade fraca demais para queimar, mas presente o bastante para incomodar. Um peso parado no fundo do estômago. Um nó escondido entre os ossos. Unhas invisíveis arranhando entre as suas costelas.

Ela havia dito a Paul que precisava buscar roupas em casa. Ele havia franzido a testa, preocupado, mas não questionou. Estava ocupado demais com os outros lobos, preparando-se para o dia seguinte — o dia que Alice previu. O dia em que o exército de recém-criados de Victoria finalmente chegaria.

No meio da ansiedade, ele deixou que apenas Bella a acompanhasse.

Rose achava que talvez elas estivessem começando a se tornar boas colegas. Ou pelo menos estavam caminhando nessa direção. Talvez dando os primeiros passos ainda. Mas pelo menos havia alguma compreensão silenciosa entre as duas agora, seja por causa do aniversário, da surpreendente nova maturidade de Bella ou da chegada do exército.

Então, enquanto Rose estava em casa, Bella esperava lá fora. Sentada dentro do carro, distraída com alguma mensagem no celular.

Rose estava sozinha.

A casa parecia diferente. Fria, como se tivesse sido esvaziada de vida há meses, e não apenas seis semanas desde que tio Charlie e Rose estavam na casa dos Black. O cheiro de pizza, do sabão em pó e do café impregnado nos armários ainda estava ali, mas parecia mais fraco. Como se o tempo tivesse sido esticado dentro das paredes, ou como se a casa inteira estivesse prendendo a respiração, aguardando o próximo movimento.

Ela pegou uma mochila em seu quarto e começou a colocar roupas dentro, uma por uma, de forma mecânica. Seus olhos vagavam inconscientemente. De vez em quando, ela encarava a caixa de música na cômoda. Era aquela de madeira, com lírios e prímulas entalhados nas bordas e o seu nome no topo. A mesma que Paul lhe dera em um dos natais passados, e que agora causava uma estranha sensação de saudade, nostalgia e angústia.

Rose estendeu a mão, hesitante, e deslizou os dedos sobre os entalhes florais. A madeira estava fria. Um pouco empoeirada. A música, se fosse tocada, soaria errada. Um pouco desafinada e fora de tempo, visto que ela costumava abri-la quase todos os dias, depois que Paul a presenteou, apenas para ouvir a melodia e suspirar apaixonadamente.

Eram lembranças felizes, então por que ela estava se sentindo assim?

Ela afastou a mão.

Na rua, um carro passou devagar, e o som distante distante dos pneus sobre o asfalto molhado quebrou o silêncio opressor da casa. Mas foi só por um segundo. Depois, tudo voltou a se calar.

E então, ela ouviu.

Era um som no quintal, um arrastar de passos. Como pés descalços pisando sobre folhas secas. Naturalmente, Rose pensou que fosse Bella, e embora a tivesse visto trancada no carro há poucos minutos, talvez ela estivesse fazendo uma ronda ao redor da casa. Fazia sentido, todos estavam em alerta máximo nos últimos dias afinal.

O som veio de novo, e Rose prendeu a respiração.

Por um instante, considerou a possibilidade de ser um intruso em seu quintal, mas descartou a ideia. Era provável que ela estivesse ansiosa por causa do dia seguinte, da luta iminente, dos vampiros recém-criados, do medo de perder Paul.

Com um suspiro, Rose saiu do quarto, desceu as escadas em silêncio e atravessou a casa em direção ao quintal. Se Bella estava fazendo rondas, talvez estivesse igualmente preocupada, ou talvez quisesse conversar. Rose podia lhe fazer companhia. Pegou um casaco e desceu as escadas silenciosamente, deixando a mochila pronta no sofá da sala.

Rose hesitou por um momento, a mão no trinco da porta dos fundos. Algo a fez parar — um pequeno alarme em seu cérebro que continuava insistindo que algo estava errado. Mas ela ignorou.

O ar frio da noite a atingiu quando abriu a porta.

Mas não havia nada.

— Bella? — chamou baixinho.

Nenhuma resposta.

O quintal estava vazio, mergulhado na penumbra do entardecer. A cerca ao fundo projetava sombras tortas sobre o gramado. O vento balançava levemente os galhos de um pinheiro e fazia algumas folhas caídas dançarem pelo chão. Tudo parecia quieto.

Rose deveria dar meia volta e retornar ao seu quarto.

Em vez disso, ela cometeu um erro.

Deu um passo para fora, ultrapassando a soleira da porta. O ar frio mordeu sua pele exposta, deslizando por debaixo da blusa. Seus pés tocaram a grama molhada, e ela respirou fundo, acalmando o coração agitado, enquanto tentava confirmar a presença de alguém.

Por um momento, ela se sentiu ridícula. Parada ali, sozinha no escuro, fora das proteções que Paul que os outros haviam alertado que ela não o fizesse. Fora da cúpula invisível criada pelas pedras enfeitiçadas.

Ela tinha saído da proteção.

Voluntariamente.

E então, bastou apenas um segundo.

Rose piscou.

No segundo seguinte, um par de olhos vermelhos a encarava há poucos metros de distância.

Ela congelou.

Não houve som. Nenhum passo. Nenhum barulho. Apenas ele surgindo do nada, parado junto à árvore torta no canto do quintal, como se sempre tivesse estado ali. Alto, imóvel, olhos cintilando no escuro como brasas vivas.

Rose sentiu o sangue esvair do rosto.

Ela conhecia aquele rosto.

O choque foi tão violento que chegou a ser físico. Como se o seu estômago tivesse despencado até os pés. Ela deu um passo para trás assustada. Por um momento, tudo ficou suspenso no ar: o vento, os sons, até o próprio tempo. A árvore torta no canto do quintal continuava ali, o pinheiro continuava o mesmo, o vento ainda balançava as folhas do chão, mas nada parecia mais real.

Riley Biers.

Ela piscou as pálpebras repetidamente, como se os seus olhos estivessem pregando uma peça em sua mente. Como se, ao piscar novamente, ele fosse desaparecer.

Mas ele continuava ali. Imóvel no escuro, com olhos vermelhos brilhantes no lugar do belo par de olhos azuis que ela costumava encarar. O mesmo rosto que ela havia beijado tempos atrás num campus universitário úmido e sem graça. O mesmo sorriso torto que, uma vez, brilhava em sua direção. Agora, esse mesmo sorriso era um corte feio e cruel em um rosto pálido e perfeito de um vampiro.

O peito dela se apertou.

— Riley? — A voz saiu num sussurro quebrado. Rose deu outro passo para trás inconscientemente.

Ele não respondeu, em vez disso seu sorriso se alargou ainda mais.

— Você… — ela tentou de novo, com a garganta seca e os dedos tremendo. — O que aconteceu com você?

Ele deu um leve passo à frente. Rose deu mais um para trás. Os olhos vermelhos estavam cravados nela com uma intensidade perturbadora.

— Eu senti sua falta — disse ele, por fim, e a sua voz era doce, suave e atraente. — Você ficou ainda mais bonita, Rose. Nunca pensei que isso fosse possível.

Ela engoliu em seco, sem saber o que dizer. O tom dele era errado, como se as palavras de outra pessoa estivessem saindo da boca de Riley.

— Quando…? — ela balbuciou, dando mais outro passo para trás. — Quando isso aconteceu? Quem fez isso com você?

O sorriso dele se ampliou ainda mais, como se ela tivesse feito uma pergunta particularmente encantadora.

— Você sempre fez perguntas demais — ele deu de ombros com uma risadinha, como se aquilo fosse algum tipo de piada interna entre eles.

Rose não riu. Em vez disso, deu mais um passo para trás, sentindo os calcanhares vacilarem sob seu corpo. Ela forçou a respiração a não falhar.

— Riley… o que você está fazendo aqui? Você precisa de ajuda?

— Eu sonhei com você, sabia? Todas as noites. Achei que tinha te perdido pra sempre. Eu estava satisfeito com isso até. — Seus olhos escureceram brevemente. — Mas aquele era o Riley humano. Então eu virei imortal… e agora eu te encontrei. E eu nunca mais vou deixar você ir.

Ela deu mais um passo para trás e sentiu os calcanhares encontrarem os degraus da porta dos fundos. Onde estava Bella? O pensamento cortou sua mente como um raio. Bella deveria estar lá fora, de guarda. Se Riley estava aqui, se ele conseguiu passar…

Rose sentiu o coração bater forte contra as costelas, mas manteve a voz firme.

— Riley… — Ela engoliu em seco, os dedos se fechando em punhos. — O que você está fazendo aqui?

— Você já sabe a resposta, minha querida. — Ele abriu um sorriso e deu um passo à frente. — Eu estou aqui por você.

Rose manteve a expressão neutra, enquanto a sua mente trabalhava freneticamente em busca de uma saída. Ela precisava ganhar tempo.

— Por mim? — Ela forçou um sorriso tenso. — Eu não sabia que eu era tão importante assim.

— Sempre foi. — Seus olhos vermelhos brilharam com algo perigosamente próximo da devoção, e havia uma estranha poesia em sua voz. — Quando se vira imortal, a perspectiva sobre as coisas é tão diferente. Você não entende ainda, mas a mortalidade é como um véu sobre os olhos. Tudo o que eu sentia por você antes… era apenas uma sombra do que eu sinto agora.

— O que você quer dizer?

— Lembranças humanas são como… fotografias desbotadas. Eu ainda vejo os nossos momentos, mas é tudo um pouco cinzento. Eu acho que é normal. Quando se vira uma criatura, o instinto é mais forte do que a moralidade patética e fraca dos humanos. — Ele mostrou os dentes em um rosnado baixo. — Antes eu te amava com medo, medo de perder você, de não ser o suficiente. Mas agora é diferente. Quando eu te transformar, você vai entender.

Rose sentiu um calafrio percorrer sua espinha ao ouvir aquelas palavras.

— Transformar? — Ela manteve a voz estável por alguma graça divina, embora suas pernas estivessem tremendo.

— Ah, sim. O Riley que você conheceu te amava o suficiente para deixar você ir. Ele só queria te ver feliz… mesmo que não fosse com ele. — A voz ficou mais melancólica.

Rose sentiu um nó se formar na garganta. Era verdade. Ela se lembrava daquele último dia na universidade, depois da formatura, quando eles se beijaram pela última vez e ele a deixou ir mesmo contra a própria vontade, enquanto ela se sentia apenas aliviada com o término.

Ela nunca pensou que isso voltaria para morder a sua bunda. Se ela tivesse aceitado ir para Oregon com ele, mesmo ainda amando Paul, será que as coisas teriam sido diferentes?

— Só que agora eu vejo como tudo poderia ser perfeito. — Ele continuou, alheio aos pensamentos de Rose. — Imagine, Rose. Nós dois, juntos para sempre. Sem medo de envelhecer, de adoecer, de morrer.

Ele abriu um sorriso cheio de fervor, enquanto continuava as suas divagações:

— Você não entende, claro que não entende. A mente humana é fraca. Mas você vai entender. Eu posso te dar a eternidade, Rose. — Os olhos dele brilhavam em obsessão. — E vai ser diferente. Porque agora… agora eu tenho amigos poderosos. São pessoas… pessoas mágicas que podem fazer coisas que você nem imagina.

Rose sentiu-se cambalear. Bruxos. Ele estava trabalhando com bruxos.

— Amigos? — Ela levantou uma sobrancelha, fingindo desinteresse. — Isso é bastante notável, Riley.

Ele sorriu, orgulhoso como um garoto exibindo um troféu.

— Eu fiz um acordo, sabe? Uma troca justa. — Os dedos dele se contorceram no ar, como se já pudesse sentir Rose entre eles. — Ela fica com a vampira morena… e eu fico com você.

— E esses… amigos… — Ela escolheu as palavras com cuidado. — Eles vão te ajudar a me transformar também, é isso?

— Você não precisa ter medo. — A voz dele era suave e amorosa. — Eles são fortes. Eles podem fazer isso sem dor. Você vai ficar ainda mais perfeita, Rose.

Rose sentiu sua pressão baixar. Ela precisava saber mais.

— Esses amigos… — Ela hesitou. — Eles estão aqui? Em Forks?

Riley riu, mas não respondeu.

— Você faz tantas perguntas, minha querida. — Os olhos vermelhos brilharam de divertimento. — Mas não se preocupe, querida. Logo, logo, você vai entender tudo.

Ele deu um passo para frente, as mãos prontas para agarrá-las.

E então uma luz dourada explodiu no ar quando Riley colidiu com a barreira de proteção ao redor da casa. Seu corpo foi lançado para trás como se tivesse levado um soco no peito, e ele rosnou, os olhos ardendo de fúria.

Que merda é essa?! — Ele se moveu em um borrão, suas mãos começaram a esmurrar a barreira invisível novamente, e faíscas de energia repeliam seu toque.

Rose não esperou para saber até quando aquela barreira poderia aguentar. Ela girou nos calcanhares e correu para dentro da casa, o coração batendo tão forte que doía. A porta dos fundos bateu atrás dela com um estrondo, e ela rapidamente girou a chave, trancando-a, embora soubesse que isso era inútil.

Do lado de fora, Riley rugiu:

ROSE! — Sua voz era uma trovão, cheia de raiva e traição. — Você não pode se esconder de mim!

Ela não respondeu. Em vez disso, encostou as costas na porta, respirando fundo enquanto ouvia os golpes furiosos dele contra a barreira. Ela lembrou-se de Bella com um sobressalto e correu até a janela da sala, os dedos tremendo ao afastar a cortina.

O carro ainda estava lá, estacionado na entrada… mas vazio.

Nenhum sinal de Bella.

O estômago dela embrulhou.

Rose correu até o telefone, as mãos trêmulas discando o número de Paul. 

Um toque. Dois. Três. Nada.

— Por favor, atende… — ela murmurou, tentando novamente.

Nada.

Tio Charlie. Tio Billy. Bella. Ninguém atendia.

Lá fora, Riley rosnava como um animal enjaulado.

De repente, o som de madeira rachando ecoou pela casa. Rose girou em direção à janela da cozinha e viu, horrorizada, Riley arrancando uma árvore do solo com as mãos nuas, raízes e terra voando como se fossem feitas de papel.

Ele ergueu o tronco como se não pesasse nada, e arremessou contra a barreira invisível.

Desta vez, em vez de bloquear, a proteção não impediu que a árvore fosse lançada contra a casa. A porta da cozinha estilhaçou-se em pedaços, madeira voando para todos os lados. Um dos pedaços voou em direção à Rose, rasgando a manga da sua camisa e deixando um arranhão na sua pele que começou a arder. Ela mal sentiu.

Riley deu um passo adiante, testando os limites. Quando suas botas tocaram novamente a barreira, o lampejo de energia surgiu mais uma vez — embora tivesse vacilado, como uma lâmpada prestes a queimar.

Ele não conseguiu passar.

Ainda não.

— Rose! — Seu nome na boca dele soava como uma profanação. — Se você me deixar passar agora, eu ainda posso perdoá-la, querida.

As mãos dele continuavam a bater na barreira. Mas a cada segundo, os contornos da magia pareciam oscilar.

Rose sabia então que tinha minutos, talvez segundos.

Quando um pensamento cruzou sua mente, ela não parou para analisar. Simplesmente correu escada acima, caiu de joelhos ao lado da cama e puxou uma mala debaixo dela com tanta força que as dobradiças gemeram.

Lá estava.

Dobrada cuidadosamente no fundo, quase esquecida depois de todos esses anos. Sua capa de invisibilidade.

As mãos de Rose tremiam enquanto ela desdobrava o tecido prateado e jogava a capa sobre os ombros.

No exato momento em que ela desapareceu, a barreira caiu.

O coração de Rose batia forte. Cada pulso ecoando em seus ouvidos como um tambor de guerra, ameaçando entregar sua posição. Ela não conseguia lembrar se a capa era capaz de anular os sons, mas esperava que sim. Caso contrário, não importava muito que ela estivesse invisível.

Rose moveu-se lentamente pelo quarto, encostando-se na parede ao lado da porta e tentando se juntar às sombras e ficar o mais imóvel possível.

A casa estava em silêncio, exceto pelo rangido ocasional das tábuas do assoalho sob os passos dele.

— Rose… — A voz de Riley subiu das escadas, um sussurro doce e venenoso. — Você não pode se esconder de mim, querida. Eu sempre te encontro.

Ela não respondeu. Não respirou.

Os degraus gemeram sob seu peso. Ele estava subindo devagar, como um caçador saboreando a perseguição.

Ele estava mais próximo agora.

Rose apertou os punhos sob a capa, os dedos enterrando-se nas próprias palmas.

— Eu sei que você está com medo, minha querida. — Ele murmurou, quase compassivo. — Eu entendo. Mas não precisa ser assim. Eu posso fazer isso ser bom para você.

Ele chegou ao corredor, e Rose quase podia sentir ele lá. Farejando o ar. Escutando. Procurando por qualquer sinal, qualquer movimento que a denunciasse.

E então, ela ouviu mais passos.

Lentos. Passando pelo quarto do tio Charlie. Pelo banheiro. Pelo quarto de Bella.

Aproximando-se do seu quarto.

Rose fechou os olhos por um breve segundo, concentrando-se em não tremer.

A maçaneta girou, e a porta se abriu com um rangido.

Riley parou na entrada, seus olhos vermelhos varrendo o quarto vazio.

— Eu sei que você está aqui, querida — ele sussurrou, entrando.

Ele passou pela cama, os dedos arrastando-se sobre o edredom desfeito, seus olhos observando atentamente a mala aberta no chão. Passou pelo armário, abrindo as portas com um golpe.

Rose aproveitou o momento em que ele se distraia com as roupas em seu armário para tentar fugir. Um pé atrás do outro, arrastando-se silenciosamente para fora do quarto.

Riley virou-se de repente, como se sentisse o ar se mover em sua direção.

— Você está aqui… — Ele respirou fundo, os olhos fechando por um segundo enquanto saboreava seu cheiro no ar. — Posso sentir você, querida.

Rose parou, os dedos se agarrando à parede. Ela continuou recuando, quase alcançando o corredor.

— Não fuja de mim, Rose.

Ela ignorou as falas desconexas. Em vez disso, continuou se movendo, centímetro por centímetro, até que finalmente seus pés tocaram o primeiro degrau da escada. Rose soltou um suspiro trêmulo.

Riley ainda estava no quarto, a cabeça inclinada como um cachorro ouvindo um assobio distante.

— Onde você está indo, querida? — Ele riu, baixinho. — Não há para onde correr.

Rose não se deixou intimidar. Ela começou a descer cada degrau lentamente, evitando os pontos traiçoeiros que podiam ranger sob seu peso.

— Você é tão esperta, não é? — A voz dele ainda vinha do quarto.

Rose prendeu a respiração. Mais três degraus.

— Eu sempre gostei disso em você. — A voz dele estava mais perto agora, provavelmente na porta do quarto.

Ela acelerou o passo, ainda silenciosa, mas o medo a fazia tremer. Quando seus pés finalmente tocaram o chão do andar de baixo, ela quase correu em direção à porta da frente.

A maçaneta estava fria sob seus dedos. Ela a girou devagar, tentando abafar qualquer ruído, mas mesmo assim a fechadura emitiu clique suave que provavelmente, aos ouvidos humanos, seria ignorado, mas para a audição sensível de um vampiro…

— Rose? — A voz de Riley cortou o ar como uma lâmina.

Ela não olhou para trás. Empurrou a porta com força e sentiu imediatamente a noite úmida envolver seu rosto quando ela finalmente pisou no gramado da frente, seu coração batendo desesperadamente. Seus olhos vasculharam a escuridão, procurando por ajuda — e então ela a viu.

— Bella! — Rose arrancou a capa de invisibilidade, revelando-se de repente, sua voz num misto de alívio e desespero. — Onde você estava? Ele fez algo com você? Por favor, nós precisamos sair daqui, Bella.

Bella estava parada em frente ao carro, imóvel, seus olhos escuros fixos em Rose. Mas não havia surpresa em seu rosto.

— Por que ele não te levou ainda?

Rose sentiu o sangue gelar em suas veias.

— O quê? — Ela recuou um passo, o alívio se transformando em horror. — Você… você está envolvida nisso?

Bella não respondeu. Apenas olhou para além de Rose, em direção à casa.

Antes que Rose pudesse gritar com Bella, como ela gostaria, uma mão tapou sua boca enquanto os braços de Riley a prenderam. Ela não conseguia fazer mais nada além de encarar Bella fixamente, chocada e confusa.

— Não foi muito gentil da sua parte fugir, querida. — A voz dele era um sussurro doce em seu ouvido, tão próximo que Rose sentiu o ar gelado contra sua nuca.

Sua tentativa de gritar foi abafada pela mão dele, mas Rose tentou resistir. Ela fez tudo o que podia: rolar, chutar e se empurrar para tornar a tarefa dele o mais difícil possível.

Mas como um humano poderia ser páreo para um vampiro com força sobre humana? O que Rose poderia fazer, além de ver a própria Bella entregá-la de bom grado?

Era assustador e Rose estava surtando, mas ela também se sentia triste e completamente traída. Ela podia sentir o nojo e o ódio subindo pela sua garganta, e sabia que, mesmo sem o dom de ler pensamentos, Bella sabia exatamente o que ela estava pensando.

— Eu sinto muito, Rose. — Ela sussurrou baixinho. — Você era a moeda de troca para eu ter meu Edward de volta.

Rose não entendeu nada do que ela quis dizer, mas não importava. Nenhuma justificativa era suficiente.

Riley riu, divertido, como se ela fosse um bichinho de estimação fofo.

— É por isso que eu gosto de você. — Ele apertou-a contra seu peito, quase afetuosamente. — Tanto fogo em seus olhos. Eu quase vou sentir falta desse belo tom de verde. Mas, você sabe… é tudo para o bem maior.

Bella olhou para os dois, e por um segundo, Rose achou que viu algo estranho em sua expressão — uma sombra de dúvida? Arrependimento? Mas então ela virou o rosto, como se não suportasse mais encará-la.

— Vamos logo com isso. — Bella murmurou, dirigindo a Riley. — Estamos correndo muitos riscos ficando aqui.

Rose sentiu as garras do pânico arranharem sua garganta. O que eles estavam planejando fazer com ela?

Mas antes que pudesse perguntar, um pano foi pressionado contra seus lábios — ardendo em seu nariz, queimando, sufocando —, mas Rose tentou aguentar, tentou manter os olhos abertos. Ela arqueou as costas, os dedos se contorcendo em garras, tentando rasgar qualquer pedaço de Riley que alcançasse.

Mas o pano apertou mais forte, Riley cobriu o nariz e a boca dela, quase sufocando-a, e os movimentos de Rose começaram a ficar lentos, descoordenados.

O pano tinha um forte cheiro de produtos químicos, e a sua cabeça começou a latejar e a sua visão ficar turva, porque os produtos químicos e a falta de ar combinados têm um efeito conjunto. Seu corpo não a obedecia. Suas pálpebras pesavam como se ela tivesse feito um plantão de horas seguidas, e mesmo quando ela forçou-as a permanecer abertas, tudo o que via eram formas borradas.

— Shhh, querida… — A voz dele chegou até ela como um eco distante, enquanto seus braços envolviam seu corpo. — Só relaxa.

Rose sentiu-se erguida no ar. Sua cabeça tombou para trás, mas algo firme e duro a segurou. Ela tentou resistir mais uma vez, mas seus dedos, já moles e sem força, escorregaram contra o tecido da camisa dele, tentando em vão agarrar-se.

E então, sua mente foi engolida por uma névoa.

Notes:

Ainda tenho muita dificuldade em escrever ação, mas achei muito divertido e espero que tenha agradado. ❤️

Foi bastante complexo tentar pensar em como a personalidade de Riley muda de humano para vampiro. Mas ainda é cânone. Não sabemos a personalidade dele de antes, é claro, mas ele ainda era um humano que Victoria transformou e o manipulou para a causa dela. Aqui não é muito diferente, exceto que ela transformou o afeto que ele tinha por Rose em obsessão. E sabemos que um vampiro fica facilmente obcecado pelas coisas.

De qualquer forma, eu estava ansiosa para chegar nestes momentos finais, e estou muito feliz com os comentários.

Chapter 48: QUARENTA E OITO

Chapter Text

Algo estava errado.

Ele soube disso instintivamente. Era como um zumbido baixo e persistente, vibrando no fundo da sua cabeça, como um mosquito preso em um copo, batendo atrás do vidro tentando sair. Ele passou a mão pelos cabelos, arrancando alguns fios como se pudesse fisgar o incômodo. Ainda assim, a sensação não foi embora.

Paul nunca foi o tipo de cara que entra em pânico facilmente. Ele já encarou muita coisa e sempre manteve a cabeça no lugar. Mas isso era diferente, porque naquele momento, tudo nele gritava.

— Ei cara, tá tudo bem? — a voz de Jared soou distante, como se estivesse debaixo d’água.

Paul não respondeu. Seus dedos se contraíram levemente, as unhas cravando-se nas palmas das mãos sem que ele percebesse. O mundo ao seu redor parecia estranhamente abafado, como um dia nublado e quente ao mesmo tempo.

Jared disse algo de novo, mas as palavras se perderam no zumbido que crescia nos ouvidos de Paul, um som de estática apitando em seus sentidos. Seu coração disparou, martelando contra as costelas ansiosamente.

Que merda era essa? O que estava acontecendo com ele?

Paul sentiu um frio percorrer a sua espinha, como um dedo gelado acariciando suas vértebras. A pele do seu pescoço formigou com arrepios que desciam pelos seus braços.

Jared finalmente tocou seu ombro, e o contato fez Paul pular como se tivesse levado um choque.

— Caralho, Paul, você tá branco que nem papel — a voz de Jared finalmente atravessou o nevoeiro em sua mente.

Paul piscou, como se estivesse retornando a sua mente de um lugar distante. Encarou Jared por um segundo, e virou o rosto na direção da estrada.

Então, seus músculos se moveram antes que a sua mente pudesse processar o pensamento. Em um instante ele estava parado ao lado de Jared, os olhos arregalados de susto, no outro estava correndo. Pés batendo contra o chão com força, o ar entrando nos pulmões com lufadas curtas e ardentes.

Paul! Porra, espera! — Jared gritou atrás dele, mas a voz se perdeu entre as árvores.

Ele não olhou para trás.

Paul não se deu conta do motivo da urgência, mas sabia que precisava. Então, ele correu. O som da terra estalando sob seus passos se confundia com a pulsação ensurdecedora em seus ouvidos. Os galhos arranharam seus braços, folhas molhadas chicotearam seu rosto, mas ele só pensava em correr, correr, correr.

Uma pequena parte no fundo da sua mente se perguntava porque ele não escolheu se transformar para ir mais rápido, mas foi ignorada. Naquele momento, a urgência era maior do que a lógica.

Ele só parou quando a casa de Billy Black surgiu diante dele. Charlie estava no alpendre, conversando com Billy em voz baixa.

Paul subiu os degraus num salto só, ofegante, o peito em chamas.

— A Prim já voltou?

Charlie ergueu os olhos, surpreso.

— Ainda não. — Charlie respondeu, erguendo-se da cadeira lentamente. — Ela… foi buscar umas roupas. Disse que a Bella estava com ela.

Paul engoliu em seco, a garganta queimando, os pensamentos emaranhados. Ele sabia disso. Então, por que estava em pânico?

— Ela ligou?

Charlie buscou o celular guardado no bolso do casaco, pendurado ao lado da porta dentro da casa.

— Parece que perdi algumas chamadas dela, mas ela já deve estar voltando. — Ele murmurou, os dedos deslizando com uma calma que fazia Paul querer gritar. — Está tudo bem?

Porra — ele sussurrou, as palavras saindo desesperadas.

Paul não respondeu as perguntas ao seu redor, virou-se novamente e correu em direção à sua casa, ignorando toda a matilha que gritava ao ver seu estado alarmado.

Ao chegar em casa, arrancou o celular da mesa da cozinha com as mãos trêmulas. Seu coração despencou ao ver as várias chamadas perdidas de Prim.

Ele tentou ligar de volta, os dedos quase falhando ao tocar a tela. Mas não houve nenhuma resposta. Paul apertou o aparelho contra o ouvido com força, como se pudesse forçar uma resposta.

A porta escancarou com um estrondo, e Sam entrou às pressas, a testa franzida em preocupação.

— O que está acontecendo?

Paul nem olhou pra ele. Sua respiração vinha em arfadas, o peito subindo e descendo como se ele tivesse corrido milhares de quilômetros sem parar.

— É a Prim. Ela não está atendendo. Eu… eu estou tentando, mas ela não atende.

— Onde ela está agora?

— Ela foi em casa… buscar roupas…. — Paul mal conseguia formar frases completas. Ele passava a mão pelos cabelos, andava de um lado para o outro como um animal enjaulado.

— Ela estava sozinha?

— Com a Bella. Mas… — ele engoliu em seco, o olhar perdido — mas eu sinto que tem alguma coisa errada, Sam.

— Quando elas saíram?

— Foi antes de irmos para a floresta, para o treino.

— Isso já faz horas…

Porra! Eu sei, porra! — Paul explodiu, a voz rasgando o ar, os punhos cerrados tentando conter o corpo trêmulo.

Sam ergueu as mãos em sinal de rendição, tentando acalmá-lo.

— Tudo bem, calma, Paul. Nós vamos encontrá-la. Vamos tentar falar com os Cullen e ver se a Bella já voltou, certo? Talvez a Rose esteja com eles.

Mas Paul já estava balançando a cabeça antes mesmo de Sam terminar a frase. O olhar dele era selvagem, atormentado, porque ele sabia que Prim não estava com os Cullen.

Enquanto Sam puxava o celular do bolso e começava a ligar para os sanguessugas, a voz calma tentando esconder a tensão, Paul não esperou.

— Paul! Onde você vai?

Ele ignorou o chamado de Sam, enquanto voltava para a floresta.

Desta vez, ele não perdeu nenhum segundo. Seu corpo se dobrou para frente, os tendões esticando-se até o limite, os ossos se realinhando com estalidos secos que ecoaram entre as árvores. A camiseta rasgou-se em pedaços quando seus ombros se alargaram, a pele se transformando em uma camada de pelo cinza por toda a extensão de seu corpo em transformação.

PAUL! — Sam gritou, mas Paul já estava disparando como um raio em direção à Forks. Seus músculos impulsionavam cada passada, fazendo com que árvores e arbustos se tornassem apenas manchas borradas em seu caminho. O vento uivava em seus ouvidos pontiagudos, seu coração saltava na garganta, os galhos arranhavam seu flanco.

E, no entanto, Paul só conseguia focar em um único objetivo:

Prim. Prim. Prim.

Pelo canto do olho, uma mancha marrom surgiu entre as árvores, ganhando forma rapidamente. Jake.

“O que diabos está acontecendo, Paul?” A voz de Jake ecoou em sua mente, áspera e preocupada.

Paul sequer conseguia formular uma frase coerente, então a sua mente apenas conjurou as imagens dos últimos minutos, como um filme antigo coberto sob uma camada espessa de ansiedade e desespero. As imagens estavam impregnadas de um terror visceral, distorcidas pela adrenalina, como se vistas através de um vidro embaçado.

Jake recuou mentalmente por um instante, levemente atordoado pelo peso das emoções que vazam de Paul.

“Porra, Paul” Foi Embry quem falou, sua voz ecoando pela sua ligação como se eles estivessem lado a lado, embora Paul soubesse que ele estava há quilômetros de distância, correndo para tentar alcançá-los, ao lado de Quil, Seth e Leah.

Paul sentiu a mente dele se fragmentar sob o peso das vozes da matilha, uma sobrepondo a outra, enquanto a conexão entre eles quase parecia vibrar com a energia de cinco lobos em pânico, suas frases colidindo dentro do seu crânio:

“O que está acontecendo?”

“Você consegue senti-la? É isso?”

“Onde a Rose está?”

“Bella não estava com ela?”

“Como você sabe que aconteceu alguma coisa com a Primmy?”

“Cadê o Sam?”

“Paul?”

“Paul, responde!”

Paul ignorou tudo isso.

Ele mal conseguia organizar os pensamentos em respostas coerentes quando tudo dentro dele era apenas instinto selvagem. Os pensamentos se atropelavam, esbarrando uns nos outros, se dissolvendo entre as incertezas, tornando-se nada mais do que apenas um medo escuro e viscoso, escorrendo por dentro dos seus ossos.

A sua lógica estava afogada por esse medo que era físico agora; tinha gosto metálico na boca, um nó enroscado na garganta, e apertava seu peito como se uma mão tivesse sido enfiada entre as suas costelas e esmagado seu coração entre os dedos.

Eles — a matilha — continuavam dentro da sua cabeça, as vozes zunindo, falando o tempo todo, perguntando o tempo todo.

E Paul continuava correndo, correndo, correndo como se fosse capaz de arrancar aquela sensação maldita de dentro do peito, aquela certeza silenciosa, sufocante, de que — porra tudo tinha dado muito errado.

A raiva agora queimava sob a sua pele à medida que ele se aproximava da casa de Rose, mais forte que o medo. Um combustível muito mais potente, que o fazia ir mais rápido, que ignorava o peso da respiração ardendo nos seus pulmões.

Ele queria gritar, mandá-los calar a porra da boca, deixá-lo pensar. Mas era quase impossível fazer isso quando sua mente estava sendo espremida pelas vozes dos outros, pelo terror absoluto.

Cala a boca. Cala a boca. Cala a boca.

Meu Deus, cala a boca.

Paul se sentia no limite, rugindo mentalmente, rosnando, os dentes à mostra, os músculos tensos, o coração subindo numa cadência frenética.

Que porra estava acontecendo?

Ele empurrou as patas contra o chão com ainda mais força, avançando ainda mais rápido, impulsionando seus músculos com fúria pela mata escura e fechada.

Tudo estava errado, errado pra caralho.

Ele sentia, porra.

Quando a casa surgiu, finalmente, entre as árvores, Paul se lançou para frente e se transformou com um estalar de ossos e pele, o corpo ainda em movimento quando atingiu o chão como humano.

Estava pelado, coberto de lama e folhas mas que se fodesse. Ele correu até lá assim mesmo. Quem se importa?

Ele alcançou a porta da frente, mas nem precisou arrombar.

Estava escancarada.

Paul entrou num impulso, e tudo nele se retesou. A sala ainda estava intocada, mas a cozinha era um caos absoluto. Ele atravessou a sala com passos frenéticos e se deparou com uma cena de terror.

A porta dos fundos havia sido completamente estilhaçada, esmagada. E, para o completo desespero de Paul, parecia que alguém tinha jogado uma árvore inteira contra ela.

Um tronco grosso, rachado no meio, projetava-se pelo vão da porta e atravessava parte da cozinha até se chocar contra a parede do quintal. Raízes haviam escorrido para dentro do cômodo, como serpentes vivas, rasgando o piso, derrubando armários, quebrando pratos, e se espalhando por debaixo da geladeira tombada.

Cacos de vidro e pedaços de madeira espalhavam-se pelo chão. A mesa da cozinha estava jogada de lado. Uma das cadeiras tinha uma das pernas partida ao meio. E o telefone da parede pendia solto, o fio balançando levemente no ar — tinha sido tirado do gancho às pressas, talvez durante o ataque.

Quantas vezes ela tentou ligar para ele?

Paul sentia seu peito subir e descer de maneira descompassada. Os olhos giravam rápido, absorvendo tudo, gravando cada centímetro do estrago, tentando encontrar pistas.

Ele ouviu os passos entrando na casa, depois vozes humanas ecoando na sala.

— Que merda… — Jake entrou primeiro, ofegante. Suas palavras morreram ao ver o estado da casa.

Atrás dele, Embry, Quil e Seth pararam no limiar da cozinha. Nenhum deles conseguiu se mover por um momento.

— Cara… — murmurou Quil, encarando o tronco atravessado no meio da casa. — Isso é… uma árvore?

— Alguém jogou uma árvore dentro de casa? — Embry engoliu em seco — Quem caralhos tem força pra isso?

Seth se aproximou, os olhos arregalados ao notar as raízes espalhadas pelo chão, que pareciam vivas de tão entranhadas na casa.

— Toma. Veste isso, cara — Jake jogou um calção para Paul, que ainda parecia atônito, encarando a destruição e tentando visualizar Prim ali, sozinha, em perigo.

Paul pegou a roupa e se vestiu quase no automático, os movimentos duros, desconectados do corpo.

Jake se aproximou, hesitante, enquanto sussurrava baixinho:

— Ela foi levada, não foi?

Paul assentiu com a cabeça, devagar, sem desviar o olhar, e parecendo incerto. O que ele deveria dizer quando não havia outra alternativa? O que ele deveria fazer quando ele é que deveria ser o protetor aqui?

— Tinha um vampiro aqui. — A voz de Leah soou firme enquanto ela descia as escadas. Paul nem tinha notado que ela tinha subido. Estava tão preso na sua própria cabeça que tudo ao redor parecia abafado.

Jake franziu a testa, cheirando o ar como se quisesse confirmar.

— Não é o cheiro da Bella? — perguntou, confuso.

Leah balançou a cabeça, o olhar estreito.

— Não. O rastro da Bella tá lá fora, bem longe. Tipo… perto da calçada.

— O que isso significa? — Embry sussurrou, mas não terminou o pensamento. A conclusão era óbvia.

Alguém entrou, Prim estava sozinha, e agora ela não estava mais ali.

— Então… a Bella nem chegou a entrar? — Quil lançou no ar, virando para olhar a sala de novo, como se a resposta estivesse escondida entre as almofadas intactas do sofá.

— Ela viu alguma coisa? — Seth perguntou. — Tipo… viu o que ia acontecer e fugiu?

— Ou alguém a impediu de entrar. — Quil sugeriu, cruzando os braços.

— Mas como? Ela também é uma vampira, cara. — Embry rebateu, hesitante. — Seria preciso alguém muito mais rápido… ou…

— Ou ela conhecia quem estava aqui. — Leah respondeu, secamente.

— Nada disso faz sentido — murmurou Seth, tenso.

As teorias pareciam se atropelar, desconexas. Nenhum deles conseguia concluir nada. Cada voz levantando uma possibilidade, enquanto o outro voltava com mais uma dúvida.

Paul só conseguia pensar na sua Primrose. Será que ela estava com medo? Será que ela gritou? Será que ela correu? Será que ela ainda estava…?

Não, ele não ia pensar nisso. Paul tentou bloquear os sons ao redor, como se pudesse desligar o mundo com um simples esforço da mente, mas então ouviu os sons lá fora que o fizeram reagir em um impulso.

Ele disparou porta afora, cortando a sala com passos largos. Os outros o seguiram, correndo atrás dele com a mesma urgência que o consumia.

Sam e Jared apareceram com o líder dos Cullen, Carlisle, todos com expressões tensas.

— Sam! — Paul gritou assim que o viu, sem parar de andar até encará-lo de frente. — Você tem alguma notícia?

Sam sacudiu a cabeça, o rosto sombrio.

— Os Cullen não sabem de nada. Viemos direto pra cá depois que conversei com o Dr. Cullen.

Paul sentiu os músculos do rosto se contraírem, um tremor de frustração percorrendo o seu corpo inteiro.

— Ninguém sabe o que aconteceu — Jared falou atrás de Sam, a voz baixa.

Foi então que Carlisle se aproximou, a postura calma de sempre.

— Bella não voltou para casa — disse ele, direto. — Alice não consegue mais vê-la em suas visões. Edward está procurando agora pela floresta.

Paul sentiu o chão ceder sob seus pés. Se até os vampiros, que tinham dons, estavam no escuro… O que diabos tinha acontecido com Prim?

Ele ficou do lado de fora, os pés enraizados na grama úmida desejando que a terra se abrisse e o engolisse inteiro, enquanto Sam, Jared e Carlisle entravam na casa — ele ouvia suas vozes, um murmúrio distante, mas não conseguia entrar. Não suportaria ver tudo de novo.

Paul só conseguia pensar no quanto ele era inútil, patético, ridículo. Como ele tinha sido tão arrogante a ponto de achar que merecia Prim? Que era digno dela? O imprinting era suposto ser uma benção, mas agora não passava de uma piada.

Ele deveria ter sentido antes.

Merda, ele deveria ser capaz de simplesmente saber.

Na teoria, os lobos cheiravam o perigo a quilômetros de distância. Sentiam tudo. Ouviam um coração acelerado através das paredes. Sabiam quando uma tempestade chegaria antes mesmo das nuvens se formarem.

Mas ele não sentiu isso.

Não sentiu ela.

Primrose estava em perigo, e ele estava lá, treinando com a matilha, como um idiota despreocupado. Como se nada pudesse alcançá-los. Como se o mundo não fosse capaz de arrancá-la dele. Ele estava tão confiante.

Será que ela gritou por ele? Será que, no último instante, ela esperou que ele aparecesse como um herói de conto de fadas?

Mas ele não apareceu.

Ela nunca iria perdoá-lo. Ele não conseguia se perdoar por isso.

Um tremor percorreu seu corpo, uma raiva profunda de si mesmo, do mundo, do imprinting que lhe dera a única coisa boa em sua vida só pra provar que ele não era forte o suficiente para mantê-la.

Antes que Paul pudesse afundar ainda mais em seu tormento, um movimento rápido na borda da floresta chamou sua atenção. Edward Cullen surgiu entre as árvores, seus olhos dourados queimando com urgência.

— Encontrei algo. — Edward anunciou, sua voz carregada de tensão. — É um rastro fraco, seguindo para o oeste. Não é dos nossos, nem de qualquer vampiro que conheço.

Paul não esperou por explicação. Correu na direção indicada, sem se importar se em algum momento antes já desconfiou ou não dos Cullen. Ele só queria encontrá-la. Dizer que sentia muito. Que falhou. Que nunca devia ter deixado ela sozinha. Que passaria o resto da sua vida de joelhos, pedindo perdão pelo erro terrível de tê-la abandonado.

E mesmo que ela o odiasse, mesmo que nunca mais o olhasse da mesma forma — Paul ainda a manteria segura, ainda faria qualquer coisa, qualquer coisa, para compensar.

Se levasse uma vida inteira para isso, então que fosse. Ele daria cada dia, cada batida do seu coração, cada respiração, apenas para ter mais uma chance.

Paul estava correndo de novo. Sempre correndo.

Se transformou em lobo, e seguiu para o oeste com o faro atento, o rastro fraco do vampiro queimando em suas narinas.

Mas não era suficiente.

Não era suficiente.

Estava fraco, e ele estava desesperado.

E foi ali, entre o som das folhas quebrando sob suas patas e do vento cortando seus ouvidos, que Paul começou a lamentar.

Uma oração sufocada subindo pela sua garganta.

Era algo que ele não fazia desde criança.

Desde o dia em que o caixão da sua mãe desceu à terra e ele segurou o choro com força até sangrar por dentro.

Desde o dia em que o seu pai começou a beber, depois sumiu e nunca mais voltou.

Desde o dia em que aprendeu que ninguém viria salvá-lo. Que o mundo não cuidava dos órfãos. Que ninguém se importava com meninos como ele.

Ele nunca mais acreditou.

Nem em Deus.

Nem em promessas.

Nem em bondade.

Mas agora ele não tinha mais nada. O que ele poderia fazer?

 

Se você estiver aí, se for real, de verdade… me escuta. Por favor.

Eu sei que não mereço. Eu sei. Eu sou um merda, eu sempre fui. Eu grito com todo mundo, eu machuco as pessoas, eu afasto quem tenta se aproximar. Eu nunca pedi nada antes, porque achei que não adiantava.

Mas ela não merece isso.

Ela é boa. Tão boa.

Tudo de bom que existe. Ela me viu quando eu nem conseguia me ver. Ela ficou. Mesmo quando eu tentei empurrar. Ela me perdoou mesmo quando eu fui cruel.

E agora ela se foi. E eu nem sei se ela gritou. Se ela chorou. Se ela chamou por mim. E eu não estava lá.

 

Um som gutural saiu da garganta do lobo — um choro esganiçado, um lamento animalesco e desesperado.

 

Por favor. Me ajuda.

Me dá só mais uma chance. Só uma. Me deixa encontrar ela. Me deixa pedir desculpa. Me deixa fazer diferente. Eu dou tudo. Você pode levar tudo. Só me deixa tentar.

 

A floresta era nada mais do que um borrão de escuridão e sombras. E o cheiro já frágil se dissolvia, desaparecendo aos poucos, como se o destino estivesse zombando da cara dele.

 

Se você é justo, se é misericordioso, ou qualquer uma dessas coisas que as pessoas dizem… então, por favor, me escuta.

Porque eu não tenho mais ninguém. Não tenho mais nada. Eu só tenho ela.

E eu nem sei mais como rezar. Eu não sei nem se estou fazendo isso certo. Eu só estou falando com o nada, esperando que o nada me responda.

Mas se você estiver por aí… por favor.

Não tira ela de mim.

 

E então, como se esperasse o fim da oração…

… o rastro sumiu.

E então, vencido, o lobo ergueu o focinho para o céu e lançou um uivo longo, desesperado, e partido.

Chapter 49: QUARENTA E NOVE

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Havia uma voz familiar por perto que continuava falando de forma rápida e irônica, e foi a primeira coisa que Rose ouviu ao recuperar os sentidos. A névoa se dissipou gradualmente, embora tudo o que ela realmente quisesse fosse um pouco mais de descanso. Normalmente, a dor poderia ser ignorada, mas, por mais que tentasse, ela não conseguia afastá-la. Era aguda, insistente e pulsava na lateral esquerda do crânio, fazendo a sua cabeça pesar como se houvesse chumbo sob a pele.

Somente alguns segundos depois que Rose acordou, é que ela finalmente se lembrou do que aconteceu. Seu coração deu um salto brusco no peito, e ela abriu os olhos esperando encontrar o teto do seu quarto, a segurança dos lençóis, e o alívio depois de um pesadelo.

Mas não havia teto.

Em vez disso, ela estava olhando para um céu escuro e aberto, com uma rara noite sem nuvens. A lua cheia era ofuscante, pendurada como um olho pálido e cego observando-a. A claridade prateada escorria pelos galhos das árvores ao redor.

Só então Rose percebeu as árvores. Muitas. Altas, imóveis, dispostas ao seu redor e lançando sombras disformes no chão de terra. Ela estava deitada no meio de uma clareira, o chão frio e duro sob as suas costas. Tentou se mover, mas só conseguiu se sentar desajeitadamente, percebendo então que estava dentro de um círculo desenhado na terra. Seus braços e pernas estavam presos por cordas apertadas, ásperas, cortando sua pele a cada tentativa inútil de fuga.

E então, Rose olhou ao seu redor. Havia figuras encapuzadas, formando um círculo silencioso em volta dela, envoltas em mantos negros e usando máscaras brancas — lisas, sem feições, apenas buracos vazios onde os olhos deveriam estar.

Rose engasgou aterrorizada, e o ar entrou em golpes curtos e inúteis, como se seus pulmões tivessem esquecido como respirar. Seus dedos se contorceram freneticamente contra as amarras, a pele esfolando-se em lascas úmidas. O pavor subia pela sua garganta, misturando-se ao gosto amargo da bile, quase sufocando-a.

O que estava acontecendo?

Onde ela estava?

— Bem, a nossa convidada de honra, finalmente acordou. — A voz suave ecoou pela clareira antes que ela pudesse vê-lo. — Primrose Potter… A Garota que Sobreviveu…

Seu coração parou. Depois disparou, violento, como se tentasse escapar da sua caixa torácica.

Os capuzes negros se dividiram como um mar de sombras, e ele emergiu. Primeiro, apenas uma silhueta alta e elegante. E então, Rose piscou, confusa. Porque o homem que caminhava em sua direção era… bonito, com seus cabelos negros perfeitamente penteados, traços simétricos e pele pálida e lisa. Algo naquele rosto, no entanto, era estranhamente familiar.

— Quantos anos… — Sua voz era clara e macia, com uma dicção perfeita. — Dezesseis anos… Dezesseis anos desde que nos encontramos pela última vez. Quanto tempo eu esperei. Planejei. E agora, finalmente… estamos aqui. Apenas você e eu.

Ele parou diante dela, olhando-a de cima, a cabeça levemente inclinada. Um sorriso cruel se abriu em seu rosto bonito.

— Você sabia, é claro, que isso sempre terminaria assim, não é, Primrose? — Ele começou a andar lentamente ao redor de Rose, seus olhos percorrendo a clareira o tempo todo, como se apreciasse cada segundo da atenção que recebia. — Não importa o quanto você corresse… Quantas mãos estendidas tentassem protegê-la… Quantos anos fingisse ser… uma sangue ruim.

Ele parou abruptamente atrás dela, agachando-se até que seu hálito gelado roçasse na nuca de Rose:

— Nada poderia mudar o seu destino. Porque você pertence a mim, Primrose. Desde aquela noite em que eu a marquei. Você sabia disso quando nos encontramos na Travessa Encantada em Seattle, não é?

Quando apareceu em seu campo de visão novamente, ele a encarava com olhos brilhantes. E então, Rose parou de respirar.

Marvolo Gaunt.

Ela lembrava dele. O homem elegante que a encontrou sentada nas escadas de Gringotes há alguns anos, com um sorriso cortês e maneiras impecáveis. Foi ele que ofereceu o braço como se fosse um cavalheiro dos livros de época da Bella, foi ele que sorriu gentilmente para ela, foi ele que a escoltou até a livraria do outro lado da travessa.

Foi ele…

E ele era…

Não!

Não, não, não.

— Ah, perdoe-me — disse de repente, interrompendo a própria encenação. Sua voz suavizou-se, quase cortês. — Que grosseria a minha. Todo esse tempo, e eu nem sequer me apresentei de verdade.

Então, como se fosse feito de cera, a sua pele começou a derreter, seus traços se distorcendo. A pele tornou-se mais branca do que osso, esticando-se sobre o crânio. Os olhos alargaram-se, inchando até se tornarem vermelho-sangue, com pupilas verticais como as de uma cobra. O nariz achatou-se, colapsando em duas fendas sinistras que tremeluziam a cada respiração.

Rose engoliu em seco, seu corpo tentando recuar, mas as cordas a mantinham presa como uma mosca em uma teia.

O monstro ergueu uma mão esquelética — dedos longos e pálidos como pernas de uma aranha — e acariciou seu próprio rosto em um gesto quase lascivo. Sua boca se curvou em um sorriso sem lábios, e ele finalmente encarou Rose.

— Talvez você me conheça melhor… como Lorde Voldemort.

Rose sentiu um grito subindo em sua garganta quando percebeu que ele nunca havia sido apenas um encontro casual. Ele era real. Ele estava de volta. E ele esteve ali o tempo todo.

Então… ela realmente esteve segura todo esses anos?

— Vocês todos conhecem essa garota… Primrose Potter. — Voldemort caminhou lentamente entre os homens encapuzados com uma solenidade arrogante. Aqueles eram Comensais da Morte, ela percebeu de repente. — Aquela que o mundo sempre acreditou ser a minha perdição. Como se eu, o grande Lorde Voldemort, pudesse ser derrotado por uma mera criança. O mundo inteiro foi alimentado por apenas uma mentira conveniente… uma história tola sobre um bebê capaz de derrotar o mais poderoso bruxo de todos os tempos. Ah, que narrativa comovente. Uma pequena criança, enrolada em cobertores, destruindo o Lorde das Trevas com amor. Amor!

Voldemort cuspiu as palavras com veneno. Ele parou, o olhar cravado em Rose, como se ela fosse apenas uma formiga sob seus pés.

— Um grande engano, eu lhes digo, meus fiéis. Mas a verdade é que naquela noite de outubro de 1981, em Godric’s Hollow, não foi a força dessa menina que me deteve… Eu sequer fui derrotado, fui apenas distraído dos meus caminhos… Eu perdi sim os meus poderes tentando matá-la, mas sua mãe, aquela sangue ruim com a sua estupidez sentimental, achou que poderia se colocar entre mim e o meu objetivo. Morreu tentando protegê-la. E sem saber, lançou sobre a filha uma proteção… tão antiga que eu, em minha breve confusão, havia esquecido dessa possibilidade. Foi uma magia de proteção baseada em um sacrifício impulsivo. Ela morreu… e com isso, blindou a filha com uma camada de magia que me impediu de tocá-la naquela noite… Em vez disso, minha maldição foi refratada e voltou-se contra mim. Ah! Dor que ultrapassa dor. Fui arrancado do meu corpo, desencarnado, reduzido a nada menos do que um fantasma… e ainda assim, eu sobrevivi.

Voldemort soltou um riso sibilante e prolongado, que fez alguns Comensais da Morte estremecerem, inquietos em suas posições, mas não ousaram desviar o olhar.

— Porque eu sou mais do que carne e osso. Eu sou aquele que ousou ir além. Aquele que foi mais longe do que qualquer outro bruxo que já existiu no caminho da imortalidade. Nem mesmo Merlin, Herpo, o Sujo, ou mesmo Salazar Slytherin foram tão capazes. Eu me despedi da fraqueza, da morte, da finitude. Fui testado, provado… Pois não morri quando deveria ter morrido… Mas naquela maldita noite, fui me tornei impotente, sem corpo, sem meios de me ajudar… Condenado a existir, segundo após segundo, em alguma floresta distante, esperando que um dos meus servos me encontrasse…

Ele parou abruptamente, seu manto negro esvoaçando ao seu redor.

— Só me restava um poder: possuir os corpos dos outros. Animais, principalmente cobras, minhas irmãs de língua… mas seus corpos frágeis não suportavam minha essência, a enorme extensão do que eu sou, por muito tempo. — Seu olhar percorreu o círculo de Comensais. — Até que… um bruxo tolo cruzou meu caminho. Um professor, crédulo e fácil de manipular. Usei seu corpo e com ele fui capaz de ter olhos. Mãos. Voz. E através dele, comecei a reconstruir o meu caminho. Planejar o meu retorno… mas fui impedido. Impedido por essa garota aqui. — Seu dedo ossudo apontou para Rose. — Pela segunda vez.

O silêncio que se seguiu foi cortante, e Voldemort baixou a voz para um sussurro perigoso.

— Anos se passaram. Minha alma, reduzida a um fiapo de existência, sobrevivia como um parasita. Minha esperança minguava… Comecei a pensar que talvez o mundo tivesse me esquecido. Que todos vocês, meus fiéis, tinham me abandonado. — A voz de Voldemort ganhou um tom cortante, e vários Comensais encolheram-se sob o peso da acusação. — Mas o bruxo mais poderoso de todos os tempos nunca será capaz de ser esquecido. Lorde Voldemort é poderoso demais para ser deixado para trás…

Ele fez uma pausa teatral, um sorriso frio curvando a sua boca sem lábios.

— Bem… até que um servo retornou a mim. Peter Pettigrew. — Ele cuspiu o nome com desdém. — O Rabicho, que fingiu sua própria morte e se escondeu por anos como o pequeno animal que ele era. Mas ele ouviu falar de mim. Ele soube que eu ainda estava lá… e rastejou de volta ao Mestre que ele havia abandonado. Ele me levou de volta à Inglaterra, ajudou-me a ganhar um corpo rudimentar… mas eu queria mais. Eu queria tudo. E para a minha verdadeira ressurreição, precisava de três coisas: osso de meu pai, carne de um servo… e sangue de meu inimigo. Mas não qualquer sangue. — Voldemort se aproximou de Rose, seus olhos brilharam em carmesim. — Eu queria o sangue de Primrose Potter. Porque então a proteção que sua mãe lhe deu correria em minhas veias também. E se corria em mim, então nada mais me impediria. Nenhum feitiço. Nenhuma magia de sacrifício. Mas então… ela fugiu de Hogwarts. Como uma covarde. Primrose Potter me frustrou novamente.

Rose sentiu o coração bater mais rápido, um martelar frenético em seu peito como se quisesse escapar da própria carne. Ela encarou o círculo de Comensais da Morte, trêmula, desejando ser capaz de gritar, correr, desaparecer. Mas não podia. Estava presa.

E Voldemort, finalmente, sorriu.

— Mas a fuga covarde da minha inimiga não seria o bastante para deter Lorde Voldemort. Eu, que sou o bruxo mais inteligente, o mais visionário, o mais temido. Não… Ninguém escapa de mim… Não ela. Não vocês. Nem mesmo a própria morte e o destino.

Ele riu alto, um som seco e sibilante, que ecoou entre as árvores e fez a pele de Rose se arrepiar de desgosto. Os Comensais da Morte estavam rígidos, incapazes de mover um dedo. Mesmo eles, tão acostumados à loucura de seu Mestre, pareciam estranhamente amedrontados.

— Eu precisava usar outro bruxo. Alguém que ainda fosse meu inimigo. Que tivesse o sangue Potter em suas veias. Mas quem? Quando eu mesmo fui o responsável por exilar os últimos da linhagem dos Potter… — Ele declarou orgulhosamente. — Mas é aqui que a minha genialidade se impõe, e onde os tolos subestimam o grande Lorde Voldemort…

Ele fez uma pausa, observando as pessoas ao seu redor, antes de falar novamente:

Dorea. Dorea Potter, nascida Black. Avó de Primrose Potter. Ela, meus caros, apesar de ser familiar da nossa querida Primrose Potter, estava morta, então era completamente inútil. Mas ela, meus caros, era uma tia distante do adorável padrinho da nossa heroína… Sirius Black. — Voldemort então abriu um sorriso vitorioso, embora parecesse mais uma careta grotesca. — Não foi difícil encontrar um substituto… alguém que partilhasse do mesmo sangue… alguém cuja herança fosse próxima o suficiente para quebrar a barreira. E seu querido padrinho foi tão… prestativo.

O mundo pareceu desabar para Rose. Ela sentiu um vazio se abrir em seu peito, bem no lugar onde havia seu coração, ao pensar em seu padrinho.

Mas agora, Sirius estava morto.

Esse pensamento a atingiu como um golpe. Quantas vezes ela poderia ter enviado uma carta? Ter tentando qualquer tipo de contato?

Tantas vezes ela pensou em fazer isso, em falar com ele, mas nunca teve coragem. Ele atravessou o inferno por mim. Fugiu de Azkaban apenas para me proteger, e eu não consegui nem escrever uma maldita carta.

O medo que a mantivera afastada agora lhe parecia patético. Medo de decepcioná-lo? Medo de ser não ser a heroína corajosa que todos esperavam que ela fosse?

Idiota.

Ele nunca quis uma heroína. Ele só queria uma afilhada.

E ela o privou até mesmo disso. E agora era tarde demais.

O arrependimento queimava como fogo em seu peito. Se ao menos tivesse deixado um bilhete de despedida. Se ao menos tivesse mandando um sinal de que ainda estava viva. Se ao menos não tivesse sido tão impulsiva. Se ao menos…

Ele morreu pensando que ela o abandonou.

— Que doce! A grande Primrose Potter… reduzida a lágrimas e lamentações. — Voldemort girou em direção aos Comensais da Morte, estendendo as mãos em um gesto teatral. — Mas o que mais podemos esperar de uma bruxa que fugiu de seu próprio destino, não é mesmo? Tão covarde quanto o próprio Rabicho.

Os Comensais da Morte explodiram em gargalhadas, um coro de vozes cruéis que pareciam facas acertando sua cabeça. Ela sentiu o rosto esquentar inconscientemente, a vergonha explícita em seu rosto.

— Você fugiu. Se escondeu. E no fim, o que ganhou com isso? Nem mesmo a sua magia lhe restou. Esta é a inimiga do grande Lorde Voldemort? Um aborto?

Rose pensou em responder, cuspir na cara daquele homem e mostrar que, embora ela não tivesse mais magia, ela ainda poderia ser corajosa. Ainda poderia se recusar a quebrar.

Poderia provar que Sirius não morreu por nada. Que seus pais não morreram por nada. Que ela não era nada.

Mas então Voldemort ergueu a varinha com um gesto quase entediado.

Crucio.

E a dor explodiu em seus nervos, seus músculos e em cada átomo do seu corpo. Seus ossos pareciam se partir de dentro para fora, suas veias em brasa, a pele queimando como fogo. Rose caiu para trás, as cordas a impedindo de colapsar completamente no chão, enquanto um grito agudo e animalesco rasgava a sua garganta.

Voldemort observava, fascinado, enquanto ela se contorcia.

— Onde está a sua coragem agora, Primrose Potter? — Ele sussurrou suavemente, enquanto se inclinava sobre seu corpo tremendo. — Onde está a garota que um dia ousou desafiar o Lorde das Trevas?

Ele encerrou a maldição com um floreio dramático, e o silêncio dos seus gritos foi preenchido pelas risadas abafadas de seus seguidores.

Voldemort ergueu a mão, silenciando-os com um gesto.

— No entanto, — ele continuou, sua voz agora solene. — Lorde Voldemort sempre foi… misericordioso. Até mesmo a minha inimiga merece uma morte digna, não acham?

Rose sentiu um frio percorrer a sua espinha, e no fundo do seu coração ela desejou que ele apenas lançasse a maldição da morte de uma vez, embora soubesse que algo muito, muito pior estava por vir.

— Você deveria se sentir honrada, Primrose. Nesta noite de lua cheia, o ritual será ainda mais forte. — Ele murmurou com uma ternura fria e cruel. — Sua morte servirá a um propósito maior. Seu sangue, sua carne e a sua dor… me ajudarão a potencializar a minha imortalidade. Eu extrairei de sua ruína o combustível da eternidade.

Rose engoliu em seco, o corpo ainda trêmulo e a mente em branco sem saber o que fazer.

Você não disse nada disso! — Gritou uma voz, desesperada. E só então ela percebeu que Riley ainda estava ali. Parado ao lado do círculo, observando tudo o tempo todo. — Eles mentiram! Eu só queria você de volta, Rose! Eu só queria consertar tudo! Eu te sequestrei para o ritual, e depois nós ficaríamos juntos! Foi esse o combinado!

Por um instante, todos ficaram parados ouvindo o discurso de Riley. Até Voldemort pareceu encantado com o drama que se desenrolava.

— Oh, vejam só… — Sussurrou Voldemort, saboreando cada sílaba. — Um tolo apaixonado tentando se redimir.

Quando Voldemort gargalhou alegremente, Riley atacou, se lançando para frente em um borrão. Cruzou a clareira em disparada, empurrando Comensais da Morte do seu caminho, derrubando um, desviando de outro. Ele parecia enlouquecido, os dentes à mostra pronto para arrancar o pescoço de Voldemort.

Mas antes que pudesse alcançá-lo, uma bruxa de cabelos cacheados e olhos loucos, ergueu a varinha no ar com uma precisão cruel.

E Riley ficou congelado no lugar. Um pé ainda suspenso do chão, a mão estendida à sua frente, a expressão congelada em seu ódio.

Sem perder tempo, a bruxa apontou novamente a varinha.

Incendio.

Riley pegou fogo imediatamente. As chamadas subiram depressa, como se o sangue dele fosse inflamável. O fogo o envolveu inteiro em segundos, lambendo a pele, consumindo carne, cabelo, ossos, tudo.

E ele não emitiu som algum.

No final, sobrou apenas pó diante dos olhos de uma Rose trêmula e completamente horrorizada. Porque se eles foram capazes de transformar Riley, um vampiro, em nada mais do que cinzas, então o que eles iriam fazer com ela?

— Fantástico, Bella. — Voldemort elogiou a bruxa, que se envaideceu com uma gargalhada maníaca. — Agora sim… vamos começar.

Notes:

Peço desculpas por ter dado a entender que Dumbledore estaria aqui. Mas, na verdade, se vocês voltarem até o capítulo 18 e o relerem, vocês terão uma boa surpresa. 👀

*

Esse capítulo foi muito difícil, porque MEU DEUS VOLDEMORT VOCÊ FALA DEMAIS. Eu peguei alguns trechos do Cálice de Fogo para usar como base aqui, incluindo a maneira como ele fala e, realmente, que prolixo.

Por isso, se você ainda tem dúvidas, não se preocupe, pois Voldemort vai falar muito mais nos próximos capítulos. 😂

*

Há um ponto importante que vale explicar também. Em um dos comentários passados, alguém mencionou como ficaria o ritual do Cálice de Fogo, se Voldemort não tem mais o ingrediente "sangue do inimigo". Então, eu trouxe um trecho do Cálice de Fogo pra vocês:

"Rabicho queria que eu usasse um bruxo qualquer, não foi, Rabicho? Um bruxo qualquer que tivesse me odiado... como tantos ainda odeiam. Mas eu sabia do que precisava, se era para me reerguer mais poderoso do que tinha sido antes da queda. Eu queria o sangue de Harry Potter."

Portanto, o sangue de Harry não era primordial, era só um detalhe que ele exigiu que tivesse, pois achava que o tornaria mais poderoso. Qualquer bruxo serviria, na verdade. Mas, bem, já sabemos que Voldemort é bem arrogante.

*

E, por fim, sim, eu coloquei a avó de Rose como Dorea, só para fazer a conexão com Sirius. Por favor, não me mate.

E não importa se a distância entre Dorea e Sirius era grande demais para o ritual, vamos apenas dizer que é ✨mágica✨.

Chapter 50: CINQUENTA

Notes:

Atenção: Há muita violência e mortes nesse capítulo, além de sangue, briga e palavrões.

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Já haviam se passado horas, e não havia sinal algum de Prim e Bella. Nesse intervalo, Paul foi capaz de percorrer por um turbilhão de emoções confusas que beiravam à completa histeria.

Agora, no entanto, só restava a fúria.

Naquele momento, ele não ligava mais para nada. Paul não se importava com regras, moral ou consequências. Que se danasse as leis, o tratado ou o mundo inteiro. Ele faria o que fosse preciso. Iria aonde fosse necessário. E esmagaria qualquer um que ousasse ficar em seu caminho. Porque ele encontraria Prim. Mesmo que tivesse que arrastar um inferno atrás de si.

Foi apenas essa fúria implacável que o manteve de pé, que o forçou a engolir o orgulho e suportar estar cercado por aqueles malditos sanguessugas. Pela primeira vez na vida, Paul permaneceu no mesmo espaço que aquelas criaturas que mais odiava sem falar nenhuma ofensa contra eles. Ele tolerou tudo. O cheiro pútrido da imortalidade, seus jeitos estranhos de se mover e os olhares demorados, apenas porque precisava ter sua Primrose de volta.

A vampira baixinha foi quem informou o horário de chegada do exército de recém-criados: entre quatro e cinco da manhã. Tempo suficiente para uma última preparação, na qual eles decidiriam quem lutaria e quem se encarregaria em procurar por algum sinal de Prim ou Bella durante a batalha.

Paul não se importava com nada disso.

Ele só queria Prim de volta. O resto era bastante irrelevante.

— Onde devemos encontrá-los? — Sam perguntou, inclinando sobre um mapa de Forks que foi jogado na mesa de centro da sala de estar dos Cullen.

O tratado entre lobos e vampiros parecia um pouco insignificante agora, reduzido a uma discussão infantil diante da ameaça que se aproximava. Um exército de predadores sem controle marchando em direção ao seu território e duas vidas desaparecidas eram mais relevantes do que o resto. Embora Paul zombasse mentalmente da ideia de considerar Bella, uma sanguessuga idiota, tão importante quanto sua Primrose. Ele ignorou completamente o olhar inflamado de Edward ao ouvir esse pensamento.

Então, eles unificaram esforços e reuniram-se na casa dos vampiros para um último alinhamento antes da batalha.

O restante da matilha — já transformados e impacientes — aguardavam do lado de fora da casa, perambulando pelo jardim como as pelagens eriçadas e presas à mostra. Lá dentro, Sam atuava como porta-voz nas discussões e Paul permanecia ao seu lado como um guarda-costas muito relutante. Afinal, ele só estava ali, porque havia sido ordenado, caso contrário já estaria na floresta novamente buscando os sequestradores de Prim.

— Eles virão pelo oeste. — A vampira baixinha, Alice, traçou uma linha imaginária sobre o mapa com seu dedo esguio. — Se estivermos nesta clareira aqui antes deles, então vamos conseguir conter o avanço dos recém-criados antes que cheguem à cidade.

O chefe do clã de sanguessugas, Carlisle, assentiu.

— Quantos agora? Você disse que os números mudaram.

Alice encarou a parede com o olhar vidrado, provavelmente assistindo à imagens que só ela conseguia ver. Era bem bizarro.

— Sim… o número continua mudando… — Ela sussurrou, a voz distante. — O exército reduziu de tamanho novamente, mas eu não consegui ver o porquê. Consigo ver dez, talvez doze vampiros.

Ótimo, só uma dúzia de sanguessugas malucas, Paul pensou irritado.

— Nossas chances são maiores, então. — Edward se animou.

— Não tenho tanta certeza. Eles podem ter descartado apenas os mais fracos. — O loiro ex-soldado, Jasper, acrescentou, a testa franzida de preocupação.

A barbie psicótica soltou um bufo irônico. Paul realmente não se importou em aprender o nome de todos eles ainda.

— Ótimo. Então, vamos enfrentar somente os mais fortes? Isso fica cada vez melhor.

Pelo menos alguém ali tinha um pingo de bom senso, Paul refletiu, observando como os outros simplesmente ignoraram o comentário dela.

— Precisamos nos dividir em dois grupos, então. — Sam continuou, como se ninguém tivesse falado. — Eles com certeza vão tentar nos ultrapassar e seguir até a cidade.

— Isso funcionaria — Jasper concordou. — Um grupo deve ficar na clareira principal, e o outro pode ir até a curva do rio, aqui.

— Excelente. Há tempo para descansar antes de irmos…

E então, a vampira baixinha repentinamente arfou violentamente, seu corpo quase se curvando como se tivesse levado um soco no estômago. Seus olhos dourados ficaram sem foco, enquanto ela fitava à sua frente sem realmente ver nada, seus dedos se fechando e abrindo em movimentos descoordenados.

— Alice? O que foi? — Jasper avançou na direção de Alice, com as mãos em seus ombros, enquanto ele a sacudia gentilmente tentando trazê-la de volta.

— Não… não, algo deu errado! — Ela balbuciou, a voz estrangulada pelo pânico. — Eles mudaram de ideia! O exército-

Paul já estava de pé antes mesmo que percebesse. Seu coração acelerado, as unhas fincando as palmas das mãos involuntariamente. Do lado de fora, os lobos ficaram tensos ao ouvir a comoção, seus rosnados ecoaram para dentro da casa como se trovões estivessem pairando no teto da sala.

Era sobre Prim? Aconteceu algo com ela? Paul pensava, sentindo o pânico começar a inundar os seus sentidos.

— Eles estão indo direto para Forks agora! Por quê? — Os olhos de Alice estavam arregalados de terror, a íris balançando pra lá e pra cá enquanto ela tentava buscar uma possível resposta no futuro. — Algo… algo os fez mudar de planos!

— E a Prim? Ela está com eles? — Paul exigiu.

Alice sacudiu a cabeça, os dedos tremendo.

— Eu… eu acho que não… não consigo ver…

Tente mais! — Paul rugiu, avançando para a vidente. Seus músculos já estavam tremendo, o lobo ansioso para se liberar.

Jasper se interpôs entre eles, as mãos tentando impedi-lo, os lábios erguidos em um rosnado animalesco, enquanto tentava proteger a sua companheira do lobo furioso.

— Afaste-se, lobo!

— Paul! Calma! — Sam agarrou Paul pelos braços com força bruta, arrastando-o para trás.

— Eu não a vejo… sinto muito, eu não a vejo. — Alice recuou, esfregando as têmporas como se a sua cabeça doesse após tantas tentativas infrutíferas. — Não há flashes de luzes que indicariam a presença de pessoas mágicas. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito.

Ela estava claramente sobrecarregada, tentando forçar o seu dom sobre pessoas que, aparentemente, sabiam como brincar de gato e rato com a vampira vidente. Ou eles simplesmente tinham proteção extra contra isso.

E se fosse o caso, então o quão realmente bem preparados eles estavam?

Porra! — Paul gritou com raiva, as ondas de desespero subindo pela sua garganta junto com a bile. — Se ela não está com eles, então por que a vampira ruiva mudou de ideia?

— Não ficou claro… eu consigo ver apenas a decisão dela… — Alice sacudiu a cabeça com movimentos espasmódicos. — Victória… ela está furiosa…

— Talvez a Bella tenha fugido? — Edward sugeriu, cruzando os braços.

A barbie psicótica fez um som de desdém.

— Isso se Victoria realmente estivesse com elas antes.

Alice balançou a cabeça, negando imediatamente.

— Eu teria visto a fuga de Bella, se fosse realmente isso. Eu consigo vê-la.

— Não se ela estiver com Rose. — Edward acrescentou.

Carlisle tentou acalmar o grupo agitado, erguendo as mãos em um gesto apaziguador.

— Se elas fugiram juntas, então talvez seja por isso que Victoria mudou de ideia.

— Mas não há flashes de luzes. — O olhar de Alice desfocou novamente, tentando enxergar o futuro mais uma vez.

— Tente se concentrar somente na Bella, querida. — Jasper pediu, gentilmente. — Talvez isso funcione.

Alice assentiu. E então, depois de alguns segundos de um silêncio devastador, ela arfou mais uma vez.

Eu vejo Bella correndo pela floresta!

Todos os vampiros respiraram fundo, embora setenta por cento deles não precisasse realmente disso, enquanto todos chegavam à mesma conclusão.

Foi Sam que disse, no entanto:

— Ela está enviando o exército atrás delas.

O silêncio que se seguiu foi aterrorizante. Paul sentiu o sangue gelar em suas veias, mas antes que Sam falasse mais alguma coisa, ele já estava na porta.

Não havia tempo para planos e discussões, Prim estava lá fora, provavelmente correndo para salvar a sua vida, e eles estavam brincando de generais de guerra como se tivessem tempo.

Nós precisamos ir agora!

Paul correu em direção à floresta, ignorando os uivos de seus irmãos de matilha ou Sam em seu encalço. Seu corpo já estava se transformando antes mesmo que a sua mente pudesse processar, seus sentidos completamente focados em encontrá-la.

“Que porra foi essa?”

“Que merda! Eles estão enviando o exército agora?”

“Paul, a Primmy está com eles?”

“E a Bella?”

“Cala a boca, Seth”

“Quem se importa com a porra da sanguessuga?”

“Paul, nós devemos chegar juntos!”

A ligação da matilha começou a se encher de vozes e murmúrios, enquanto Paul corria, o coração preso na garganta.

Os Cullen trocaram um último olhar antes de seguirem a matilha em um borrão de velocidade.

A batalha estava começando.

 

*

 

Eles correram em direção ao ponto indicado na visão de Alice, o vento uivando em seus ouvidos, o cheiro da floresta à noite invadindo suas narinas. A corrida levou mais de uma hora, tempo demais para suas mentes ansiosas, mas ainda assim pareciam ter chegado antes do previsto.

A clareira estava escura e silenciosa — embora isso fosse irrelevante para a excelente visão dos lobos e vampiros —, e mesmo sem a presença ou sinais da chegada do exército, ainda parecia assustador apenas aguardar que algo acontecesse.

Mas eles esperaram.

E esperaram.

E esperaram mais um pouco.

Até que um som quebrou o silêncio. Tão fraco e distante que poderia ter sido imaginado. Mas então um ruído se seguiu, um tremor intenso, como se a terra estivesse rangendo e ecoando sob seus pés.

Eles trocaram um olhar, provavelmente reconhecendo o som, mas a descrença paralisando-os nos primeiros segundos.

— Isso foi… uma explosão? — Emmet arriscou, porque alguém tinha que dizer o óbvio.

E sim, parecia uma explosão.

Alice então apontou, seu braço esticado como uma flecha, e eles seguiram seu movimento, os olhos esquadrinhando a escuridão entre as árvores à sua frente.

Eles ouviram antes de ver. Era um estalo alto, um rangido, como se algo enorme estivesse se arrastando pela floresta. Paul sentiu o impacto subir por suas patas como um choque elétrico, o chão tremendo sob seus pés. O equilíbrio deles vacilou, lobos e vampiros cambaleando sobre um solo agora instável

 

Que porra era essa?

 

Alice estava agora encarando à sua frente, os olhos focados, a mente acelerada em busca de novas informações sobre o futuro, e então suas próprias palavras foram, inesperadamente:

— Um terremoto!

E então qualquer coisa que eles estavam sentindo naquele momento começou a fazer sentido, porque, de repente, era como se as partes da floresta tivessem começado a se mover, mas não, o chão estava desabando, a terra jorrava como se fosse água caindo de uma barragem, reverberando como ondas na direção deles.

Paul já estava inquieto antes, mas agora ele estava realmente preocupado.

Não era isso que ele esperava.

— Que merda — Edward sussurrou, aterrorizado. — Nós vamos ficar soterrados, se continuarmos aqui.

E foi assim que a abordagem calculada deles foi pro lixo.

Sam deu o sinal, um uivo agudo e cortante, e, num instante, a matilha e os Cullen correram em disparada, esquecendo a formação estratégica e apenas focando na fuga desesperada, em linha reta e na direção contrária ao terremoto. Os pensamentos da matilha eram uma mistura de pânico e descrença. Afinal de contas, desde quando havia terremotos em Forks?

O plano original era simplesmente esperar o exército na clareira e emboscá-los antes que chegassem a Forks.

Mas isso era fácil demais.

E ninguém esperava uma surpresa desse tipo.

— Como diabos a Alice não viu isso?! — Rosalie rosnou, saltando sobre uma rachadura que se abriu no chão sob seus pés.

Alice, correndo ao lado deles, parecia perturbada, os olhos piscando rápido, como se tentasse enxergar algo mais uma vez e continuasse falhando.

— Não faz sentido… — Ela murmurou, a voz trêmula. — Eu deveria ter visto. Isso é algo simples demais para não ter aparecido nas minhas visões.

— A menos que algo esteja bloqueando as suas visões. — Jasper anunciou ao grupo.

Paul entendeu rapidamente o que ele quis dizer. Se Rose, que era uma bruxa sem magia, era capaz de bloquear as visões de Alice, o que um bruxo com magia ou um grupo deles seria capaz de fazer? Talvez eles pudessem ir muito além do que bloquear as visões.

— Você está certo — Edward comentou. — Paul teve um pensamento muito coerente. Ele acha que há bruxos brincando com as visões da Alice.

Carlisle assentiu para Edward, enquanto corria e saltava sobre as oscilações na terra.

— Isso faria sentido, na verdade. Talvez a visão original estivesse errada?

— Ou apenas alguns detalhes. Não sei o quanto eles são capazes de mudar completamente a visão dela, mas talvez possam esconder certos acontecimentos.

— Como o terremoto.

— E eles aproveitaram a oportunidade do terremoto para nos enganar. — Jasper disse.

— Isso só faria sentido se eles também tivessem um vidente entre eles. — Alice acrescentou. — Ou que eles tenham criado o terremoto.

A ideia de uma pessoa ser capaz de balançar a terra à esse ponto era tão inconcebível, que nenhum deles foi capaz de contra argumentar.

Mas então, o tremor cessou tão de repente quanto havia começado, e a terra se acalmou. No entanto, o verdadeiro horror só estava começando.

Antes que os Cullen ou a matilha pudesse se recuperar, um estrondo ecoou pela floresta, não mais aquele da terra se partindo, mas de árvores tombando, raízes sendo arrancadas do solo encharcado. O terreno destruído da floresta havia se transformado em um rio de lama, escorrendo em direção à eles.

— Deslizamento! — Emmet rugiu, sua voz cortando o barulho ensurdecedor.

Não houve tempo para pensar, eles simplesmente começaram a correr novamente. Quando alcançaram o vale depois do rio, a cena era um pesadelo, a onda de lama já tinha engolido tudo em uma velocidade alarmante — troncos, rochas e árvores. Arrastando tudo como se eles estivessem numa maquete e tudo fosse feito de isopor.

E então, o pior: havia a porra de um acampamento à frente.

— Eles não deveriam estar aqui. — Edward rosnou, os olhos dourados procurando uma saída naquela destruição.

— Isso não é um lugar para acampar. — Carlisle gritou, já se movendo em direção aos humanos.

Paul chegou primeiro ao acampamento, suas patas afundando na lama. Um homem de meia-idade agarrava-se desesperado a um pinheiro tombado, metade do corpo já submerso no fluxo implacável, seus olhos arregalados entre observar o desastre da natureza e os seres pálidos e os lobos gigantes correndo em alta velocidade ao seu redor. Paul mordeu o casaco do homem e arrastou-o para trás com um puxão violento, depositando-o na terra seca.

Do outro lado, Edward, Jasper e Emmet moviam-se em um borrão, tentando salvar um jovem inconsciente, flutuando de bruços numa poça de água barrenta, e um adolescente preso sob a força de uma árvore caída.

Mas enquanto eles tentavam ajudar, o solo tremeu de novo. A terra abriu-se sob seus pés, engolindo os humanos, seus gritos abruptamente cortados quando a lama os tragou.

Eles paralisaram durante alguns segundos, perdidos entre o desejo de ajudar aqueles humanos e correr para salvar a própria vida.

Eles estão mortos! — Esme gritou, aterrorizada, abandonando os humanos sem salvação e correndo novamente.

Não havia mais nada a fazer.

A única saída era para o norte, pois todas as laterais estavam bloqueadas pelos tremores e pelo rio de lama, enquanto o caminho atrás deles havia sido engolido pelo desastre.

Eles correram pelo caminho óbvio, numa trilha montanha acima que não parecia ter fim, mesmo que a visibilidade melhorasse conforme eles subiam. A cabeça de Paul oscilava entre os piores cenários. Ele não fazia ideia do porquê aquilo estava acontecendo.

 

Aquilo não parecia natural.

 

Embora tivessem chamado de terremoto, os tremores não se comportavam como tal. Eram estranhamente direcionados e conscientes, como se a terra soubesse exatamente onde eles estavam pisando. Como se a floresta estivesse viva, moldando o solo e empurrando-os para um caminho específico.

 

Bruxos podiam fazer isso?

 

Finalmente, chegaram ao topo e observaram uma clareira aberta, banhada pela luz da lua, e um lago imóvel refletindo o céu negro.

Quando eles pararam no meio da clareira, Paul teve certeza.

Eles não estavam sozinhos.

A ligação mental da matilha estava estranhamente silenciosa e solene, embora ele conseguisse sentir os ecos do nervosismos chegarem até a sua mente. Naquele momento, no entanto, ninguém estava disposto a falar mais do que o necessário.

Então, Paul notou algo. Pelo canto do olho, ele viu um movimento. E, numa reação de última hora, abaixou o seu corpo para que o soco bem direcionado do recém-criado errasse o alvo. Em vez de recuar, no entanto, Paul avançou.

Com um movimento rápido, suas presas encontraram o pescoço do vampiro e o arrancaram com força bruta. A cabeça voou, girando pelo ar antes de cair na terra com um impacto abafado. O corpo permaneceu em pé por apenas um segundo, antes de desmoronar ao seu lado.

O quê…? — Edward começou, mas logo ficou sério. Seus olhos endureceram, prontos para enfrentar o que viria a seguir.

Através das árvores, arbustos e pedras, Paul conseguiu vê-los. Mas eles não se comportavam como deveriam. Jasper tinha dito sobre vampiros frenéticos, famintos, descontrolados. Mas o que Paul viu eram soldados.

Mesmo cercados, mesmo em desvantagem, eles não rosnavam. Apenas observavam impassivelmente, enquanto Paul arrancava o pescoço de um deles em dois segundos. Havia sangue em suas roupas e ele conseguia sentir o cheiro metálico mesmo a distância — eles estavam alimentados, fortes.

— Ainda dá tempo de se render. — Carlisle tentou argumentar, sua voz alta demais no silêncio opressor da clareira. — Nós podemos chegar a um acordo. Não precisa haver nenhuma briga.

Nenhum deles respondeu, mas ninguém realmente esperava que respondessem, e houve apenas uma fração de segundo em que todos perceberam que é isso — eles estavam além do ponto de retorno.

E então eles se moveram.

 

O exército de vampiros atacou como uma equipe ordenada, rápidos e sincronizados demais para serem considerados recém-criados.

Emmet investiu primeiro, seu corpo grande e musculoso arremessando-se contra o vampiro mais próximo. O seu punho forte desferiu um golpe forte de direita que poderia esmagar rochas, mas o vampiro apenas se inclinou facilmente para trás, deixando o soco passar por cima do seu rosto impassível. No mesmo momento, girou para bloquear o gancho de esquerda que Emmet lançou em seguida.

Foi a abertura que Edward precisava. Como um raio, ele se lançou  nas costas do vampiro, suas mãos firmes agarrando a cabeça pálida e, então, torceu com um estalo seco, arrancando a cabeça do pescoço.

Mas não houve tempo para comemorar. Os restante dos Cullen avançaram em uníssono, investindo contra os outros vampiros.

Paul viu Sam atacando um dos vampiros por baixo, as suas garras buscando o abdômen para derrubá-lo no chão e, em seguida, arrancar o pescoço com as suas presas. Do outro lado da clareira, Jared saltou sobre outro deles, enquanto Embry e Quil o flanqueavam, rasgando membros com presas afiadas.

Havia sangue dos lobos no chão, garras rasgando, vampiros sendo arremessados contra as árvores, uivos de dor misturando-se a rosnados de fúria.

Paul alcançou Leah, Seth e Jake no centro do turbilhão, e os lobos giraram juntos, formando um redemoinho, enquanto tentavam encurralar o restante dos vampiros. Leah saltou sobre um dos vampiros que tentava atacar Jake pelas costas, suas presas perfurando a jugular da sanguessuga. Seth e Paul se encarregaram de tentar destruir uma dupla que corria da floresta.

Era quase impossível perceber os detalhes, tudo aconteceu em uma fração de segundos, e os movimentos se perderam na escuridão da clareira.

Embora os vampiros fossem ótimos lutadores, eles não eram lobos. Eles não nasceram para matar sanguessugas. Eles sabiam como se movimentar com fluidez e parecendo sem esforço, é claro. E era preciso muita habilidade para fazer algo tão difícil parecer fácil.

E, no entanto, mesmo que fossem vampiros novos, com força ainda mais anormal do que a média e com sangue humano correndo nas veias, as suas habilidades, embora fossem notáveis, ainda não eram o suficiente contra eles.

Mesmo assim, tudo ainda deu errado.

Para um olhar destreinado, a ação pareceria quase desleixada, mas um dos vampiros aproveitou uma fração de segundo e agarrou a oportunidade. Em um instante, ele estava atrás dos lobos, e Quil o viu um segundo tarde demais.

O vampiro deu um chute. Não foi um golpe espetacular, apenas um movimento rápido, mesmo assim a perna esquerda de Quil quebrou com um estalo agudo que ecoou entre eles. O lobo cambaleou, um uivo de dor escapou da sua boca, palavras desconexas compartilhadas com a mente da matilha, e o vampiro já estava em movimento outra vez.

“QUIL!” Jake rugiu, lançando-se para frente.

“Ajudem ele!”

“Eu não posso, há dois vampiros em cima de mim.”

“Porra!”

NÃO!”

Foi inútil. O vampiro girou, seu braço se estendendo num arco perfeito, sem esforço, e lançou um golpe contra o peito de Quil, fazendo ele arfar sem fôlego e perder as forças do corpo momentaneamente, apenas o suficiente para abraçá-lo de uma forma que quase parecia inocente.

O pescoço de Quil estalou com um som nauseante e então… morto.

O choque se instalou durante a batalha. O corpo de Quil voltou ao seu estado humano, forçando a matilha a encarar o seu irmão nu e sem vida jogado no meio da clareira.

“Seus filhos da puta!”

“Eu vou massacrar esses sanguessugas de merda!”

“Caralho”

“Porra, porra, porra”

“Quil? Quil? Porra!”

Mas não havia tempo para lamentar. Os lobos se jogaram na briga com uma fúria renovada. E Jake avançou bem a tempo de rasgar o vampiro em pedaços com um ódio que ecoava pela mente de toda a matilha.

Os Cullen pareciam estranhamente chocados depois daquela cena, e, junto com os lobos, ajudaram os últimos recém-criados restantes. Um pequeno grupo com três deles que, embora parecessem irrelevantes, eram mais fortes e inteligentes do que toda a equipe.

Eles precisaram correr, chutar e socar para lidar com eles. Então, um deles correu direto para Rosalie, seus dentes afiados em um sorriso predatório. Ela ergueu o braço para bloquear, mas ele aproveitou a oportunidade para enterrar as presas na carne dela com um rasgo horrível.

— Rosalie! — Emmet rugiu, enfurecido, mas antes que pudesse alcançá-la, Edward já estava lá. Seus braços envolveram o vampiro como correntes de aço, puxando-o para trás.

— Agora! — Edward gritou, e Emmett não hesitou um segundo.

Seu punho fechado esmagou o crânio do vampiro como um martelo, rasgando o pescoço do sanguessuga e espalhando fragmentos da cabeça pelo chão.

Do outro lado, o segundo vampiro saltou sobre Carlisle, tentando ganhar alguma vantagem. Em vez disso, ele aproveitou o momento para segurá-lo pela perna e segurá-lo no chão, com o braço do vampiro preso para trás até os ossos estalarem, a perna segura sobre a parte de trás de seus joelhos impedindo-o de se levantar.

Paul aproveitou a oportunidade, e suas garras rasgaram o pescoço do vampiro em um movimento limpo.

O último, ao ver seus colegas mortos, recuou visivelmente, e algo parecido com pavor passou por seus olhos vermelhos.

Ele girou para fugir, mas Sam já estava preparado. Ele o puxou pela perna usando as presas, com força suficiente para fazê-la quebrar e o vampiro cair de uma maneira completamente desengonçada para uma criatura daquelas.

Mas antes que ele pudesse reagir, toda a matilha caiu em cima do sanguessuga com raiva e sede de vingança. Eram apenas garras, presas e ódio. E sobraram apenas membros decepados, em vez de uma criatura completa.

Quando tudo acabou, eles simplesmente ficaram parados, em silêncio, durante alguns segundos. Ninguém ousava quebrar aquela momentânea paz com quaisquer palavras, especialmente quando, embora houvesse algum tipo de alívio em dizimar aquele exército, não havia realmente nenhuma satisfação nisso, afinal ainda não havia acabado.

— Puta merda — Emmett quebrou o silêncio, sussurrando em total perplexidade, enquanto observava a destruição na clareira.

— Temos que queimar os corpos — Carlisle disse, enquanto Jasper e Esme o ajudavam a arrastar a pilha de corpos para uma pilha no centro da clareira, empilhando-os como lenha podre.

Esme acendeu o fogo.

As chamas cresceram rapidamente, devorando os restos dos recém-criados em um crepitar sinistro. A luz dançava nos rostos dos Cullen. Ninguém comemorava

— Victoria não estava aqui — Edward falou sem olhar para ninguém, os olhos fixos no fogo. — E nem Bella.

Algo naquilo os incomodava profundamente, mas eles não sabiam com o que estavam lidando. Então, como se preparar para isso?

Do outro lado da clareira, a matilha se reuniu ao redor do corpo de Quil.

Ele estava em sua forma humana, deitado sobre uma poça de sangue escuro que se espalhava sobre a terra, os olhos sem vida voltados para o céu. Jake encostou o focinho na cabeça dele, um uivo baixo escapando de sua garganta. Embry não estava muito atrás, lamentando com um choramingo doloroso. O resto da matilha discutia entre si sobre o que fazer, como levar o corpo de volta, quais seriam os próximos passos.

“Nós temos que levá-lo de volta para a mãe dele”

“Eu nunca pensei que veria isso na minha vida”

“O Velho Quil vai ficar péssimo”

“Porra! Por que isso aconteceu?”

“Temos que honrar o nosso irmão de matilha e levá-lo de volta para a comunidade. Que os ancestrais cuidem da sua alma”

Mas Paul apenas sentia-se estranhamente inquieto, como se houvesse uma coceira sob a sua pele que ele não conseguia coçar. Como se algo dentro dele soubesse que aquilo, embora fosse bizarro, tinha sido fácil demais.

 

Alguma coisa estava prestes a acontecer?

 

Paul não precisou esperar muito para saber a resposta.

 

Vocês ouviram isso?”

 

“O quê?”

 

“É outro deles!”

 

Havia um homem — um vampiro? um bruxo? — do outro lado da clareira. 

Ele não fez questão de se mover. Apenas observava, impassivelmente, enquanto a fogueira crepitava, lançando sombras sobre os rostos tensos dos Cullen e da matilha.

Eles esperaram para saber o que ele faria.

Quando seus olhos se ergueram, é que eles viram o rubro furioso de um recém-criado e então eles tiveram a certeza de que, sim, aquele era mais um vampiro. E ainda que o restante do exército tivesse sido assustador, esse, embora fosse apenas um, de alguma forma parecia ainda pior.

Eles entenderam o porquê alguns segundos depois. Porque, em vez de avançar, rosnando e grunhindo, este vampiro simplesmente os observou solenemente.

 

E então o chão começou a tremer novamente.

— Isso é um dom? — Rosalie sussurrou, atordoada.

“Que porra é essa?”

— Eu nunca vi isso, além de… — A voz de Carlisle se perdeu, seus pensamentos provavelmente perplexos demais para ele ter forças para terminar aquela curiosa frase.

“O tremor foi causado por esse cara, então?”

— É diferente — Edward respondeu os pensamentos de Carlisle. — É apenas terra.

“Vamos matar a porra dessa sanguessuga também”

— Eu subestimei vocês — O vampiro murmurou, e eles só conseguiram lançar um olhar vago para ele, esperando que algo mais acontecesse, enquanto tentavam se equilibrar sobre as próprias pernas.

Seus olhos brilhavam, de divertimento talvez, mas ele não avançou nenhuma vez.

Edward, por outro lado, parecia cansado daquela espera:

— Você não pode nos derrotar — Edward afirmou — Nós estamos em maior número. Somos mais rápidos, mais fortes. Você não vai vencer isso.

O homem simplesmente deu uma risadinha seca, e um tanto desdenhosa.

— Ah, você tem razão. — Ele concordou alegremente, e então abriu um sorriso distorcido e cortante. — Mas eu não estou aqui para vencer.

Eles entenderam muito claramente.

Mas não deu tempo de pensar sobre isso. Se passou apenas um segundo, e ele simplesmente chutou o chão e o solo sob Esme afundou, fazendo-a ficar enterrada até a cintura antes mesmo de piscar.

Esme! — Carlisle saltou para frente, mas o vampiro já estava lá.

Eles observaram, quase em câmera lenta, a cabeça de Esme voar, arrancada em um movimento rápido e limpo, até atingir o fogo.

NÃO!

Foi Emmett quem avançou primeiro, com um rugido mais animal do que humano. Ele tentou arremessar-se no vampiro, mas a criatura apenas desviou.

Durante os próximos minutos, nenhum deles conseguiu alcançá-lo. O solo tremia, afundava ou abria-se em rachaduras que atravessavam a clareira, e mesmo com um equilíbrio formidável, eles eram incapazes de se equilibrar plenamente. Quando tentavam agarrá-lo por trás, o vampiro desaparecia em um borrão, apenas para reaparecer dois metros à frente, sentado numa rocha como um espectador, enquanto observava os vampiros patinarem na terra.

— Parem de se mexer! — Alice ordenou, mas era impossível fazê-lo.

O vampiro apenas riu, deliciosamente, então ergueu as mãos em direção aos céus.

A terra ondulou como um lago, jogando todos de lado. Paul tentou manter o equilíbrio, mas o solo sob ele inclinou-se como um navio naufragando, mandando-o rolando direto para as chamas da fogueira. Edward o puxou pela pata no último segundo.

— Você só está se esquivando — Edward cutucou, tentando provocar alguma reação. — Não existe versão disso em que você consiga nos derrotar. Você não tem coragem suficiente?

— Você quer ver coragem, então? — O homem sorriu ferozmente, e então o solo sob Edward engoliu-lhe os pés como areia movediça. Só que muito mais rápido. Em menos de um segundo, ele estava enterrado até o peito, a pressão da terra esmagando-lhe as costelas.

Era a mesma situação de Esme. Mas agora eles estavam preparados. Alice aproveitou a distração e avançou sobre o vampiro, mas, com apenas um dedo erguido, uma coluna de terra sólida explodiu do chão, atingindo-a com um estalo que a jogou para trás.

E enquanto lobos e vampiros tentavam alcançá-lo inutilmente, ele sempre fazia o mesmo, desequilibrando-os com tremores de terra ou lançando-os para trás com muros erguidos do chão.

— Assim está bom? — O vampiro perguntou, caminhando até Edward. — Eu poderia simplesmente quebrar o seu pescoço agora.

Houve um breve momento em que Paul começou a pensar que talvez este fosse o fim. Que não havia escapatória. Que eles não sairiam dali vivos. Ou se isso acontecesse, então Prim estaria longe o suficiente para ser salva. Porque estava claro que aquele vampiro não estava ali para matá-los.

 

Ele só queria distraí-los.

 

Eles estavam perdendo. O vampiro conseguiu prender todos eles no solo, e mesmo que eles se debatessem e usassem toda a sua força, era impossível se livrar daquela prisão. Bastava alguns passos e ele poderia arrancar a cabeça de cada um deles.

A mente traiçoeira de Paul ignorou a conversa paralela da matilha e, em seu pânico histérico, começou a conjurar os piores cenários possíveis, enquanto ele só conseguia choramingar e lamentar o fato de nunca ter podido se casar com a sua Primrose. Ele nunca se ajoelharia diante dela. Nunca a chamaria de “minha esposa”. Nunca mais teria a sensação, vertiginosa e sufocante de felicidade, de acordar e se deparar com um emaranhado de cachos vermelhos em seu peito.

 

Era o fim deles.

 

Mas Paul sempre foi tão pessimista, que mesmo quando a esperança surgia, ele ainda custava a acreditar.

Foi isso que aconteceu quando um disparo foi ouvido, e a noite passou da escuridão para a luz, quando toda a situação se inverteu e a ampulheta foi girada. Um novo cronômetro foi acionado e agora não era a areia da matilha e dos Cullen que estava acabando.

No último instante, um homem ruivo, alto e com a pele salpicada de sardas apareceu com um estalo, aparentemente do nada, e da ponta do bastão que ele segurava com força na mão direita, saiu uma chama furiosa num clarão de fogo tão brilhante, que eles tiveram que fechar seus olhos.

Ele parecia irritado, mas completamente concentrado.

 

Era um bruxo.

 

De alguma forma, o vampiro foi pego de surpresa e morreu, pateticamente, por causa da porra de um bastão de madeira. Ele ardeu como um pedaço de papel, e seu corpo se desintegrou em cinzas antes mesmo de tocar o chão.

— Você estão bem? — A voz do ruivo era áspera, britânica.

— Quem é você? — Carlisle perguntou, tenso.

— Nós não temos tempo pra isso. Eu vou aparatar, vocês devem correr em direção ao oeste. A Rose está lá.

E, assim como apareceu do nada, o bruxo sumiu novamente.

O silêncio durou meio segundo, quando Alice arfou novamente, finalmente conseguindo ter uma visão.

— Eu consigo vê-la. Bella! Victoria está com ela.

— Ele disse que Rose também estava naquela direção. — Jasper acrescentou.

Carlisle trocou um olhar rápido com Edward, antes de girar para o grupo.

— Então, não podemos perder mais um segundo.

Os vampiros dispararam na frente em um segundo.

“Vamos salvar Rose e vingar a morte do nosso irmão” Sam rugiu através do vínculo da matilha, e eles uivaram juntos, antes de começar a correr atrás dos Cullen.

Só então Paul conseguiu sentir esperança.

Ela explodiu em seu peito como um segundo coração, quente e pulsante, alimentando cada célula com uma luz brilhante de determinação que corria em suas veias mais rápido que o sangue.

Ele sabia que iria encontrá-la.

Notes:

Esse foi um capítulo muito difícil. Eu queria uma luta de verdade, com mortes e tensão, e não tenho certeza se consegui capturar completamente a ideia.

Também queria que houvesse algum vampiro talentoso no exército de Victoria e que ele desse dor de cabeça aos Cullen e à matilha. Então, lembrei de Benjamin, o vampiro que aparece em Amanhecer, e é capaz de influenciar todos os quatros elementos. Enquanto, o vampiro que eu criei aqui só é capaz de mover a terra.

E sim, eu criei esse vampiro aleatório com o único propósito de ser uma distração na batalha, e não me arrependo. 😂

Chapter 51: CINQUENTA E UM

Notes:

ATENÇÃO: Aqui, novamente, há violência, tortura, dor, sangue e morte.

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Forks, WA

31 de outubro de 2008

 

Rose precisava urgentemente de um plano.

Fazia anos desde que ela havia lutado pela última vez, e nem mesmo naquela época ela era boa o suficiente. Suas batalhas tinham sido mais sobrevivência, desespero e sorte do que, de fato, alguma técnica ou estratégia. Agora tudo isso estava enterrado no passado e atualmente ela só sabia como estancar hemorragias, suturar feridas e salvar corpos, mas não destruí-los. Afinal de contas, lutar não tinha sido exatamente a sua prioridade nos últimos anos. Especialmente, contra pessoas com magia.

A única razão pela qual Rose não tentou se debater contra as cordas e sair correndo, é porque ela sabia que não chegaria sequer na borda da clareira, antes que um dos bruxos a contesse novamente, ou a matasse de vez. Ela não podia fazer isso, especialmente quando sabia que Paul com certeza estava à sua procura pela floresta.

Ela só precisava ficar viva até lá.

Se não podia correr ou lutar, então ela teria que ganhar tempo.

— A meia-noite se aproxima, meus fiéis. — Lorde Voldemort continuava o seu discurso prolixo, sem nem mesmo piscar depois da morte de Riley. — Assim como eu fiz com o meu grande inimigo, Albus Dumbledore… Esta noite será lembrada como o fim da Garota Que Sobreviveu. Uma data muito adequada, eu diria. Trinta e um de outubro. Na mesma noite em que tudo começou. Um ciclo perfeito, não acham?

Rose tentou conter o estremecimento ao saber que Dumbledore também estava morto. Ela viveu tanto tempo em sua bolha distante e feliz, que se perguntou quem mais estaria morto naquele momento, e ela nunca soube.

— Para esta noite, no entanto, não será sobre vingança. Ah, não… — Seus olhos brilharam com uma antecipação quase perversa. — O sangue e a carne da Garota que Sobreviveu serão a chave para a minha ascensão. Um novo passo para Lorde Voldemort alcançar o domínio absoluto sobre a imortalidade.

Ele andava lentamente pela clareira, a túnica arrastando folhas secas pelo chão. E então, olhou diretamente para Rose. Olhos vermelhos encarando-a, vazios de qualquer humanidade.

— E então? — ele sibilou. — Últimas palavras?

— Difícil ter algo a dizer quando você já falou tanto. — Rose encarou-o, o queixo erguido e a voz firme, embora por dentro seu coração saltasse dentro do peito. — Sabe, eu fico realmente impressionada com o quanto você gosta do som da própria voz.

Um murmúrio atravessou a clareira. Alguns Comensais da Morte pareceram se enrijecer, perplexos.

Garota insolente! —  Voldemort cuspiu, com uma risada curta e amarga. — Você pode fingir ser corajosa diante da morte, mas vai morrer no final… assim como a sua mãe sangue ruim.

Rose fingiu que aquilo não a atingiu, em vez disso, apenas respirou fundo e respondeu:

— Engraçado você dizer isso… o seu pai também não era um sangue ruim?

Houve um breve momento de silêncio, em que os Comensais da Morte ficaram calados e as feições de Voldemort vacilaram por um segundo. E então, a bruxa com cabelos cacheados e olhos loucos, a mesma que havia matado Riley, avançou:

— Deixe-me matá-la, Meu Senhor. Deixe-me! Deixe-me cortar a língua dela fora! Deixe-me. Deixe-me.

Silêncio, Bella! — Voldemort gritou. A bruxa maluca estremeceu como um animal chicoteado. Seus joelhos bateram imediatamente no chão e seus dedos ossudos afundaram na terra enquanto ela se arrastava até os pés do seu mestre.

Rose sentiu o estômago embrulhar quando viu os lábios rachados da bruxa pressionarem-se contra a pele pálida e escamosa de Voldemort, beijando com uma devoção doentia.

Voldemort, no entanto, a observava com a mesma expressão com que se olha um inseto particularmente irritante. Com o outro pé, ele a empurrou no ombro, fazendo-a rolar na terra, e nem sequer dando uma segunda olhada para a bruxa caída.

Seus olhos estavam fixos em Rose novamente, e desta vez, havia um brilho divertido neles.

— Meu pai era um ser insignificante — Ele ergueu a varinha lentamente, e Rose sentiu cada fio de cabelo em sua nuca se arrepiar. — Mas eu me reconstruí. Tornei-me mais do que sangue. Tornei-me eterno. E você, Primrose Potter, o que se tornou, além de um erro do seu pai traidor e do sangue sujo da sua mãe?

— Engraçado você falar da minha mãe. A sua não passava de um aborto?

— Você não sabe nada sobre Lorde Voldemort! — Ele explodiu, o tom enlouquecido e raivoso. — Crucio!

Rose mal teve tempo de respirar, antes que a dor a atingisse como uma chicotada. Seu corpo arqueou contra as cordas num espasmo violento. Cada nervo incendiou-se por dentro, parecia que a própria pele tentava fugir de seus ossos, vibrando com uma intensidade tão horrível que não parecia possível que ela ainda estivesse viva.

Mas ela não gritou. Mordeu a língua com força, sentindo o sangue encher a sua boca, enquanto um rangido sufocado escapava de seus dentes cerrados.

Através da névoa de sofrimento, Rose vislumbrou a bruxa enlouquecida girando em êxtase ao redor do círculo, braços erguidos como se estivesse em um ballet macabro, os olhos arregalados e loucos de prazer.

Voldemort, porém, parecia mais assustador do que nunca. Seus olhos ardiam com um ódio absoluto. Ele interrompeu a maldição, e ficou apenas observando enquanto Rose ofegava, tentando forçar o ar de volta aos pulmões, o corpo ainda tremendo.

Com esforço, ela não cedeu. Mesmo com o corpo vibrando de dor e os pulmões implorando por ar, Rose ergueu o queixo e forçou um sorriso malicioso. Sangue escorria do canto de sua boca, manchando os dentes, mas ela não se importou.

— Eu não sei, Tom Riddle?

Onde você ouviu esse nome?! — Voldemort rugiu, engasgando de fúria, a varinha tremendo em sua mão esquelética.

— Hmm… Parece que o seu fiel seguidor, Lucius Malfoy, não te contou sobre as minhas aventuras com o seu precioso diário, não é? Ele gostava muito de falar, assim como você... Ele me contou tantas coisas...

Ela nem teve tempo de terminar seu discurso.

Crucio! — Voldemort gritou, e Rose fechou os olhos e encolheu o corpo em reflexo esperando o feitiço.

Mas nada aconteceu.

Quando ela abriu os olhos novamente, em vez de ter uma varinha apontada para o seu rosto, viu Voldemort lançando um jato de luz vermelha em direção ao peito de um Comensal da Morte — provavelmente Lucius Malfoy, a julgar pelos cabelos loiros atrás da máscara branca. O corpo dele se arqueou para trás, caindo no chão com um baque, e ele contorceu-se em agonia, enquanto um grito de dor dilacerante escapava de seus lábios.

Enquanto Malfoy tremia descontroladamente no chão, Voldemort voltou o olhar para Rose, os olhos ardendo com uma mistura de raiva e loucura.

— Você achou que estava ganhando algo com essa conversa tola, garota? — ele sibilou, quase delirante. — Eu tenho controle sobre a dor, o medo e a morte… Então, talvez você devesse começar a ter medo.

Rose respirou fundo, com a boca seca.

Havia um cheiro permanente de queimado no ar, o choramingo abafado de Malfoy, que ainda tremia no chão e era ignorado pelos colegas, e a presença sufocante da raiva de Voldemort. Tudo isso a fazia querer desistir, se encolher e chorar em posição fetal. Mas ela não podia.

Ela sabia que ele estava prestes a começar… seja lá o que fosse. Que toda aquela encenação era só um prelúdio do seu fim. Que a sua conversa fiada só estava adiando o inevitável. E, portanto, quando tudo realmente começasse, ela não teria mais chance alguma.

Mas o que ela deveria fazer? O que deveria falar?

Pense. Pense, agora.

Rose sentia seu corpo tremendo, o medo nublando os seus sentidos, seu coração martelando em sua garganta, enquanto ela raciocinava sobre o que mais poderia chamar a atenção de Voldemort, para fazê-lo continuar falando, fazê-lo prestar atenção nela, fazê-la ganhar um pouco mais de tempo.

Ele parecia descompensado, paranoico, instável. Ela podia ver as rachaduras no seu falso controle. A fúria contra Lucius, a maneira como ele tremia de raiva, seus passos cheios de ódio pela clareira, enquanto os Comensais da Morte permaneciam paralisados, assustados demais até para respirar um pouco mais alto.

Algo estava errado. Talvez, se ela pressionasse mais um pouco… Talvez, se conseguisse que ele duvidasse de todos ao redor, do ritual, dela mesma…

Mas não havia nada de relevante na sua mente.

E enquanto Rose pensava, Voldemort já estava instruindo alguns dos seus seguidores a desenharem estranhos símbolos com sangue em círculo ao seu redor. Eram runas, ela lembrou. E embora ela tenha forçado o olhar a permanecer no chão, ela não reconhecia nada.

Antes que pudesse forçar um pensamento coerente, Voldemort começou a falar novamente:

— Eu descobri o grande segredo de Albus Dumbledore. Um que nem mesmo seus aliados mais fiéis conheciam. Um que ele escondeu do mundo inteiro, acreditando que poderia usá-lo contra mim. — Ele caminhava novamente, desta vez para longe do círculo. — Mas agora, esse segredo pertence a mim. E com ele, esta noite será o marco da minha ascensão definitiva. Uma nova era.

Rose sentiu um calafrio percorrer seu corpo. Ela não fazia ideia do que Voldemort estava falando, mas estava claro de que não era algo bom.

— O que foi tomado de mim será restaurado. O que foi fragmentado, enfim, reunido. — A voz dele oscilava entre o delírio e a ferocidade. — Mas não neste recipiente, é claro.

Ela franziu o cenho, confusa. Mas então Voldemort parou, seu sorriso cresceu.

— Seu corpo era muito valioso quando havia magia nele, é claro. Mas agora você não passa de um aborto inútil. E… isto… é algo precioso demais para se perder. Precisa ser protegido. E para isso temos o receptáculo perfeito.

Voldemort então estalou os dedos, e dois Comensais da Morte arrastaram alguém de dentro da floresta.

Rose sentiu o mundo vacilar.

— Não… — ela sussurrou, o coração disparando de pavor.

Era Zoe. Sua amiga, Zoe Yorkie.

Ela estava acordada, mas tinha o rosto machucado, uma trilha de sangue seco na testa, um olho roxo e inchado, que dava a impressão de que ela mal podia ver. Mesmo assim, ela a encarou. Só por um segundo, mas foi o suficiente para Rose jurar que viu a culpa brilhar em seus olhos, embora não entendesse o porquê, quando ela estava na mesma situação que ela, se duvidar talvez até pior.

Os Comensais da Morte jogaram Zoe sem cerimônia dentro do círculo, ao lado de Rose. O corpo dela bateu rudemente contra o chão, e um pequeno gemido escapou de seus lábios.

Rose estremeceu, cada fibra do seu corpo exigindo que ela alcançasse a amiga e tentasse ajudá-la. Mas ela estava amarrada e, pior do que isso, Zoe não levantou a cabeça para olhá-la novamente mais nenhuma vez.

— Zoe? — Rose chamou, a voz embargada, seu corpo se contorcendo enquanto ela tentava rastejar em sua direção. — Zoe! Você tá bem? Olha pra mim! Fala comigo, por favor!

Zoe mantinha os olhos fixos no chão, os ombros curvados, o rosto meio escondido pelos cabelos sujos. Era impossível saber o que se passava por trás daquela expressão imóvel. O que estava acontecendo?

Voldemort observava a cena com uma diversão mal disfarçada, os olhos brilhando com malícia.

— Que reencontro comovente. — Ele sibilou, com um sorriso enviesado. — As melhores mentiras são as que se parecem com verdade, não são?

Voldemort caminhou lentamente em direção à Zoe, que se encolheu em seu lugar, tentando se afastar das mãos esqueléticas do monstro.

— E pensar que você confiou nela com tudo. Cada segredo. E ela não foi capaz nem de te dizer o próprio nome. Ah… você não sabia? — Ele inclinou levemente a cabeça, fingindo surpresa. — O que você acha que ela fazia enquanto você dormia, Primrose Potter? Quando chorava, pateticamente, sobre aquele namorado sangue ruim? Ou sobre o vampiro idiota que era obcecado por você?

Ele virou-se para Zoe com uma expressão cruel em seu rosto.

— Essa sua querida amiga não é apenas uma doce coincidência que você encontrou em Forks. Ela é sangue do meu sangue. Delphini Riddle. Filha bastarda de Bellatrix. Fruto de uma traição, é claro, e por isso escondida da vista de todos. Uma semente esquecida nessa cidade trouxa e patética, entre uma família de sangues ruins… todos mortos agora, naturalmente.

Zoe choramingou ao lado de Rose, encolhendo-se cada vez mais em seu lugar. Voldemort ignorou as lágrimas da filha, em vez disso levantou-se e ergueu os braços, triunfante.

— E então, ela se deparou com um tesouro. Completamente ao acaso. Você, Primrose Potter. Como eu tive tanta sorte? — Ele gargalhou. — E finalmente, ela me serviu. E me serve como eu sempre soube que serviria.

Ele se abaixou em frente às duas, os olhos se movendo lentamente de Rose para Zoe.

— Você me contou tudo, não foi, querida filha? Onde ela ia. O que sentia. Seus medos. Sonhos. Cada pequena coisa que acontecia com ela, por mais ridícula que fosse… como uma boa filha faz.

Rose sentiu o mundo ruir sob os próprios pés, mesmo estando presa ao chão. Seu peito parecia apertado, como se o ar de seus próprios pulmões tivesse sido arrancado à força.

Não. — A voz dela saiu baixa e partida. — Você está mentindo. Você está mentindo! A Zoe nunca faria isso comigo… — Ela virou-se com desespero. — Zoe? Zoe, por favor… diz alguma coisa. Olha pra mim. Me diz que isso não é verdade.

— Não, Rose. — Zoe finalmente ergueu o rosto, o rosto manchado com lágrimas, o queixo trêmulo. — Eu sabia. Eu sempre soube de tudo.

Por quê…? — Rose sussurrou, sentindo o coração quebrar dentro do peito. — Zoe… como você pôde?

Zoe desviou os olhos por um instante, as lágrimas caindo em silêncio, uma após a outra.

— Eu fiz o que eu tinha que fazer.

O quê? Mentir pra mim por anos? Ser uma traidora? — A voz de Rose subiu, trêmula. — Você era minha amiga! Eu confiava em você! Eu te amava como uma irmã!

— E eu te amava também! — Zoe gritou, num rompante. — Mas eu tinha que fazer isso, Rose. Você não entende. Eu achei que era capaz de te proteger, se… se fizesse tudo o que ele me pedisse. Mas eu falhei. Eu falhei. Eu sinto muito. Me desculpa. Me desculpa.

Rose a olhava em choque, o estômago embrulhado, como se o mundo tivesse ficado de cabeça para baixo e o chão estivesse prestes a desaparecer debaixo dos seus pés. Ela não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo. Rose olhava para Zoe e não conseguia reconhecer a própria amiga.

Primeiro Bella. E agora Zoe. Rose só queria poder estar na sua casa, se esconder debaixo dos lençóis da sua cama e chorar.

Zoe baixou a cabeça outra vez, os ombros tremendo.

— Eu não queria que terminasse assim. Sinto muito, Rose.

Voldemort observava a cena em silêncio, quase entediado, enquanto concedia alguns segundos para o drama se encerrar antes de prosseguir com o que importava de verdade.

— Chega dessa bobagem — Ele zombou com desdém, e ergueu a varinha em direção aos estranhos símbolos desenhados ao redor do círculo na terra. — Chegou a hora.

Um arrepio percorreu a sua espinha quando Voldemort começou a murmurar palavras em uma língua que Rose não conhecia. O próprio ar ao redor da clareira parecia mais quente, o vento soprou ruidosamente e as sombras se esticaram em volta deles como dedos famintos.

Rose fechou os olhos e esperou.

Não restava muita esperança em seu peito naquele instante. Então, em vez de pensar em uma solução, ela pensou em Paul.

Ela pensou no sorriso dele, no seu jeito direto e bruto de dizer as coisas, na gentileza que ele só reservava para ela. No calor da sua pele, na maciez dos seus lábios, nos silêncios confortáveis. Ela pensou no jeito como ele a olhava, como segurava suas mãos, como dizia que a amava. Pensou no café que eles iam juntos, nas caminhadas em First Beach, nas noites jogados no sofá vendo filmes até tarde. Nas horas trocando mensagens de texto, nas tentativas frustradas de ensiná-la a surfar, nas noites passadas juntos.

E pensar que ela nunca mais sentiria os braços dele ao redor de seu corpo, nunca mais sentiria a respiração dele contra a sua nuca enquanto dormiam juntos em sua pequena e apertada cama de solteiro, nunca mais ouviria a voz dele sussurrando em seu ouvido.

Ele com certeza estava procurando por ela agora.

Mas não ia chegar a tempo.

Rose inspirou lentamente, tentando memorizar os últimos momentos juntos, tentando implorar aos deuses — ou quem quer que fosse — que dissesse que o amava, e que sentia muito. Sentia muito por ter demorado tanto para estar com Paul novamente. Sentia muito por ter perdido tanto tempo separados. Sentia muito por não poder voltar.

E então, algo dentro dela estremeceu.

E foi aí que a dor começou.

No início, era um leve puxão na sua testa. Bem ali, onde a sua cicatriz sempre esteve, embora não doesse há anos. Agora, no entanto, ela queimava.

Era uma dor afiada e cortante, como se uma garra invisível estivesse tentando atravessar a pele de dentro para fora.

Rose apertou os olhos instintivamente, o corpo tensionado contra as cordas, tentando libertar as mãos apenas para apertar a testa que latejava com força absurda, como se tivesse um segundo coração batendo ali.

A dor cresceu, expandindo-se como uma rachadura. Mas não se espalhou para os olhos ou para o rosto, apenas ficou ali, concentrada e terrível, como se o universo inteiro tivesse se reduzido àquele ponto em sua testa.

No fundo da sua mente, ela conseguia registrar Zoe falando com ela.

Rose… — Era uma voz fraca, como um sussurro atravessando o ar quente e distorcido, embora Rose soubesse que ela só achava que era assim, porque a dor ocupava boa parte da sua atenção. — Rose, sou eu… Eu sinto muito… Eu nunca quis isso para você… Mas eu vou te ajudar, eu prometo… Confie em mim novamente, por favor…

Rose gemeu de dor, os dentes cerrados, enquanto ela se esforçava para não gritar. Mas quando a dor se intensificou, atravessando a carne, o osso, a alma… ela não aguentou.

Ela gritou.

O som rasgou a sua garganta, e por um momento tudo o que existia era aquela dor incandescente tentando se romper. Seu corpo arqueou com violência. As veias de seu pescoço se destacaram, os pulsos se apertaram ainda mais contra os laços que a prendiam.

Sua cicatriz queimava como ferro em brasa, e havia algo ali que se movia dentro dela. Algo que gritava junto, mas não era ela.

Rose sentiu como se mãos geladas estivessem abrindo seu crânio. Dedos longos e ossudos pressionando cada lado de sua cabeça, buscando a junção das placas ósseas, forçando-as a se separarem.

Sua cabeça era um ovo trincado por dentro; vibrando e rangendo sob uma pressão invisível. Um frio lancinante se espalhou da base da nuca até a testa, e então… veio o rasgo.

A dor foi tão aguda que sua visão se apagou por um segundo. Era como se algo estivesse sendo puxado de dentro do seu cérebro com ganchos.

Em algum momento ela ouviu seu próprio nome. Mas quem disse isso? Quem estava falando? O que estava acontecendo? Quem era ela?

E então, tudo parou.

No mesmo instante, estalos soaram pela clareira. Voldemort girou, os olhos faiscando de ódio e surpresa. Alguns Comensais da Morte cambalearam para trás. E então, vozes preencheram o ambiente:

— Protejam o círculo!

— Avada Kedavra!

— Estupefaça!

— Expelliarmus!

Luzes coloridas brilhavam sobre a cabeça de Rose, explodindo como fogos de artifício sob um céu estrelado.

Mas nada fazia sentido.

O som vinha abafado. Como se alguém tivesse colocado o mundo dentro de um aquário e fechado a tampa.

Onde ela estava mesmo? Ela havia caído dentro d’água?

Sim. Era isso. Ela devia ter caído no mar quando estava na praia com Paul. O mar era frio, escuro e calmo, não era?

Ela piscou, e tudo estava torto. O chão estava virado para cima ou era o céu que havia caído?

Um novo feixe de luz brilhou por cima dela. Estrelas cadentes coloridas, verdes, vermelhas e azuis. Pintavam as árvores como se o mundo estivesse pegando fogo em cores.

Ela tentou mexer o braço. Tentou virar a cabeça. Então, sentiu algo puxando seu ombro.

Uma voz atravessou a água.

— Rose…

Ela virou os olhos lentamente. Quem estava falando?

— Rose, me escuta. Eu estou aqui. Eu estou cortando as cordas.

Cordas?

Ah, sim. Ela estava presa, não era?

Era verdade.

Ela se lembrou de repente da dor, do ferro em brasa na testa, das mãos em seu crânio. Ela se lembrou de Zoe.

— Você precisa correr, tá? Vai… corre. Agora.

As cordas cederam. Rose caiu para o lado como uma boneca de pano, e Zoe a segurou, suas mãos impacientes e nervosas.

Levanta, por favor! — Zoe chorava, ou talvez fosse o céu molhando sobre elas. Estava chovendo? — Eles vão matar você se ficar aqui!

Rose tentou se levantar, firmar os pés. Mas as árvores estavam dançando, girando diante dos seus olhos como se ela estivesse presa dentro de um carrossel.

Ela deu um passo cambaleante para frente. Suas pernas tremiam, seu corpo feito de vidro prestes a desmoronar. Mas ela precisava sair dali, não era?

As luzes coloridas explodiam ao seu redor, cada uma com um som diferente, como se o ar estivesse sendo rasgado em fatias.

Ela virou o rosto para o lado, sua visão tentando encontrar um foco. Mas só viu corpos no chão. Máscaras quebradas. Roupas chamuscadas. Havia sangue.

A respiração de Rose falhou, presa no meio da garganta. Seus joelhos tremeram.

Vai, Rose! — Zoe gritou atrás dela, com a voz trêmula de medo e desespero. — Corre!

Suas pernas não queriam, mas ela as obrigou. A clareira ficou para trás. As sombras se fecharam em volta das árvores, e o mundo se tornou um túnel escuro de folhas e galhos.

Mas Rose parou. Só por um segundo. Só para saber se Zoe vinha junto, se ela também estava correndo.

Foi o suficiente para ver a luz verde cortar o ar, e atingir Zoe no peito.

Rose arregalou os olhos, aterrorizada. O corpo da sua amiga — ela ainda podia chamá-la assim? — foi arremessado para trás como uma marionete que teve os fios cortados, os braços abertos no chão, os olhos arregalados, a boca entreaberta sem som algum.

Então, Rose começou a correr.

Notes:

Eu pensei nessa reviravolta desde o início e estava ansiosa para chegar aqui! 😂

Sim, algumas coisas foram diferentes. No cânone, Harry descobre sobre o pai de Voldemort no quarto ano, durante a terceira tarefa; e sobre a mãe dele durante o sexto, quando Dumbledore lhe mostra as memórias na penseira.

Como eu queria que Rose tivesse material de chantagem para perturbar Voldemort, então fiz com que Tom Riddle tenha falado mais do que deveria. Ele sempre gostou de falar muito, então isso é completamente possível. 🤔

E sim, Voldemort matou Dumbledore e, de alguma forma, descobriu que ele já sabia sobre a horcrux. Não se preocupe, vou explicar isso depois. Então, ele foi atrás de Rose para transferir a horcrux para o corpo de Zoe. Isso ficou claro?

Obviamente, o ritual não deu certo, porque outros bruxos apareceram, então decidi não me aprofundar muito em detalhes do ritual, porque Voldemort não foi tão longe.

Por fim, vale lembrar que a existência de Delphini foi completamente distorcida aqui. Ela nasceu antes do halloween de 81 e não durante a segunda guerra como no cânone. Talvez, em algum momento, eu possa escrever uma one-shot e me aprofundar nisso. Mas é improvável que eu retorne neste tópico agora.

Estes momentos finais têm sido mais difíceis de escrever, especialmente porque há ainda muitas pontas soltas a serem respondidas, mas lentamente tenho conseguido transformar minhas ideias em ações. Espero que vocês tenham gostado! ❤️

Chapter 52: CINQUENTA E DOIS

Notes:

ATENÇÃO: tem violência, briga e morte de personagem aqui.

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Seus pés mal tocavam o chão. A cada impulso das duas pernas, Bella atravessava metros adiante com uma graciosidade absurda. As árvores passavam por ela em imagens perfeitas, em vez de sombras disformes ou borrões no canto da visão.

Mesmo fugindo, mesmo com a mente tomada pela urgência do medo, uma parte do seu cérebro não conseguia deixar de se maravilhar com a sensação de poder enxergar tudo. Cada gota de orvalho escorrendo nas folhas, o movimento de um pequeno inseto na árvore da esquerda. Um cervo, a mais de duzentos metros, virando o rosto para encará-la, suas narinas dilatando ao captar seu cheiro. Um tronco podre, abrigando besouros que brilhavam sob a casca. Era tudo nítido e detalhado, mesmo correndo a quase 160 quilômetros por hora.

E mesmo assim… não era rápido o suficiente.

Nada daquilo deveria estar acontecendo. Riley não era para ter morrido.  

Eles tinham um acordo simples: Bella o ajudaria a encontrar Rose e, em troca, ela receberia uma poção rosa para reconquistar Edward, garantir de volta o que era seu por direito. Riley também havia prometido ajudá-la a voltar discretamente para os Cullen, garantindo que ninguém desconfiasse do seu envolvimento.

Estava tudo sob controle, até a bruxa de olhos loucos aparecer.

Ela exigiu que eles levassem o corpo inerte de Rose até East Quilcene. Bella hesitou. Ela nem deveria mais estar ali. Mas, a bruxa agarrou seu braço com força, e o ar se torceu numa violenta distorção de espaço, um redemoinho de cores e sons estridentes. Bella mal teve tempo de perceber que estavam se teletransportando antes que o chão desaparecesse sob seus pés.

O mundo materializou-se novamente em um piscar de olhos, e de repente, eles já estavam em uma clareira aberta no meio da floresta. Ali já era East Quilcene?

No centro, havia um círculo riscado no chão de terra, onde depositaram o corpo desmaiado e Rose, enquanto Riley permanecia na borda, os ombros rígidos, os punhos cerrados, seus olhos sem deixá-la fora de vista nem mesmo para piscar. Bella ainda não entendia qual era a relação entre eles. Rose traía Paul com Riley? Duvidoso. Mas Bella também não conhecia sua prima tão bem assim, afinal quantas vezes tinham se visto depois que ela se tornou imortal?

Havia estes estranhos homens com capuzes e máscaras brancas murmurando entre si, parados ao redor do círculo, enquanto aguardavam algo acontecer. Bella aproveitou a distração e começou a deslizar lentamente para trás deles, tentando se fundir às sombras das árvores.

Ela tinha que ir embora. Os Cullen já deveriam estar a caminho, e seu plano perfeito desmoronaria.

 

E se eles encontrassem Rose enquanto ela ainda estava ali?

 

E se todo o seu plano cuidadoso fosse por água abaixo?

 

E se Edward… deixasse de amá-la?

 

Seu coração morto pareceu contrair-se no peito. Edward não havia tomado a gota semanal. Os efeitos poderiam estar enfraquecendo naquele exato momento, seu amor derretendo como neve sob o sol. E se o que ele sentia por ela começasse a evaporar? E se tudo o que haviam construído se tornasse algo passageiro?

Estava tudo errado. Tão errado.

E então tudo aconteceu depressa demais para fazer sentido. Um homem bonito se aproximou de Rose, todo cheio de sorrisos e voz macia, e, por um segundo, Bella pensou que talvez estivesse tudo resolvido.

Mas então o rosto dele… derreteu.

Os traços escorreram, revelando uma pele pálida e esticada, com fendas no lugar do nariz e olhos assustadoramente vermelhos. Como se ele fosse um vampiro, embora ela soubesse que não era. 

Houve palavras, histórias e farpas sendo trocadas, mas Bella mal registrava o conteúdo. Ela estava preocupada demais com a própria fuga para se importar com o que estava sendo dito.

E então… Riley estava morto.

Foi fácil demais. A bruxa de olhos loucos apenas apontou um graveto na direção dele, e o corpo de Riley explodiu em chamadas. Num instante ele estava ali; no outro, só havia uma pilha de cinzas.

Ela sabia que seria a próxima, então Bella correu.

Durante todo o trajeto — quarenta e cinco minutos de corrida constante e sem parar nem por um segundo —, o medo batia contra seu peito com insistência.

Ela precisava de um plano B. Talvez um plano C também.

Talvez pudesse dizer que foi sequestrada. Que tentou salvar Rose, mas foi dominada, mantida refém. Os bruxos eram diferentes, afinal. Ela poderia falar de poderes anormais e gravetos lançadores de chamas, não era exatamente uma mentira.

Ou ela poderia dizer que correu à procura de Rose, sua querida prima, e se colocou em perigo para investigar, descobrir informações importantes, e as coisas saíram de controle. Sim. Isso parecia mais crível. Elas haviam se reconciliado recentemente, afinal. Que bom que Bella fez isso. Ela sabia que estava certa em ter se aproximado e inventado um pedido de desculpas.

Edward não podia ler a mente dela. Isso ainda jogava a seu favor. Se conseguisse manter a voz firme e os olhos tristes, tudo ficaria bem. Ele sempre acreditava nela.

Jasper, por outro lado, podia ser um problema. Ele seria capaz de sentir seus sentimentos hesitantes, captar a oscilação das palavras, talvez conseguisse detectar a dissonância mesmo que ela se cobrisse de justificativas.

Talvez se Bella usasse esse sentimento para dar alguma desculpa, fingir que estava muito abalada para conversar. Alimentar algum tipo de culpa por ter deixado Rose para trás. Ela podia fingir que estava devastada, em choque.

Sim, isso poderia funcionar.

As pessoas tendem a perdoar mais facilmente quando veem que você se culpa demais. É mais fácil amar a vítima frágil e desestabilizada, afinal. Ninguém questiona quem está chorando no canto da sala.

E, se ela mesma acreditasse com força suficiente na própria versão dos fatos, então tudo estaria resolvido. Nem mesmo Alice seria capaz de ver a sua mentira.

Bella só precisava treinar a sua história.



 

 

No entanto, não houve tempo para isso, já que o som de passos fez Bella instintivamente se virar. Uma figura surgiu diante dela tão rápido que não passou de um borrão, os cabelos eram flamejantes em contraste com a pele pálida e os olhos intensamente vermelhos.

Por um milésimo de segundo, Bella achou que fosse Rose. O choque fez seu corpo vacilar e a culpa tentou subir pela sua garganta como ácido, apenas para ser substituída pela compreensão de quem realmente estava ali.

— Victoria…

Bella estava congelada no lugar, os olhos arregalados, o corpo tenso demais para reagir. Do outro lado, há menos de duzentos metros de distância, Victoria a encarava sem piscar.

Presa em seu olhar, os planos de segundos atrás desapareceram no fundo da sua mente. Bella não se importava mais com isso. A fuga foi abandonada, o mundo parou e, de repente, nada além disso parecia importar.

Ela só conseguia pensar em como sairia viva dali.

— Ora, ora ora. Parece que hoje é o meu dia de sorte.

— O que você está fazendo aqui, Victoria? — Bella tentou manter a voz firme, apesar do medo que apertava seu peito.

Victoria, no entanto, pareceu perceber isso, e abriu um sorriso enorme, cheio de dentes.

— Você sabe exatamente por que estou aqui. Ou já esqueceu o que roubaram de mim?

— Não, claro que não. — Bella disse rápido demais, tentando soar empática. — Eu entendo perfeitamente.

— Entende? Você não entende nada. — Victoria zombou. — Eu vou ter muito prazer em arrancar a cabeça desse seu pescocinho…

Bella engoliu em seco, esforçando-se para pensar no que dizer naquele momento. Ela seria capaz de convencer Victoria a não matá-la?

— Mas será que vale a pena? James morreu, sim. Eu sei que deve ter sido terrível. Mas não fui eu ou Edward quem o matou. Você sabe disso, não é? Foram os outros… os outros Cullen… eles tomaram aquela decisão. Eles tiraram ele de você. Mas eu não.

Victoria estreitou os olhos. Bella podia ver que, apesar da fúria, havia uma hesitação se formando ali. Ela decidiu aproveitar isso.

— E se você me matar agora… vai mudar o quê? Vai trazê-lo de volta?

— Não. Mas eu vou vingá-lo. E vou sentir muito prazer fazendo isso.

— Não vai. — Bella rebateu, sem vacilar. — Acredite em mim. Não vai. Você vai continuar fugindo, sozinha, e… e cercada por arrependimento. Você quer isso pra você?

Victoria cerrou os punhos, mas não avançou. Bella achou que isso poderia significar um ponto positivo para ela.

— Você acha que é capaz de me comover com culpa?

— Eu não quero te comover. Só quero te lembrar que você ainda tem uma escolha. Mas se você ainda quiser seguir esse plano, eu posso ajudar você. Posso mostrar onde os Cullen estão, se é isso que você quer. Levar você até eles. Você pode ter a sua chance com os verdadeiros responsáveis pela morte de James. E então… eu e Edward sumimos. Você nunca mais vai nos ver.

Victoria a observou em silêncio, seus olhos faiscando com uma emoção que Bella não conseguia decifrar. Talvez ela estivesse considerando?

— Hm. — Victoria inclinou a cabeça levemente para o lado, refletindo. — Que interessante. Você seria capaz de trair o seu clã tão facilmente?

Bella congelou. Ela sabia que cada palavra que saísse da sua boca agora poderia significar o seu fim.

— Eu estou apenas tentando sobreviver. — Respondeu por fim, lentamente. — Nós não somos muito diferentes neste aspecto, não é?

Não somos? Eu não lembro de ser uma traidora. Mas, bem, na verdade eu gosto bastante disso. É delicioso ver alguém largar a máscara e admitir que, no fim das contas, só se importa consigo mesma.

— E se for? Você está lutando por um homem morto, Victoria. Nada do que você fizer vai mudar isso. Eu, por outro lado, estou viva. E estou oferecendo algo muito mais real.

Em vez de responder à provocação, Victoria começou a falar novamente:

— Riley me contou tudo, sabia? Ele confia tanto em mim. Muito mais do que em você. Ele achava você uma vampira patética. Nada mais do que uma coisinha humana com o sonho de brincar de monstro. Tão preocupada em ser amada que foi capaz de vender a própria prima pela promessa de pertencimento.

Bella sentiu-se vacilar por um breve momento. Ela queria tentar convencer Victoria a desistir, deixá-la ir embora, talvez direcionar a vingança dela para outra pessoa.

Mas, naquele momento, percebendo que ela sabia sobre tantas informações cruciais para colocar Bella como uma possível culpada de tudo, ela não poderia mais seguir a sua primeira ideia.

Victoria sabia demais, estava disposta a usar cada detalhe e, por isso, precisava ser morta.

— Eu não sei do que você está falando.

Victoria riu, divertida.

— Ah, você sabe sim. Mas tudo bem, continue mentindo. É o que você faz de melhor, não é?

— Eu nunca quis que as coisas chegassem até aqui. — Bella murmurou, enquanto seus olhos varriam a floresta, buscando algo que pudesse ser usado como vantagem. Mas não havia nada ali que fosse afiado o suficiente ou pesado o bastante. Nada que pudesse vencer a pele de um vampiro.

Bella já conseguia ver o seu plano indo por água abaixo. Ela nunca tinha matado um vampiro antes, e não fazia ideia por onde começar.

— Que pena… O que você achava que iria acontecer? Ser capaz de trair a própria família e ninguém notaria? — Victoria deu um pequeno passo à frente, seus olhos brilhando com diversão. — Até o Riley te achava nojenta. Ele me contou tudo, Bella. Me contou como você entregou aquela pobre garota tão facilmente. E ele teve que fazer o trabalho sujo para garantir a nossa parceria com as pessoas mágicas, é claro.

Bella piscou. Aquilo não fazia sentido.

De repente, Bella percebeu: Riley estava mentindo para Victoria, assim como mentiu para ela. Ele estava jogando dos dois lados.

— É mesmo? — Bella ergueu o queixo levemente, uma nova confiança surgindo em sua postura. — Ele te disse isso?

Essa era a vantagem dela. Ela só precisava que Victoria ficasse desestabilizada por apenas um segundo, e seria o suficiente para matá-la.

— Riley estava comigo o tempo inteiro, Bella. Ele me trouxe todas as informações sobre os seus preciosos Cullen. Ele estará aqui em poucos minutos, na verdade. E finalmente eu terei a minha vingança.

Bella sentiu um calafrio percorrer a sua espinha. Mas não pelo que Victoria havia dito. Era porque, naquele instante, ela sabia que Riley jamais aparecia. Ele estava morto.

E Victoria não sabia.

Então, Bella abriu um sorriso triunfante.

— Então, acho que você vai se decepcionar.

Victoria franziu a testa.

— Por que você está sorrindo?

— Riley não vai vir, Victoria. Ele não vai vir porque ele está morto. Eu mesma vi acontecer. Uma bruxa o reduziu a cinzas antes mesmo que ele entendesse o que estava acontecendo.

Victoria piscou, uma vez. Depois outra. Como se a sua mente estivesse tentando descobrir se aquilo era um blefe, ou se Bella realmente falava a verdade.

— Não. — Murmurou, concluindo que aquilo nunca tinha acontecido. — Não, você está mentindo.

— Sinto muito. — Bella respondeu, sem sentir absolutamente nada. — Ele usou você como me usou. Riley não era fiel a ninguém além dele mesmo.

— Cala a boca. — O sussurro de Victoria saiu trêmulo.

— Não existe aliança nenhuma. Ele mentiu para você, e você só perdeu o seu tempo. O que ele disse pra você? Que estava me usando para conseguir chegar até os bruxos? Que teria aliados poderosos para o seu exército? Que ajudaria você na sua vingança? Era tudo mentira. Eu quis entregar Rose. E ele estava obcecado por ela. Eu realmente não sei os porquês, e não me importo. Você e o seu exército eram apenas distrações para conseguir ele alcançar o plano dele.

Victoria tremia de raiva, cada músculo de seu corpo parecia pronto para romper a pele.

— Eu ajudei em tudo, é claro. — Bella continuou, impassível. — Mas eu só queria uma coisa em troca. Os bruxos me ajudaram a ter meu Edward de volta. Amor de verdade, entende? Algo que você perdeu, mas, bem, que eu ainda podia recuperar. Riley… bom, ele levou a Rose. Sinceramente, nunca perguntei por quê. Embora, no fim, ele tenha morrido. Então… não parece que ele tinha um acordo tão vantajoso assim.

Victoria cerrou os dentes. Um som baixo, um rosnado gutural, escapou de sua garganta.

— E você… bem, você não vai conseguir a sua vingança, vai? Tudo o que te restou foi… nada. Somente mentiras. Aceite, você perdeu, Victoria.

Victoria não respondeu. Seus olhos queimavam de ódio, e mesmo assim ela não avançou, não gritou com Bella. Apenas permaneceu ali, imóvel, com o corpo tenso, como se estivesse prestes a se desfazer em mil pedaços.

Bella tinha a chance perfeita para matá-la, mas em vez disso ela tomou outra decisão: girou os calcanhares pronta para correr, desesperada para deixar aquele confronto para trás e satisfeita que suas palavras tinham dado certo.

 

Mas então congelou no lugar.

 

Porque assim que virou o corpo, deu de cara com uma figura imóvel à sombra das árvores. Ele estava ali, parado, tão belo quanto na primeira vez que o viu, como se tivesse sido esculpido no mármore. Seus olhos negros estavam cravados nela, sem piscar.

 

Edward.

 

O coração de Bella, mesmo morto, pareceu afundar no peito.

Antes que pudesse reagir, os outros Cullen surgiram entre as árvores. Alice, Emmett, Jasper, Rosalie, Carlisle… uma pequena parte de seu cérebro se perguntou onde estava Esme.

Os lobos também estavam ali, todos eles aparecendo quase ao mesmo tempo, embora ninguém fosse tão rápido quanto Edward.

Ele sempre foi rápido demais. Sempre chegava primeiro.

 

Quanto ele tinha ouvido?

 

A garganta de Bella secou. Ela abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu. Só conseguia olhar para ele, e desejar, com tudo o que restava dentro de si, que a poção ainda estivesse fazendo efeito… porque era hora de atuar.

— Ah, Edward… — Sussurrou, forçando a voz a ficar trêmula e rouca. — Você veio… graças a Deus.

Ela cambaleou um passo à frente, como se o peso de tudo tivesse finalmente a vencido, como se seu corpo só agora estivesse cedendo ao alívio de vê-lo ali. Seus olhos permaneciam sempre grudados nos dele, tentando decifrar qualquer sinal, qualquer fresta na máscara fria e silenciosa que ele mantinha.

— Eu tentei… tentei manter todos seguros… — continuou, deixando a frase morrer como se fosse difícil demais explicar.

Não havia lágrimas, claro. Vampiros não choram. Mas Bella sabia que a ausência delas, naquele momento, só deixava tudo mais convincente. O olhar perdido, a voz hesitante, a postura curvada como se estivesse despedaçada por dentro.

Ela notou, pelo canto do olho, os olhares que se cruzavam entre os Cullen. Eles encaravam entre ela e Edward com um desconforto silencioso, provavelmente tentando entender o que estava acontecendo.

Jasper, por outro lado, a encarava com os olhos estreitos e a testa profundamente franzida. Era ele quem mais preocupava Bella.

Ela sabia que seus sentimentos estavam desalinhados, mas não tinha tido tempo para se preparar para esse momento antes de Victoria aparecer. Ela estava tentando parecer fragilizada e exausta, mas talvez Jasper não estivesse sentindo nada disso. Talvez ele sentisse apenas a dissimulação, a pulsação dissonante da sua culpa falsa e o medo de ser descoberta.

 

Bella não podia falhar logo agora. Não depois de tudo.

 

Mas talvez… talvez se distorcesse um pouco a verdade, ainda haveria uma saída. Talvez se escolhesse com cuidado cada palavra, com o tom certo, alguém ali acreditaria nela. Talvez Edward acreditaria nela.

Então, forçou um passo hesitante em direção a Edward e sussurrou:

— Eu posso explicar.

— O que está acontecendo, Edward? — Carlisle perguntou atrás dele, cauteloso.

— Você está bem, Bella? — Alice tentou intervir, dando um passo adiante. — Onde está a Rose?

Mas Edward não tirou os olhos de Bella. Ele não respondeu. Era como se as vozes ao redor fossem apenas ruído branco, ficando em segundo plano. Os músculos do seu rosto estavam tensos, congelados em uma expressão muito próxima da decepção.

— Eu não consigo nem reconhecer você. — Ele sussurrou, e as palavras atingiram Bella como um golpe físico.

Ela estremeceu.

— Eu só queria você de volta. Você não sabe como foi pra mim, Edward. Depois que eu acordei… eu esperei por você. E quando finalmente nos vimos, tudo o que eu recebi foi frieza. Você olhava pra mim como se eu fosse um erro.

Os olhos dele não vacilaram, mas a dor que surgiu neles era inegável.

— Eu precisava de tempo.

— Já tinha se passado mais de um ano. — Retrucou Bella. — Você me deixou sozinha. Eu precisava de você, e você me deixou sozinha.

Edward cerrou o maxilar.

— Nós somos imortais, Bella. Poderia ter se passado um século e você ainda estaria viva.

— Eu fiz o que achei que precisava fazer. — Bella engoliu em seco, tentando juntar as palavras. — Você me virou as costas, e eu só queria você de volta. E então, Riley apareceu. Ele prometeu que podia me ajudar a te reconquistar. Eu não sabia no que estava me metendo. Ele me manipulou. Eu achei que seria simples. E então… tudo deu tão errado, e eu não sabia o que fazer.

Ela não ousou mencionar Rose. Naquele momento, o nome parecia amaldiçoado e citá-lo só acarretaria em mais problemas.

Edward, no entanto, não recebeu o mesmo memorando.

— Foi por isso que você sequestrou a Rose, então? Para chegar até a mim? Como isso faz sentido, Bella?

O silêncio que se seguiu se estendeu durante alguns segundos.

Os vampiros ficaram congelados no lugar. Carlisle parecia preocupado, seu olhar carregado de decepção. Alice parecia apenas inquieta, incapaz de esconder o seu desconforto. Enquanto os outros demonstraram as emoções mais evidentes, seus olhos, normalmente serenos, eram sombrios e penetrantes.

Do outro lado, os lobos se enrijeceram, rosnados raivosos escaparam de suas gargantas. O lobo cinzento deu um passo à frente, os músculos contraídos, a mandíbula cerrada, seus olhos ardendo numa fúria silenciosa.

Bella deu um passo para trás, o medo apertando seu peito.

O espaço entre elas e aqueles que já foram a sua família parecia crescer a cada segundo, e ela sentia como se estivesse caminhando em uma corda bamba.

— Edward, eu precisava fazer isso… Ele só queria que eu ajudasse a levá-la… a Rose. E então, ele me daria um… um líquido, uma poção, que faria você lembrar do seu amor por mim.

Edward soltou um suspiro profundo. Seus olhos, ainda fixo em Bella, pareciam amargos e magoados.

— Eu não sei o que pensar, Bella. — Ele murmurou, confuso. — Eu percebo que não tenho estado completamente são nas últimas semanas. Isso foi obra sua, então? Me drogar para me fazer amar você? Você sabe o quão bizarro e inadequado isso é, Bella? E a sua prima? Como você foi capaz de trair a sua própria prima?

Bella pareceu ofendida, quase infantil, como se Edward estivesse sendo injusto.

— Mas eles se conheciam! Riley e ela… Ele nunca teria machucado ela, eu juro. E ele me prometeu algo em troca! Uma chance de ter você de volta! Você não entende, Edward? Você é tudo pra mim. Mais importante do que tudo.

Um rosnado ecoou pela floresta. Os lobos estavam em posição de ataque. O cinzento rosnava com tamanha intensidade que sua garganta vibrava.

Alice tapou a boca com a mão, chocada. Jasper deu um passo instintivo à frente, como se sentisse o descontrole emocional vindo de todos os lados. Rosalie cerrou os punhos. Emmett e Carlisle pareciam confusos e atordoados.

— Você não podia ter confiado em mim primeiro? Não podíamos ter conversado? Olha a situação em que você nos colocou!

— Mas eu não fiz nada! — Bella gritou. Sua voz saiu aguda, trêmula, e os olhos arregalados brilharam com um desespero que beirava o delírio. — Eu só queria você de volta! Riley disse que podia ajudar! E então ele a levou… eu não sabia que ele ia fazer isso! Eu juro que não sabia.

— Bella — Edward falou com frieza. — Você acabou de dizer que ajudou Riley. Você praticamente disse que Rose era apenas um meio para um fim. Por que você continua mentindo?

Ela cambaleou um passo para trás, os cabelos desgrenhados, os olhos enlouquecidos.

— Porque você não me entende! Eu amo você, Edward! Eu faria qualquer coisa por você!

O lobo cinzento perdeu o controle. Em um salto, avançou com as presas à mostra, rosnando como se fosse despedaçá-la. Foi contido apenas pelo lobo negro, o maior, que pulou na frente, se chocando contra ele com um baque alto.

Bella arfou, sem saber se ria ou chorava. Os olhos pulando de um Cullen para o outro, esperando que alguém a protegesse. Mas ninguém ali parecia pronto para salvá-la.

 

Nem mesmo Edward.

 

— Bella, você pode nos explicar o que está acontecendo? — Carlisle perguntou gentilmente, embora não houvesse mais nenhum vestígio de suavidade em seus olhos.

Ela piscou, e então começou a falar. Devagar. Como se tivesse mergulhado em um sonho confuso, uma lembrança que se distorcia a cada frase.

— Foi depois… depois que eu acordei pela primeira vez. Depois da mudança. Edward mal olhava pra mim, eu estava sozinha. Eu me senti… vazia. Como se o mundo tivesse perdido a cor. Vocês não sabem como é. Acordar e ficar solitária… E então, eu saí para uma caçada sozinha, e Riley apareceu. Ele me encontrou numa clareira perto de Seattle. Disse que me entendia, e que podia me ajudar. Eu estava me sentindo solitária e sem esperança, então eu acreditei, não é? Ele me manipulou tão facilmente. E eu… acreditei! Eu achei que podia confiar nele. Era só uma troca simples. Que mal isso podia fazer?

Bella começou a falar mais rápido, o ritmo acelerando à medida que as frases saíam.

— Rose era parte disso. Riley precisava dela por algum motivo. Algo com os bruxos. Ele disse que era seguro, que ninguém iria machucá-la. Ele só precisava dela rapidinho. Não tinha problema. E eu… eu disse que sim. Disse que ajudaria. Só era preciso uma distração, e o exército era perfeito, porque todos estariam focados nisso. Ninguém estaria olhando para Rose. E eu fiz. Porque ele me prometeu. Prometeu que me daria meu Edward de volta. Prometeu que ia fazer ele me amar de novo. E funcionou, não foi?

Ela olhou para Edward, sorrindo em sua loucura.

— Você voltou. Você me olhou com amor. Você me tocou novamente. E eu nunca fui tão feliz. E eu sabia que tudo valeria a pena.

Silêncio.

Até os lobos estavam imóveis.

Bella virou-se, o rosto ficando mais sombrio.

— Então, quando o dia chegou, eu levei Riley até a casa da Rose. Tudo estava perfeito. Mas então, uma bruxa apareceu e nos obrigou a ir com ela até East Quilcene. Eu não queria ir, eu queria encontrar você. E então, haviam bruxos lá. Homens com capuz e máscaras brancas! Eles mataram Riley! E eu fugi! E foi aí que Victoria apareceu. Ela queria vingança por causa de James. Ela achava que Riley estava com ele. Mas era mentira. Ele mentiu para Victoria. E ele mentiu pra mim também. Ele só queria Rose. Mas eu contei tudo pra ela. Eu disse a ela que…

Rose girou o corpo, erguendo a mão para apontar para Victoria. Mas parou.

O lugar onde Victoria estivera estava vazio.

— Não… — ela sussurrou. — Não, não, não, ela estava ali. Eu juro! Ela estava ali o tempo inteiro!

O lobo marrom rosnou, os olhos em alerta.

— Ela fugiu — Edward disse, calmamente. — Não precisamos nos preocupar com ela.

Como não?! — Bella se virou para ele, o rosto se contraindo de frustração. — Ela veio me matar, Edward! Ela quase conseguiu! Ela pode voltar! Você não entende? Nós precisamos ir atrás dela!

Edward continuava parado, imóvel. Seus olhos estavam escuros, insondáveis.

— Eu não acho que ela seja o problema agora, Bella.

As palavras bateram contra Bella como um tapa. Ela piscou, os lábios entreabertos, como se tivesse sido atingida por algo invisível.

E então olhou ao redor.

Todos pareciam estranhamente solenes. Carlisle a observava com gravidade silenciosa. Emmett estava imóvel, seu rosto inesperadamente impassível. Rosalie estava claramente furiosa, seus olhos ardendo com raiva. Jasper parecia uma corda esticada, analisando cada oscilação emocional com olhos tensos. Alice apenas desviava o olhar.

Os lobos, é claro, pareciam assassinos.

— O que está acontecendo? — Bella arfou, recuando instintivamente, as costas esbarrando contra uma árvore. — Edward? O que está acontecendo? Por que vocês estão me olhando assim?

O silêncio deles parecia uma faca cravada em seu peito

Vocês não podem me matar! — Ela gritou, em pânico. — Você não pode me matar, Edward! Você me ama, Edward!

Edward não respondeu. Seus olhos eram apenas um abismo indecifrável.

— Eu posso ajudar vocês! — Bella insistiu, sua voz ficando cada vez mais aguda e histérica. — Eu posso ajudar vocês a chegarem até Rose. Eu sei onde ela está! Eu posso levá-los até ela! Por favor, por favor, por favor… não façam isso, por favor…

 

Mas ninguém se moveu.

 

Eles não iriam atrás de Victoria.

 

Eles estavam olhando para ela.

 

Ela era o alvo.

 

O instinto foi imediato. Bella virou-se e correu, seus pés cravando na terra molhada, a floresta piscando ao seu redor como um borrão de sombras e galhos que batiam, inúteis contra sua pele de mármore.

Mas os lobos eram mais rápidos.

Houve um estalo, o som de algo rompendo atrás dela. Um rosnado feroz. Um corpo colossal colidiu com o dela.

O impacto a lançou ao chão com uma força que teria destruído qualquer ser humano. Bella rolou pela terra, seu braço se torcendo num ângulo impossível. A dor era inexistente, mas o horror era absoluto.

Antes que pudesse se levantar novamente, a mandíbula do lobo cinzento cravou-se na sua coxa, atravessando a pele como se fosse papel molhado. Ela gritou alto, o som rasgando a noite. Uma explosão de veneno correu pela ferida, o corpo tentando se regenerar mesmo enquanto era despedaçado.

Não! — Ela tentou gritar, mas a sua voz veio em soluços histéricos. — Por favor! Por favor!

Outro lobo avançou, enorme e em um tom claro que, em outro momento, ela teria achado encantador. Naquele momento, no entanto, ela sentiu seus olhos se arregalaram ao perceber o que o lobo estava prestes a fazer. Com uma mordida rápida, ele dilacerou o seu flanco, expondo as costelas brancas que pareciam esculpidas em pedra. O som era horrível: como pedra sendo partida ao meio, articulações estalando, e o tilintar quase metálico dos ossos rachando sob pressão.

Bella tentou reagir. Suas mãos se estenderam, tentando rasgar, lutar, sobreviver. Mas era inútil. Eram seis, sete lobos que a cercavam. A cada segundo, um novo pedaço de seu corpo era arrancado. O braço esquerdo foi arrancado do ombro com um estalo grotesco, voando como se não passasse de um pedaço de madeira apodrecida.

O pior de tudo, no entanto, não era a dor.

Eram os Cullen. Silenciosos e impassíveis, observando a luta sem se envolver.

Edward… — Ela tentou mais uma vez, apenas uma cabeça presa a um corpo dilacerado. — Por favor…

Mas sua boca já não conseguia formar palavras. Os dentes do lobo haviam arrancado parte de seu maxilar inferior. Ela sentia sua pele regenerando em câmera lenta, apenas para ser despedaçada outra vez.

E então, finalmente, o golpe final.

O lobo cinzento saltou sobre ela e, com uma força bruta, cravou os dentes no seu pescoço. E com ele, a última fagulha de si mesma.

Bella Swan ainda estava consciente quando sentiu a cabeça sendo separada do corpo. Quando sentiu o calor do fogo se aproximando da sua pele. Quando notou, em um lampejo final de consciência, que ninguém se moveu.

E que, no fim, por mais que tivesse implorado, mentindo e amado com tudo o que tinha… ela havia nadado com todas as forças, apenas para morrer na praia.

Sozinha, incompreendida e condenada.

Notes:

Bella Swan e Bella Lestrange, claramente melhores amigas em outra dimensão. É sempre uma maluca!

*

Eu tinha planejado o final da Bella há algum tempo, e mesmo assim acabei mudando de opinião várias vezes, pensando se valia a pena inserir uma redenção aqui. Mas percebi que eles, especialmente os lobos, nunca aceitariam essa traição de bom grado. Então, eu sabia que Bella teria que morrer.

Mas Victoria não precisava morrer, então coloquei o que ela faz de melhor, que é fugir. Talvez ele retorne daqui há algumas centenas de anos apenas para saber se Bella está viva e fique satisfeita em saber que ela não está. Ou ela pode apenas sumir e deixar Forks para trás.

E, claramente, Edward pegou a localização de Rose na mente de Victoria; além de Bella ter soltado a localização durante a sua divagação delirante.

Chapter 53: CINQUENTA E TRÊS

Notes:

Peço desculpas antecipadamente por toda a angústia que vem a seguir, mas devo alertar que este capítulo é pura violência, tortura e morte de personagem.

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Seus pés estavam cambaleando pelo chão, tropeçando em raízes invisíveis e buracos na terra. A cada passo, Rose sentia que travava uma batalha contra o próprio corpo. Os joelhos dobravam para os lados errados, os tornozelos torciam-se em ângulos estranhos, e ela tinha quase certeza de que estava prestes a se desmontar em milhares de pedaços.

As pernas não a obedeciam. Estavam moles, tortas e trêmulas. Membros que pareciam ter sido enxertados, pertencentes à outra pessoa. Os músculos se contraíam em espasmos involuntários, sacudindo-a sem aviso, ainda ecoando a dor da Maldição Cruciatus. A agonia não estava mais em sua forma plena, mas deixava rastros: choques sutis rastejando sob a sua pele, pequenas explosões ainda queimando na sua carne.

A cabeça latejava. Uma dor surda, constante, que ecoava dentro do seu crânio, como um tambor batendo em um ritmo acelerado. Bum. Bum. Bum. A pressão atrás dos seus olhos fazia tudo pulsar em tons de vermelho.

Havia um líquido quente e espesso escorrendo lentamente da cicatriz aberta em sua testa. O corte doía junto com a dor interna, e o sangue descia pelo seu rosto, misturando-se ao suor, colando mechas de cabelo na sua pele e manchando a gola da blusa. Ela sentia-o se infiltrar pelo tecido, pegajoso, úmido, um lembrete de que, embora ela estivesse ferida, ela ainda estava viva.

E, por isso, precisava continuar correndo.

Rose sabia que, se se entregasse à vontade de parar, se cedesse à tentação de se deitar no chão frio e deixar tudo acabar, ela não conseguiria mais se mover.

Então, ela não podia parar de correr.

O chão deslizava sob seus pés, instável como um tapete puxado de repente. As árvores balançavam ao seu redor, em círculos descontrolados que zombavam dela, girando e girando numa dança caótica.

Mesmo assim, ela continuava correndo.

Rose não tinha certeza para onde estava indo. A floresta era um labirinto vivo, e ela mal conseguia manter os olhos abertos de verdade. Ela deveria correr para a esquerda? Ou era a direita? Ela já tinha passado por aquela árvore? E essa pedra, não era a mesma de antes? Ou estava apenas imaginando?

Tudo parecia igual, como se ela estivesse correndo em círculos.

O desespero começou a subir pelo seu peito em uma onda sufocante, queimando-a de dentro para fora. Ela engoliu em seco, lutando contra a náusea que se formava em seu estômago, forçando o corpo a continuar mesmo sem ar, com o peito arfando sob pressão, como se a cada inspiração ela engolisse fossem pequenas facas de ar rasgando sua traqueia, perfurando sua garganta até sangrar nos pulmões.

O medo, no entanto, era mais forte do que a dor. O desespero era mais forte do que o cansaço. E o desejo de ver Paul novamente, de tocar sua mão, ouvir sua voz e saber que ele estava bem, era mais forte do que tudo.

Era isso que a mantinha de pé, mesmo quando seu corpo implorava para que ela desistisse.

Seu pé enroscou em outra raiz grossa e Rose caiu com força, o ombro atingiu o chão com um baque seco, o impacto arrancando o ar de seus pulmões como um soco. A visão se apagou por um segundo. Mas ela simplesmente rolou de lado com dificuldade, a respiração entrecortada, empurrou o chão com os cotovelos trêmulos e se forçou a levantar.

Deu alguns passos cambaleantes, os pés instáveis, antes de cair novamente. Desta vez foi um tombo feio, os joelhos esfolados rasparam na terra e o seu rosto quase afundou nas folhas úmidas. O gosto da lama invadiu sua boca, e um soluço áspero escapou pela sua garganta.

Ela não tinha certeza se o choro era de tristeza ou raiva.

Mesmo assim, se arrastou pelo chão, e se ergueu novamente. As pernas mal sustentavam seu peso, mas ela não iria parar. Não enquanto tivesse um mínimo de força para continuar. Não enquanto seu coração ainda estivesse batendo.

Enquanto corria novamente, Rose engoliu o choro. Não havia espaço para lágrimas agora, ela não podia se dar ao luxo de desmoronar. A dor ainda estava lá, entalada na sua garganta, comprimida entre as suas costelas, sufocando-a por dentro, mas ela não desistiria.

E ela não se permitiria pensar demais em Bella nesse momento, ou em como foi tão fácil para sua prima traí-la e entregá-la nas mãos de Riley. Como se o relacionamento entre elas não tivesse importância alguma. Como se o fato de serem família fosse irrelevante, completamente descartável.

Mas talvez Rose devesse ter esperado por isso. Não era a primeira vez que ser da mesma família não significava absolutamente nada. Os Dursleys também não foram assim? Eles não a trataram com indiferença e negligência? Eles não tinham o mesmo sangue correndo nas veias e, ainda assim, nunca se importaram com ela? Nunca ofereceram conforto, consolo, ou sequer o tipo mais básico de afeto? Ela cresceu sendo um fardo. Ela conhecia na pele o que era ser indesejada.

E embora eles tivessem ficado felizes com o fato dela ter perdido sua magia, no minuto seguinte eles a mandaram com uma passagem só de ida para o outro lado do oceano e nunca mais falaram com ela. Boa viagem. Não volte.

Então, será que eles realmente mudaram tanto assim? Ou ela só viu o que gostaria de ver?

Talvez esse fosse o problema de Rose. Ela sempre se permitia acreditar demais. Confiar demais. Sempre esperando que, dessa vez, seria diferente. E justo com Bella, com quem sempre teve uma relação atravessada, de desconfiança, de raiva reprimida. Logo ela. Porque na única vez que decidiu baixar a guarda, isso aconteceu.

E agora estava fugindo sozinha. E doendo por dentro em lugares que nenhuma ferida visível alcançava, tentando não pensar no que faria quando visse Bella novamente.

Havia Riley também, que era outra história dolorosa que ela realmente não queria explorar a fundo naquele momento. Ela nunca o amou da mesma maneira que ele a amava, é verdade. Mas isso não tornou mais fácil o fim. Pelo contrário, ela realmente acreditava que havia entre eles um tipo raro de respeito e cuidado mútuo. E que embora terminar tenha sido, sim, a coisa certa a fazer, ainda doeu deixá-lo. Doeu vê-lo se afastar com o coração partido.

Ela nunca imaginou que o reencontraria daquele jeito.

Como um vampiro.

A palavra ainda tinha um gosto amargo na sua língua. Ele parecia o mesmo, o mesmo rosto bonito, com traços gentis e olhos suaves. Mas havia algo tão errado. Como se o calor tivesse sido drenado dele. Como se Riley estivesse ali e, ao mesmo tempo, não estivesse mais.

Foi doloroso vê-lo assim, e pior ainda foi vê-lo morrer na sua frente, sem poder fazer nada para salvá-lo. Ela queria tanto entender. Será que ele escolheu aquele destino? Será que foi enganado? Será que apenas seguiu alguém que prometeu um sentido novo para uma vida que já estava rachando? Ele disse algo sobre tê-la de volta, mas nada disso realmente fez sentido.

E por mais que Rose soubesse que não foi culpa dela, uma parte sua ainda acreditava que talvez pudesse ter feito alto. Ter dito as palavras certas. Ter impedido Riley de se transformar em um vampiro. Ter percebido antes. Ter sido uma pessoa melhor, uma amiga mais atenta. Talvez ela devesse nunca ter perdido contato com ele, talvez não devesse ter ido embora sem olhar para trás, talvez devesse ter ligado para ele, ou enviado um e-mail, que seja.

E se nada disso fosse o suficiente na longa lista de traumas recém adquiridos de Rose, ainda havia Zoe.

Ou melhor, Delphini Riddle. Que porra era essa?

Essa traição doía de outro jeito. Zoe Yorkie foi uma das primeiras amigas de Rose na Forks High School logo depois da sua mudança. Quando tudo ainda era estranho e novo, quando o mundo parecia um grande vazio gelado, Zoe apenas se aproximou com seu sorriso fácil e suas piadas idiotas. Foi ela quem puxou Rose para o grupo, e quem a apresentou aos lugares e às pessoas.

Foi com ela que Rose aprendeu que uma vida trouxa não era tão ruim assim. Foi com ela que Rose se viu rindo pela primeira vez em semanas depois de perder a sua magia. Foi ela quem ficou do lado de Rose quando as coisas com Paul começaram, quando terminaram e quando voltaram; quando seu relacionamento com Riley aconteceu; quando todos as idas e vindas com Bella aconteceram; quando ela se preparava incansavelmente para se tornar médica; e durante todos os dias depois disso.

E agora, embora tudo parecesse artificial e falso, e Rose se sente profundamente traída, ela não conseguia deixar de se perguntar o porquê ela a salvou.

Por que foi ela quem arriscou tudo para tirá-la da clareira? Por que foi ela que tentou, que ficou, que correu riscos? Por que Zoe levou uma maldição da morte no peito de boa vontade apenas para deixá-la ir embora?

 

Nada fazia sentido.

 

A cabeça de Rose girava, latejando, e o nó na sua garganta apertava dolorosamente. As suas coxas ardiam por conta do esforço, e o ar entrava cortante em seus pulmões, seco e áspero. Mas ela precisava continuar correndo.

Só que o seu corpo não aguentava mais.

As pernas cederam de repente, o pé enganchando novamente em algo no chão e fazendo-a tropeçar mais uma vez. Mas, desta vez, não conseguiu se levantar imediatamente.

O impacto arrancou-lhe um grito abafado. Sua cabeça bateu contra o chão, a bochecha raspando na terra úmida. A dor explodiu na lateral do rosto, irradiando em ondas até a nuca. O mundo girou ao seu redor, como se ela tivesse sido puxada para dentro de um redemoinho.

Rose tentou se levantar novamente, mas os braços não obedeceram. Os músculos tremiam, exaustos, e os dedos enterravam-se na lama sem força. Um gemido frustrado escapou-lhe.

Ela não podia parar ali. Não podia.

 

Foi então que ela ouviu um som que congelou o sangue em suas veias.

Eram estalos secos. Galhos sendo quebrados. Passos vindo em sua direção.

Seu coração martelava tão alto que parecia querer escapar para fora do peito. Rose prendeu a respiração, tentando silenciar até os próprios batimentos, mas era inútil. Seu corpo tremia, a adrenalina correndo desenfreada pelo seu corpo causando-lhe náuseas.

Ela estava exposta. Sozinha. Fraca. Vulnerável.

 

O que ela poderia fazer?

 

Rose tentou se arrastar pelo chão. Puxou uma das pernas, depois a outra. Os joelhos se enterraram na terra, a respiração saía em arfadas curtas, entrecortadas de pavor. As mãos escorregaram no chão enlameado, braços tremendo sob seu peso, mas ela se obrigou a continuar. Mesmo que tivesse que sair dali engatinhando, com os braços em frangalhos e as pernas feitas de cacos. Mesmo se precisasse rastejar com a boca cheia de terra, se tivesse que deixar pedaços de si mesma para trás naquela floresta maldita, ela continuaria.

 

Ela precisava continuar.

 

Ou ia morrer ali.

 

Rose tentou se erguer mais uma vez, puxando o corpo com as palmas abertas e ensanguentadas. Um dos joelhos falhou. A dor rasgou por dentro como uma faca quente, mas ela mordeu os lábios para não gritar.

Mas então um galho quebrou muito perto.

Rose virou o rosto para trás antes que pudesse pensar, os músculos tensos em puro instinto de sobrevivência, o coração disparando em pânico, os olhos arregalados em busca de qualquer sinal. E por um instante, jurou ver uma silhueta entre as árvores, se escondendo entre as sombras.

 

Mas quando olhou para a sua frente novamente…

 

Ele estava ali.

 

A presença de Voldemort foi tão súbita, que seu cérebro demorou um segundo para entender o que via. Ele estava bem na sua frente, como se tivesse brotado do chão, com os olhos vermelhos cravados nela. A varinha já erguida em direção ao seu peito.

Rose soltou um grito involuntário, enquanto caia de costas para trás, assustada. Seu corpo atingiu a terra com um impacto surdo, mas a dor nem sequer foi registrada. Só o terror, inundando cada nervo. Seus cotovelos e calcanhares enterraram-se no solo, e ela arrastou o corpo para trás em movimentos rápidos. Cada arfada era um gancho sob as costelas, a visão turvando-se em pânico.

Voldemort começou a caminhar na direção dela. Seu manto estava rasgado em vários pontos, e manchas escuras de sangue secavam em sua pele pálida, contrastando com a rigidez quase cadavérica do seu corpo, embora ela não tivesse certeza se aquilo era sangue dele mesmo ou dos bruxos da clareira.

— Você achou que podia escapar de mim? — Ele perguntou, a voz furiosa e sibilante. — Minha filha inútil pode ter sido uma traidora, mas ela já serviu ao seu propósito. Ela pagou por suas ações. E você… será a próxima…

Um sorriso torto e desdenhoso curvou seus lábios finos, enquanto ele avançava devagar em sua direção. Sua atenção estava toda focada nela, os olhos quase brilhando.

— Você não entende, não é? Fugir de mim é inútil. Você pode tentar correr, se esconder, gritar por socorro, mas eu sempre vou estar um passo à sua frente. Sempre.

Ele se abaixou lentamente, com uma lentidão torturante. Seu rosto pálido se aproximou do de Rose com uma calma que era irritante, como se aproveitasse cada segundo da angústia que via nos olhos dela.

A varinha, imóvel na mão dele, tremia levemente pelo esforço contido, e Voldemort a moveu devagar até tocar a pele fina do pescoço de Rose.

— Essa vida que você pensa que tem… que você tanto insiste em preservar… — continuou, sua voz cheia de ódio. — é apenas um fio que eu posso cortar a qualquer momento. E você sabe disso. Então, por que continuar lutando?

Ele deslizou a ponta da varinha lentamente, quase sentindo prazer com o medo dela. Rose sentiu as próprias veias pulsando contra a madeira da varinha.

— Eu poderia simplesmente… acabar com você agora mesmo. — Fez uma pausa, seus olhos vermelhos fixos nos dela, absorvendo o pavor que crescia ali. — Mas não. Ainda não.

Voldemort inclinou-se ainda mais, até que seu rosto quase tocasse o de Rose.

— Eu quero destruir você. Quero que o medo corroa cada pedaço de esperança dentro de você, até não restar mais nada. — A varinha dele pressionou um pouco mais firme contra a pele do pescoço. — Quero fazer você implorar por misericórdia. Suplicar pela morte.

— Eu nunca me sujeitaria a isso. — Rose cuspiu.

Ele riu baixinho, divertido.

— É impressionante, realmente. Essa mania patética de resistir até o fim. Como se fizesse alguma diferença. Como se isso fosse lhe salvar. — A varinha pressionou com mais força, a ponta gelada afundando levemente na carne. — Você vai gritar. Vai chorar. Vai se contorcer no chão. E então, quando estiver à beira da morte, suplicará por ela como uma criança. E eu vou aproveitar cada segundo disso.

Rose engoliu em seco, aterrorizada, mas não desviou o olhar.

Voldemort, então, se aproximou ainda mais, o rosto encostando quase na lateral da cabeça dela, sussurrando em seu ouvido.

— Eu vou desenterrar todos os seus medos. Fazer você reviver cada perda. Eu posso transformar suas memórias em instrumentos de tortura.

A varinha deslizou para o queixo dela, levantando seu rosto com um toque lento.

— Posso obrigá-la a ver o corpo de sua amiguinha mais uma vez. Posso mostrar seu pai patético, sua mãe sangue-ruim, seus amigos idiotas, seu namoradinho de sangue sujo… todos eles morrendo. Um por um. E tudo por sua causa. Porque você não colaborou… Se fosse mais inteligente, teria aceitado seu destino, como um bom recipiente faria… Mas você luta contra mim . Então, terei o prazer de acabar com você… Eu tenho outras salvaguardas, eu viverei… Você não pode dizer o mesmo.

Rose estremeceu, sem realmente entender o que Voldemort queria dizer com as suas divagações sem sentido.

— Faça o que quiser. — ela sussurrou, a mentira rasgando sua garganta. — Pode me matar, eu não me importo. Você não me assusta.

O sorriso de Voldemort se estreitou e, sem dizer mais nada, ele apenas ergueu a varinha novamente em direção ao seu pescoço.

A luz na ponta pulsou, brilhando com força em um tom azul pálido.

Diffindo — Rosnou Voldemort.

O feitiço cortante explodiu da varinha, e Rose viu a pequena luz se aproximar da sua jugular.

 

E então, em vez de abrir a sua garganta… O feitiço ricocheteou contra a sua pele com um estalo agudo. A fagulha de luz saltou para o lado e se apagou no ar.

Por um segundo, ninguém entendeu o que havia acontecido.

Nem mesmo Voldemort.

Seus olhos vermelhos piscaram uma vez, as sobrancelhas se franzindo com incredulidade e raiva. Como se, por um breve instante, ele tivesse sido puxado de volta para o Halloween de 1981. À lembrança da maldição que falhou.

Rose demorou apenas um milésimo de segundo para entender.

 

O anel.

 

Ela usava um velho anel prateado no dedo, que foi comprado em Seattle, junto com as pedras de proteção para a casa dos parentes da matilha, durante os preparativos para a batalha contra o exército de vampiros recém-criados. Era um artefato barato, usado por abortos para repelir feitiços simples, de acordo com a vendedora da loja. Ela comprou impulsivamente, sem realmente ter certeza se funcionava de verdade.

 

E, no entanto, aquilo foi tudo o que ela precisava.

 

Movendo-se com energia renovada e um desespero de quem não tinha mais nada a perder, Rose ergueu a mão e agarrou o pulso de Voldemort com um tranco seco. Os dedos dela se fecharam com firmeza em torno do braço magro dele, e ela torceu com toda a força que ainda tinha em seu corpo fraco. A surpresa foi visível em seu rosto. Os olhos vermelhos se arregalaram de surpresa.

Ele tentou reagir, mas não foi rápido o bastante.

Com a outra mão, Rose arrancou a varinha dos dedos dele num puxão selvagem. E então ela rolou para trás, arrastando-se pelo chão com cotovelos e calcanhares, tentando fugir para longe dele.

Mas Voldemort a alcançou com um rosnado feroz.

Uma mão fria agarrou sua perna com força, puxando-a de volta com brutalidade. E Rose reagiu gritando e girando o corpo com violência. Ela impulsionou a perna livre para trás, e então seu pé atingiu o rosto dele com um estalo satisfatório. A cabeça de Voldemort virou para o lado, sangue escorrendo do queixo ossudo.

Rose se libertou do aperto e continuou se arrastando com fúria cega, segurando a varinha dele com tanta força que seus dedos doíam.

Ela precisava de distância. Precisava se levantar. Precisava fazer alguma coisa.

Voldemort se ergueu num impulso, os olhos injetados de fúria, a respiração pesada, o rosto manchado de sangue. Ele avançou com um grito, tropeçando na pressa, mas alcançando Rose antes que ela pudesse se afastar muito.

As garras ossudas se fecharam outra vez em torno do tornozelo dela, e ele torceu com força.

Sua vadia!

Rose gritou, sentindo a dor explodir em ondas brancas, fazendo a sua pressão baixar vertiginosamente. Ela podia sentir os ligamentos esticando até o limite, os ossos do seu tornozelo rangendo sob a pressão.

Através do véu de lágrimas, viu o sorriso sádico de Voldemort.

O instinto tomou conta. Girou o corpo e, com a perna livre, chutou novamente, desta vez mirando com tudo no peito dele.

O impacto o fez cambalear por um segundo, mas ele não soltou sua perna.

Não tão rápido… — rosnou ele, enquanto a outra mão disparou em direção à varinha, tentando arrancá-la dos dedos dela.

Os dois rolaram pelo chão, emaranhados em lama, sangue e folhas secas, os braços se debatendo como numa briga de rua.

Por um milagre, Rose conseguiu se desvencilhar. Caiu de joelhos, o tornozelo traindo-a imediatamente com uma pontada de dor tão aguda que viu estrelas. Mas ergueu-se mesmo assim, os dentes cravados no lábio até sangrar.

Rose tentou correr, embora só conseguisse mancar. Cada passo era uma tortura. O pé direito mal tocava o chão, o tornozelo estava roxo e inchado, arrastando-se como um peso morto. A varinha ainda estava apertada entre seus dedos, parecendo inútil. O que ela deveria fazer com isso? Qual era o plano?

Ela, no entanto, não chegou a dez passos.

Voldemort a alcançou e, com um urro gutural, ele a derrubou com o peso do próprio corpo, empurrando-a ao chão mais uma vez. O ar escapou de seus pulmões com violência, mas foi o tornozelo que a fez gritar mais alto. Ela tentou se virar, lutar, chutar.

E então ele a socou no rosto.

Rose ficou paralisada por um segundo, incrédula.

O mundo girou, o lado direito de sua mandíbula latejava dolorosamente, mas, apesar da dor, um riso incrédulo começou a subir pela sua garganta.

 

Lorde Voldemort a socou na cara como um trouxa?

 

Ela tossiu sangue, cambaleando de volta para os cotovelos, o corpo gritando por descanso, a dor irradiando da sua perna, mas não conseguiu evitar a risada sufocada que escapou, estrangulada entre a dor e a adrenalina.

Voldemort estava ofegante, o manto rasgado, o rosto sujo e o punho tremendo de fúria. Ele parecia tão absurdo, tão ridiculamente humano e trouxa naquele momento, que mesmo prestes a morrer, com a cabeça latejando, o rosto inchado e o corpo em frangalhos… ela riu.

Ele ergueu o punho para mais um golpe, mas Rose já estava preparada.

Sua mão esquerda encontrou uma pedra no chão, a poucos centímetros da sua cabeça, e seu braço se moveu sem pensar. Ela agarrou a pedra com dedos trêmulos. E quando ele inclinou para ela, quando a sombra do punho dele caiu de novo sobre seu rosto, Rose acertou com tudo.

A pedra bateu contra a têmpora de Voldemort com um som surdo. Ele grunhiu de dor e caiu de lado, o corpo tombando sobre o chão.

Rose não perdeu tempo.

Ela rolou para longe, arfando, tossindo, as mãos ainda segurando a maldita varinha, o tornozelo inchado, a mandíbula dolorida, a testa ensanguentada. Se levantou trêmula, escorregando, mas se pôs de pé.

Antes que pudesse reagir, Voldemort se recuperou com uma velocidade surpreendente. Com um movimento ágil, mesmo ofegante, ele avançou como uma fera. Seu braço forte agarrou a perna machucada, puxando-a violentamente para o chão com um grito doloroso.

No mesmo instante, com a outra mão, ele agarrou a varinha que ainda tremia nas mãos de Rose e a puxou com uma força brutal.

— Tsk, tsk… — Ele estalou a língua, examinando a varinha como um pai disciplinando uma criança. — Patética…

Um arrepio gelado percorreu a espinha de Rose, uma sensação de desamparo e desesperança corroendo seu peito.

 

Por que ela não quebrou essa maldita varinha quando teve a chance?

 

Voldemort se levantou, segurando sua varinha como um troféu, os olhos queimando com um ódio feroz, enquanto Rose ficou ali, caída no chão, o peito subindo e descendo em arfadas desesperadas, sem forças para se mover e continuar lutando.

 

Ela sabia que ia morrer.

 

Neste momento, tudo aconteceu rápido demais.

 

Primeiro vieram os sons de rosnados, graves e ameaçadores dispararam pela floresta, fazendo o ar quase vibrar. Depois o som de patas esmagando folhas e galhos secos no chão com força bruta.

Antes que ela pudesse reagir, um vulto cinza avançou sobre Voldemort, fazendo-o cambalear para trás. Ele arfou com um assobio cortante, e seu olhar cheio de ódio se voltou para o novo agressor.

 

Um grande lobo cinza.

 

Paul.

 

Lobos e vampiros explodiram na clareira, cercando-os em um círculo fechado. Seus olhos brilhavam em chamas frias, os dentes reluziam à luz do luar, e seus rosnados se elevavam no ar como trovões prestes a desabar na terra.

Rose sentiu seu coração acelerar de forma quase dolorosa, a esperança correndo como fogo em suas veias, inflamando cada célula do seu corpo.

 

Mas Voldemort não recuou.

 

Ao contrário, abriu um sorriso terrível, contorcido de crueldade. Ele ergueu a varinha com dedos rígidos, apontando diretamente para Rose.

Bastou um segundo e duas palavras:

 

Avada Kedavra!

 

Um clarão verde surgiu no mesmo instante em que Paul se lançou com toda a força sobre o braço de Voldemort, arrancando o membro fora com um estalo úmido e tentando impedir o feitiço.

Mas era tarde demais.

Rose mal teve tempo de reagir, fechar os olhos, de fugir daquele instante. Ela apenas sentiu aquela sensação gélida da morte envolver seu corpo, e o mundo ficou em completo silêncio.

E então, no dia 31 de outubro de 2008, Primrose Potter morreu.

Notes:

Quando eu planejei esse momento, eu adorei a ideia de uma luta trouxa com Voldemort, porque, afinal, quem não gostaria de dar um chute na cara dele, não é mesmo? Então, isso é a realização dos meus pensamentos absurdos.

Brincadeiras à parte, não se preocupe, vai ficar tudo bem.

Chapter 54: CINQUENTA E QUATRO

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Rose sentiu a maciez sob seu corpo antes mesmo de abrir os olhos.

Ela estava deitada sobre algo incrivelmente agradável, como se tivesse sido colocada com cuidado sobre um colchão feito de um pedaço de nuvem. A textura sob suas costas era aconchegante e flexível, cedia levemente sob seu peso como um abraço íntimo, ajustando-se a cada curva de seu corpo como se quisesse embalá-la até o sono.

Era quente. Pulsava levemente contra a sua pele como se respirasse, atravessando as camadas de roupa e tocando a pele como um afago. Quando moveu os dedos, sentiu as pontas afundarem em algo que parecia feito de milhões de fios de seda, cada um mais delicado que um fio de cabelo. Enroscavam-se suavemente em seus dedos, faziam cócegas leves na pele exposta, se aninhavam sob a curva da nuca e a base da cabeça.

Seu corpo inteiro parecia flutuar. Não havia dor e nem rigidez.

Depois veio o som.

Um farfalhar leve e ritmado de folhas dançando umas contra as outras, embaladas por um vento preguiçoso. Ao fundo, havia o barulho de água correndo, calma e contínua. Acima dela, o chilrear de passarinhos, lançando notas brincalhonas no ar.

Rose sentia os sons como se fosse capaz de tocá-los. Não vinham só pelos ouvidos, chegavam até ela pela pele, pelo peito, pelos ossos. Vibravam gentilmente, massageando seu corpo por dentro, dissolvendo uma tensão que ela não conseguia lembrar a origem.

De vez em quando, algo menor se somava ao conjunto: o zumbido preguiçoso de uma abelha sobrevoando por perto, o estalo suave de algo caindo no chão macio, o bater das asas de uma borboleta cruzando o espaço acima de sua cabeça, o farfalhar de pequenos animais movendo-se entre as plantas, o som abafado de uma fruta madura soltando-se de um galho e caindo entre as folhas.

Rose inspirou fundo, e então abriu os olhos.

O que viu foi um céu claro, tão vasto que parecia não ter fim. Tinha um tom de azul tão profundo e intenso, que parecia líquido, derramado em camadas infinitas sobre o mundo; e perfeitamente imaculado, sem uma única nuvem.

Ela piscou rapidamente, seus olhos precisando se ajustar à intensidade daquela luz brilhante. E ali, deitada sob aquele céu eterno, ela não conseguia lembrar exatamente onde estava, nem como havia chegado ali.

Finalmente, Rose virou a cabeça para o lado e começou a perceber o que a cercava. À sua esquerda, um campo imenso de flores coloridas se espalhava até perder de vista, balançando suavemente com o vento. À direita, árvores tão altas que seus topos se perdiam em direção ao céu, tronco largos e galhos tortos que lançavam sombras sobre o chão, suas folhas ondulando ao toque da brisa. E abaixo de si mesma, uma grama alta tão macia quanto uma cama cheia de travesseiros.

Ela não sentia medo ou confusão pelo que não lembrava. A ausência de memórias sobre o que havia feito antes, ou sobre quem exatamente era, não a perturbava. Na verdade, parecia natural, como se ela tivesse largado um peso que havia carregado por eras sem saber, e chegado ali exatamente quando e onde devia estar.

Tudo o que Rose conseguia lembrar era seu nome.

Por enquanto, isso parecia ser o suficiente.

Rose se moveu lentamente, apoiando as mãos no chão macio sob seu corpo. Com cuidado, sentou-se, sentindo a suavidade do solo acolhê-la a cada movimento.

Ela estava deitada no meio de uma encruzilhada.

Dois caminhos dourados se abriam diante dela, traçando linhas perfeitas no chão, cercados por esse jardim infinito que parecia se perder no horizonte, estendendo-se sem fim em uma explosão de cores.

No fundo da sua mente, uma sensação tênue se fez presente. Era apenas uma leve pulsação, um lembrete gentil de que ela precisava fazer uma escolha.

Mas ela não se moveu.

Sentada entre aquela encruzilhada, Rose olhou para os dois caminhos dourados à sua frente, e sentiu que ainda não entendia porque precisava escolher. A sensação persistia em algum canto escondido da sua mente, mas não havia pressa agora.

Então, em vez de se levantar, ela voltou os olhos novamente para o jardim ao redor. As flores pareciam quase vivas, e algumas se destacavam em sua visão.

Ali estavam as prímulas, agrupadas como pequenos sóis sorridentes. Havia lírios também, altivos e elegantes, brancos como a luz da manhã. E havia rosas, em tons suaves de pêssego e creme, quase tímidas em sua beleza. E entre elas, surgiam as íris, com pétalas em um tom violeta, curvando-se entre as outras.

Enquanto observava, os olhos deslizando pelas cores e movimentos suaves das flores, Rose percebeu algo ao longe. Entre os lírios, as prímulas e as íris, quase escondida na curva do terreno, havia uma mulher sentada no chão.

Ela estava ali com tamanha naturalidade que, por um momento, Rose achou que fazia parte do próprio jardim. A túnica simples que vestia se misturava aos tons da terra e das flores. Os cabelos, pretos, longos e lisos, caíam sobre o ombro esquerdo em uma única trança grossa que repousava em seu peito, balançando levemente com a brisa.

Era uma mulher bonita. Sua pele tinha um tom quente e dourado, seus olhos eram de um castanho escuro profundo, e seus lábios estavam curvados para cima em um sorriso gentil e terno.

Rose não conseguia parar de olhar para ela. Havia algo naquela mulher que fazia seu peito se apertar, uma sensação quente de saudade, uma estranha certeza de que ela já conhecia aquele rosto. De que, em algum lugar da memória, já tinha visto aquele sorriso voltado para si.

Rose a observava, hesitante, como quem olha para um quadro que não vê há muito tempo. Havia algo ali, na cor dos olhos castanhos, na curvatura das mãos, em sua forma delicada, que puxava uma memória perdida.

— Você cresceu tanto, Rose.

No instante em que a mulher falou, as lembranças surgiram com a força de um rio rompendo uma represa.

Ela lembrou de uma sala pequena, uma mulher dançando descalça, rodopiando no chão de madeira enquanto um bebê sorria com os braços no ar. Ela lembrou do cheiro de bolo assando no forno, e uma mão firme e afetuosa a guiando entre a bagunça da cozinha. Ela lembrou de uma varanda banhada pela luz do sol, observando, pela fresta da janela da sala, enquanto um casal trocava olhares apaixonados e um beijo doce. Ela lembrou de uma mão penteando seus cabelos com paciência, enquanto cantarolava numa língua que Rose nunca soube traduzir.

Ela também lembrou de um carro no meio da neve branca, uma música tocando no rádio, enquanto duas mulheres cantavam alto.

As lágrimas já escorriam sobre suas bochechas quando Rose se pôs de pé, trêmula, o coração disparado, como se tivesse sido arrancado do peito e devolvido ao mesmo tempo.

 

Tia Sarah?

 

Suas pernas se moveram antes que ela pensasse. Rose correu, e se jogou no colo da tia como uma criança pequena exigindo carinho, afundando o rosto em seu pescoço, os braços envolvendo-a com força pela cintura, com desespero, com um amor que nunca deixou de existir.

E ela chorou como há muito tempo não se permitia.

Sarah a aconchegou em silêncio, os braços envolvendo sua sobrinha com a mesma naturalidade de sempre, como se não estivessem separadas há anos. Uma das mãos afagava os cabelos de Rose com lentidão, enquanto a outra permanecia firme em suas costas.

— Eu sinto muito… — Rose soluçou, as palavras abafadas contra a pele da tia. — Eu senti tanto a sua falta… Eu sinto muito pelo acidente… Eu estava lá… Eu deveria ter feito mais…

Rose soluçou, a culpa sufocante que ainda carregava no fundo da alma se espalhando em suas palavras. Sarah simplesmente a apertou com mais força.

— Shh… — Sarah murmurou suavemente. — Não há nada para se desculpar, minha florzinha.

Ela se afastou o suficiente para olhar nos olhos da sobrinha. Havia ali a mesma firmeza amorosa de sempre. A mesma paciência de alguém que um dia acalmou seus pesadelos, lhe deu conselhos e a ensinou a fazer biscoitos.

— Nada disso foi culpa sua, Rose. Às vezes as coisas simplesmente devem acontecer. E eu sei que dói, mas não é seu fardo para carregar. Você fez o que pôde, e eu sempre estive com você, mesmo quando não podia estar lá.

Um silêncio se estendeu entre elas, enquanto Rose ainda fungava.

— Agora, o que importa é que você está aqui.

Essas palavras, finalmente, fizeram Rose parar de chorar. Uma compreensão caiu sobre ela, afundando profundamente em seu peito. O choque silencioso cruzou seu rosto, uma realidade dolorosa e implacável sobre o lugar onde ela estava.

Porque, se a tia Sarah podia estar ali, tão viva e serena, sorrindo para ela… só poderia significar uma coisa.

— Você está morta. — Rose afirmou o óbvio.

Sarah simplesmente abriu um sorriso suave e paciente.

— Claro que sim, querida.

— Então… eu estou morta também?

— Ah, essa é a verdadeira questão, não é? — Seus dedos acariciaram a bochecha de Rose com ternura, afastando um cacho ruivo que caiu sobre seu rosto. — Eu acho que não. Mas há momentos em que se está tão perto da morte, que o destino permite uma pequena passagem.

— Passagem pra onde? — Rose insistiu, a testa franzida. — Isso daqui é o quê? O céu?

Sarah deu uma risadinha leve, como se a ideia fosse ao mesmo tempo encantadora e ingênua.

— É um lugar. Só isso. Um entre muitos. — Ela olhou para o horizonte florido como se procurasse as respostas ali. — Alguns o chamam de paraíso. Outros, de lugar de descanso. Há quem diga que é o fim da estrada. Ou talvez apenas um ponto de parada.

Rose acompanhou o olhar da tia, deixando os olhos passearem pelas flores, pelos caminhos dourados que se estendiam como rios de ouro cortando o jardim sem fim.

— Mas por que eu estou aqui? — ela perguntou em voz baixa. — Se eu não morri…

— Havia coisas que você precisava entender, Rose. Coisas que foram escondidas de você ou simplesmente ignoradas. E tudo começa com ele.

Sarah não disse o nome, mas Rose soube. Sentiu o nome pulsar em seu peito como uma cicatriz aberta.

— Voldemort.

Sarah assentiu, devagar.

— Quando ele voltou, anos atrás, ele precisou de sangue. E ele escolheu o sangue de Sirius Black. Não apenas por desprezo e vingança, mas com um propósito. Sirius era seu padrinho, mas também era seu parente. O sangue dele corre em você. E o que Voldemort achava que estava fazendo ao absorver esse sangue era se proteger contra o mesmo encantamento que o destruiu quando ele tentou matar você.

Ela encarou Rose com intensidade.

— O que ele não sabia era que, ao fazer isso, ele prendeu você à vida dele. O sangue de sua família agora vive nele. E dentro desse sangue, também vive o sacrifício que uma mãe fez.

— Mas… — Rose murmurou. — Isso não faz sentido. Como ele poderia ter me prendido à vida dele? Ele me matou mesmo assim, não foi?

— Matou, sim. Mas não a parte que é sua. — Sarah encostou um dedo na testa de Rose com suavidade. — Ele destruiu a parte dele. A parte que ele deixou em você quando se tornou apenas uma sombra.

Rose piscou, confusa, um arrepio percorrendo sua espinha.

— O que isso quer dizer?

Sarah a observou em silêncio por um momento, como se medisse o quanto deveria revelar.

— Quer dizer que uma parte dele estava dentro de você.

Rose arregalou os olhos.

— Como assim… uma parte dele?

— Um fragmento da alma dele, Rose. Um pedaço pequeno e quase irrelevante, mas ainda corrompido. Ele se alojou em você quando você ainda era um bebê. Quando a maldição da morte atingiu você e a sua mãe deu a vida para protegê-la.

— Um fragmento de alma? — Rose repetiu, tentando entender. — Como isso é possível?

Sarah assentiu, com a expressão grave.

— Ele dividiu a alma dele em pedaços, guardando cada parte em objetos. Fez isso para se manter imortal. São chamados de horcruxes.

Rose engoliu em seco.

— Eu era uma dessas… horcruxes?

— Não por escolha. Ele não pretendia fazer isso. Mas quando você nasceu, quando sua mãe te protegeu da morte da única forma que sabia… algo aconteceu. A alma dele estava dilacerada, instável. E quando a maldição voltou contra ele, parte do que sobrou encontrou abrigo em você.

Rose sentiu seu estômago embrulhar, a bile subindo pela sua garganta.

— Então ele… ele viveu dentro de mim esse tempo todo?

— Apenas uma lasca, um caco. E isso é o que morreu quando ele te atacou. A parte dele. Não você.

Rose levou a mão até a testa, onde ainda havia uma cicatriz. Os dedos deslizaram lentamente sobre a pele, como se pudessem tocar um vazio recém-aberto.

— Ele sabia disso, não é?

— Não no começo. Mas em algum momento… sim. Ele descobriu. E tentou usar isso a seu favor.

— Ele queria usar o corpo de Zoe como novo recipiente. — Rose concluiu, com a voz embargada. — Ele disse isso. Que ele tinha um receptáculo perfeito, com magia para proteger algo muito valioso.

Sarah assentiu com pesar, a dor brilhando em seus olhos.

— Para ele, isso era apenas uma solução conveniente. Usar a própria filha para garantir a imortalidade. E ainda continuar existindo através de você, depois de tê-la derrotado.

Rose fechou os olhos, sentindo uma raiva fria se espalhar pelo seu corpo.

— Eu ainda não entendo como isso é possível. Eu não tenho mais magia. Como eu poderia ser uma horcrux?

Sarah sorriu, com ternura.

— A magia nem sempre se manifesta como você imagina, minha florzinha. — Ela ergueu uma mão e a pousou novamente sobre o peito de Rose, onde ainda havia um coração batendo. — Não há como ter certeza do porquê, é claro, mas eu tenho um palpite. Quando sua magia foi arrancada de você, ela não se foi completamente. Porque a magia não está só na varinha, nem nos feitiços. Ela vive na terra, no sangue, nos vínculos. Ela vive no que você é, não apenas no que você faz.

Ela fez uma pausa, olhando nos olhos de Rose.

— Você perdeu o acesso à sua magia, sim. Mas não a perdeu por completo. Algo em você ainda era mágico. Forte o suficiente para sustentar esse fragmento de alma, mesmo que a conexão tenha enfraquecido. Talvez porque você o odiava tanto que, apesar de não ser um bom sentimento, ainda era forte o suficiente para segurar a alma dele. Ou talvez porque ele a escolheu, mesmo sem saber, e essa era a única maneira de se manter vivo.

— Mas eu não tenho mais poder algum. Eu não sou nada. — Rose murmurou, quase sem acreditar.

— Não diga isso. Nunca mais diga isso. — Sarah segurou seu rosto com carinho. — Você foi o elo que ele não compreendeu. A rachadura pela qual ele próprio se partiu. Ele achava que poderia te controlar, Rose. Que havia te amarrado a ele. Mas foi o contrário. Você é a prova de que ele não é invencível, mesmo com toda a magia do mundo. Porque o que ele nunca entendeu é que magia não é tudo. Ele se esqueceu de que há outras forças mais poderosas por aí.

Rose balançou a cabeça, os olhos marejados.

— Mas eu não consegui derrotá-lo. Ele me matou. Eu senti. Eu perdi.

— Ah, Rose… Você lutou. Você enfrentou ele com tudo o que tinha. Tomou a varinha dele com as mãos nuas. Se recusou a se render. Sangrou, caiu, e ainda assim se levantou. Lutou com corpo e alma, mesmo estando ferida. Você não precisa lançar feitiços para ser poderosa. Coragem também é um tipo de poder.

— Então… isso também foi magia?

— Foi amor — Corrigiu Sarah, sua voz mais baixa agora. — E o amor é a magia mais poderosa de todas. Você carregava uma parte dele, sim. Mas também carregava todas as outras partes suas que ele nunca seria capaz de entender. Sua compaixão, honestidade, teimosia, determinação, coragem, instinto de proteção, a dor que você transformou em força. Tudo isso… ele nunca conseguiu destruir.

Rose baixou a cabeça, tentando absorver tudo aquilo. Algo dentro dela começava a fazer sentido, como uma engrenagem que finalmente voltava ao lugar.

— Há mais coisas… não há? — perguntou, sem levantar os olhos.

Sarah sorriu com doçura, como quem esperava por aquela pergunta.

— Ah, sim. Acho que sim. — Ela inclinou a cabeça. — Você é uma surpresa tão grande, Rose. Até para a própria magia.

Rose piscou, confusa.

— Como assim? O que você quer dizer com “até para a própria magia”?

— A magia é viva, minha florzinha. Ela não pensa como nós, mas é senciente e reconhece intenções. E quando você arrancou a varinha das mãos dele, você fez algo que nem ele previu.

— Mas eu só… — Rose engoliu em seco. — Eu só puxei. Eu nem sabia o que estava fazendo.

— E isso ainda foi o suficiente. Para a magia, aquilo foi um ato de desarme. E a varinha… reconheceu você.

Rose piscou várias vezes, sem entender.

— Reconheceu?

— As varinhas sentem a mudança de lealdade. Elas escolhem seus donos, sim, mas também sentem quando são conquistadas ou quando seus donos são dignos de manuseá-las. E você conquistou a varinha. Com nada além das próprias mãos. — Sarah sorriu com um misto de orgulho e pesar. — A varinha reagiu. Tentou responder a você. Mas…

— Mas eu não tenho mais magia.

— Não da forma como você conhecia não. Isso não teria funcionado com um trouxa, mas ainda funcionou com você. Você entende por quê?

— Porque eu carregava um pedaço da alma dele.

— Sim. Eu te disse isso, você perdeu a sua magia, mas ainda tinha poder suficiente para manter o pedaço de alma intacto. E por isso a varinha hesitou. Ela não te rejeitou, no entanto. Só não soube como obedecer completamente.

Rose ficou em silêncio por um momento, tentando raciocinar sobre isso.

— Então… mesmo sem magia, eu fui suficiente?

— Você foi mais do que suficiente. — Disse Sarah, com firmeza. — Você quebrou as regras dele. Mostrou que existe outro caminho, e a magia respondeu.

— Isso quer dizer que… ele não conseguiu me matar?

— Não. Pelo menos, não de verdade.

— Então, eu posso… voltar?

Sarah sorriu, os olhos brilhando.

— Isso depende de você.

— Eu tenho opção?

— Ah, sim. — Ela olhou para os caminhos dourados que cortavam o jardim. — Sempre há uma opção.

Rose acompanhou o olhar da tia. Os caminhos pareciam vivos, pulsando de luz e calor, como se estivessem apenas esperando que ela tomasse uma decisão.

— E se eu decidir voltar… — Rose começou. — O que acontece?

— Você pega um caminho.

— E pra onde ele me leva?

Sarah olhou para ela com um sorriso tranquilo.

— Em frente.

Elas ficaram em silêncio durante alguns segundos, apenas sentindo a brisa do jardim, enquanto encaravam os caminhos pulsarem em tons de dourados. Era quase hipnótico, como se cada linha estivesse ondulando entre as flores.

Rose mordeu o lábio inferior, hesitante, quando uma pergunta se formou em sua mente. Então, finalmente, perguntou:

— Eu poderia… ter a minha magia de volta?

Sarah não respondeu.

Seus olhos permaneceram suaves, mas ela desviou o olhar. Fingiu observar uma borboleta que flutuava por perto. O silêncio dela foi mais eloquente do qualquer resposta.

Rose sentiu seu peito se apertar. Baixou os olhos.

— Então é isso — sussurrou. — Eu volto… mas continuo sem magia.

A brisa soprou mais forte, como se o próprio jardim respondesse por ela.

— Por que, então? — perguntou, quase num lamento. — Por que eu deveria voltar assim? Ele quase me matou, tia Sarah. Eu não sei se aguento passar por isso de novo.

Sarah voltou a olhar para ela. A brisa balançava levemente sua trança.

— Porque você não está sozinha.

Rose engoliu em seco, confusa.

— Mas eu ainda tenho que matá-lo, não é?

Sarah respirou fundo, depois assentiu lentamente.

— Alguém precisa fazer isso, sim. Mas ninguém disse que precisa ser você. Nem que seja da mesma forma. Ou que você precisa carregar esse fardo sozinha. — Ela sorriu. — Voldemort tinha seguidores, mas você tem algo que ele nunca teve. Você tem a lealdade de pessoas que escolheram estar ao seu lado. Porque confiam em você, e amam você.

Ela se aproximou um pouco mais, desta vez sussurrando baixinho.

— Paul lutaria por você até o fim. Charlie daria a vida por você. Zoe enfrentou o próprio pai para salvá-la. E há tantos outros, Rose. Gente que já sofreu demais, mas ainda escolhe você. Você é uma faísca para essas pessoas. E não há feitiço no mundo que seja mais forte do que isso. Voldemort se achava invencível porque dividiu sua alma em pedaços… mas você tocou as almas inteiras dos outros. E é isso que faz de você, mesmo sem magia, mais poderosa do que ele jamais foi.

— Mas eu não quero ser poderosa, tia Sarah. — Rose disse em voz baixa, e percebeu, no mesmo instante, o quanto aquela frase soava infantil.

— Eu sei, minha florzinha. — Ela sussurrou. — Eu sei.

Rose piscou com força, tentando conter as lágrimas.

— Eu não sei se consigo continuar…

— Ninguém sabe. — Disse Sarah com sinceridade. — Mas você não precisa saber agora. Só precisa dar o próximo passo. Um de cada vez. O caminho se revela aos poucos. Você não precisa enxergar o fim para seguir em frente, sabe?

Rose inspirou fundo, o ar do jardim preenchendo seus pulmões. O peito ainda doía, a garganta apertada, mas ela assentiu mesmo assim. Deixar esse lugar não seria tão brutal quanto a luta na floresta. Mas era doloroso à sua própria maneira, porque ali era quente, seguro e tranquilo. E o que a esperava do outro era apenas a dor.

Mesmo assim, ela se levantou.

Sarah levantou-se ao lado e segurou suas mãos com carinho. Elas se olharam demoradamente, catalogando as expressões uma da outra, sabendo que não tinham mais tempo disponível.

Rose riu com um som trêmulo, engolindo o choro, apertando os dedos nos da tia.

— Eu queria poder ficar aqui. Só mais um pouco.

— Eu sei. — Sarah disse. — Mas este não é seu lugar, não ainda. Tem gente esperando por você. E você ainda tem tanto para viver, minha florzinha.

Rose segurou o olhar da tia por mais um segundo. Então, com um último aceno, virou-se e deu o primeiro passo.

Mas algo a deteve.

Ela se virou de novo, com a voz embargada por uma dúvida que precisava, desesperadamente, ser respondida.

— Me diga uma última coisa — disse Rose. — Você é mesmo… você? Ou isso é só algo que minha mente criou?

Sarah abriu um sorriso imenso, como quem já ouviu aquela pergunta mais vezes do que pode contar. Naquele momento, uma névoa havia começado a cair sobre o jardim, suave como um véu feito de algodão, cobrindo o chão e subindo pelas flores. A imagem de Sarah começava a se desfazer, mas sua voz soou alta e límpida.

— O que você acha?

Rose abriu a boca, depois fechou. A brisa soprou em seu rosto e trouxe consigo o perfume das prímulas e dos lírios.

— Eu quero acreditar que é você.

— Então é. — respondeu Sarah, simplesmente. — Só porque acontece na sua cabeça, não significa que não é real.

A névoa começou a subir como a fumaça de velas apagadas, envolvendo o jardim inteiro numa luz difusa. Sarah já era só um vulto entre as flores, e então a névoa a engoliu por completo.

E Rose continuou a caminhar.

Desta vez, era apenas um caminho dourado em um lugar feito de uma névoa branca e brilhante, embora não parecesse com névoa alguma que já tivesse visto. O jardim havia sumido, e restava apenas branco. Tudo era imóvel e silencioso, exceto pelo som de água corrente que ela ouvia do final do caminho.

A cada passo, a luz branca pulsava ao seu redor, quente e serena. Seus pés não faziam som ao tocar o chão.

E então, adiante, ela viu um rio.

Não era largo, mas suas águas corriam em um prateado cintilante, apenas fluindo através da névoa. Do outro lado não havia nada. Ou talvez houvesse algo, mas Rose não sabia dizer. O som da correnteza aumentava conforme ela se aproximava, e seu coração, hesitante, batia forte no peito.

Ela parou à beira da água. Respirou fundo, sabendo o que deveria fazer.

E pulou.

Notes:

Eu estava pensando nesse momento desde o início.

Acontece que, enquanto eu pensava sobre esse capítulo, não queria repetir a King's Cross do cânone, então me inspirei nos Campos Elísios e no rio Lethe.

Se você não sabe, os Campos Elísios são o paraíso na mitologia grega, um lugar no mundo dos mortos, onde as pessoas virtuosas repousavam rodeadas por paisagens verdes e floridas, dançando e se divertindo noite e dia. A diferença, no entanto, é que as pessoas que ali residiam tinham a oportunidade de regressar ao mundo dos vivos.

O rio Lethe, por outro lado, diz-se que era o rio do esquecimento. Em algumas versões das lendas o rio está presente nos Campos Elísios, e aqueles que bebessem de sua água ou, até mesmo, tocassem nela experimentariam o completo esquecimento.

*

Ah, sim, eu escolhi prímulas, lírios e íris para o jardim de propósito. As prímulas e lírios são bem óbvios, no entanto, na linguagem das flores, as prímulas são conhecidas como a "chave do céu", enquanto os lírios significam pureza e as íris significam coragem e sabedoria.

*

Por fim, eu realmente nunca planejei que a magia da Rose voltasse. Eu recebi muitos comentários e pedidos para que isso acontecesse, e até mudei de ideia algumas vezes e cogitei alterar isso no meu planejamento, mas mantive como planejado desde o início, no final das contas. 😂 A ideia seria realmente mostrar essa diferença. Voldemort acredita que magia o torna melhor do que os outros, não é? Mas Rose foi capaz de vencê-lo mesmo sem magia. E embora houvesse muita sorte e ajuda envolvida nisso, a questão não é essa.

*

Espero que você tenha gostado! ❤️

Chapter 55: CINQUENTA E CINCO

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

A última coisa que Paul se lembrava era de um clarão de luz verde e Prim caindo para trás como uma boneca de trapos, os olhos abertos e vidrados, os cabelos ruivos espalhados como sangue na terra.

Algo dentro dele se partiu com um estalo. O laço que os ligava arrebentou como um cordão esticado além do limite. A dor foi tão visceral, tão profunda, que ele quase caiu de joelhos, suas garras cravando-se na terra e cavando sulcos profundos no solo. Seu peito queimava como se alguém tivesse arrancado seu coração ainda batendo.

 

Prim estava morta.

 

Antes que pudesse pensar, uma tempestade negra consumiu cada pedaço de humanidade que ainda habitava nele. Seu corpo se incendiou em fúria, os músculos inchando além do normal, os dentes virando punhais, as garras afiadas como lâminas. Paul ignorou os lamentos no fundo da sua mente, as frases dos seus irmãos de matilha, ou a batalha que parecia estar acontecendo há alguns quilômetros dali.

Naquela clareira, era só ele e o monstro que tirou tudo dele.

Seu ataque foi apenas dor, dor, dor. Paul deu um salto que cobriu a distância entre eles em um piscar de olhos. As mandíbulas cerraram violentamente no braço esquelético de Voldemort com um estalo satisfatório de ossos quebrando. O gosto de sangue e carne podre encheu sua boca quando ele arrancou o membro com um movimento brusco.

O braço caiu no chão com um baque úmido. Voldemort caiu de joelhos, um buraco se abrindo onde antes havia um ombro, o sangue jorrando sangue negro e espesso. E então, para surpresa de Paul… o monstro gargalhou. Seu riso era uma coisa louca e histérica.

— Então esse é o bichinho de estimação da nossa querida Primrose Potter… — Ele cuspiu. Seus olhos vermelhos brilhavam com um humor perverso, embora sua voz estivesse trêmula. — Eu não sabia que o sangue ruim era uma criatura. Que patético!

Paul rosnou, o pelo das costas eriçado, os músculos tremendo de raiva pura. Ele sabia, em algum lugar lá no fundo da sua mente, que a matilha estava falando, gritando, pedindo que ele respirasse fundo, que se acalmasse.

— Você pode arrancar meus membros um a um, criatura imunda. Pode mastigar minha carne e esmagar meus ossos. Mas Primrose Potter continuará morta. — Ele inclinou-se para frente, como se compartilhasse um grande segredo. — E eu voltarei. Eu sempre volto.

Paul deu um passo à frente, os dentes à mostra ainda manchados de sangue, pronto para terminar o que começou. Mas o idiota não calava a boca.

— Você acha que isso vai mudar alguma coisa? Que ela vai voltar? — ele arfou, cuspindo sangue entre os lábios finos. — Acha que o quê? O amor, esse sentimento ridículo, vai trazê-la de volta?

Paul hesitou, só por um segundo. Embora a raiva dominasse todos os outros sentimentos, havia alguma consciência no fundo da sua mente que sabia que aquilo era verdade. Que nada que fizesse traria sua Primrose de volta. Não havia mordida, golpe ou grito no mundo que pudesse reverter o instante em que ela caiu no chão, sem vida.

O coração dele parecia estar derretendo dentro do peito, esmagado pelo peso da sua própria dor. Como se respirar só fosse possível com ela ao seu lado.

E agora não havia nada.

Voldemort riu novamente, ciente dos pensamentos do lobo, a boca torcida em escárnio.

— Sabe o que ela me disse antes de morrer? Que não se importava. Ela, provavelmente, nem pensou em você já que aceitou morrer tão facilmente.

Paul soltou um rosnado gutural, baixo e vibrante, que reverberou pela clareira. Sua visão ficou tingida de vermelho, e as vozes da matilha soaram mais altas e alarmadas.

— Nem sequer pediu para ficar viva — continuou Voldemort, saboreando cada palavra com crueldade. Ele se arrastou ligeiramente para o lado, o tronco curvado, como se o ferimento o deixasse desorientado. A capa rasgada cobria parte do chão, disfarçando o movimento de sua mão esquerda em direção à varinha caída a poucos passos dali, semioculta pelas folhas na terra. — Ela se entregou facilmente. Como a covarde que ela sempre foi.

O rosnado virou um uivo de dor. Paul avançou novamente, pronto para despedaçar o que restava daquele monstro.

Mas Voldemort já estava pronto.

Seus dedos deformados agarraram a varinha caída, e ele girou o pulso num movimento preciso.

 

Avada Kedr…

 

De repente, um estalo seco cortou o ar, interrompendo as palavras da maldição.

A cabeça de Voldemort tombou para o lado com o impacto. Um galho grosso e torto havia acertado em cheio sua têmpora, o som de madeira contra osso ecoando na clareira como um trovão abafado.

Atrás dele, de pé, trêmula e coberta de terra e sangue seco, estava Prim.

Os seus olhos ainda brilhavam, as mãos apertando o galho como se segurasse a porra de uma espada. Ela arfava como se respirar fosse um esforço doloroso.

Voldemort caiu de joelhos, o corpo tombando para frente antes que ele conseguisse se sustentar, a varinha rolando de novo no chão até parar a alguns centímetros de distância. Sangue escorria da lateral de seu rosto, e seus olhos piscaram, pesados e confusos, até se fecharem por completo.

Ele desabou inconsciente, o corpo fazendo pouco mais que um ruído surdo ao atingir o solo. A última expressão em seu rosto não foi de medo, mas surpresa. Como se seu cérebro, inconscientemente, tentasse processar como uma garota morta havia conseguido derrubá-lo sem uma varinha.

Desta vez, Paul não hesitou.

Com um rugido, avançou para acabar com aquilo. Suas garras afundaram no corpo do monstro, rasgando o tecido fino da túnica como se fosse papel. A carne por baixo cedeu facilmente, quase humana em sua fragilidade.

Seus dentes encontraram a garganta, e Paul sentiu os ossos da clavícula se esfacelando entre suas mandíbulas, os músculos se rompendo com um estalo úmido, o gosto metálico do sangue negro escorrendo em sua língua.

Mas ele não parou. Com um último rosnado, Paul ergueu a garra e a enterrou no peito exposto, direto no coração.

 

E então, acabou.

 

O corpo que um dia se chamou Lorde Voldemort jazia irreconhecível. Membros retorcidos, torso dilacerado, o rosto congelado naquela última expressão de surpresa. Como se, no último instante, ele tivesse recobrado os sentidos e entendido o segredo mais simples de todos: até os deuses morrem como meros homens.

O corpo do monstro já não se mexia mais, mas Paul continuava esmagando-o contra o chão, suas garras afundando repetidamente na carne fria, rasgando, golpeando. Seu peito arfava violentamente, cada respiração era um fogo que queimava por dentro. O sangue escorria de seu focinho, misturando-se às lágrimas que começavam a escapar dos seus olhos. A matilha, ainda lutando em outro lugar, parecia compartilhar da sua dor.

 

Primrose.

 

A imagem dela apareceu em sua mente como um raio. Seus olhos verdes desfocados e sem cor, os cabelos, tão lindos, espalhados sob sua cabeça, seu corpo parado, machucado, sem vida, vazio.

Um uivo dilacerante rasgou sua garganta, sua alma se partindo, seu coração destruído. Ele caiu de lado, seu corpo tremendo incontrolavelmente. Ele queria enfiar as garras no próprio peito, arrancar seu coração ferido e jogá-lo fora.

— Paul…

Era uma voz fantasma, ele sabia. Uma ilusão cruel da sua mente despedaçada.

Mesmo assim ele levantou o focinho ensanguentado, e lá estava ela. Prim. De joelhos na terra, encarando ele com aqueles tão verdes, tão lindos, lindos, lindos.

 

Não era real.

Não era real.

Não era real.

 

Seu coração parou. Um gemido baixo escapou de sua garganta quando ele enterrou o focinho na terra, incapaz de suportar mais uma visão que sabia não ser real.

Só havia tristeza, e agonia, e tanta dor, dor, dor.

Até que ele sentiu uma mão trêmula, e quente, tocando seu pêlo. E então ouviu a voz novamente, mais clara agora.

— Paul… por favor… olhe para mim… sou eu, meu amor…

Ele abriu os olhos e, em vez de olhar para o fantasma, encarou a clareira com desespero, procurando o corpo do seu amor. Onde estava? Seu coração batia violentamente contra as costelas, sofrendo, doendo, sangrando.

— Paul, querido…

Ele estremeceu, os músculos tensos. Não pode ser real. Não pode. Se fosse um fantasma, se fosse uma alucinação, ele preferia não olhar novamente. Se fizesse isso, provavelmente Paul a seguiria. Ele se mataria.

— Por favor… volte pra mim, meu amor…

A voz dela quebrou no final, chorosa, e então ele o fez. E quando finalmente conseguiu erguer seu rosto, agora humano, e olhar para ela, seu mundo parou.

Prim estava ajoelhada diante dele, e muito real. Suas mãos estendidas, os dedos sujos de terra e de sangue. Havia uma ferida aberta na testa dela, nos braços, nas pernas, no tornozelo, mas foram seus olhos que ele encarou…

 

Seus olhos muito vivos.

 

Paul não sabia se havia se jogado nela ou se ela o havia segurado em seus braços. Só sabia que quando seu rosto encontrou a curva de seu pescoço, quando sentiu o pulso dela batendo rápido contra seus lábios, algo dentro dele se reconstruiu.

E ele soluçou nos braços de Prim.

— Eu te vi… — Ele sussurrou contra a pele dela, as palavras saindo numa confusão de lágrimas e soluços desolados. — Você estava… Você estava morta…

Prim o apertou com força, como se pudesse colar os pedaços quebrados dele apenas com o calor do próprio corpo. Talvez ela pudesse.

— Eu sei — ela respondeu, a voz embargada, os dedos enterrados em seus cabelos. — Eu sei, meu amor, eu sei. Eu estou aqui agora.

Prim se afastou do abraço, apenas para apertar o rosto dele em suas mãos, os polegares limpando as lágrimas que escorriam pelas suas bochechas. Ele tremeu, os dedos dela queimando em sua pele.

— Você está aqui? — Paul sussurrou baixinho, como se até falar mais alto pudesse quebrar o momento e fazê-la desaparecer novamente dos braços dele.

— Eu estou aqui.

Como?

O sopro quente, de vida, que ele sentiu contra seus lábios quando ela respondeu foi a única prova que ele precisava:

— Eu voltei. — Seus dedos entrelaçaram-se aos dele, pressionando-os contra o próprio peito, onde um coração batia forte demais para ser apenas uma ilusão da sua mente. — Eu voltei por você.

Paul puxou-a contra seu peito novamente, os dedos enterrando-se nos cabelos ruivos dela com força, como se jamais fosse soltá-la.

— Você voltou. Você voltou. — Ele repetiu, como se as palavras pudessem fazer o milagre ser compreendido. — Você voltou para mim.

Prim aninhou-se no vão de seus braços, seu rosto escondido no pescoço dele.

— Eu sempre voltarei para você. — Ela prometeu, a voz abafada contra sua pele.

Ele puxou-a novamente para longe, desejando encarar seus olhos tão verdes, e vivos.

— Não faça isso de novo. — A voz dele era áspera, quase uma ordem. — Nunca mais. Por favor.

— Nunca mais. — Prim concordou imediatamente.

O queixo de Paul tremia, a lembrança da dor ainda latente em seu peito.

— Eu te perdi. Eu senti.

— Eu nunca mais vou sair do seu lado.

Ele fechou os olhos e encostou a testa na tela, deixando as palavras de seu amor lavarem a dor e a angústia de dentro dele.

— Promete?

— Prometo.

E quando seus lábios finalmente se encontraram, Paul soube que não havia magia mais poderosa que esta. Não havia feitiço, não havia maldição que pudesse competir com o simples e extraordinário milagre de tê-la de volta.

 

*

 

Acontece que nem tudo são flores.

Embora fosse um milagre que Rose estivesse viva, seu corpo ainda estava muito ferido. Ela mal teve tempo de beijar Paul, de sentir os braços dele ao seu redor, e de ouvir que Voldemort estava finalmente morto, antes que a exaustão a tomasse como uma onda violenta.

Então, ela desmaiou nos braços dele, causando um pequeno ataque de pânico em Paul, que precisou ser contido, com dificuldade, por lobos e vampiros para que pudessem carregar Rose até um local seguro para tratá-la — o que acabou sendo a casa do Dr. Cullen, já que seria muito difícil explicar os ferimentos dela, se a levassem para o Hospital de Forks.

Isso foi há três dias.

Desde então, Paul não saiu do lado dela. Sentou-se numa poltrona perto de sua cama a todo momento, as mãos sempre segurando as suas, como se precisasse do contato para acreditar que ela ainda estava viva. E quando Rose, finalmente, abriu os olhos, ele quase desmoronou novamente.

Um soluço escapou, e ele não disse nada. Apenas pousou a testa contra a dela, com uma reverência silenciosa, como se apenas agradecer à sua vida fosse pouco diante do que sentia.

Foi naquele momento que Rose, enfim, descobriu tudo o que havia acontecido nos últimos dias. E não foi pouca coisa.

Soube sobre o exército de vampiros recém-criados. Sobre o terremoto, que curiosamente foi causado por um dos vampiros. Sobre a fuga de Victoria. O envolvimento de Riley. E a morte de Bella.

As peças pareciam desconexas à primeira vista, mas, lembrando das palavras de Voldemort sobre Zoe, e do que Paul havia lhe contado, Rose começou a entender. Finalmente.

Ao que tudo indicava, Voldemort descobriu onde ela estava por causa de Zoe (que se chamava Delphini, na verdade, mas isso não vinha ao caso agora). Mas sua parceria com Riley havia sido um mero acaso, um golpe de sorte da parte dele. Ninguém sabia como o encontro entre eles aconteceu, e, como todos os envolvidos estavam mortos, talvez ninguém jamais soubesse.

No final das contas, Voldemort enganou Riley. Riley enganou Victoria. E Victoria acreditava que estava enganando Riley. Foi uma sucessão de mentiras e manipulações que terminou mal para todos os envolvidos.

Riley, transformado em vampiro, trouxe consigo a lembrança do amor que um dia sentiu por Rose, mas o que era respeito, afeto e saudade, acabou virando uma obsessão doentia e desequilibrada durante a transformação. Ele queria usá-la como moeda de troca, basicamente. E depois, quem sabe, tê-la de volta. Transformá-la em vampira. Moldá-la à sua imagem distorcida. A ideia, por si só, era repugnante, fazia o estômago de Rose revirar e as mãos de Paul tremerem só em lembrar disso.

Victoria, por outro lado, tinha planos próprios. Queria alguém neutro, fora do radar dos dons dos Cullen. Uma espécie de general de guerra para seu exército de recém-criados, e que não seria visto pela vampira que era capaz de ver o futuro. Riley servia perfeitamente, e o fato de ele ter laços com os bruxos e com Rose tornava tudo ainda mais vantajoso. Para ela, pelo menos.

Voldemort, no entanto, não se importava com nenhum dos dois. Para ele, Victoria era apenas uma distração conveniente. Enquanto ela e Riley mergulhavam em suas guerras de vingança e desejos distorcidos, ele seguia com o seu plano, manipulando todos para alcançar o que realmente queria.

E Bella foi pega no fogo cruzado. Ela estava no lugar errado, do jeito errado, e por motivos igualmente errados.

Ela havia se tornado uma peça fácil de manipular. Ninguém lia sua mente, então ela podia mentir livremente. Alice não viu suas decisões, porque tudo estava envolvido com uma magia que ela não era capaz de contornar.

E Rose não percebeu nada disso acontecendo. Foi essa parte que mais a incomodou.

Embora ela não fosse próxima de nenhum deles, como ela não viu os olhos apagados de Edward? Os gestos estranhamente vazios? Ou o comportamento estranho de Bella dias antes do sequestro? Seu desejo anormal de se reconciliar, embora nunca tenha tomado nenhuma atitude antes? Seu interesse acima do normal pela história de Rose e os poucos detalhes que ela compartilhou sobre o mundo mágico? Ou ainda aquela ridícula escolha de hobby? Criação de drinks, sério?

Agora fazia sentido. Bella drogava Edward com poções, dia após dia, e dizia a si mesma que aquilo era amor de verdade. Talvez nem ela acreditasse nisso, mas ainda insistia. Tudo por uma ilusão.

Então, quando Riley precisou de alguém que pudesse se aproximar de Rose sem levantar suspeitas, Bella se tornou a candidata perfeita. Era irônico. Enquanto Riley queria moldar Rose à força, Bella queria moldar Edward à mentira.

Por fim, ambos perderam tudo.

Bella foi morta pela matilha. E embora aquilo fosse terrível… Rose não sentiu nenhuma tristeza por ela. Sentiu pesar por tio Charlie, é claro, mas apenas pena pela sua prima, que destruiu a si mesma tentando manter viva a própria fantasia.

Rose também descobriu que a família Cullen estava longe de estar bem. A traição de Bella havia deixado cicatrizes profundas no clã, não só pela dor emocional, mas também pela consequência da morte de Esme, alguém que Rose não conheceu, mas que agora sabia ser a esposa do Dr. Cullen. Essa perda gerou uma longa discussão, que culminou na decisão de Edward e Carlisle de se afastarem por um tempo.

Edward, segundo disseram, desapareceu logo após a batalha. Carlisle permaneceu apenas para garantir que Rose recebesse tratamento adequado, como uma compensação pelo dano causado pela sua família, embora ele estivesse muito distante do homem gentil e educado que ela havia conhecido. Ele não passava de uma casca vazia, com olhos tristes e gestos sem esperança.

Embora Paul ainda o odiasse, ele não podia deixar de sentir empatia.

Além de tudo isso, Rose também soube do envolvimento do Congresso Mágico dos Estados Unidos nessa bagunça. Rose nunca tinha ouvido falar dele, mas aparentemente era a entidade governamental dos bruxos na América. Assim como o Ministério da Magia Britânico, que havia formado uma aliança secreta, tentando deter Voldemort antes que o caos transbordasse para outras sociedades mágicas. Eles trabalharam em conjunto, desmantelando as operações dos Comensais da Morte e garantindo, com a ajuda de profissionais Quebradores de Maldições, que Voldemort realmente fosse morto no final.

Isso, em particular, chamou a atenção de Rose, afinal, aparentemente, nenhum deles sabia que ela era uma horcrux. E se era uma informação apenas de Dumbledore, ela se perguntava quais eram os planos dele antes de morrer. Ela deixou para pensar nisso em outro momento. Afinal, se Voldemort estava realmente morto, não havia pressa.

De qualquer forma, foi durante a conversa sobre o mundo mágico que ela descobriu que seus antigos amigos estavam ali.

Naquela mesma casa, enquanto ela dormia, eles esperavam que Rose acordasse. Remus. Rony. Hermione. Fred. George. E outros rostos familiares que iam e vinham, enquanto ela se recuperava. Muitos já tinham voltado para suas casas, mas eles permaneceram. Esperando por ela.

— Eles querem te ver. — Paul disse, sentando ao seu lado na cama, os dedos entrelaçados aos dela com cuidado.

Rose ergueu os olhos, confusa.

— Sério?

— Meu amor, se você não quiser, você pode me dizer. — Ele sorriu, suave. — Não tem problema nenhum se você não estiver pronta.

Ela hesitou, mordendo o lábio inferior.

— Não é isso. É que… a última vez que eu os vi, eu só tinha quatorze anos e nós não nos separamos nos melhores termos. Eu meio que… bem… eu fugi, né? Então… — Seus ombros caíram um pouco. — Eu mudei muito de lá pra cá, imagino que eles também…

Paul apertou sua mão com ternura.

— Se você se sentir desconfortável, eu expulso todo mundo daqui.

Isso arrancou um risinho cansado dela.

— Você vai ficar comigo?

— O tempo todo. — Ele respondeu sem hesitar.

— Talvez… um de cada vez?

— Claro. — Paul assentiu. Mas então franziu a testa, como se pensasse se devia dizer algo. — Tem só uma coisinha que talvez seja bom você saber antes…

Ela ergueu uma sobrancelha.

— O que foi?

— Jake e Leah… tiveram imprinting.

Rose arregalou os olhos.

— Sério? Com quem?

Paul pigarreou, como se ainda achasse tudo meio estranho.

— Jake teve um imprinting com uma garota chamada Ginny Weasley… e Leah com um cara chamado Remus Lupin.

Por um segundo, Rose ficou muda.

— O quê?! — ela disse, finalmente. — Você tá brincando.

— Não tô. Você deve conhecer eles, eu imagino? Todos estão aqui.

Rose enterrou o rosto nas mãos e murmurou, num tom entre choque e risada:

— Eu perdi muita coisa mesmo, hein?

Paul se inclinou e beijou sua testa com delicadeza.

— Eu vou pedir para o seu tio entrar primeiro, tá?

Ela respirou fundo, tentando se preparar, e assentiu.

Quando Paul se levantou para abrir a porta, tio Charlie entrou no quarto com a mesma expressão sóbria de sempre, mas com os olhos cansados demais para esconder o cansaço dos últimos dias. Ele entrou devagar, como se ainda não soubesse se devia estar ali. Parou ao lado da cama e encarou a sobrinha, deitada, pálida, mas desperta.

— Oi, querida.

A voz de Charlie estava um pouco rouca, como se não tivesse falado alto há dias. Ele parecia encará-la com um misto de alívio e incredulidade.

— Oi, tio Charlie. — Rose sorriu, mas logo franziu o cenho. — Você está se sentindo bem? Você parece pálido.

Ele deu um sorriso carinhoso.

— Foi você que foi sequestrada e ferida, querida. Eu que deveria estar te perguntando sobre isso.

Ela riu baixo, e seus olhos buscaram instintivamente os de Paul, que permanecia em silêncio ao lado da cama. Rose percebeu, com um alívio discreto, que ele não havia contado tudo. Seu olhar perguntou sem palavras, e ele apenas balançou a cabeça em negativa. Aquilo — ela ter morrido e, milagrosamente, voltado à vida — ficaria, felizmente, apenas entre eles.

— Eu estou bem agora, tio Charlie. — Disse ela, suavemente. — Eu… soube da Bella. Eu sinto muito.

Charlie desviou o olhar e passou a mão pelo rosto, claramente desconfortável ou apenas triste.

— Obrigado. — respondeu após alguns segundos. — Não é exatamente um choque, na verdade. Acho que, no fundo, eu já tinha perdido a Bella há muito tempo.

Ele deu de ombros, exaustos, e continuou:

— Mesmo assim, dói. E acho que ainda vai doer por um tempo. Não sei ainda como vou contar pra Reneé. — Ele riu sem humor. — Talvez eu não conte agora. Ou só deixe ela pensar que a Bella está vivendo alguma aventura doida por aí. Sei lá.

Rose não sabia o que dizer, então apenas assentiu.

— Eu queria poder fazer algo para ajudar.

— Você já ajudou. — disse ele, com sinceridade. — Só por estar aqui, e por estar viva.

— O tio Billy está bem? — Ela decidiu mudar de assunto.

— Jake levou ele para casa agora há pouco. Disse que volta amanhã. Mas me obrigou a dizer que, se você não comer o café da manhã que ele vai trazer, ele mesmo vai dar na sua boca.

Rose soltou uma risadinha abafada.

— Eu não duvido disso.

Charlie pareceu relaxar ao vê-lo rindo. Seus ombros cederam alguns milímetros, e os olhos, apesar do cansaço, tinham um brilho genuíno.

— E você? — perguntou ela. — Vai voltar para casa?

Ele hesitou, depois deu de ombros.

— Na verdade, eu estava pensando em… mudar pra La Push. Talvez dar a casa pra você, se quiser. Não me sinto mais tão… em casa lá. Mas sei que você poderia. Ou pelo menos, ter um lugar só seu.

Ela o encarou, surpresa. Um calor inesperado cresceu no seu peito.

— Eu adoraria, tio Charlie.

Charlie assentiu, como se aquilo fosse tudo o que precisava ouvir.

— Então tá. Podemos conversar melhor sobre isso depois. Eu vou deixar você descansar. — Disse ele, dando um passo em direção à porta. — Por favor, nada de nos dar outro susto desses.

— Eu prometo, tio.

Ele hesitou por um instante, então se aproximou e beijou sua testa com carinho.

— Um dia de cada vez, querida. Nós vamos ficar bem.

Rose sorriu feliz por saber que tio Charlie estava bem e que sua família não tinha sido tão afetada pelos eventos daqueles últimos dias.

— Aguenta ver mais alguém, amor? — Paul perguntou gentilmente, voltando ao seu lugar ao lado da cama. Ele sentou-se na beirada com o corpo voltado para ela. 

— Os garotos estão aqui também? — perguntou ela, olhando para ele com expectativa.

Paul hesitou por um segundo, e havia algo na sua expressão que parecia levemente desconfortável, como se não soubesse bem o que dizer.

— Estão… sim. Quer que eu os chame?

— Por favor. — Rose assentiu. — Eu queria agradecer… e saber se eles estão bem. E, pra ser honesta, acho que também estou adiando encontrar meus amigos.

Paul a observou por mais um instante, sorrindo amorosamente em sua direção.

— Tudo bem, meu amor. Eu já volto.

Apenas alguns segundos depois, a porta se abriu e a matilha entrou num silêncio bastante incomum. Sam foi o primeiro, atrás dele vinha Jared, Embry e Seth. Leah veio por último, sem dizer uma palavra, os braços cruzados no peito, mas os olhos fixos em Rose com preocupação e um claro e evidente desejo de se aproximar.

Jake não estava ali, mas ela já sabia disso, então ignorou isso. Foi, no entanto, a ausência de Quil que a deixou confusa.

— Obrigada por virem. — Ela olhou para todos, um por um, os olhos marejando levemente. — Eu só queria agradecer a todos vocês por terem lutado. Paul me contou quase tudo, e eu sei que não tivemos tempo para os detalhes, mas mesmo assim sei que vocês lutaram bastante. E eu sinto muito por toda essa confusão.

Paul se aproximou e envolveu suas mãos na dela novamente, fornecendo um apoio silencioso.

— Não diga isso — disse Sam, com sinceridade. — Nada disso é culpa sua. Estamos felizes por você estar bem, era só isso que todos queriam.

Embry e Seth foram os primeiros a abraçá-la, bastante cuidadosos, respeitando seus machucados e o olhar atento de Paul. Depois veio Jared, que riu baixinho, tentando esconder seus olhos vermelhos. Sam se contentou em segurar sua mão firmemente por alguns instantes, com uma ternura que era realmente inédita. Leah permaneceu ao fundo, imóvel, mas Rose podia ver seus olhos cheios de lágrimas.

Rose decidiu perguntar, então:

— E… o Quil? Ele não veio?

Todos ficaram em silêncio de repente. E quando até mesmo Paul baixou o olhar, ela soube exatamente o que eles diriam:

— Quil não conseguiu. Ele morreu. Durante a batalha com os vampiros. — Sam anunciou solenemente, embora nem ele pudesse evitar que seus olhos ficassem marejados.

A notícia, no entanto, atingiu Rose como um soco no peito. Ela piscou, sentindo as lágrimas se formarem imediatamente. Ela não conseguia imaginar a ideia de que Quil, sempre risonho e com piadas idiotas, não havia conseguido sobreviver. Que nunca mais o veria. Nunca mais o venceria no video game.

— Não… — ela sussurrou.

— Ele lutou nos protegendo. — disse Sam, com pesar. — Seremos eternamente gratos pelo nosso irmão de matilha. Foi… foi rápido. Acreditamos que ele não sofreu.

Rose levou a mão aos lábios, tentando conter a emoção que vinha com força. A dor se somava às outras dores, preenchendo seu peito e embargando a voz.

— Quando vai ser o funeral?

— Ainda não sabemos. — respondeu Embry. — Os anciões querem dar um tempo para que tudo possa se acalmar. Vamos avisar você.

Rose assentiu, o nó na garganta impedindo qualquer outra palavra.

Foi Paul, então quem falou por ela:

— Obrigado por terem vindo, pessoal.

Houve um breve momento de silêncio respeitoso, antes que, um a um, eles começassem a sair do quarto, dando-lhe tempo e espaço. Leah foi a última. Antes de fechar a porta atrás de si, ela hesitou, então se virou e lançou um último olhar na direção de Rose.

— Rose… Tudo bem se eu falar com você? — Sua voz era contida de uma maneira que Leah nunca foi, mas havia uma urgência pulsando por trás daquela calma aparente.

— Agora, Leah? — Paul se irritou.

— Tá tudo bem, Paul. — disse Rose, baixinho, apertando levemente a mão dele. — Eu quero ouvir.

Paul olhou para ela por um momento, claramente relutante, mas ao ver o modo como Leah mantinha os braços junto ao corpo e a expressão vulnerável nos olhos dela, assentiu com um murmúrio descontente.

Leah entrou de volta no quarto e fechou a porta atrás de si.

Ela permaneceu de pé por um momento, em silêncio, enquanto procurava as palavras certas. Finalmente, suspirou e falou, a voz mais tímida do que Rose esperava.

— Eu queria… pedir desculpas. Por tudo. — Seus olhos estavam fixos no chão. — Eu fui imatura, amarga e injusta com você durante tanto tempo. E, honestamente, não tenho desculpa que valha. Eu só… queria que você soubesse que eu entendi um pouco as coisas agora. Esses últimos dias… me forçaram a enxergar algumas coisas com clareza. Eu tive uma nova perspectiva, eu acho.

Rose observou o modo como Leah lutava contra a vergonha, com a hesitação em sua postura. Esperou um segundo antes de responder.

— Eu soube sobre o Remus... — disse, suavemente.

Leah ergueu os olhos, surpresa, e por um instante eles simplesmente brilharam de emoção. Rose não percebeu até aquele momento o quanto sentia falta de quando os olhos da sua amiga costumavam brilhar dessa maneira.

— Você o conhecia?

— Ele foi meu professor no terceiro ano, em Hogwarts — disse Rose, com um pequeno sorriso nostálgico. — E ele também era amigo dos meus pais. Ele é um bom homem, muito gentil e doce. Merece ser feliz… e você também.

Leah assentiu, os olhos marejados. Quando voltou a falar, sua voz saiu falha.

— Eu sinto muito, Rose. Por tudo mesmo. E… eu queria tentar recomeçar. Não como antes, porque eu sei que estraguei isso. Mas talvez, se você deixar… eu gostaria de reconstruir nossa amizade.

Rose respirou fundo, olhando para Leah com serenidade.

— Eu perdoo você, Leah. Mas… acho que você está certa em dizer que as coisas não serão como antes. E talvez nem devam ser. Quer dizer, olhe só para nós… nós mudamos muito. — Ela hesitou, mas depois completou, com uma firmeza gentil. — Se a gente for tentar outra vez, vai ter que ser devagar. Eu acho que a nossa amizade precisa de tempo. E paciência.

Leah concordou imediatamente, com os lábios trêmulos, mas um brilho determinado em seus olhos.

— Eu posso ter paciência.

Rose inclinou a cabeça com um leve sorriso.

— Então… vamos começar do zero.

Leah sorriu de volta, pequeno e tímido, mas genuíno.

— Eu posso passar na sua casa depois?

— Seria ótimo.

Leah assentiu devagar, segurando o sorriso com dificuldade, e deu um passo para trás em direção à porta.

— Então… até logo.

— Até logo.

Ela abriu a porta devagar, lançando um último olhar antes de sair. Rose acompanhou o som dos passos se afastando, até finalmente suspirar profundamente e deixar todos os sentimentos virem à tona.

Finalmente, Rose se permitiu chorar, sentindo seu peito soltar tudo o que estava comprimindo de uma vez só: a traição de Bella, a mudança de Riley, as mentiras de Zoe, a morte de Sirius, Dumbledore e de Quil, a batalha e toda a confusão, a conversa com Leah. A ideia de que ainda teria que encarar outros rostos, aceitar tantos abraços difíceis, revisitar dores passadas.

Foi como se tudo estivesse represado ali dentro, e, agora, ela não soubesse mais como segurar.

Paul não precisou que ela pedisse. Ele se aproximou silenciosamente, subiu na cama com ela e a envolveu em seus braços. Rose afundou o rosto no ombro dele, o peito sacudindo em soluços pesados. E ele apenas permaneceu ali, firme, deixando que ela derramasse toda a dor em sua pele, enquanto sussurrava palavras de amor ao seu ouvido e depositava beijos leves em sua testa.

Ela permaneceu assim até que seu choro virasse fungados, e seu cansaço finalmente vencesse seu corpo. E, ainda entre os braços de Paul, ela adormeceu.

 

*

 

Foi só no dia seguinte que Rose finalmente sentiu que conseguia encarar o restante das visitas.

Tio Billy, Jake, tio Charlie e tia Sue haviam passado no seu quarto mais cedo, com abraços apertados e demorados, as piadas de sempre e até uma leve bronca carinhosa do tio, que a obrigou a comer direito. Jake empurrou uma bandeja no seu colo, e ela comia, enquanto todos conversavam ao redor da sua cama.

Foi uma manhã adorável, até Paul perguntar se ela queria ver seus amigos.

— Você pode dizer que não quer, amor. — Ele disse, percebendo a tensão em seu rosto levemente pálido.

— Eu sei, mas… eu estou adiando isso há tempo demais. É melhor arrancar logo o band-aid de uma vez, né?

Paul assentiu, embora preocupado, e segurando sua mão com firmeza antes de se virar em direção à porta.

— Tudo bem. Vamos com calma.

Quando Paul abriu a porta, Remus entrou sozinho, seus passos silenciosos e hesitantes. Ele parou à beira da cama, olhando para Rose com um misto de saudade profunda e uma ternura que a fez estremecer. Os olhos dele, cansado pelos anos, brilhavam de emoção ao encará-la.

Rose desviou o olhar, sentindo-se desconfortável e levemente culpada por ter adiado esse encontro e fugido de todos. Seu coração apertou no peito, e ela quis desaparecer ali mesmo, encolhida sob o peso daquele olhar tão cheio de saudade.

— Oi, professor Lupin.

— Eu não sou mais seu professor, você pode me chamar de Remus. — Ele riu baixinho, antes de soltar um longo suspiro. — Rose… você cresceu tanto…

Ela sorriu, umedecendo os lábios, sentindo o peso do nervosismo em seus ombros.

— Faz muito tempo, não é?

— Quase quinze anos. — Remus sorriu, os olhos enrugando nas bordas. — E mesmo que não tenhamos convivido tanto… eu realmente senti sua falta.

Rose engoliu em seco, emocionada, mas ainda desconfortável.

— Eu… queria te pedir desculpas. Por ter fugido e… sumido daquele jeito.

Remus suspirou, puxando uma cadeira para se sentar ao lado dela.

— Eu não posso mentir, eu fiquei um pouco magoado, sim. Mas não foi por causa da sua fuga, foi só… preocupação, eu acho. Eu queria que você tivesse confiado em mim ou no Sirius para pedir ajuda. Mas eu entendo, Rose. Sério. Você não precisa se desculpar.

Ao ouvir o nome de seu padrinho, os olhos dela se encheram de lágrimas.

— E o Sirius? — perguntou com a voz baixa. — Ele… ele ficou bravo comigo?

A expressão de Remus suavizou, e ele balançou a cabeça sem hesitar.

— Nem por um segundo. Você era tudo para ele... — ele pausou, depois sorriu com ternura. — Quando soube que você tinha fugido, ele ficou bastante orgulhoso, na verdade. Disse que era “a maior pegadinha da filha de um Maroto”.

Rose soltou um riso entrecortado pelas lágrimas que caíram sem que ela tentasse conter.

— Eu não queria ter abandonado ele…

— Sirius nunca se sentiu abandonado. Ele sempre acreditou e confiou em você. Sempre te amou. Até o último dia.

Rose cobriu o rosto com as mãos por um momento, tentando conter o choro. Paul, que ainda permanecia em silêncio ao seu lado, se aproximou para acariciar suas costas amorosamente.

— Eu espero… — disse Remus após um instante — que a gente possa manter contato. Quero saber da sua vida. Quero que você saiba que ainda tem um lugar conosco. Comigo.

Ela assentiu com força, ainda sem conseguir falar, mas seu olhar dizia tudo.

Enquanto ele se levantava para sair do quarto, hesitou por um instante, como se lembrasse de algo importante.

— Ah… tem uma última coisa. — Ele retirou um pequeno envelope do bolso interno do casaco. Estava selado com cera vermelha e tinha uma caligrafia que Rose já tinha visto antes.

— O que é?

— Uma carta. Do Dumbledore. Ele me entregou poucos dias antes de morrer. Disse que eu saberia a hora certa de dar a você. — Remus ofereceu o envelope. — Acho que essa hora chegou.

Rose pegou a carta com as mãos trêmulas e a observou em silêncio. Seu nome, escrito com uma caligrafia cuidadosa no verso, parecia quase brilhar sob a luz que atravessava a janela do quarto.

Ela a deixou na mesa ao lado da cama, sem abri-la ainda. O momento viria.

— Tem outras pessoas que querem te ver — disse Remus, já indo em direção à porta. — Vou deixá-las entrar agora. E, Rose?

— Sim, Remus?

— Estou muito feliz por você estar bem.

Ela sorriu, emocionada, e quando ele saiu, por um instante, pensou em perguntar se ele sabia sobre o imprinting com Leah e se isso significava que ele passaria mais tempo em Forks. Mas mordeu a língua. Ela não queria interferir nas conversas entre os dois, então achou melhor esperar para ver o que iria acontecer daqui pra frente.

— Você está bem? — Paul sussurrou ao seu lado.

— Sim, estão só sendo dias muito emotivos. — Ela sorriu levemente, exausta, e então deixou os olhos pousarem na carta ao lado.

— Você quer ler agora? — ele perguntou, observando sua expressão.

— Não... deixa para depois. — Ela balançou a cabeça, ainda fitando o envelope selado. — Você pode chamar todo mundo de uma vez? Acho que é mais rápido.

Paul assentiu, respeitando sua decisão. Inclinou-se então, e depositou um beijo suave nos lábios dela, depois um na bochecha e outro na testa. Rose riu baixinho, divertida, e Paul se demorou só um instante a mais, admirando mais uma vez o milagre que era vê-la viva, sorrindo de novo.

Então, com um último toque de carinho nos cabelos dela, Paul se levantou para abrir a porta mais uma vez. E Rose respirou fundo, preparando-se.

Quando eles entraram, um por um, estavam completamente silenciosos, como se todos estivessem segurando o fôlego. Rose se ajeitou na cama, com o coração disparado.

Quando olhou para seus antigos amigos, por um momento sentiu que estava de volta a Hogwarts. Como se aquele quarto fosse a Sala Comunal da Grifinória mais uma vez.

Hermione entrou primeiro. Ela parecia tão diferente, mas ao mesmo tempo ainda tão ela. A garotinha de cabelos crespos e dentes salientes tinha desaparecido, dando lugar a uma mulher adulta, madura e bonita. O que realmente chamou a sua atenção foi o seu olhar, ainda intenso, atento e determinado, exatamente como Rose lembrava.

Por um segundo, as duas se encararam em silêncio. E bastou apenas aquele instante para que os olhos de Hermione se suavizassem, e Rose entendesse que estava tudo bem, mesmo sem nenhuma palavra trocada.

Rony veio logo atrás. Ele estava mais alto, os ombros mais largos e o rosto mais definido, mas ainda era o mesmo amigo dela de sempre. Os mesmos cabelos ruivos, tão rebeldes quanto antes, o mesmo sorriso torto e os mesmos olhos azuis, que brilhavam de emoção ao encontrar os de Rose. Ela sentiu seu coração disparar no peito ao perceber que não havia nenhuma cobrança ali, ou mágoa, apenas uma saudade contida por tempo demais.

Depois vieram Fred e George. Entraram juntos, como sempre, parecendo ainda mais inseparáveis do que Rose lembrava. Estavam um pouco mais altos e os cabelos ruivos um pouco mais escuros, mas aquela energia caótica ainda era a mesma. Por um momento ela se perguntou se ainda era capaz de diferenciá-los.

Fred mal entrou no quarto e lançou um olhar dramático para Rose:

— Ela está viva. E mais gata do que nunca. Irmão, me belisca. Eu devo estar sonhando.

George abriu um sorriso malandro.

— Se esse é um sonho, então, por favor, não me acorde.

Antes que Rose pudesse responder, Paul deu um passo à frente, um olhar fulminante pousado nos gêmeos. Rose apenas riu baixinho e segurou a mão dele com delicadeza, puxando-o de volta para perto.

— Amor, calma. É só o jeito deles. — disse, ainda sorriso. — Eles são idiotas… mas inofensivos.

Fred e George levantaram as mãos no mesmo instante, como se estivessem se rendendo.

— Somos totalmente inofensivos! — disse Fred, com um sorrisinho brincalhão.

— Inofensivos, mas inevitavelmente charmosos. — completou George, piscando com exagero.

Paul cruzou os braços, o maxilar tenso, mas não disse nada. Rose apertou a mão dele com um leve sorriso, mantendo-o preso ao seu lado, e bem longe da ideia de arrancar a cabeça de um dos gêmeos.

— Vocês continuam exatamente os mesmos. — disse ela, balançando a cabeça. — Estou muito feliz por isso.

— Uau. Ela está feliz em nos ver. Isso não é uma vitória, George? — disse George. E Rose revirou os olhos, claramente ela ainda era capaz de identificar quem era quem, então.

— Com certeza, Fred. Estamos emocionados. — respondeu Fred.

— Pode ser apenas um efeito colateral da batalha. Talvez vocês tenham batido a cabeça. — Rose zombou, levantando uma sobrancelha.

— Ou talvez seja apenas um efeito da sua beleza resplandecente. — Fred rebateu, fazendo pose de galanteador.

Paul soltou um suspiro profundamente entediado, como quem estava contando até dez mentalmente.

— Tá bom, chega. — Rose disse, sorrindo. — Antes que meu namorado resolva fazer um buraco no chão com o rosto de vocês.

George ergueu as mãos de novo, num gesto de paz.

— Vieram só vocês? — Rose perguntou. — Tem mais alguém?

Então, a porta se abriu novamente. Ginny foi a primeira a entrar dessa vez. Ela cresceu e parecia deslumbrante. A garotinha que às vezes perseguia Rose não se parecia em nada com essa mulher. Seus cabelos agora eram longos e caíam em ondas soltas, com um brilho natural, e seu rosto expressava uma beleza madura, marcada pelos intensos olhos castanhos.

Quando ela olhou para Rose, um sorriso terno e cheio de emoção iluminou seu rosto ao vê-la ali, desperta, viva e bem.

— Você está mesmo aqui… — ela murmurou, quase sem acreditar.

Atrás dela, veio Neville, que a surpreendeu mais do que todos. Ele estava irreconhecível. Os ombros largos, a postura reta, uma leve barba por fazer… ele parecia um homem agora, não mais o menino desajeitado e nervoso que ela conhecia.

Rose o encarou por tanto tempo, que Neville corou visivelmente, sem saber para onde olhar ou colocar as mãos. Paul, ao perceber a troca de olhares, ergueu uma sobrancelha curiosa e lançou um olhar discreto para Rose.

Ela riu, um pouco envergonhada, e rapidamente se desculpou:

— Desculpe, Neville, é que você ficou bem diferente…

Ginny, atrás deles, sorriu e acrescentou com um tom divertido:

— Gato pra caramba, né?

Rony fez um som exagerado de vômito, provocando risadas de todos. Menos de Paul, que ficou carrancudo ao seu lado.

— É muito bom ver vocês, pessoal. — Rose disse, com um enorme sorriso no rosto.

— Estamos felizes em ver que você está bem, Rose. — Neville respondeu, com sinceridade. — Você fez muita falta em Hogwarts.

— E nós também queremos pedir desculpas, Rose — falou Hermione pela primeira vez, a voz carregada de sinceridade. — Nós sabíamos que você estava passando por momentos difíceis depois do sorteio do Torneio Tribruxo e acabamos contribuindo para que tudo piorasse. Foi por nossa causa que você fugiu.

— É verdade. — Rony disse, com um sorriso envergonhado. — Sinto muito por tudo o que eu fiz também. Você era a minha melhor amiga e eu estraguei tudo por causa de ciúmes. Eu era um adolescente idiota.

— Você ainda é um pouco idiota. — murmurou Ginny, provocando novas risadas no grupo.

Rose fungou, sentindo as lágrimas ameaçarem voltar.

— Eu também sinto muito — disse ela, com a voz suave. — Eu estava sobrecarregada e com medo, realmente não foi o meu melhor momento. Mas éramos todos adolescentes, né? Essas coisas acontecem. Talvez, se a guerra não tivesse sempre pairando sobre nossas cabeças, essas brigas teriam sido diferentes… e resolvidas muito mais rápido.

Ela pausou por alguns segundos, tentando conter o choro que apertava seu peito.

— Eu senti muita saudade de vocês.

Hermione não resistiu. Num impulso, jogou-se nos braços de Rose, chorando livremente. Rose soltou uma risada entrecortada, tocada pelo gesto, sentindo-se aliviada — feliz, até — por perceber que, no fundo, algumas coisas não haviam mudado tanto, apesar dos anos e da distância.

Ela apertou Hermione com força, tentando recuperar o tempo perdido, e então estendeu os braços, chamando os outros com um sorriso molhado:

— Venham logo. Isso aqui é um abraço coletivo.

E eles vieram, todos juntos, emaranhados em risos e soluços. Foi ali, cercada por velhos amigos e também pelo amor de Paul, que Rose sentiu que talvez não tivesse perdido tantas coisas assim.

Eles acabaram passando um bom tempo juntos, rindo, conversando e trocando histórias como se os anos de distância tivessem se desmanchado num estalar de dedos. Rose ouvia tudo com atenção, os olhos brilhando a cada pequena coisa dita.

Foi quando Hermione mencionou, quase de passagem, que ela e Rony estavam casados, que Rose congelou no lugar, a boca entreaberta de surpresa.

O quê? — ela exclamou. — Vocês casaram? Como essa não foi a primeira coisa que vocês disseram?

Rony soltou uma risada nervosa, enquanto Hermione ajeitou a blusa como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo. Mas ambos estavam visivelmente corados.

— Eu nunca teria imaginado isso no terceiro ano — Rose disse, ainda boquiaberta. — Sério. Vocês passavam tanto tempo brigando que eu jurava que se odiavam. Ou talvez... — ela estreitou os olhos, um sorriso maroto nos lábios — ...talvez aquilo fosse a forma de vocês flertarem?

A reação foi imediata. Os dois ficaram tão vermelhos quanto tomates. Rony murmurou algo incompreensível e Hermione engasgou com a própria saliva.

Foi o suficiente para que Fred, George e os outros explodissem em gargalhadas.

Rose também não perdeu a oportunidade de sondar mais sobre a vida dos seus outros amigos, afinal, depois de tanto tempo, ela precisava de atualizações.

Fred contou, com orgulho e um brilho nos olhos, que estava noivo de Angelina Johnson. Rose lembrava vagamente da bruxa corajosa e atlética dos tempos de Hogwarts, e riu ao imaginar os dois juntos, fazia sentido de um jeito completamente assustador.

George, por outro lado, arrancou uma reação genuinamente chocada de Rose ao dizer, casualmente, que estava namorando um rapaz que conheceu durante o Torneio Tribruxo e conseguiu reencontrá-lo anos depois em Londres.

Neville contou, meio sem graça, que estava noivo de Hannah Abbott, e Rose logo se lembrou da garota gentil e tímida. Achou adorável e apropriado, e também não pôde deixar de notar como Neville corou só de falar o nome dela. Distraidamente ela notou como Paul relaxou depois de saber que Neville não era uma competição. Rose revirou os olhos para ele.

Mas foi ao se virar para Ginny que Rose assumiu sua expressão mais maliciosa.

— E você, senhorita Weasley? Alguma novidade… canina, talvez?

Ginny arregalou os olhos, o rosto ficando corado instantaneamente.

Rose!

— Ah, então é verdade… — Rose sussurrou com um sorriso vitorioso. — Você conheceu bem o Jake?

Ginny balançou a cabeça, murmurando algo sobre ela ser insuportável, enquanto todos riam da provocação. Rose deu uma piscadela cúmplice e apenas disse:

— A gente vai conversar sobre isso depois, Ginny. Em detalhes.

Eles passaram a tarde juntos. Havia algo de mágico em estar entre velhos amigos, mesmo com os anos pesando sobre os ombros, sabendo que todos ainda precisavam se acostumar com ela e vice versa, as histórias deixando marcas profundas no coração de cada um e até os choros por causa das pessoas que foram perdidas: Sirius, Dumbledore, Arthur, Bill, Percy, Augusta, Tonks  e outros que deixaram o clima pesado.

Por outro lado, eles também riram e relembraram os tempos de Hogwarts. Provocaram-se como antes, como se o tempo não tivesse passado, e quando Rose começou a contar sua própria história depois da fuga, todos a ouviram com atenção total, os rostos sérios e os olhos marejados.

Rose falou sobre como havia perdido sua magia, e o quanto aquilo doeu e a devastou. Sobre como, sem poderes, precisou aprender a sobreviver no mundo trouxa. Contou sobre a faculdade de Medicina, sobre os plantões longos e as aulas difíceis, e como, aos poucos, redescobriu um sentido para si mesma. Quando falou que era médica, viu orgulho sincero nos rostos de todos, especialmente em Hermione e Rony, que sorriram como se quisessem aplaudi-la.

Ela falou sobre Forks, sobre La Push, sobre o tio Charlie e o tio Billy, e sobre como eles se tornaram sua família. Explicou como conheceu Paul, e neste momento, não conseguiu esconder o brilho no olhar. Paul se aconchegou ao seu lado, o braço sobre seus ombros, e era impossível não ver os olhares amorosos que eles trocavam.

Os olhos marejaram de novo, mas desta vez por um motivo bom. Houve mais abraços, mais sorrisos.

Rony fingiu limpar uma lágrima com uma careta exagerada, e George disse que agora Paul tinha aprovação oficial, mas que o controle de qualidade dos irmãos Weasley era rigoroso, então ele deveria manter o desempenho em dia.

Rose riu alto, sentindo uma paz em seu coração e um pouco boba por ter sentido medo desse momento. A dor ainda estava ali, é claro — a perda, a guerra, a saudade —, mas havia também calor, ternura e tanta esperança.

E naquele momento, cercada de pessoas que marcaram seu passado e agora testemunhavam seu presente, Rose sentiu que estava, de fato, inteira novamente.

Notes:

Eu tive que dividir esse último capítulo em dois, pois ainda há coisas a dizer e perguntas a responder, então aumentei a contagem de capítulos + epílogo.

Chapter 56: CINQUENTA E SEIS

Chapter Text

No dia seguinte Rose, finalmente, foi liberada para voltar para casa, acompanhada de instruções médicas, recomendações de repouso e olhares preocupados de Paul. Apesar dos hematomas ainda visíveis e da dor ocasional que latejava no seu tornozelo, Rose se sentia muito bem, mais forte.

Estava exausta, é verdade, emocionalmente drenada, mas o desejo de retomar o cotidiano e voltar para casa era maior que qualquer desconforto.

A despedida da casa dos Cullen foi surpreendentemente triste.

Rose desceu as escadas com calma, com Paul sempre ao seu lado, conduzindo-a com delicadeza, carregando suas coisas, abrindo portas e vigiando cada passo seu com olhos atentos. Ela não protestou. Naquele momento, ela sabia que aceitar o seu cuidado também era uma forma de dizer que o amava, e que permitia que ele a amasse.

O Dr. Cullen a esperava na saída, com as mãos cruzadas à frente do corpo e a expressão serena de sempre, embora seus olhos não pudessem esconder a exaustão, como se o luto tivesse sido capaz de envelhecê-lo, mesmo sendo imortal.

— Srta. Potter — ele começou, com a voz gentil. — Toda a minha família já se foi. Mas eu quis ficar. Eu queria ter certeza de que você estava realmente bem.

Ela já sabia disso, mas assentiu mesmo assim. Apesar de tudo, ela estava grata por toda a ajuda do Dr. Cullen.

— Eu queria me desculpar — ele continuou. — Por tudo o que aconteceu, e por tudo o que você passou. Nós nos responsabilizamos por todos os erros que Bella cometeu, afinal ela fazia parte da minha família, mas não fomos capazes de mantê-la… no controle.

— Claro, eu entendo. Eu agradeço a sua honestidade e pedido de desculpas, Dr. Cullen.

Ele assentiu suavemente.

— Eu também gostaria de contar à você… um dos bruxos representantes do Ministério da Magia conversou comigo e me fizeram uma proposta. Querem que eu ajude no St. Mungus, o hospital bruxo, e ajude a cuidar dos feridos da guerra. E eu aceitei. Acho que preciso de um tempo longe. Desde que Esme…

Sua voz falhou por um breve instante. Ele não precisava dizer mais nada.

— Eu sinto muito pelo que aconteceu, Dr. Cullen. — Ela respirou fundo. — E, novamente, eu agradeço por toda a sua ajuda. Trabalhar com você foi… gratificante. Eu aprendi muito. De verdade. E sou realmente grata por tudo o que fez por mim… por nós. Mas…

Ela hesitou.

— Eu espero que a gente nunca mais se veja. — disse com honestidade. — Não porque tenho raiva ou mágoa de você ou da sua família. Mas porque, se eu nunca mais precisar cruzar seu caminho, é sinal de que a minha vida estará em paz.

Carlisle sorriu, gentil e compreensivo.

— Eu entendo, Srta. Potter. E, para ser sincero… a minha família não pretende mais voltar para Forks. A casa será vendida. Acho que todos precisamos seguir em frente.

Ela assentiu. Foi uma despedida sem abraços e lágrimas, mas bastante respeitosa. Rose ficou satisfeita por conseguir um encerramento e finalmente fechar esse capítulo.

Do lado de fora, os amigos dela estavam reunidos para se despedirem. Era hora de irem embora, todos voltariam para a Inglaterra em uma chave de portal que o Ministério liberou exclusivamente para esse grupo.

Hermione a abraçou primeiro, murmurando uma promessa de manter contato por cartas. Neville a segurou com carinho pelos ombros e lhe desejou boa sorte. Ginny, ainda rindo das piadas do dia anterior, disse que esperava vê-la em breve, já que ela já havia feito planos para ver Jake novamente. Fred e George, como sempre, fizeram uma reverência dramática e várias piadas de duplo sentido que fizeram Paul segurar Rose firmemente pela cintura.

Por fim, Rony se aproximou.

Ele carregava uma pequena gaiola, e quando Rose olhou, mal pôde acreditar: era Edwiges.

Imediatamente ela abriu a gaiola e soluçou nas penas macias da coruja, enquanto Edwiges piava baixinho, pousada em seu braço com a serenidade de sempre. Embora seus olhos dourados se fechassem ocasionalmente, como se ela também saboreasse o reencontro tanto quanto Rose.

— Ela ficou com a gente todos esses anos — Rony explicou, sorrindo feliz. — Mas agora é hora de voltar pra você. Eu sei que ela estava sentindo sua falta.

— Obrigada, Rony… — ela murmurou por fim, com a voz embargada. — Por tudo. Por cuidar dela. E também por nunca terem se esquecido de mim.

Rony deu de ombros, mas o sorriso em seus lábios era suave e carinhoso.

— A gente nunca esqueceu de você, Rose. E agora que estamos juntos novamente, vamos manter contato, certo?

Ela assentiu, enxugando as lágrimas com a manga da blusa, ainda com Edwiges aninhada contra seu rosto.

— Com certeza.

— Cuide-se, Rose — Hermione deu um passo à frente. — E se precisar da gente… é só mandar a Edwiges.

Ela assentiu, sentindo o coração apertado e, ao mesmo tempo, tão cheio. Quando os viu tocar a chave de portal e desaparecer em um redemoinho, soube que essa despedida também seria um novo começo.

Com Edwiges voando sobre suas cabeças agora, e Paul segurando firme sua cintura, Rose respirou fundo.

Era hora de ir para casa.

 

*

 

Alguns dias se passaram desde as despedidas, e a vida, aos poucos, começou a encontrar um novo ritmo. O funeral de Quil aconteceu exatamente uma semana depois, em um final de tarde marcado por lágrimas e abraços apertados.

A história oficial foi que o terremoto havia causado a morte de algumas pessoas na região. Quil Ateara, Bella Swan e Esme Cullen estavam entre as vítimas, incluindo as pessoas que estavam no acampamento no meio da floresta e também foram afetadas pela batalha. Ninguém fez muitas perguntas.

Os Cullen foram embora, e Forks aceitou o desaparecimento deles como sempre aceitava suas excentricidades. A casa, agora vazia, logo estaria à venda.

Dias depois do funeral, os que ficaram se reuniram ao redor de uma fogueira para contar histórias, honrar a memória de Quil e agradecer por aqueles que estavam vivos.

Foi uma noite muito boa, quente, com cheiro de maresia e inúmeras tortas, cortesia da Tia Sue. O Velho Quil apareceu, e passou a noite numa cadeira de madeira, com a expressão nostálgica e os olhos cheios de dor, especialmente quando falavam sobre seu neto. Mas ele estava feliz, então todos também ficaram.

Ginny também apareceu e passou a noite inteira pendurada na boca de Jake. Para ela, aceitar o imprinting foi tão fácil quanto respirar. Era como se sempre soubesse que algo grandioso sempre existiu em seu destino. Talvez crescer com magia mude a perspectiva das pessoas sobre certas coisas. Os dois estavam inseparáveis e ninguém parecia se importar com o excesso de beijos ou mãos dadas o tempo todo. Rose ficou um pouco chocada, mas talvez fosse porque ela lembrava dos dois serem apenas crianças e agora já eram adultos se agarrando e, bem, era um pouco estranho.

Remus, por outro lado, não estava presente e pediu um tempo para Leah. Eles decidiram se comunicar por cartas, mas ele ainda se sentia desconfortável com a diferença de idade e achou melhor levar tudo com calma. Leah estava disposta a ter paciência, o que realmente era inédito para ela.

Paul e Rose estavam juntos, claro. Ela encostada no ombro dele, os dedos entrelaçados, ouvindo em silêncio enquanto Embry contava uma história de quando Quil tentou saltar do penhasco e acabou enroscado em algas, gritando como uma garotinha.

As risadas ao redor da fogueira eram altas, e Rose sentiu uma pontada de saudade, enquanto observava os rostos das pessoas iluminados pelas chamas.

Paul virou-se lentamente, encostando os lábios na lateral do rosto dela.

— Quer dar uma volta comigo?

Rose ergueu os olhos, e assentiu de imediato.

— Claro.

Ele se levantou e puxou-a com delicadeza, e embora os outros tenham notado, ninguém disse nada, apenas sorriram em silêncio. Eles caminharam pela areia fria da praia, os pés afundando levemente na superfície macia, o som das ondas preenchendo o silêncio confortável entre eles.

Finalmente, Paul parou quando já estavam longe o suficiente da fogueira para ouvirem apenas o murmúrio distante das conversas. Ele virou-se para ela e segurou suas mãos, os olhos escuros fixos nos dela.

— Prim… — Ele começou, a voz baixa e levemente trêmula. — Eu já quase te perdi. Mais de uma vez. E cada uma dessas vezes me quebrou mais do que a anterior. Eu não quero mais correr o risco de perder o tempo que a gente ainda tem. Eu estava esperando o momento certo, mas não quero adiar mais.

Ela o encarou, o coração já acelerado.

Paul tirou algo do bolso. Era uma caixa de veludo, e dentro um anel simples, de prata, com uma pequena pedra brilhante no topo.

— Eu sei que a vida é imprevisível. Sei que a gente ainda está se curando, que temos fantasmas demais nos assombrando. Mas também sei que, no meio de tudo isso, você é a única certeza que eu tenho. — Ele respirou fundo, procurando as palavras certas. — Eu já te amava antes do imprinting, Prim. Desde que te conheci, desde que ouvi a sua risada pela primeira vez, desde que olhei nos seus olhos e passei a amar a cor verde, desde que vi o jeito como você falava com todo mundo, até mesmo com idiotas como eu.

Rose riu baixinho, o coração apertado de emoção.

— Mas quando eu olhei nos seus olhos naquele dia e o imprinting aconteceu… não foi uma surpresa. Foi só a confirmação de tudo que eu já sabia. Que você foi feita pra mim. E que, de alguma forma maluca do universo, eu também fui feito pra você.

Ele se ajoelhou na areia, sem desviar o olhar dos olhos dela nem mesmo por um segundo.

— Eu amo você, Prim. Amo tanto que às vezes parece que esse amor não cabe dentro de mim. E eu quero passar o resto da minha vida com você. Quero acordar todos os dias ao seu lado, ver você envelhecer, crescer, mudar, se reinventar. Quero te amar nos seus dias bons e te segurar nos ruins. Quero que a gente construa uma vida juntos. Cheia de amor, de risadas, da minha comida ruim e até de brigas bobas. E filhos… de preferência uns cinco. Mas a gente pode negociar.

Rose riu, os olhos já transbordando.

— Primrose Potter, você quer se casar comigo?

— Sim. — Ela sussurrou, caindo de joelhos diante dele e abraçando-o com força. — É claro que sim.

Paul riu também, o som abafado contra o cabelo dela. Eles ficaram ali, abraçados sob a lua, com o mar como testemunha. Ele deslizou o anel no dedo dela e a beijou com reverência, como se dissesse "obrigado" em silêncio.

E quando voltaram para junto da fogueira, de mãos dadas, com os olhos brilhando e os sorrisos impossíveis de conter, ninguém precisou perguntar nada.

Todos correram para abraçar o casal recém-noivo e parabenizá-los.

Rose nunca esteve tão feliz.

 

*

 

Foi somente muitos meses depois que Rose finalmente leu a carta de Dumbledore.

Naquele dia, ela estava sentada no chão do quarto, cercada por caixas de papelão, pilhas de roupas e outros objetos cuidadosamente empacotados. A casa estava praticamente vazia, e ela estava empacotando os últimos pertences antes de fechar as portas do lugar onde cresceu. Paul havia decidido construir uma casa nova em frente à praia, com mais espaço, onde eles pudessem começar a sua família sem interferência das memórias dolorosas do passado.

Tio Charlie tinha insistido que ela simplesmente vendesse a antiga casa, mas Rose recusou. Ela preferia deixá-la fechada por enquanto, talvez ela pudesse dar de presente para o seu primeiro filho no futuro ou algo assim. Já Paul, sem a mesma nostalgia, decidiu vender a casa do pai sem pensar duas vezes. O homem havia desaparecido da vida dele e nunca dera sinal de que voltaria, então ele realmente não se importava.

Rose havia retornado ao trabalho no Hospital de La Push algumas semanas depois de tudo. Oficialmente, ela estava afastada por uma licença especial por causa das últimas perdas. Isso acabou coincidindo com a recuperação dos seus ferimentos, então, pelo menos, ela não precisou inventar uma história para isso.

A vizinhança em La Push agora era diferente também. Tio Charlie decidiu se aposentar mais cedo e se tornou vizinho do tio Billy. Eles passavam quase todos os dias juntos, às vezes assistindo jogos, outras vezes pescando no rio como dois velhos rabugentos. Era estranhamente doce.

Remus também aparecia ocasionalmente. Ele e Leah estavam caminhando devagar, sem pressa. Ainda havia muitos receios e cicatrizes. E Rose também ficou sabendo que Remus tinha um relacionamento com Tonks antes que ela morresse na guerra, então fazia sentido que ele estivesse com um pé atrás. No entanto, a esperança estava lá, e bastava que eles fossem pacientes nesse novo relacionamento. Rose tinha esperanças de que tudo daria certo no final.

Ginny e Jake, por outro lado, não perderam tempo algum. O imprinting entre eles foi imediato e avassalador. Ginny queria se mudar para os EUA na mesma hora, mas Molly surtou com a ideia e vetou completamente. Especialmente agora, depois de tantas baixas na sua família. Ela só queria todos os filhos o mais próximos possível. A solução foi instalar uma lareira com pó de Flu na casa do tio Billy, e agora Ginny aparecia todos os finais de semana em La Push, ou Jake ia passar uns dias em St. Catchpole.

Rose trocava cartas com todos, mas principalmente com Hermione e Rony. Ela realmente não queria saber sobre a repercussão da guerra na Grã-Bretanha, especialmente quando ela não tinha mais nada a ver com isso e toda a sua família tinha sofrido com as consequências, então limitava as conversas à coisas boas, como o seu casamento. Hermione era incansável nos detalhes da organização, afinal Rose não estava lá para o dela, então as amigas tentavam compensar o tempo perdido.

Leah também estava envolvida, embora aos poucos. As duas ainda tentavam se reconectar com delicadeza, procurando um equilíbrio entre a amizade antiga e o respeito pelo que cada uma delas havia se tornado.

E naquela manhã nublada, um dia antes do seu casamento, Rose encontrou a carta esquecida entre as páginas velhas de um livro de anatomia, ainda no envelope intacto.

Ela parou por um instante, o coração apertado ao ver a caligrafia de Dumbledore. Sentou-se com as pernas cruzadas no chão, limpou as mãos suadas no jeans e respirou fundo antes de abrir o envelope com cuidado.

E então, ela começou a ler.




 

 

 

Querida Primrose,

Escrevo-lhe com o coração pesado e uma consciência que, mesmo após todos esses longos anos, ainda não encontrou descanso. Peço-lhe perdão, não porque eu ache que mereça, mas porque não posso suportar o peso da minha própria culpa por mais um dia.

Talvez você não entenda o porquê dessa carta, Primrose. Na verdade, talvez seja melhor que você não entenda. Algumas escolhas são feitas de tantas dores e sentimentos antigos que nem mesmo eu tenho coragem o suficiente para decifrá-las por completo. Basta que você saiba isto: eu me arrependo.

Há algumas dezenas de anos, quando eu era pouco mais do que um jovem tolo cheio de sonhos perigosos, cometi erros que mancharam a minha alma de uma forma que nunca verdadeiramente se apagou. Conheci um rapaz, igualmente sonhador, mas que foi um erro. Algumas histórias não merecem ser revividas , no entanto, mas o que ficou foi a culpa, a mesma que me persegue agora, ao pensar no que fiz com você.

Parece que não mudei tanto quanto gostaria de acreditar.

Saber que falhei com você é uma das muitas sombras que agora carrego, e confesso que, mesmo em minha avançada idade, ainda me surpreendendo com a facilidade com que o orgulho e a arrogância podem cegar até mesmo os mais velhos e supostamente sábios. Acredite, Primrose, não foram boas as intenções que me guiaram, mas sim uma teimosia que hoje me envergonha.

Você, que sempre demonstrou uma coragem tão singular, merecia muito mais do que promessas vagas e segredos convenientes. Eu, que deveria ter sido um mentor, deixei você navegar sozinha em águas traiçoeiras. E por isso, não há desculpas que bastem. Apenas o reconhecimento amargo da minha falha.

Nenhuma desculpa será suficiente, Primrose. Nenhum gesto, por mais sincero, poderá apagar os anos de solidão que você carregou, nem devolver a você a infância que lhe foi roubada. Mas permita-me, mesmo que tarde demais, tentar iluminar uma verdade que talvez nunca tenha sido dita a você com a clareza que merecia.

Quando eu a deixei naquele degrau na casa dos Dursley naquela noite fria de novembro  de 1981, não estava pensando em você como uma criança. Estava pensando em você como um efeito colateral. E essa, Primrose, é a verdade mais vergonhosa que carrego.

Foi um baque quando você fugiu do Torneio Tribruxo, eu confesso. Sua ausência ameaçava todos os planos futuros. Por um instante, fiquei tomado pelo pânico. Mas depois, com o tempo, veio a pergunta inevitável: por que você fugiu?

Foi essa pergunta que me levou à porta da Sra. Petúnia Dursley. E foi ali que eu descobri onde você estava. Um lugar onde ninguém imaginaria encontrar uma garota bruxa desaparecida.

Viajei até Forks em segredo, sem alertar o Ministério que ainda buscava por você. Parte de mim queria encontrá-la e trazê-la de volta. Mas quando eu a vi, atravessando a rua com os livros nos braços, indo para uma escola trouxa com muitos amigos e um brilho no olhar que eu nunca vi em Hogwarts, entendi tudo. Pela primeira vez, vi você livre.

Naquela noite, eu chorei de arrependimento. Pela criança que nunca foi permitida crescer normalmente. Pela adolescente que teve que fugir com medo da morte. Pela mulher que você estava se permitindo se tornar.

Naquela noite, tomei uma decisão que muitos chamariam de covarde, e talvez seja mesmo. Mas foi o mais próximo da redenção que consegui encontrar. Conversei com Sirius e desabafei sobre todos os meus planos. Ele me odiou, claro. Mas quando soube que você estava bem… não acho que ele me perdoou totalmente, mas concordou comigo e aceitou me ajudar.

Foi ele quem sugeriu esse livro. Era uma relíquia da família Black, que guardava um ritual obscuro. Um tipo de feitiço de ocultação que não apaga memórias, mas tirava o foco. Não era um Fidelius, mas funcionava de maneira muito parecida. Enfraquecia o laço entre o nome e o rosto. As pessoas ainda lembrariam de você, sim. Mas não sentiriam urgência em procurá-la. Não sentiriam saudade aguda, nem desespero. Só um vago incômodo, facilmente ignorado. Ao que tudo indica, a família Black usava esse ritual para desvanecer rivais, amantes indesejados e filhos ilegítimos. O ritual também previa a possibilidade de excluir algumas pessoas dos seus efeitos, garantindo que apenas um grupo seleto soubesse sobre o segredo e garantisse que estava funcionando.

Mas, assim como toda magia dessa natureza, exige um preço e uma consequência. Nesse caso, a consequência era que o ritual não poderia ser desfeito. Uma vez realizado, significava que essa pessoa seria ignorada para sempre. É claro que em relacionamentos próximos, como o de familiares ou inimigos, ele poderia não fazer tanta diferença. Mas tratando-se de relacionamentos menores e, especialmente com a distância, a pessoa do foco do ritual seria praticamente esquecida.

No seu caso, eu esperava que você ficasse segura o suficiente para viver em paz, sem que outros bruxos, especialmente Voldemort, lhe incomodassem. Eles só seriam capazes de ter interesse novamente em você, se alguém os levasse até o seu endereço pessoalmente, pois eles a veriam e o interesse não seria perdido. Eu me certifiquei de que não havia outros bruxos morando perto de você, no entanto. Sei que essa é uma magia complexa e que pode haver muitas brechas, mas acredito que é a melhor opção, no momento, para manter a sua segurança.

E quanto ao preço, era necessária uma porcentagem significativa da magia de um bruxo para alimentar o ritual.

Eu estava disposto a usar a minha.

Não acho que tenha sido uma atitude nobre. Mas porque, sabendo o que havia feito a você e a tantos outros, a perda da minha vida poderia ser usada em prol do bem maior. Minha morte seria útil e eu ainda poderia proteger você de voltar para um mundo de dor. Foi a única réstia de redenção que encontrei. E, ironicamente, foi a última jogada da minha velha arrogância.

Antes do ritual, conversei longamente com Sirius e Severus. Precisava deixá-los preparados, caso minha vida se encerrasse em breve. Falei com eles sobre as horcruxes, esses objetos que Tom Riddle criou para se manter imortal. Entreguei a eles algumas das minhas memórias mais importantes sobre Tom Riddle, desde a infância até os primeiros indícios de fragmentação de sua alma. Sabia que eles tomariam as decisões certas.

Infelizmente, logo depois de realizarmos o ritual, Sirius foi morto pelo próprio Lorde Voldemort. Foi uma perda devastadora para mim, para a Ordem da Fênix e, acima de tudo, para você, acredito eu. Não houve tempo para luto, nem espaço para honrá-lo como merecia. A morte de Sirius me deixou sozinho diante do que viria a seguir. Então, confiei a Severus a tarefa de procurar a Confederação Internacional dos Bruxos e caçar as horcruxes. Se havia alguma chance de apoio fora da Grã-Bretanha, era lá. Eles prometeram que tentariam. E eu acreditei.

Havia, no entanto, uma última preocupação que não consegui compartilhar com ninguém. Uma suspeita que me assombrou desde o incidente do Diário de Tom Riddle. Com o tempo, tive quase certeza: Voldemort havia deixado uma marca em você. Um fragmento de sua alma.

Mas havia algo inédito sobre a sua situação. Você perdeu a sua magia. E quando isso ocorreu depois da quebra do contrato com o Cálice de Fogo, tive uma última e desesperada esperança.

Magia é o que alimenta esse tipo de vínculo sombrio. Magia é o sangue que mantém viva uma Horcrux. Sem ela… sem o seu poder… talvez o pedaço dele em você também tivesse morrido. Talvez, finalmente, você estivesse livre.

Eu não tinha como saber. Ainda não tenho. Mas torço, com todas as forças que me restam, para que tenha sido o caso. Pois se houve algum sentido na sua fuga, se houve alguma justiça no universo, era para que você encontrasse paz. E para que ele nunca mais voltasse a tocar em você.

Sei que essas palavras não mudam o que você viveu. E sei que jamais poderei me redimir por completo. Mas espero que, ao menos, elas deixem claro que mesmo nos meus maiores erros, eu sempre vi em você algo que sempre respeitei profundamente.

Estas são as minhas últimas palavras, pois já faz algum tempo pós-ritual e já sinto o enfraquecimento do meu corpo. Não sou um bruxo fraco de magia e sei que me destaco por conseguir sobreviver mesmo com um ritual que ainda suga a minha energia.

Portanto, depois de encerrar esta carta, pretendo encontrar uma forma de chegar até Voldemort. Fingiria fraqueza, deixaria que ele acreditasse que foi mais esperto, tentaria negociar, e no momento certo, me deixaria cair diante dele, carregando uma das horcruxes comigo.

Minha vida, por sua liberdade.

A de Sirius, infelizmente, já havia sido levada. Ele morreu acreditando que você estava segura, feliz e que havia encontrado um lar. Isso lhe deu paz.

Espero que, ao menos isso, lhe traga algum consolo.

Com respeito e arrependimentos profundos,

Albus Percival Wulfric Brian Dumbledore





 

 

 

Rose ficou sentada no chão do seu quarto durante alguns minutos, com as mãos trêmulas e os olhos cheios de lágrimas. Este era para ser um momento leve, de despedida e empolgação. Mas ali, com aquelas palavras gravadas em sua pele, ela sentiu o mundo se inclinar novamente.

Ela já sabia sobre a morte de Sirius, mas ler assim, com o peso das palavras de Dumbledore, tornava tudo ainda mais doloroso. Havia algo cruel em como a vida parecia insistir em entregar suas verdades sempre tarde demais.

E Dumbledore… ela ainda não tinha palavras para descrevê-lo. Sentia-se exausta demais para tentar nomear tudo o que se remexia dentro dela quando pensava no diretor. Ele foi uma figura quase mítica. E ela o amava. Mas agora, sabia que, antes de ser um bruxo poderoso, ele também era um homem. E homens erravam. Tomavam decisões injustas em nome de ideais maiores. Escolhiam por outros. Escondiam verdades. Sacrificavam vidas.

Rose apertou os braços ao redor do próprio corpo, como se quisesse conter as rachaduras internas. Não conseguia odiá-lo. Parte dela nem queria. Mas havia uma dor sutil ali, que não sabia onde guardar. Uma pílula amarga que ela sabia que deveria engolir à força.

Ela não queria explorar esse sentimento agora, no entanto. Não queria analisar cada camada de culpa, sacrifício e redenção que aquela carta carregava.

Rose só queria se permitir sentir gratidão. Queria se sentir feliz por Dumbledore ter tentado protegê-la. Feliz por saber, com certeza agora, que Sirius a amou até o último suspiro e não ficou ressentido pela sua fuga. Satisfeita que, provavelmente, eles criaram o ritual excluindo os seus amigos e permitindo uma pequena brecha para que, no futuro, se ela quisesse, os reencontrasse. E até mesmo grata a Snape, que, apesar de continuar sendo um idiota irremediável, contribuiu para o fim de Voldemort.

Ela não fazia ideia de onde ele estava, e tinha quase certeza de que ele não era o tipo de pessoa que responderia a uma carta de qualquer pessoa, muito menos aceitaria um agradecimento, especialmente dela. Mas onde quer que estivesse, ela sinceramente esperava que ele tivesse encontrado alguma paz.

E quanto à Horcrux em sua cicatriz… Rose soltou uma risada incrédula, quase irônica, ao imaginar o rosto de Dumbledore se descobrisse que ela não só havia se livrado da marca de Voldemort com base apenas em pura sorte, como o fez da forma mais dramática possível: levando uma segunda Maldição da Morte direto no peito e, ainda assim, voltando.

Era tão ridículo que só podia ser verdade.

No fim, talvez ela fosse mesmo muito mais sortuda do que sempre acreditou.

Rose suspirou e decidiu que era hora de deixar o passado para trás. Ela guardou a carta na última das caixas com cuidado, os dedos demorando um segundo a mais sobre a tampa.

E, então, sorriu.

Lá fora, os garotos estavam levando as caixas para a caminhonete de Paul. Ela conseguia ouvir Embry reclamando do peso, Jared fazendo alguma piada de duplo sentido sobre a noite de núpcias, Sam tentando organizar tudo enquanto Jake, provavelmente, apenas revirando os olhos.

Na cozinha, o som das vozes de Hermione, Leah e Ginny enchia o ar com entusiasmo. Elas estavam animadas, debatendo os últimos detalhes sobre o casamento, como se o dia de amanhã já tivesse chegado.

Os convidados já haviam começado a chegar em Forks, espalhando-se pelas casas que acomodariam cada grupo. Alguns ficariam na casa do tio Charlie ou tio Billy, e outros ficariam na antiga casa de Paul, já que tinha espaço suficiente para todos.

Rose se aproximou da janela e observou a movimentação lá fora por um instante. O dia estava meio cinzento, mas o sol ainda brilhava no céu, embora os tons suaves de laranja, vermelho e dourado começassem a surgir no horizonte. Seu coração estava aquecido com a cena tranquila e cheia de vida diante dela. E a ideia de um futuro há apenas um passo de distância enchia seu peito de felicidade.

Estava tudo bem.

Chapter 57: CINQUENTA E SETE

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

La Push, WA

2059

 

 

Primrose Lahote abriu o álbum de fotografias na primeira página.

Seus dedos, agora finos, trêmulos e enrugados, deslizaram sobre o papel amarelado, como se pudessem acordar o passado com apenas um toque. As fotos, coladas com bastante zelo, haviam resistido ao tempo e à tecnologia. Os rostos ali ainda guardavam histórias que o tempo levou, mas ainda moravam inteiras dentro dela.

Ela abriu um pequeno sorriso agridoce ao ver as primeiras fotos, aquelas dos seus pais. Jovens demais. E, no entanto, tão cheios de alegria que parecia impossível pensar que morreriam apenas dois anos depois.

A imagem do casamento deles ainda parecia tão brilhante quanto no primeiro dia em que Rose a viu pela primeira vez, aos onze anos. Seu pai, James, ajeitando a gravata torta com um sorriso travesso e eternamente infantil, enquanto sua mãe, Lily, lançava a ele um olhar que era igualmente exasperado e amoroso. Atrás deles, Sirius fazia uma careta, tentando sabotar a solenidade da foto, enquanto Remus escondia o riso atrás do ombro do amigo. Peter… estava lá também.

Primrose ficou um momento a mais naquela imagem. Seus olhos, agora obscurecidos pela idade e ocultos atrás dos óculos, se encheram de lágrimas. Ela traçou o contorno dos rostos com a ponta do dedo, como se aquele simples movimento pudesse trazê-los de volta à vida.

Na página seguinte, havia uma foto de Lily numa cama de hospital, com os cabelos um pouco fora de lugar e um olhar cansado. Ela segurava uma recém-nascida enrolada em um cobertor azul. Os olhos verdes de mãe e filha se encontravam como se fossem espelhos, uma reconhecendo a outra. James estava ao lado, meio fora de foco, um braço sobre Lily e o dedo acariciando a bochecha macia do bebê. Na margem inferior da foto, a letra inconfundível de Sirius dizia: “Primeira manhã em casa. Houve muito choro (principalmente de James).”

Rose riu baixinho, um som um pouco rouco e áspero. E então deixou que as lágrimas corressem livremente. Era bom lembrar.

Havia uma outra foto ao lado. Primrose, ainda bebê, estava deitada de bruços sobre uma manta tricotada, os punhos cerrados como se estivesse pronta para brigar com o mundo, o rosto enrugado e claramente irritado. Um único tufo de cabelo ruivo despontava no alto da cabeça, espetado e rebelde como uma chama recém acesa. Ao fundo, Lily aparecia ajoelhada, observando a filha com um sorriso enorme e um amor tão absoluto que parecia transbordar da imagem. James estava ao lado, deitado de barriga para baixo, fingindo dormir, mas uma das pálpebras claramente espiava a bebê, como se ele não quisesse perder um segundo sequer, nem mesmo suas birras colossais.

Primrose deixou escapar um riso baixinho, ofegante, e se permitiu lamentar mais uma vez, pois, mesmo depois de tantos anos, ainda doía que ela não tivesse tido a chance de crescer com eles. Que James e Lily nunca puderam conhecer Paul, serem avós de seus filhos e bisavós de seus netos.

Ela virou a página com cuidado, sabendo que esses eram os únicos registros que possuía deles. Não havia fotografias de aniversários infantis com os dois ao seu lado, nenhum natal em família, nenhuma imagem dela, mais velhas, entre os pais, com sorrisos parecidos e olhos iguais.

Primrose respirou fundo e continuou vendo as fotos. Embora doesse, o álbum não terminava ali. Ainda havia muitas fotos pela frente, que valiam a pena rever.

Nas página seguintes, imagens do primeiro ano de Hogwarts. A primeira foto mostrava Primrose, aos 11 anos, no sofá da Sala Comunal da Grifinória, espremida entre Rony e Hermione, os cabelos presos em duas tranças tortas e os joelhos nodosos à mostra sob a saia do uniforme. Havia migalhas de biscoito no seu suéter e um livro aberto no colo, embora ninguém ali parecesse estar estudando de verdade. Rony estava com a boca cheia e fazia uma careta. Hermione, meio de lado, falava animadamente enquanto apontava para uma linha do livro. E Primrose ria.

Ela passou os dedos sobre aquela imagem, devagar. Tentando relembrar aquele momento, o barulho da Sala Comunal, o calor da lareira, o conforto dos amigos.

As fotos seguintes eram igualmente melancólicas. Havia ali uma imagem de Hermione encolhida na biblioteca, cercada por livros. Na foto seguinte, Primrose voando em uma vassoura sobre o campo de quadribol, seus cabelos soltos ao vento, como se ela estivesse pegando fogo no ar. Um natal na toca, rodeada pelos Weasleys, todos com suéteres feitos à mão. Toda a turma sentada à beira do Lago Negro, rindo e contando piadas. Hermione, Ginny e Primrose sentadas na torre da Grifinória na frente da lareira, compartilhando cobertores. Uma imagem de Edwiges empoleirada numa janela, o olhar atento. Hagrid, sorridente, acenando atrás de uma fileira de abóboras gigantes, com Fang pulando em seu calcanhar.

Ela via-se crescendo página a página: os cabelos ficando mais longos, o olhar mais sério, a postura mais confiante. A menininha do começo do álbum cedia espaço à uma adolescente corajosa que aprenderia a sobreviver. E depois, à mulher que aprenderia a viver.

Depois vieram as fotos de Forks. Lá estava ela no primeiro dia de aula na escola trouxa, um casaco enorme escondendo o corpo franzino e a mochila apertada contra o peito. O olhar ansioso, os ombros tensos, como se o simples ato de atravessar os portões da escola trouxa fosse pior do que um campo de batalha.

Uma outra foto mostrava Primrose encostada no capô da viatura do tio Charlie, os braços cruzados e a testa franzida, claramente tentando imitá-lo. Ao lado, tio Charlie segurava um copo de café, o bigode desalinhado, tentando manter a pose austera para a câmera, mas os olhos o traíram, suavizados por um afeto que ele nunca soube demonstrar direito, mas sempre esteve lá.

Logo abaixo, uma foto em frente à casa dos Swan. O gramado molhado, a cerca de madeira descascada e Primrose sentada nos degraus da varanda, usando o casaco dele, grande demais para o corpo miúdo.

Depois vinham as fotos de suas amigas. Zoe, com o cabelo pintado com mechas roxas que nunca duravam uma semana, sempre com uma expressão desafiadora e o queixo erguido. Abigail, sempre tímida, surgia em várias fotos segurando livros ou cadernos, os óculos sempre escorregando pelo nariz. E Emma, expansiva e alegre, aparecia fazendo poses tortas. Havia uma imagem particularmente doce das três sentadas em círculo no quarto de Primrose, no que, provavelmente, tinha sido uma festa do pijama.

Havia tantas imagens de Primrose em La Push. Cada uma delas era uma farpa em seu velho coração. Havia ela sentada com Leah na praia, as duas de calças dobradas até os joelhos, os tornozelos na água gelada. Em outra, ela corria pela areia com os pés descalços, os longos cachos ruivos soltos ao vento como chamas vivas. Rindo, os braços abertos como se pudesse voar. Um pequeno Jake a seguia logo atrás, tropeçando nas próprias pernas enquanto tentava alcançá-la.

E então, ao redor da fogueira, havia tio Billy, tia Sarah, tio Harry, tia Sue e tio Charlie, todos ali, juntos. Primrose sentada entre eles, as mãos estendidas para aquecer os dedos, os olhos fixos em quem contava a história da vez.

Uma imagem perdida da pequena Bella, de tranças e joelhos ralados, empilhando pedrinhas na praia com Jake. Os pequenos Quil, Embry e Seth correndo despreocupadamente na reserva, gritando e rindo.

Uma foto a fez prender a respiração. Era o natal de 1997, em frente a casa dos Black. Tia Sarah e Primrose lado a lado em frente à casa dos Black e um carro vermelho no fundo. Ela sabia que horas depois, tudo mudaria.

Ela virou a página com cuidado, sentindo um velho nó se formar na garganta. A saudade ainda doía, mas ela aprendeu a conviver com ela.

Primrose viu uma imagem perdida de Paul, ainda adolescente, e ela na praia, de mãos dadas, no início do relacionamento. Ele a olhava de lado, com um meio sorriso, e ela sorria para frente, os cabelos voando em seu rosto. Na foto da formatura do ensino médio, ele tinha o braço ao redor dos ombros dela, o rosto iluminado por um sorriso orgulhoso. Ao fundo, suas amigas faziam caretas. Zoe jogando confete antes da hora, Abigail tentando impedir e Emma fingindo vomitar.

Depois, imagens do jantar de comemoração no dia em que ela recebeu a carta de aceitação da universidade. Todos estavam lá, até Paul, a observando do canto da mesa com olhos suaves. Na frente dela, um enorme bolo de chocolate feito pela tia Sue. As palavras “PRE-MED” escritas em glacê rosa vibravam sobre o topo, um pouco tremidas.

A seguir vieram as fotos da universidade. Um mosaico de imagens bagunçadas e alegres. Lá estava ela e Zoe jogadas em um sofá depois de um dia exaustivo de provas, os olhos semicerrados e os pés descalços. Em outra imagem, Riley aparecia espremido entre as duas, sorrindo largo, com uma caneta presa atrás da orelha. Em outra página, havia fotos de apresentações de trabalhos, noites mal dormidas com pilhas de livros e copos vazios de café espalhados pelas mesas. Fotos de festas improvisadas no fim de semana, com luzes coloridas e sorrisos bêbados.

Entre as imagens, Leah também aparecia. Sorrindo ao seu lado pelas ruas de Seattle, segurando milkshakes, bebendo num bar.

Veio a formatura do pre-med. A foto estava um pouco desbotada nas bordas, mas o brilho nos olhos de Primrose continuava intacto. Ela estava em um palco, segurando o diploma com ambas as mãos, o cabelo preso em um coque e a beca um pouco amarrotada. Seu sorriso era amplo e emocionado. Em outra foto, ela podia ver tio Charlie, tio Billy, tia Sue, Jake, toda a sua família reunida.

Na página seguinte, uma sequência de dias na Medical School. Ela estava em pé diante do letreiro da faculdade, com um sorriso tão grande que mal cabia no rosto, o cabelo ainda curto naquele corte que Leah fizera numa tarde em que tudo parecia desmoronar. Depois, vieram os registros dos primeiros dias de aula, laboratórios, amigos em poses ridículas, Rose com o seu jaleco.

O estágio no Hospital de Forks veio em seguida. Uma foto parada diante da fachada do hospital, o crachá pendurado no pescoço e os cabelos vermelhos destacando-se sobre o jaleco branco. Mais imagens: ela andando pelos corredores, dividindo o almoço no refeitório, rindo de piadas no final de um plantão pesado, um happy hour improvisado com colegas.

Havia novas imagens daquela época com Paul e com toda a família. Momentos capturados ao redor de fogueiras, caminhadas com os pés descalços, tardes preguiçosas na sala de estar da antiga casa de Paul, jantares românticos.

Em outra, Jake, agora mais alto do que Rose, a carregava nas costas enquanto ela ria escandalosamente.

Seth, Embry e Quil numa sequência de fotos na praia. Em outras também havia Jared, Sam e Emily, jogando frisbee, assando marshmallows, mergulhando no mar. Imagens felizes da juventude.

Depois vinham as fotos da formatura da Medical School. Em seguida, ela de jaleco novo, um crachá reluzente no bolso, o rosto orgulhoso e emocionado. Os registros dos seus primeiros dias no Hospital de La Push vinham logo depois, sorrindo com os colegas, os braços cruzados com confiança, acolhendo pacientes.

E então, Rose viu as fotos do seu casamento.

Mais lágrimas correram pelas suas bochechas antes mesmo que ela conseguisse virar a página por completo. Levou a mão à boca, tentando conter o choro.

Ali estavam as lembranças de um dos dias mais felizes de sua vida.

Primeiro, uma imagem especial de Paul, suado e sujo de tinta, martelando a estrutura da casa que seria deles, de frente para o mar. Finalizando os últimos detalhes antes da mudança.

Depois uma sequência hilária da despedida de solteiro deles, feita ao mesmo tempo, numa pequena viagem a Vancouver com todos os amigos. Ginny e Leah fazendo caretas para a câmera. Fred e George com camisetas contendo piadas obscenas. Rony e Jared tomando cerveja direto da garrafa. Hermione e Emily rindo juntas, provavelmente já levemente bêbadas. Jake, Embry e Sam sorrindo para a câmera. Rose e Paul grudados um no outro.

Depois, Rose se arrumando na casa do tio Charlie. A maquiagem delicada, seu vestido de noiva já vestido, um sorriso brilhante em seu rosto, Hermione e Leah ajeitando o véu enquanto Ginny segurava as lágrimas.

Uma foto tocante do tio Charlie, ao fundo, segurando o choro.

Toda a matilha reunida na praia ao redor de Paul, que parecia à beira de um colapso nervoso. O Velho Quil, sério e emocionado, celebrando o casamento apenas algumas semanas antes de falecer.

Paul e Primrose se beijando no altar.

Depois inúmeras fotos dançando, rindo, brincando, sendo erguidos no ar pelos amigos. Um bolo impecável, uma mesa cheia, comida farta, crianças correndo. Foi uma noite memorável.

E havia ainda as fotos da lua de mel. Vinte dias juntos em Londres, em que Rose levou Paul até Godric’s Hollow e viram o túmulo de seus pais, visitaram a Toca, jantaram na casa de Hermione e Rony e conheceram a recém-nascida e afilhada, Rose Weasley.

Os anos começaram a passar diante de seus olhos. Havia uma foto da inauguração da empresa de Paul, uma placa brilhante com o nome gravado. Ele estava cercado por amigos, e Rose ao seu lado, orgulhosa, segurando um capacete amarelo em uma das mãos e o braço do marido com a outra.

Logo depois, uma imagem solene de Rose numa sala de conferência, erguendo uma taça de espumante enquanto todos a aplaudiam. Foi o dia em que ela se tornou Diretora do Hospital de La Push.

A seguir, uma foto de um jantar improvisado, feito às pressas, no dia em que Ginny e Jake simplesmente decidiram fugir para se casar. Molly chorou por horas, mas acabou enviando um bolo para todos.

Depois imagens do casamento de Sam e Emily. Paul e Rose apareciam numa das fotos dançando juntos, abraçados, rindo um para o outro sob as luzes penduradas nas árvores.

Na imagem seguinte, uma foto do teste de gravidez positivo. O seu primeiro filho. Seguindo essa imagem, uma série de fotos do primeiro ultrassom, da barriga crescendo, da casa sendo lentamente adaptada. E, finalmente, o dia em que o pequeno James Paul Lahote veio ao mundo.

Uma foto mostrava Paul sentado na poltrona do quarto do hospital, com o bebê dormindo em seu peito. Em outra, Rose segurava o recém-nascido no colo, lágrimas ainda frescas nas bochechas, lembrando que, há alguns anos, era a sua mãe nessa exata posição.

As páginas seguintes mostravam o pequeno James crescendo, um menino cheio de energia com os olhos e cabelos de Paul, mas o temperamento de Rose. Em uma das fotos, ele corria atrás de Edwiges, em outra ele havia pintado o cabelo de Paul de azul em um surto de magia acidental.

Veio então a fotografia de um bolo com dois andares, decorados com girafas que, por algum motivo, James amava. E então, numa outra página, outro teste de gravidez. Desta vez, foi uma surpresa para todos.

Na imagem seguinte, Paul estava ajoelhado, beijando a barriga enorme dela com uma reverência emocionada. E mais à frente, o nascimento de Andrew Quil Lahote. Um bebê mais calmo que o irmão, mas com o mesmo brilho encantador nos olhos escuros. Outra foto mostrava James segurando Andrew no colo.

Em seguida, o primeiro natal de Andrew, fotos na praia e imagens dos garotos usando os suéteres tricotados por Molly. Logo depois, uma viagem em família para a Disney, Primrose de shorts e rabo de cavalo segurando um mapa do parque, Paul carregando Andrew nos ombros e segurando James pela mão e uma imagem especial de todos em frente ao castelo da Cinderela, ao anoitecer, com fogos de artifício no fundo.

Jantares em família com as crianças e o tio Billy, tio Charlie e tia Sue sendo avós superprotetores. Rose cortando um peru dourado, Remus ao lado de Leah, depois uma foto de Ginny e Jake, ela visivelmente grávida.

E então, mais uma vez, as surpresas da vida.

Havia uma foto de Rose segurando um teste de gravidez com uma cara claramente chocada, Paul escondendo o rosto atrás de uma almofada e os dois filhos comemorando e torcendo que viesse outro garotinho.

O pequeno Charlie Sirius Lahote nasceu numa manhã chuvosa. A primeira foto dele mostrava uma cabelereira ruiva intensa, e olhos escuros como os de Paul. Estava enrolando em uma manta cinza, os punhos cerrados e uma expressão que, claramente, mostrava que seria travesso. Paul olhava para eles apaixonadamente.

Mais anos se passaram, e Remus e Leah se casam e depois, com a barriga dela já evidente, posam juntos em uma foto ao pôr do sol de La Push. Depois, há uma imagem do pequeno Harry Remus Lupin nos braços do pai.

Logo depois, uma nova sequência: Ginny com o pequeno Arthur Jacob Black. Toda a família em Roma, os meninos em fila no Coliseu. As meninas jogando moedas na Fontana di Trevi. Ginny, Leah e Rose tomando vinho em uma sacada em Florença, enquanto os maridos estavam na praia com as crianças. Uma última imagem mostrava todos eles em frente à Torre de Pisa, rindo de James e Arthur, que posavam fazendo força “para empurrar” a torre.

As mudanças não paravam. Havia uma imagem de Rose deitada numa rede, com uma barriga enorme e três crianças penduradas nela. Logo depois, o nascimento de William Daniel Lahote, o quarto filho deles. O único que veio com os olhos verdes de Rose.

Mais adiante, Ginny e Jake com a pequena Jade Sarah Black no colo.

Havia uma foto especial de Edwiges, empoleirada na varanda da casa dos Lahote com os olhos fixos no mar, apenas um dia antes de falecer.

Numa outra página, aparece Rose e Paul com a primeira e única filha deles: Íris Lily Lahote. Com os olhos verdes da mãe e os cabelos do pai. E em seguida uma imagem com todos os irmãos segurando a bebê no colo. James protetor, Andrew fazendo caretas para ela rir, William fazendo cócegas nos pézinhos dela e Charlie emburrado, porque queria ser o caçula para sempre.

De repente, eles começaram a sair de casa. James fez 11 anos e foi estudar em Illvermony. Depois seus outros filhos também foram, e os filhos de Ginny e Jake e o filho de Remus e Leah. Depois vieram as primeiras férias escolares, as cartas animadas, eles começaram a trazer as primeiras namoradas em casa, e se formar, noivar e casar. Um dia, James e a sua noiva foram morar na antiga casa em Forks, ambos curandeiros. Andrew e William moravam em La Push, e trabalhavam com o pai. Charlie foi trabalhar em Vancouver, e virou magizoologista. Íris deu uma dor de cabeça em Paul ao decidir fazer um mochilão pela Europa.

De repente, Andrew se casou com Jade, William se casou com a filha de Sam e Emily. Íris conheceu um trouxa na França e se casaram numa cerimônia à beira-mar. Tia Sue se foi, depois tio Billy e, por último, tio Charlie. Os filhos tiveram os seus próprios filhos e os natais agora tinham crianças novamente.

De repente, eram apenas Primrose e Paul mais uma vez.

Mais velhos, aposentados e cansados, mas ainda se amando como se fosse o primeiro dia.

A última foto do álbum era da comemoração do aniversário de casamento deles de 50 anos. Bodas de ouro. Primrose e Paul estavam sentados juntos numa longa mesa de madeira e ao seu redor, filhos, noras, genros, netos correndo entre cadeiras, balões dourados presos nas árvores e uma faixa acima das suas cabeças, escrito: “Bodas de Ouro - Primrose e Paul Lahote”.

Rose fechou o álbum com cuidado, os dedos se demorando sobre a capa como se desejasse reviver aquelas memórias.

A porta rangeu devagar.

Paul estava ali.

Os cabelos agora brancos, a postura levemente curvada, o rosto sulcado pelo tempo, mas os olhos eram exatamente os mesmos de sempre.

Ele se aproximou com passos lentos e se sentou ao seu lado na cama.

— Você sente?

Rose olhou para ele. Seus olhos estavam úmidos, mas ela sorria.

— Sinto.

Ele estendeu a mão, e ela segurou. Os dedos, mesmo frágeis, ainda se encaixavam como no primeiro dia. Não era preciso dizer mais nada. Eles se inclinaram, encostando as testas uma na outra.

Primrose apagou o abajur. Lá fora, uma onda mais alta quebrou na praia. Depois, eles se deitaram juntos, com as mãos entrelaçadas.

Naquela noite, eles se foram juntos, como sempre foi para ser.

E, em algum lugar, caminharam de mãos dadas por um imenso jardim.

Notes:

Não acredito que acabou! 😭

Essa história foi um grande desafio para mim, mas eu me permiti tentar e valeu muito à pena. Eu vivi na pele desses personagens durante os últimos meses e foi muito especial.

Eu ainda não superei esse universo, então tenho algumas ideias de one shots, mas, provavelmente, preciso de um tempo para lamentar o fim. Hahah.

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Muito obrigada por ter chegado até aqui, seus comentários sempre fazem meu dia melhor.

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