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Language:
Português brasileiro
Stats:
Published:
2025-03-11
Updated:
2025-06-15
Words:
101,749
Chapters:
13/?
Comments:
169
Kudos:
118
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4
Hits:
2,492

Honey Baby

Summary:

Os holofotes não revelam tudo. Entre palcos e bastidores, entre o passado e o agora, existe um jogo silencioso — de olhares que queimam, palavras medidas e segredos guardados entre linhas não ditas.
Na noite mais brilhante de Hollywood, Fernanda vê no espelho mais do que sua própria imagem: vê Walter, vê o tempo dobrando sobre si mesmo, vê um nome sussurrado há décadas.
Ele ainda está ali.
E algumas coisas nunca mudam.

Notes:

* Todos os cenários, diálogos e interações foram criados com base em pesquisas, entrevistas e aparições públicas, buscando capturar a essência dos envolvidos. No entanto, a narrativa é puramente especulativa e não deve ser interpretada como um relato fiel dos acontecimentos.
* Esta história foi escrita como um passatempo e uma exploração artística da dinâmica entre os personagens. Não há intenção de desrespeitar ou insinuar qualquer realidade sobre suas vidas pessoais.
* Caso não se sinta confortável com fanfics baseadas em figuras reais, recomendo que não prossiga com a leitura.
* O título Honey Baby faz referência à música Vapor Barato, de Gal Costa, que faz parte da trilha sonora do filme Terra Estrangeira (1995), no qual Fernanda Torres canta um trecho da canção. A escolha do título carrega o peso dessa conexão cinematográfica e simbólica entre os protagonistas.

Chapter Text

Prólogo

O frio do Rio de Janeiro serpenteava pelas frestas da sacada, esgueirando-se pelas cortinas de linho como dedos invisíveis. Junho era cruel com seu vento cortante, e as luzes da cidade maravilhosa tremeluziam fracamente contra a imensidão do mar. Da janela da sala, ela observava os vultos que passavam pelo calçadão de Ipanema, as marés avançando e recuando como se dançassem ao compasso de uma melodia secreta.

Foi quando seus olhos vagaram, distraídos, até a mesa de jantar.

Os vestígios da noite ainda estavam espalhados ali — as taças de vinho tingidas por lábios distraídos, a vela derretida pelo tempo, o prato de frutas intocado, os guardanapos amassados sobre a madeira escura. A bagunça organizada das comemorações deles. O caos íntimo que pertencia apenas aos dois.

Cinco anos.

Ela se pegou sorrindo, quase sem perceber. Cinco anos desde que tinham escolhido, contra todas as probabilidades, pertencer um ao outro. E, no entanto, parecia que tudo começara muito antes.

O passado veio como um sopro suave, embalado pelo barulho do mar.

Lembrou-se de quando o conheceu no set de Terra Estrangeira, a juventude estampada nos olhos curiosos dele. "Já ouvi falar muito de você." Foi a primeira coisa que ele disse, os dedos tamborilando distraídos contra o próprio braço. Ela sabia o porquê. Ninguém carregava o nome Fernanda Torres sem o peso de ser filha de Fernanda Montenegro. Mas Walter não parecia interessado no que diziam sobre ela — parecia interessado nela.

E então vieram os dias no set. O olhar dele sempre a acompanhava, discreto, quase venerador. Não era desejo — pelo menos, não ainda —, mas algo mais silencioso e profundo, como se ele estivesse tentando decifrá-la.

Depois, o Festival de Roterdã. Entre entrevistas, jantares e festas, os toques inconscientes começaram. Uma mão em suas costas guiando-a entre os fotógrafos, um polegar deslizando por seu pulso sem pressa, o calor de um braço que se encostava no dela durante as conversas. Pequenas apropriações. Pequenos sinais.

Então, veio o afastamento inevitável. O tempo, a agenda, a vida. Lembrava-se de como doía ver os anos passarem sem que nada acontecesse, sem que aquela tensão reprimida encontrasse um caminho para existir. E, mesmo assim, os esbarrões entre os dois continuavam acontecendo. A cada evento, a cada festival, a cada nova troca de olhares carregados de algo que nenhum dos dois ousava nomear.

Até que veio o convite. Ainda Estou Aqui.

Um filme, uma reaproximação. E mais toques, mais gestos roubados no meio da normalidade. O vínculo deles nunca tinha sido apagado — só adormecido.

Os divórcios vieram quase ao mesmo tempo. E, depois, uma praia deserta. Um juiz de paz como única testemunha. Sem alarde, sem discursos ensaiados, sem holofotes. Só os dois e a certeza que já existia desde sempre. Agora, cinco anos depois, ali estavam eles.

A seda fina da camisola roçava sua pele, inútil contra a procela que agitava o oceano — e sua alma. Então, duas mãos quentes e calejadas deslizaram por sua cintura, trazendo com elas um arrepio inevitável.  Ela conhecia aquele toque.  Já o sentira tantas vezes, mas algo nele sempre lhe incendiava os nervos como se fosse a primeira vez.

— Eu não te dei permissão para sair da cama.

A voz grave e arrastada quebrou o silêncio, roçando sua pele como um sopro quente. Antes que ela pudesse reagir, as duas mãos firmes e calejadas deslizaram por sua cintura, puxando-a contra o peito sólido e quente atrás de si.

Ela sorriu de canto, o olhar ainda perdido na noite lá fora.

— Você não é meu dono, Walter.

Ele deslizou o nariz lentamente pelo pescoço dela, provocando arrepios que fizeram sua respiração vacilar.

— Sou.

A resposta veio curta, possessiva, carregada de uma certeza tão inabalável quanto o próprio tempo. Um eco que reverberou entre eles, entre a noite e as cortinas, entre as promessas veladas e os segredos inconfessáveis. Ela gostava de disputar poder por meio das palavras com ele. Era excitante.

— A cama ficou fria sem você — continuou ele, a voz baixa, íntima. — Ficou vazia. Por isso eu vim te buscar.

Ela fechou os olhos por um instante, permitindo-se sentir a presença dele ao seu redor.

— No que você está pensando?

Ela hesitou, mas respondeu sem rodeios:

— No medo.

Ele a virou devagar, os olhos escuros mergulhando nos dela.

— Medo de quê?

Ela respirou fundo.

— Medo de que isso seja um sonho. Medo de acordar e descobrir que tudo o que vivemos deixou de existir.

Walter ficou em silêncio, observando-a. Então, levou uma das mãos ao rosto dela, os dedos traçando um caminho lento, desenhando a linha de sua mandíbula.

— Se isso fosse um sonho, teria acabado muito antes. Mas estamos aqui. Depois de tudo.

Ela fechou os olhos, permitindo-se absorver aquelas palavras.

— Às vezes, momentos de muita felicidade me trazem uma certa melancolia — murmurou. — Como se fosse errado ser tão feliz.

Walter deslizou os dedos por seus braços, segurando-a firme.

— Não é errado. Nunca foi.

O silêncio se instalou entre os dois, denso como o ar de uma tempestade prestes a desabar. Então, ele inclinou-se para frente, encostando os lábios na curva do pescoço dela, traçando um caminho preguiçoso de beijos, leves mordidas, chupadas que provocavam suspiros entrecortados.

Ela cedeu ao toque conhecido, ao calor que crescia entre os dois como uma brasa prestes a incendiar tudo ao redor. Walter não disse mais nada. Apenas segurou sua mão e a puxou consigo, guiando-a de volta para o quarto, para a cama que a esperava. As luzes da cidade continuavam piscando lá fora, indiferentes ao que acontecia dentro daquele apartamento.

Mas, ali, entre lençóis desarrumados e promessas não ditas, não havia espaço para medos.

Só para eles.

 


 

I

(PASSADO)

Lisboa, Portugal – 1995

O sol pálido de Lisboa tingia o set de filmagem com um dourado brando, filtrado pela arquitetura antiga da cidade. O vento trazia consigo o cheiro de café e sardinhas assadas, mesclado ao barulho distante dos elétricos deslizando pelos trilhos. Era um cenário perfeito para um filme, para uma história. Para um encontro.

Walter a viu antes que ela o visse.

Fernanda caminhava pelo set com a familiaridade de quem já pertencia a ele, ainda que tivesse acabado de chegar. Os cabelos revoltos dançavam contra o vento, e ela falava algo para um assistente de produção com o tom natural de quem sempre tem uma resposta na ponta da língua. Ele observou, silencioso, antes de se aproximar.

Ela virou-se ao notar a sombra dele sobre a sua, os olhos curiosos encontrando os dele com uma mistura de expectativa e surpresa contida.

— Walter Salles — ele se apresentou, estendendo a mão.

O toque veio firme, mas breve.

— Eu sei — respondeu ela, sorrindo de canto. — Já ouvi falar muito de você. O cineasta que dizem ser um poeta com a câmera.

Walter soltou um riso curto, mas foi rápido em inverter a frase:

—  A filha da grande Fernanda Montenegro, Fernanda Torres.

Fernanda sorriu de canto, já acostumada a esse tipo de introdução.

- Esse é o meu título oficial agora? Devia mandar imprimir nos créditos: Filha da grande Fernanda Montenegro?

Walter riu, surpreso com a resposta afiada.

- É so que... ouvi muito sobre você. O talento, a força, a maneira como você domina a cena.

Fernanda piscou devagar, absorvendo as palavras. Por um momento, seus olhos varreram o rosto dele, analisando. Havia algo na expressão de Walter — algo nos olhos escuros, na inclinação quase imperceptível da cabeça, na maneira como ele parecia genuinamente tocado pelo que dizia. Ele tinha a cara de um romântico incurável.

E aquilo a pegou desprevenida. Foi uma sensação estranha e, ao mesmo tempo, confortável. Como um elogio que vinha sem segundas intenções, sem o peso do formalismo. Ela sorriu, sentindo-se subitamente mais à vontade.

— Agora podemos ser só Fernanda e Walter.

Ele assentiu, e pela primeira vez, o peso dos sobrenomes ficou para trás.

 

Os dias passaram entre gravações e noites prolongadas em conversas sobre cinema, música e as entranhas da arte. Walter era um diretor minucioso, e Fernanda percebia a forma como ele a observava — não só como atriz, mas como alguém que o fascinava em silêncio. Em uma noite de filmagem, entre ajustes de câmera e luzes posicionadas, surgiu um impasse. Precisavam de uma música para uma cena específica, algo que traduzisse a alma daquele momento.

Fernanda, sentada em um canto, dedilhava distraidamente a borda de um copo.

Vapor Barato — ela disse, de repente.

Todos os olhares se voltaram para ela.

Walter inclinou a cabeça, curioso.

— A música da Gal?

Ela assentiu e, sem aviso, começou a cantar, a voz surgindo baixa, como se experimentasse o peso de cada palavra antes de soltá-la no ar.

"Oh, sim, eu estou tão cansado..."

A melodia pousou sobre o set como uma névoa. Técnicos e assistentes se entreolharam, os movimentos desacelerando.

Fernanda fechou os olhos, deixando-se levar:

"Mas não pra dizer que não acredito mais em você..."

O som de sua voz se misturava ao silêncio atento da equipe.

"Com minhas calças vermelhas, meu casaco de general, cheio de anéis..."

Aquela voz, carregada de melancolia e entrega, transportou Walter para outro lugar. Ele a observava com uma intensidade muda, como se tivesse esquecido que ali havia mais gente.

"Vou descendo por todas as ruas e vou tomar aquele velho navio..."

Fernanda abriu os olhos, e os dele estavam fixos nos dela. Um instante suspenso.

"Eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus..."

Foi aí que aconteceu.

"E não me importa, honey..."

Os olhos de Walter escureceram levemente.

"Minha honey baby, baby..."

O apelido flutuou no ar, carregado de algo que ela mesma não sabia nomear. Quando abriu os olhos, encontrou o olhar fixo de Walter. Ele a observava com uma intensidade muda, como se tivesse esquecido que ali havia mais gente. Como se, por um instante, só houvesse ela e a voz dela.

Fernanda parou de cantar de súbito.

Walter piscou, como se tivesse saído de um transe.

— Perfeita — disse ele, finalmente. — A escolha.

Ela sorriu, mordendo o lábio inferior, mas não disse nada. Apenas desviou o olhar, sentindo o eco daquela troca pairando entre eles. E então, como sempre acontecia entre os dois, o momento se dissipou, dissolvendo-se na normalidade do set.

Ali, naquele instante, algo nasceu.

Chapter 2: II

Notes:

Quero agradecer de coração a todos que comentaram! 💛 Saber que vocês estão acompanhando Honey Baby e se conectando com a história significa muito para mim. Cada comentário me incentiva a continuar explorando esse universo e trazendo novas camadas para Walter e Fernanda.

 

Boa leitura! ✨

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

II

(PASSADO)

RIO DE JANEIRO, FILMAGEM DE TERRA ESTRANGEIRA – 1995

O set de filmagem no Rio de Janeiro era um organismo pulsante. O calor do verão grudava na pele, misturando-se ao cheiro de maresia e café forte. Entre tomadas e ajustes técnicos, a equipe trabalhava com afinco, mas sem perder a leveza. Walter dirigia com uma elegância natural, nunca precisando levantar a voz para ser ouvido. Ele era meticuloso, atento a cada detalhe, e sua paixão pelo cinema era contagiante. Fernanda, por sua vez, irradiava carisma. Seu jeito espontâneo e brincalhão criava uma atmosfera agradável no set. Mesmo exausta, encontrava tempo para cantarolar um samba ou uma bossa nova, arrancando sorrisos dos colegas.

Os ensaios eram intensos. Walter gostava de testar nuances, ajustar ritmos, encontrar a verdade em cada cena. Fernanda correspondia à altura, absorvendo cada direção com um olhar afiado e uma entrega genuína. Eles discutiam, experimentavam, desafiavam um ao outro. O respeito mútuo era palpável.

E então, no final de um longo dia de gravação, quando as luzes já haviam sido desligadas e a equipe se dispersava, Walter e Fernanda seguiram para a praia. Era um costume que haviam criado sem perceber — um momento de respiro depois da intensidade do set. Caminharam pela areia úmida, os pés afundando levemente a cada passo. O mar estava agitado, refletindo os tons azulados e alaranjados do céu crepuscular.

Walter tirou um Marlboro Gold do bolso e pegou um cigarro. Fernanda, sem precisar pedir, recebeu um dele. Ele acendeu primeiro o seu, tragou devagar e, com um gesto quase ritualístico, levou o isqueiro até o cigarro dela. O pequeno clarão iluminou por um instante os traços de Fernanda, e ela sentiu o calor fugaz do fogo e da proximidade dele. Algo místico pairava naquele gesto silencioso. Sentaram-se lado a lado, cada um tragando em silêncio. Ela observou o horizonte, e então, quase sem perceber, começou a cantarolar baixinho. A melodia de Marina Lima se misturava ao som das ondas.

“Às vezes eu quero chorar, mas o dia nasce e eu esqueço

Meus olhos escondem onde explodem paixões”

 

Walter voltou o olhar para ela, fascinado pela naturalidade daquele gesto. Havia algo de profundamente íntimo na forma como Fernanda se expressava através da música.

 

"E tudo o que eu posso te dar é solidão com vista pro mar

Ou outra coisa pra lembrar”

 

— Você se comunica sentimentalmente com a música — comentou, quase como uma descoberta em voz alta.

Fernanda sorriu de canto, soltando a fumaça devagar.

— Eu acho que a música traduz o que às vezes eu não sei dizer — admitiu. — É como se ela preenchesse os espaços entre as palavras.

Walter assentiu, olhando para o mar. Ficaram em silêncio por um tempo, apenas ouvindo o barulho das ondas e sentindo a brisa salgada contra a pele.

— O cinema faz isso comigo — ele disse, por fim. — Ele diz o que eu não sei dizer com palavras. Com imagens, com silêncios, com olhares.

Fernanda o encarou por um instante, sentindo o peso daquelas palavras. Era uma confissão sem rodeios, mas cheia de camadas.

— Então, no fundo, a gente se entende — disse ela, jogando o cigarro na areia e apagando-o com a ponta do dedo.

Walter sorriu pequeno.

— Sim. Acho que sim.

O vento soprou mais forte, e Fernanda abraçou os próprios braços, sentindo o arrepio. Walter tirou a jaqueta e colocou sobre os ombros dela, sem dizer nada. Ela aceitou o gesto, sentindo o calor residual do tecido. Um conforto inesperado.

A quietude daquele momento parecia se alongar no tempo. Fernanda olhou para o horizonte, e, sem aviso, sentiu aquela felicidade súbita e intensa, a que chega sem ser chamada e vai embora tão rápido quanto veio. E ali, no resquício desse sentimento, percebeu que o filme não era apenas um projeto: era uma experiência viva, pulsante. Era o que a fazia sentir-se presente, sentir-se parte de algo maior. E Walter... Walter era uma peça essencial nesse sentimento.

— Você acha que um dia a gente vai trabalhar juntos novamente? — perguntou, a voz leve, mas carregada de significado.

Walter demorou um instante para responder. Quando o fez, sua voz veio sem hesitação.

— Sim. — Ele afirmou como se soubesse as respostas do tempo, como se visse o futuro com uma clareza silenciosa.

Fernanda sorriu de canto, voltando os olhos para o mar. Walter então brincou baixinho, com um tom quase cúmplice:

— Às vezes, acho que fizemos um pacto... como se nossos destinos estivessem entrelaçados. Como se tivéssemos concordado em caminhar juntos pela vida inteira.

Fernanda virou o rosto para encará-lo. O olhar dele era intenso, carregado de algo que ela não soube nomear, mas sentiu. Nas entrelinhas daquele momento, havia algo que nem o cinema, nem a música poderiam traduzir por completo. Apenas ali, no silêncio e no vento frio, existia a verdade que só pertencia aos dois.

O tempo passou sem pressa. Quando finalmente se levantaram para voltar, Fernanda percebeu que, depois de anos fugindo do frio, havia criado uma memória afetuosa com o vento gélido e o mar revolto do Rio de Janeiro. E Walter estava ali, em cada detalhe dessa lembrança.

 


 

Aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro – 1996

O saguão do aeroporto era uma orquestra caótica de vozes, malas arrastadas e anúncios abafados pelo sistema de som. Perto do portão de embarque, a equipe de Terra Estrangeira se reunia, animada com a viagem para o Festival de Roterdã. Entre apertos de mão e despedidas apressadas, Walter ajeitava a mochila no ombro quando seus olhos encontraram Fernanda, ligeiramente afastada do grupo.

Ela estava parada junto à grande janela de vidro, observando a pista de decolagem. Os braços cruzados, o maxilar travado, os dedos tamborilando discretamente sobre o cotovelo. Ele percebeu a tensão.

Walter se aproximou sem pressa.

— Você está tensa.

Ela desviou os olhos para ele e soltou uma risada curta, sempre pronta para esconder qualquer vulnerabilidade com humor.

— Tensa? Imagina… Só estou aqui refletindo sobre a fragilidade da existência humana a dez mil metros do chão.

Walter ergueu as sobrancelhas, divertido.

— Medo de voar?

— Medo de cair, na verdade. Voar é lindo — retrucou ela, e seu sorriso veio rápido, mas não escondeu a inquietação no fundo dos olhos.

— Você já viajou de avião dezenas de vezes.

Fernanda piscou, como se saísse de um transe, e olhou para ele com um meio sorriso.

— E nunca me acostumei.

Walter inclinou levemente a cabeça.

— O que é que te assusta mais?

Ela suspirou, jogando os cabelos para trás e cruzando os braços.

— O fato de que isso aqui — ela gesticulou em direção às janelas enormes, apontando para os aviões taxiando na pista — é um milagre da engenharia que, sinceramente, eu acho que não deveria ser possível.

Walter soltou um riso pelo nariz.

— E, ainda assim, você continua pegando voos.

— Claro, eu só ignoro o medo e embarco.

Ele sorriu, e por um instante, ela olhou novamente para os aviões, mas seu olhar suavizou.

— A primeira vez que saí do Brasil, eu tinha nove anos. Meus pais ganharam passagens quando eles venceram o Prêmio Molière. Fomos para a Europa, e depois para Nova York. Passamos 45 dias nesse tour pelo mundo, lembro claramente da mamãe dizendo: “Nanda, sossega, pois, só tem brinquedos em Nova York!

Walter percebeu a mudança no tom dela. O medo do voo ficou para trás; agora, era entusiasmo. Ele se calou, preferindo apenas observá-la.

— Nova York foi o auge para mim. Lá é que estava a diversão!

Ela riu sozinha, como se tivesse voltado ao passado.

— Eu amava cada vitrine de loja, cada luz piscando na Times Square. Depois fomos pra Disney. A coisa toda: orelhas do Mickey, foto com o Pateta… Eu estava convencida de que aquele era o melhor lugar do mundo.

Walter a olhava como se a visse pela primeira vez. Cada palavra que saía da boca dela parecia carregada de vida, e ele reagia a cada uma — ora sorrindo, ora assentindo, ora deixando escapar um comentário surpreso.

Quando Fernanda voltou ao presente e encontrou aquele olhar — o olhar dele —, sentiu um calor diferente no peito. Era desconcertante e confortável ao mesmo tempo. Então, como se quisesse dissipar a sensação, ergueu o queixo e brincou:

— Bom, se for para morrer, pelo menos morro feliz. Ao seu lado, Walter.

E, sem pensar muito, começou a cantar baixinho:

"And if a double-decker bus
Crashes into us…"

Walter ergueu as sobrancelhas.

— The Smiths?

Ela sorriu de canto e continuou:

"To die by your side
Is such a heavenly way to die…"

Ele balançou a cabeça, rindo.

— Você tem um jeito estranho de tentar se acalmar.

— Eu sou estranha, Walter. Achei que já tivesse percebido.

Walter observou como ela dizia aquilo sem nenhuma preocupação, como se fosse um fato consolidado no mundo, tão natural quanto o próprio ato de respirar. Então, sem aviso, ela mudou de assunto, apontando para os próprios pés.

— Quando estivermos lá em cima, quero que você olhe para cá — disse, séria, mas com um brilho malicioso nos olhos.

— Pra quê?

— Pra ver meus pés fincados no chão, segurando o avião.

Walter piscou, sem entender de imediato, até que ela completou, dando de ombros:

— Vai que ajuda a manter esse trambolho no ar.

Ele soltou uma risada baixa, negando com a cabeça.

— Você realmente acha que pode segurar um avião com os pés?

— Claro. Confia em mim.

O sorriso dela era brincalhão, mas Walter sabia que ali, por trás do humor, estava a tentativa de apaziguar o próprio medo. Ele não respondeu de imediato. Apenas tocou de leve o braço dela. O gesto foi sutil, mas carregado de significado.

— Vai dar tudo certo.

E, como se o universo tivesse escutado a promessa dele, a chamada para o voo ecoou pelos alto-falantes.

 


 

HOLANDA, FESTIVAL DE ROTERDÃ – 1996

O frio de janeiro na Holanda era um choque para quem vinha do calor úmido do Rio de Janeiro. O vento cortante da cidade portuária entrava pelos casacos, fazendo com que Fernanda encolhesse os ombros assim que saiu do táxi. Ela soprou as mãos, esfregando-as para tentar aquecê-las, e Walter, já acostumado ao frio, apenas observou a cena com um pequeno sorriso no rosto.

— Você não disse que adorava viajar? — ele provocou, ajustando a alça da mochila no ombro.

— Adorar viajar não significa gostar de congelar, Walter — rebateu, o tom carregado de indignação bem-humorada. — Além do mais, meu amor por viagens começou em Nova York, onde, apesar do frio, tinham brinquedos. Aqui só tem críticos de cinema.

Walter riu, balançando a cabeça.

— Bem-vinda ao Festival de Roterdã.

 

COLETIVA DE IMPRENSA – TARDE

Horas antes da exibição, Walter e Fernanda estavam sentados lado a lado na longa mesa da coletiva de imprensa. Os flashes das câmeras piscavam incessantemente enquanto jornalistas de diversas partes do mundo faziam perguntas sobre Terra Estrangeira. O filme retratava a fuga de milhares de jovens brasileiros durante o governo Collor, o sentimento de não pertencimento e a busca por identidade em um mundo fragmentado.

Fernanda observava Walter falar sobre o processo criativo, o olhar dele acendendo de paixão ao discutir cinema, como se cada palavra tivesse um peso exato e necessário. Ela sempre admirou essa qualidade nele — a maneira como via poesia onde outros só enxergavam caos.

Quando chegou sua vez de falar, ela sorriu leve e disse:

— Walter tem um olhar muito delicado. A câmera dele nunca invade, nunca força nada. É quase como se apenas testemunhasse, mas testemunhasse tudo. Ele tem essa coisa de ver a alma das cenas sem precisar de exageros. Acho que foi isso que me conquistou no projeto.

Ele virou-se ligeiramente para ela, um brilho nos olhos. Fernanda sustentou o olhar por um instante antes de encarar a plateia novamente. Um jornalista no fundo da sala ergueu a mão e fez a pergunta que ninguém esperava — ou que, talvez, todos esperassem.

— Vocês são um casal?

O silêncio durou um segundo a mais do que deveria. Fernanda sentiu o rubor subir pelo pescoço, mas rapidamente vestiu sua máscara de humor.

— Sim, Somos. Walter é meu parceiro no cinema, na arte, no olhar sobre o mundo — respondeu, piscando para os jornalistas, arrancando risadas da plateia e dissipando qualquer constrangimento.

Walter apenas sorriu, sem confirmar nem negar nada. A resposta dela era suficiente.

 

NOITE DA EXIBIÇÃO

Walter ajeitava a gola do paletó quando viu Fernanda atravessando o salão do teatro. Por um instante, o mundo silenciou ao redor dele.

Ela usava um vestido preto de tecido fluido, os cabelos ondulados caindo de forma indomável sobre os ombros. Mas não era só a beleza que o impactava — era a presença dela. A maneira como ocupava o espaço sem precisar de esforço, como se o brilho dela fosse algo natural, inevitável.

Ela sorriu para algumas pessoas, conversou com outras e, quando finalmente chegou ao grupo, seus olhos encontraram os dele. Ele não disse nada.

- O que foi?

Ele piscou, como se tivesse saído de um transe.

- Nada.

Mas Fernanda já conhecia aquele olhar. E, por mais que não dissesse nada, sentiu o peso do instante.

 

A sala de exibição mergulhou no escuro e Terra Estrangeira começou. Lisboa, em preto e branco, ganhava vida na tela. A fotografia melancólica, a sensação de desorientação dos personagens, tudo se encaixava na atmosfera da noite. Walter já vira aquele filme incontáveis vezes durante a montagem, mas agora parecia novo, como se estivesse assistindo pela primeira vez. Fernanda, sentada ao lado dele, sentia-se inquieta. Sabia que aquele momento era grande, mas não imaginava o quanto. Então, quando a cena de Vapor Barato começou, o coração dela disparou.

Walter sentiu o mínimo movimento ao seu lado. Como se atraído por um ímã, sua mão deslizou em direção à dela. O toque foi sutil, mas firme. Fernanda apertou de volta, sem hesitação. Era um aperto carinhoso, cúmplice, como se naquele instante soubessem que estavam conectados de uma forma que talvez não soubessem nomear.

Quando os créditos começaram a subir e o teatro explodiu em aplausos, Walter se levantou junto com Fernanda. Ovação estonteante. Palmas que pareciam não ter fim. Walter virou-se para ela e, sem hesitar, puxou-a para um abraço apertado. O cheiro de Fernanda misturava-se ao ambiente aquecido, e ele fechou os olhos por um instante, sentindo tudo.

— Conseguimos — ele sussurrou contra seus cabelos.

Ela sorriu contra o ombro dele, os braços ainda ao redor da cintura dele.

Foi quando ouviu, pela primeira vez, o que ele a chamaria por anos a fio.

Honey baby.

Ela congelou.

O som das palmas ao redor pareceu distante. Algo dentro dela se rompeu e se refez ao mesmo tempo. Não era só o apelido. Era a forma como ele o disse. O tom baixo, íntimo, um segredo entre os dois em meio à multidão.

Lentamente, afastou-se só o suficiente para encará-lo. Os olhos de Walter brilhavam com algo indefinível — um afeto silencioso, um reconhecimento, um pacto. Fernanda umedeceu os lábios, sentindo o impacto daquele instante percorrer sua pele como um arrepio quente. Ela não respondeu. Mas sorriu. Um sorriso pequeno, quase imperceptível, mas carregado de significado.

Walter apenas retribuiu, sabendo que não era necessário dizer mais nada.

Os aplausos continuavam. Mas, por um instante, só existia ele.

 

HOTEL EM ROTERDÃ – 1996

A noite do festival havia passado, mas o eco dos aplausos e, principalmente, da voz de Walter ainda dançava na mente de Fernanda.

Honey baby.

O jeito como ele disse aquilo… não foi uma brincadeira, tampouco algo casual. Foi um sussurro carregado de algo mais—um misto de carinho e desejo, envolto numa camada de mistério. O som ressoava dentro dela como uma melodia que se recusava a ir embora.

O frio holandês apertava, e ela se encolheu no casaco, observando a cidade pela janela do hotel. A névoa envolvia os prédios, as ruas molhadas refletiam as luzes dos postes. Tudo era bonito, mas distante. A Europa sempre lhe parecera estrangeira demais, fria demais.

Então, três batidas suaves interromperam seus pensamentos.

Fernanda franziu o cenho e foi até a porta. Ao abri-la, encontrou Walter encostado no batente, mãos nos bolsos do casaco e um sorriso travesso nos lábios.

— Tá aprontando o quê? — ela perguntou, desconfiada.

Ele ergueu uma sobrancelha, fingindo inocência.

— Eu? Nada.

Ela cruzou os braços.

— Walter... desembucha.

Ele riu baixo e, sem dizer nada, puxou do bolso um envelope e entregou a ela. Fernanda pegou, desconfiada, e abriu devagar. Assim que viu o que era, seu coração deu um salto.

— Não. Você tá brincando comigo.

Dois ingressos. Oasis. Knebworth. Agosto de 1996.

Fernanda arregalou os olhos, alternando o olhar entre os ingressos e Walter, como se precisasse de uma confirmação de que aquilo era real.

— Meu Deus! Você conseguiu?!

Walter assentiu, satisfeito com a reação dela.

— E eu que achei que você não ia gostar...

— Tá maluco?! Eu adoro Oasis! — Ela praticamente pulou no pescoço dele, apertando-o num abraço entusiasmado. O perfume dele misturava-se ao cheiro amadeirado do casaco, e por um instante, Fernanda sentiu-se ridiculamente feliz.

Ela se afastou o suficiente para encará-lo, os olhos brilhando.

— Obrigada, de verdade.

Walter segurou seu olhar por um instante antes de dizer, num tom tranquilo, mas cheio de significado:

— Tudo por você, Nanda.

O frio que antes parecia tão incômodo já não existia mais.

 


 

KNEBWORTH – 1996

O céu já estava tingido por tons de roxo e laranja quando Walter e Fernanda se misturaram à multidão. O ar era quente, denso, carregado com a energia elétrica de 250 mil pessoas que sabiam que estavam prestes a testemunhar história. O cheiro de grama pisoteada, cerveja derramada e cigarro pairava no ar, mas nada disso parecia importar. Era como se todo mundo ali estivesse tomado pelo mesmo transe coletivo, uma ansiedade vibrante que pulsava no peito.

Walter nunca tinha visto Fernanda daquele jeito. Ela irradiava uma excitação quase infantil, um brilho nos olhos que ele só via quando ela falava sobre algo que realmente amava. Desde o momento em que pisaram no gramado de Knebworth Park, ela não parava de sorrir, de olhar ao redor como se quisesse absorver cada detalhe para sempre.

— Isso aqui é surreal, Walter! — ela disse, quase gritando para ser ouvida no meio do barulho das conversas e gritos ao redor.

Ele apenas sorriu, curtindo o jeito como ela segurava seu braço de leve, como se aquele contato casual fosse parte da magia do momento. Então, o momento chegou.

O palco mergulhou na penumbra por um segundo antes de Noel e Liam Gallagher surgirem sob os holofotes. O público explodiu em um rugido ensurdecedor, uma onda de euforia coletiva que arrepiava a pele. Fernanda gritou junto, os braços para o alto, a boca escancarada em um sorriso. Walter não conseguiu evitar o riso—ela estava radiante.

A banda começou com Supersonic, e os dois cantaram a plenos pulmões, as vozes se misturando ao coro de milhares de fãs. Em Live Forever, Fernanda fechou os olhos, sentindo cada verso, e Walter se viu incapaz de desviar o olhar dela. Mas foi em Wonderwall que algo místico aconteceu.

Os primeiros acordes soaram, e o público reagiu como se tivesse esperado por aquilo a vida inteira. Fernanda se virou para ele, ainda sorrindo, ainda brilhando. Walter não soube explicar, mas naquele instante tudo se encaixou.

"And maybe... you're gonna be the one that saves me..."

Ela cantava os versos suavemente, e Walter sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Porque ela era exatamente isso. Ela era um mistério, um furacão, um caos que o atraía, mas também era o que o mantinha são.

Sem perceber, os dois começaram a dançar, no ritmo deles, como se não houvesse mais ninguém. O mundo ao redor desapareceu. Não existia mais Knebworth, não existiam mais 250 mil pessoas. Apenas eles.

Fernanda parou de cantar por um instante e apenas o observou. Walter não precisou de palavras. Ela já sabia. Então, aconteceu.

O beijo foi lento, como se o tempo tivesse desacelerado só para eles. O som do show ficou mudo em seus ouvidos, restando apenas o toque, o calor, o momento suspenso entre a música e o desejo.

"I said maybe..."

Quando se afastaram, Fernanda mordeu o lábio, um sorriso brincando na sua boca. Walter manteve os olhos nos dela, sabendo que algo havia mudado. Algo que nem um show grandioso, nem multidões extasiadas poderiam superar.

"You're gonna be the one that saves me..."

Naquele instante, em meio ao maior espetáculo da história do rock britânico, Walter soube.

“And after all, you are my Wonderwall.”

Ela era a música.

Notes:

Aproveitando, vocês achariam interessante uma playlist com as músicas mencionadas na fanfic? Acho que ajudaria a entrar ainda mais no clima da história! Me contem o que acham.
Deixe o seu feedback! :)

Chapter 3: III

Notes:

Antes de tudo, quero agradecer imensamente pelos comentários e pelo apoio de vocês! Cada comentário me motiva a mergulhar ainda mais fundo na fanfic.

Boa leitura!

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Para acompanhar a atmosfera da fanfic, montei uma playlist com algumas músicas que refletem a relação entre Fernanda e Walter. Link disponível abaixo:

https://open.spotify.com/playlist/2dYn7QvwwAXbxpyA3TU0or?si=7hq_Z0MpRVW8KObf9tFHSg&nd=1&dlsi=22cfd68fd9884660

 


III

(PRESENTE)

 

CHATEAU MARMONT, LOS ANGELES (DOIS DIAS ANTES DO OSCAR) – 2025

O restaurante escolhido pela equipe da Globo para celebrar Ainda Estou Aqui não poderia ter sido mais simbólico. O Château Marmont, em Los Angeles, era mais do que um hotel — era uma lenda. Com sua aura boêmia e suas histórias sussurradas pelos corredores, o lugar tinha algo de atemporal, como se cada encontro ali estivesse destinado a se tornar memória. Parecia mais um bistrô gourmet com paredes repletas de quadros vibrantes e uma iluminação amarelada, que tornava tudo mais íntimo, quase familiar.  Era o tipo de lugar onde se podia rir alto sem parecer inconveniente, onde a comida era servida com capricho, mas sem formalidades exageradas.

A atmosfera estava leve. O elenco e a produção do filme se espalhavam entre as mesas, brindando com vinhos selecionados e experimentando pratos que misturavam a culinária brasileira com toques californianos. Entre risadas e histórias de bastidores, um violão surgiu em algum momento da noite, e logo alguém começou a dedilhar os primeiros acordes de uma música conhecida. Fernanda acompanhava tudo com um sorriso discreto. Gostava daquela sensação de pertencimento, da cumplicidade criada ao longo das filmagens. Havia algo de reconfortante naquilo tudo, uma energia que lembrava o Brasil em sua forma mais pura — o riso solto, a generosidade espontânea, a música que unia até os desconhecidos. Era como um afago de mãe em terras estrangeiras, um abraço invisível que a fazia se sentir menos só. Mas, ao mesmo tempo, havia algo em seu peito que pesava.

Walter, sentado alguns lugares à sua frente, não tirava os olhos dela. Ele a observava como se tentasse decifrá-la, como se enxergasse além do que qualquer outra pessoa via. Entre um gole de vinho e outro, notava cada detalhe: o modo como ela ria, mas logo desviava o olhar para o nada; como mexia no guardanapo sem perceber, como se algo ali dentro a inquietasse.

Selton, sempre atento, percebeu a troca silenciosa entre os dois e abafou um sorriso antes de se virar para um colega ao lado. Nada naquela dinâmica passava despercebido por ele.

E então veio o karaokê.

Alguém puxou um violão, e logo surgiram os primeiros acordes de uma melodia conhecida. O microfone passou de mão em mão, até que, entre incentivos e palmas, Fernanda foi chamada ao palco improvisado.

— Nanda, agora é sua vez!

Ela riu, fingindo protestar.

— Vocês querem que eu cante depois do Rubinho? Isso é sabotagem. – brincou, referindo-se ao diretor de fotografia, que minutos antes arrancara aplausos com um clássico do rock.

Mas a verdade é que não precisou de muito para convencê-la. Entre encorajamentos e palmas, ela se levantou e foi até o microfone. A música escolhida foi "Oh Qué Será?", na versão de Willie Colón.

Walter observava da mesa, com a taça de vinho na mão, os olhos cravados nela.

Assim que a introdução começou, a conversa ao redor foi silenciando. O ambiente pareceu se moldar ao instante, e quando Fernanda começou a cantar, sua voz deslizou pela melodia como se a música pertencesse a ela. Cada palavra ganhava um significado que ia além do que estava escrito na letra. A voz dela não carregava esforço — era natural, fluída. As palavras dançavam ao seu comando, e cada sílaba soava como se já fizesse parte dela há muito tempo. Ela cantava como quem mergulha fundo sem medo da correnteza. Um a um, os olhares se fixavam nela, como se todos ali soubessem que estavam presenciando um instante raro, daqueles que se agarram na memória.

Mas Walter viu além da beleza naquela cena.

Quando Fernanda chegou ao refrão — Oh qué será, qué será —, houve uma fenda sutil na melodia. Um tremor mínimo em sua voz, quase imperceptível para quem apenas ouvia. Mas Walter não apenas ouvia. Ele via.

"Oh que será, que será

Que me despierta por la noche

Y me hace temblar, me hace llorar…”

Algo escapou naquele instante, um fragmento de verdade que se desprendeu e flutuou no ar, tão efêmero quanto a fumaça das velas acesas sobre as mesas. Havia tristeza ali.

“Oh, que será

Son fantasmas, somos fantasmas

Siento la puerta tocar três veces

Oh, quién sera?...”

Não era apenas interpretação. Não era apenas a carga poética da música.

Era Fernanda.

E Walter soube, antes mesmo que ela própria admitisse para si mesma.

A música terminou em meio a aplausos e assobios, e ela sorriu, fez uma reverência brincalhona, voltando para sua mesa como se nada tivesse acontecido. Continuou brindando, sorrindo, conversando. Mas ele já havia percebido.

De repente, ela sumiu.

Walter notou antes de qualquer um. O lugar que ela ocupava estava vazio, a taça de vinho ainda pela metade sobre a mesa. Ele esperou alguns instantes, como se tentasse medir se era apenas um pequeno intervalo ou algo mais. Então, discretamente, se levantou e saiu.

Selton observou a cena e soltou um riso quase imperceptível.

— Ah, esses dois... — murmurou para si mesmo, balançando a cabeça.

 


 

A brisa fria de Los Angeles tocava a pele de Fernanda enquanto ela observava a cidade lá embaixo. Do alto do pequeno terraço que ficava acima do restaurante, a imensidão das luzes se espalhava até o horizonte. A cidade nunca dormia, nunca desacelerava, mas ali, naquele ponto isolado, tudo parecia suspenso. Ela abraçou o próprio corpo, sentindo o vento roçar sua pele. Foi então que sentiu.

Aquela fragrância familiar – um aroma amadeirado de cedro, almíscar e sândalo. Aquele cheiro profundo, que carregava consigo lembranças de outros tempos.

Walter.

— Você tem esse hábito de chegar sem fazer barulho, não é mesmo? — disse, sem se virar.

Ele sorriu de leve, parando ao lado dela, as mãos enfiadas nos bolsos do paletó.

— Não queria assustar você.

— Você nunca assusta.

Ela virou-se para encará-lo e, por um instante, ficou ali, presa na presença dele. A forma como ele a olhava, como se pudesse enxergar o que se passava dentro dela, a inquietava. Walter sempre teve essa mania de observá-la além das palavras. O silêncio entre eles não era desconfortável. Pelo contrário, carregava um peso de coisas não ditas. Então, sem pressa, Fernanda enfiou a mão no bolso do terninho e puxou um maço de Marlboro Gold. Walter ergueu uma sobrancelha, surpreso.

— Velhos hábitos nunca mudam — disse ela, com um sorriso melancólico.

Ele riu, balançando a cabeça.

— Pensei que tivesse largado isso.

— Eu larguei. — Ela girou o cigarro entre os dedos, pensativa. — Fumei meu primeiro Marlboro Gold há quase de trinta anos. E agora é a segunda vez que fumo esse cigarro.

Walter a observou, o significado daquelas palavras se acomodando dentro dele.

— Isso quer dizer alguma coisa?

— Quer dizer que eu guardo você nos pequenos detalhes.

Walter não respondeu de imediato. Apenas pegou o isqueiro do bolso e, com um gesto tranquilo, acendeu o cigarro para ela. O fogo brilhou entre eles por um instante. Fernanda inalou a fumaça devagar e soprou-a para o lado, os olhos presos nos dele. Ele observou a fumaça se dissolver no vento, então, sem desviar o olhar, estendeu a mão para pegar um cigarro do maço que ela segurava.

— Você tem uma memória boa — Walter comentou, com um sorriso enviesado.

— Eu sou atriz. Tenho que ter uma memória boa. - Ela riu, surpresa, e entregou o cigarro a ele. Walter o segurou entre os lábios enquanto Fernanda se inclinava para acendê-lo com o isqueiro que ele acabara de usar para ela.  — Mas não é só isso — acrescentou. — Eu me apego aos pequenos detalhes das pessoas que importam para mim.

Walter sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Fernanda era uma mulher intensa. Sempre foi. Mas ali, naquela noite, naquele instante, havia algo mais.

— Você é uma caixinha de surpresas. Apesar de te conhecer há tanto tempo, sempre descubro algo novo sobre você. O detalhe mais fascinante? Sempre será o próximo. Nunca tinha te visto cantar Willie Colón no karaokê. Foi fascinante.

— Estou tentando quebrar esse portunhol ridículo que tenho. - Fernanda lançou um sorriso travesso para ele. Walter segurou o cigarro entre os lábios enquanto Fernanda se inclinava para acendê-lo com o isqueiro que ele acabara de usar para ela.

Por um instante, os rostos ficaram próximos demais.

A chama tremulou, e Walter tragou devagar, soltando a fumaça para o lado.

— Isso me lembra... — disse ele, sua voz ganhando um tom de nostalgia. — Copacabana.

Fernanda soube exatamente de qual entardecer ele estava falando. Ela exalou uma baforada lenta, como se pudesse ver aquele momento ressurgindo na névoa do cigarro.

— Depois das gravações de Terra Estrangeira.

Walter assentiu, seus olhos ganhando um brilho diferente.

— As gravações daquela tarde tinham se encerrado e caminhamos até Copacabana. Fumamos um atrás do outro, vendo as ondas quebrarem na praia.

— Você me disse que queria dirigir um filme que fosse uma despedida e um recomeço ao mesmo tempo.

— E você disse que queria ser um pouco de tudo. — Ele sorriu, tragando novamente. — Eu disse que você já era.

Ela desviou os olhos, sentindo o peso daquela lembrança se acomodar entre eles. Walter tragou devagar, soltando a fumaça para o lado, deixando que o sabor do tabaco reacendesse algo dentro dele.

— Engraçado… — murmurou, observando a ponta incandescente do cigarro. — Tragar isso de novo me traz memórias boas.

Fernanda ergueu uma sobrancelha, esperando que ele continuasse.

— O cheiro, o gosto… — Ele virou-se ligeiramente para ela, um sorriso velado nos lábios. — Mas, principalmente, a companhia.

Havia algo na forma como ele disse aquilo, na forma como seus olhos percorreram o rosto dela, que fez Fernanda prender a respiração por um instante. Não era só nostalgia. Era carinho, era desejo, era a presença dela entre essas memórias.

Fernanda soltou a fumaça devagar, observando as luzes da cidade lá embaixo.

— Essas memórias… pertencem a um tempo em que as coisas eram mais fáceis.

Walter não respondeu de imediato. O silêncio entre eles ficou suspenso, carregado de significados. Ambos sabiam o peso daquela frase. Sabiam o que ela realmente queria dizer. Porque ali, naquele terraço, naquela noite, as coisas já não eram fáceis. Não eram simples. O passado ainda os tocava, mas o presente exigia outra resposta. Ele observou Fernanda em silêncio. A brisa fria bagunçava os fios do cabelo dela, e a fumaça do cigarro dançava no ar antes de se dissipar. Mas o que realmente prendeu sua atenção foi o olhar dela. Aquele semblante triste.

O mesmo que ele percebeu assim que chegaram ao Chateau Marmont. O mesmo que a acompanhava desde o instante em que pisaram ali, como se houvesse algo pesando sobre seus ombros. Ele tragou o cigarro lentamente antes de perguntar, com a voz baixa, quase temendo a resposta:

— O que há de errado, Nanda?

Ela suspirou, permitindo encarar os olhos dele fixamente pela primeira vez naquela noite.

— Eu tenho medo, Walter.

Ele franziu o cenho, esperando que ela continuasse.

— Medo de que a gente não leve esse prêmio para casa.

Walter piscou, surpreso.

— Eu já me conformei que não vou ganhar como Melhor Atriz. – Soltou uma risada.  – Mas você... você merece esse prêmio mais do que ninguém.

Walter soltou uma risada nasal, balançando a cabeça.

— Você se sabota demais, Nanda.

Ela deu uma tragada lenta no cigarro, desviando o olhar.

— Às vezes eu achava que a minha carreira como atriz já tinha afundado. Foram três anos de Vani em Os Normais, cinco anos de Fátima em Tapas e Beijos... Embora eu tenha um carinho gigantesco pelas personagens, eu achei que não tinha mais volta. – Um sorriso melancólico surgiu em seus lábios, como se ela tivesse se teletransportado para o passado.

Walter inclinou-se contra o parapeito, olhando-a de soslaio.

— Me sentia inválida para participar de algo tão grandioso novamente, ainda mais se fosse com você.

Fernanda soltou a confissão como quem exala a fumaça do cigarro—devagar, sem pressa, deixando que as palavras se espalhassem entre eles. Havia um peso ali, mas também uma honestidade crua. Ele a observou por um instante, os olhos dançando entre a curva do sorriso melancólico dela e o brilho do cigarro entre seus dedos. Então, riu baixo, balançando a cabeça.

— Você tem um talento raro, Nanda.

— Pra quê? Pra estragar o clima? — Ela ergueu uma sobrancelha, tentando esconder a vulnerabilidade atrás do sarcasmo.

— Não — ele sorriu. — Para transformar qualquer coisa em um paradoxo. Você joga as palavras mais pesadas no ar e, de algum jeito, elas caem leves. Acho isso engraçado. E meio mórbido.

Ela tragou mais uma vez, soprando a fumaça para o lado.

— E você sempre tenta me analisar, como se eu fosse um dos seus personagens.

— Talvez porque você seja mais fascinante do que qualquer um deles.

Fernanda desviou o olhar, fingindo não se afetar. Mas ele sabia. Walter sempre soube.

— Eu achei que já tinha passado do meu auge — ela continuou, encarando as luzes de Los Angeles lá embaixo. — Depois de tanto tempo fazendo comédia, será que alguém ainda me levaria a sério? Será que eu ainda saberia como construir um personagem assim? Você apostou em mim quando nem eu mesma faria isso.

Walter inclinou-se contra o parapeito, os olhos fixos nela.

— E eu achei que você era a única pessoa que poderia fazer Ainda Estou Aqui acontecer.

Ela virou o rosto para encará-lo, surpresa com a firmeza na voz dele.

— Foi por isso que me escolheu?

Walter hesitou apenas por um segundo antes de sorrir, como se a resposta já estivesse dentro dele há muito tempo.

— Entre outras coisas. — Ele deu de ombros. — Mas, principalmente, porque eu sabia que ninguém mais poderia contar essa história como você.

Fernanda sustentou o olhar dele por um instante, a mente trabalhando para processar as palavras de Walter. Havia algo na forma como ele a olhava que fazia tudo parecer mais simples do que realmente era. Ele deu um passo à frente, próximo o suficiente para que ela sentisse o calor que emanava dele, mesmo naquela noite fria de Los Angeles.

— Eu queria que você se visse como eu te vejo. — A voz de Walter soou baixa, mas carregada de uma verdade incontestável. — Queria que parasse com essa mania de se sabotar. Não é justo, Nanda. Com você mesma. É cruel.

Fernanda riu, sem humor, tragando o cigarro como quem precisa de um escudo.

— Você fala como se fosse fácil.

— Não é.

Ela desviou o olhar, como se a imensidão da cidade abaixo deles fosse mais fácil de encarar do que a intensidade daquele momento. Mas Walter não deixou que ela escapasse.

— No Festival de Roterdã, em 96, você fez uma piada...

Fernanda franziu o cenho, tentando puxar a memória.

— Que piada?

— Você disse que éramos um casal.

Ela soltou uma risada breve, surpreendida com a lembrança.

— Ah, sim. Eu estava bêbada.

Walter sorriu de lado.

— Talvez. Mas sabe de uma coisa?

— O quê?

— Eu sempre te acompanhei. Onde quer que você estivesse.

Fernanda prendeu a respiração.

— Isso é união, Nanda. — Ele deslizou os dedos pelo pulso dela, um toque leve, mas firme. — E, no fim das contas, não é isso que um casamento deveria ser?

Ela sentiu o coração tropeçar no peito.

— Walter...

A conversa entre eles foi silenciando aos poucos, dando espaço para uma tensão que se sustentava no olhar, no peso da presença do outro. Fernanda sentia a mão de Walter deslizar até seu pulso, os dedos tocando sua pele com uma familiaridade inquietante. Foi então que a música começou. O primeiro verso de Medo Bobo preencheu o ambiente, vindo do andar inferior, onde alguém havia assumido o microfone do karaokê.

“Ah, esse tom de voz eu reconheço

Mistura de medo e desejo...”

As palavras ecoaram pela escada, encontrando os dois ali, sozinhos no andar superior do Château. A voz delicada deslizou pelo salão, e Fernanda e Walter se entreolharam como se a música fosse um espelho. Walter ergueu a mão e tocou de leve o pulso de Fernanda, os dedos roçando contra a pele dela como se pedissem permissão. Ela não recuou. Pelo contrário. O toque despertou algo antigo e familiar dentro dela, algo que nunca tinha ido embora de verdade. Os olhos dele desceram para os lábios dela, e a decisão foi tomada antes mesmo que qualquer um deles percebesse.

“Tanto amor guardado tanto tempo

A gente se prendendo à toa

Por conta de outra pessoa

Só dá pra saber se acontecer...”

O beijo veio devagar, sem pressa, mas carregado de urgência e ternura. A boca de Walter encontrou a dela com a intensidade de algo que sempre esteve prestes a acontecer. Os lábios se moldaram um ao outro com um encaixe natural, como se buscassem um reconhecimento há muito tempo adiado. O calor do beijo se espalhou como fogo sob a pele, e quando os dedos de Walter subiram pelo braço dela, puxando-a para mais perto, Fernanda se entregou por completo, segurando a nuca dele, aprofundando o contato.

“E na hora que eu te beijei

Foi melhor do que eu imaginei

Se eu soubesse, eu tinha feito antes

No fundo sempre fomos bons amantes...”

Ela abriu os olhos lentamente, afastando-se dos lábios de Walter apenas o suficiente para encará-lo. Inspirou fundo, absorvendo o cheiro dele, antes de sussurrar, a voz embargada:

— Eu senti tanto a sua falta.

Walter deslizou as mãos lentamente pelos braços dela, apertando-a contra si, como se pudesse recuperar cada segundo perdido. Quando respondeu, a voz era densa de emoção.

— Eu também senti a sua.

A melodia seguia ao fundo, como se fosse a trilha sonora de algo que sempre esteve destinado a acontecer. Ele a puxou para perto, envolvendo sua cintura com as mãos, e a fez girar suavemente, seus corpos se encaixando no compasso da canção. Fernanda descansou a cabeça no ombro dele enquanto se moviam em um ritmo próprio, lento, íntimo. O cheiro amadeirado da roupa de Walter, algo que ela conhecia há anos, envolveu-a como um abraço invisível, despertando memórias que vinham e iam com as notas da melodia. Walter, por sua vez, afundou o rosto nos cabelos dela, inalando aquele perfume que era dela, sempre foi. Um cheiro de casa, de lembrança, de algo que ele nunca conseguiu esquecer.

“E é o fim daquele medo bobo...”

Foi então que, do andar inferior, o coro improvisado do karaokê começou a acompanhar a música. Algumas vozes estavam fora do tom, outras um pouco atrasadas, mas todas carregavam um sentimento genuíno, quase ingênuo, de quem canta com a alma e não com a técnica. Fernanda não conseguiu evitar um sorriso. Aquilo a fez lembrar de noites descontraídas e de risadas soltas durante as gravações. Walter percebeu o sorriso dela e inclinou ligeiramente a cabeça, capturando aquele instante com os olhos.

“É o fim daquele medo bobo...”

— Combinando com o momento, não acha? — ele provocou, um sussurro leve e divertido ao pé do ouvido dela.

Fernanda balançou a cabeça, soltando um riso breve, mas sem se afastar do peito dele.

— É uma coincidência muito cafona.

Walter sorriu, passando os dedos de leve pela cintura dela, o toque discreto, mas significativo.

— Ou é só o universo conspirando.

Walter a observava com aquele olhar que sempre a desarmava.

— Não sei por que a gente sempre complica tudo — disse ele, a voz baixa.

— Porque somos nós dois. E a gente nunca soube fazer nada de um jeito simples.

E foi ali, naquele instante, que Fernanda sentiu algo dentro de si se dissolver. Depois de tanto tempo, um peso saiu de seus ombros, como se finalmente tivesse encontrado paz de espírito. Como se todos os anos de afastamento, de saudade contida, de palavras não ditas, tivessem sido findados naquele beijo.

Era saudade, era desejo, era carinho. Era amor.

Quando Fernanda ergueu o rosto para encará-lo, os olhos dela brilharam sob a luz suave do salão. Ela segurou o olhar, e ali, naquela troca silenciosa, soube a resposta antes mesmo que ela dissesse qualquer coisa. Então, sem hesitar, ele inclinou-se mais uma vez, capturando a boca dela com desejo. Dessa vez, o beijo não era um teste, não era uma dúvida. Era uma afirmação. Uma promessa. Uma entrega sem volta.

 


 

CHATEAU MARMONT, LOS ANGELES – Quarto de Hotel, 23h57 p.m

 

O relógio ao lado da cama marcava quase meia-noite. Fernanda estava deitada, mas o sono não vinha. O teto branco do quarto de hotel parecia mais um espelho de seus pensamentos, refletindo cada angústia, cada lembrança da noite anterior. O peso da culpa se instalava nela como um fardo difícil de carregar. O que tinham feito? A conversa, as confissões, a dança, o beijo… tudo parecia um sonho, um instante roubado da realidade, mas agora voltava para assombrá-la.

Ela pensou no que aconteceria se alguém tivesse visto. O medo de serem descobertos queimava em sua mente. E a premiação? E se perdessem os prêmios tão esperados? Seu nome e o de Walter juntos já carregavam especulações demais, bastava uma fagulha para incendiar tudo. Seu casamento lhe veio à mente. Não era um conto de fadas, mas era estável. Seguro. O de Walter também. Mas então o beijo…

O beijo.

O calor, o aconchego, a maneira como os corpos se encaixaram como se o tempo nunca tivesse passado. O cheiro da roupa de Walter ainda parecia impregnar sua pele. O toque dele ainda vibrava nos seus ossos. Por anos, Fernanda tentou se convencer de que aquilo tudo fora apenas um capítulo de juventude, uma paixão passageira que se dissolvera com o tempo. Mas após o convite de Walter para Ainda Estou Aqui, ela percebeu que havia algo mais. Algo silencioso, singelo, devocional. Ele sempre a olhava de um jeito diferente. O respeito e a admiração estavam lá, mas havia algo nas entrelinhas – nos toques casuais, na forma como sua presença sempre se fazia tão certa ao lado dela.

E então, a lembrança veio como um suspiro involuntário: a cena da coreografia de Take Me Back to Piauí. Walter fez questão de estar presente, de coreografar com todos os atores, mas quando chegou a vez dela, algo mudou. Ele segurou sua mão, guiou seus passos com uma precisão delicada, e embora estivesse sendo apenas profissional, Fernanda soube. Soube no momento em que os olhares se cruzaram e seus corpos se moviam em harmonia. Foi como se tudo voltasse. A atração. O desejo. Aquele magnetismo que nunca desaparecera de verdade. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Não podiam prosseguir com aquilo. Era errado. Era um erro.

Mas então, por que seu corpo se recusava a aceitar essa verdade?

Sentou-se na cama, o coração martelando contra o peito. Precisava acabar com aquilo. Precisava colocar um ponto final antes que fosse tarde demais. Mas as palavras eram fáceis, o corpo era traiçoeiro. Quando deu por si, já estava em pé, hesitando à porta do quarto. Seus dedos tremiam. E se fosse? E se resolvesse tudo agora, de uma vez? O impulso era perigoso, mas incontrolável.

Reunindo o pouco de coragem que ainda lhe restava, abriu a porta devagar, esgueirando-se pelo corredor com passos calculados, temendo que alguém a visse. O hotel estava em silêncio. O único som era o tamborilar frenético de seu coração. Parou diante da porta de Walter, hesitante. A razão gritava para que voltasse, para que recuasse. Mas o desejo, esse sussurrava outra coisa.

Ergueu a mão e bateu três vezes.

O silêncio se arrastou por segundos intermináveis, até que a porta se abriu.

Walter estava ali, diante dela, cabelos levemente bagunçados, os olhos buscando os dela com uma intensidade que a fez prender a respiração. Fernanda sentiu que o nervosismo e o desejo a dominavam ao mesmo tempo, como uma tempestade interna prestes a ruir.

Ela abriu a boca para falar, mas não encontrou palavras. Não sabia o que dizer, porque no fundo, sabia que não teria forças para negar o que sentia.

Walter franziu o cenho, analisando cada traço dela, e então, com a voz rouca, perguntou:

—  Nanda, o que foi?

O tempo parou. Tudo se silenciou ao redor. Fernanda sentiu o chão fugir dos pés, como se estivesse presa em um momento suspenso entre o passado e o presente. Não conseguia se mover, não conseguia sequer respirar direito. Estava diante dele. Diante do homem que amava.

Ela engoliu seco. Tudo parecia esmagador.

— Eu não devia estar aqui — sussurrou, sem se mover. Girou nos calcanhares para sair rapidamente, mas não teve tempo. Walter a segurou pelo pulso. Ela parou. A tensão entre eles era palpável.

O olhar de Walter mergulhou no dela, e com a voz baixa, ele disse:

— Fica, por favor.

Ela fechou os olhos. O mundo pareceu suspenso por um segundo.

 

Notes:

Deixe o seu feedback, please! (:

Chapter 4: IV

Notes:

Oi, pessoal!

* Antes de tudo, queria pedir desculpas pela demora para postar esse capítulo. Os últimos dias foram uma correria e, para completar, fiquei doente. Mas agora estou de volta, e não via a hora de compartilhar mais um pedaço dessa história com vocês!

* Esse capítulo é um divisor de águas. Essa é a continuação do capítulo 3. É aqui que tudo começa a se desenrolar, preparando o terreno para os flashbacks que vão trazer à tona o que foi vivido, o que foi perdido e o que ainda precisa ser resolvido entre eles.

* E, claro, eu não poderia deixar de agradecer a cada um de vocês! Os comentários que vocês deixam são incríveis, de verdade. Cada sensação que vocês compartilham comigo me motivam mais do que consigo expressar. Saber que essa história está tocando vocês me faz querer escrever com ainda mais entrega. Obrigada por estarem aqui, por embarcarem nessa jornada junto comigo.

Agora, vamos ao capítulo! :)

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

 IV

(PRESENTE)

 

CHATEAU MARMONT, LOS ANGELES – 00:03 A.M

 

 — Fica, por favor.

Ela fechou os olhos. O mundo pareceu suspenso por um segundo.

 — Não vá.

A súplica de Walter veio carregada de desejo e algo mais profundo, algo que Fernanda não ousava nomear. Antes que ela pudesse reagir, sentiu o puxão firme no pulso, e num instante, estava dentro do quarto. A porta se fechou atrás deles, selando-os num mundo onde só existiam os dois. Ela piscou, atordoada, o peito subindo e descendo. O que tinha ido fazer ali? O silêncio entre eles era denso, pesado, como se qualquer palavra pudesse estilhaçá-lo. Fernanda sentia o peso do próprio erro, da própria covardia, e então reunindo o pouco de coragem que possuía, balbuciou coma voz trêmula.

— O que aconteceu mais cedo, isso não pode se repetir. Nós não podemos continuar com isso, Walter. Aquilo foi uma impulsividade. Um erro.

Mentira. E ela sabia disso. Cada palavra soava vazia no instante em que deixava seus lábios, como se seu próprio corpo se recusasse a dar crédito ao que dizia. A verdade pulsava dentro dela, fervia sob a superfície, mas ainda assim, ela tentava segurá-la. Porque admitir o contrário era perigoso. Mas era difícil raciocinar quando ele a olhava daquele jeito — com aqueles olhos semicerrados, intensos, analisando-a como se enxergasse além das palavras, além da farsa que ela tentava manter de pé. Como se soubesse que tudo aquilo não passava de uma tentativa vã de afastá-lo. Como se soubesse que, no fundo, ela não queria ir a lugar algum.

— Você tem sua vida, sua família, sua carreira. E eu tenho a minha. Você sabe como isso funciona. Se alguém nos viu no terraço do Château… Deus, já devem estar especulando alguma coisa. Você sabe como são, como sempre foram. Não importa o que seja real ou não, a verdade nunca importou muito para eles. — Ela soltou uma risada curta, sem humor, mas carregada de nervosismo. — Nunca importou para ninguém.

Falou para preencher o vazio, para dissipar o peso da culpa, para encontrar alguma lógica em meio ao caos que fervilhava dentro dela. As palavras saíam apressadas, atropeladas, como se, se falasse o suficiente, pudesse afogar a verdade que tentava emergir. Não queria silêncio. Não queria dar espaço para que ele a confrontasse com aquilo que ela não estava pronta para admitir.

Mas Walter não interrompeu. Apenas a observava, a respiração controlada, paciente, como se esperasse que ela finalmente parasse de fugir. O olhar dele pesava sobre ela, firme e implacável. O ar parecia rarefeito dentro daquele quarto de hotel, como se o espaço entre eles se fechasse cada vez mais, tornando impossível escapar.

O peito subia e descia rápido, a voz dela quebrava em alguns momentos.

Você já foi exposto antes, Walter. Eu também. Mas nunca juntos. E da última vez… da última vez, foi o suficiente para nos custar muito. E agora? Agora não é mais um filme da juventude, não somos mais só promessas do cinema. Você sabe o que vão dizer. Você sabe o que isso pode significar. Eu não posso deixar que isso aconteça de novo.

Ela parou por um instante, engolindo em seco.

— E se isso acabar te machucando? Eu não posso... Eu não posso ser egoísta a esse ponto. Não posso querer você só porque eu quero.

Walter continuava ali, inabalável, apenas escutando. Não interrompia. Não piscava. Então, finalmente, ele sorriu. Mas era um sorriso sem alegria, sem qualquer sinal de humor.

— E você já se perguntou o que eu quero?

A pergunta pairou no ar como um eco, carregada de um peso que Fernanda não estava pronta para segurar. Ela congelou. Sentiu os dedos formigarem, o peito apertar. Aquelas palavras atravessaram suas barreiras como uma lâmina afiada, rasgando defesas que ela passou anos construindo. Não queria ouvi-lo. Porque sabia que, quando ele começasse a falar, não haveria mais volta.

Walter respirou fundo, como se estivesse reunindo cada fragmento de coragem dentro de si. Sua voz saiu baixa, rouca, mas firme:

— Eu vivi e vivo uma vida plena. Uma vida cheia de alegrias, de realizações, de amor. Sou feliz, sou grato. Me orgulho das coisas que fiz, de quem me tornei. Mas, sempre houve uma falta.

Ele fez uma pausa, e Fernanda viu seu maxilar tensionar, como se estivesse à beira de uma confissão há muito reprimida.

— Uma falta que nunca entendi direito. Uma ausência que eu sempre senti, mas nunca soube nomear.

Os olhos dele percorreram os dela, como se buscassem algo ali, algo que só ela poderia reconhecer. Então, Walter desviou o olhar por um breve instante, a sombra de uma lembrança atravessando seu rosto.

— E então, em março de 1995, tudo mudou. Você chegou.

O coração de Fernanda bateu forte contra o peito.

Foi como se o chão sob seus pés tremesse, como se algo dentro dela se contorcesse e reivindicasse todas as memórias que tentara enterrar. Seu corpo reagiu antes que sua mente pudesse se proteger. O impacto daquela frase a atingiu de um jeito que era quase físico. Porque ela sabia. Sabia exatamente do que ele estava falando. Ela queria responder. Queria dizer que, sim, sentiu o mesmo. Que, sim, também percebeu quando tudo mudou. Mas as palavras ficaram presas em sua garganta. O peso da verdade era grande demais para ser sustentado ali, naquele instante.

Walter suspirou, passando a mão pelos cabelos, como se buscasse coragem para continuar.

— Desde então, eu sinto que estou sempre tentando alcançar alguma coisa. – O olhar dele se fixou sombriamente no dela. – E eu descobri que esse algo é você. Eu fico tentando te alcançar, mas nunca consigo.

Ele riu sem humor.

— Você nunca precisou fazer esforço algum para me ter, porque eu já era seu antes mesmo de entender que estava perdido. E a vida, generosa como poucas vezes é, nos colocou no mesmo caminho outra vez. Três vezes, Nanda. Três vezes. Você sabe o que isso significa?

Os olhos dele queimavam sobre ela, carregados de uma intensidade quase impossível de suportar. Ela podia jurar que, naquele quarto, iluminado apenas pelas luzes de Los Angeles, o som mais alto era o das batidas do próprio coração, reverberando em seus ouvidos como um tambor inquieto.

 — Primeiro, Terra Estrangeira. Era para ter sido apenas um filme. Mas, desde as primeiras cenas, eu já sabia que não seria. Você era um furacão e eu te assistia de longe, tentando não ser levado junto. – Walter fez uma pausa, como se revivesse o momento. – Você não percebia, mas eu te observava entre as gravações. Você andava pelo set como se já soubesse que pertencia àquele mundo. Havia algo no jeito como você existia, uma energia que prendia todo mundo ao seu redor. Você tinha essa mistura rara de força e vulnerabilidade. Sabia carregar o peso das cenas dramáticas, mas no instante seguinte gargalhava como se fosse feita de vento. Eu via tudo isso e me perguntava como alguém podia ser assim.

Fernanda sentiu um arrepio subir pela espinha.

— Logo após, foi Roterdã e então o show do Oasis, ambos em 1996.

Ela prendeu a respiração.

— Eu deveria ter entendido ali. Você dançando no meio da multidão, o cabelo colado na pele de tanto suar, cantando como se aquelas músicas tivessem sido feitas pra você. Foi naquela noite que nós nos beijamos pela primeira vez. Foi ali, naquele instante que eu soube que estava totalmente perdido. – Walter sorriu melancolicamente com a lembrança. – Depois veio a nossa estadia momentânea em Londres, ficamos apenas dois dias lá, mas eu consigo lembrar de cada momento daquelas 48 horas que pareciam ser anos ao seu lado. – Ele passou a língua pelos lábios, como se ainda pudesse sentir o gosto daquele momento.

Fernanda lembrava. Lembrava de tudo.

Lembrava de Roterdã, do frio cortante da Holanda que parecia atravessar suas roupas e chegar até os ossos. Ela nunca lidou bem com o inverno, mas Walter percebia isso. Sempre percebia. Ele fazia de tudo para torná-la confortável — fosse oferecendo o próprio casaco, aquecendo suas mãos entre as dele.  Lembrava da euforia em Knebworth, dos milhares de corpos vibrando ao som do Oasis, da energia elétrica no ar quando Live Forever ecoou sobre a multidão e ela sentiu Walter tão perto que, por um segundo, esqueceu do mundo. Lembrava do beijo deles em meio à loucura do show, dos olhos dele brilhando sob as luzes do palco, da sensação indescritível de que, naquele instante, tudo fazia sentido.

Lembrava de Londres, das ruas iluminadas e frias que pareciam um universo particular só deles. Caminharam por vielas de paralelepípedo, exploraram cada canto como se tentassem capturar a cidade dentro de si. Foram ao Globe Theatre, e ela nunca esqueceu o modo como Walter olhava para o palco, como se Shakespeare estivesse sussurrando diretamente para ele. Caminharam pela Shoreditch, o bairro boêmio, refúgio de artistas e escritores, repleto de cafés escondidos e murais de grafite. Passaram horas ali, observando músicos de rua, pintores improvisados e poetas recitando versos para um público disperso.

Lembrava da Abbey Road, dos dois brincando ao atravessar a rua icônica dos Beatles, enquanto Walter registrava tudo com sua Kodak, como se quisesse congelar o tempo, eternizar cada detalhe. Lembrava do cheiro de café forte misturado à brisa gelada da cidade, da risada fácil que escapava dos dois ao dividir um sanduíche barato num pub qualquer, das longas caminhadas sem rumo, das conversas sobre tudo e sobre nada.

Lembrava de terem sentado de frente para o Rio Tâmisa, o frio cortante os envolvendo, mas sem incomodar tanto quanto antes. Sentia-se protegida ao lado dele. O tempo parecia correr diferente quando estavam juntos. Entre goles de cerveja morna e batatas fritas, dividiram segredos e bobeiras, falaram de sonhos, de medo, de saudade. E então, lembrou do mais importante. De como sua vida pessoal estava um caos, de como a dúvida pairava sobre sua cabeça como um espectro. Mas Walter… Walter era a única coisa sólida no meio da névoa. Ele era seu porto seguro, a única constante que importava naqueles dias sombrios e incertos.

A voz baixa e rouca de Walter a tinha trazido de volta a realidade daquele quarto de hotel.

— Mas a gente achou que fosse só a juventude. Só o calor do momento. Porém, a proximidade entre nós dois era tanta que todos ao redor já nos viam como algo que nem nós mesmos entendíamos completamente. Depois, veio o afastamento repentino... a distância que, de repente, já estava ali, entre nós. – Sorriu com tristeza, como se estivesse vendo aquele momento acontecer outra vez.

Na penumbra do quarto de hotel, a única coisa que se ouvia era a respiração pesada de ambos, carregada pelo peso de memórias que doíam lembrar.

— E então, em 1998, nos reencontramos nas gravações de O Primeiro Dia. E foi ali que eu soube que não era só um momento passageiro. – Walter deu um passo à frente tentando instintivamente sanar aquela distância curta entre os dois. – Você estava diferente. Mais forte, mais intensa. Eu via como você se entregava para aquelas cenas, como seu corpo inteiro vibrava quando interpretava. E eu achava que conseguia esconder, achava que conseguia manter tudo só dentro da minha cabeça. Mas então, do nada, você vinha e ria de alguma coisa boba, me olhava daquele jeito, e eu sentia tudo desmoronar.

Ele sorriu de leve, lembrando-se do momento.

— Foram três semanas de gravação no fim do ano. E quando dezembro virou janeiro, você fez o que sempre faz: transformou aquele set em um lar.

Fernanda piscou, surpresa.

— Você encomendou comida para todo mundo, preparou uma ceia improvisada ali mesmo. Lembro da equipe reunida, rindo, trocando histórias. E você, no centro de tudo, entregando presentes para cada um como se fosse a coisa mais natural do mundo. Como se soubesse exatamente o que cada pessoa precisava ouvir, sentir, receber.

Walter parou por um instante, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado.

— Você tem esse dom. Esse talento raro de fazer com que as pessoas se sintam em casa.

Ele ergueu os olhos para ela, e Fernanda sentiu o ar pesar ao redor.

— Talvez seja por isso que eu nunca consegui te deixar. Porque quando estou perto de você, eu sinto que estou em casa.  – A voz saiu mais baixa, como se confessasse a ele mesmo. – Mas, então, eu fui um covarde com você e comigo mesmo.

 Fernanda franziu a testa, sentindo que havia mais por trás dessas palavras. Walter desviou o olhar por um momento, como se admitisse para si mesmo uma verdade há muito enterrada. O silêncio que se seguiu era denso, carregado de tudo o que ficou por dizer ao longo dos anos.

— Eu deixei a distância se instalar entre nós. Deixei você escorregar pelos meus dedos, porque eu tinha medo. Porque havia expectativas, pressões… – Ele balançou a cabeça, os olhos sombrios. – Mas nenhuma desculpa justifica. Eu fui um covarde.

Um nó se formou em sua garganta.

— Eu tive a plena certeza de que tinha te perdido em janeiro de 1999. – A voz dele carregava o peso de uma eternidade. – Uma hora ou outra, eu teria que encarar o preço da minha covardia.

Ele fez uma pausa, como se precisasse buscar fôlego para continuar.

— Eu fui até a casa da sua família. A sala estava cheia, todos reunidos diante da televisão, esperando o anúncio das indicações ao Oscar. Quando disseram o nome da Dona Fernanda, o ambiente explodiu em alegria. Champagne estourado, abraços por todos os lados. E você… você estava ali, radiante, linda.

Walter suspirou, os olhos perdidos em uma memória que ainda doía.

— Eu fui até lá esperando te ver, esperando que, de alguma forma, aquele momento me desse coragem. Porque, Fernanda… eu já sabia naquela época. Eu sabia que não tinha te esquecido. Eu sabia que aquilo que eu senti durante Terra Estrangeira não tinha sido passageiro. Mas eu não disse nada. Eu quis acreditar que o tempo resolveria tudo sozinho.

Ele soltou um riso curto, sem humor.

— Só que o tempo não resolveu nada. Quando finalmente criei coragem para me aproximar de você naquela noite na sua casa, vi que já era tarde. Você não estava sozinha.

Os olhos de Fernanda se arregalaram levemente. O silêncio caiu sobre o quarto, denso, carregado de tudo que nunca foi dito.

— Foi naquele momento que eu soube — Walter continuou, a voz mais baixa, mas firme. — Que eu tinha te perdido. Que o que quer que tenha existido entre nós tinha ficado para trás.

Fernanda sentiu os olhos marejarem. Ela podia ouvir a dor na voz dele, senti-la como algo palpável, como se cada palavra a atravessasse, perfurando sua pele, seu peito, seu passado. Não era só o que ele dizia, era o peso dos anos, do que não foi dito, do que foi deixado para trás. Ela desviou o olhar por um instante, como se pudesse fugir daquilo, mas era impossível. Porque a verdade estava ali, nua, entre eles.

— Você sorria para ele como eu queria que sorrisse para mim. E eu não podia fazer nada. Eu tentei me convencer de que estava feliz por você. De que era o certo. Mas, no fundo, eu sabia. Eu sabia que iria viver com um vazio que nunca seria preenchido.

Ele desviou o olhar, os dedos apertando a lateral da mesa como se precisasse se firmar.

— Então eu fiz o que achei que deveria fazer. Me afastei. Me enterrei no trabalho, nas viagens, nos anos que passaram. E durante todo esse tempo, todos esses longos anos, eu assistia você de longe, como um espectador. – Walter ergueu os olhos para Fernanda, e ela sentiu a respiração falhar. — Eu lia suas entrevistas e livros, assistia seus filmes, acompanhava cada projeto seu.

Ele riu, mas o som trazia melancolia.

— E então, Ainda Estou Aqui. A vida, teimosa, nos jogando no mesmo caminho outra vez.

Walter passou uma das mãos pelo rosto, como se aquilo fosse um peso grande demais para carregar. Então, ergueu os olhos para Fernanda, segurando seu olhar como se quisesse gravar aquele momento.

— Tinha que ser você. — A voz dele saiu mais baixa, carregada de certeza. — Você é a alma desse filme.

Fernanda sentiu o ar faltar por um instante, seu peito subindo e descendo de forma mais pesada, mas permaneceu em silêncio.

— Eu via você em cena, via a entrega, a força, a forma como cada olhar, cada pausa sua carregava mais do que apenas um texto decorado. Você era Eunice. Você deu vida a essa história como ninguém mais poderia ter feito. Você era e é a força motriz.

Ele fez uma pausa, um pequeno riso seco escapando.

— E eu me orgulhava. Me orgulhava tanto de você. Mas ao mesmo tempo... doía.

Fernanda franziu levemente a testa, mas ele continuou antes que ela pudesse perguntar.

— Doía porque, toda vez que eu te assistia, percebia que o que eu sentia por você nunca mudou.

O peito de Fernanda subiu e desceu com mais força.

— E eu achava que já tinha aprendido a te esquecer — ele soltou um suspiro, baixando um pouco o tom. — Mas bastou um instante, uma troca de olhares, para eu perceber que não.

Ele respirou fundo.

— Eu sabia que não podia deixar transparecer. Então fiz o que sempre faço: fingi que nada estava acontecendo. Mas aí, você se machucou em uma cena. Foi um tropeço bobo, uma cena simples. Mas você caiu de mau jeito, e por um segundo, o set inteiro prendeu a respiração.

O acidente.

Fernanda franziu a testa, lembrando-se.

— Foi só um susto…

— Foi mais do que isso.

A lembrança estava vívida na mente dele. O momento em que ela tropeçou, o baque seco da queda, o silêncio repentino que tomou conta do set. Aquele segundo congelado no tempo, antes que todos corressem até ela.

— Todo mundo estava rindo, descontraído entre uma tomada e outra. Você foi sair de cena rápido demais, tropeçou num cabo e... — Ele passou a mão pelo rosto, como se ainda sentisse o frio na espinha daquele momento. — Bateu a cabeça.

Fernanda desviou o olhar, meio envergonhada.

— Foi um tropeço idiota.

— Sim. Mas um tropeço idiota que te deixou tonta e confusa. E quando você tentou rir, dizendo que estava bem, eu soube que não estava. Você nunca diz quando está mal, Nanda. Mas eu conheço o seu olhar.

Fernanda sentiu o estômago revirar. Walter sempre a enxergou de um jeito que ninguém mais enxergava.

Ele umedeceu os lábios antes de prosseguir.

— O silêncio se estendeu por um segundo. Todo mundo parou. E então correram até você. Mas eu cheguei primeiro.

Fernanda abriu a boca para falar, mas ele continuou:

— Estive com você o tempo todo enquanto esperávamos atendimento médico. Você tentava minimizar, dizendo que era só uma pancada, mas eu via nos seus olhos que algo não estava certo.

Ele respirou fundo, como se sentisse tudo de novo.

—  Fiquei de prontidão no hospital a noite toda, ouvindo os médicos falarem que era só uma concussão leve, que ia ficar tudo bem. Mas só consegui ficar aliviado quando vi você acordar, revirar os olhos e dizer que estava morrendo de fome.

Fernanda soltou um riso baixo, e Walter sorriu também.

— Foi ali que eu percebi, de novo, que nunca passou. Que nunca ia passar.

Ele ergueu o olhar para ela, e desta vez, havia algo mais ali. Algo que Fernanda reconhecia, mas ainda não sabia nomear. Mas, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, Walter continuou, como se precisasse tirar tudo de dentro de si antes que fosse tarde demais.

— E então veio a divulgação do filme. Foram seis meses, Nanda. Seis meses ao seu lado. E você quer saber? — Ele soltou uma risada baixa, balançando a cabeça. — Foram os melhores seis meses que tive em anos.

Ele fez uma pausa, como se as lembranças tomassem conta dele.

— Cada entrevista, cada evento, cada sessão de fotos… Cada oportunidade de te observar de perto, de dividir um olhar que durava um pouco mais do que deveria. Você sentia, não sentia?

Walter inclinou ligeiramente a cabeça, como se desafiasse Fernanda a negar.

— Os toques que pareciam acidentais, mas nunca foram. Sua mão roçando na minha, seus dedos deslizando sutilmente pelas minhas costas enquanto posávamos para fotos. Eu sentia. Sempre sentia.

Ele deu um passo à frente, e Fernanda estremeceu levemente.

— O modo como sua mão pousava no meu ombro, seus dedos se demorando mais do que o necessário. E eu… — Walter deixou escapar um sorriso breve, quase amargo. — Eu também testava os limites.

Fernanda segurou a respiração quando Walter passou a mão pelo rosto, como se buscasse as palavras certas.

— Minha mão na sua cintura, apertando de leve. Não era apenas um gesto para a foto. Era algo meu. Um reflexo. Uma lembrança do que poderia ter sido.

A voz dele abaixou ligeiramente, rouca.

— O deslizar do meu polegar pelo tecido do seu vestido. O toque leve na sua perna quando nos sentávamos lado a lado. O instante em que minha mão descansava no seu joelho, e você não afastava. Os elogios que escapavam no meio das entrevistas e as trocas de sorrisos que diziam muito mais do que as palavras que a gente proferia.

Fernanda desviou o olhar, sentindo o peito inflar de algo que queimava e sufocava ao mesmo tempo.

— Eu via como você me olhava quando achava que ninguém estava prestando atenção. E talvez você não saiba, mas eu também olhava. Sempre olhei.

Walter suspirou, balançando a cabeça.

— A verdade é que a gente passou seis meses testando os limites um do outro. Fingindo que estávamos apenas revivendo uma parceria profissional, quando na verdade…

Ele respirou fundo, fechando os olhos por um breve segundo antes de encará-la de novo.

— Quando na verdade, estávamos revivendo nós.

O silêncio se instalou como um peso entre os dois. Fernanda sentiu a garganta apertar, os dedos inconscientemente passando pelo próprio joelho, onde a mão dele repousara tantas vezes. O peso daquelas palavras a puxava para um lugar que ela tentava evitar há tempo demais.

— Acho engraçada e errônea a expressão “ter tempo”. Por que a gente fala isso?

Ele balançou a cabeça devagar.

— A gente acha que tem tempo, mas, na verdade, é ele que nos tem. E eu cansei de desperdiçar o pouco que me resta sem você.

O silêncio entre eles era denso, pesado. Walter fechou os olhos por um instante e respirou fundo. Quando voltou a encará-la, sua voz era firme, definitiva:

— Você quer saber o que eu quero? Eu quero ficar ao seu lado. Eu não quero só roubar momentos e deixá-los guardados na memória. Cansei de fingir que posso viver com essa ausência. Eu não posso.

Walter respirou profundamente e, como se tivesse toda a certeza do mundo nas mãos, disse:

— Eu quero você. Aqui. Agora.

Fernanda piscou, sentindo a umidade nos olhos. O coração deu um salto, como se a puxasse para um abismo desconhecido. As palavras dele eram uma confissão brutal, rasgando qualquer dúvida que pudesse ter restado. E, ao mesmo tempo, a assustavam. Tudo aquilo era grande demais, forte demais. Como uma onda violenta que ameaçava arrastá-la sem volta.

Era amor.

Era raiva.

Era dor.

Era nostalgia.

Décadas de sentimentos comprimidos entre os dois, finalmente expostos à luz.

Fernanda sentiu um nó se formar na garganta, os pensamentos girando em um turbilhão. A conversa, o monólogo de Walter, ao mesmo tempo que parecia um fardo pesado demais para carregar, também era libertador. De uma forma estranha e dolorosa, era como se algo dentro dela tivesse finalmente encontrado um nome.

Walter deu mais um passo, e agora ela podia sentir o calor do corpo dele, a eletricidade que sempre esteve ali, pairando entre os dois. Ele ergueu a mão, quase tocou seu rosto, mas hesitou no último instante.

E então, com a voz embargada, cansada de tanto adiar o inevitável, ele sussurrou:

— Me deixe ficar ao seu lado, Fernanda.

A ponta do polegar calejado roçou levemente o lábio inferior dela.

O mundo pareceu suspenso.

Fernanda não sabia o que dizer. Sua mente girava em espiral, tentando processar tudo o que acabara de ouvir. Seu corpo inteiro pulsava, em alerta, como se qualquer movimento errasse a rota e jogasse tudo a perder. Cada célula gritava para avançar, para se perder naquele instante. Mas o medo estava lá, agarrando-se a ela como um velho fantasma.

O medo de que, mais uma vez, Walter acabasse se afastando.

O medo de se perder nele de novo.

O silêncio era espesso, carregado de tudo o que ficou por dizer ao longo dos anos.

E então, sem conseguir resistir, Fernanda fechou os olhos por um breve segundo. Sentiu a pele formigar onde o toque dele passou. Quando os abriu novamente, encontrou os olhos de Walter cheios de súplica, de uma vulnerabilidade rara.

Ele se aproximou mais um pouco, a respiração se misturando à dela.

— Me deixe pertencer a você.

Era como se o tempo tivesse prendido o fôlego junto com ela. Como se o próprio mundo hesitasse por um instante, esperando sua resposta. Mas Fernanda não tinha resposta.

Ela só sabia sentir.

A verdade nua estava na voz dele, no peso de tudo o que tinham sido e tudo o que poderiam ser. Sentiu um frio subir pela espinha. Uma vertigem. Porque, naquele momento, percebeu que não era apenas Walter quem ainda estava preso a ela.

Ela também estava presa a ele.

Notes:

O que acharam?
Deixe o seu feedback, please! :)

Chapter 5: V

Notes:

* Olá, pessoal! Gostaria de expressar minha profunda gratidão por cada comentário e pelo apoio contínuo que tenho recebido de vocês. É graças a esse incentivo que esta história ganha vida e me dá combustível para escrever cada capítulo.

* A partir deste capítulo 5, a narrativa retorna ao passado de Fernanda e Walter, explorando os eventos que levaram ao distanciamento entre eles. Essa viagem ao passado é essencial para compreendermos as nuances e profundidade da conexão entre eles, além disso, é a partir daqui que será desenrolado a ruptura na relação deles e a tensão acumulada ao longo dos anos até o presente. Espero de coração que vocês não queiram me matar!

* Além disso, agradeço imensamente pelas sugestões musicais enviadas por vocês. Elas foram adicionadas à playlist da fanfic, enriquecendo ainda mais a atmosfera da história.

Sem mais delongas, boa leitura!

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

https://drive.google.com/file/d/1ai3nvIM2ls9cEDOaBtJSjH0romVIgtnS/view

(LINK DA ARTE DO CAPÍTULO)

 

V

(PASSADO)

 

KNEBWORTH PARA LONDRES – AGOSTO DE 1996

O trem sacudia suavemente nos trilhos, embalando a noite com seu ritmo monótono. O céu além das janelas era um breu imenso, pontilhado aqui e ali por luzes dispersas das pequenas cidades que deixavam para trás. Londres ainda estava a algumas horas de distância, mas o cansaço do dia começava a pesar sobre os dois.

Fernanda dormia ao lado dele, a cabeça encostada no vidro frio, os cabelos bagunçados caindo soltos sobre os ombros. O rosto estava sereno, a respiração ritmada e tranquila, como se ainda estivesse imersa na euforia do show. Walter a observava, sem conseguir evitar. Havia algo hipnotizante na forma como ela descansava, como se mesmo em repouso carregasse aquela intensidade que o fascinava desde o primeiro instante.

A Kodak repousava em suas mãos, os dedos ainda sujos de resquícios de cerveja e poeira, vestígios de um dia que ele sabia que jamais esqueceria. Tinham registrado tudo: a multidão ensandecida, as luzes estourando no palco, as vozes roucas gritando os refrões como se a vida dependesse daquelas músicas. E agora, enquanto olhava para Fernanda, Walter sentiu um impulso súbito. Levou a câmera até os olhos e, sem pensar muito, apertou o botão.

O clique suave ecoou no vagão quase vazio. Ele baixou a câmera devagar, sentindo um estranho aperto no peito. Aquele instante ficaria para sempre impresso no filme: Fernanda, completamente entregue ao sono, alheia a tudo, bela de uma forma quase irreal.

Bela. Essa palavra ressoou na mente dele.

Walter inspirou fundo, absorvendo aquela imagem, e, como se seu próprio olhar o traísse, flashes da noite anterior invadiram seus pensamentos. Ele a viu outra vez na multidão, os olhos brilhando sob as luzes do palco, o corpo leve e livre ao som das guitarras. O calor da voz dela misturada à dele, os sorrisos bêbados de música e desejo. O beijo. A lembrança veio nítida, quase tão real quanto o instante em que aconteceu. O gosto de cerveja nos lábios dela, a forma como os dedos dela seguraram a nuca dele, trazendo-o para mais perto. Um sorriso discreto surgiu nos lábios de Walter. Foi instintivo, inevitável.

Foi então que percebeu. As mãos dela estavam encolhidas junto ao próprio corpo, os dedos ligeiramente curvados numa tentativa instintiva de afastar o frio. O ar da madrugada se infiltrava pelo trem, tornando o ambiente gélido, e ela, apenas com uma camiseta de algodão fina, começava a se encolher involuntariamente.

Sem pensar duas vezes, Walter retirou o próprio casaco. Moveu-se com cuidado, como se qualquer movimento brusco pudesse despertá-la, e colocou a peça sobre os ombros dela, ajeitando-a de modo que cobrisse parte dos braços também. O tecido pesou levemente sobre Fernanda, e, por um instante, ela pareceu se aconchegar melhor no assento, murmurando algo inaudível.

Walter ficou ali, observando-a por mais alguns segundos, sentindo um calor estranho no peito. Não era apenas o resquício da adrenalina do show, nem o álcool que ainda fazia efeito. Era algo mais. Algo que ele não ousava nomear. E então, ainda com o fantasma do beijo pairando sobre seus lábios, ele desviou o olhar para a escuridão do lado de fora da janela, deixando o trem levá-los de volta para Londres, de volta para tudo o que ainda nem imaginavam.

O cansaço do dia finalmente o tinha vencido. Ele piscou algumas vezes, o peso das pálpebras se tornando insuportável, até que, sem perceber, deslizou para o sono. O trem seguia seu curso, balançando suavemente nos trilhos, embalando a noite como uma canção sem pressa. Do lado de fora, a escuridão era entrecortada apenas por lampejos distantes das cidades que deixavam para trás.

Ele não sabia por quanto tempo dormiu, apenas que foi despertado por um som distante — um aviso, misturado ao chiado dos freios do trem. A voz automatizada ecoou pelo vagão quase vazio, trazendo-o de volta à realidade.

We are now arriving at King’s Cross Station.

Walter piscou devagar, ajustando-se ao momento. Foi então que sentiu o peso leve e familiar contra seu ombro.

Fernanda.

Ela continuava dormindo, agora recostada nele, a cabeça pousada contra seu ombro de um jeito quase íntimo, quase natural. Os fios soltos de cabelo faziam cócegas em sua pele, e sua respiração era lenta, tranquila.

Ele permaneceu ali por alguns segundos, apenas observando-a, deixando que essa memória se registrasse na sua mente, aquecendo-lhe o peito. Ele sorriu, um sorriso pequeno, satisfeito. Algo nele queria guardar aquele momento por mais alguns instantes, mas o trem já havia parado, e eles precisavam seguir em frente. Com delicadeza, ele ergueu a mão e passou o polegar suavemente pelo rosto dela, sentindo o calor sutil da pele sob seu toque. Então, inclinou-se ligeiramente e sussurrou firme, mas baixo:

— Nanda, chegamos.

Ela se mexeu levemente, os cílios tremulando antes de seus olhos se abrirem, ainda meio perdidos no torpor do sono. Demorou um segundo para focar nele, mas quando finalmente o fez, um sorriso sonolento se desenhou em seus lábios.

— Hm… já? — murmurou, a voz rouca de cansaço, enquanto se ajeitava no assento.

— Já — Walter confirmou, ainda a observando de perto.

Ela se ajeitou, espreguiçando-se discretamente antes de se levantar, ainda levemente trôpega pelo cansaço. Desceram juntos, os passos lentos, sem pressa, misturados às poucas pessoas que restavam na estação àquela hora da madrugada. O frio de Londres os envolveu assim que saíram para a rua, fazendo Fernanda puxar o casaco de Walter para mais perto do corpo, ainda vestindo-o como se fosse seu.

Caminharam lado a lado pelas ruas silenciosas, as luzes amareladas dos postes projetando sombras longas na calçada molhada. O show ainda parecia pulsar no corpo dos dois, como se a energia do momento não tivesse se dissipado por completo. Foi então que ela, ainda um pouco sonolenta, cantarolou baixinho os versos de Live Forever, quase como um instinto.

“Maybe you are the same as me

We see things they’ll never see

You and I are gonna Live Forever…”

Walter desviou o olhar para ela, surpreso. Fernanda nem percebeu. Andava com as mãos enfiadas no bolso do casaco, os olhos brilhando, presos na lembrança eufórica que acontecera mais cedo. O cansaço estava ali, claro como o frio cortante da madrugada, mas ainda assim havia nela um brilho intenso, como se algo daquela noite nunca fosse deixá-la.

— Você ainda está lá, não está? — Walter murmurou, um sorriso leve na voz.

Fernanda virou o rosto para ele, piscando devagar.

— Impossível não estar. – admitiu, com um sorriso bobo no rosto.

Ele a olhou por um momento, como se tentasse gravar aquela expressão, aquele instante. O vento balançava os cabelos dela, os olhos carregavam algo entre a exaustão e a euforia. Fernanda desviou o olhar, um sorriso pequeno e enigmático brincando nos lábios. Continuaram andando. O silêncio que se instalou entre eles não era desconfortável. Pelo contrário, carregava algo íntimo, como se palavras fossem desnecessárias. Apenas dois corpos exaustos, mas completamente vivos, compartilhando a mesma noite.

Depois de alguns minutos de caminhada, finalmente chegaram ao hotel que Walter havia reservado: The Royal HorseGuards. Ela sentiu algo se aquecer dentro dela perante aquela vista. Um edifício vitoriano imponente à beira do Tâmisa, com uma fachada iluminada que parecia saída de outra época. Um prédio que já tinha sido sede dos serviços de inteligência do MI6 e que agora carregava em suas paredes o peso do tempo e da elegância clássica. 

Assim que entraram, foram recebidos por um saguão elegante, mas acolhedor. O brilho suave das luminárias douradas refletia nos móveis de madeira escura, e o aroma discreto de café e flores frescas preenchia o ambiente. O tapete macio abafava os passos, e tudo ali parecia respirar história. Fernanda parou por um instante, os olhos percorrendo cada detalhe—o teto alto, os vitrais delicados, os lustres imponentes.

— Você pensou em tudo, não é mesmo?

Walter sorriu de leve.

— Achei que você fosse gostar.

Ela gostou. Mais do que deveria. Assentiu devagar, absorvendo o momento. O hotel carregava e transpirava história. Assim como eles.

A recepcionista lhes entregou as chaves, e os dois subiram pelas escadas estreitas. O carpete abafava o som dos passos, e a iluminação baixa criava sombras suaves pelo corredor. Quando chegaram ao andar de seus quartos, pararam diante das portas, uma de frente para a outra. Por um instante, o tempo pareceu desacelerar. Fernanda segurou a maçaneta, mas hesitou. Seu olhar encontrou o de Walter, e um silêncio carregado se instalou entre eles. Havia algo naquela despedida que parecia errada. Como se, depois de tudo, depois da euforia, da música, da estrada, fosse injusto simplesmente se afastarem.

E então, sem aviso, ela deu um passo à frente e o abraçou.

Walter demorou um segundo para reagir. Seus braços pairaram no ar por um instante, como se seu corpo precisasse se acostumar com a sensação do toque dela. Mas então, sem pensar muito, ele a envolveu também. Passou os braços ao redor dela, um aperto cuidadoso, como se estivesse segurando algo precioso, mas fugaz. O abraço foi firme, mas carregado de hesitação. Fernanda afundou o rosto no peito dele, sentindo o cheiro familiar, um misto de perfume amadeirado e algo sutilmente metálico—como película de filme recém-revelado. Ele apertou as mãos contra as costas dela, sentindo o calor do corpo pequeno contra o seu, o movimento leve da respiração dela contra seu peito.

Foi Fernanda quem quebrou o silêncio, a voz baixa, quase trêmula:

— Obrigada.

Walter inclinou ligeiramente a cabeça, deixando os lábios roçarem de leve no topo da cabeça dela, sem pensar muito no gesto.

— Não precisa me agradecer. Foi uma noite incrível.

Ela assentiu ainda agarrada a ele. Se afastaram devagar, sem pressa, como se quisessem estender aquele momento por mais alguns segundos. Então, trocaram um último olhar.

— Te vejo no café da manhã.

— E se eu dormir até tarde? – Arqueou uma sobrancelha, com um sorriso travesso nos lábios ao considerar a possibilidade da pergunta.

Ele riu baixo, inclinando a cabeça com um ar brincalhão.

— Bom, estamos na Inglaterra. Aqui, pontualidade é tradição. Mas, por você, posso abrir uma exceção.

Ela sorriu, balançando a cabeça.

— Vou tentar não abusar desse privilégio.

Walter piscou para ela antes de girar a maçaneta da própria porta. Ambos hesitaram por um segundo, como se a despedida fosse um pouco mais difícil do que deveria. Então, finalmente, cada um entrou para o seu quarto, deixando o silêncio do corredor absorver os últimos resquícios daquela noite. Fernanda fechou a porta e encostou-se nela por um instante, inspirando fundo. A euforia do dia ainda pulsava dentro dela, misturada com o cansaço. Londres parecia vibrar além das paredes do hotel, mas, ali dentro, tudo estava quieto. Depois de um banho quente, vestiu uma camiseta larga e se preparou para dormir. Mas então, ao se virar para a cadeira no canto do quarto, viu o casaco de Walter pendurado no cabide.

Ela franziu a testa por um segundo, então se deu conta: ele havia colocado aquele casaco sobre ela no trem. Sem pensar, caminhou até ele, deslizando os dedos pelo tecido. Ainda havia ali o cheiro de limpeza misturado ao perfume dele, e, abaixo disso, um leve resquício de suor, cerveja e cigarro, vestígios do dia que haviam compartilhado. Trouxe o casaco até o rosto e inalou fundo, sentindo uma familiaridade reconfortante. Sentou-se na beira da cama, ainda segurando o casaco contra o peito, como se tentasse prolongar aquele instante.

Cuidado.

Essa era a palavra que usaria para descrever aquele gesto. Walter sempre teve essa maneira silenciosa de demonstrar afeto, de estar presente sem precisar anunciar. Ele notava o que ninguém mais via, agia antes mesmo que ela percebesse que precisava. Era isso que fazia dele único aos olhos dela—o modo como se atinha aos pequenos detalhes, como se cada gesto fosse uma promessa não dita.

Com um sorriso nos lábios, dobrou o casaco com delicadeza e o deixou ao lado da cama. Apagou as luzes e se deitou, o corpo afundando no colchão enquanto as memórias daquela noite ainda rodopiavam em sua mente. O corpo estava exausto, mas sua mente ainda repassava tudo. O show, o beijo, a viagem de trem, a cidade fria e barulhenta, o hotel aconchegante, o abraço silencioso. Gradativamente, a exaustão foi vencendo qualquer resquício de vigília.

E naquela noite, Fernanda sonhou.

O mundo ao redor era difuso, borrado como uma aquarela inacabada. O céu sobre ela tinha um tom cinza-azulado, pesado, como se estivesse prestes a desabar em chuva. O vento soprava morno, carregando umidade e o cheiro salgado do mar. Fernanda sentia a areia fria sob os pés, mas não conseguia ver muito além do horizonte. Ela não sabia exatamente onde estava, podia jurar que era Copacabana, mas não tinha tanta certeza. Havia uma névoa suave ao redor, engolindo os contornos da realidade. Mas então, ao virar o rosto, encontrou ele.

Walter.

Os traços estavam levemente desfocados, como se o sonho não conseguisse capturá-lo por inteiro. Mas os olhos, os olhos eram os mesmos. Ela não precisou de mais nada para reconhecê-lo. Ele estendeu a mão, e, assim que os dedos dela tocaram os dele, uma corrente elétrica percorreu seu corpo, fazendo-a prender a respiração. Tudo ao redor se dissolveu. O tempo perdeu a lógica. O som de um show ecoava ao fundo — distante, abafado, como uma lembrança que se recusava a desaparecer. Mas eles não estavam ali pela música.

Eles estavam ali um pelo outro.

Walter a puxou suavemente para mais perto, os pés afundando na areia úmida. Não havia pressa. Só eles dois e a respiração compartilhada entre os corpos. A música, os gritos da multidão, o vento… tudo se tornou ruído de fundo quando ele deslizou uma das mãos pela lateral do corpo dela, subindo devagar até pousar na base da nuca.

E então começaram a dançar.

Sem ritmo. Sem regras. Sem chão.

O polegar dele traçou um caminho preguiçoso pela pele exposta do ombro dela. Depois subiu, roçando de leve a linha do maxilar até deslizar sobre os lábios entreabertos. Fernanda sentiu o ar rarefeito ao redor, como se estivesse sendo sugada para dentro daquele instante.

A boca de Walter pairava próxima à dela, mas não a tocava.

— Honey baby — ele sussurrou contra a pele quente, o som se dissolvendo com a brisa.

Fernanda quis responder, mas as palavras não saíram. Algo a puxava para trás, para longe. Tentou segurar a sensação, mas o sonho começou a desvanecer. As mãos dele escorregaram por entre os seus dedos como areia fina, e antes que pudesse lutar contra isso, foi sugada de volta.

Acordou com um sobressalto.

O quarto estava mergulhado em silêncio. Por um momento, não soube dizer se ainda estava sonhando. O coração martelava no peito, a respiração estava descompassada. Então, seu olhar caiu sobre o casaco dobrado, descansando ao lado da cama.

O casaco dele.

Ela o encarou por longos segundos, os detalhes do sonho ainda se dissolvendo dentro dela. O gosto do momento ainda em sua boca, o toque dos dedos dele ainda ardendo contra sua pele. Sentiu algo entre o peito e a garganta — uma mistura estranha de ânsia e conforto. Suspirou. Deitou-se novamente, virando-se para o lado, e fechou os olhos.

Dessa vez, dormiu profundamente.

 


 

O ar da manhã ainda carregava o frio ameno da noite passada. O céu estava de um azul pálido, com fiapos de nuvens espalhados como pinceladas delicadas. O aroma de café recém-passado se misturava ao cheiro sutil de flores do terraço do The Royal Horseguards, e Fernanda soube, no instante em que subiu os últimos degraus, que Walter já estava ali.

Ele estava sentado à mesa, de frente para a paisagem de Londres, com uma elegância tranquila, como se pertencesse àquele cenário. Vestia uma camisa de algodão azul clara, as mangas dobradas cuidadosamente até os cotovelos, revelando um relógio de couro gasto pelo tempo. A calça bege caía perfeitamente sobre os sapatos de couro, que, apesar de discretos, carregavam a mesma sofisticação despretensiosa que parecia inerente a ele.

Fernanda parou por um instante antes de se aproximar. Havia algo na maneira como Walter segurava a xícara, os dedos distraídos traçando a alça de porcelana, que o envolvia em uma aura de introspecção e mistério, como se carregasse histórias não contadas. A luz da manhã repousava sobre ele de forma quase cinematográfica, realçando o traço forte da mandíbula e os fios de cabelo suavemente bagunçados pelo vento leve. Ele parecia ter saído de uma pintura de Edward Hopper, uma figura solitária imersa em contemplação. Ao se aproximar, um aroma sutil a envolveu, evocando memórias de pureza e conforto, como o cheiro de roupas recém-lavadas secando ao sol. Era o perfume dele, uma assinatura olfativa discreta que, de alguma forma, fazia Fernanda sentir-se em casa.

Ao vê-la se aproximar, Walter ergueu os olhos e sorriu. Ela sentiu como se tivesse sido despida ali mesmo. O sonho da noite passada ainda pairava sobre ela, um fantasma de sensações que não deveria estar presente naquela manhã clara e fresca. Mas estava. Ainda sentia o toque dele reivindicando sua nuca como posse, a respiração contra sua pele, a voz chamando-a naquele tom rouco e íntimo.

Ela limpou a garganta, tentando dissipar a memória.

— Bom dia.

Walter inclinou ligeiramente a cabeça para ela, os olhos brilhando com algo que Fernanda não soube decifrar.

— Bom dia.

Ele a observou sentar-se à sua frente, os movimentos levemente hesitantes. Mas logo a hesitação desapareceu quando ele falou novamente:

— Dormiu bem?

A pergunta veio casual, mas Fernanda sentiu um calor inesperado subir pela nuca.

— Sim — respondeu, talvez rápido demais.

— E você? — ela perguntou, tentando manter a naturalidade.

— Também — ele respondeu, a voz baixa, arrastada, carregada de algo que ela não soube nomear.

Walter sorriu de canto, sem desviar o olhar, como se pudesse ler os subtextos que ela tentava esconder.

— Pedi um café da manhã reforçado para nós dois.

Ela arqueou uma sobrancelha, fingindo indignação.

— Eu sei que como bastante, Walter, mas não é pra tanto.

Walter soltou uma risada baixa.

— Eu quis garantir que estaremos bem alimentados, considerando a noite anterior e o dia longo que temos pela frente.

A insinuação velada na voz dele fez com que Fernanda sentisse um calor inesperado se espalhar pelo corpo, como se as palavras dele tivessem acendido algo dentro dela. Não sabia dizer se era pelo tom da voz dele ou pelo subentendido naquelas palavras. O café da manhã foi servido logo depois. A mesa se encheu com cestas de pães quentinhos, ovos mexidos, geleias artesanais, frutas frescas e o aroma forte do café preto. Era uma refeição simples, mas cuidadosamente preparada.

O silêncio entre os dois não era desconfortável. Pelo contrário, carregava uma familiaridade silenciosa, um entendimento mudo entre duas pessoas que não precisavam de palavras para preencher o espaço entre elas. Walter pegou um bloco de papel que estava dobrado ao lado do prato e começou a rabiscar rapidamente algo. Fernanda, entre um gole de café e outro, percebeu que ele estava concentrado, a ponta da caneta deslizando pelo papel com precisão.

Ela se pegou observando-o.

A forma como franzia levemente o cenho ao escrever, a forma como segurava a caneta entre os dedos longos, o modo como a respiração dele se tornava mais lenta e focada quando estava absorto em algo. Era como se, naquele momento, o mundo ao redor desaparecesse, deixando apenas ele e seus pensamentos. No set, essa mesma intensidade se manifestava; Walter entregava-se de corpo e alma, executando cada cena com uma precisão minuciosa que a fascinava. Fernanda, uma espectadora silenciosa, sentia-se atraída por essa dedicação, admirando-o sem que ele percebesse.

Walter, então, levantou os olhos e a pegou no flagra. Fernanda desviou o olhar depressa, levando a xícara aos lábios como se aquilo fosse suficiente para disfarçar.

— O que você está escrevendo? — perguntou, casualmente.

Ele não respondeu de imediato. Apenas virou o papel e o deslizou pela mesa na direção dela. Então, pegou a folha e viu uma lista escrita com sua caligrafia precisa. Lugares. Endereços. Um itinerário.

Ela sorriu, entusiasmada.

— Você já montou o roteiro?

Walter assentiu, apoiando o queixo na mão.

— Temos dois dias. Quero te levar para os lugares certos.

Ela passou os olhos pelos nomes. Soho. Globe Theatre. Abbey Road. Shoreditch. Notting Hill. Lugares que transbordavam história, cultura e um charme quase cinematográfico.

— É oficial. Você é um ótimo guia.

Ele riu.

— Eu me esforço.

Fernanda ergueu os olhos para ele, ainda sorrindo.

— Antes de irmos, precisamos comprar filmes para encher nossas Kodaks.

Walter apontou para o canto da mesa, onde estavam suas mochilas.

— Já pensei nisso também. Há uma lojinha perto daqui, podemos passar lá antes de começar o passeio.

Fernanda balançou a cabeça, divertida.

— Você realmente pensa em tudo.

Walter apenas deu de ombros, como se aquilo fosse algo natural. Mas, para Fernanda, não era. Para ela, era o tipo de gesto que significava muito. O café da manhã seguiu, e com ele, a antecipação do dia que os aguardava.

 


 

Londres, Agosto de 1996

Fernanda se ajeitou dentro do casaco de Walter, puxando a gola para se proteger do vento leve que soprava pela rua. O tecido, um pouco pesado para o seu corpo, trazia um calor confortável, e ela não pôde evitar o pensamento de que gostava da sensação de vesti-lo. Com as mãos enfiadas nos bolsos, cantarolava baixinho A Day in the Life dos Beatles, quase sem perceber, enquanto observava o fluxo de pessoas passando apressadas. Havia algo de hipnotizante na forma como Londres pulsava, como se cada esquina tivesse uma história própria acontecendo paralelamente.

Ela fechou os olhos por um instante, inalando o ar fresco da manhã e deixando-se absorver pelo ritmo da cidade. O som distante dos ônibus de dois andares, o burburinho de conversas em sotaques diversos, o cheiro de café misturado ao leve aroma da chuva da noite anterior. Havia uma melancolia bonita em Londres, um charme de cidade que carregava o peso do tempo nos seus edifícios e ruas. Gostava mais da atmosfera londrina agora do que quando era criança.

Foi nesse momento que Walter saiu da loja de fotografia, conferindo a nota fiscal na mão com uma expressão concentrada. Quando ergueu o olhar, encontrou Fernanda se vestindo com o casaco dele, ajeitando as mangas um pouco longas demais. Ela ainda estava absorta na paisagem urbana, mas quando sentiu o olhar dele sobre si, virou-se devagar, sorrindo ao encontrá-lo. Walter parou por um segundo, um sorriso se formando no canto dos lábios.

— Acho que esse casaco ficou melhor em você do que em mim.

Fernanda riu baixo, puxando as mangas para cima.

— Ele é enorme. Se bobear, eu me perco aqui dentro. — Brincou, dando uma voltinha rápida para mostrar o quão grande a peça ficava nela. — Parece mais um cobertor, mas devo admitir que é absurdamente confortável.

Walter arqueou uma sobrancelha, fingindo indignação.

— Perigoso. Se eu soubesse que você ia gostar tanto, teria cobrado o aluguel.

Ela apenas rolou os olhos, pronta para retrucar, mas então notou a sacola cheia que ele segurava. — Meu Deus, Walter... você comprou a loja inteira?

Ele olhou para o próprio saco cheio de rolos fotográficos e deu de ombros, despreocupado.

— Claro. Precisamos estar preparados.

Fernanda cruzou os braços, desconfiada.

— Walter, quantos filmes fotográficos você comprou?

— Todos os que tinham disponíveis.

Ela arregalou os olhos, mas antes que pudesse dizer algo, ele completou, num tom leve e zombeteiro:

— Se bobear, eu compro a Kodak inteira.

— Ah, pronto! Agora resolveu bancar o bilionário excêntrico?

Walter riu, deixando-se levar pela brincadeira.

— Não posso nem investir na preservação da fotografia analógica em paz?

Ela balançou a cabeça, ainda sorrindo, pegando um dos rolos da sacola e encaixando na própria câmera. Walter fez o mesmo, carregando a sua.

— Vamos? — Ele perguntou, estendendo a mão para que ela seguisse ao seu lado.

Fernanda assentiu e, com as câmeras prontas e uma cidade inteira esperando por eles, começaram a caminhar rumo ao itinerário que os esperava.

 

O dia se desenrolava entre passos apressados e a luz amarelada do outono londrino, que se refletia nas vitrines e nos ônibus vermelhos que cruzavam as ruas. Fernanda e Walter seguiam sem pressa, mergulhando na cidade com a curiosidade de dois estrangeiros apaixonados pelo tempo e pelas histórias que ele carregava.

Cada esquina parecia guardar um fragmento de algo maior—um momento digno de ser capturado. E eles capturavam. Com as câmeras em mãos, eles registravam tudo: a arquitetura imponente dos prédios, os cafés que se escondiam em ruas menos óbvias, os cartazes teatrais espalhados por West End. Era como se estivessem congelando o tempo em pequenos instantes, criando um álbum de lembranças onde cada foto contava um pedaço da história que estavam vivendo.

Foi em Notting Hill, em uma rua estreita cercada por casas coloridas e vitrines convidativas, que aconteceu. Eles estavam lado a lado, cada um com sua câmera pendurada no pescoço. Seus olhares se cruzaram, e um sorriso cúmplice surgiu em seus lábios, como se já soubessem o que estava prestes a acontecer. Sem aviso, sacaram as máquinas ao mesmo tempo e se miraram através das lentes.

Fernanda sorriu, um daqueles sorrisos serenos que vinham quando ela estava completamente à vontade. Fechou um olho para focar, o outro iluminado pela luz suave que filtrava entre os prédios.

Walter, do outro lado, fez o mesmo. Só que ele não apenas via Fernanda pela lente—ele a admirava. O cabelo bagunçado pelo vento, a expressão despreocupada, a forma como o casaco dele parecia grande demais nela, como se pertencesse a ele e a ela ao mesmo tempo.

O clique das duas câmeras soou no exato momento.

Walter baixou a câmera devagar, os lábios curvando-se em um sorriso satisfeito.

— Acho que essa vai para a capa do álbum de viagem.

Fernanda riu, abaixando a câmera também.

— Se tivermos um álbum de viagem, você pode colocar essa na primeira página.

— Feito. — Ele disse, guardando a câmera.

Eles seguiram explorando, com paradas mais longas em Abbey Road, onde Fernanda brincou dizendo que ele deveria comprar o estúdio ao invés da Kodak, e ele apenas riu, sem negar e nem confirmar. Depois, percorreram ruas de paralelepípedos, entraram em livrarias apertadas e observaram a cidade pulsando ao redor deles. Ao chegarem à beira do Tâmisa, pararam em frente ao Big Ben. A torre parecia imponente contra o céu azul pálido, e Walter puxou a câmera.

— Fica aí. — Ele apontou, e Fernanda arqueou a sobrancelha.

— Aqui?

— Exatamente aí.

Ela riu, mas obedeceu, cruzando os braços e inclinando ligeiramente a cabeça para o lado. Walter ajustou o foco, e no instante exato em que apertou o botão, ela sorriu.

— Sua vez. — Fernanda tomou a câmera das mãos dele e esperou. Walter hesitou, fingindo desconforto, mas acabou rindo antes de colocar as mãos nos bolsos do casaco e encará-la de um jeito despretensioso, mas marcante. O clique soou e, por um momento, ficou suspenso entre os dois.

— Uma juntos agora. — Ele anunciou.

— Como? Vai equilibrar na ponte?

Walter riu, então acenou para um senhor que passava, entregando-lhe a câmera e explicando rapidamente o que queria. O homem assentiu e esperou enquanto Walter se posicionava ao lado de Fernanda. Quando a lente foi ajustada, Walter a envolveu pela cintura de forma casual, mas ela sentiu o calor do toque, a firmeza possessiva na mão dele. Fernanda segurou a respiração por um instante, mas logo sorriu para a foto.

A última parada do dia os levou até Globe Theatre, a reconstrução do famoso teatro elisabetano que era a casa das obras de Shakespeare. A estrutura circular de madeira, com seu telhado de palha e arquibancadas abertas ao céu, trazia consigo um misto de grandiosidade e intimidade. Fernanda olhava ao redor, fascinada, enquanto Walter falava sobre os detalhes da arquitetura e como o teatro original havia sido destruído por um incêndio. Ele mencionava pequenos fatos sobre Shakespeare, a forma como suas peças ecoavam pelo tempo, mas, em algum momento, desviou a atenção para ela.

Ela estava imóvel, absorvendo tudo ao redor, e não percebeu que Walter a observava. O olhar dele passeou pelo perfil dela, pela forma como a leve brisa bagunçava os fios soltos de seu cabelo, pelo modo como os olhos dela pareciam absorver cada detalhe com um brilho quase infantil.

— É como se o tempo não tivesse conseguido apagar Shakespeare — ela murmurou, admirando o lugar. — Ele vive na linguagem, nos palcos, nas histórias que contamos sem nem perceber.

Walter arqueou uma sobrancelha, curioso. Ele sabia aonde Fernanda queria chegar, mas, desejando prolongar a conversa, inclinou levemente a cabeça e, com um sorriso sutil, pediu:

— Explique.

Ela virou-se para ele, seus olhos brilhando com uma compreensão profunda.

— Suas histórias transcendem o tempo. Mesmo séculos depois, ainda nos reconhecemos nelas.

Walter sorriu, sentindo uma conexão silenciosa se formar entre eles, tecida por palavras não ditas e admirações compartilhadas.

— Você sabia que Shakespeare contribuiu com centenas de palavras para a Língua Inglesa? Muitas expressões que usamos até hoje vieram dele. Inglês era minha matéria preferida na escola. – Sorriu com a lembrança.

Walter riu suavemente.

— Como por exemplo?

Fernanda se voltou para ele, os olhos brilhando com a lembrança.

Break the ice, cold-blooded, heart of gold… — ela enumerou nos dedos. — Sem falar de palavras que ele praticamente inventou, como addiction, bedroom, lonely e entre tantas outras. Não dá pra mensurar.

Walter riu suavemente.

— Ou seja, se não fosse por ele, talvez não tivéssemos nem um jeito bonito de descrever o que sentimos.

Fernanda sorriu.

— A primeira vez que fui apresentada a Shakespeare, eu tinha nove anos.

Walter permaneceu em silêncio, esperando que ela continuasse.

— Eu lembro da mamãe ler A Tempestade para mim. Lembro de cada detalhe. Da voz dela, da forma como ela interpretava os personagens, como se estivesse me levando para dentro da história.

Ela fez uma pausa, os olhos varrendo a estrutura do Globe mais uma vez, como se aquele momento a transportasse de volta para sua infância.

— Eu fiquei fissurada por Miranda e Ferdinando — admitiu, rindo baixo.

Walter inclinou a cabeça.

— O primeiro casal por quem você se apaixonou na ficção?

Ela assentiu, o olhar distante.

— Ferdinando se apaixona por Miranda no instante em que a vê. Ele diz que ela é a visão mais bela que já teve. E Miranda… — ela sorriu, como se revivesse a cena —, Miranda se entrega sem medo. Para ela, o amor dele é puro e absoluto, porque ela nunca conheceu algo diferente. Nunca aprendeu a duvidar do amor.

Walter não disse nada. Apenas a observava.

— Acho que foi ali que eu entendi que queria contar ou interpretar histórias — Fernanda continuou, baixinho. — Que queria viver dentro delas.

O silêncio se acomodou entre eles por alguns instantes, até que ela respirou fundo, trazendo-se de volta ao presente.

— Anos depois, na adolescência, li Antônio e Cleópatra.

Dessa vez, Walter desviou o olhar para o teatro.

— Uma história bem diferente de Miranda e Ferdinando.

— Completamente. — Fernanda soltou um riso abafado. — O amor deles era intenso, mas marcado por guerra, traição, destino.

Ela pausou, mordendo o lábio por um instante.

— Eles eram dois mundos colidindo. Diferentes, mas feitos um para o outro. O tempo, as circunstâncias, as escolhas… tudo jogava contra eles. Mas, no fim, sempre voltavam um para o outro.

Walter apertou o maxilar, as palavras ecoando entre eles de um jeito estranho, quase profético. Por um instante, era como se o silêncio soubesse de algo que eles ainda não sabiam. Eles se olharam.

— Trágico — Walter disse, a voz baixa.

— Lindo. — Fernanda rebateu de imediato, sem hesitar.

Ele arqueou uma sobrancelha.

— Romantizando tragédias, Fernanda?

Ela balançou a cabeça.

— Não é sobre romantizar. É que, algumas histórias são assim. Elas são grandes demais, intensas demais. Elas transcendem o tempo e o espaço. Você pode chamá-las de trágicas, mas isso não as torna menos belas. Querendo ou não, há beleza na tragédia.

Walter desviou o olhar para a estrutura do teatro, absorvendo as palavras dela. Após um momento, replicou:

— Mas não acha que, ao romantizar a tragédia, corremos o risco de glorificar o sofrimento? Nem toda dor carrega beleza; às vezes, é apenas dor.

Fernanda virou-se para ele, seus olhos grandes refletindo a luz suave que filtrava através da estrutura do teatro. Havia uma intensidade neles que fez Walter prender a respiração.

— Não se trata de glorificar o sofrimento — ela respondeu, sua voz baixa, mas firme. — Trata-se de reconhecer que, mesmo nas histórias mais sombrias, há uma profundidade que nos toca, que nos transforma. A tragédia expõe a vulnerabilidade humana, e é nessa exposição crua que encontramos uma forma peculiar de beleza.

Walter inclinou a cabeça, observando-a atentamente. A paixão com que ela falava, a convicção em suas palavras, o fascinava. Ele deu um passo mais perto, diminuindo a distância entre eles.

— Então você acredita que a beleza está na vulnerabilidade? — ele perguntou, sua voz quase um sussurro.

Fernanda assentiu lentamente, seus olhos fixos nos dele. O ar entre eles parecia carregado de uma tensão sutil, uma corrente elétrica invisível.

— Sim — ela murmurou. — É na exposição de nossas fraquezas, de nossos medos mais profundos, que nos conectamos verdadeiramente uns com os outros.

Walter manteve o olhar, sentindo-se atraído por ela de uma maneira que ia além das palavras. Seus olhos desceram involuntariamente para os lábios de Fernanda, e ele notou o leve tremor neles. Ela percebeu o olhar dele e, por um instante, perdeu-se na intensidade dos olhos de Walter.

O silêncio que se seguiu foi denso, carregado de significados não ditos. A proximidade entre eles, a troca de olhares, tudo contribuía para uma atmosfera carregada de emoção. Eles estavam ali, tão próximos e, ao mesmo tempo, navegando em mares internos distintos. Finalmente, Walter quebrou o silêncio, sua voz rouca:

— Talvez haja beleza na tragédia, mas acredito que também há beleza na esperança, na possibilidade de um novo começo.

Fernanda inclinou a cabeça, considerando as palavras dele. Um pequeno sorriso surgiu em seus lábios.

— Concordo plenamente. — Ela disse suavemente. — Mas às vezes, é na compreensão da tragédia que encontramos a força para recomeçar.

Walter assentiu, um sorriso surgindo no canto de seus lábios. A tensão entre eles parecia ter se transformado em algo mais suave, uma compreensão mútua que os aproximava ainda mais. Após alguns instantes, Walter quebrou o silêncio com uma leve mudança de assunto, percebendo a necessidade de aliviar a intensidade do momento.

— Você deve estar faminta depois de toda essa caminhada e essa discussão filosófica — disse ele, com um tom brincalhão.

Fernanda riu, sentindo a tensão se dissipar.

— Exatamente. Todo esse existencialismo me deu uma fome imensa.

Walter estendeu a mão para ela, um convite silencioso. Ao entrelaçar seus dedos nos dele, Fernanda foi subitamente transportada para a lembrança vívida do sonho que tivera na noite anterior, onde ele a conduzia em uma dança íntima e envolvente. O toque dele agora parecia ecoar aquela sensação etérea, tornando-a quase palpável. Ela apertou levemente a mão dele, sentindo-se confortável ao seu lado. Deixaram o Globe Theatre para trás, apenas eles dois, compartilhando a intimidade de estarem juntos naquele momento.

Notes:

Espero que tenham gostado!
Deixe o seu feedback! (:

Chapter 6: VI

Notes:

Oi, pessoal! :)

* Desculpem pela demora, a última semana foi uma correria por causa do trabalho e estudos.

* Queria avisar que uma arte foi feita para o capítulo 5, naquela cena em Notting Hill em que Fernanda usa o casaco do Walter. O link está aqui no capítulo 6, mas também adicionei a imagem no capítulo anterior. Espero que gostem. <3

* Algumas músicas me acompanharam durante a escrita deste capítulo — os títulos estarão logo no início.

* Obrigada pelos comentários e pelo carinho de sempre. Vocês são incríveis! Boa leitura!

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Link da arte referente ao capítulo V:

https://drive.google.com/file/d/1ai3nvIM2ls9cEDOaBtJSjH0romVIgtnS/view

 Músicas que me acompanharam durante a escrita do capítulo VI:

Fireside - Arctic Monkeys

Like a Tattoo - Sade

Take Me To Church - Hozier

Video Games - Lana Del Rey 

(todas elas estão na playlist disponível no Spotify)

 


VI

(PRESENTE)

 

CHATEAU MARMONT, LOS ANGELES – 00:20 A.M - 2025

 

“Me deixe pertencer a você.”

A frase ainda vibrava no ar.

Fernanda sentiu o chão faltar sob seus pés. O tapete macio do quarto não impedia a vertigem, o peso avassalador do que aquelas palavras significavam. Não era só um pedido. Não era só desejo. Era um reconhecimento, uma confissão tardia de algo que sempre existiu entre eles e que, agora, não podia mais ser ignorado. O ar pareceu rarefeito. Ela sentiu o peito se apertar, as lágrimas ardendo por trás dos olhos, ameaçando escapar. Respirou fundo, como se o oxigênio pudesse mantê-la ancorada, mas o que estava acontecendo entre eles era um redemoinho. Não havia chão firme onde pisar.

Diante dela estava o homem que ela amava. E entre eles dois, estava o eco ensurdecedor de trinta anos que reverberava de forma violenta, como um passado que finalmente exigia ser ouvido.

Trinta anos.

Trinta anos de gestos não ditos, de olhares que seguravam verdades, de uma linha invisível que nunca se partiu, por mais que o tempo tentasse corroê-la. O passado se desenrolava dentro dela como um rolo de filme desordenado — cenas soltas, sorrisos roubados, toques sutis, silêncios que diziam mais do que palavras, partidas que nunca foram definitivas. Walter sempre esteve lá. De um jeito ou de outro. Uma constante na vida dela, um traço firme e silencioso que permanecia, mesmo quando estavam separados por oceanos ou pelo tempo. E agora estavam ali. No mesmo quarto, sob a luz amarelada do abajur, com anos de sentimentos não ditos pulsando entre eles.

Walter deu um passo à frente, como se pudesse sentir o conflito que se desenrolava dentro dela. Ele sempre soube ler Fernanda além do óbvio. Sabia que, atrás daquele silêncio denso, havia uma tempestade de pensamentos. Seus olhos a estudavam com paciência, mas também com urgência — como se cada segundo a mais sem resposta fosse um novo golpe no peito.

Ela o encarou de volta, sentindo o calor subir pelo corpo, a pele formigando com a proximidade. Não havia escapatória. Tudo que eles eram, tudo que tinham sido e tudo que poderiam ser estava ali, pesando no ar, condensado na distância mínima entre os dois. Ela respirou fundo. O nó na garganta apertava, o coração batia tão forte que ela se perguntava se ele podia ouvir.

Fernanda fechou os olhos por um instante. Quando voltou a encará-lo, sentiu um peso nas palavras antes mesmo de dizê-las.

— Sempre achei exagero quando diziam que existem memórias que ficam gravadas na pele, no corpo, na alma. Eu achava que o tempo desfazia tudo, que um dia até o que parecia inesquecível se diluiria na névoa dos anos. Mas então veio você – a prova viva de que eu estava enganada. Você se tornou a minha própria memória viva.

Ela deixou a frase pairar no ar, sentindo seu próprio peito se apertar.

— Trinta anos se passaram e me lembro claramente do dia que te conheci. E não é uma lembrança qualquer. Não é uma daquelas que se tornam borrões com o tempo. É cristalina. É como uma cicatriz que fica marcada na pele para sempre. – Ela sussurrou, deixando a voz se perder na quietude do quarto, como se precisasse saborear o peso dessa afirmação.

Um pequeno sorriso curvou os lábios de Fernanda antes que ela continuasse:

— Março de 95. Eu lembro de cada detalhe. O cheiro do set, o som das lentes ajustando o foco, a luz filtrando pelas janelas, criando sombras nos seus olhos. E lembro, acima de tudo, do modo como você me olhou.

Ela sorriu, mas o sorriso carregava algo que não era felicidade, e sim um tipo de reconhecimento doloroso.

— Não era um olhar que alimentava meu ego, como se eu soubesse que você estava na palma da minha mão. Não era desejo óbvio, nem um flerte qualquer. Era um olhar de alguém que me via. De verdade. Como se soubesse quem eu era antes mesmo de eu abrir a boca. E eu não entendi o que aquilo significava. Não naquela época.

Walter permaneceu em silêncio, mas o jeito como ele a encarava dizia que lembrava. Que lembrava de tudo.

— E então vieram os dias no set. — A voz de Fernanda era suave, mas carregada de significado. — As conversas entre uma cena e outra. O jeito como você me escutava… sempre atento, sempre presente. Eu nunca precisei explicar nada para você. Você entendia. No silêncio, no olhar, na ausência de palavras. Você sempre entendeu. E mesmo que, às vezes eu falasse feito uma tagarela no seu ouvido, eu sempre me senti confortável em conversar sobre qualquer coisa com você.

Ela sorriu, um sorriso breve e nostálgico. Walter sorriu, mas era um sorriso lento, carregado de algo mais.

— Eu acho que você não fazia ideia ou ainda não tem noção… — Ele murmurou, e Fernanda sentiu a pele arrepiar. — Do quanto sua voz me prende.

Havia algo na maneira como ele disse aquilo, algo rouco, íntimo, como se cada palavra carregasse um peso de desejo e saudade. Fernanda não conseguiu desviar o olhar. Por um instante, ficou presa no tom grave da voz dele, na forma como os olhos âmbar pareceram escurecer levemente, como se fossem engolidos pelo tempo, pela lembrança, por ela.

Ela umedeceu os lábios, sentindo a respiração vacilar por um segundo antes de prosseguir.

— Foi uma grande aventura, não foi? — Fernanda soltou um riso curto, os olhos brilhando com as lembranças. — Filmar Terra Estrangeira… Nós éramos tão jovens, inconsequentes. Era como se estivéssemos fugindo do mundo, vivendo dentro de um filme que, de alguma forma, era tão nosso quanto do Paco e da Alex. Eu me sentia viva. Cada cena, cada madrugada filmando, cada dia que a gente passava juntos…  Você não tem ideia do que foi estar ao seu lado naquele set. — Sua voz era mais baixa agora, quase um sussurro. — Você me fez sentir viva. Cada cena, cada segundo… eu sabia que estava vivendo algo que nunca mais se repetiria.

Walter inclinou levemente a cabeça, estudando-a.

— E se repetiu? — Ele perguntou, a voz embargada por um quê de provocação, mas também de melancolia.

Fernanda sustentou o olhar dele.

— Acho que nós dois sabemos a resposta para isso. – Ela confessou, sua voz tremendo levemente. — Eu me senti atraída por você desde o começo. Mas eu achava que era só isso. Admiração, fascínio, uma faísca passageira. Nunca tinha conhecido alguém tão inteligente. Nunca tinha conhecido alguém que enxergava o mundo do jeito que você enxergava. Com você, qualquer conversa era um fluxo interminável, uma porta para algo maior. E então…

Ela fechou os olhos por um breve instante antes de encará-lo novamente.

— O que era profissionalismo virou amizade. E foi aí que eu me perdi. Porque, quando me tornei sua amiga, eu entendi que já não existia um caminho de volta. Eu ainda não sabia nomear o que era aquilo, mas sabia que era grande demais para ser ignorado. E, eu como uma boa mentirosa, comecei a mentir para mim mesma. E o pior de tudo é que eu quis acreditar na minha mentira. Queria acreditar que o que eu sentia por você era algo que eu poderia moldar, domar, transformar em qualquer coisa que não doesse. Mas então veio o inesquecível ano de 1996.

Ela engoliu em seco, sentindo a garganta se fechar.

— O ano em que tudo parecia um sonho.

Fixou o olhar no olhar de Walter e, por um instante, sentiu-se de volta ali.

— O Festival de Roterdã. O nosso filme estreando, os aplausos, a eletricidade no ar. Eu lembro de tudo. Lembro da forma como você me olhava naquela noite, como se enxergasse algo que nem eu mesma sabia que existia. E eu me perguntava se era a euforia do momento, se era a excitação de tudo aquilo acontecendo, mas não era. Você sempre me olhou assim.

Ela mordeu o lábio, perdida na lembrança.

— Depois veio nossa passagem pela Inglaterra. Knebworth e depois Londres. Os dois dias que pareceram uma eternidade ao seu lado. As ruas molhadas, o vento cortando as esquinas, o cheiro de cigarro e café no ar. O show do Oasis. Eu lembro de cantar com você no meio da multidão, de rir, do nosso primeiro beijo. – Semicerrou os olhos com um sorriso doce no rosto. – A forma como parecíamos dois forasteiros em uma terra estrangeira e aquela sensação única de que nada podia nos parar. Nada podia nos deter. Mas foi naquele jantar...

Ela parou, como se estivesse pisando em terreno perigoso. E Walter lembrou exatamente daquele momento — o desejo suspenso no ar, pairando entre eles como um fio invisível prestes a se incendiar.

— Foi naquele jantar que eu soube. – O olhar de Fernanda encontrou o de Walter, e havia algo de devastador naquela troca silenciosa. – Foi ali que eu tive ciência, de que eu estava completamente rendida a você.

Ela encontrou os olhos dele, e algo quente e profundo passou entre os dois.

—  Eu sei que você fez de propósito. Escolheu aquele restaurante, a mesa no canto mais escuro, o prato. A romã cortada ao meio, os grãos escorrendo como sangue antigo, como se carregassem um símbolo que só nós dois entendíamos. Você me passou a colher com aquela sua calma calculada. Seus olhos cravados nos meus, como se estivesse me dizendo algo sem abrir a boca.

Ela mordeu o lábio inferior, e sua respiração vacilou por um instante.

— Você não disse nada, Walter. Mas eu escutei. Eu escutei você me entregando aquele talher como se estivesse selando um acordo. Como se, dali em diante, eu não pudesse mais me desprender de você.

O ar entre eles pareceu rarefeito.

— Foi um pacto silencioso. E eu aceitei. Aceitei como quem aceita um feitiço. Sem barganha. Sem protesto. Eu aceitei porque, pela primeira vez, eu me senti pertencente. Não à situação. Não ao momento. A você.

Ela fechou os olhos por um segundo, como se a lembrança fosse quente demais. E era. Porque sabia que não tinha se encerrado naquele jantar.

— E então veio a suíte.

O silêncio se instaurou entre eles. A tensão era palpável no ar. Carregada.

Walter sentiu o coração vacilar. As palavras dela o atravessaram como ecos de algo que nunca havia, de fato, terminado. E então, sem que pudesse evitar, a lembrança o inundou.

Aquela porta se fechando atrás deles. O clique seco, e depois o silêncio — não um silêncio vazio, mas carregado de tudo o que não ousaram dizer. Ele lembrava da forma como Fernanda o olhava naquele instante, como se estivesse prestes a mergulhar num território onde não havia retorno.

Ele a despiu com uma lentidão que não era hesitação, mas reverência. Como se cada pedaço dela já vivesse nele muito antes de serem tocados de verdade. Os dedos dele tremiam de leve ao percorrer as costas nuas dela, e a pele dela era quente, viva, como se pedisse por mais. Ele lembrou da boca encostando no ombro dela, da forma como ela arfou baixo, e de como, naquele momento, o mundo desapareceu — o tempo, as regras, tudo. Só restavam eles dois.

O cheiro dela ainda o perseguia: doce e denso, um perfume que se misturava à própria pele. A luz morna do abajur desenhava sombras no quarto, mas nenhuma delas era mais hipnotizante do que o contorno dela, ali, entregue. E então ele disse o nome dela no escuro. Baixo, grave. Como quem reza. E foi ali, naquele exato instante, que ele soube que jamais se libertaria.

— Eu lembro claramente daquele dia. Gravado em mim. E veja só... Trinta anos depois, aqui estamos nós. Novamente em uma suíte de hotel.

Ela deixou escapar uma risada baixa, melancólica. Havia algo de inevitável naquele reencontro. Algo escrito nas entrelinhas do tempo. Fernanda desviou o olhar, prendendo o lábio inferior entre os dentes. Quando voltou a encará-lo, havia algo distante em seu olhar, como se estivesse presa entre o presente e um passado que nunca a deixou por completo.

— Mas o que é felicidade senão uma trégua temporária? — Ela sussurrou, um sorriso sem humor dançando nos lábios. — Eu deveria ter visto os sinais.

Ela soltou um suspiro pesado, deixando o silêncio preencher o quarto antes de continuar.

— Você recebeu aquela ligação e eu vi quando seu rosto mudou. Eu vi quando sua expressão ficou tensa, quando você desviou o olhar por um segundo a mais do que deveria. E eu soube. — Fernanda passou a língua pelos lábios, como se as palavras tivessem um gosto amargo. — Eu soube que havia algo errado.

Ela abaixou os olhos para as próprias mãos, a voz saindo mais baixa, quase como uma confissão para si mesma.

— Mas eu fui egoísta.

Seu peito subiu e desceu com a respiração trêmula.

— Porque, Walter… eu passei anos esperando pelo desastre. Sempre à espreita, sempre me preparando para o momento em que tudo fosse ruir. — Sua voz falhou levemente, e ela fechou os olhos por um instante. — Dois relacionamentos desmoronaram sobre mim antes de você. Dois relacionamentos que foram tempestades, ventanias que me deixaram em destroços. Depois deles, eu aprendi a me antecipar à dor, a ver os sinais antes que eles me engolissem. Mas com você…

Ela abriu os olhos devagar, encontrando os dele.

— Com você, eu não quis olhar.

Ela balançou a cabeça, rindo baixinho, sem humor.

— Eu deveria ter perguntado. Deveria ter insistido, feito você me contar o que estava acontecendo. Mas eu não quis. Porque aquele momento era feliz demais, mesmo que não tivéssemos nada declarado. Londres era nossa por 48 horas, e pela primeira vez em tanto tempo, minha vida não parecia um caos.

Fernanda umedeceu os lábios, sua voz ganhando um tom suave, quase hesitante.

— Você… — Ela parou por um instante, e um brilho emocionado cruzou seus olhos. — Você foi o meu conto de fadas. A minha paz.

Walter permaneceu em silêncio, absorvendo cada palavra, e ela sentiu o peso daquele olhar sobre si.

— Você criou um lugar para mim sem nem perceber. Um lugar onde eu podia respirar sem medo, onde eu não precisava estar em alerta o tempo todo. Com você, não havia ameaças, não havia perguntas difíceis ou sombras à espreita. Tudo era quieto, gentil…perfeito demais para que qualquer coisa pudesse interferir. – Ela passou as mãos pelos cabelos, respirando fundo.  — E talvez, naquele momento, eu tenha acreditado que a gente podia viver só daquilo. Que o resto do mundo podia esperar.

Ela soltou um riso seco, balançando a cabeça.

— Mas o resto do mundo nunca espera, não é? – Ela levantou os olhos para ele novamente, e havia algo devastador naquela troca de olhares. — Eu sabia que não ia durar. Eu sabia que a realidade ia nos puxar de volta. Mas eu me agarrei àquela felicidade efêmera. Eu me agarrei a você.

O silêncio pesou entre eles antes que ela retomasse.

— Aqueles dois dias em agosto de 96 valeram por uma vida inteira. E, logo depois, veio setembro. Meu aniversário.

Fernanda fechou os olhos por um breve instante, como se pudesse sentir o eco de tudo aquilo ainda dentro dela.

— Eu me lembro de cada detalhe.

Walter também se lembrava. Se lembrava de tudo. Nunca esqueceria de quando ela o recebeu naquele domingo ensolarado de setembro com aquele sorriso que seria capaz de iluminar até a alma mais cansada.  

— Você fez questão de estar lá. Como sempre fazia. Como se, de alguma forma, soubesse que a sua ausência seria insuportável para mim. – Fernanda ergueu os olhos para ele, e dessa vez não havia barreiras entre o que sentia e o que deixava transparecer. – Foi ali que eu entendi que já não havia volta. Eu já estava apaixonada por você. Perdida. Completa e irremediavelmente apaixonada por você.

As palavras saíram com um gosto agridoce, uma confissão que demorou anos para ser dita, mas que sempre esteve ali, no fundo de tudo. Uma confissão que comprovasse a devoção silenciosa que ela manteve por ele durante todas essas intermináveis décadas. Fernanda ergueu o olhar para Walter, e havia algo definitivo na forma como o encarava. Algo que não pedia permissão nem perdão.

— Ainda assim, eu devia ter parado. Devia ter prestado atenção naquele primeiro sinal em Londres. Eu devia ter entendido o que aquilo significava.

Ela respirou fundo, o ar entrando e saindo de seus pulmões como se queimasse.

— E então veio o convite de Interlagos. Você queria que eu te acompanhasse, e eu fui. — Ela fechou os olhos por um segundo, como se pudesse sentir o peso daquela escolha ainda ali, sobre os ombros. — Porque eu sabia que era importante para você. E depois de tudo o que você fez por mim, era o mínimo que eu podia fazer por você.

Walter sentiu um aperto no peito. Interlagos. A lembrança o atingiu como um soco, crua e cortante. Depois de tanto tempo, ainda doía. Mas doía ainda mais ouvir da boca dela. Fernanda soltou um riso curto, sem humor, balançando a cabeça.

— Se eu tivesse parado na primeira oportunidade, se eu tivesse dito "não", teria doído. Eu sei que teria. Mas teria doído menos.

Ela inspirou profundamente antes de concluir, e quando falou, sua voz carregava o peso de uma ferida que nunca cicatrizou.

— Teria sido um corte limpo, um rasgo rápido. Mas eu não fiz isso. Eu estendi, prolonguei o inevitável, deixei a ferida aberta até que ela infeccionasse e nos levasse para o único lugar onde podíamos acabar: longe um do outro.

Ela balançou a cabeça, como se não conseguisse aceitar o que estava dizendo.

— Eu não podia ter estragado isso. Você foi a melhor coisa que me aconteceu em anos. Depois de todo o caos, depois de ser eu… — Ela riu, mas a risada morreu rápido. — Eu, com toda minha espontaneidade, com meus relacionamentos fracassados, com essa minha mania de falar tudo o que vem à cabeça, de me jogar no que me faz sentir viva…

Ela apertou os dedos contra o próprio colo, como se tentasse se segurar. Não pode evitar a lágrima traiçoeira que rolou pelo rosto.

— Mas eu estraguei.

O silêncio que se seguiu foi pesado, quase palpável.

Ela desviou o olhar para a janela, como se as luzes de Los Angeles pudessem oferecer alguma resposta, alguma forma de absolvição. Mas não havia nada. Apenas a certeza de que a vida, impiedosa como sempre, a tinha arrancado dele.

— Depois daquele dia, eu lembro de nós dois, no chão do meu apartamento.

A lembrança veio como uma onda, varrendo tudo. O chão frio sob a pele. A respiração ofegante. A tentativa desesperada de agarrar algo que já escorria pelos dedos.

— Eu tentei convencer você… tentei convencer a mim mesma de que o afastamento era o certo. Eu lembro de lhe dizer "Vai passar". – A frase pairou entre eles como um fantasma. — Mas foi só mais uma mentira que eu contei.

O peito dela subia e descia de forma descompassada, como se ainda estivesse sentindo a mesma vertigem daquele dia.

— Quando você saiu pela porta, foi como se o chão tivesse desaparecido. E eu fui sugada pela escuridão.

Ela apertou os olhos, mas a memória não se dissipou. O vazio. A sensação de estar à deriva. Ele era o porto seguro dela, e ela mesma havia cortado as amarras.

—  Depois de quase dois anos, eu te vi de novo.

Ela ergueu os olhos para ele, buscando nele a mesma lembrança.

— A segunda vez que colaboramos, em 1998. O Primeiro Dia.

Walter piscou lentamente, e ela soube que ele também estava lá, revivendo cada detalhe.

— Daniela Thomas tinha me escalado e eu deveria ter imaginado que você estaria envolvido. Mas eu não me preparei.

Fernanda soltou um riso curto, quase melancólico.

— Eu achei que depois de todo aquele tempo, o impacto seria menor.

Ela inclinou a cabeça, fitando-o com uma intensidade quase desafiadora.

— Eu estava errada. – As palavras saíram quase como um sussurro. –  Foi pior. Foi muito pior. A troca de olhares. A forma como a sua presença preenchia o espaço. Como tudo em você me chamava. Era como se o tempo não tivesse passado. Ou pior, como se a cada vez que a gente se reencontrasse, essa força magnética só aumentasse.

Ela fechou os olhos por um momento, revivendo a cena com uma clareza dolorosa.

— Então veio a ceia de Natal, preparei uma ceia para a equipe e é claro que naquela correria, eu acabei me cortando. 

Walter inclinou levemente a cabeça, atento. O olhar dela desceu instintivamente até o pulso, onde a cicatriz ainda estava.

— E então, antes que eu pudesse reagir, lá estava você.

A respiração de Walter ficou um pouco mais pesada.

— Você pegou minha mão com aquela urgência silenciosa. Como se o meu corte fosse a única coisa que importava no mundo. A forma como você limpou o ferimento, a maneira como sua testa franziu de preocupação, como se qualquer dor minha fosse sua também.

Ela prendeu o fôlego, sentindo o peito apertar.

— Eu não conseguia parar de olhar para você. Porque era aquilo. Sempre foi aquilo, não é mesmo? – Ela ergueu o olhar para Walter, e sua voz saiu baixa, quase um segredo. – A sua devoção.

Ela sorriu de um jeito triste.

— Você sempre cuidou de mim. Sempre. E ali, naquela noite, segurando minha mão, absorvido em cada detalhe do meu ferimento… eu vi. Eu vi que nada tinha mudado.

Ela desviou o olhar, e seu tom ficou mais amargo. A sombra do passado pairava entre eles.

— O tempo passou, mas ficou ali, latente. Em cada encontro, em cada olhar que desviamos. — Ela respirou fundo, quase como se tentasse afastar o peso da lembrança. – E então, nós só iríamos nos reencontrar novamente em janeiro de 1999.

Walter fechou os olhos por um instante, como se aquela lembrança o atingisse em cheio.

Central do Brasil. Eu estava tão feliz pela mamãe. Por você. Pelo nosso cinema brasileiro. – Os olhos dela brilhavam como naquela noite, quando viu o nome de sua mãe ser anunciado, quando soube que o filme que Walter tanto sonhou estava sendo celebrado. — Não conseguia me conter de tanta felicidade… de ver a minha mãe e o homem mais incrível que conheci na vida serem reconhecidos mundialmente.

Ela umedeceu os lábios, a voz carregada de ternura.

— Você merecia. Merecia mais do que tudo.

Walter sentiu um nó se formar na garganta. Ele sabia que aquele momento não era apenas sobre premiações. Não era apenas sobre o cinema. Era sobre eles. Sobre o que existia ali, mesmo quando estavam distantes. E então veio o peso da lembrança seguinte.

— Mas foi ali que a nossa ligação se rompeu.

Walter desviou o olhar, como se a memória fosse densa demais para ser encarada de frente. Fernanda, no entanto, continuou.

— Eu lembro de ter escapado para a cozinha.

O riso dela veio baixo, carregado de uma nostalgia agridoce.

— Era muita gente, muita energia, tudo intenso demais. E você estava a espreita e me seguiu.  – Ela ergueu uma sobrancelha, olhando para ele com um ar de provocação melancólica.

Walter soltou um suspiro breve, como se pudesse sentir de novo o cheiro da cozinha da casa dos Montenegro-Torres naquela noite.

— Eu sempre te segui, Fernanda.

Fernanda fixou o olhar nele, um resquício de tristeza dançou nos olhos dela ao ouvir a sentença sair da boca dele, sorriu de canto, mas a melancolia não deixou de estar ali.

— Você ainda lembra o que me sugeriu?

Walter não respondeu de imediato. Mas os olhos dele entregavam tudo.

Fernanda inclinou levemente a cabeça, como se tentasse decifrá-lo — como se não o conhecesse melhor do que a si mesma.

— Era uma possibilidade — murmurou ela, deixando as palavras pairarem entre os dois. — Uma possibilidade em tom de promessa.

Walter passou a língua pelos lábios, respirando fundo. Ele não precisava perguntar a que momento ela se referia.

Ele sabia.

Lembrava-se daquela noite de janeiro de 1999 com uma nitidez cruel. Estava ali, na cozinha dela, cercado por vozes eufóricas e taças erguidas em brindes, quando a viu se afastar. Um gesto quase imperceptível, um recolhimento sutil. Fernanda nunca foi de fugir, mas naquela noite…

Ela fugiu.

E ele a seguiu.

Walter recordava do cheiro cítrico e doce dela misturado ao vinho, da forma como a luz da cozinha desenhava sombras delicadas em seu rosto. Recordava, sobretudo, da sensação que o tomou quando a encontrou ali, tão perto, tão distante, tão absurda e inevitavelmente dela. A impulsividade queimou dentro dele. A ideia atravessou sua mente como um raio: tirá-la dali.

Longe dos outros, longe daquilo tudo.

Dizer ao mundo, finalmente, que ela era dele.

E então, num ímpeto, falou.

"Eu deveria te raptar."

Foi uma brincadeira. Ou pelo menos deveria ter sido. Mas as palavras saíram carregadas de um desejo que ele já não conseguia controlar. E o que veio depois ele nunca esqueceu. Porque Fernanda não riu. Ela o olhou — e naquele olhar havia um segundo inteiro de rendição, uma fração de tempo em que ele viu a resposta que sempre quis.

Walter sentiu o gosto amargo daquela lembrança ao encará-la agora, anos depois, diante dele.

— Eu brinquei que poderia te levar para longe dali — disse ele, a voz mais rouca do que gostaria.

Fernanda umedeceu os lábios, prendendo um sorriso que ameaçava nascer e morrer ao mesmo tempo.

— "Me raptar." — completou ela, num sussurro.

A lembrança pesou entre os dois, densa, cortante.

— Eu quis — continuou Fernanda, os olhos buscando os dele.

Walter franziu o cenho, observando-a com atenção.

— Eu quis tanto que você tivesse feito isso.

A voz dela tremeu levemente, não por fraqueza, mas pela força de algo que ficou preso por tempo demais.

— Porque ali, naquele momento, eu soube.

Ela deu um passo à frente, diminuindo a distância entre eles.

— Eu soube que se você me pedisse... eu iria.

O silêncio que se seguiu foi devastador. Porque ambos sabiam que, se tivesse acontecido, tudo poderia ter sido diferente.

Mas não aconteceu.

E ali estavam eles, anos depois, ainda presos naquilo que nunca foi dito, naquilo que nunca aconteceu. Walter desviou o olhar por um instante, incapaz de sustentar o peso do que poderia ter sido. Fernanda percebeu. Ela soltou um suspiro longo, resignado, como quem aceita o que nunca pôde ser mudado.

— Mas você não pediu.

Ela sorriu, um sorriso pequeno, sem alegria.

— E eu não fui.

O silêncio entre eles era um campo minado de palavras engolidas e escolhas não feitas. Fernanda desviou o olhar, como se estivesse prestes a confessar um crime.

— Um tempo depois, eu me casei.

As palavras saíram num sopro, carregadas de um peso que ela ainda carregava. Walter permaneceu em silêncio. Ele já sabia, claro. Mas ouvir da boca dela, assim, naquele tom… era diferente.

— Eu tentei me convencer de que era o melhor para mim. — Ela soltou uma risada breve, sem alegria. — Me joguei naquela vida com tudo que eu tinha, porque era isso que eu fazia, não era? Eu me jogava.

Ela fez uma pausa. Como se algo estivesse queimando na garganta, pedindo pra sair.

— Eu sempre quis uma felicidade plena. Uma casa segura. Um amor que resistisse ao tempo, como o casamento dos meus pais. Mas sempre que eu imaginava isso, a imagem voltava pra você. Era o único rosto que eu conseguia imaginar. Eu me via ao seu lado. Me via envelhecendo com você. – Ela ergueu os olhos para ele, e Walter viu algo neles — uma tristeza antiga, o eco de uma dor que nunca se dissipou completamente.  — Eu sinto ciúmes do tempo — ela confessou, com um fio de voz. — Do que não fomos. Do que poderíamos ter sido. E então vieram os anos. Longos anos. — A voz dela diminuiu, como se estivesse voltando no tempo. — E quando soube que você tinha se casado também…

Ela parou, engolindo em seco. Era perceptível o esforço que ela fazia para manter a compostura, mas já era tarde.

— Aquilo me estraçalhou por dentro.

O silêncio se instalou entre eles, denso, cheio de tudo o que não foi dito. Fernanda respirou fundo, como se tentasse se recompor.

— Mas eu me apeguei ao fato de que, um dia, nós fomos. — Ela sorriu, mas era um sorriso triste. — 95, 96… Eu te tive. Mesmo que por uma fração de tempo, você foi meu.

Walter fechou os olhos por um segundo. Sentiu o peso daquelas palavras, o peso da memória que se tornara inconsolável para ela.

— Depois de todo esse tempo, eu sempre senti você me acompanhando. De alguma forma, você sempre esteve lá.

Walter não conseguia desviar o olhar. Porque ele sabia que era verdade.

— Eu me contentei, Walter. — Ela soltou uma risada pequena e dolorida. — Eu me acostumei com esse fantasma. Mas então, as idas e vindas, os encontros casuais, os eventos, as livrarias… — A voz dela ficou mais suave, quase um sussurro. — Você no lançamento de Fim, em 2013. Você nem imagina o quanto aquilo foi importante pra mim.

Walter inspirou fundo. Ele lembrava.

— E dez anos depois, você me resgatou novamente. Ainda Estou Aqui. A nossa reaproximação. Você agiu como um salvador, sabia?  E veja só aonde chegamos.  – Fernanda riu baixinho, balançando a cabeça. Ela olhou ao redor, como se só agora se desse conta da dimensão daquilo. – Golden Globe winner, e estamos a menos de 24 horas para o Oscar.

Walter se aproximou um pouco mais, o olhar atento, como se decorasse cada nuance dela, como se gravasse a cena em algum lugar profundo, inalcançável.

— Você sempre enxergou em mim algo que, às vezes, eu mesma achava que tinha ido embora. — A voz dela ficou mais baixa, quase uma confissão. — Você sempre esteve um passo à minha frente. Como se soubesse antes de mim quem eu era.

Ele quis responder, mas Fernanda desviou o olhar por um instante, tomada por uma lembrança que a puxava de volta no tempo.

— Eu me lembro de Copacabana — murmurou ela, com a voz marcada por uma certeza antiga: — Em 1995, eu disse a você que eu sentia que nós tínhamos feito um pacto, como se nossos destinos estivessem para sempre entrelaçados... eu estava certa. Até porque eu sempre acabo voltando para você.

A lembrança o atingiu com uma força absurda. O cheiro do Marlboro Gold ainda parecia preso ao paladar. A maresia grudada na pele. A risada dela ecoando entre as luzes do calçadão. A forma como ela falava aquilo com uma convicção quase mística, como uma premonição. Talvez fosse ali que tudo tivesse sido selado. Talvez fossem mesmo como Antônio e Cleópatra — amantes de uma tragédia escrita em capítulos não publicados. Separados por mundos diferentes, por escolhas e tempos, mas unidos por uma paixão que atravessava todos eles.

Ele abriu a boca para dizer algo, mas Fernanda foi mais rápida. Como sempre.  Algo na forma como ela o olhava, como se cada camada tivesse sido arrancada até restar apenas o que era essencial.

— Então, eu me pergunto... — a voz dela saiu baixa, mas firme. — Como você pode pedir para que pertença a mim?

Walter parou. O coração acelerado. A pergunta ficou suspensa no ar, vibrando como uma corda esticada até o limite. Ela não desviou o olhar. Havia urgência ali. E entrega. Uma ternura quase brutal, como se ela estivesse finalmente se despindo por completo — não de roupas, mas de todas as defesas.

— Como você pode me pedir isso... — repetiu, a voz embargando sutilmente — ...sendo que eu sempre fui sua?

O silêncio que se seguiu era absoluto, mas nada vazio. Era preenchido de anos não ditos, de toques contidos, de promessas caladas. Ele se aproximou como se atraído por uma força maior do que ele. Os olhos estavam marejados, mas intensos — e nela, ele via tudo. A mulher que ele amou em silêncio, a que ele buscou em cada rosto desconhecido, a que jamais saiu do lugar mais íntimo da memória.

Fernanda não recuou. Ela sentia o calor dele, o cheiro familiar, a respiração entrecortada. Ela umedeceu os lábios e sussurrou, quase como uma confissão que sempre viveu na ponta da língua:

— Eu me sinto tão sua que o seu nome está cravado na minha alma.

Walter fechou os olhos, e por um segundo o mundo parou. Como se tudo o que veio antes tivesse sido apenas um longo prólogo para aquele momento. Quando os abriu, havia algo irreversível ali. Uma rendição sem palavras. Um sim que não precisava ser dito. Fernanda prendeu o olhar no dele, era intenso, cru, com aquela mistura de urgência, desejo e saudade.

Ele não disse nada de imediato. Apenas caminhou em direção a ela com uma lentidão quase felina, como se estivesse atravessando séculos para finalmente alcançá-la. Fernanda sentiu o ar pesado entre eles. Ele parou a poucos centímetros de seu corpo — tão perto que o calor dele parecia irradiar, tocar sua pele sem tocá-la de fato. Mas ela sentia. Sentia como se ele fosse uma força magnética e silenciosa, um predador elegante, em busca de algo que já lhe pertencia.

Os olhos dele — tão escuros agora sob a luz morna da suíte — a percorriam devagar, como se decifrassem cada linha de seu rosto, cada gesto, cada resquício do tempo.
Ela tremia, não de medo, mas da antecipação que se acumulava como uma tempestade elétrica sob a pele. A respiração entrecortada, o peito subindo e descendo num ritmo que já não era seu — era dele.

Walter ergueu as mãos, e com uma lentidão que beirava a provocação, segurou as lapelas do casaco que ela vestia — quase um sobretudo leve, escuro, que a envolvia como uma armadura. Ele começou a deslizá-lo pelos ombros dela, os olhos atentos a cada mínima reação. Fernanda não conseguia desviar o olhar dele. Se sentia presa, enredada em algo antigo e irreversível.

O casaco escorregou pelos braços dela e caiu no chão sem ruído.

Sob ele, o robe preto de cetim. Curto, ajustado, com um laço frouxo na cintura. Walter passou os dedos pela amarração com uma reverência que a fez prender a respiração. Ele não tinha pressa. Seus olhos diziam tudo: ele queria saborear, explorar, dominar cada detalhe daquele instante.

Os dedos firmes deslizaram pelo laço até soltá-lo, e Fernanda sentiu o tecido se abrir devagar. A pele dela se arrepiou quando as mãos dele roçaram o cetim e depois deslizaram pela cintura, afastando lentamente o robe que cedeu, revelando a camisola preta, tão suave quanto um sussurro, tão justa quanto a lembrança do corpo dele nela. Ela sentiu o bico do peito enrijecer ao contato com o ar e com o olhar dele. Walter ainda não a tocava diretamente, mas era como se a pele dela já respondesse a cada gesto dele, a cada centímetro percorrido por aquele olhar faminto.

Ele parou por um segundo.

A observou como se estivesse diante de uma pintura que conhecia, mas que há muito não via. Como se cada curva dela fosse memória e presente ao mesmo tempo. Ergueu a mão com calma, e com o polegar passou devagar pelo lábio inferior dela. O toque era leve, mas incendiário. Um traço delicado, quase reverente. Podia sentir as pernas ameaçando falhar.

A voz veio então, grave, aveludada, carregada de algo que parecia antigo e inevitável:

— Diga novamente que é minha.

Fernanda tentou organizar o pensamento, mas com ele ali, tão próximo, tudo se dissolvia — era difícil raciocinar. Tudo se curvava ao momento. Ela respirou fundo, os olhos fixos nos dele, e sussurrou, com a voz embargada pelo desejo:

— Eu sou sua.

Foi tudo o que ele precisou.

Walter a beijou como se tivesse esperado a vida inteira por aquele instante. Começou devagar, quase solene, como se cada segundo fosse precioso demais para ser apressado. Mas logo, o beijo se aprofundou. A boca dele se moldava à dela com uma urgência faminta. Ele a tomou nos braços, as mãos grandes e firmes em sua cintura, puxando-a para perto como se quisesse fundi-la ao próprio corpo.

Fernanda gemeu baixo quando ele mordeu de leve seu lábio inferior, a língua brincando com a dela num jogo que os dois conheciam, mas que agora parecia carregado de um novo significado. Os corpos se encaixavam como se tivessem sido desenhados um para o outro — um reencontro físico depois de anos de exílio emocional.

Ela deslizou as mãos pelos ombros dele, sentindo os músculos, a firmeza, a tensão contida. Ele deslizou a palma da mão pela curva das costas dela, como se quisesse memorizar cada linha, até alcançar os cabelos. Seus dedos se entrelaçaram ali, firmes, puxando de leve, guiando a cabeça dela para trás. Fernanda cedeu, entregue, e o pescoço ficou exposto, vulnerável e convidativo.

A barba por fazer dele roçou a pele sensível, provocando um arrepio imediato que a fez prender a respiração. Walter sorriu contra o pescoço dela antes de começar a distribuir beijos lentos, molhados, famintos. Em alguns momentos, os beijos viravam mordidas suaves, uma sequência de gestos que mesclavam desejo bruto e ternura absoluta. Ela se arqueava contra ele, as mãos agarradas aos ombros como se precisasse se ancorar para não se perder naquele toque. Foi quando o peito nu dela roçou contra o dele, e o contato do bico enrijecido contra sua pele fez Walter soltar um gemido baixo, gutural — um som primal, carregado de desejo contido por anos. Um aviso. Um anúncio do que viria. Ela sentiu aquilo no centro do corpo, como uma onda quente e irresistível que subia pelas coxas e queimava no ventre. Um arrepio percorreu sua espinha quando gemeu em resposta, os olhos semiabertos, a boca entreaberta, entregue.

— Walter...

Só o nome, apenas o nome dele, mas carregado de tudo o que ela sentia. Tudo o que ela queria entregar. E ele sentiu. Sentiu o nome dele escorrer da boca dela como uma confissão inevitável, e algo dentro dele se rompeu — não em fúria, mas em devoção carnal. Walter aproximou a boca do ouvido dela e sussurrou com aquela voz grave, rouca de desejo, o hálito quente fazendo a pele dela se arrepiar:

— Vou me certificar de ouvir você gemer meu nome mais vezes... enquanto se contorce de prazer debaixo de mim.

O corpo dela respondeu imediatamente. O íntimo dela se umedeceu num impulso incontrolável. Com passos lentos, chegaram à beira da cama. Walter a colocou com cuidado sob os lençóis brancos, os joelhos dela cedendo, os cabelos espalhados pelo travesseiro como uma moldura. Ele a observou ali, rendida, e por um segundo, tudo parou. Como se aquele momento fosse o ápice de uma espera longa demais. Ele subiu sobre ela com a reverência de um homem diante de um templo — e Fernanda era o templo dele. A devoção, o fogo, o lar.

A respiração entrecortada dos dois se misturava com o silêncio carregado da suíte. Mas já não havia mais silêncio entre eles. Cada olhar, cada toque, cada palavra dita e não dita — tudo era linguagem. Tudo era clamor.

Cara a cara, os rostos tão próximos que o ar parecia um só entre eles, Fernanda sustentou o olhar de Walter. Havia um brilho ali — desafio, desejo, entrega. Lentamente, ele ergueu a mão e passou os dedos pelo rosto dela, desenhando o contorno como se quisesse eternizar aquele momento na ponta da memória. O polegar traçou a linha da mandíbula, subiu até os lábios. E ali, ele a provocou — encostou o polegar de leve na boca dela, os olhos ainda cravados nos dela. Ela chupou o dedo dele suavemente, mantendo o contato visual. Um gesto que misturava ternura e domínio. Ele não pode conter um sorriso. Um sorriso lascivo, quase perigoso. Ela sabia o efeito que causava nele.

Com uma lentidão calculada, Walter começou a descer o corpo, distribuindo beijos lentos e quentes por cada centímetro exposto da pele dela. Passou pelos ombros, pela clavícula, até parar na altura do busto. Os olhos dele subiram novamente, encontrando os dela — pedindo permissão e ao mesmo tempo afirmando posse. Sem romper o olhar, ele ergueu levemente o tecido da camisola de cetim e, com uma precisão reverente, a retirou do corpo dela.

Os seios dela estavam agora completamente expostos sob a luz morna do abajur. Ele não os tocou de imediato. Apenas contemplou, como se admirasse uma obra de arte sagrada — mas com olhos de quem deseja, de quem conhece, de quem se lembra. Então, sem pressa, ele abocanhou levemente um dos seios, a língua traçando círculos suaves ao redor do mamilo, enquanto a outra mão brincava com o outro, provocando, acariciando o bico já enrijecido. Fernanda arqueou o corpo. A respiração dela estava descompassada, como se não coubesse mais dentro do próprio peito. Ela levou a mão aos cabelos dele, os dedos se enroscando neles, como se quisesse prendê-lo ali, naquele exato momento, eternamente.

Mas ele tinha outros planos.

Ele desceu mais, lambendo a pele da barriga dela com uma lentidão insuportável, a ponta do nariz roçando o ventre dela em movimentos sensuais, quase preguiçosos. Fernanda sentia o íntimo pulsar, a umidade se intensificar com cada gesto, cada provocação. Então ele havia chegado na cintura. Parou. Não disse nada. Apenas olhou para ela com aquele olhar escuro, lascivo, faminto. E, então, inclinou-se e mordeu levemente a borda da calcinha de renda preta, como quem ameaça, como quem promete.

Mas ele não a tirou. Ainda não.

Brincava com a antecipação como um maestro que conhece cada pausa da sinfonia. Depositou beijos lentos na virilha dela, depois na parte interna das coxas — molhando a pele com a língua, roçando os lábios, mordendo de leve. Fernanda soltou um lamúrio. Era prazer e tortura. E o sorriso cafajeste que cruzou os lábios dele a fez estremecer. Ele sabia. Sabia exatamente o que estava fazendo. E porra, ela amava. Amava estar à mercê dele.

Ela ergueu a cabeça e o encarou. O rosto dele agora estava na altura do quadril dela, os olhos fixos nela, escuros, intensos. Com movimentos lentos e certeiros, ele puxou a calcinha de renda, deslizando-a pelas pernas com uma precisão quase ritualística. E então, segurando a peça nas mãos, ele a levou ao rosto. Inspirou profundamente. O gesto a deixou sem ar. Era primitivo, carnal, e ao mesmo tempo carregado de algo mais — veneração. Essa era a palavra. Como se ele estivesse diante de algo sagrado. Como se a carne dela fosse oferenda, altar e resposta.

Walter abaixou ainda mais, e a ponta do nariz dele roçou com delicadeza a intimidade exposta de Fernanda. Ela prendeu a respiração, sentiu cada nervo se acender. Ele passou os dedos devagar por entre seus lábios, sentindo a umidade quente. E então, com a voz rouca, mais grave do que ela jamais ouvira, sussurrou:

— Você já está tão molhada e eu ainda nem comecei a te chupar.

O baque daquelas palavras percorreu o corpo dela como um choque. Fernanda sorriu de canto, atirada, provocante, mesmo completamente rendida. Passou os dedos pelos próprios seios, querendo atiçá-lo ainda mais, e sussurrou, arfando:

— Então você sabe o que tem que fazer.

O sorriso dele veio torto, lascivo. O olhar intenso e escuro como uma promessa. E então, sem mais uma palavra, ele afundou o rosto entre as pernas dela. Fernanda jogou a cabeça para trás, um gemido escapando como se não houvesse contenção possível. A língua dele se moveu lenta, precisa, com reverência e intenção. Como se cada lambida fosse uma prece murmurada direto no corpo dela. Ele sabia exatamente aonde ir. E ia. Quando sentia as costas dela começarem a arquear, prolongava o ritmo — a língua se tornando mais punitiva, faminta, até arrancar dela sons que pareciam vindos do mais fundo da alma.

Porra. Era melhor do que ela lembrava. Muito melhor. Chegava a ser transcendental.

As mãos dele a continham com força, uma entrelaçada na parte de trás da coxa, outra segurando firme a cintura, como se dissesse com o toque: você não vai a lugar nenhum. E ele sentia. Sentia o corpo dela se entregar completamente, cada gemido, cada movimento involuntário — Fernanda já era dele. E ela sabia. Sabia que ele dominava o tempo, o ritmo, o toque. E que ela queria isso. Precisava disso. Sem aviso, ele deslizou dois dedos dentro dela com firmeza e precisão. Um gemido rouco, quase um grito contido, escapou da garganta dela.

Shhh — ele sussurrou com um sorriso torto, a boca ainda roçando a pele sensível da virilha, como se quisesse silenciar o prazer só para provocá-la.

Ela gemeu em resposta, mas dessa vez mais baixo, quase como um desafio mudo, enquanto a mão dela buscava os cabelos dele, acariciando, puxando de leve, rendida. Os dedos dele se moviam em sincronia com a língua — e ela lutava para não ceder repentinamente. Cada lambida era uma sentença. Cada movimento dos dedos era uma exigência.

As mãos deles se encontraram entre os lençóis amarrotados, e ele entrelaçou os dedos nos dela. Havia algo de selvagem naquele toque, mas também algo de íntimo — uma entrega mútua, um reconhecimento no meio do caos do prazer. Ela começou a mover o quadril, desesperada por mais, por tudo. Ele acompanhava, guiava, intensificava. A língua dele pressionava o ponto exato, enquanto os dedos mergulhavam nela com consistência e firmeza.

Walter — ela gemeu, o nome escapando dos lábios como uma prece ofegante, o corpo tremendo sob o toque da língua e dos dedos dele. Ele sentiu — o jeito como ela arqueava as costas, os músculos internos começando a pulsar ao redor dos dedos dele. Ela estava perto.

Walter ergueu o olhar, ainda entre as pernas dela, os olhos cravados nos dela — famintos, dominadores, ternos e devastadores ao mesmo tempo. A voz dele veio baixa, grave, com aquela rouquidão que atravessava o corpo como corrente elétrica. Um sussurro quente, cheio de intenção, que vibrava entre as coxas dela:

— Goza pra mim, Fernanda. Quero sentir você se desfazendo na minha boca.

Foi como se aquela frase tivesse sido o gatilho. O nome dela dito daquele jeito, com aquela posse velada, aquela reverência pecaminosa. Arqueou o corpo com violência, um grito entrecortado preso na garganta, o prazer vindo com força, como um trem desgovernado. Ela se desmanchou ao redor dele, trêmula, completamente entregue. O corpo dela reagia como se cada célula vibrasse com a voz dele, com o toque, com o desejo. E ele observava, embriagado por ela, pela forma como ela se entregava, pela beleza crua de vê-la se despedaçar em prazer.

Quando ela finalmente desabou, ofegante, exposta e absolutamente dele, Walter a encarou. Subiu com calma pelo corpo dela, os olhos fixos nos dela, como se quisesse guardar aquela imagem para sempre.

Os dedos ainda molhados pelo gozo dela chegaram à altura da boca. Ele os levou aos lábios dela com naturalidade, sem uma única palavra, apenas o silêncio cúmplice do desejo. Ela não hesitou. Abriu a boca e os acolheu com avidez, chupando os dedos dele de forma obscena, provocativa, sem quebrar o contato visual. Ela lambeu devagar, saboreando a si mesma como se fosse o próprio deleite.

Os olhos de Walter ficaram ainda mais escuros, mais famintos.

— Senti falta disso — ele disse, rouco, a respiração pesada. — Do seu gosto na minha língua.

Ela sorriu, com aquele sorriso atrevido e lascivo que era só dela, aquele que sempre o desarmava. E ela o observava como se tivesse todo o tempo do mundo, como se cada segundo de contemplação fosse uma eternidade merecida. Pela luz suave do abajur, seus olhos passearam pelo corpo dele. O peito arfando, os músculos tensos, os ombros largos, a pele marcada pelo desejo recente… E então Fernanda parou.

O membro dele já estava rígido, denso, úmido da excitação que ele havia sentido ao vê-la se desfazer. O coração dela disparou no peito. Walter esticou o braço até a gaveta ao lado da cama sem tirar os olhos dela. Pegou uma camisinha e, sem cerimônia, rasgou a pontinha da embalagem com a boca. O gesto simples, bruto e seguro incendiou Fernanda. Havia algo de primal na forma como ele fazia até o trivial se tornar erótico.

Deslizou a camisinha sobre o próprio membro com precisão, a respiração cada vez mais pesada. Então se deitou sobre ela, e a beijou. O gosto dela ainda estava em seus lábios. E quando as bocas se encontraram, Fernanda gemeu contra ele — um gemido doído e doce, de fome, de necessidade. Sentia o próprio gosto na boca dele, e era obsceno, íntimo, sagrado.

— Você é minha. E vai sentir isso em cada centímetro do seu corpo.

Não teve tempo para retrucar a investida sensual e dominadora dele, pois foi quando ela o sentiu. O membro quente e rígido de Walter roçando contra sua entrada, deslizando devagar, buscando espaço, provocando. Ela prendeu a respiração — o corpo inteiro preparado, desejando. Quando ele a penetrou, foi com uma lentidão calculada. Queria senti-la, queria se perder nela. As paredes molhadas e quentes a envolveram imediatamente, acolhendo-o como se o corpo dela soubesse, desde sempre, que aquele era o lugar dele.

Os olhos deles se encontraram.

Fernanda levou a mão para tocar o rosto dele — um gesto de carinho, de devoção — mas Walter, faminto e possessivo, segurou os dois pulsos dela com as mãos grandes e fortes, erguendo-os acima da cabeça dela, colando-os no colchão com firmeza. Ela arfou. Sentiu-se cativa — não de força, mas de entrega. De pertencimento.

— Fica assim… — ele murmurou contra o pescoço dela, a voz mais grave, mais baixa, um ronronar entre gemido e comando.

E começou a se mover.

Lento no início, como se estivesse descobrindo o ritmo exato entre eles. A cada investida, o corpo dele afundava mais no dela, e ela arqueava em resposta, buscando mais, querendo tudo.

O rosto dele se aninhou no pescoço dela, onde depositava mordidas suaves, intercaladas com gemidos roucos que vibravam diretamente contra a pele sensível. Ela sentia — a boca dele, o peso dele, a pulsação dele dentro dela. E o íntimo dela pulsava de volta, um eco perfeito, um chamado silencioso. Fernanda gemia de forma descompassada, as pernas enlaçando a cintura dele, os quadris se movendo num compasso próprio. Ela estava completamente tomada. E Walter, acima, dentro e ao redor dela, parecia querer imprimir aquele momento em cada parte do corpo dela.

A penetração era profunda, lenta, ritmada como um ritual — mas o desejo entre eles vibrava em uma frequência mais urgente, quase desesperada. Walter se movia dentro dela com precisão e reverência, o corpo tenso, o maxilar travado, os olhos fixos nos dela. Fernanda estava entregue. O rosto corado, os lábios entreabertos, o olhar perdido entre o prazer e o espanto de ainda o sentir daquele jeito. Como se fosse a primeira vez. Como se sempre tivesse sido assim.

E então ele parou por um segundo — apenas o suficiente para observá-la. O peito dela arfava, os cabelos estavam colados na testa, e havia uma vulnerabilidade crua ali que fez algo dentro dele estremecer. Aquilo era bom demais pra ser verdade.

Com a voz baixa, rouca, e um tom que não deixava espaço para desobediência, ele disse:

— Olha pra mim.

O comando fez Fernanda abrir os olhos, ainda ofegante, as pupilas dilatadas. Quando os olhares se encontraram, Walter se perdeu. E, com um sussurro quase reverente, quase ferido de tanto amor, ele disse:

Minha Honey Baby.

O nome dito assim — como um segredo, como uma jura — fez o corpo dela responder com um espasmo de prazer. Ela mordeu o lábio inferior, os olhos se apertaram, e uma expressão de puro deleite tomou conta de seu rosto. Walter acariciou o rosto dela com ternura, como se estivesse tocando algo sagrado. Então a beijou. Um beijo profundo, molhado, intenso, onde as línguas se encontravam como quem reencontra o caminho de casa. Uma das mãos dele subiu pelo corpo dela até abarcar o pescoço, num gesto carinhoso, firme, que a fez estremecer inteira.

Era demais. Era tudo.

Instintivamente, Fernanda entrelaçou a perna ao redor da cintura dele e puxou o quadril dele para si, num pedido mudo, desesperado, para que ele fosse mais fundo. Que não parasse. Que a levasse junto, até o fim. Mas Walter sorriu contra os lábios dela — um sorriso sacana, ardiloso — e diminuiu o ritmo. Não a intensidade. O ritmo.

As investidas se tornaram mais lentas, mas mais punitivas. Mais firmes. E isso a incendiou de vez.

Ela arqueou as costas, as mãos espalmadas nas costas dele, as unhas cravando a pele. Ele rosnava baixo a cada vez que a sentia se apertar ao redor dele, como se ela o sugasse de volta com cada movimento. O prazer foi subindo, crescendo, se acumulando entre eles como uma tempestade prestes a desabar. E quando finalmente o clímax veio, veio juntos.

Walter enterrou-se nela com força, com fome, com amor — e sussurrou o nome dela contra sua pele:

Fernanda…

A voz dele era um fiapo rouco, dilacerado de sentimento. E o nome, dito assim, soou como posse. Como destino. O corpo de dela tremeu sob ele. A pele se arrepiou inteira, o íntimo pulsando em espasmos intensos enquanto ela gemia, entregue, vulnerável e plena. Walter desmanchou sobre ela, o rosto enterrado no pescoço dela, os lábios ainda buscando a pele que ele conhecia como ninguém.

Ele a lambeu ali — como se quisesse tatuar o gosto, a textura, a entrega. Ela ainda sentia os espasmos do segundo orgasmo reverberando dentro de si. A cada lambida dele, a cada toque de sua respiração contra a pele dela, o corpo reagia, e ela se apertava em torno dele. As mãos dele, antes famintas, agora apenas acariciavam — leves, quase reverentes — as laterais do corpo dela. Fernanda deslizou os dedos pelas costas dele devagar, num carinho que não pedia nada, só agradecia. A entrega não havia terminado. Apenas mudado de forma.

 


 

Ainda deitado sobre ela, Walter manteve o rosto escondido na curva do pescoço de Fernanda, como se ali fosse o único lugar possível de repouso. A respiração dele foi desacelerando aos poucos, se ajustando ao ritmo do coração dela, que batia forte, mas já não em desespero — e sim em paz. Ele escutava aquele som como quem ouve um segredo.

A mão dela subia e descia lentamente pelas costas dele, os dedos passeando por entre as vértebras como quem queria memorizar cada uma. Ela enfiou o rosto nos cabelos dele — agora grisalhos — e inalou o cheiro dele com calma. Era um cheiro que ela conhecia há décadas, mas que agora tinha outro peso. Cheiro de pertencimento. De casa.

E Walter, ali, com o corpo colado ao dela, sentiu algo que não sentia há muito tempo: segurança. Como se por um instante ele pudesse abaixar todas as defesas. Como se o mundo parasse de exigir dele. Fernanda fechou os olhos por um segundo. Um segundo que carregava todo o peso daquela entrega. Do passado. Daquele reencontro. O cansaço bateu com a força mansa de quem venceu uma guerra antiga. Era o cansaço de quem voltou para casa depois de tanto tempo perdida.

Com cuidado, Walter se ergueu um pouco e pegou a mão dela — a da cicatriz. Aquela pequena linha que ele tinha cuidado há tantos anos numa outra vida. Acariciou com o polegar, como se dissesse: eu lembro. E então, como se fosse o gesto mais natural do mundo, beijou a pequena marca.  

— Como você está? — ele perguntou, a voz baixa, ainda rouca, mas agora doce.

Ela ronronou, meio sorrindo, meio entregue: — Tô cansada, mas daquele jeito bom. Daquele jeito de depois.

Eles trocaram de posição. Agora era Fernanda quem repousava sobre o peito dele, as mãos ainda frágeis, os olhos pesando de sono, mas resistindo. As mãos grandes de Walter, antes firmes, agora eram puro carinho. Uma delas deslizava pela linha da coluna e subia de novo até as laterais da cintura, onde ele a segurava com ternura, como se ela pudesse escapar a qualquer momento — e ele não estivesse pronto pra deixá-la ir. Enquanto isso, a outra mão subiu até o rosto, onde ele passou a acariciar suavemente o lóbulo da orelha dela, com a ponta do dedo, do jeito que só ele fazia. Fernanda sempre dissera que aquele gesto era o símbolo dele — um carinho único que pertencia a ele.

Fernanda soltou um suspiro satisfeito, o corpo amolecendo sob aquele toque. Os dedos dele traçavam curvas invisíveis em sua pele, e cada toque parecia uma promessa silenciosa de permanência. Ela começou a murmurar algo sobre ter que voltar pra suíte dela, sobre precisar voltar — mas nem ela mesma parecia acreditar naquilo.

— Eu tenho que... — murmurou, já arrastando as palavras. — Minha chave tá... eu deixei...

Walter passou a mão devagar pelas costas dela e sussurrou contra os cabelos:

— Você não vai a lugar algum.

Ela suspirou. E então cedeu. O corpo afundou no dele, a respiração se suavizou, o sono veio feito maré. Mas, antes de mergulhar por completo, ainda com um fiapo de consciência, Fernanda ouviu Walter encostar os lábios em seu ouvido e dizer baixinho:

Minha Honey Baby.

Ela quis sorrir, mas o cansaço pesava. Ainda assim, lutou contra o sono só por um instante, só para poder dizer, com a voz baixa e rouca de entrega:

— Sua... apenas sua.

Então, finalmente, se permitiu apagar.

Walter a segurou com mais força. Como se dissesse para o mundo: Ela está aqui.
E então, com um sorriso manso nos lábios, ele fechou os olhos. Dormiu ali, com o rosto enfiado nos cabelos dela, inalando seu cheiro como quem descansa no único lugar que sempre tinha sido dele.

Notes:

Gostaram? (:
Deixe o seu feedback, please. <3

Chapter 7: VII

Notes:

Buenas Noches!
* Mais um capítulo fresquinho pra essa noite de domingo...
* Muito obrigada pelos comentários lindos e pela companhia de sempre!
* As músicas que me acompanharam na escrita deste capítulo estarão no início dele. Espero que entrem no clima junto comigo.

Boa leitura! :)

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Algumas músicas que me acompanharam na escrita desse capítulo:

Vienna - Billy Joel

Enjoy the Silence - Depeche Mode

Call It Fate, Call It Karma - The Strokes

 


 

VII

(PASSADO)

LONDRES – AGOSTO DE 1996

As margens do Tâmisa se espalhavam diante deles, um retrato vivo de Londres sob o céu opaco. O vento gelado soprava em redemoinhos suaves, fazendo os cabelos de Fernanda dançarem de um lado para o outro. Ela estava absorta na paisagem, observando o reflexo das luzes na superfície ondulante do rio, o murmúrio distante da cidade compondo uma melodia discreta ao fundo.

Walter, sentado ao lado dela, terminou a última mordida do hambúrguer e limpou os dedos rapidamente num guardanapo amassado. Seus olhos encontraram Fernanda, e ele ficou alguns segundos simplesmente a observando. O casaco que ele lhe dera parecia envolvê-la como um escudo contra o frio, mas havia algo mais ali — algo que ia além do tecido pesado e do calor que proporcionava. Instintivamente, ele pegou a câmera que estava ao seu lado e, sem avisar, capturou uma foto dela de perfil. O clique da câmera a despertou de seu transe. Ela piscou algumas vezes antes de virar o rosto para ele, semicerrando os olhos em uma falsa indignação.

— Quando revelarmos essas fotos, só terá fotos minhas na sua câmera. — Ela brincou, ajeitando o cabelo bagunçado pelo vento. — Vão pensar que você é obcecado por mim.

Walter sorriu de canto, sem desviar o olhar.

— E quem não seria obcecado por você, Fernanda?

As palavras pairaram entre eles, impregnadas de uma verdade que nenhum dos dois ousava encarar diretamente. O silêncio veio logo depois, denso e elétrico. Fernanda desviou o olhar, mas sentiu aquele calor familiar espalhar-se por seu peito, e mais que isso, sentiu o impacto do próprio nome dito daquela forma.

Walter a chamava de Nanda quase sempre. Era o apelido íntimo, carinhoso, usado com naturalidade por quem convivia com ela. Mas quando ele dizia Fernanda, havia algo ali. Um cuidado deliberado, um mistério que ficava nas entrelinhas na pronúncia. Soava como uma palavra rara, dita com reverência. Quase como se ele estivesse nomeando algo sagrado. Era uma invocação. Havia ali um tom que ninguém mais usava com ela. E, por algum motivo que ela ainda não sabia nomear, aquilo a atravessava. Fernanda vinha da boca dele como um segredo murmurado no escuro. Um feitiço particular.

Mas havia outro nome. Um que ele usava com ainda mais raridade, e que, talvez por isso, a marcasse tanto.

Honey Baby.

Era um nome que não lhe cabia no mundo. Mas cabia perfeitamente nos braços dele. Era o nome que a despia sem tocar. Que a chamava sem exigir resposta. Que a fazia sentir pertencente. E toda vez que ele dizia, mesmo que fosse só na lembrança, algo dentro dela estremecia.

Ela piscou, voltando devagar do pensamento. O rio à frente ainda refletia as luzes da cidade, e o vento gelado dançava entre eles como um velho cúmplice.

— Sabe… — ela começou, a voz mais baixa, como se estivesse pensando alto. — Acho que gosto mais de Londres agora do que quando era criança.

Walter virou levemente o rosto para ela, intrigado.

— Por quê?                                                                                                                  

Ela deu de ombros, os olhos acompanhando as luzes refletidas na água.

— Acho que, quando se é criança, a gente vê tudo de um jeito meio desfocado. Como se não fosse parte de nada, como se as coisas estivessem ali só esperando para serem deixadas para trás, mas agora… — Ela fez uma pausa, os lábios se curvando em um sorriso leve. — Agora eu sinto que a cidade me pertence um pouco mais.

Walter não disse nada de imediato. Apenas a observou, atento, como sempre fazia quando ela começava a se perder em pensamentos. Ela quebrou o silêncio pouco depois, o olhar ainda preso ao reflexo da cidade nas águas do Tâmisa.

— Eu já te contei de quando fui ao Peru com os meus pais?

Walter desviou o olhar para ela, fingindo pensar por um instante.

— Acho que não... — respondeu com aquela calma ensaiada. Claro que ela já tinha mencionado uma vez, por alto. Mas ele queria ouvir de novo. Queria ouvir dela, do jeito que ela contava — com o rosto iluminado por lembranças, os olhos faiscando de vida. — Mas parece uma história muito promissora.

Fernanda sorriu. Aquela risada curta, meio debochada, meio sincera.

— Promissora, é? — Ela cruzou os braços por cima dos joelhos, abraçando-se contra o vento. — Eu lembro de ter uns oito ou nove anos. E estava num momento em que achava tudo incrível, tudo era novidade, tudo era mágica. Mas quando chegamos em Cusco... — Ela fez uma pausa, como se voltasse no tempo só de pensar. — Parecia outro planeta.

Walter se ajeitou no banco, os olhos fixos nela. Adorava quando ela contava histórias assim, sem freios. Era nesses momentos que ele via Fernanda de verdade — sem defesas, sem o sarcasmo feito de escudo.

— Lembro do papai fingindo que era um explorador espanhol nas ruínas de Machu Picchu — continuou ela, rindo ao se lembrar. — Eu e meu irmão rolamos de rir quando ele subiu numas pedras fingindo que era um rei inca e quase caiu de bunda. Mamãe ficou enlouquecida. Mas eu... eu nunca me senti tão feliz como naquele dia.

Walter riu com ela, mas o riso dele tinha um fundo de ternura. A forma como ela falava do pai, da mãe, daquele instante. Era como ver um retrato sendo pintado com palavras.

— E teve uma lhama. — Ela virou o rosto pra ele com os olhos brilhando. — Aquela desgraçada cismou comigo. Eu não sei o que eu fiz, mas ela me perseguiu pelas ruínas. Quase me fez tropeçar na frente de um grupo inteiro de turistas japoneses. Lembro do papai ter uma crise de riso tão absurda que quase chora.

Walter riu junto, imaginando a cena com facilidade. Mas o que o prendia não era a lhama — era ela. A forma como seus olhos contavam a história. O cuidado com cada memória. O jeito como ela se mostrava inteira ali, entre uma lembrança e outra.

— Eu te contei tudo isso antes? — perguntou ela, voltando-se de novo pro rio, mais tímida.

— Talvez tenha mencionado. — Ele respondeu, a voz baixa, contemplativa. — Mas ouvir você contar é outra coisa.

Fernanda sorriu de canto. Aquilo não era charme, não era flerte. Era verdade. E, por algum motivo, aquilo a fez sentir-se estranhamente exposta.

— Você gosta de ouvir? — perguntou ela, como quem testa os limites.

Walter assentiu, sério.

— Gosto de tudo que vem de você, Fernanda.

Ela ficou em silêncio. Mas não por desconforto. Era o tipo de silêncio que vinha quando alguém era atravessado por uma verdade. Um silêncio quente, íntimo, inevitável.

— Se pudesse escolher qualquer outro lugar no mundo pra estar agora, qual seria? — Ele perguntou, casual, mas ainda carregando aquele tom de curiosidade genuína.

Fernanda ficou em silêncio por um instante, como se precisasse realmente considerar a pergunta. Então, sorriu de lado.

— A Patagônia.

A resposta inesperada fez Walter erguer as sobrancelhas.

— A Patagônia? — Repetiu, achando graça.

— É. Especificamente no Chile.

Ele inclinou a cabeça, analisando-a como se tentasse decifrar a escolha.

— E por quê?

Fernanda desviou o olhar novamente para o rio, brincando com um pedaço do guardanapo entre os dedos.

— Porque dizem que é um dos lugares mais silenciosos do mundo — respondeu, a voz carregando um misto de reflexão e brincadeira. — E eu gosto da ideia de um silêncio absoluto. Como se eu pudesse simplesmente me fundir à paisagem.

Walter continuou a observá-la, fascinado pelo jeito que sua mente trabalhava.

— E as montanhas cobertas de neve... — Fernanda continuou, com um brilho inesperado nos olhos. — Você já viu imagens da Cordilheira naquela região? Parece que tudo ali está em suspensão. E tem a aurora austral, que é menos famosa que a boreal, mas talvez seja até mais bonita, justamente por não ser tão lembrada. Eu gostaria de ver isso. É um lugar onde você pode se perder e se encontrar ao mesmo tempo.

Ela disse isso como quem fazia um brinde interno à possibilidade, como se pudesse se ver ali, naquele extremo do mundo, fundida à paisagem gelada.

Walter sorriu, deixando o silêncio se acomodar entre eles. Era fácil deixar Fernanda falar. Ela contava as coisas com o tipo de liberdade que dava cor aos detalhes. E ele adorava observá-la nessas pequenas e raras rendições — quando ela se deixava ver. A profundidade dela nunca deixava de surpreendê-lo. E então ela sentiu, o peso do olhar dele sobre si, virou-se e encontrou seus olhos. Aquele olhar que parecia sempre querer decifrá-la.

Walter segurou o contato por alguns segundos antes de soltar, num tom brincalhão:

— Para alguém que não gosta tanto do frio, chega a ser um paradoxo querer ir pra lá.

Ela riu, balançando a cabeça.

— É… — murmurou, um sorriso brincando nos lábios. — Talvez seja.

Depois de um instante, Walter quebrou o silêncio com um tom leve, mas observador:

— Mas parece que você fez as pazes com o frio. Aparentemente, ele já não te incomoda mais tanto assim.

Fernanda sorriu, estreitando os olhos para ele.

— Não consigo imaginar quem tem a parcela de culpa nisso. — Ela ajeitou o casaco ao redor do corpo. — Eu tenho um anjo da guarda que sempre se assegura que eu fique confortável.

A referência não passou despercebida. Ele lembrou-se do trem, da forma instintiva como colocou o casaco sobre os ombros dela, do modo como ela não hesitou em aceitá-lo. Pequenos gestos, grandes significados.

Mas então, algo mudou.

Ela desviou o olhar para o rio, e sua expressão se transformou sutilmente. Os olhos, antes acesos pela empolgação da fantasia, pareceram perder o foco. O sorriso cedeu espaço para uma melancolia discreta, mas inconfundível. Como se a realidade tivesse voltado a se infiltrar pelas frestas daquela tarde perfeita. Ela pensou, sem dizer em voz alta: Está acabando. A viagem, Londres, aquele tempo roubado com Walter. Em breve ela voltaria ao Brasil. Para o caos. Para o vazio que tentava esconder. Para uma vida em que tudo era barulho — menos ela.

Walter percebeu a mudança. Ele sempre percebia. E, como sempre, foi direto à essência.

— Nanda... — Ele chamou. A voz dele não era curiosa. Era cuidadosa. Quase reverente. — O que há de errado?

Ela demorou. Não foi imediata como costumava ser. Era como se tentasse voltar de onde quer que sua mente tivesse ido.

— Nada — murmurou.

Ele não acreditou. Mas não a pressionou. Apenas inclinou levemente o corpo na direção dela, sem quebrar a leveza do momento, como se se aproximasse não com o corpo, mas com a escuta.

— Às vezes, você some. — disse ele, baixo. — E eu fico aqui, te olhando, como agora… e é como se você tivesse ido embora e não tivesse me avisado.

Fernanda arregalou os olhos levemente, surpresa com a precisão dele. Aquilo a incomodava — não por ser uma mentira, mas justamente porque era verdade demais.

— É incômodo? — sussurrou, e ali havia um cansaço. Não físico, mas de alguém que carrega o próprio silêncio como uma armadura.

Walter balançou a cabeça com suavidade, quase com pesar.

— Não. Só, me dá vontade de ir atrás. De descobrir pra onde você foi.

Ela não respondeu. Ficou ali, sentada ao lado dele, o casaco ainda apertado contra o corpo, mas agora sentindo o frio de outra forma — não o da cidade, mas o do que viria depois. Do retorno inevitável. Das ausências que esperavam por ela em casa. E do medo de uma vez longe, nunca mais conseguir voltar para aquele lugar onde Walter a via tanto. Ele a observava em silêncio. Como sempre. Mas agora ela sabia: era o tipo de silêncio que dizia mais do que qualquer palavra.

Então, num ímpeto, ela decidiu falar.

— Não quero voltar pra casa.

Aquelas palavras, ditas com a voz baixa, quase infantil, o pegaram desprevenido. “Casa.” Havia algo estranho naquele uso. Ele a conhecia o suficiente pra saber que ali havia mais do que um cansaço de viagem. Algo dentro dele se ativou — não era curiosidade, era preocupação. E uma vontade genuína de entender o que se passava por trás daquela expressão séria e apreensiva.

— Por quê?

Ele não a olhou de imediato. Apenas permitiu que a pergunta flutuasse entre os dois. Quando questionou, foi num tom sem cobrança, sem invasão. Ela soltou um riso sem graça, seco, quase um soluço contido, e passou a mão no próprio cabelo como quem tenta reorganizar a bagunça de dentro com um gesto mecânico.

— Porque, pela primeira vez em muito tempo, parece que tudo está em perfeita harmonia. — Ela olhou para frente, para as luzes tremeluzindo no rio. — E é raro isso acontecer na minha vida. Raro. Ou é o trabalho, ou é o coração. Ou é a cabeça, ou é o corpo. Mas nunca tudo junto. E agora, agora está em harmonia.

Fez uma pausa. Quando voltou a falar, o tom tinha mudado. Era mais baixo, mais íntimo, como se estivesse desenterrando algo antigo e delicado.

— Terminei um relacionamento há quase um ano. Quer dizer, ele já tinha acabado antes disso, só faltava o aviso formal. E mesmo depois de terminado, ele ainda pesa. Eu ainda sinto. Não por amor. — Ela desviou os olhos e depois os fixou num ponto qualquer. — Mas por tudo que fracassou em mim.

Ele sentiu aquilo como um soco suave — silencioso, mas certeiro. Quis estender a mão, tocar nela, mas esperou. Ela não havia terminado.

— Eu me sinto como uma malabarista fracassada. Tentando manter tudo no ar. Mas tô cansada. Tô cansada de me equilibrar nas pontas dos pés o tempo inteiro.

Walter respirou fundo. O cansaço presente na voz dela o atravessava. Escolheu com cuidado o que diria, como se não quisesse quebrar o tecido delicado daquele instante.

— Mas você não precisa tentar equilibrar tudo o tempo todo. — A voz dele saiu serena, mas firme. — Isso não é fracasso, Nanda. Isso é humano. A vida não foi feita pra ser sustentada nos ombros de uma só pessoa, muito menos nos seus.

Ela riu, um som triste e baixo, e olhou para ele.

— Eu sei. — Disse, e os olhos marejados brilhavam sob a luz tênue. — Mas eu queria ser perfeita. Não no sentido bobo da palavra. — Ela corrigiu, como se adivinhasse o que ele pensaria. — Não queria agradar ninguém. Eu só queria… dar conta. De tudo. Ser forte, ser boa, ser centrada, ser brilhante no trabalho, ser leve com quem amo. Mas eu falho. Todo dia eu falho.

Walter balançou a cabeça lentamente, aproximando-se um pouco mais, como se quisesse atravessar aquela espiral de culpa com a presença dele. E quando falou, não foi com pena. Foi com respeito. Com a reverência de quem enxerga muito além do que é visível.

— Você fala como se fosse uma equilibrista à beira do colapso, mas esquece do quão grandiosa você é. — A voz dele era baixa, mas cheia de uma convicção tranquila. — Com vinte anos, você ganhou Cannes. Foi a primeira brasileira. A primeira. Isso não é sorte. Isso é fôlego, é talento. É presença. Em Terra Estrangeira, eu te vi delinear falas, criar caminhos, dar ideias que transformaram cenas inteiras. Você tem um olhar raro, Nanda. Inteligente, sagaz, afiado. E mesmo assim… — ele sorriu de leve — você é aquela que faz piada no meio do caos, que cuida dos outros no set, que trata todo mundo com uma leveza que ninguém mais consegue fingir. Porque a sua leveza é real.

Ela desviou os olhos, como se aquilo pesasse mais do que qualquer crítica.

— E ainda é a filha que liga, que manda carta, que não se esquece de onde veio. — Ele abaixou um pouco mais o tom. — Você é tudo isso, e mesmo assim acha que falha porque se cansa? Vai com calma, criança louca.

Fez uma breve pausa, olhando para ela com ternura.

Ela foi pega de surpresa. Reconheceu aquelas palavras, não só pelo que diziam, mas pelo lugar de onde vinham.Vienna. Aquela música que ambos gostavam e carregavam como segredo. Lembrou-se do walkman durante as filmagens de Terra Estrangeira, de quando os dois dividiram os fones no intervalo de uma cena em Lisboa. Ela não conseguiu evitar o sorriso. Pequeno, mas verdadeiro. Era o tipo de resposta que só se dá quando alguém te vê por dentro. Quando alguém te conhece mais do que deveria.

— Talvez o que te torna mais fascinante seja justamente isso: você não esconde quando tá exausta. E mesmo assim, ainda tenta. Ainda se joga. Ainda se dá inteira. Isso, isso é coragem, Fernanda. E é por isso que ninguém esquece de você.

Fernanda engoliu seco, as palavras dele eram um soco. Respirou fundo ainda tentando absorver cada sentença que tinha sido proferida por ele anteriormente.

— Quando você me pergunta o porquê de eu não querer voltar pro Brasil... — Ela começou, a voz macia, mas firme. — Eu sinto que é como se a vida tivesse feito um acordo de paz comigo. Um armistício silencioso. Mas eu sei que não vai durar. Eu sei. Eu sinto esse momento escorrendo pelos dedos, Walter. E dói, porque estar aqui com você... — ela o olhou nos olhos, sem desviar — é estar em paz de espírito. E me assusta ter que deixar esse momento para ter que voltar para a bagunça.

Walter pegou a mão dela, os dedos grandes e quentes envolvendo os dela com um cuidado que fazia tudo doer menos.

— E é raro isso. É raro estar em paz. É raro me sentir inteira. — Ela deixou as palavras saírem como se fossem confissões murmuradas para a noite. — Não é sobre Londres. Nem sobre viagem. É sobre você.

Walter respirou fundo. O coração dele doía num lugar que ele nem sabia que existia. Apenas apertou de leve os dedos dela, como se quisesse ancorá-la ali — naquele instante, naquele lugar.

— Eu sempre me entendi só, sabe? — Ela continuou, sem encará-lo agora. — Sempre soube estar comigo. Eu sempre gostei da minha companhia. Gosto da solitude que escolho, pois me encaixo no silêncio. É um tipo de liberdade.

Ela fez uma pausa breve, como quem pensa se deve mesmo seguir adiante.

— Mas com você… — a voz saiu baixa, como uma revelação — é diferente. Porque você não me sufoca. Você me vê. E me deixa ser. Do meu jeito. Sem cobranças, sem explicações. E isso… isso é raro demais. — Ela soltou um suspiro curto. — Com você, até o silêncio tem sentido. Eu posso não dizer nada e ainda assim me sentir ouvida. Posso estar aqui, quieta, e saber que não sou um incômodo. Que não preciso provar nada. Só existir.

Walter a encarava com atenção. A expressão serena, mas os olhos, os olhos nunca mentem.

— Não tem nada de errado em querer ficar um pouco onde se sente inteira.

Ela não respondeu. Só o olhou. E no silêncio que se seguiu, ele sussurrou uma passagem, como se fosse um pensamento que escapasse pelos lábios:

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza...

Fernanda sorriu entre as lágrimas que ameaçavam rolar pelo rosto.

Grande Sertão: Veredas. — Ela deu um risinho choroso. — É claro que você tinha que citar Guimarães Rosa.

Walter apenas sorriu, os olhos calmos, e murmurou:

— Ninguém tem tudo no lugar certo ao mesmo tempo, Nanda. Talvez o segredo seja parar de tentar. Viver já é uma grande coragem. E isso, você tem de sobra.

Ela encostou a cabeça no ombro dele, e por um instante, nenhum dos dois disse mais nada.

E então ele abaixou o rosto e depositou um beijo no topo da cabeça dela. Quente. Calmo. Aquele tipo de beijo que não pede nada em troca — só permanece. E ela sentiu. Sentiu como se o mundo, por um instante raríssimo, estivesse inteiro e certo. Walter manteve a boca ali, perto do cabelo dela, inalando seu cheiro como quem encontra abrigo. E só depois de longos segundos, com um cuidado quase estudado, ele questionou retoricamente, como se medisse suas palavras:

— Espero que esteja gostando da sua estadia em Londres.

Fernanda ergueu o rosto para encará-lo, e um sorriso doce floresceu em seus lábios.

— Meu aniversário só é daqui a um mês... — Ela fez uma pausa, os olhos brilhando sob a luz difusa da cidade. — Mas eu sinto que esse é, de longe, o melhor presente que já recebi na vida. Então, sim. Eu não podia estar mais do que contente com a nossa estadia. Queria poder congelar isso, ficar presa nesse instante.

Ela sorriu de leve, antes de completar:

— A última vez que senti algo assim... foi aos nove anos, em Machu Picchu. Uma paz difícil de explicar, como se eu estivesse exatamente onde deveria estar.

Walter a encarou por um longo momento, como se tentasse gravar cada detalhe daquela confissão. Fernanda então respirou fundo, inclinando-se levemente para frente, como se estivesse prestes a revelar um segredo.

— Não gosto de ser prolixa, e você já deve estar cansado de me ouvir agradecer. Mas obrigada, Walter. De coração. — Sua voz saiu em um tom mais baixo, quase um sussurro, carregado de sinceridade. — Nunca me senti tão feliz como me sinto agora.

Walter ficou em silêncio por um instante, como se escolhesse com cuidado as palavras.

— Você fala dessa harmonia como se tivesse tropeçado nela por acaso, mas não percebe que foi você quem a criou. Não foi Londres. Nem sorte. É o jeito como você vive, e isso muda tudo ao redor.

Ele ergueu os olhos para ela, e havia um calor ali que doía de tão delicado.

— Você me agradece, mas sou eu quem deveria. Estar com você me lembra que ainda existem coisas que valem a pena. — Ele fez uma pausa, os olhos baixos, como se falasse mais consigo do que com ela. — Não tô falando só da leveza, da alegria. É a forma como você existe no mundo. O jeito como olha, como se entrega. Isso me desperta.

Fernanda sentiu o peito apertar com aquela confissão. Era simples, mas vinha de um lugar tão verdadeiro que parecia romper algo dentro dela.

— No show, quando você estava dançando, cantando, rindo daquele jeito… — ele desviou o olhar, como se a lembrança fosse forte demais. — Eu fiquei te observando e pensei: ela me faz querer estar mais presente. Como se o tempo fizesse mais sentido com você do lado. Então, se um dia você achar que tá falhando, lembra que foi você quem me fez querer estar mais aqui. Mais inteiro. Mais devagar, talvez. Com mais vontade.

Um silêncio breve os envolveu. Mas era o tipo de silêncio que pulsa. As palavras dele pairaram no ar como uma brisa densa. Fernanda sentiu algo se deslocar dentro de si, uma chave girando devagar, abrindo uma porta que ela achava trancada há muito tempo.

Ela não disse nada. Só o olhou.

Aqueles segundos de silêncio entre eles se esticaram. Mas não havia desconforto. Havia um pulsar. Um chamado mudo, antigo. Como se o mundo todo se reduzisse àquele instante, àquele espaço entre as bocas, entre os olhares, entre o que foi dito e o que ainda pairava não dito.

Walter se inclinou devagar.

Ela não recuou.

O beijo veio como um pacto silencioso. Lento no começo, cuidadoso, como se cada movimento pedisse permissão. Mas logo se tornou mais denso. As bocas se buscavam com fome mansa, como quem já sabia o caminho. Era diferente do primeiro, não menos elétrico, porém mais consciente. Eles se saboreavam. Sentiam. Exploravam como se aquele beijo tivesse sido aguardado por tempo demais.

Walter puxou de leve a nuca dela, aprofundando o beijo. A mão grande, firme, mas ao mesmo tempo cheia de carinho. Ela gemeu baixinho contra os lábios dele, sentindo o corpo inteiro responder. A língua dele roçou na dela com intimidade, com desejo, com o tipo de cuidado que só existe entre dois corpos que já se conhecem, e ainda assim se descobrem. Quando se afastaram, ofegantes, os olhos ainda presos um no outro, nenhum dos dois sorriu. A seriedade do momento permanecia, porque ali não havia brincadeira. Era como se algo tivesse se firmado, finalmente, entre eles.

Como se o que antes era latente agora tivesse nome. E gosto. E corpo. E cheiro.

Fernanda encostou a testa na dele, ainda tentando recuperar o fôlego. Walter fechou os olhos por um segundo, os dedos ainda repousando na base da nuca dela. Ele afastou-se devagar, e então encontrou o olhar dela. Um vestígio de sorriso apareceu no canto da boca dele. Discreto, quase indecifrável.

— Nós ainda temos um compromisso, sabia? — disse, a voz ainda rouca, mas agora com um tom que misturava charme e algo mais terreno. — Jantar. Fiz uma reserva.

Ela ergueu uma sobrancelha, o olhar curioso, provocativo.

— Walter Salles me convidando pra jantar em Londres? Isso soa perigosamente como um encontro.

Ele deu de ombros, fingindo inocência, mas havia algo nos olhos dele — aquele brilho âmbar escurecido que despertava um calor latente nela.

— É um encontro. E você não pode recusar. — A fala saiu num tom quase sério, mas carregado de ironia contida. — Não depois de tudo que acabou de acontecer. Seria indecente fugir agora.

Fernanda mordeu o lábio inferior, lutando para conter o sorriso que teimava em nascer. Havia uma lascívia brincando na ponta da língua dela, mas ela manteve o tom teatralmente cético.

— Isso quer dizer que você está me sequestrando pra jantar? — perguntou, com o cenho levemente franzido e um brilho zombeteiro nos olhos. — Porque eu deveria chamar a polícia, sabe.

Walter soltou um riso baixo, contido, e inclinou-se ligeiramente para mais perto. Os olhos ainda nela. Sempre nela.

— Chame — murmurou. — Mas saiba que é um sequestro com entrada, prato principal, vinho bom e talvez uma sobremesa inesquecível.

Ela balançou a cabeça, rindo com aquele som rouco e espontâneo que fazia Walter se desarmar por completo.

— Se for assim, talvez eu colabore com o criminoso. – Os olhos dela estavam vívidos agora, aquecidos por algo que ia além da brincadeira. Ela sentia, sabia que aquele jantar não era apenas um jantar. Era um divisor de águas. E o corpo dela respondeu a essa certeza antes da mente processar.

Walter sustentou o olhar dela por um tempo longo o bastante para que o ar entre eles ficasse denso de novo. E então, com a voz baixa, como quem faz um convite que é também uma promessa, ele disse:

— É a nossa última noite em Londres. Não vamos desperdiçar.

Ela suspirou, sentindo o peso leve e delicioso daquilo.

— E onde exatamente você pretende me levar?

— Um lugar bonito. Íntimo. Iluminado por velas. — Ele sorriu de canto. — Do tipo que eu sei que vai te arrancar aquele sorriso contido que você tenta esconder.

Fernanda inclinou a cabeça, encantada com a previsibilidade bem-informada dele.

— Você me conhece demais. — Ela disse, e por um instante, o tom deixou o jogo de lado. Tornou-se macio. Quente. Quase reverente. — Isso é perigoso.

Walter arqueou levemente a sobrancelha, o canto da boca se curvando num meio sorriso.

— Eu gosto do perigo.

— Aposto que gosta. — Ela riu, mas o riso veio baixo, preso entre os lábios. Como se a leveza estivesse prestes a ceder espaço a outra coisa. — Mas eu vou com uma condição.

— Qual?

Fernanda demorou meio segundo para responder. Os olhos fixos nos dele, as palavras saindo num sussurro, entre a lascívia e a súplica. Como se não pedisse apenas por um jantar ou por uma lembrança, mas por permanência.

— Que você continue me raptando, mesmo depois que Londres acabar.

Walter não disse nada. O silêncio entre eles ganhou um peso diferente. Quase ritualístico. Então ele estendeu a mão e pegou a dela com cuidado — um gesto simples, mas carregado de intenção. Passou o polegar lentamente sobre os nós dos dedos dela, como quem gravava algo ali. Um pacto. Um reconhecimento mudo.

E naquele toque, Fernanda entendeu: ele a ouvira. Não só as palavras, mas tudo que estava escondido por trás delas. Não era apenas sobre o agora. Era sobre o depois. Sobre não ser esquecida. Sobre continuar sendo vista quando o frio cessasse, quando os dias voltassem a doer. A mão dele apertou a dela com firmeza, e ela soube.

Ela soube.

 


 

THE ROYAL HORSEGUARDS – 18H45

No quarto iluminado por uma luz âmbar discreta, Walter fechava o último botão da camisa preta diante do espelho, o reflexo devolvendo a imagem de alguém que tentava disfarçar o que sentia, e não conseguia. Estava elegante, sim. Impecável. Terno preto bem cortado, camisa da mesma cor, o colarinho rígido delineando o pescoço magro com sobriedade. Nada em excesso. Tudo nele era sóbrio, mas havia algo, algo no olhar, na maneira como ajeitava as mangas com os dedos longos, que entregava o que lhe fervia sob a pele.

Ansiedade.

Mas não a do tipo que paralisa, era outra. Uma ansiedade boa, antiga, como se estivesse prestes a encontrar algo que esperava há tempo demais. Ele não era de fazer esse tipo de coisa. Não mais. Paquerar, marcar jantar, escolher terno com a intenção clara de impressionar. Mas com Fernanda... não era jogo. Era urgência comedida. Era desejo vestido de ritual.

Passou os dedos pelos cabelos, lisos e um pouco mais longos do que estava acostumado — não os puxou para trás. Deixou-os como estavam, soltos, desalinhados de propósito. Havia algo naquela leve desordem que fazia sentido agora. Como se o caos delicado do momento pedisse por isso.

Olhou o relógio. 18h45. Ainda faltava 15 minutos para se encontrarem no saguão do hotel. 15 minutos que pareciam uma eternidade.

Respirou fundo. Havia um calor instalado sob a clavícula que ele conhecia bem, o tipo de inquietação que antecede o irreversível. Ele não sabia ao certo o que o esperava naquele jantar, mas algo dentro dele já tinha entendido: aquela noite não era apenas mais uma noite.

Era um marco. E ele estava pronto para atravessá-la com ela.

________________________________________

 

Não muito distante dali, em um outro quarto, Fernanda encarava o próprio reflexo como quem estudava um personagem que ainda não tinha aprendido a interpretar.

O vestido era preto. Não preto qualquer, mas o tipo de preto que parecia absorver a luz ao redor. De alças finas, delicadas como fios de seda, ele moldava o corpo Fernanda como se tivesse nascido com ela. O tecido justo descia até os pés, mas se abria em uma fenda ousada na perna direita, revelando pele na medida exata entre o convite e o mistério. Um detalhe, apenas — mas, em Fernanda, nenhum detalhe era só detalhe. As costas nuas, expostas de forma limpa e precisa, davam ao vestido um ar silenciosamente provocador. Não havia brilhos, nem exageros. Mas o corte, o corte era uma declaração.

A maquiagem seguia o mesmo caminho: discreta, mas certeira. Um esfumado suave nos olhos castanhos os deixava ainda mais marcantes, quase hipnóticos. A boca, delineada com um tom neutro, mas preciso, tinha o volume natural acentuado por um brilho leve, nada que chamasse atenção, mas o suficiente para que ninguém deixasse de notar.

Os cabelos estavam soltos, com volume e textura, caindo em ondas descompromissadas que emolduravam o rosto como uma moldura rebelde. Havia algo nela de imagem antiga, mas irremediavelmente moderna. Um retrato que se recusava a amarelar. Não havia joias além de brincos pequenos e discretos. A elegância vinha justamente dessa contenção, o tipo de beleza que não pedia licença, apenas entrava.

Ela agradeceu aos céus pela intuição virginiana por ter trazido um vestido assim para uma viagem de trabalho. E ali estava ela: impecável, ansiosa, e secretamente orgulhosa de ter previsto, com alguma parte esquecida de si, que aquela noite exigiria algo especial.

As mãos tremiam.

Fernanda já tinha ido a muitos encontros. Alguns cheios de promessas, outros de tédio disfarçado. Mas nada se parecia com aquilo. Nada a deixava tão alerta, tão viva e, ao mesmo tempo, tão fora de controle. Ela respirou fundo. A excitação se misturava a um nervosismo que se espalhava pelo corpo como vinho forte: doce, quente, perigoso. Era Walter.

E era diferente.

Ela se aproximou do espelho. Os cabelos estavam soltos, longos, ondulados, como sempre teimavam em ser. Os olhos, grandes, estavam marcados com uma sombra discreta — um toque sóbrio, como se a maquiagem fosse cúmplice e não protagonista. Havia um brilho ali que nem ela mesma conseguia esconder. Ainda assim, olhou por alguns segundos como quem duvidava do que via. Não se sentia bonita. Não exatamente. Sentia-se… deslocada. Como se estivesse à margem de algo que ainda não sabia nomear.

Olhou o relógio da cabeceira. 18h45.

Faltavam quinze minutos.

Um risinho escapou, involuntário. Havia algo quase adolescente naquela sensação. Um encantamento tenso, como se estivesse prestes a sair pela primeira vez com alguém que não era só um interesse, era uma ameaça. Mas, por trás da empolgação, havia algo que não conseguia explicar. Uma angústia pequena, sutil, lá no fundo do estômago. Um incômodo que ela não soube nomear, como se fosse um presságio. Como se o mundo estivesse prestes a mudar e ela soubesse disso. Uma parte dela queria parar. Respirar. Cancelar tudo. Mas a outra…

A outra sussurrou: não estraga isso. Fernanda balançou a cabeça, afastando o pensamento.

— Hoje não. — disse baixinho, quase como um aviso ao universo.

 

Nos últimos minutos antes das sete, o hotel parecia suspenso num silêncio próprio. Cada andar, cada corredor, carregava o peso de algo que se preparava para acontecer, ainda que ninguém soubesse o quê. Walter calçou os sapatos com calma ritualística. Passou a mão pelos cabelos uma última vez, como se quisesse domá-los e então desistiu, aceitando o desalinho como parte de si. Pegou o relógio, colocou-o no pulso com precisão. Respirou fundo. E saiu.

Fernanda se levantou do sofá baixo onde havia se sentado para respirar. Puxou o zíper lateral do vestido com delicadeza, como se ajustasse não apenas o tecido, mas o próprio fôlego. Calçou os sapatos devagar. Pegou a bolsa pequena. Antes de sair, lançou um último olhar ao espelho. Não disse nada, mas seus olhos, refletidos, pareceram responder por ela. E então foi.
Como quem aceita dançar no escuro sem saber a música.

Notes:

Deixe seu feedback! <3
Beijão!

Chapter 8: VIII

Notes:

Boa noite e Feliz Páscoa, pessoal!

* Obrigada por todos os comentários, engajamentos e por acompanharem Honey Baby junto comigo. Vocês fazem toda a diferença nessa jornada!
*As músicas que embalam este capítulo estarão disponíveis no início do capítulo para quem quiser mergulhar ainda mais na atmosfera da história.

Boa leitura e até o próximo suspiro. :)

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Músicas que me acompanharam durante este capítulo:

Vapor Barato - Gal Costa ft. Zeca Baleiro

Cupido - Maria Rita

Chan Chan - Buena Vista Social Club

Wicked Game - Chris Isaak

Fireside - Arctic Monkeys

Like a Tattoo - Sade

(todas disponíveis na playlist da fanfic que está no Spotify)


 

VIII

(PASSADO)

 

LONDRES – 1996

SAGUÃO DO HOTEL THE ROYAL HORSEGUARDS – 19:00 p.m

Walter estava de pé no saguão, encostado discretamente em uma das colunas de mármore, as mãos cruzadas às costas. Do lado de fora, o cair da noite desenhava sombras nas vidraças. Por dentro, o ambiente estava aquecido por uma iluminação amarelada que dava aos detalhes dourados uma textura quase imperiosa. Tudo parecia imóvel, exceto o tempo. Ele olhava o relógio constantemente. Mas o tempo, naquele lugar, não obedecia à lógica. Esticava-se. Desdobrava-se. Tornava-se algo espesso, viscoso. Walter não era dado a essas esperas. Mas por ela, ele podia esperar.

Ele ergueu os olhos em direção ao imponente relógio inglês pendurado sobre a recepção. O mostrador trabalhado em ferro forjado marcava com precisão: 18h58. Dois minutos. Era difícil nomear o que sentia. Ansiedade, sim. Mas não daquela desorganizada, que tira o chão. Era uma ansiedade precisa, concentrada, parecida com o que sentia antes de uma estreia importante. Só que mais íntima. Como se, dessa vez, o espetáculo fosse ele. Ou ela. Ou os dois.

Walter ajeitou a lapela do terno. Estava composto, elegante, contido. Como sempre. Mas se alguém o observasse com atenção suficiente, veria o leve tensionar do maxilar. A maneira como passava o polegar sobre os próprios dedos, uma e outra vez. Ou o jeito como os olhos varriam o saguão a cada trinta segundos, disfarçando a busca.

 

Fernanda fechou a porta do quarto com cuidado, como se não quisesse que o barulho denunciasse o que se passava dentro dela. Trazia o casaco dele dobrado sobre um dos braços o mesmo que ele havia lhe emprestado e que tinha se tornado sua armadura contra o frio traiçoeiro de Londres, a pequena bolsa pendia da mão esquerda. Com a outra, discretamente, ela ajeitou a lateral do vestido, sentindo o tecido deslizar sobre a pele como uma promessa. O salto dos sapatos ecoava sutil no carpete espesso do corredor, e o frio leve que percorreu sua espinha não era por causa da noite lá fora.

Estava nervosa. E ao perceber isso, sorriu sozinha. Um sorriso de escárnio íntimo.

— Você tem trinta e um anos, Fernanda. — murmurou para si mesma, quase rindo. — Isso não é um baile do colégio.

Mas o frio na barriga permaneceu. Pulsava. Tinha forma e som. Um tipo de excitação que vinha de um lugar antigo, não era sobre o jantar em si, era sobre estar indo ao encontro dele. Walter. E isso, mesmo que ela tentasse racionalizar, ainda era assustador. Ela apertou o botão do elevador. Esperar pelas portas metálicas pareceram os segundos mais longos daquele dia. Escadas? Nem pensar. O vestido justo, o salto, a respiração trôpega, tudo pedia pausa. Tudo pedia tempo para digerir o que estava prestes a acontecer.

As portas se abriram com um leve bip. E ela entrou, ajustando uma alça do vestido com um gesto nervoso, quase imperceptível. Respirou fundo. Uma vez. Duas. Então o elevador começou a descer.

Era real. Ela estava indo ao encontro dele.

 

No saguão, Walter sentiu o ar mudar antes mesmo do som metálico anunciar a chegada do elevador. Foi sutil, quase imperceptível. Um deslocamento no espaço, como quando o silêncio se interrompe antes de um trovão. E então veio o perfume. Doce. Amadeirado. Quente.  Ele sentiu antes de vê-la. Não era só o aroma, era o que aquele cheiro provocava. Um reconhecimento visceral, algo que se instalava no peito com a precisão de uma lâmina afiada. Ela estava ali. Ele soube. Virou-se devagar, como quem respeita o instante. As portas do elevador se abriram.

E então o tempo hesitou.

Fernanda.

Não havia outra forma de dizer.

Vestida de preto, a peça desenhava nela algo entre o sagrado e o profano. Havia curvas e luz. Mistério e entrega. A fenda na perna deixava a pele branca exposta como um convite involuntário, e as costas nuas sugeriam mais do que mostravam. Não era vulgar. Nunca seria. Mas havia nela algo que queimava. Uma beleza contida, concentrada, como pólvora comprimida esperando um estalo. Os cabelos soltos caíam em ondas largas sobre os ombros, e o brilho dos grandes olhos castanhos se misturava na delicada maquiagem.

Walter a viu. Realmente viu. E pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se verdadeiramente atordoado. Como se algo precioso e perigoso caminhasse na direção dele.

E, porra, como ela era linda! Mas não era só isso. Ela era uma visão. Um chamado. Um prenúncio. E então, num gesto mínimo, o sorriso dele surgiu — pequeno, lateral — ao vê-la segurando aquele casaco que era dele. Aquilo o atravessou. Intimidade. Pertencimento. Ela podia não saber, mas aquele gesto carregava mais do que afeto: era quase uma confissão silenciosa. E ele, sem pedir, havia sido atendido.

Fernanda o viu também. E sentiu.

O olhar dele a atravessava. Não era um olhar de aprovação ou de desejo comum — era um olhar que despia. Que dizia: eu te vejo. E ela sentiu a pele formigar. O rosto se aquecer. Mas, em vez de recuar, permitiu. Um fio de prazer percorreu a espinha. E isso, para ela, era o mais perigoso. Porque ela gostava. Deus, como gostava.

Ele estava... impecável.

Mais do que isso, ele parecia fora do tempo. O terno preto, a camisa branca, a postura elegante, contida, mas com algo de sombra e fúria sob controle. Os cabelos, lisos, um pouco mais longos do que o habitual, caíam soltos em desalinho intencional, era o tipo de desordem que não nasce do descuido, mas da inteligência de saber que o caos, às vezes, é mais sedutor que o controle.

Fernanda o viu, e por um momento, não soube como continuar respirando.

A beleza dele era estonteante, mas não era disso que se tratava. Era do conjunto. O porte, o olhar, o modo como ele parecia sempre saber mais do que dizia. Havia algo da aristocracia inglesa ou americana naquela sobriedade vestida com precisão. Algo de Hampton, de Nova York, de salas com janelas enormes e whisky envelhecido. Mas também havia qualquer coisa de divindade pagã. De presença mítica. Walter parecia um deus grego saído de uma escultura antiga. Uma divindade revestida de Armani.

E então, o perfume. O cheiro dele.

Um cheiro limpo. Fresco. Preciso. Não invadia, mas dominava. Como ele.

Era um aroma de pele cuidada, de sabonete bom e colônia cara, o tipo que não se encontra em prateleira comum. Quando o ar ao redor dela se preencheu daquele cheiro, Fernanda sentiu as pernas fraquejarem. Aquilo era Walter. Puro. Concreto. Atemporal.

— Boa noite. — disse ela, num tom suave, tentando conter o sorriso que ameaçava nascer. A voz saiu baixa, um pouco rouca.

— Boa noite. — ele respondeu, com a mesma densidade. O timbre era uma carícia.

Fernanda desviou o olhar por um instante e mirou o grande relógio do saguão. Exatamente sete horas.

— Desde que comecei a andar com você, tenho aprendido o valor da pontualidade. — disse, com a voz levemente provocativa. — Veja só, sete em ponto.

Walter ergueu uma sobrancelha, o canto da boca se curvando.

— Fico satisfeito em saber que tem sido obediente às regras da cordialidade. — A entonação dele era a de sempre. Precisa. Elegante. Mas a escolha da palavra — obediente — pairou no ar com outro sentido.

Ela sentiu o corpo inteiro responder. Um calor surdo que se espalhou da nuca até os joelhos. Como se aquele duplo sentido não fosse acidental. E não era. Antes que o silêncio a engolisse, foi pega pela voz dele de novo. Desta vez, mais baixa. Mais quente.

— Você está linda.  — ele disse, num tom aveludado, quase grave.

Foi quando escapou. Sem filtro. Sem disfarce.

— E você... — ela começou, os olhos percorrendo o rosto dele como quem lê um poema que conhece de cor. — Parece um deus grego. Uma pintura viva de Edward Hopper.

Walter franziu ligeiramente a testa, curioso, um canto da boca ameaçando sorrir.

— É uma combinação inusitada.

Fernanda deu de ombros, divertida, ainda sem desgrudar os olhos dele.

— Da qual só funciona em você. Um homem sozinho no meio da noite, elegante demais para aquele vazio ao redor. — ela completou. — Tem algo de melancolia e beleza contida em você hoje. Como se estivesse esperando... por algo inevitável.

Walter sustentou o olhar por um instante longo demais para ser apenas educado. E então, apenas disse:

— Talvez eu esteja.

— Vai me dizer para onde estamos indo ou vai manter o sequestro? — ela perguntou, a voz baixa, entre o riso e a promessa.

— Não estrague a surpresa. — disse, com aquela entonação macia que ele usava quando queria vencer uma discussão sem levantar a voz. — Em menos de dez minutos, você vai entender por que não podia saber antes.

Fernanda mordeu levemente o canto da boca, fingindo irritação, mas havia um brilho nos olhos. Aquilo era exatamente o tipo de jogo que ela sabia jogar e adorava perder.

Na porta do hotel, o carro já os aguardava. Um black cab elegante, de interior escuro e discreto. O motorista, discreto, fez apenas um gesto com a cabeça ao ver Walter se aproximar com Fernanda ao lado. Ele abriu a porta para ela, e ela entrou sem dizer nada, com aquele andar que misturava precisão e perigo.

Lá dentro, a luz do painel criava sombras suaves. Eles se sentaram frente a frente. O espaço era justo, íntimo, e por um momento tudo pareceu suspenso. Apoiou a bolsa no colo e ajeitou o casaco dele ao seu lado, como se estivesse marcando território. Os dedos ainda trêmulos de leve alisaram o tecido escuro. Tentou conter a ansiedade observando o trânsito do lado de fora, mas não conseguia se fixar em nada. A cidade passava em flashes, borrada pelas luzes e pelo que ela sentia.

Sem perceber, cruzou as pernas.

O vestido respondeu. A fenda se abriu como um convite inconsciente, revelando a curva suave da coxa direita, um vislumbre rápido, mas impossível de ignorar. A pele capturava a luz difusa do carro com uma precisão quase cruel: nem demais, nem de menos. Só o suficiente para fazer o tempo respirar mais lento.

Walter notou. Estava quieto até então, com as mãos apoiadas nos joelhos, o olhar vagando por ela como se tomasse notas invisíveis. Foi o movimento sutil do tecido que o atraiu, e então ele olhou. Direto. Sem pressa. Sem desviar. Como quem vê e não precisa pedir desculpas por isso.

Fernanda voltou o rosto e, de relance, percebeu. Os olhos dele estavam ali. Baixos. Fixos. Um segundo a mais do que o necessário. E quando ela o encarou, esperando que ele recuasse, Walter sustentou. Era um olhar de quem conhecia o jogo e aceitava as regras.

— Gosta do que vê? — ela perguntou, a voz mansa, mas carregada de algo mais denso.

Walter ergueu os olhos com um gesto suave, como quem retorna de um mergulho.

— Gosto do que ainda nem vi. — disse, e a voz estava mais rouca do que antes.

Fernanda não respondeu. Só o olhou. Não havia sorriso. Mas havia algo mais. Um lampejo nos olhos castanhos, como uma porta se entreabrindo. Aquilo não era desconforto. Era aceitação. Era instinto. Era jogo, mas não de conquista, de reconhecimento. Um acordo silencioso entre duas pessoas que sabiam exatamente até onde podiam ir. E exatamente o que estavam fazendo ao não irem. Ainda.

O silêncio entre eles ainda reverberava quando o táxi desacelerou. Fernanda desviou o olhar da janela e, ao ver a fachada do restaurante surgindo, sentiu o ar faltar por um segundo. O momento no carro ainda estava nela — as palavras, o olhar, a tensão.

O carro parou.

Walter desceu primeiro e, como se obedecesse a um rito, contornou o táxi e estendeu a mão para ela. Fernanda a aceitou sem hesitar. Os dedos se tocaram. Um gesto simples. Mas a pele dela ainda ardia do que não foi dito no banco de trás.

 

CLOS MAGGIORE – 19:20 p.m

Diante deles, a entrada discreta do Clos Maggiore parecia um segredo bem guardado da cidade. Pequena, elegante, envolta por trepadeiras que subiam pelas paredes de tijolos. As letras do nome em dourado suave pareciam sussurradas, não estampadas. Para Walter, era familiar. Mas ao virar o rosto e vê-la, aquela familiaridade ganhou outro sentido.

O modo como ela olhava para o lugar, como se estivesse diante de algo que só existia em livro ou sonho o fez sorrir, discreto. Não era vaidade. Era alívio. Ele a conhecia. Sabia que ela ia gostar. Mas vê-la ali, com os olhos grandes brilhando na penumbra da entrada, superava tudo que ele havia imaginado. Ela não disse nada. Mas o sorriso contido, torto e encantado era uma resposta.

Ao entrarem, foram recebidos por uma atmosfera quase cinematográfica. O salão parecia isolado do tempo. Luzes tênues vinham de pequenas velas sobre as mesas e de um lustre delicado pendendo do teto de vidro, por onde se viam as copas das árvores e um pedaço do céu noturno. Galhos entrelaçados cobriam as paredes com flores brancas e secas, como se o restaurante fosse uma estufa transformada em abrigo para amantes. Fernanda deu dois passos, absorvendo cada detalhe. Foi então que percebeu. Parou sutilmente no meio do caminho e franziu o cenho.

— Está... vazio. — murmurou, sem disfarçar a surpresa. — Às sete e meia da noite? Num lugar desses?

Walter permaneceu ao lado dela, sem pressa, com um sorriso discreto no rosto. Como se já tivesse previsto exatamente aquela reação. Aproximou-se, e a voz veio baixa, junto ao ouvido dela:

— Eu pedi exclusividade. Queria... privacidade.

Ela se virou para encará-lo. Os olhos castanhos, arregalados em incredulidade contida.

— Você fechou o restaurante?

Ele deu de ombros, elegante. O sorriso ainda preso no canto da boca.

— Foi só por uma noite.

Fernanda não respondeu. Apenas o olhou por um tempo longo o suficiente para ele sentir o ar entre os dois mudar de temperatura. Ela tentou disfarçar o descompasso interno, mas o gesto dele a atravessara. Era um gesto de desejo — sim —, mas também de cuidado. De intenção.

— Isso é... — ela começou, mas a frase morreu no ar.

Walter, então, completou por ela, sem qualquer pressa:

— Uma armadilha bem montada?

Fernanda sorriu, e era o tipo de sorriso que não escondia nada.

— E eu entrei nela de olhos abertos.

Ele ofereceu o braço. E ela aceitou.

O ar era morno, perfumado por algo entre madeira antiga e flor fresca. Nada invadia, tudo acolhia. A hostess os conduziu à mesa mais reservada do salão. Um canto de penumbra morna e promessas silenciosas. Eles não disseram mais nada. Mas naquele trajeto breve até a mesa, a tensão voltou a crescer. Fernanda tirou o casaco devagar, sentindo o calor delicado do ambiente substituindo o frio da rua. Era uma mesa feita para dois, mas parecia conter o mundo. Ela se sentou e observou em volta mais uma vez, os olhos varrendo os detalhes. E então, soltou uma pequena risada. Resignada.

— Você venceu. — disse, no tom de quem se rende, mas não sem estilo.

Ele ergueu uma sobrancelha, satisfeito, mas discreto.

— Eu só jogo quando sei que posso ganhar.

— Arrogante. – Ela o olhou por um segundo mais longo, os olhos semicerrados, e um sorriso preguiçoso apareceu no canto dos lábios.

— Realista. — Ele respondeu, puxando a cadeira com elegância antes de sentar-se em frente a ela.

— E pretende ganhar mais alguma coisa essa noite? — Fernanda soltou a pergunta com suavidade, apoiando o queixo na mão e os cotovelos na mesa. Um sorriso vago nos lábios, mas os olhos, os olhos estavam afiados.

Walter recostou-se levemente, sem pressa. O olhar pousado nela como quem examina um mapa secreto.

— Pretendo. — disse, sem floreios.

— Está muito confiante. — Ela rebateu, com uma arqueada de sobrancelha, cruzando as pernas com uma lentidão calculada. A fenda do vestido reagiu como um detalhe indecente perfeitamente orquestrado.

— Não é confiança. É competição. — Ele inclinou-se ligeiramente para frente, voz baixa, como se o ar ao redor não precisasse de mais distrações. — Eu sou competitivo, Fernanda. Sempre fui.

— Que coincidência. Eu também sou.

— Perceptível. Eu vejo isso no seu olhar. Nos silêncios. Você tem essa mania de querer vencer sem dizer que está jogando. Mas está. Sempre está.

Ela mordeu o lábio inferior, não para conter o riso, mas para conter o impulso de querer mais daquilo. Mais do jogo. Mais dele.

E como ela adorava aquilo. A disputa velada. A tensão que se camuflava em frases afiadas e sorrisos discretos. Era uma dança de lâminas, mas ao invés de feridas, deixava marcas invisíveis, daquelas que se sente na pele e não se esquece. Disputar espaço com Walter no olhar, na palavra, no silêncio era excitante. Era o prenúncio. O arrepio que precede o trovão. O instante em que o vento muda de direção e se sabe: a tempestade vem.

E ela gostava de estar ali, no olho do furacão. Sabia que ele também sentia. Que aquela noite era um acerto de contas. Que havia algo entre eles que não terminaria naquela mesa. O garçom se aproximou e, por um instante, os dois se comportaram como se não estivessem prestes a incendiar o próprio destino.

Walter fez o pedido do vinho com a calma de quem sabia exatamente o que fazia. Era um Chateau Cheval Blanc de 1947. Um vinho tinto francês, encorpado, de um ano excepcional. Quente, escuro, com aroma de especiarias e notas de frutas secas. Afrodisíaco por natureza. Antigo por escolha. Potente como o desejo que os dois disfarçavam mal. Fernanda arqueou a sobrancelha quando ouviu o nome do vinho. Ele apenas respondeu com um leve erguer de copo, como se dissesse: confia em mim.

O primeiro gole veio quase como um beijo na boca. Quente, envolvente, inesperadamente preciso. Conversaram sobre banalidades por alguns minutos. Seus filmes preferidos da Criterion, o caos do trânsito londrino, o charme ultrapassado dos bondes antigos. Mas, mesmo ali, entre tópicos neutros e goles de vinho, o jogo não cessava. Os sorrisos duravam um segundo a mais. As pausas também.

— Lembra quando você ficou irritado comigo em Lisboa?  — Fernanda soltou de repente, como se puxasse um bilhete antigo de um bolso secreto. — Naquela cena de Terra Estrangeira. Ficou do jeito que você queria, mas eu me achei horrível por causa das luzes.

Walter pousou a taça devagar. O sorriso apareceu, mas não era de humor. Era de quem lembrava com nitidez.

— Eu não estava irritado. Eu estava transtornado. — disse, sem ironia. — Porque você estava absurdamente linda. E não fazia ideia. Se soubesse metade do que eu vi naquele plano, você nunca mais duvidaria da própria aparência.

Fernanda sentiu um calor subir, sem saber se era do vinho ou das palavras. Segurou a taça, mas não bebeu. O olhar dele estava cravado no dela.

— E mesmo assim, te obriguei a gravar de novo. Você não falou comigo pelo resto do dia. — disse, tentando retomar o controle, com um sorriso que tentava soar leve. — Você devia ter desistido ali, sabia? Eu não sou fácil de se domar.

Walter inclinou-se levemente, como se compartilhasse uma confissão.

— Eu sempre soube. E continuei mesmo assim.

O prato principal havia chegado com discrição — uma composição delicada de sabores, disposta com rigor estético. Quase artística. Fernanda observou por um instante antes de levar o garfo à boca. Mastigou devagar, como se ainda tentasse domar a noite com pequenos gestos. Walter, à frente, mantinha o olhar sobre ela com a mesma elegância de sempre, mas havia algo ali — uma inquietação domada, uma fome que não tinha a ver com o prato.

O vinho escorria fácil demais pela garganta. Terceiro cálice. Quinta troca de olhares. O tempo parecia dobrar as próprias leis.

— Londres fica mais bonita com um pouco de vinho.

— Você fica mais perigosa com um pouco de vinho. — Ele devolveu, sem piscar.

Fernanda arqueou levemente a sobrancelha. Não sorriu. Mas havia algo nos olhos dela que dizia para ele: continue.

— Você sempre foi assim? — perguntou, com fingida leveza. — Alguém que joga charme com precisão perfeita e silêncio meticulosamente calculado?

Walter inclinou levemente o queixo, como quem aceita o elogio e o desafio de uma vez.

— Só com pessoas que sabem jogar de volta.

Dois podem jogar esse jogo - ela pensou. E ambos estavam dispostos a ir até o fim.

Ela levou a taça aos lábios de novo, devagar, e bebeu sem pressa, observando-o por cima da borda do cristal. Depois apoiou a base da taça sobre a mesa e tamborilou o indicador ali, marcando um ritmo suave, quase provocador. Recostou-se na cadeira e, por um instante, olhou ao redor como se tentasse se convencer de que aquilo era real. O festival em Roterdã. O show. Londres. Aquele hotel. O restaurante. Mas era difícil acreditar. Walter à sua frente, o restaurante envolto em penumbra quente, o som abafado da cidade do lado de fora. Tudo parecia fabricado por um sonho de gosto caro.

— É estranho. — Ela murmurou. — Estar aqui com você. Parece que o tempo descolou do mundo. Parece irreal para mim. Um sonho.

Fernanda voltou a tamborilar a taça, os olhos fixos no vinho, como se ele guardasse alguma resposta. Respirou fundo.

— Preciso te perguntar uma coisa. — disse, com a coragem típica de quem já cruzou a segunda taça.

Ele assentiu com um gesto leve do queixo, um “sim” quase imperceptível.

— Como você sabia que eu gostava do Oasis? — ela inclinou levemente a cabeça, os olhos fincados nos dele. — Quer dizer... isso eu até posso entender. Mas o que me intriga mesmo é como você conseguiu aqueles ingressos. Estavam esgotados há meses.

Walter não respondeu de imediato. Apenas a encarou. Fernanda ergueu os olhos, cruzando o olhar com o dele, e um sorriso se abriu em sua boca — um misto de surpresa e incredulidade.

— Você tem noção do que foi... aquilo? Um show do Oasis. Em Knebworth, na Inglaterra. Eu me senti... dentro de um delírio, como se fosse Woodstock. Mas ao mesmo tempo, foi tudo tão... seu. — Ela fez uma pausa. A voz suavizou, quase uma prece. — Às vezes, parece que você sempre esteve lá. Um cuidado invisível, mas constante. Como uma força estranha que não exige, mas não deixa de estar.

Walter engoliu em seco. E pela primeira vez naquela noite, baixou os olhos.

— Você não faz ideia, né? — murmurou, quase para si. Quando voltou a encará-la, o olhar tinha algo que doía e iluminava ao mesmo tempo. — Do quanto você é alheia a si mesma. Você não passa, Fernanda. Você permanece. Você é uma constante. Uma força.

Ela segurou o fôlego. O silêncio dela não era fuga, era escuta.

— Você ilumina tudo. Mas não só isso. Você cega. Queima. No melhor sentido. — Ele deu um meio sorriso, breve, como quem hesita em continuar, mas vai mesmo assim. — Eu me sinto como Ícaro, às vezes. E você, é o próprio sol. Sempre soube que era perigoso, mas nunca consegui parar de voar em direção a você.

Ela sentiu o estômago virar, devagar. Como se cada palavra dele tivesse escorrido direto para dentro, ocupando um espaço antigo, não nomeado.

— E sobre o show... — continuou Walter, agora num tom mais leve, mas com a mesma densidade — Eu sabia desde o primeiro dia nas gravações de Terra. Você andava com seu walkman da Sony pra todo lado. Tinha sempre uma fita nova. Às vezes, você cantarolava baixinho, achando que ninguém ouvia. Eu ouvia.

Ela mordeu o lábio inferior, com um sorriso entre a emoção e o espanto.

— Um dia, você saiu pro camarim e deixou o walkman na cadeira. Eu... — ele hesitou, rindo da própria confissão — eu peguei. Ouvi. Ia de Gal Costa a Pink Floyd. Do samba brasileiro ao pós-punk britânico.  

Ela riu, surpresa. Riu com a garganta, com os olhos, com o corpo.

— Você espionou minhas fitas.

— Eu queria te entender. De algum jeito. Saber por onde você caminhava quando não estava nas cenas. — Ele baixou a voz, como se confessasse a coisa mais simples e mais grave do mundo. — Porque mesmo no silêncio, você dizia tanto. Eu queria falar a sua língua.

Ela desviou os olhos por um segundo. E nesse segundo, algo se partiu dentro. Um gesto pequeno, mas denso, como se a lucidez tivesse sido brevemente desorganizada. Aquilo era perigoso. E ela sabia.

Respirou fundo, tentando encontrar o chão.

— Isso ainda não explica como você conseguiu os dois ingressos pro show. — disse, tentando soar casual.

Ele sorriu. Um daqueles sorrisos enviesados, que não eram gentis, porém eram perigosos. Recostou-se no banco, com a taça entre os dedos longos.

— Eu tenho amigos. — respondeu, com falsa modéstia.

— Ah, entendi... — disse ela, com sarcasmo delicado. — Então, esse é o jeito Moreira Salles de dizer que tem influência. The Moreira Salles Effect. – brincou encorpando na voz um sotaque britânico.

Walter inclinou-se levemente à frente, e a voz dele veio mais rouca, mais próxima, carregada de algo que a fez estremecer por dentro.

— E o que seria o Efeito Moreira Salles?

A pergunta caiu como feitiço. A forma como ele disse aquilo, sem esforço, mas com intenção parecia tocar um ponto secreto nela. O vinho queimava nas veias, e o desejo, silencioso, já tinha atravessado o corpo. Ela sorriu, mas havia ternura ali. E algo que se parecia demais com rendição.

— É quando você se sente atraída... — começou, a voz um pouco mais baixa, um pouco mais macia — e nem sabe por quê. Não tem nada a ver com força. É o oposto disso. É o jeito sutil. A leveza. O silêncio. A presença. O olhar. O cuidado.

Ela o olhou, como se cada palavra que dizia fosse também uma confissão não dita.

— É esse seu charme discreto, seu humor contido, sua elegância sem alarde... — Ela deu uma pausa, inclinando levemente a cabeça. — Você nunca exige atenção. Mas quando entra num lugar, o ar muda. E quem está ali sente. Eu sinto.

Walter não respondeu. Só a olhava. Como se visse algo sagrado se revelando ali, naquela mesa de dois.

— Tem algo em você que é... perigoso. Não no sentido ruim. É só que... — ela hesitou, depois continuou, mais baixo. — Eu olho pra você e tenho vontade de ceder. E eu nunca cedo. Não assim.

Era quase um sussurro, mas ele ouviu. Cada sílaba.

— E, de repente, você está presa. Dentro de um feitiço. E nem quer sair.

Fernanda sentiu o coração bater alto, rápido. O silêncio entre eles era quase tangível. E quando percebeu o que havia dito, com o vinho latejando sob a pele e a respiração levemente trôpega, pensou em voltar atrás. Mas já era tarde demais. Walter não respondeu e nem precisava. Os olhos dele diziam tudo. Era como se ele a visse por inteira. Mais do que isso, como se já a conhecesse de antes. De algum tempo que não estava marcado no calendário.

Ela não desviou os olhos dele. Nem ele os dela. Nesse exato momento, o garçom apareceu. O som sutil da bandeja sobre a mesa quebrou a tensão como um estalo de realidade. Carregava nas mãos uma bandeja pequena, de prata escurecida pelo tempo. No centro, repousava uma taça de vidro grosso e delicado, e dentro dela, um mousse de romã.

 A sobremesa tinha chegado como um presságio.

O brilho escarlate das sementes cortadas ao meio cintilava sob a luz suave do restaurante. Era quase brutal de tão bonito. Os grãos escorriam pelas laterais da taça como gotas de um pacto antigo. Walter agradeceu com um aceno curto e murmurou algo inaudível ao garçom, que desapareceu tão silenciosamente quanto viera.

Fernanda não se moveu. Era como se o ar tivesse se tornado mais espesso entre os dois, mais denso, como se tudo, tudo naquele momento, estivesse suspenso por um fio invisível. Ela olhou para a taça. Depois para ele.

Walter estava calmo. Mas não era uma calma qualquer. Era aquela calma perigosa, calculada, cheia de intenção. A calma de quem arma algo com delicadeza extrema, sem jamais perder o controle. Os olhos dele estavam nos dela. Sem desvio, sem hesitação. E quando os dedos dele empurraram suavemente a taça com o talher para o centro da mesa, ela soube.

Não era apenas uma sobremesa.

Era um convite.

Um sussurro. Um feitiço. Um acordo não verbalizado.

Fernanda sentiu o corpo inteiro responder. A memória da frase dita por ela mais cedo às margens do Tâmisa — “Que você continue me raptando” — retornou como uma premonição cumprida. Ele ouvira. E tinha respondido, não com a voz, mas com a escolha da sobremesa. Walter era esse tipo de homem. Nunca dizia o óbvio. Ele insinuava. Ele agia. E nesse momento, a romã era mais do que um fruto. Era o pacto.

Um mito antigo vivido à luz de velas.

Fernanda pegou a colher. As mãos trêmulas não denunciaram nada — ao menos não para quem não soubesse lê-la. Mas Walter sabia. E a observava com aquela quietude de quem não precisava se mover para ocupar todo o espaço. Ela mergulhou a colher no mousse.

A fruta se rompeu com facilidade, revelando a polpa úmida, densa, sanguínea. E então, sem dizer uma palavra, levou à boca. O sabor era doce, ácido e ancestral. Era como selar um pacto com o próprio sangue. E ao engolir, não foi o gosto que a arrebatou. Foi o que significava.

Ergueu os olhos. Os de Walter estavam lá, presos nos dela. Escurecidos. Densos. Quase perigosos. Ela molhou os lábios com a ponta da língua, e o silêncio entre eles continuava a reverberar.

— Você sabe o que significa, não sabe? — Fernanda disse, enfim. A voz baixa. O tom, quase uma carícia. — Perséfone comeu as sementes de romã. E o pacto foi selado. Ela foi levada por Hades para o submundo. Raptada.

Walter não respondeu de imediato. O olhar dele permaneceu fixo, atento, faminto de algo que não era comida.

— Há quem diga que ela comeu sabendo o que fazia. — Ele disse por fim, com suavidade. — Que aceitou o destino. Que queria ser levada.

— E você... é Hades nessa história? — sussurrou, com o queixo levemente inclinado.

Walter se inclinou levemente para frente, a voz dele ainda mais baixa. Quase áspera.

— Não. — murmurou. — Eu sou o homem que ouviu você pedir para ser raptada. E atendi o seu desejo.

Fernanda prendeu o ar. O vinho, o mousse, a presença dele — tudo formava um calor no fundo do ventre. Ela piscou devagar. E então sorriu.

— Se eu comi o fruto… — disse, o olhar fincado no dele. — Isso quer dizer que estou fadada a retornar para você?

Walter sustentou o olhar. Nenhuma hesitação.

— Sempre.

Silêncio.

A palavra ficou ali, como um decreto. Uma tatuagem invisível entre eles. Um selo antigo, impossível de desfazer.

Ele então se recostou levemente na cadeira, os olhos ainda sobre ela, agora mais escuros. Um silêncio breve e, em seguida, a ordem, velada por uma elegância que só ele sabia usar:

— Agora, termine a sobremesa. Toda ela. — disse baixo, mas firme. Como um comando suave demais para ser ignorado.

Fernanda arqueou a sobrancelha, uma provocação se esboçando nos olhos, mas obedeceu. De forma lenta, provocativa, passou a colher no mousse restante, agora mais líquido nas bordas. Levava à boca como se fosse um ritual íntimo. Os olhos alternando entre a taça e o rosto dele.

A última colherada escorreu levemente pelos lábios.

Walter a observava em absoluto silêncio, como se cada gesto dela fosse parte de um espetáculo privado. Um espetáculo montado só para ele.

O caldo rubro da romã desceu pelo canto da boca de Fernanda, traçando uma linha fina sobre a pele. Antes que ela sequer levantasse a mão, Walter se inclinou. Ágil, contido. Passou o polegar no canto da boca dela, limpando o resquício com um toque que foi mais do que um gesto — foi um afago, um aviso, uma promessa.

O polegar, ainda manchado, roçou devagar os lábios dela. E então Fernanda, sem desviar os olhos dos dele, lambeu o polegar com a ponta da língua.

Devagar. Precisa.

O olhar dele escureceu ainda mais.

Houve uma pausa densa no tempo. Como se tudo em volta desaparecesse, menos eles.

Walter pousou a mão sobre a mesa, satisfeito. O sorriso dele era mínimo, mas cheio de conteúdo. Como se tivesse recebido exatamente o que queria.

— Boa menina. — disse, a voz grave, baixa, arrastada.

A reação foi quase imperceptível: um leve arquear das costas. A sobremesa estava terminada. Mas o banquete... esse ainda estava por vir. Ela sabia. Sentia. O corpo dela avisava. O corpo respondeu antes da mente. O calor entre as pernas voltou a pulsar com uma força que ela não tinha como esconder. Nem quis. Walter percebeu. E sorriu. Como quem acende uma chama e espera, paciente, pelo incêndio.

Foi nesse compasso morno, cheio de prenúncio, que os primeiros acordes de “Chan Chan” do Buena Vista Social Club, começaram a preencher o salão. O ritmo cubano, quente e melancólico, deslizou entre as mesas como uma brisa carregada de promessas. Improvisada, talvez. Mas perfeita. O tipo de canção que parecia saber mais do casal do que eles próprios.

Walter ergueu os olhos. O sorriso discreto, enviesado, apareceu no canto da boca. Ele se inclinou levemente, a voz baixa, carregada de algo entre convite e premeditação.

— A moça me concede essa dança?

Fernanda o olhou, os olhos levemente pesados pelo vinho, mas cheios de uma lucidez diferente — a dos sentidos.

— Achei que você não dançava. — provocou, mas a voz já dizia sim.

Ele estendeu a mão. Ela a aceitou.

Levantaram-se. E enquanto caminhavam em direção ao centro do salão, que se abria sob uma armação de madeira antiga entrelaçada com ramos de cerejeira seca e luzes baixas, tudo pareceu desacelerar. O mundo lá fora deixou de existir.

“...De Alto Cedro voy para Marcané
Llego a Cueto y voy para Mayarí...”

No meio da pista, Walter a puxou com uma calma firme. Fernanda cedeu. Os corpos se alinharam com naturalidade. Não era uma dança agitada.  Era algo entre o bolero e a salsa, mas com a lentidão quente da América Latina. Ela fechou os olhos e deixou que ele conduzisse. Um passo, depois outro. O som da música parecia vir de dentro deles, e não das caixas do restaurante. E então ele começou a cantar. Baixo. Com a voz rouca, aveludada. Chan Chan, com aquele espanhol arrastado, escapando no pé do ouvido dela como um feitiço velho.

“... El cariño que te tengo
Yo no lo puedo negar
Se me sale la babita
Yo no lo puedo evitar...”

Ela estremeceu. Sentiu a pele arrepiar da base da nuca até o meio das costas. As mãos dele estavam ali. As pontas dos dedos deslizando devagar pelo decote aberto nas costas do vestido, como se lesse sua pele em braile. Era uma reverência silenciosa, uma adoração contida. E Fernanda, que sempre soube se defender, não se defendia agora. Estava totalmente entregue a ele.

“...De Alto Cedro voy para Marcané
Llego a Cueto y voy para Mayarí...”

Eles giravam devagar. Moviam-se como se estivessem sozinhos. Como se tudo ali tivesse sido armado só para que aquele momento acontecesse. Os corpos colados, respirando o mesmo ar. O som de Chan Chan preenchendo o salão com aquele ritmo cúmplice, antigo, quase ritualístico. Quando a música começou a se aproximar do fim, Walter a puxou para mais perto. Mais do que já estavam. O nariz roçou o dela, suave. As respirações se misturaram, descompassadas. Os olhos, abertos, se mantinham presos como se bastassem para dizer o que a boca ainda não dizia.

E então, sem romper o feitiço do silêncio, ele a beijou.

Foi lento.

Um beijo calmo, mas quente, carregado de uma ternura que só aumenta a tensão. As línguas se tocaram como quem dança também, no mesmo compasso da música que ia morrendo aos poucos. Walter mordeu de leve o lábio inferior dela, puxando com cuidado, e Fernanda gemeu baixo, um som abafado que reverberou direto no peito dele.

As bochechas dela estavam coradas. Os olhos, escuros. O peito subia e descia, denunciando o incêndio interno. Havia uma lascívia contida ali, mas não envergonhada. Era uma entrega sem pressa. Um convite que se sabia perigoso. E ainda assim, irrecusável.

Walter afastou-se só o suficiente para olhá-la de novo. O polegar dele roçou com lentidão o lábio inferior dela, ainda úmido do beijo. Um gesto de ternura. Mas a tensão no toque era de outra ordem, algo entre devoção e desejo.

— Você não faz ideia do efeito que causa em mim. — sussurrou, e a voz saiu rouca, carregada demais para ser ignorada.

Ela sentiu as pernas vacilarem. O corpo inteiro tenso e aceso. Os olhos cravados nos dele, como se aquele instante não coubesse mais nenhuma palavra fora do que fosse necessário. Walter a fitou por mais um segundo. E então, como quem pede algo que já sabe que será concedido, mas ainda assim respeita o rito, então disse:

— Fica comigo essa noite.

Fernanda fechou os olhos por um instante. Só um. E quando os abriu, havia uma luz diferente neles. Algo entre lascívia e promessa. Ela se aproximou do ouvido dele, devagar, a respiração quente e controlada.

— Sim. — sussurrou.

Walter a olhou como se recebesse uma oração. O corpo dele, até então sóbrio e contido, pareceu perder por um segundo o domínio. Mas então ele a segurou com mais firmeza, como quem protege o que deseja. A música cessou. Mas o feitiço, não.

 


 

THE ROYAL HORSEGUARDS – 22:00 P.M

O som da chave girando na fechadura pareceu mais alto do que o necessário. Um estalo breve, porém, definitivo.

Parados diante da porta, Fernanda sentia o coração bater no ritmo de algo que ela não conseguia controlar. A maçaneta girou sob os dedos de Walter e, antes que a porta se abrisse por completo, ele a olhou de soslaio. Não foi um olhar qualquer. Foi exame, reconhecimento, desejo. Viu a respiração entrecortada. Os lábios entreabertos. O peito dela subindo e descendo em ondas pequenas e entregues.

Ela estava ali, no fio do limite. E sabia: estava presa dentro do feitiço que ele conjurava em silêncio desde o jantar. A porta se abriu, e a suíte se revelou como se já os aguardasse.

A luz vinha apenas de um abajur de vidro âmbar sobre a mesa de canto, e da lareira que crepitava forte, como um coração em combustão lenta. As sombras nas paredes dançavam com discrição, e o ar parecia aquecido na medida certa, como um sussurro que abraça.

Walter tirou o paletó com a lentidão de um gesto milimetrado. Deu dois passos à frente, então parou. Não precisava olhar para ela para senti-la — o corpo de Fernanda emanava calor. Desejo.

E quando enfim se virou, a viu.

Ela estava ali, imóvel, com os olhos nele e os ombros levemente curvados como se estivesse tentando conter um incêndio dentro do próprio peito. O vestido ainda intacto, a pele levemente úmida de excitação. A respiração mais curta. Os lábios entreabertos.

Walter estendeu a mão.

Devagar. Como quem não exige. Como quem oferece. O gesto não era só um convite. Era uma súplica silenciosa. Uma entrega sem palavras.

E Fernanda viu.

Não era apenas desejo. Era algo mais fundo. Aquele gesto, a palma aberta, os dedos grandes, firmes e gentis, era uma espécie de clemência. Uma dança pedida não com os pés, mas com o destino. Soube, naquele instante, com uma clareza absurda: Se ela aceitasse, não haveria retorno.

E aceitou.

A mão dela encontrou a dele. Os dedos se encaixaram com uma naturalidade devastadora. Walter a puxou suavemente, sem dizer nada, e ela foi. Cada passo parecia ecoar dentro do próprio corpo. Como se estivesse atravessando um limiar sagrado, um templo íntimo que pertencia a eles dois.

O quarto se revelou à medida que avançavam. A lareira. A cama larga com o dossel. As cortinas pesadas. A parede de vidro revelando Londres em sua luz silenciosa. Mas o que realmente pulsava era o que vinha dele. Do homem que estava ali com ela.

Ela sentia o cheiro dele, aquela mistura limpa de madeira e algo fresco, quase como roupa lavada ao sol. Os olhos dele estavam escuros. Densos. Havia fome neles. Mas havia também reverência. Um pedido de permissão que só ela podia conceder. Walter se aproximou e, com um cuidado ensaiado, tirou o casaco que ainda repousava sobre os ombros dela. O gesto era quase cerimonial. Quase sagrado. O casaco deslizou, revelando as costas nuas iluminadas pelo fogo. Ele não disse nada. Só a beijou.

Primeiro a nuca. Depois o ombro.
E então a boca.

O beijo não pediu licença. Não era tímido. Era uma entrega contida, mas fervoroso por dentro. As bocas se reconheciam. Se relembravam. E logo, o beijo se tornou mais profundo, mais urgente. A respiração de Fernanda se perdeu ali, no meio do beijo, no meio dele. Ela se virou de costas, como se precisasse respirar, mas Walter a seguiu. Pararam diante da parede de vidro.

Walter se aproximou por trás, os corpos estavam colados. E então, provocou. Beijou a orelha dela, depois mordiscou de leve. O som que Fernanda soltou era puro instinto, um gemido abafado, entre prazer e surpresa. Os olhos dela se encontraram com o reflexo no vidro.
Ela viu a si mesma — e a ele, ali, por trás, devorando-a com os olhos.

— Canalha... – gemeu ao ver a expressão de divertimento nos olhos dele ao vê-la naquele estado.

Quis abrir o zíper do vestido. Os dedos buscaram o fecho. Mas antes que conseguisse, Walter segurou os pulsos dela com firmeza. A respiração dele na nuca, quente.

— Ainda não. — Sussurrou, a voz rouca, controlada, ferina e devota ao mesmo tempo. – Você me tortura a noite toda e acha que vai escapar fácil de mim, coelhinha?

A palavra escapou como um sussurro lascivo. E o efeito foi imediato.

Fernanda sentiu o ventre esquentar, como se o corpo inteiro tivesse sido tomado por uma febre suave e incurável. O apelido, a voz dele na nuca, a contenção que ameaçava romper a cada segundo... tudo se somava à atmosfera espessa da suíte, à penumbra quente, à lareira que estalava em algum canto. Ela manteve o olhar no reflexo no vidro. Viu o próprio corpo vibrar sob o dele. Sentiu. E cedeu.

Walter a observava como quem decifra. Como quem lê um mapa antigo com todas as rotas escondidas. Inclinou-se. Depositou beijos lentos sobre a pele das costas dela, nas sardas que se espalhavam como pontos secretos. E então, como se soubesse o tempo exato de tudo, a virou com precisão. O corpo dela girou com fluidez e, de repente, estavam frente a frente. Quando seus olhos encontraram os dele, não havia hesitação. Apenas certeza.

Ele a beijou no pescoço, exatamente no ponto onde a pele pulsa com mais força. O lugar exato entre o que é permitido e o que é íntimo demais para nomear. Fernanda suspirou, os lábios entreabertos, e fechou os olhos como quem mergulha. Walter a levantou com facilidade, como se ela fosse leve, como se fosse natural. Como se o corpo dela tivesse sido feito para se encaixar no dele. Ela o envolveu pela cintura com as pernas, os braços ao redor do pescoço. E então sentiu. Rígido, quente, latente contra sua intimidade. O toque era um aviso e uma promessa.

— Walter... — gemeu, arfando contra o ombro dele.

Ele não disse nada. Apenas a levou até a grande mesa de madeira escura, maciça, no centro da suíte. Deitou-a ali com reverência, como quem oferece um corpo a um altar.  Não a despiu de imediato. Explorou-a vestida. As mãos dele subiram pela perna exposta pela fenda do vestido.

Como se o vestido fosse parte do rito. Um obstáculo que intensificava a tensão. Um convite a ser desvendado com paciência. As mãos dele subiram pela perna exposta pela fenda do tecido. Devagar. Com propósito. Os dedos longos deslizaram pela pele quente, arrepiada. Tocavam como quem descobre. Como quem já sabia, mas queria confirmar com as mãos.

— Você devia ter pensado duas vezes antes de ter usado esse vestido. — disse ele, com a voz baixa, encostada à pele dela.

Ela sorriu. Mas não era um sorriso doce. Era um riso rouco, escuro. Quente.

— Usei justamente pra isso. — respondeu, com a voz arrastada, entregue. — Pra te atiçar.

Walter a encarou, as pupilas dilatadas. Aproximou-se ainda mais, a respiração roçando a pele dela.

— Então é bom que esteja pronta. — murmurou. — Porque eu vou explorar cada centímetro dele e do seu corpo. Com calma. Sem pressa.

E fez exatamente isso.

A boca dele desceu pela coxa como uma prece. Beijos úmidos, demorados, entremeados por respirações fundas e pequenas mordidas. A língua dele mapeava o caminho com precisão cirúrgica. Do joelho à virilha. Fernanda se arqueava levemente, em silêncio e fogo. O corpo inteiro vibrava em antecipação. Os olhos semicerrados, os dedos afundados na madeira, o nome dele escapando dos lábios como clemência.

— Você gemendo meu nome... — disse, com a voz grossa, entre dentes — com certeza é meu novo som favorito.

Quando voltou, levantou-a da mesa com um só movimento. Com delicadeza firme, puxou o zíper do vestido. O tecido deslizou pelos ombros de Fernanda, revelando os seios pequenos, delicados, já eriçados. Ele os contemplou como se estivesse diante de uma obra rara.

Não havia vulgaridade.
Era reverência. A devoção de quem sempre soube que, um dia, chegaria ali.

Uma das mãos segurou firme a cintura dela. A outra subiu e acariciou os seios, com a palma quente. Ele os tocava como quem lê em braile, como quem reconhece um idioma antigo por instinto.  E então, sem aviso, abocanhou um. A língua brincava. Os dentes provocavam. A outra mão alternava pressão e carinho, ritmo e pausa. Era um estudo. Um tormento. Um deleite.

Fernanda arqueou o corpo, e então soltou, sem filtro:

— Porra, Walter...

Um gemido veio colado à palavra. Quente. Cru. Ele levantou a cabeça, o olhar aceso. A expressão, entre fome e comando.

— Boquinha suja pra alguém que está tão à mercê. — disse, firme, a voz baixa como um trovão abafado.

Ela riu. Um riso carregado de lascívia e desafio.

— Vai me punir por isso? — sussurrou, com o olhar fixo no dele. — Ou não é homem suficiente pra me ensinar uma lição?

A provocação estava na entonação, na leve inclinação do queixo, no brilho de faísca nos olhos castanhos. Não era uma afronta. Era um convite perigoso.

Walter não hesitou.

A mão dele subiu firme, envolveu o pescoço dela com uma força exata — nem bruta, nem dócil demais. O polegar roçou de leve a pele da garganta, sentindo a pulsação acelerada sob seus dedos. Não a apertou. A segurou. Como se dissesse, sem palavras: você é minha.

Fernanda arqueou as costas com o toque. O prazer subindo como uma onda densa, quente, acumulando-se na base do ventre. Os olhos dela se fecharam por um segundo, depois se abriram devagar, e neles havia rendição. E desejo. E uma fome ancestral.

— Eu teria cuidado com essa boca, se eu fosse você, Fernanda. — Ele murmurou, a voz mais baixa, mais áspera, como se a estivesse esculpindo com as palavras.

Ela arfou.

Sentiu o corpo inteiro responder.

Ele se inclinou, e a boca dele colou-se à curva do queixo dela, depois ao maxilar, depois ao canto da boca. Beijos úmidos, lentos. Uma tortura cuidadosamente orquestrada. A mão que segurava o pescoço dela desceu pelo colo, com calma, escorregando entre os seios. A outra sustentava a cintura, firme. Um controle absoluto, mas sensual, um domínio de quem conhece os caminhos e sabe exatamente onde levar.

— Me ensine, então. — ela provocou, com a voz baixa, quase um gemido. — Mostre o que essa boca merece.

Walter sorriu de canto, mas era um sorriso escuro, carregado de intenção.

— Ah, eu vou te ensinar. — sussurrou, encostando a testa na dela. — E você vai implorar pedindo por mais.

Walter a pegou da mesa como quem resgata algo precioso — e ao mesmo tempo perigoso. A levou até a cama com precisão. Deitou-a ali, com as mãos firmes. Os olhos famintos, mas pacientes. Com gestos cuidadosos, despiu-a por partes. Tirou o vestido completamente. O zíper baixando como uma linha de tensão sendo cortada. O tecido escorregando pelos braços, pelas coxas, até se perder no chão.

Ficou apenas a calcinha de renda vermelha. O vermelho mais impróprio. O vermelho que grita quando o resto sussurra. Walter a olhou. Por segundos inteiros. Sem dizer nada. A lareira lançava luzes dançantes sobre o corpo dela, delineando curvas, contrastes, cicatrizes, sardas. Um altar em chamas.

— Você é linda. — disse por fim. A voz soou diferente. Como se dissesse aquilo pela primeira vez e por mil vezes ao mesmo tempo.

Fernanda engoliu em seco. Não respondeu. Apenas o olhou de volta. Walter se afastou apenas o suficiente para se despir.

Tirou a camisa preta com precisão. Botão por botão. Os músculos revelando-se aos poucos, esculpidos sob o tecido como pedra sob véu. A pele dele era quente até de longe. Os ombros largos, o peito firme, os músculos definidos do tipo que não se exibe — se descobre.

Ficou apenas de calça e cinto.

E então, o gesto.

Ele tirou o cinto devagar, sem tirar os olhos dela. O couro deslizando pelo passador com o som certo — seco, cortante. Era quase uma promessa. Ela sentiu o ventre pulsar. A umidade entre as pernas já não era controlável. Walter deixou a calça pender nos quadris por alguns segundos, como quem sabe exatamente o que aquilo provoca. O tecido nobre da alfaiataria contra a pele dele era uma provocação viva.

E então, ele subiu na cama.

Lento.

Firme.

O colchão afundou sob o peso dele, mas Fernanda não se moveu. Apenas o observou se aproximar. Walter estava entre as sombras e o fogo, e aquilo o tornava ainda mais irreal. Um homem que parecia ter sido esculpido pela penumbra.

Ficaram cara a cara.

O silêncio era uma oração.

Fernanda não sabia onde estava — só sabia que queria continuar ali. Naquela tensão. Naquele altar. Naquela cama. Queria ser levada ao limite com ele. Por ele.

— Abre a boca. — ordenou.

Ela obedeceu sem pensar. E quando sentiu o dedo dele atravessar a linha da boca, fechou os lábios ao redor dele. Chupou devagar. Profundo. Como quem responde sem palavras. O gesto era sujo e puro ao mesmo tempo. Um rito íntimo. Silencioso.

Walter arfou. Mas ele queria mais. Queria marcá-la de outro jeito.

Desceu os lábios pelo corpo dela, provocando os seios com a ponta da língua, contornando-os com beijos lentos. A boca encontrava a pele como se lesse um poema antigo. Cada toque era uma palavra dita em outro idioma — aquele que só os corpos compreendem. A mão esquerda dele segurava sua cintura com firmeza, como quem ancora. A direita traçava um caminho sinuoso, da curva dos seios até a parte interna das coxas.

E então, entre um beijo e outro, ele começou a recitar. A voz baixa, rouca, próxima demais do centro do desejo dela.

"Oh, minha grande... oh, minha pequena..." — a língua dele roçava a base dos seios enquanto a frase caía quente sobre a pele. Fernanda arfou. — "...A minha grande obsessão..."

A cada verso, a boca dele mergulhava mais fundo. Beijava, lambia, mordia. As pernas dela se abriram por reflexo. Walter estava ali, provocando cada ponto com devoção e precisão.

"... Minha Honey Baby..." — sussurrou contra a pele da virilha, deixando um beijo úmido logo abaixo da calcinha de renda. A voz dele já era quase um gemido.

Fernanda sentiu a vertigem. O corpo dela inteiro pulsava em resposta. Os olhos semicerrados, a boca entreaberta, o peito subindo e descendo com força. O nome, aquele nome, dito assim — lento, denso, enfeitiçado — era como uma linha que a puxava ainda mais para ele.

Walter subiu de novo, como se quisesse vê-la perder o fôlego. Deitou-se sobre ela com controle e reverência. Os corpos colados, pele com pele, respiração com respiração. Os olhos dele a encontraram, e por um segundo, o mundo cessou.

Apenas os dois. Apenas aquele quarto. Aquela noite.

A voz dele veio como um encantamento, sussurrada direto no ouvido dela:

Minha Honey Baby...

Fernanda fechou os olhos por um instante. Sentiu a alma derreter entre as costelas. Quando os abriu de novo, o mundo havia mudado.

Sua Honey Baby… — respondeu, num fio de voz.

Era uma confissão. Uma rendição. Um pacto renovado ali, naquela cama, naquela entrega. Ele a beijou como quem agradece. Como quem promete. E então, a mão dele desceu de novo, lenta e certa, até o ventre dela.

Walter encontrou a umidade entre as pernas. Quente. Viva. E sorriu. Não um sorriso qualquer — era aquele sorriso. O sorriso canalha, faminto, que ela sempre soube que existia ali, mas que agora vinha carregado de reverência e posse. Com delicadeza cruel, ele afastou a calcinha de renda.

Os dedos deslizaram por entre os lábios dela, como se já pertencessem àquele lugar. Primeiro suaves, depois mais firmes. Circularam. Pressionaram. Ela se esfregou contra ele sem perceber, era um gesto instintivo, primitivo, buscando mais. Tudo.

Walter não tirou os olhos dela.

— Olha pra mim. — disse, com firmeza, o desejo vibrando na voz.

Ela abriu os olhos. E o viu. Viu quando ele retirou os dedos de dentro dela. Estavam úmidos, reluzentes. E então, com a precisão de um rito, Walter levou os dedos à própria boca.

Provou.

Devagar.

Como quem saboreia um vinho raro, uma fruta proibida, um segredo íntimo demais para ser dividido.

— Você é deliciosa. — murmurou, os olhos cravados nela, intensos, escuros. — E eu mal posso esperar pra sentir você gozar na minha boca.

Fernanda arfou. E soube, com o corpo inteiro: ela não pertencia mais a si mesma. Já estava entregue. Ela era dele. E ele sabia. Sem hesitação, ele desceu com firmeza e precisão, tirando a calcinha de renda com um gesto ágil. Os dedos longos deslizaram pelas coxas dela, puxando o tecido com lentidão apenas o suficiente para fazê-la arfar. Quando a peça se desprendeu por completo, ele a deixou ao lado da cama, como quem deixa uma promessa pendurada no ar.

Ela fechou os olhos por um segundo. Agradeceu mentalmente por ter feito a depilação dois dias antes. A ideia de estar completamente entregue, limpa, nua e pronta deixava tudo ainda mais intenso.

Walter se acomodou entre suas pernas com uma reverência quase religiosa. Depositou beijos lentos na parte interna das coxas, provocando com lábios quentes e respiração pesada. A ponta do nariz dele roçou a pele sensível da intimidade já úmida, e ela estremeceu.

Ele inspirou. Fundo. Como se quisesse gravar o cheiro dela no corpo.

— Você é a mulher mais cheirosa do mundo... — murmurou, com a voz carregada, quente, e as pálpebras pesadas de desejo.

Antes que Fernanda pudesse sequer processar o que ele dizia, sentiu a língua quente invadindo-a, sem anúncio, sem trégua. Ela arqueou as costas, um gemido alto e irreprimível escapando da garganta.

— Isso — ele disse, a voz rouca entre um movimento e outro, os lábios ainda nela. — Geme mesmo. Cada som seu é meu. Cada prazer seu é meu.

— Filho da mãe... — ela praguejou, num fio entre o riso e o desespero. — Você é um desgraçado...!

— Sou o desgraçado que te deixou toda molhada... — sussurrou com ironia suja, devota, mordendo a parte interna da coxa dela com carinho impiedoso — sem nem ter tocado direto em você. Imagina quando eu tocar como você quer.

As investidas agora vinham com ritmo calculado. Longas. Lentas. Precisamente onde ela mais precisava. A língua dele escrevia sobre ela um idioma feito só dos dois. Cada lamber, cada pequena sucção, cada pausa era feita para levá-la à beira do colapso — e segurá-la ali. A respiração dela vinha em ondas. O corpo inteiro vibrava como corda tensa, prestes a arrebentar.

Ele já havia perdido a conta de quantas vezes o nome dele escapou da boca dela. Às vezes como prece, às vezes como ameaça. E aquilo... aquilo o deixava embriagado. Ele estava amando levá-la ao limite. Amando vê-la desmontar. Como se quisesse testá-la, de fato descobrir até onde o corpo dela aguentaria, enfiou dois dedos com firmeza dentro dela. Quentes. Molhados. A reação foi instantânea.

— Porra... — ela começou, mas o grito virou gemido no mesmo instante. Os quadris se ergueram, buscando mais.

Ele sentiu. Sentiu como ela era apertada, como as paredes dela o sugavam com uma urgência quase feroz. E gemeu também, contra a pele sensível, o som abafado pela boca entre as pernas dela. Já imaginava o membro rijo e duro deslizando sem dó dentro dela.  Movimentava os dedos com precisão, a língua em sincronia, ora circulando, ora sugando, ora apenas pairando como ameaça.

Fernanda já não era mais pensamento. Era instinto. Quando ela olhou para baixo, o viu. Walter ali, entre as pernas dela. Os olhos cravados nos dela. A boca devota na sua intimidade. Aquilo foi o gatilho.

— Walter... por favor ... — gemeu, implorando.

O corpo dela desabou com força. O orgasmo veio como um tsunami, profundo, quente, implacável. Ela gritou o nome dele como se o mundo estivesse acabando e ao mesmo tempo começando de novo. As pernas fecharam instintivamente ao redor da cabeça dele, travando nele uma chave de coxa involuntária. Os músculos todos tremiam.

Ele não recuou. Apertou os quadris dela com as mãos grandes, segurando-a firme. Como se aquele lugar entre as pernas dela fosse altar, casa, céu e inferno — e ele quisesse morar lá. Queria vê-la se desmoronar por inteiro. Só pra reerguê-la depois. E então, continuou ali. Sugando. Lento. Profundo. Prolongando. Esticando o prazer até o limite.

O corpo dela ainda tremia e arfava, os olhos semicerrados, como quem tentava voltar para o próprio eixo. Walter subiu devagar, os movimentos suaves, como quem retorna de uma peregrinação íntima. E, ao encontrá-la, beijou-a. Um beijo morno, denso, quase reverente.

— Além de ser a mulher mais cheirosa do mundo… — murmurou contra os lábios dela, com aquela rouquidão carregada de desejo — você é deliciosamente saborosa.

Fernanda soltou uma risada, ainda trôpega, ainda embriagada:

— Você chupa tão bem...

Ele mordeu o sorriso, aquele sorriso canalha que sempre carregava algo de arte e guerra, e respondeu baixo:

— Eu sabia que você ia se render a mim. Que iria implorar e que ainda vai.

Ela arfou de novo. O calor voltou com força. Viu quando ele se afastou só o suficiente para tirar a calça preta de alfaiataria. O som do zíper soou como um feitiço sendo desfeito. O membro dele marcava com força contra a cueca branca. A visão fez o ventre dela contrair em expectativa. E então ele pegou o preservativo na mesinha de cabeceira.  Rasgou a embalagem com os dentes, sem pressa. Com a sensualidade de quem sabe que está sendo observado.

Tirou a cueca.

Fernanda prendeu o ar.

Ele era grande. Denso. As veias salientes, a cabeça latejante. Um convite à rendição. Um leve espanto cruzou o olhar dela, algo entre surpresa e fascínio. Walter percebeu. E gostou.

— Gosta do que vê? — perguntou, a voz ainda mais rouca.

Ela assentiu devagar, os olhos cravados nele. Como se estivesse sob um feitiço.

— Você é lindo.

Ele se aproximou. O peso do corpo dele sobre o dela não era esmagador — era abrigo, era poder. Ficaram cara a cara. Fernanda levou a mão até o rosto dele, acariciando devagar. Walter segurou os quadris dela, firmemente, e se posicionou.

— Eu vou ser gentil... — sussurrou, a respiração quente contra a pele dela.

— Não. — ela rebateu com um sorriso preguiçoso e lascivo. — Eu não quero que você seja gentil.

A resposta caiu como um estalo.

Walter entrou nela com precisão. Com força. Com reverência brutal.

Fernanda arqueou o corpo. Um misto de dor e prazer a atravessou como uma corrente elétrica. Os olhos se fecharam, os lábios entreabertos deixaram escapar um gemido carregado demais pra ser descrito. Ele era muito. Ele era tudo. Preenchia. Rasgava. Curava.

— Você é tão... gostoso.. — gemeu no ouvido dele, as mãos cravadas nas costas dele.

Walter intensificou os movimentos. Os quadris marcavam um compasso punitivo, como se cada estocada dissesse: você é minha. A boca dele desceu pelo pescoço dela, depois a clavícula, deixando ali marcas brutas, assinaturas — como quem grava a própria presença num corpo que se venera.

Era lento. Preciso. Quase cruel.

E então, ela o apertou. O corpo dela reagiu, fechando em torno dele, pulsando, sugando. Walter perdeu a linha.

— Caralho, Nanda... — rosnou contra a pele dela, a voz baixa, rouca, quase dolorida de tanto desejo. — Desse jeito eu gozo só de estar dentro de você.

A mão dele subiu pelo corpo dela e repousou no pescoço. Não com violência, mas com domínio. Um gesto firme. Um selo. O polegar dele roçou de leve a lateral do queixo dela, e os olhos se encontraram.

— Olha pra mim. — ordenou com a voz rouca.

Ela abriu os olhos, as pupilas dilatadas, a boca entreaberta. O prazer fazia o corpo dela pulsar. A alma também.

— Isso. Deixa eu te ver assim... — Walter murmurou, com o queixo tenso, o olhar ardendo. — Tão minha que nem se reconhece mais.

Fernanda arfou. Um som sem filtro escapou da garganta.

— Eu sou sua... — sussurrou, com a voz rouca, quebrada, carregada de entrega.

Walter sorriu com o canto da boca, aquele meio sorriso escuro que dizia mais do que qualquer palavra.

— Boa menina... — disse com reverência e perversão. — Minha menina.

Ele a encarava com os olhos escurecidos, a boca entreaberta, como se tudo em Walter estivesse à beira de um colapso contido. Ela mordeu os lábios e gemeu, provocando ainda mais, e então ele os tomou com os dentes — uma mordida firme, sem romper, mas que dizia tudo. Um pedido e uma punição ao mesmo tempo.

E aí ela virou.

Bruscamente.

Subiu sobre ele com a precisão de que sabe exatamente o que quer. Os cabelos soltos caíram sobre os ombros, selvagens, como se o corpo dela dissesse: eu sou o caos que você deseja. Walter recostou-se nos travesseiros, os braços atrás da cabeça, deixando que ela o dominasse — por ora. Os olhos não desgrudavam dela.

E então ele disse, num sussurro rouco, devastado:

— Porra, Fernanda...

Ela, em cima dele, lembrava uma deusa antiga. Um templo vivo. Algo entre o sagrado e o ímpio. Uma visão que ele já cultuava em segredo havia anos, mas que agora, ali, ganhava carne, som, cheiro, ritmo. Walter não sabia se adorava ou se implorava.

Os cabelos dela caiam rebeldes sobre os ombros, emoldurando os seios, a boca entreaberta, o ventre pulsando sobre o dele. Cavalgar nunca fora verbo tão exato. Ela o conduzia, não apenas no corpo, mas no tempo, no desejo, na vertigem.

E então, com a voz embargada de prazer, ela sussurrou: — Diz pra mim... que eu sou sua Honey Baby...

Walter a encarou como se tivesse sido atingido. Ele puxou a respiração com força, os olhos quase suplicantes diante da visão dela.

— Você é minha. Minha Honey Baby. Minha perdição favorita.

O sorriso que ela lançou foi lento, quase perigoso.

— E você gosta quando eu sou assim? — provocou, rebolando mais fundo, sentindo o membro dele estremecer dentro dela.

A resposta veio num sussurro bruto, arrastado pelos dentes cerrados: — Gosto... — ele arfou, as mãos cravando na pele dela. — Você é tão... deliciosamente suja, Fernanda. Tão safada, tão minha...

Devagar. Preciso. Como se tivesse ensaiado aquele movimento a vida toda. As mãos dele, que até então estavam imóveis, subiram pelos quadris dela, depois pelas costas, até os seios. Apertou com reverência, mas com uma força que beirava o descontrole. Os olhos dele diziam tudo: Admiração. Adoração. Fome.

Ele ficou na altura do busto dela, o rosto colado na clavícula dela, e ela cavalgava com um domínio crescente, mais fundo, mais certa de si. Os olhos semicerrados, a boca entreaberta num sopro contínuo de prazer e poder. De repente, segurou os cabelos dele com firmeza — puxando-o para si, para perto, para dentro — e, em seguida, as unhas desceram pelas costas dele, deixando um rastro que misturava dor e deleite.

Walter gemeu baixo, um som rouco, primitivo, e em resposta suas mãos deslizaram pelas costas dela com reverência e fome. Os dedos traçaram o caminho da espinha como quem lê uma escritura sagrada. Então ele inclinou o rosto e abocanhou um dos seios com devoção feroz, alternando beijos úmidos e mordidas delicadas.

Foi o bastante para que Fernanda tremesse por inteira, um arrepio súbito tomando conta de sua pele. Ela se curvou sobre ele, quase colada, a respiração descompassada, e então, com uma força carregada de urgência e entrega, cavalgou mais fundo, num movimento lento e devastador.

— Meu amor...

Ele a envolveu com os braços, os olhos marejados de prazer, e arfou:

— Fernanda... — ele sussurrou contra o pescoço dela, como quem reza.

No instante seguinte, os dois foram tragados juntos pelo clímax — intenso, úmido, indescritível. Ela estremeceu inteira, o corpo arqueado, a cabeça lançada para trás, enquanto gemia o nome dele entre os dentes. Ele veio logo depois, apertando-a contra si, como se pudesse fundi-la ao próprio corpo, os olhos cerrados, a boca entreaberta, o nome dela escapando como prece.

Silêncio. Apenas o som dos corações em disparada, o ofegar entrelaçado, o calor.

Ela caiu sobre ele, exausta, os cabelos desfeitos colando-se à pele suada. Ele a recebeu como quem guarda um segredo precioso, uma relíquia viva. E por um longo momento, não disseram nada. Só respiraram juntos.

 


 

O quarto estava mergulhado num silêncio morno, quebrado apenas pela respiração ainda pesada dos dois. Fernanda continuava deitada sobre ele, o corpo ainda suado colado ao dele, como se o mundo lá fora tivesse deixado de existir.

Ela começou a distribuir beijos pelo peitoral de Walter — lentos, suaves, quase distraídos — como quem saboreia um pedaço de eternidade. Cada beijo parecia carregar uma pequena declaração sem palavras. Como se quisesse agradecer com os lábios tudo o que não sabia dizer com as palavras.

Walter, de olhos semicerrados, sentiu os lábios dela como pequenas orações. Acariciou os cabelos longos e desgrenhados dela com os dedos, num gesto quase devocional. Quando ela ergueu o rosto, os olhares se encontraram. Havia algo desarmado nos olhos castanhos dela,  um brilho terno, infantil até. E as bochechas ainda coradas pela intensidade de tudo. Walter sorriu, e os dedos foram do cabelo para o rosto dela, traçando a linha do queixo até a maçã do rosto, com cuidado.

— Como você está? — sussurrou ele, com um tom de ternura embriagada.

Fernanda mordeu o lábio, rindo baixinho.

— Deliciosamente devorada… e dolorida — confessou, maliciosa.

Walter soltou uma risada baixa, aquele tipo de som que só ela conseguia arrancar dele.

— E você? — devolveu ela, com o nariz roçando o queixo dele.

Ele a olhou como se ainda não acreditasse que ela estava ali.

— Deliciosamente servido. E acabado.

Riram juntos, em sintonia, como quem compartilha não apenas um momento, mas uma história inteira. Ela subiu um pouco para alcançar sua boca e lhe deu um beijo casto, quase reverente. Não havia urgência ali, só ternura. O tipo de ternura que vem depois do caos. Fernanda repousou de novo a cabeça sobre o peito dele e, sem pensar, deixou escapar:

— Sabe, a gente devia fazer isso mais vezes...

— Isso o quê? – Ele provocou, com um sorriso.

— Fugir. — respondeu, quase como um segredo. — Ir embora. Só nós dois. Dar fuga em todo mundo.

O silêncio se instalou por um segundo. Mas era um silêncio bom, de imaginação acesa. Walter a olhou de verdade, com um tipo de atenção que fazia tudo ao redor sumir. E então assentiu, como quem aceita a proposta mais séria da noite.

— E para onde exatamente seria a nossa fuga?

Ela virou o rosto, deitando a bochecha no peito dele, olhando para o teto como se já enxergasse o cenário.

— Para uma casa de praia. Isolada. Apenas nós dois.

— Com uma rede. Uma brisa boa. Vinho branco. E você andando de camisola de seda pela casa, me tentando o tempo inteiro... – ele completou, com a voz baixa.

— E você fingindo que está escrevendo, mas só me olhando — ela riu, deslizando os dedos distraidamente pelo abdômen dele.

— Exatamente. A gente só comendo do bom e do melhor... e fazendo amor sem parar.

— Em Paraty? — ela sugeriu.

— Ou na Patagônia... bem longe, com frio, lareira, cobertas e o seu pé gelado tentando se enfiar no meu peito.

— Ou nas Maldivas — ela riu.

— Com água transparente, mar quente... e eu dizendo que vou te ensinar a nadar, mas na verdade só quero te agarrar debaixo d’água.

— Canalha — ela sussurrou, sorrindo.

— Seu canalha — ele corrigiu, com a voz embriagada de carinho.

O silêncio que se seguiu não foi desconfortável. Era um silêncio povoado por imagens — o som de uma rede rangendo ao vento, o toque da brisa salgada, o cheiro de vinho branco em uma taça de cristal. Mas então, Fernanda piscou devagar. E o pensamento veio. Um corte seco no devaneio doce.

A fantasia era boa demais.

Boa demais pra ser real.

Ela virou o rosto e encarou o teto por alguns segundos, como se o gesto pudesse responder o que se formava dentro dela. Walter ainda acariciava os cabelos dela, distraído, com um sorriso preguiçoso. Mas ela já não estava exatamente ali. Seu corpo ainda repousava sobre o dele, mas a mente… a mente começava a construir barreiras. A questionar.

Eles eram colegas. Amigos, por um tempo. Cúmplices silenciosos. E agora?

Agora, depois do jantar íntimo a luz de velas, da sobremesa carregada de símbolos, da dança, do quarto à meia-luz, do sexo que parecia uma reza profana... O que eles eram?

Fernanda se sentia inteira, mas ao mesmo tempo, no limite. Porque ela sabia quem era. Sabia de onde vinha. E ele também. Walter era tudo aquilo: o sobrenome, o mundo, o legado. E ela... bem, ela era uma mulher talentosa com raízes que nem sempre cabiam nesses salões silenciosos e elegantes onde ele se movia como se tivesse nascido ali.

Um redemoinho de sensações a atravessou. Desejo, medo, ternura, realidade. Ela não queria estragar aquele momento. Mas também não sabia fingir. Walter percebeu o afastamento. Os olhos dela haviam escurecido, não pelo prazer, mas por outro tipo de densidade.

— Nanda... — ele murmurou, tocando de leve o rosto dela. — Em que lugar você foi agora?

Ela sorriu, mas foi um sorriso breve, enviesado.

— Eu só estava pensando... — disse, tentando soar leve, mas ele sabia. Ele sempre sabia. — Depois de tudo que aconteceu, o que nós somos?

Walter a encarou por um segundo. Só um segundo. Mas foi o suficiente para ele pousar a mão inteira no rosto dela, o polegar desenhando o contorno da maçã do rosto, como quem queria devolver o foco.

— Eu sei o que eu sou. — disse, com uma firmeza serena. — Um homem completamente encantado. Apaixonado demais para fingir que isso foi só uma noite.

Fernanda prendeu a respiração. Ele prosseguiu, ainda mais baixo:

— E ser "ficante" nunca foi a minha linha. Eu gosto de intensidade, de construção. E com você... — ele deu uma pausa, os olhos cravados nos dela — ...com você, eu quero tudo. Então, se você deixar... eu quero ser seu namorado.

Ela arqueou as sobrancelhas, num misto de surpresa e ternura. Aquela palavra, dita por ele com tanta naturalidade, parecia quase antiga. Quase delicada demais para o cenário todo. E, por isso mesmo, tão linda.

— Você quer ser minha namorada? — perguntou, sem cerimônia. Sem performance.

Fernanda não respondeu de imediato. Mas os olhos dela suavizaram. As mãos subiram e tocaram o rosto dele com cuidado.

— Eu quero. Eu quero ser sua namorada. — disse, por fim, num sussurro. — Mas você sabe... eu sou difícil.

Walter riu, o som baixo e cheio de ternura.

— E eu sou paciente. Obcecadamente paciente. Ainda mais quando vale tanto a pena.

Ele a puxou para mais perto, aninhando Fernanda em seus braços. Ela se encaixou ali com naturalidade, o rosto no peito dele, o corpo ainda quente, a alma ainda exposta. Ele inspirou fundo, afundando o nariz nos cabelos dela. E sussurrou contra os fios, com a voz quase sonâmbula:

— Minha menina...

Disse como quem recita um mantra antigo, como se, ao nomeá-la assim, pudesse selar aquela realidade para sempre. Fernanda sorriu. Um sorriso inteiro. Pleno. E, pela primeira vez, sentiu que podia parar de fugir. A angústia, o medo e a incerteza podiam esperar. Ela se sentia segura. A única coisa que importava naquele instante era a presença dele. O calor, o toque, o silêncio compartilhado. A segurança de estar exatamente onde devia estar: nos braços dele.

Notes:

Eu sou maluca por comentários... :)
Deixe o seu feedback!

Chapter 9: IX

Notes:

Boa noitinha, pessoal! :)

* Demorei um pouco para atualizar devido à carga de trabalho intensa nas últimas semanas.
* Gostaria de agradecer pela paciência de sempre.
* Agradeço imensamente a cada comentário, curtida e leitura silenciosa. Vocês fazem esse universo valer a pena.
* Espero que este capítulo toque vocês como ele me tocou ao escrevê-lo.

Boa leitura! Até o próximo. <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Sugestões de música para esse capítulo:

All I need - Radiohead

Chão de Giz - Zé Ramalho

Don't look back in anger - Oasis

Faz parte do meu show - Cazuza


 

IX

(PRESENTE)

 

CHATEAU MARMONT – 03:15 A.M – DIA DO OSCAR - 2025

Passava das três da manhã quando Walter acordou atordoado sem saber por quê.

O quarto ainda parecia respirar com eles. As paredes absorviam o eco do que tinha acontecido há poucas horas, como se o silêncio ali dentro tivesse testemunhado tudo: as mãos, os olhares, os sussurros, a entrega. A luz amarelada do abajur, agora desligado, repousava ainda em seus olhos como uma lembrança morna.  

O corpo dele ainda estava quente sob os lençóis desfeitos, mas o coração fora do eixo — como se algo o tivesse puxado de volta à superfície sem aviso. Ficou ali, deitado, os olhos fixos no teto escuro, tentando entender o que o despertara com tanta urgência.

A lembrança vinha em flashes, como negativos queimados de um filme mal revelado.

Areia fina.
Uma faixa branca de renda e algodão se movendo com o vento.
O dourado de um adorno trançado nos cabelos dela.

Aquela expressão entre menina e mulher — entre o que ele conheceu em 96 e o que temia perder agora.

Copacabana. Mas muda. Vazia. Um mundo afogado de sol e silêncio.

Ela andava à frente, rindo com os olhos, mas sem som. E ele a chamava — ou achava que chamava. O nome não saía. O som não existia. As pernas não obedeciam. A distância entre os dois era uma linha tênue, impossível de cruzar. E então ela virava o rosto — não em recusa, mas em despedida. E sumia.

Assim.
Como se nunca tivesse estado ali.

Walter sentiu a ausência como se fosse física. Como se um pedaço dele tivesse sido deixado naquela praia que não era praia, mas metáfora. A angústia ficou grudada no peito mesmo depois que abriu os olhos. Era o medo antigo, o mesmo de 97, o mesmo de todos os anos seguintes: o medo de não conseguir alcançá-la de novo.

Ele virou o rosto. E ele a viu.

Ela estava ali.

Fernanda dormia sobre o travesseiro, mas com o braço esticado sobre o peito dele, um gesto inconsciente, como se o quisesse preso ali. O rosto meio escondido entre o próprio ombro e os lençóis, os cabelos soltos, caídos em ondas largas. A respiração vinha lenta, profunda, o corpo em um abandono que só se tem ao lado de quem se confia ou de quem se deseja demais para resistir. Ela dormia intensamente. Como quem finalmente podia.

E mesmo dormindo, ainda era ela. Feroz. Linda. Indomada até no abandono.

Walter não se moveu. Só a observou. Como se cada detalhe dela fosse raro demais para desviar os olhos. O jeito como a bochecha corada repousava sobre o travesseiro, o leve vinco entre as sobrancelhas — mesmo em descanso, ela parecia carregar o mundo. E o mundo era dela.

Havia uma espécie de vertigem tranquila em vê-la assim. Como se aquela imagem fosse delicada demais para ser real. Como se um único movimento brusco pudesse acordá-la — e acabar com tudo. E então, o pensamento veio nítido como água cristalina:

Eles não estariam ali se não fosse por ela.

Fernanda.

Se ela não tivesse dito sim à proposta de interpretar Eunice Paiva. Se ela não tivesse aceitado aquele café em janeiro de 2022, depois de quase nove anos inteiros de silêncio. A última vez que tinham se olhado de frente, sem um oceano de formalidade no meio, havia sido em 2013, no lançamento do livro dela — e antes disso, nem mesmo ele sabia ser preciso. Talvez 1999. Na casa dos Montenegro-Torres. O dia em que, mesmo sem palavras, soube que a havia perdido por completo.

Aquele dia.

Desde então, cada reencontro tinha sido um campo minado. Uma guerra fria de silêncios e intenções. Palavras calculadas. Olhares contidos. Um teatro silencioso onde ambos sabiam o papel do outro, mas recusavam-se a entregar o script.

Até aquele dia em 2021. Exibição de Terra Estrangeira. Comemoração dos 25 anos.

Se ela não tivesse aceitado ouvir — e depois, falar. Se não tivesse olhado para ele com aqueles olhos de dúvida e riso contido, os mesmos de 1995, e dito: "Vamos ver no que isso dá, Walter."

Foi em 2022 que tudo recomeçou. Primeiro nos e-mails formais demais para o conteúdo que traziam. Depois no set. Nos bastidores. Nos silêncios mais longos. Nos toques que quase aconteciam. No jeito como ela passava por ele, e ele a observava ir, como se estivesse assistindo a uma cena que já conhecia, mas que ainda o prendia. E então, vieram os olhares, eles duravam mais. As instruções sussurradas de forma íntima como se fosse um segredo entre eles dois.  Os silêncios, também.

Ela tinha aquele jeito de rir das próprias inseguranças, de esticar as palavras quando estava sendo cínica, e de ficar séria demais quando se protegia. E ele... ele conhecia cada uma dessas defesas. Porque já tinha estado lá antes. O tempo não matou o que havia entre eles. Apenas deixado quieto. Adormecido sob um cobertor de normalidade. E agora — agora, estava tudo acordado outra vez. De novo. Com força.

Ela não sabia o que significava estar ali. Mas ele sabia.

Sabia o quanto tinha andado para voltar exatamente até esse momento. Sabia o peso de tudo o que não foi dito, e o valor de tudo o que havia sido sentido. O corpo dela ali, entregue, adormecido sobre o dele, era uma espécie de retorno. De cura. De promessa.  E então, no meio desse pensamento, aconteceu.

Um som baixo, entrecortado, quase um sussurro vindo dos sonhos:

— ...Walter...

O nome dele.

Ele sorriu. Um daqueles sorrisos pequenos, contidos. Lentamente, levou a mão até os cabelos dela e os afagou com ternura, como se fosse capaz de protegê-la mesmo no sono. Inclinou-se e depositou um beijo leve na testa dela. Um beijo sem urgência. Apenas presença. Um gesto de quem cuida. De quem fica.

“Eu te ouvi. E estou aqui.”

Ela não sabia, mas ele sabia.

Sabia que aquilo era maior do que qualquer noite. Sabia que o corpo dela, ali, dormindo sobre o dele, ao lado dele, era uma forma de volta. De recomeço. E então, pela primeira vez naquela noite, Walter permitiu-se fechar os olhos. E dormir.

 


 

O sonho não começou como um pesadelo.

O calor do corpo dele ainda a envolvia. O toque, o cheiro, o ritmo. Eles se moviam como se fossem um. Carne e Fôlego, Desejo e Vertigem. A cama não existia mais. Era como flutuar. Fernanda sentia os dedos de Walter apertando sua cintura com firmeza, o som abafado dos gemidos no ouvido, a boca dele encontrando a dela em intervalos vorazes. Tudo era intenso, íntimo, vivo.

A respiração dele contra seu pescoço. O sussurro arrastado de “Honey Baby” ainda reverberando em sua pele. Como se dissesse: é você. Só você.

Mas então algo se deslocou.

A expressão dele. Primeiro sutil, depois evidente. O prazer deu lugar à indiferença. Depois ao desprezo. Walter parou. Os olhos, antes escuros de desejo, agora estavam frios. Avaliadores. Cheios de julgamento.

Walter a olhava de cima como quem avalia um dano irreversível. O peso do corpo dele já não era abrigo — era uma sentença. E então ele se afastou. Nu. Implacável. Como se aquilo tudo: o toque, o amor, o prazer nunca tivessem existido.

Fernanda piscou.

O cenário mudou.

Estava no palco do Dolby Theatre. Sozinha.

O foco de um holofote branco recaía sobre ela. Duro, clínico.

O teatro que sempre imaginara repleto de vozes, aplausos e sonhos, agora estava vazio. Três mil e quatrocentos lugares e apenas um homem na plateia assistindo atentamente a tudo: Walter.

Só ele.

Porque só o olhar dele importava.

As luzes recaíam sobre ela, cruéis. Vestida de preto, os cabelos impecáveis, as mãos trêmulas. E então, a voz do apresentador:

— E o Oscar de Melhor Atriz vai para...

Não foi o nome dela.

Ela não ganhou. Eles não ganharam. Os três prêmios escorreram como areia entre os dedos. E então, ela olhou para a única figura que assistia.

Ele se levantou da cadeira, as mãos fincadas nos bolsos, e então, a encarou com aquele silêncio que machucava mais que qualquer grito. Não era aquele silêncio reconfortante que emanava dele. Era o silêncio de dilacerava. O coração de Fernanda latejava no peito como um tambor descompassado.

Tentou se explicar. Tentou falar qualquer coisa. Mas a boca não funcionava. Nada saía. Só ar. Angústia. Culpa. Ela caminhou até ele, tentando agarrar a manga do paletó. Mas Walter não se virou. E então, quando finalmente a olhou – havia uma fúria nos olhos dele.

— Você é um fracasso.

O chão sob os pés dela cedeu.

— Eu nunca deveria ter te escolhido.

As palavras caíram como chumbo no teatro vazio. Eram lâminas. Dirigidas à parte mais sensível. Aquela que ainda o amava.

Cortou-se para o saguão do teatro. Ela corria numa tentativa falha de alcançá-lo, mas Walter não estava mais ali.  As luzes estouravam no fundo, tudo era borrão e som distorcido. Todas as pessoas que ela amava – os filhos, a mãe, Andrucha, os amigos – todos iam embora, se afastando em silêncio. Sumindo. Sumindo. Ela gritava. Ou tentava. Nenhum som saía. A garganta fechada. A alma em carne viva.

Sozinha.

E então, algo mudou.

De novo. 

O inconsciente dela — exausto, fragmentado — procurou abrigo. E arrastou Fernanda para onde tudo tinha começado. Ou, talvez, para onde tudo poderia ter ficado. A última parada do sonho.

A praia de Copacabana.

Ela se revelava como se emergisse de um sonho antigo.

Mas havia algo de errado. Muito errado. O mar estava revoltado de um jeito que não combinava com a lembrança. O tempo, distorcido. O ar, espesso demais. Como se o mundo estivesse num intervalo entre dois colapsos.

Fernanda reconheceu aquele lugar. Não só pelo espaço físico, mas pelo tempo.
Era ali. Nas gravações de Terra Estrangeira.  Era onde os dois se sentavam entre uma cena e outra, os pés descalços na areia, dividindo um Marlboro Gold, os olhos no Atlântico e os silêncios compartilhados como quem constrói um abrigo. Foi onde tudo começou. Onde ela aprendeu a amá-lo sem declarar. Onde os dois, mesmo sem nomear, sabiam o que aquilo significava. Onde nasceu o laço que nem os anos, nem a distância, nem as escolhas conseguiram cortar.

E era exatamente por isso que estar ali, agora, a feria.

Ela caminhou em direção à figura sentada na areia.

Walter.

De costas, a mesma postura. Os cotovelos apoiados nos joelhos. A cabeça ligeiramente baixa. Os ombros pesados, como se carregassem um tempo inteiro. A camisa branca amassada. Os pés enterrados na areia como âncoras.

A cada passo que dava, ela sentia o chão afundar. A areia a prendia. O vento cortava a pele. O ar parecia espesso demais para entrar pelos pulmões. Ela se aproximou. Sentou-se ao lado dele. Walter não se virou. Não a olhou. Continuou com os olhos no mar, as mãos unidas entre os joelhos, a postura imóvel — como quem carrega um peso que não quer dividir.

Durante segundos que pareciam muitos, ela ficou ali, observando o perfil dele contra o mar escuro. Esperando algum gesto. Um olhar. Um respiro de afeto.

Mas havia um muro. Invisível. Inquebrável.

O silêncio entre eles era outro. Fernanda tentou buscar aquele silêncio de antes. Aquele que acolhia. Mas o silêncio agora era outro. Era o do desprezo. Ela não sabia o que dizer, ou se devia dizer. O medo que sempre a acompanhou, quieto, encolhido no fundo, agora subia pelas veias feito febre. O medo de ser rejeitada. O medo de não ser suficiente. O medo de ser vista e, ainda assim, deixada para trás.

Com uma coragem que só existe nos sonhos — ou nos delírios — ela estendeu a mão. Tocou o rosto dele, como tantas vezes antes. Ela conhecia aquela pele. O desenho da barba por fazer.
A temperatura exata da testa dele, sempre um pouco mais quente que a dela.

Mas Walter não se inclinou.
Não fechou os olhos.

Virou o rosto.
Devagar. Como quem obedece a uma cena que já foi escrita.

E quando os olhos dele encontraram os dela, Fernanda soube que estava no limite do sonho.
Não havia mais chão. Aqueles olhos — que tantas vezes a acalmaram sem esforço algum — agora a perfuravam com uma clareza brutal.

— Você foi a pior coisa que me aconteceu.

As palavras vieram com uma calma que era pior do que qualquer fúria. Sem ênfase. Sem hesitação. Como uma verdade dita tarde demais. Ela recuou a mão e não sentiu os dedos.
O sangue dela parecia ter parado de circular. Os olhos se encheram antes que ela pudesse conter.
Ela gemeu o nome dele.

— Walter... — sussurrou como quem ainda acredita que ainda há salvação.

Ele não respondeu.
Nem piscou.

E aos poucos, foi desaparecendo.

Não em explosão. Mas como as coisas que se apagam por não serem mais lembradas. O mar rugia, agora mais perto. A dor explodiu dentro dela, crua e silenciosa. O mundo tremeu. E então, o som.

O telefone.

O barulho tecnológico e estridente tinha trazido ela de volta ao estado de consciência.

Um toque agudo. Real demais. Cruel demais. O mundo desabou, mas os olhos se abriram.

Fernanda despertou sobressaltada. O corpo coberto por uma camada fina de suor. O coração disparado, a respiração entrecortada. Tudo em volta parecia um borrão até que reconheceu a textura da luz. O teto da suíte. O cheiro de frescor e limpeza exalando no quarto.

Walter.

A voz dele soava firme, mas distante — preenchia o espaço como uma âncora. Estava de pé, próximo à sala da suíte, falando ao telefone com um tom consideravelmente baixo. Ela piscou. Olhou o relógio na mesa de cabeceira.

7h30 da manhã.

— Isso. Toda a equipe está aqui.  — ele dizia. A voz segura, pausada. — Às 19:30. No Chateau Marmont. Carro para dois passageiros. Confirmo. Obrigada!

Ela ficou imóvel por alguns segundos. O pânico ainda grudado nos ossos. O eco do pesadelo se misturando com o som real da voz dele.

Era como 1996.

A mesma angústia, o mesmo silêncio que precedia o pior.

Ela se levantou num ímpeto. O chão parecia líquido sob os pés. Caminhou até a porta da sala da suíte e parou. O coração ainda insistia em correr mais rápido do que o necessário. Ali, poucos metros à frente, estava ele. Walter. De costas. Vestido apenas com a calça de pijama cinza, o celular ainda na mão. A postura relaxada, mas a energia alerta. Ele percebeu.

Sentiu.

Virou-se devagar, como se já soubesse que ela estava ali. E quando os olhos se encontraram, o tempo congelou — um segundo só. E então, ele a encontrou, parada, estática na porta com a respiração descompassada.

Os olhos dela — grandes, escuros, assustados.

Ele entendeu na hora.

Não era só a presença dela ali. Era a memória.

O The Royal Horseguards. Em 1996. A ligação. O medo.

Walter desligou com um gesto suave, o celular ainda em mãos. Os olhos presos nela.  A expressão dele mudou. Tornou-se outra. Mais terna. Mais cuidadosa. Como se estivesse pisando em terreno antigo e delicado.

— Bom dia, carinho... — disse, com a voz baixa, macia. Um esforço consciente para não alarmá-la ainda mais.

Fernanda não respondeu de imediato. O corpo parado, os lábios entreabertos como se buscassem ar.

— Quem era? — perguntou, a voz rouca, quase um sussurro. Ainda trêmula.

Walter caminhou na direção dela, sem pressa. Sem sustos. O tom de voz calmo, intencional.

— Eu só estava combinando a hora do carro. Para buscar a gente aqui no Château. Às 19h30. Pro Dolby Theatre. Lembra?

Ela franziu a testa, sem disfarçar a dúvida. O corpo ainda preso entre a noite e o abismo do pesadelo. Walter se aproximou mais, com uma delicadeza meticulosa. Como quem sabe exatamente onde não deve tocar. Mas tocou — a mão firme na dela, os dedos entrelaçados com os dela.

Ela franziu levemente o cenho. Como se quisesse acreditar. Como se ainda lutasse contra os resquícios do sonho. Walter viu a hesitação, e não forçou. Apenas estendeu a mão.

— Tá tudo bem, Nanda. — sussurrou. — Vem cá.

Ela, ainda ofegante, hesitou por um instante. Depois, avançou devagar. A mão dele encontrou a dela. Quente. Presente. Real.

Ele a puxou com delicadeza, como quem devolve alguém ao mundo.

— Dormiu bem? — perguntou, acariciando os cabelos dela com calma, os olhos fixos nos dela.

— Sim… — respondeu, mas era um “sim” murcho, reticente. O tipo de resposta que se dá quando se está tentando convencer mais a si mesma do que ao outro.

Walter não disse nada de imediato. Apenas a observou com a ternura silenciosa de quem conhece as entrelinhas. Então se sentou na poltrona ampla do quarto e, num gesto natural, como se fosse um hábito antigo, aninhou o corpo dela no dele. Fernanda encaixou a cabeça no ombro dele. A respiração ainda não havia voltado ao normal, mas o peito subia e descia de forma mais compassada. Ele passou a mão devagar pela perna dela, o toque cálido, tranquilizador. A outra mão acariciava os cabelos desalinhados dela com uma delicadeza quase infantil.

— Você quer me contar? — murmurou. A pergunta veio num tom gentil, sem cobrança. — Sobre o que te acordou desse jeito...

Fernanda balançou a cabeça de leve, tentando afastar o peso que ainda pulsava na base da nuca. Enterrou o rosto no pescoço dele e aspirou devagar o cheiro que pertencia a ele. Walter sorriu de leve, sentindo o gesto. Continuou acariciando a perna dela com calma, como se estivesse lembrando ao corpo dela que o perigo já tinha passado. E então, com aquela voz baixa e envolvente que ele usava quando queria trazê-la de volta pra si, sussurrou:

— Lembra que eu te contava meus pesadelos? Quando a gente namorava... por vezes acordei na sua cama, suado, murmurando coisas sem sentido... e você me ouvia com atenção, fazendo carinho em mim. Aquilo me acalmava.

Ela assentiu, com um sorriso triste no canto da boca, sem levantar os olhos. Apenas se aproximou mais dele e respirou fundo, encostando o rosto na curva do pescoço dele. Aspirou aquele cheiro — de pele, de café, de lembrança.

— Você dizia que os pesadelos ficavam menores quando a gente contava em voz alta — continuou ele, agora acariciando as costas dela, como quem tenta desenhar segurança com a ponta dos dedos. — Que nomear o monstro tirava um pouco do tamanho dele.

Fernanda fechou os olhos. Aquilo veio como uma brisa morna na espinha. E por um instante, tudo ficou em suspensão. O sonho ainda latejava no fundo, como uma contusão mal curada. Mas a voz dele, e o modo como ele dizia aquilo — sem cobrança, só presença — fez com que ela se abrisse um pouco. Um fiapo apenas.

— Sempre fui meio que uma discípula de Freud... versão tabajara — murmurou, com aquele humor fino, cansado. — Aprendi cedo que se a gente não fala, o bicho cresce. Pesadelos são como bichos domésticos, igual a gato: ainda arranha, mas dorme no pé da cama.

Walter não respondeu de imediato. Apenas a envolveu com mais firmeza, como quem entende. E espera.

— Eu sonhei que a gente não ganhava nenhuma das três estatuetas… nós voltávamos para casa de mãos vazias... — sussurrou, finalmente, sem encará-lo.

Ele não perguntou mais nada. Só acolheu. Um silêncio compreensivo.

Fernanda não contou o resto — o olhar dele no sonho, o desprezo, o abandono. Que as luzes do Dolby Theatre a expunham como uma fraude. Não conseguia. Era íntimo demais. Distorcido demais. E, de certo modo, vergonhoso. Como se a própria mente a traísse.

Mas Walter adivinhava. Não os detalhes — mas o subterrâneo.

— Se eu pudesse escolher só uma das três… — disse, enfim, com aquele tom grave, calmo, definitivo. — Eu escolheria o Oscar de Melhor Atriz.

— Por quê? — Ela perguntou. Não era uma dúvida retórica. Era quase um sussurro de criança pedindo abrigo.

— Porque você é a alma desse filme, Nanda. A força motriz... A tua entrega elevou tudo. A sutileza, os diálogos, os silêncios... O que você fez ali... — ele balançou a cabeça, como se as palavras não fossem suficientes. — Você elevou esse filme a um lugar onde só existe possibilidade de comoção. De aplauso.

Ela sentiu aquilo entrar como um bálsamo. Não só pelo elogio — mas pelo modo como ele via. Como ele sempre viu. Além da superfície. Além da performance. Walter abaixou um pouco o rosto, roçando o nariz no dela com um carinho contido. Depois completou, num tom mais baixo, quase inaudível:

— A melhor coisa que eu fiz… foi ter te escolhido. Ter te arrastado pra dentro desse furacão. Ter te trazido de volta... para mim.

Ela suspirou. Não respondeu de imediato. O silêncio que veio depois daquelas palavras não era ausência, era plenitude. Um silêncio saturado de sentido. De ternura. De tempo. O peito dela subiu e desceu devagar, como se enfim pudesse respirar. E foi só então que ela ergueu o rosto, os olhos já mais serenos, e, com um sorriso enviesado, quase maroto, sussurrou contra a pele dele:

— Vamos fingir que eu não fui sua segunda opção para viver a Eunice Paiva...

Walter parou. A expressão entre o riso contido e o alarme instantâneo.

— Fernanda... — começou.

— Não. Tudo bem. Eu tô em paz com isso. — Ela o interrompeu, fingindo mágoa teatral, mas os olhos brilhavam daquele humor ácido que sempre surgia quando ela queria provocá-lo. — Só me dói um pouco saber que não era sua primeira opção para ser a musa do seu renascimento cinematográfico.

Walter balançou a cabeça, rindo baixo, mas os olhos... os olhos eram de quem estava prestes a dizer a verdade nua. Uma verdade funda.

— Até quando você vai jogar isso na minha cara?

— Até o fim da minha vida — respondeu ela, quase sem pensar. Mas depois, ao encará-lo mais de perto, o olhar abrandou. — Talvez um pouco menos... se você disser agora, olhando nos meus olhos, que não tem mais dúvida nenhuma de que devia ter sido eu desde o começo.

Walter silenciou. E então olhou. Profundamente. Como se atravessasse não apenas o rosto dela, mas os anos todos. Os acasos. As perdas. Os retornos.

— Eu tive medo. — disse, com a voz rouca de sinceridade. — Medo de que, depois de tudo, você não quisesse mais nem trocar meia dúzia de palavras comigo. E talvez por isso... eu hesitei. Me protegi de te ouvir dizendo “não”.

Ela não piscava. Apenas o ouvia. Imóvel.

— Mas eu agradeço até hoje — ele continuou, mais baixo — a alguma força que eu não sei nomear, que naquela semana sussurrou no meu ouvido: “chama ela pra tomar um café.” Janeiro de 2022. Lembra?

Fernanda assentiu em silêncio. Lembrava. Cada detalhe. Cada batida do coração naquele café da Gávea.

— A verdade é que eu já sabia que tinha que ser você desde antes... — ele murmurou. — Desde a exibição dos 25 anos do Terra Estrangeira, em dezembro de 2021. Quando a gente assistiu de novo ao filme. Juntos. E aquela coisa me atravessou... aquela certeza. De que tudo que eu fiz depois só foi possível porque um dia você esteve ali.

Ele fez uma pausa, o olhar perdido num ponto além da memória — como se ainda enxergasse as luzes da sala de cinema se acendendo.

— Foi depois da exibição... — continuou, com a voz baixa, aveludada de lembrança — quando as luzes voltaram e você veio na minha direção. A gente se abraçou. E... eu não tava preparado para aquele gesto.

A voz falhou por um instante. Não de emoção artificial, mas daquela que vem do corpo, dos ossos, daquilo que se sente sem precisar entender.

— Foi um choque. Mas não de susto. De... reanimação. Como se, por um segundo, meu corpo tivesse sido religado a alguma energia vital que eu nem lembrava mais que existia. Um abraço de segundos. Mas eu senti tudo ali. Senti 95,96,97. Senti o que a gente foi, o que não soubemos ser, e o que ainda podia ser. E, mais do que tudo, senti que a minha vida inteira fazia sentido naquele toque.

Ele a olhava agora como quem ainda habitava aquele exato instante. Como se o calor daquele abraço continuasse vibrando sob a pele, em alguma parte do corpo que nunca esfriou.

— E eu soube. — completou, num sussurro morno, definitivo. — Soube que não era só sobre o filme. Era sobre reencontrar o que me fez humano. E sobre ter coragem, um mês depois, de finalmente te chamar pra aquele café.

Walter ainda a olhava como se todo o resto do mundo tivesse sumido. Como se só existisse ela, ali, naquela respiração entrelaçada.

— Obrigado por ter aceitado. — murmurou, tocando o rosto dela com a ponta dos dedos, como se ainda precisasse confirmar que ela era real. — Por ter confiado. Por ter voltado.

Fernanda permaneceu em silêncio por um instante longo. O tipo de silêncio que pesa mais que palavras. Depois respirou fundo. Não havia pressa em sua fala — apenas a cadência lenta de quem pisa num território antigo, e ainda assim, sagrado.

— Quando você me chamou pra aquele café... — começou, com a voz baixa, refletida — eu achei que fosse pra falar de um projeto. Mas não como atriz. Achei que fosse algo que a gente escreveria junto. E eu não tinha ideia de que você me chamaria pra... existir de novo. Não numa nota de rodapé. Mas no centro. E não como memória, mas como presença.

Fez uma pausa, breve, pensada. E então voltou os olhos para ele. Ela não sorriu. Mas havia ternura no olhar. E um fundo de vergonha quase adolescente, que ela disfarçava com elegância.

— E, sendo honesta, eu fui... também porque queria te ver. Porque tinha saudade. Não daquela saudade retórica, mas da tua voz ao vivo, sem protocolo. Daquele jeito distraído de puxar a cadeira, de passar a mão no cabelo, do teu gesticular com as mãos, de fazer silêncio no meio da fala.

Ela parou por um segundo, lembrando.

— Mas aí você me olhou daquele jeito que só você sabe — direto, sem pedir licença — e disse: “Você quer ser a minha Eunice Paiva?”

Um silêncio breve. Quente. A memória viva na boca do estômago.

— E eu me vi ali. Parada. Tentando entender se aquilo era verdade. Se você realmente estava me chamando de volta pro centro. Pra cena. Pra vida. Por um instante... eu senti uma alegria quase boba. Um encantamento juvenil. Daqueles que a gente tem vergonha de sentir depois dos cinquenta.

Walter a observava como quem reverenciava um segredo finalmente confessado.

— Mas junto com essa alegria... veio o medo. — continuou ela. — Medo de não dar conta. De não estar mais pronta. De ser só uma atriz de gaveta, dessas que você admira, mas não escala. Medo de tocar numa personagem tão densa, tão silenciosa... e perceber que eu mesma tinha virado silêncio demais. E mesmo com medo, eu atravessei aquele abismo de angústia e disse para mim mesma: Vai! – ela sorriu sem humor. – Vai mesmo com medo. Vai mesmo achando que não vai dar conta. Vai porque, se ele tá vendo, talvez ainda tenha alguma coisa aí que valha a pena ser enxergada.

Ela soltou o ar, com uma leveza nova. Como quem, finalmente, se liberta da contenção.

— Então, quando você me ofereceu a Eunice... você não me ofereceu só um papel, Walter. Você me devolveu uma parte minha que eu tinha arquivado. Como se dissesse, sem dizer: “eu ainda te vejo”. E ser vista por você... — ela hesitou, sem drama — ser vista por você sempre teve o peso de algo definitivo.

Ela o olhou com doçura grave, como quem finalmente encontra a forma certa de dizer o que ficou guardado por tempo demais.

— Você fala que me agradece por ter voltado... — começou, com a voz baixa, mas firme — mas, na verdade, sou eu quem te agradece. Por ter me resgatado. E, principalmente, por ter me permitido resgatar a mim mesma.

Fez uma pausa. Respirou. E então, num sussurro mais íntimo, quase como uma confissão só pra ele:

— Porque, no fundo, eu tinha esquecido como era me sentir inteira.

Um beijo casto foi selado pelos dois, algo que carregava leveza e intensidade.

Fernanda então sentiu aquele peso no estômago, aquela angústia invadir o âmago. Como se algo externo tivesse voltado a ocupar espaço dentro dela. O corpo ainda estava ali. Mas a alma... já começava a ser invadida pela maré do lado de fora.

Suspirou. Longo. Tenso.

Walter franziu levemente o cenho, atento ao movimento sutil da expressão dela mudando.

— O que foi? — perguntou, com aquela voz que não cobra, só oferece escuta.

Ela demorou um segundo para responder. E quando respondeu, foi com simplicidade brutal:

— Angústia.

A palavra caiu entre os dois como um nome familiar. Algo que não precisava de explicação.

— Se for sobre o que acontecerá hoje à noite... — Walter começou, e sua voz tinha aquele tom baixo e grave que só usava quando falava de coisas que importavam de verdade — quero que você se lembre do seu próprio discurso em 1999. Daquele discurso que, quando saíram as indicações de Central do Brasil, disse para todo mundo que o Oscar era a maior festa da injustiça já inventada.

Fernanda riu baixinho contra o peito dele, o som abafado pela pele. A memória a atravessou feito uma brisa morna: ela, jovem, incisiva, cheia de verdades na ponta da língua.

— Você dizia que o cinema brasileiro era — e ainda é — maior do que qualquer estatueta, qualquer cerimônia, qualquer júri.

Walter afastou um pouco o rosto para olhar para ela. O olhar firme, intenso, com uma ternura cheia de admiração.

— Se a gente ganhar, vai ser lindo. Vai ser maravilhoso. — Ele disse, com a serenidade de quem não pendura a vida inteira em um único momento. — Mas se a gente não ganhar... tudo bem também. Porque toda essa viagem, toda nossa trajetória foi linda até aqui.

Fernanda o olhava agora com um sorriso que começava nos olhos e descia, devagar, para a boca. Um sorriso cheio de afeto, de gratidão, de amor antigo e renovado. Ela se inclinou, sem pressa, e o beijou. Um beijo sem urgência, sem necessidade de provar nada — um beijo de quem já sabia. De quem sempre soube. Quando se afastaram, os rostos ainda colados, ela sussurrou, com a voz embargada de carinho:

— Obrigada... por não ter desistido de mim. É sempre um prazer estar no meio do furacão com você.

Walter sorriu de canto, os olhos semicerrados como quem guarda um segredo.

Fernanda franziu levemente as sobrancelhas, provocativa:

— O que foi?

Ele deixou os dedos deslizarem devagar pelas costas dela, até a curva da cintura, desenhando nela uma espécie de território silencioso.

— Eu confesso... — murmurou, a voz aveludada, quente — que apesar de toda essa repercussão, de todo mundo olhando pra você como se fosse o próprio Sol... estou morrendo de ciúmes.

Ela arqueou a sobrancelha, brincando, uma faísca divertida no olhar.

— Ciúmes de quê?

Walter a olhou com aquele meio sorriso lento, quase perigoso, e deixou que a mão subisse novamente pelas costas dela, lenta, possessiva.

— Ciúmes do mundo. — respondeu, com uma simplicidade que cortava o ar. — Eu não sei dividir o que é meu.

Ela riu, provocativa, deslizando as unhas curtas pelo ombro dele, num carinho que era também um desafio.

— Eu não sou sua propriedade, Salles.

Ele soltou uma risada baixa, um som que vibrava quente no espaço pequeno entre eles.
Sem pressa, seus dedos voltaram a subir pelas costas dela, traçando caminhos que a faziam estremecer de dentro para fora. Quando chegou à nuca dela, entrelaçou os dedos nos cabelos macios e, com um gesto lento, mas firme, puxou-os para trás, expondo o pescoço dela — aquela curva delicada e vulnerável que ele conhecia tão bem.

Walter aproximou a boca da orelha dela, o hálito quente roçando a pele sensível.

— Não foi isso que eu ouvi da sua boca na noite passada... — murmurou, a voz como veludo áspero. — Ou será que eu devo relembrá-la o que você gemeu enquanto gozava, Fernanda?

O arrepio que percorreu a espinha dela não era de medo. Era de reconhecimento.
De desejo. De pertencimento.

Mas Fernanda ainda tentava se agarrar a alguma réstia de autocontrole — ou talvez fosse apenas o orgulho que não a deixava ceder tão fácil. Ela afastou o rosto devagar, mantendo os olhos presos aos dele, um desafio silencioso que ambos conheciam bem.

— Eu... — ela murmurou, a respiração levemente descompassada — eu não posso ficar.

Walter a olhou, ainda com os dedos entrelaçados nos cabelos dela, como se ponderasse se deixaria mesmo que ela fosse. O toque dele não era força bruta; era gravidade.

— Tenho que voltar para o meu quarto — ela explicou, a voz mais firme agora, tentando colocar uma distância que seu corpo já havia traído. — Vim até aqui só de robe... Se alguém me ver...

Ela não terminou a frase. Não precisava. Ele soltou um pequeno riso pelo nariz, aquele riso rouco e quente que mais parecia um convite. Afrouxou a mão na nuca dela, mas não a soltou.

— Que horas... ele chega? — perguntou, a voz tão suave que quase mascarava o fio de ferro por trás da pergunta.

Fernanda soube de quem ele falava. E soube também que ele já sabia a resposta.

— Uma da tarde — respondeu, baixinho.

Walter sorriu. Um sorriso lento, travesso, carregado de promessas que ela sentiu na pele antes mesmo de entender no corpo.

— Então a gente tem tempo de sobra.

O sorriso dela veio sem que pudesse evitar, cedendo um pouco às investidas dele, como um barco que se curva ao vento inevitável. Walter inclinou o rosto e roçou os lábios no queixo dela, numa carícia displicente que incendiava.

— Estou com fome... — disse contra a pele dela, a voz arrastada, densa de duplo sentido.

Fernanda fechou os olhos por um segundo, respirando fundo, tentando manter algum resquício de razão. Mas era inútil — não com Walter, não quando ele falava daquele jeito.

— Eu também... — sussurrou, a boca quase encostando na dele, sentindo o sorriso que nascia nos lábios dele antes de vê-lo.

Walter a fitou, com aquela expressão de homem que sabia exatamente o que queria — e como conseguir.

— Mas não estou pensando no café da manhã convencional — murmurou, a voz baixa, rouca, íntima.

O calor subiu pelo rosto dela como uma onda lenta e inevitável. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Walter puxou-a de volta para ele pela mão ainda presa em seus cabelos, e a boca dele encontrou a dela — não com violência, mas com uma fome concentrada, elegante, irresistível. Era como se o mundo inteiro tivesse se estreitado até caber naquele beijo.

Quando ela se deu conta, o robe preto já era apenas um rumor esquecido no chão.
Walter a tomou nos braços, sem pressa, como quem saboreia algo há muito desejado e finalmente alcançado. A poltrona os recebeu — apertados, encaixados, feitos um para o outro — e, entre beijos e carícias que queimavam a pele, o mundo lá fora simplesmente desapareceu.

 


 

A respiração dela já era descompassada quando Walter deslizou as mãos pelas coxas dela, agora completamente nuas, sentindo o calor que irradiava de cada centímetro da pele. Estava sentada sobre ele, os corpos fundidos, as bocas se procurando entre suspiros e murmúrios entrecortados. A madeira da poltrona rangia sob os movimentos ritmados, mas nenhum som era mais nítido do que o som da pele contra a pele.

O encaixe era quase litúrgico. Fernanda estava por cima, os joelhos cravados de cada lado do quadril dele, o corpo arqueado como se desafiasse o tempo. Ela cavalgava sobre ele com uma precisão quase cruel — como se soubesse exatamente onde doía, onde ardia, onde fazia tremer. Os olhos semicerrados, o queixo levemente elevado, os seios marcando o ritmo entre os dois, o corpo inteiro em estado de incêndio.

Walter estava entregue, completamente. A respiração curta, as mãos segurando as coxas dela como se tentasse se ancorar ali — e ao mesmo tempo permitir que ela o levasse até o limite.

— Olha pra mim. — ela murmurou, a voz rouca, entrecortada de prazer.

Ele obedeceu. Os olhos se encontraram num ponto que era quase ferida, quase altar. Foi então que ele enfiou a mão nos cabelos dela e puxou devagar, com força exata — firme, mas reverente. Ela gemeu baixo, como quem tentava segurar o grito dentro da garganta. Os olhos se encontraram num ponto entre desejo e descontrole. E ela gemeu. Mas não foi qualquer gemido.

— Gostoso... — sussurrou, rouca, provocante, o olhar selvagem preso no dele.

Aquilo o atravessou como um raio.

Walter sentiu o corpo inteiro reagir, uma erupção subindo das entranhas, um ímpeto que queimava.

— Diz de novo. — pediu, baixo, imperativo, a voz mais grave do que nunca.

Ela sorriu, meio rindo, meio arfando, e obedeceu.

— Gostoso.

E então ele foi mais fundo. Ajudou o quadril dela a descer com mais força, mais entrega, os dois se encontrando num ponto onde não havia mais distância entre pele, memória ou tempo. A expressão de Fernanda, tomada por um prazer tão cru quanto irreprimível, fez Walter soltar um sorriso canalha — breve, satisfeito, quase orgulhoso. Como se dissesse, sem palavras: ainda sei exatamente como te desarmar.

Ela jogou a cabeça pra trás e gemeu mais alto, cavalgando mais rápido agora, sem pudor. E foi ali, naquele ritmo desesperado, que os dois se perderam juntos — os corpos vibrando, o orgasmo vindo forte, inevitável, avassalador.

Ele a sentiu se desfazer sobre ele no exato segundo em que também se desmanchava. Um estalo interno. Um colapso bom.

E então veio o silêncio.

Não de ausência. Mas de repouso.

Ela tombou sobre ele, os corpos ainda trêmulos, suados, ofegantes. O rubor intenso coloria as maçãs do rosto dela, e até mesmo o colo, onde o coração batia num compasso descompassado. O cabelo desarrumado caía em ondas sobre o peito de Walter, que acariciava os fios com movimentos lentos, quase hipnóticos, como quem agradecia silenciosamente pelo que acabara de viver.

Ele sorriu contra os próprios pensamentos, e com a voz rouca e satisfeita, murmurou, deixando os dedos deslizarem preguiçosamente pelo cabelo dela:

— Agora sim... — disse ele, a boca roçando com doçura a testa dela — já me sinto devidamente alimentado pra enfrentar o dia.

Fernanda soltou uma risada baixa contra o peito dele. Com o queixo ainda apoiado ali, ergueu o rosto devagar, os olhos semicerrados — preguiçosos, maliciosos, satisfeitos.

— E não há forma mais honesta de começar o dia... — sussurrou, com um sorriso enviesado, quase sagrado — do que sendo comida por quem sabe exatamente o que está fazendo.

Walter arqueou a sobrancelha, divertido, e mordeu de leve o lábio inferior como quem reconhece um troféu entre as palavras. E então seus olhos se encontraram — e o tempo, outra vez, desacelerou. Ele a olhou como se estivesse redescobrindo algo raro. O sol, que entrava de soslaio pelas frestas da janela, acendia tons dourados nos cabelos dela e fazia os olhos de Fernanda brilharem de um castanho quente e líquido que ele achava insuportavelmente lindo.

Ele deslizou o dorso dos dedos pela bochecha dela, numa carícia quase reverente, e, com aquele sorriso torto que a fazia esquecer quem era, perguntou num murmúrio:

— Você achou mesmo... que ia conseguir fugir de mim?

As palavras ficaram suspensas entre eles por um momento, cheias de ecos — ecos do acordo que haviam tentado firmar meses antes, em meio à vertigem da campanha. De setembro de 2024 a fevereiro de 2025, tinham brincado de serem sócios, parceiros, cúmplices de um segredo que ninguém ousava nomear.

Mas ela lembrava — lembrava do BAFTA, de Londres, da maneira como os olhos dele a despiam sem nenhuma cerimônia entre uma taça de vinho e a cerimônia de premiação. Lembrava de como, naquela noite, prometeu a si mesma que precisava colocar um ponto final. Mas também sabia — olhando agora para ele, com o peito subindo e descendo sob seu queixo — que esse ponto final nunca passara de uma ilusão confortável. Fernanda sorriu — um sorriso pequeno, resignado, que mais parecia o desarme silencioso de quem aceita uma batalha perdida. Deixou escapar um suspiro leve, e, com a voz rouca pelo cansaço e pela rendição, murmurou:

— Eu sempre fui uma péssima mentirosa.

Walter deixou que a ponta dos dedos deslizasse do maxilar dela para o pescoço, num carinho tão sutil que parecia mais uma memória do que um toque. O olhar dele a mantinha cativa, como se o tempo à volta tivesse, mais uma vez, desacelerado apenas para assisti-los.

— Talvez... — ele arrastou a palavra, com aquela placidez perigosa que a desarmava. — Você consiga mentir para os outros.


Seus olhos encontraram os dela, e era como ser atravessada.

— Mas pra mim, não. — A voz dele era baixa, definitiva. — Eu conheço você, Fernanda.

Ela ficou em silêncio por um momento, sentindo o peso daquelas palavras atravessarem a pele, os ossos, indo tocar uma parte dela que preferia manter adormecida. Então, com a testa ainda encostada no peito, sussurrou:

— Você... você acreditou mesmo quando eu disse que era o fim? Depois do BAFTA?

Walter sorriu de um jeito triste, mas sem censura. O polegar dele roçou de leve o canto da boca dela, como quem desfaz um nó invisível.


— Não. — respondeu, com uma honestidade tranquila que a desmontou. — Mas eu respeitei a sua decisão. – Fechou os olhos brevemente, como quem se lembra de um cansaço antigo. — Foram duas semanas longas demais... — murmurou. — Duas semanas sem te tocar, sem te sentir... sem ouvir a tua risada de perto.

Ele abriu os olhos, presos nos dela.


— Eu senti saudade de você, Nanda.

As palavras eram simples, mas carregavam todo o peso do que não tinha sido dito antes.
Fernanda sentiu o peito apertar — um aperto quente, úmido, tão doce quanto cruel. Inclinou-se e roçou a boca na dele, num selinho que mais parecia um pedido de desculpas silencioso. E disse. Num sussurro:

— Eu também senti sua falta, amor. – ela disse, com os olhos nos dele. – Mais do que achei que seria capaz.

A cabeça repousada sobre o peito dele, os dedos percorrendo distraídos a pele de Walter como se quisessem memorizá-lo para sobreviver à ausência.

— Londres pesa muito pra mim... — ela disse, a voz rouca de lembrança. — Foi lá que a gente  começou, em 96. Foi lá que tudo explodiu dentro de mim... E estar ali de novo, com você, olhando pra mim daquele jeito, com todo mundo em volta... era como... — ela hesitou, buscando palavras dentro da confusão do peito. — ...como se um tsunami me atravessasse. Eu senti tudo voltando, Walter. Tudo. E eu achei... que se eu não parasse... eu ia sofrer tudo de novo.

Ele a ouviu sem interromper, os dedos brincando distraidamente com uma mecha do cabelo dela. Quando ela terminou, Walter soltou um suspiro baixo, grave, e falou:

— Você percebeu... — ele disse, com uma serenidade melancólica — que o tempo que a gente passou agora, na campanha... foi quase o mesmo tempo que a gente teve juntos em 96?

Fernanda levantou os olhos para ele.

— De agosto de 96 a Janeiro de 97. De Setembro de 24 a Março de 25. — enumerou, como se desenhasse para ela a linha invisível que os ligava. Era uma espécie de constelação no tempo. — Parece até que a vida quis testar... se a gente ainda aguentava.

Fernanda fechou os olhos por um instante, sentindo a cabeça dele sob a sua mão, o calor da pele, a respiração misturada. A vida. A vida sempre entrelaçando, sempre puxando, mesmo quando eles tentavam resistir.

— Eu tenho medo. — confessou, num sopro. — De não conseguir suportar perder você de novo.

Um silêncio caiu, denso, do tipo que não precisa ser preenchido — apenas sentido.

E então, talvez pela primeira vez desde que o filme estreou, ela permitiu que a consciência entrasse inteira. Como um clarão depois do torpor. Ela ergueu o rosto e, com os olhos marejados, o olhou demoradamente. A pele dele. O cheiro. O calor. Tudo aquilo que ela sabia que, muito em breve, voltaria a ser apenas lembrança.

— Eu me dei conta, agora... — ela começou, a voz baixa, embargada — de que esse nosso conto de fadas às escondidas está acabando, Walter. A gente viveu seis meses num sonho... noites como essa, risadas no intervalo das entrevistas, olhares roubados no avião, a tua mão no meu joelho num jantar cheio de gente, as escapadas em um quarto de hotel... Mas isso está terminando... E depois disso...

Ela parou. Ele a olhava com atenção redobrada, como se escutasse o som de algo prestes a partir.

— ...depois disso, eu volto pra minha casa, pra minha vida. E você também. — a voz dela era firme, mas atravessada por uma tristeza que doía nos ossos. — E eu não sei... não sei como fingir que nada aconteceu. Eu não consigo apagar o que a gente viveu nesses seis meses.

Ela respirou fundo, como quem precisa tirar o próprio coração do lugar.

— Não dá mais pra continuar assim. — E não era um ultimato. Era uma pergunta, um pedido: — Como a gente fica depois disso?

Ele demorou a responder. Não por falta de palavras — mas por saber o peso que cada uma teria. A mão dele segurou a dela com firmeza, como se quisesse sustentá-la para o que viria.

— Eu não sei se deveria te contar isso agora... — ele começou, a voz baixa, grave, carregada de algo mais profundo do que hesitação. — Mas eu não consegui mais fingir também.

Os olhos dela se estreitaram, atentos.

— Nessas duas semanas... depois do BAFTA e do nosso afastamento... a Maria e eu... — ele fez uma pausa curta, precisa. — A gente decidiu pedir o divórcio.

O silêncio que se seguiu não foi vazio. Foi um abismo.

A frase caiu como um raio sem som. Primeiro veio o branco — a ausência de tudo. Depois, o coração disparando, as pontas dos dedos formigando, o corpo se recusando a acreditar no que os ouvidos acabavam de registrar.

Ela não disse nada de imediato. Apenas o olhou — olhos arregalados, o coração descompassado, a respiração suspensa.

Walter não desviou o olhar.

— Foi uma conversa calma. Sem brigas, sem escândalo. A gente já vinha se distanciando há muito tempo. E nessas semanas... eu percebi que continuar ali era só... manter uma aparência. Mas não tinha mais alma. Não tinha mais verdade.

Ela continuava sem falar, as palavras empacadas na garganta.

— E eu não estou te dizendo isso pra te pressionar, Nanda. Nem pra te exigir nada. Eu só... achei que você precisava saber. Até porque, eu pensei muito antes de dizer isso. — continuou ele, com cautela. — Não queria que parecesse uma cobrança, ou uma jogada, ou qualquer coisa que colocasse um peso sobre você.

Ela fechou os olhos por um instante. Sentia a alma dela se despregando de tudo que era seguro. Porque, de repente, aquele sonho escondido não era mais só sonho. Era escolha. Era real. E isso, talvez, fosse ainda mais assustador.

Respirou fundo, mas o ar parecia não entrar. Tinha a sensação de que o mundo acabara de mudar de eixo. De que algo se partira dentro dela — não de dor, mas de vertigem.

— Walter… — sussurrou. — Eu... eu não sei o que dizer.

— Não precisa dizer nada.  — respondeu ele, sereno. — Eu só precisava que você soubesse. Porque... a gente já viveu o bastante em silêncio. Além disso, eu não sou ninguém pra te pedir nada, Nanda... — ele disse, enfim, a voz grave e suave como seda puída pelo tempo. — E talvez eu nem tenha o direito de falar isso. Mas, se tem uma coisa que essa campanha me ensinou... é que o tempo, às vezes, devolve o que levou.

Ela o fitou, os olhos ainda marejados, mas atentos. Como quem escuta um poema e se reconhece entre os versos.

— Esses últimos meses... — ele continuou passando o polegar devagar sobre os nós dos dedos dela — me fizeram lembrar de 1996. Não das dores. Nem das falhas. Mas daquele primeiro dia em Londres, da tua gargalhada no corredor do hotel, do jeito que você encostava o ombro no meu braço quando queria dizer alguma coisa sem palavras.

Ele fez uma pausa, como se a memória viesse em ondas, uma mais viva que a outra.

— Lembro de você empolgada no show do Oasis, pulando no meio da multidão como se tivesse dezoito anos e nada a perder. Da tua mão puxando a minha quando começou Don’t Look Back in Anger, como se aquilo fosse um hino só nosso.

Um sorriso discreto cortou os lábios dele. Mas havia sombra no fundo dos olhos.

— Lembro de quando a gente começou de verdade. Dos teus chinelos jogados na entrada do teu apartamento. Da gente dividindo uma cerveja e falando sobre cinema, política, medo, infância — tudo misturado, tudo no mesmo fôlego.

Olhou pra ela como quem olha um tempo que não se apaga.

— Você fazia café como se fosse um ritual. E deixava as luzes da sala acesas de propósito só pra fingir que a noite não tava acabando. Eu adorava isso. Aquele lugar... era tua extensão.

Fez uma pausa, a voz agora mais baixa, quase um segredo.

— Passei o Natal com você e tua família naquele ano. Lembra? Me senti deslocado, claro. Sempre fui mais reservado. Mas... me senti parte de alguma coisa pela primeira vez em muito tempo. Acho que nem cheguei a te dizer isso.

Ele a olhava com uma espécie de ternura quebrada. Como quem revive não só o que foi vivido — mas também o que foi perdido.

— E agora, com tudo isso... com esse filme, com a gente... parece que aquelas memórias todas voltaram. Não como lembrança. Mas como possibilidade. Como se o tempo tivesse me dado mais uma chance pra te encontrar de novo — dessa vez com menos silêncio, com mais coragem.

Um leve sorriso cortou os lábios dele, com uma melancolia de quem revive uma lembrança emoldurada por saudade. Fernanda não conseguia se mover. O coração batia como se buscasse alcançar o dele.

— Você perguntou como a gente fica depois disso. E... eu também me perguntei. — Walter olhou para baixo por um instante, como se procurasse chão. — Nessas duas semanas longe de você, eu não consegui pensar em outra coisa.

Ele respirou fundo, e quando ergueu os olhos de novo, havia algo de definitivo neles.

— Eu pensei muito antes de tomar qualquer decisão. E pensei ainda mais antes de te contar. Mas a verdade é que... a Maria e eu já estávamos em mundos diferentes há muito tempo. O que existia era uma estrutura. Um respeito. Um afeto talvez. Mas não amor. E eu entendi que... que continuar ali era mentir pra mim mesmo.

Fernanda estreitou os olhos, como quem se prepara para escutar o que sempre desejou, mas nunca se permitiu esperar.

— Então a gente decidiu, com calma... com dignidade... que era hora de encerrar. Pedimos o divórcio. Não foi por você. Não foi por nós. Foi porque, mesmo que você não existisse mais na minha vida, eu já não podia mais continuar ausente dentro de casa.

Ele fez uma pausa. O silêncio parecia acompanhar a respiração dela, que agora se tornava mais lenta, como se o corpo dela tentasse absorver o impacto daquela revelação sem desmoronar.

— E eu tô te contando isso, Nanda, não porque quero uma resposta. Compromisso ou Reciprocidade. Eu não vim até aqui pra te exigir nada, só quis que você soubesse.

Os olhos dele brilharam, e a voz que veio a seguir parecia brotar das entranhas:

— Mas se... se por acaso você ainda quiser tentar. Se, entre os cacos e os medos, ainda houver espaço pra um recomeço... eu tô aqui. Inteiro. Sem pressa. Sem roteiro. Só com a certeza de que, se você me permitir, eu quero envelhecer ao seu lado.

Ela fechou os olhos. Um segundo. Dois. Como se precisasse daquele escuro breve pra não se desfazer inteira.

— Eu não tenho muito tempo, Nanda... — ele disse então, quase num sussurro. — Não sei quantos filmes ainda vou fazer. Quantas noites como essa ainda vou viver. Mas eu sei que queria dividir o que me resta com você.

Ela abriu os olhos devagar. Um brilho molhado escorria pelo canto do rosto.

— Eu queria que, quando o meu último suspiro chegasse, ele fosse perto de ti. Que o último cheiro que eu sentisse fosse o teu perfume. Quero que o último som que eu escute seja tua risada, tua voz me chamando de covarde — porque sim, eu fui.

Ele sorriu de leve, com aquele sorriso triste e quente que ela conhecia desde 1995.

— Em 97, eu fugi. Me silenciei. Te deixei sozinha com o peso do mundo. Mas o homem que está aqui agora... não é mais aquele. Ainda sou feito de medo, sim — mas aprendi a nomear o que sinto. Aprendi que vulnerabilidade também é coragem. E se tem uma coisa que o tempo não conseguiu apagar... é que você sempre foi o lugar onde a minha alma pousa em paz.

Silêncio.

Mas não era um silêncio vazio — era um silêncio que tremia nos ossos. Que rangia nas articulações, como se cada célula do corpo precisasse absorver o impacto daquela frase.

Divórcio.

Ela abaixou o olhar, devagar, como quem procura um chão que não está mais ali. E, quando enfim ergueu os olhos para ele, havia neles algo que não era dúvida — era vertigem.

— Você acabou de mudar a geografia do mundo, Walter.

A voz saiu baixa, mas firme, como quem está à beira de um precipício e ainda assim decide caminhar mais um passo.

— Você me diz isso com essa calma bonita... com essa generosidade que sempre teve — e eu sei que é verdade. Sei que não tem jogo, nem manobra. Que você está aqui inteiro. Mas...

Ela respirou fundo. O peito subia e descia como se carregasse trinta anos de contenção.

— Eu também tenho uma casa. Um nome assinado há mais de três décadas no mesmo contrato de vida. Não de amor — amor é o que me escapa pelas mãos quando te olho — mas de lealdade, de construção. Tenho dois filhos que carregam meu nome e o dele. Uma história que, mesmo sem poesia, foi sendo escrita. Tijolo por tijolo. No silêncio. Na rotina. Nos domingos iguais.

Ela engoliu em seco, o olhar preso no dele, como se precisasse dizer aquilo para não se despedaçar.

— Eu te amo. Deus, como eu te amo. Mas eu não sou mais aquela menina que você beijou em Knebworth. Eu sou mãe. Eu sou nome de família. Eu sou estrutura. E por mais que esse amor seja carne, seja osso, seja pele. Ele também é risco.

Ela se aproximou um pouco, a voz mais rouca agora, mais íntima.

— Você sabe o que nos separou da última vez, Walter. E não foram só as circunstâncias. Foi o silêncio do seu mundo. Foi o incômodo de eu não caber na moldura. Foi a sensação de ser um corpo estranho na paisagem da sua vida pública. Eu me lembro da sua expressão naquela ligação em Londres. Do modo como você se fechou. Do modo como, no fim, fui eu quem ficou com as mãos vazias.

As lágrimas vieram aos poucos, não como cena — mas como desabafo inevitável.

— Eu não posso passar por aquilo de novo. Eu não sobrevivo a te perder uma segunda vez.

Ela se aproximou mais, o rosto colado ao dele, a voz num sussurro dilacerado:

— Eu preciso saber se agora... é diferente. Se o Walter de hoje vai me proteger do mundo — não só do julgamento alheio, mas do silêncio. Do abandono. Das ausências. Eu não quero mais amar às escondidas. Eu não quero mais rir entre entrevistas e chorar no avião de volta.

Ela parou. A respiração ofegante. E então, como quem entrega a espada, disse:

— Eu te amo. Te amo como se tivesse sido feita pra isso. Te amo nas rachaduras, nas pausas, nos silêncios. Mas eu tenho muito em jogo, Walter. Muito. E eu não posso errar de novo. Eu não posso errar com os meus filhos. Nem comigo. Nem com você. Mas eu preciso saber que, se eu vier, é pra ficar. Que não serei varrida outra vez quando a maré subir.

Fez-se um segundo de silêncio. E então, num fio de voz:

— Eu não estou dizendo não. — murmurou. — Mas estou dizendo... espera.

Walter a olhou por um instante, longo, sereno. Como quem acabara de escutar a promessa mais bonita do mundo — mesmo disfarçada de incerteza. Ele ergueu a mão com cuidado e pousou sobre o rosto dela, como se estivesse segurando alguma coisa sagrada.

— Esperar por você… — disse, com a voz baixa, quase um sussurro — é o que eu faço desde 1997.

E então sorriu. Um sorriso pequeno, íntimo, atravessado de memória, desejo e fé. Não era o sorriso de quem tem pressa — era o sorriso de quem, enfim, reconhece o destino que esperou uma vida inteira para reencontrar.

O silêncio entre eles ainda era denso, mas já não doía. Era um silêncio morno, suspenso — como se o mundo lá fora estivesse em pausa apenas para permitir que eles se olhassem mais um pouco. Fernanda passou os dedos devagar pelo rosto dele, descendo com a ponta do indicador pela curva do maxilar, e depois enfiou a mão nos cabelos dele — ainda úmidos de suor.

— A gente precisa tomar banho. Estamos literalmente colando um no outro. – sussurrou, com aquele humor delicado que surgia quando ela queria disfarçar a emoção que ainda vibrava por dentro. — Você vai mesmo para a noite mais aguardada do ano com esse cabelo desgrenhado?

Walter arqueou uma sobrancelha, divertido.

— Eu achei que estava em clima de gênio atormentado. Diretor indie com alma de poeta.

Ela riu. Aquele riso que era mais um sopro do que som.

— Tá mais pra indigente, Salles. Parecendo um Wim Wenders pós-vórtex emocional. — murmurou, e então, com um brilho súbito nos olhos: — Deixa que eu cuido disso. Vou cortar seu cabelo.

Walter a olhou por um segundo, como se aquele anúncio carregasse muito mais do que uma tesoura e um espelho.

— Você tem certeza? — perguntou, mesmo sabendo a resposta.

— Absoluta. — disse ela, já se levantando com a decisão prática e terna de quem conhece intimamente aquele corpo e aquela cabeça.

 

Poucos minutos depois, estavam no banheiro. O vapor da água quente ainda se dissipava no ar, como uma névoa suave que envolvia o tempo. Walter sentou-se diante do espelho, uma toalha branca cobrindo os ombros, os cabelos úmidos ainda marcados pelos dedos dela. Havia uma serenidade rara no rosto dele — não exatamente por estar ali, mas por quem estava por trás.

Fernanda surgiu com a tesoura em mãos e o coque frouxo preso por uma presilha improvisada. Olhou para ele com falsa severidade, como se avaliasse um campo de guerra antes da batalha.

— Última chance de fugir. — disse, arqueando uma sobrancelha. — Se eu te deixar careca, você promete não dar entrevista dizendo que foi um surto artístico?

Walter sorriu de leve, os olhos fixos no reflexo dela.

— Se você me deixar careca, eu só vou contar a verdade: que foi sua vingança por não ter sido a minha primeira escolha pra ser Eunice Paiva.

Ela arqueou a sobrancelha, divertida, e girou a tesoura entre os dedos com leve ameaça cênica.

— Uma escolha que quase te custou o filme. — disse, já se aproximando.

— Eu sei. — respondeu ele, fechando os olhos como quem se entrega ao destino. — Mas, convenhamos, a vingança tá vindo em forma de corte capilar íntimo. Só você pra transformar isso num acerto de contas amoroso.

— Isso não é vingança. — sussurrou ela, pousando os dedos na têmpora dele. — É liturgia.

Ele riu com a garganta, sem abrir os olhos. E deixou. Deixou que ela recomeçasse aquele gesto antigo, doméstico, cúmplice. A tesoura tilintava baixo, quase imperceptível entre o som do vapor e o ritmo da respiração contida. As mãos dela se moviam com a precisão de quem conhece cada fio, cada curva, cada silêncio entre os dois. Chão de Giz escapava suavemente da boca dela. Cantarolava baixinho, sem se dar conta, a melodia ecoava arrastada como uma lembrança. A voz dela mal saía, mas preenchia o ambiente como um eco de saudade.

Walter abriu os olhos devagar e a viu no espelho — concentrada, entregue, com a testa levemente franzida, perdida naquele ritual que era mais antigo que o próprio tempo deles. Era como se cada gesto dela estivesse puxando um fio de lembrança, alinhavando a distância entre o passado e o agora.

— Você sabe que esse gesto sempre me leva praquele seu apartamento em Botafogo, né? — disse ele, com um sorriso discreto, quase comovido. — Você com essa mesma expressão, cortando meu cabelo, mandando eu ficar quieto.

Fernanda arqueou uma sobrancelha, ainda focada no corte.

— O corte sempre seria mais rápido se você não falasse tanto. — resmungou, com o tom birrento e doce que só ela sabia usar. — Você se mexia como se tivesse sido programado pra dramatizar até a nuca.

— E você dizia que eu atrapalhava o seu processo criativo.

— Você atrapalha tudo, Salles. — disse ela, sorrindo — menos isso aqui.

Fez uma pausa. Passou os dedos entre os fios cortados, agora mais leves, mais disciplinados. Depois parou. O olhar pousado na raiz dos cabelos dele.

— Ficaram mais sedosos. — murmurou, num tom quase clínico. — Mas... mais grisalhos também.

Silêncio.

A constatação caiu como um sopro. Um sopro de tempo. De passagem. De finitude.

Ela ficou ali por alguns segundos, com os dedos ainda pousados na cabeça dele. De repente, percebeu: ele estava envelhecendo. Eles estavam. Não como ruína, mas como ritmo. Como a areia no fundo da ampulheta, movendo-se mesmo quando ninguém observa.

E então veio aquele pensamento cortante, suave, inevitável:

Talvez ela não o tivesse por muito tempo.

O coração dela apertou num gesto involuntário. Uma contração breve — como se o corpo quisesse guardar para sempre aquilo que, por natureza, é impermanente. Terminou o corte com movimentos lentos, cerimoniais. Fez os últimos ajustes como quem encerra uma cena, ou um poema. E então parou.

Ele a encarou pelo espelho.

E ela viu ali aquele par de olhos. Os mesmos. Tantos anos depois. Carregavam cansaço, rugas, sombra — mas havia ali uma delicadeza intacta, uma doçura esquecida, um sopro de inocência que ainda resistia à crueldade do tempo. Ela se inclinou devagar, como se não quisesse acordar o momento.

Beijou o topo da cabeça dele.

Ficou assim por um segundo. Dois.

Depois disse, com a voz baixa, limpa, definitiva:

— Pronto.

Endireitou-se e cruzou os braços, avaliando o resultado com olhos críticos e ternos.

— Agora sim... você está um diretor de cinema bilionário e apresentável o suficiente para receber o seu primeiro Oscar.

Walter sorriu, ainda sentado, e estendeu a mão para ela. Quando os dedos dela pousaram nos dele, ele os virou com cuidado e levou a palma à boca, depositando ali um beijo lento, agradecido — como se dissesse, sem dizer: obrigado por me lembrar quem eu sou.

— Eu pedi café pra nós dois. — disse ele, ainda com os olhos presos aos dela. — Chega em quinze minutos.

— Sabia que você ia pensar nisso. — respondeu ela, sem sorrir, mas com os cantos dos lábios levemente suspensos, como se acolhesse o gesto no peito.

Ela começou a recolher as mechas de cabelo espalhadas pela toalha com a delicadeza de quem guarda fragmentos de um tempo que não quer perder. Walter se levantou devagar, ajustou a toalha nos ombros e foi até a porta do banheiro. Olhou para trás.

— Vem. Antes que o mundo comece a bater na nossa porta.

Fernanda o seguiu.

Os pés descalços contra o piso frio, o som abafado dos passos, a luz do quarto filtrada pela cortina fina — tudo parecia mais lento ali, como se o tempo, por delicadeza, tivesse reduzido a marcha só para que eles pudessem respirar um pouco mais.

Walter estava de costas, ajustando a toalha sobre a poltrona desarrumada da suíte. Ela o observou em silêncio por um segundo a mais do que o necessário. Um segundo cheio de memória, de desejo calmo, de gratidão muda. Ele se virou quando sentiu o olhar. E apenas a esperou.

Fernanda caminhou até ele, sem dizer nada. Só foi. Como quem aceita, sem alarde, os últimos minutos de um sonho lúcido. Como quem sabe que a realidade vem, mas ainda não chegou.

Sentou-se à mesa da varanda com ele. O mundo lá fora seguia seu ritmo: carros, sirenes, o dia nascendo. Mas ali, naquele canto suspenso do Château Marmont, tudo ainda era só deles. A respiração dos dois. O cheiro do café que logo viria. A pele ainda quente do toque. A memória do que tinham acabado de viver. Por ora, não havia perguntas. Nem respostas.

Só presença.

E isso, entre eles, era o suficiente.

Notes:

O que acharam? :)

Chapter 10: X

Notes:

Boa noite! :)

* Obrigada a todos pelos comentários e pelo carinho com a história. Vocês são demais! <3
* Este capítulo se passa logo após a entrega dos dois na suíte do The Royal Horseguards, em Londres.
* É um momento íntimo, delicado e crucial na trajetória deles.

Boa leitura!

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Músicas do capítulo:

Video Games - Lana Del Rey

All I need - Radiohead

Feet don't fail me now - Joy Crookes

Luz dos Olhos - Cássia Eller

 


 

X

(PASSADO)

 

LONDRES – 1996

Suíte do Hotel The Royal Horseguards – 03:15 A.M

 

Fernanda acordou com uma leve pressão na têmpora.

Uma espécie de incômodo que parecia mais cansaço do que dor. O corpo inteiro parecia sussurrar os traços da noite anterior: o vinho, o riso abafado, o flerte fatal e meticuloso, o desejo devorado sem pressa. Estava deitada de lado, envolta num lençol desfeito, a perna esquerda entrelaçada na dobra de um cobertor leve. Por um segundo, não soube onde estava. E então olhou para o lado.

Walter.

Ele dormia profundamente.

Estava de bruços, o rosto enterrado no travesseiro, o braço esquerdo estendido como se, mesmo dormindo, ainda tentasse alcançá-la. O lençol escorregava sobre a linha da lombar, revelando as costas nuas e um descanso tão profundo que fazia parecer que o tempo, ali, tinha desacelerado. Dormia como se o corpo tivesse, enfim, encontrado trégua.

A respiração era profunda e serena, e havia nele uma vulnerabilidade rara. Ele trazia consigo a paz de criança adormecida que contrastava com tudo que o mundo projetava sobre ele. E isso, vindo de alguém como Walter, doía um pouco. Fernanda o observava assim, à distância de poucos centímetros, com os olhos quietos e devotos de quem se dá conta de que algo precioso está acontecendo e deve capturar este momento rápido antes que desapareça feito fumaça no ar.

O coração ainda batia com lembranças.
O jantar. A dança. O vinho.

A respiração entrecortada dela contra a parede do quarto. O corpo dele dentro do dela. A forma como ele dizia tudo sem precisar de palavras.

E depois…

— Você quer ser minha namorada?

A pergunta veio do nada. Do cansaço, da entrega, da alegria sem nome. Veio com a cabeça dela apoiada no peito dele, com a mão ainda descansando sobre o ventre dela como uma promessa feita em silêncio.

Ela sorriu, de novo, lembrando. Um sorriso curto, bobo, íntimo.

Aquela frase tinha se alojado num lugar fundo. Não pela formalidade do termo em si — “namorada” soava quase adolescente, deslocado para quem já carregava décadas nos ombros, mas pelo modo como ele disse. A voz baixa, exausta e doce, como quem entrega o último pedaço de si e pede silêncio em troca.

Havia verdade ali.
Uma verdade límpida. Quase infantil.

E havia, também, um universo inteiro contido naquela pergunta.

O universo dele.

Fernanda se deu conta disso num lapso. Que agora, de algum modo, ela fazia parte do mundo dele. Do espaço íntimo. Dos bastidores. Das entrelinhas. Não como lembrança ou ponto de interrogação mal resolvido, mas como presença. Como mulher. Como parceira. E aquilo, que deveria ter sido bonito — e era, em alguma camada — trouxe junto uma sensação esquisita. Como se o mundo dele fosse grande demais. Sofisticado demais. Limpo demais. Como se ela estivesse ocupando um lugar que, cedo ou tarde, alguém viria cobrar de volta.

Sentiu-se ingrata por pensar assim.
Culpada, até.

Justo ali, naquele instante em que tudo parecia tão certo, tão calmo, tão quente.

Culpou a dor de cabeça.

A pressão latejava atrás dos olhos, ameaçando crescer. Era o vinho, provavelmente, ou só a ressaca emocional de quem viveu intensamente nas últimas horas. Levantou-se com cuidado, sem fazer barulho, e caminhou até a bolsa. Encontrou o Advil entre batons e recibos dobrados e tomou com o resto de água esquecida no copo. Sentiu o chão frio sob os pés. Quis uma manta, ou qualquer coisa que fosse vestível. Cruzou o quarto em silêncio até o espaço que Walter havia improvisado como closet.

As roupas dele ainda estavam parcialmente na mala — camisas de algodão dobradas com cuidado, alguns casacos pendurados no armário. Um par de sapatos italianos alinhado no chão. Um detalhe ou outro de desorganização que, nela, causava ternura.

Havia uma ordem silenciosa naquela bagunça contida.

E havia algo mais. Algo que a fez sorrir de leve.

Walter, mesmo bilionário, não era homem de ostentação. Preferia a elegância implícita, o conforto discreto, o luxo que ninguém precisava ver. Nada ali gritava poder, mas tudo, em silêncio, dizia quem ele era. As camisas quadriculadas em flanela, aquelas que ele usava nos dias de gravação, de mangas arregaçadas e barba por fazer. Um terno escuro, evidentemente caro, com a lapela ainda marcada por uma etiqueta removida às pressas. Jeans dobrados com cuidado. Gravatas macias. Um suéter de algodão em tom de vinho. Nada ali gritava luxo, pois tudo nele sussurrava gosto.

E então, ela viu algo que a fez parar.

Entre as peças mais recentes, dobrada com o mesmo carinho das outras, havia uma camisa branca de algodão. Um pouco amarelada pelo tempo. O tecido já não era tão macio quanto fora um dia, mas ainda guardava a leveza das primeiras lavagens. Na frente, em silk-screen desbotado, a imagem.

Ela.

Era uma cena do Terra Estrangeira.

Ela no porto, os cabelos ondulados e rebeldes colados ao rosto, os braços envoltos no colega de cena, o navio ao fundo. Acima, num canto discreto, o título do filme carimbado sem pretensão: Terra Estrangeira.

E nada mais.

Ficou parada.

O espanto foi silencioso, quase imperceptível, mas real. Aquela camisa não era uma peça de merchandising — era de Walter. Estava ali, dobrada com o mesmo zelo das camisas quadriculadas, como se fosse apenas mais uma. Mas não era.

Era íntima demais.

Intimidade que ela não sabia que ainda habitava nele com tanta delicadeza. Passou os dedos pelo rosto impresso no tecido, os olhos fixos naquela versão um ano mais jovem de si mesma, molhada, entregue à cena, ao personagem, ao mar.

E a lembrança veio.

Era tarde no set. Precisamente, estavam em Cabo Verde.

O sol começava a se curvar sobre o cais, tingindo de âmbar os contornos metálicos da produção. Fernanda atravessava o pátio com a blusa de linho presa na cintura e uma garrafa d’água na mão, quando ouviu, pela terceira vez no dia, alguém repetir — entre risos abafados — que Walter andava dizendo por aí que ela era “a coisa mais cara daquele filme”.

A primeira vez viera do operador de som, num comentário solto. Depois, a maquiadora, com o pincel no alto e um sorriso cúmplice no canto da boca. Agora era o rapaz da assistência de direção, rindo entre uma anotação e outra no script de continuação.

— É sério — ele disse. — Walter falou que a Fernanda e o helicóptero são os dois maiores riscos de orçamento.

Ela fingiu indiferença. Mas, por dentro, uma onda morna começou a se espalhar no peito. Não era só a frase — era o jeito como diziam. Como se ele falasse aquilo não por vaidade ou afetação, mas por cuidado.

E ela soube, mesmo sem ter ouvido da boca dele, que havia verdade ali.
Aquela frase vinha dele.
E significava mais do que os outros podiam imaginar.

Um sorriso inevitável escapou pelos lábios. Discreto. Quase infantil. Mas cheio. Porque, por mais que tentasse manter a dureza da profissão, ela sabia reconhecer quando alguém a colocava sob proteção.

Naquela noite, as luzes do set estavam mais rigorosas. Havia tensão no ar. A cena envolvia um carro antigo, mal-conservado, caindo aos pedaços e uma manobra difícil. Era um take delicado, pois, Alex, a personagem de Fernanda, devia apontar uma arma para Paco num gesto brincalhão, até que, por um leve descuido, a arma disparava, estilhaçando o vidro da janela do carro. Um segundo depois, o susto: o carro girava num zerinho abrupto, violento, jogando poeira e adrenalina no ar.

Não era uma sequência simples. A estrada não permitia erros. E foi Walter quem decidiu fazer a cena como dublê, assumindo o volante no lugar do ator. Disse que era por segurança — ele era piloto, afinal — mas Fernanda sabia que era mais do que isso. Era também cuidado. Controle. E, talvez, a vontade de estar perto.

Ela entrou no carro sem dizer nada. E o encontrou já no banco do motorista, ajustando o cinto com calma e foco. O casaco de couro marrom descansava no banco de trás. Ele vestia uma camiseta cinza e os cabelos estavam ligeiramente úmidos de suor. A ansiedade e a excitação pairavam no ar.

Só os dois. Sem câmera dentro. O take seria externo.

Ela fechou a porta, se ajeitou no banco e esperou o "ação". Mas antes, se virou para ele, e com um tom leve, quase blasé, disse:

— Então é verdade que você anda por aí dizendo que eu sou a coisa mais cara desse filme?

Walter sorriu de leve, sem virar o rosto. Balançou a cabeça devagar, como quem já esperava pela pergunta.

— Eu achava que fosse o helicóptero — completou ela, com desdém ensaiado na voz. — Mas parece que estou ganhando a disputa.

Ele permaneceu em silêncio por um segundo, ajustando o espelho retrovisor. E então, com os olhos fixos no volante, respondeu com a voz baixa, sem ironia:

— Você é a coisa mais cara daqui, Fernanda.

Houve um breve silêncio.

A frase pairou no carro como um segredo revelado sem alarde.
Não veio com charme, nem com afetação — veio seca, real, como tudo que ele dizia quando estava com medo.

— Eu não posso deixar nada de ruim acontecer com você — ele continuou, girando o volante devagar, como se se preparasse para a coreografia de um touro enjaulado. — Porque se algo acontecer, Dona Fernanda e Seu Fernando me matam.

Fernanda soltou uma risada abafada, quase como quem disfarça um arrepio. Ainda olhando para ele, o canto da boca puxado num sorriso travesso, disse:

— É, Salles… eu sou cara mesmo. – Virou-se um pouco no banco, puxando o cinto com elegância distraída. — Preciosa, até.

O sobrenome, dito daquele jeito, escorregando dos lábios dela como quem prova o som antes de entregá-lo — era quase um feitiço. Walter sentiu. No corpo inteiro. Ela o chamava de Walter na maioria das vezes. Mas quando deixava escapar o “Salles”, daquele jeito, carregado de ironia afetuosa, o efeito era sempre o mesmo: um acendimento por dentro. Como se ela tocasse não só no nome, mas no sangue, na linhagem, no que ele era e no que negava ser. Era íntimo. Era visceral. E ela sabia.

Foi por isso que ele não sorriu. Apenas a olhou. De verdade. Como quem vê uma cena que deseja guardar na memória quadro a quadro. E então respondeu — baixo, com aquele charme quase mascarado de simplicidade que ele sabia usar como ninguém:

— Eu sei disso.

Fez uma pausa, o olhar ainda cravado nela.

— Por isso tomo tanto cuidado com você.

Não disse com malícia, nem com urgência. Disse como quem crava uma verdade na terra. Como quem delimita um território. E a frase ficou ali, suspensa entre os dois, como um segredo trocado à meia-luz.

Fernanda desviou os olhos por um instante, fingindo observar o movimento da equipe ao redor do carro. Mas ele percebeu. A pele dela reagia, mesmo quando ela tentava disfarçar. Havia um silêncio vibrando nos ombros dela, na linha do maxilar, na forma como o pé se movia involuntariamente no assoalho do carro. O motor do carro ainda estava desligado. Mas havia um ronco invisível no ar. Algo prestes a começar. Algo que só existia na tensão dos segundos antes da ação.

Walter se inclinou um pouco para o lado e, sem pressa, começou a repassar as instruções com a mesma voz calma que usava no set — firme, sem autoritarismo, mas impossível de desobedecer. Aquelas palavras vinham com cadência, quase como um roteiro invisível que apenas ele sabia escrever.

—  A gente vai gravar em dois blocos. Primeiro o externo: a câmera pega o carro vindo da curva, e logo depois, o giro na estrada. Essa parte é comigo.  — Ele apontava com os olhos, as mãos no volante. — Quando eu girar, você segura firme o banco. Só isso. O resto, eu faço.

Ela assentiu, mas não conseguia parar de observar o modo como ele se tornava outro naquele espaço. Um tipo de Walter que aparecia só na direção — concentrado, sereno, mas absolutamente em comando. Havia algo hipnótico na maneira como ele organizava o caos em torno de uma imagem. Como se tudo no mundo pudesse caber dentro de um plano bem filmado.

Com Walter, até o perigo parecia ensaiado. Mas não era controle pelo controle. Era zelo. Era instinto. Era difícil não ficar fascinada com ele assim. Com aquele Walter que falava pouco, mas dizia tudo. O mesmo que a fazia se sentir segura só por existir ao lado dela.

— Entendeu direitinho? — ele perguntou, puxando-a de volta do devaneio.

Ela sorriu, quase envergonhada do transe, e respondeu com leveza, como quem recita:

— Segurar o banco com firmeza. Evitar me mover durante o giro. Esperar o ponto certo pra sair do quadro. Não tocar na porta. E… não esquecer de respirar.

Walter soltou um pequeno riso pelo nariz, satisfeito. Mas não tirou os olhos do painel.

— E cuidado com a cabeça. — disse, mais baixo. — A última coisa que eu quero é você batendo a cabeça nessa lataria enferrujada.

Fernanda olhou pra ele com ternura discreta. Era sempre assim. No meio da cena, no meio do risco — o cuidado. Do tipo que não fazia alarde, mas que cobria como um cobertor invisível.

— Cuidado você também. — ela respondeu, mais séria agora. — Não quero ter que explicar pros produtores que o diretor do filme resolveu conhecer São Pedro antes da hora... e por minha causa.

Ele virou o rosto devagar. O olhar pousou sobre ela como se fosse a primeira vez.

E por um segundo, Cabo Verde desapareceu.
O set sumiu.
As luzes, as câmeras, o roteiro — tudo evaporou.

Ficaram só os dois.
Dentro de um carro velho.
Com os corações batendo fora do peito.

— Pronta? — ele perguntou, a voz rouca, mas doce.

A pergunta era simples. Mas no fundo, Fernanda sabia, havia algo há mais naquela singela pergunta. Não era só sobre o carro. Não era só sobre a cena.

Era confia em mim?
Era a gente vai junto?
Era me dá tua mão sem saber onde isso vai parar?

Ela ajustou o corpo no banco. Respirou fundo.
E sorriu, com aquele sorriso torto que só ele entendia.

— Pronta. — respondeu.

Fernanda piscou devagar, como quem retorna de um mergulho fundo demais.

A lembrança ainda dançava em sua cabeça — o giro do carro, o som dos pneus no asfalto molhado, o sorriso de Walter, a frase que a atravessou como uma flecha discreta: “Você é a coisa mais cara daqui, Fernanda.” Era estranho como certas palavras, ditas com tanta naturalidade, continuavam reverberando após certo tempo.

Com um arrepio leve nos braços, olhou ao redor em busca de algo para se cobrir. Os olhos recaíram sobre a camisa de algodão branco. Aquela mesma que ela estava segurando. Com a estampa antiga de Terra Estrangeira, o navio ao fundo, ela abraçada a Paco — ou melhor, a Fernando. Era a peça mais íntima e absurda entre as do closet. E era, naquele instante, exatamente o que ela queria vestir.

Puxou-a com cuidado. O algodão era velho, mas ainda quente do passado. Vestiu-a por cima da pele nua, e o tecido a envolveu como um manto sagrado — um abraço antigo, uma segunda pele com memória. Fernanda puxou a gola para mais perto do rosto e, por um instante, sentiu que vestia uma década inteira — de filme, de set, de juventude.

Dele.

Desviou os olhos para o restante do closet. Foi que o olhar dela, curioso, tropeçou em um frasco de vidro preto, repousado com precisão quase cerimonial sobre a prateleira superior. Ela se aproximou com passos lentos. Era um perfume.

Acqua di Parma. Colonia Essenza.

Reconheceu na hora o cheiro.

Era dele.

Não era aquele perfume forte que invade a sala antes da pessoa entrar. Caro não pelo preço, mas pelo silêncio que deixava quando se afastava. Limpo, seco, masculino. Um amadeirado cítrico que não anunciava sua chegada, mas que permanecia no ar muito depois que ele ia embora. Carregava o frescor limpo da manhã e o peso denso de algo que não precisa se anunciar.

Havia ali também uma nota escondida de patchouli — discreta, terrosa, quase como uma lembrança de bosque no fim da tarde. Não era um perfume espalhafatoso.
Era uma assinatura olfativa que pertencia a ele.  Era o tipo de cheiro que impregnava a gola da camisa, o banco do carro, o lençol de hotel. E, sobretudo, a memória. Ela levou o frasco ao nariz com cuidado, como quem manuseia um relicário. Inspirou devagar.

Na mesma hora, uma imagem se projetou dentro dela: Walter se aproximando no set, a câmera rodando, os olhos dele atentos, a boca próxima do ouvido dela para ajustar um detalhe, sussurrar uma nuance ou maneirar uma expressão.  E então, o cheiro. Sempre aquele cheiro. Invadindo as narinas, instalando-se no fundo do cérebro, como uma assinatura olfativa impossível de deletar.

Ela devolveu o frasco à prateleira com a mesma delicadeza de quem fecha um livro raro. O nome “Colonia Essenza” ficou gravado na memória como uma senha silenciosa. Não disse em voz alta, nem para si. Guardou. Como se guardar o nome fosse também guardar o homem.

De volta ao quarto, a penumbra era a mesma. Walter não havia se mexido.
Continuava deitado de bruços, o rosto voltado levemente para o lado, a expressão entregue, o corpo parcialmente descoberto como se tivesse adormecido no meio de um pensamento.

Fernanda contornou a cama com passos leves e se deitou com cuidado ao lado dele, ajeitando-se com a camisa de algodão ainda cheirando a passado. Precisava dormir. O voo para o Brasil iria partir em algumas horas e o corpo dela já dava sinais de cansaço. Walter murmurou algo entre os dentes. Inaudível, mas carregado de presença. Não foi palavra, foi instinto — como se o corpo dele, mesmo dormindo, se ajustasse à certeza de que ela estava ali.

Ela o observou de perto.

Naquela luz tênue, os traços dele pareciam ainda mais suaves. A pele marcada pelos anos e pelo sol, as rugas fundas ao redor da boca e dos olhos, o cabelo desalinhado. A testa, onde repousavam algumas pequenas pintas — quase imperceptíveis para qualquer um, exceto para quem o olhasse assim, de muito perto.

Fernanda inclinou-se devagar e encostou os lábios na testa dele — um beijo curto, quase imperceptível, mas cheio daquela ternura que só se acumula com os anos. Sentiu a pele morna sob a boca, o leve gosto salgado das horas que haviam passado juntos. Então se ajeitou ao lado dele, com cuidado, acomodando a cabeça no travesseiro, os corpos separados apenas por uma linha tênue de lençol e silêncio. Não pensou no dia seguinte, no voo de volta, no que viria depois. Apenas fechou os olhos, permitindo que o corpo cedesse, que a mente enfim se aquietasse. Era ali, ao lado dele, onde agora o cansaço encontrava abrigo.

 


 

Walter despertou devagar, como quem sobe de um mergulho fundo demais para a superfície. Ainda era cedo, e a luz que entrava pelas frestas da cortina trazia aquele cinza elegante das manhãs londrinas. Por um instante, não moveu nada além dos olhos, habituando-se ao quarto, aos cheiros, ao calor leve ao seu lado.

E então viu.

Fernanda dormia de lado, as costas levemente curvadas em direção ao peito dele. O cabelo despenteado caía em mechas sobre o travesseiro, e uma das pernas estava descoberta, a curva da coxa exposta com uma desatenção quase deliberada. Ela dormia como quem confia — sem reservas, sem esforço, entregue àquele intervalo raro entre o desejo e a paz. Mas o que capturou o olhar dele foi o que ela vestia. Uma camiseta dele.

A branca.

Aquela com a estampa desbotada de Terra Estrangeira. O pôster impresso no tecido, com ela abraçada a Paco no cais, o navio ao fundo. O título em letras pequenas, inclinadas no canto superior esquerdo.

“Então é assim que começa... ela já ficou com o meu casaco”, pensou. “Vai acabar levando embora metade do meu armário.”

Você andou mexendo nas minhas coisas, Senhorita Torres. — Ele murmurou baixinho como se estivesse proferindo uma oração, um sorriso de afeto surgiu nos lábios dele ao vê-la naquele estado de entrega e inconsciência.

Iria se certificar de caçoá-la mais tarde, com alguma provocação bem colocada — talvez no avião, talvez no elevador. Por ora, apenas a observou. O rosto suavizado pelo sono, as mãos encolhidas sob o travesseiro, o leve franzido entre as sobrancelhas que nunca a abandonava completamente, nem mesmo adormecida.

Com a ponta dos dedos, acariciou de leve a lateral do rosto dela, onde um fio de cabelo se enrolava perto da orelha. O gesto foi breve, mas íntimo. Como quem não toca para acordar, mas para memorizar. Olhou o relógio na mesinha ao lado da king-size. Era sete da manhã.

Decidiu deixá-la dormir mais um pouco. O voo era só no meio da tarde, e ainda havia tempo antes de cruzarem de volta o Atlântico — cada um carregando um peso que ainda não sabiam como dividir.

Walter se levantou com cautela, puxando a camiseta jogada sobre a cadeira sem desviar os olhos dela. Dobrou as roupas com o cuidado de quem entende que o silêncio, naquela hora, é um pacto — não com o sono, mas com tudo o que ainda pairava entre eles.

A mala aberta no canto do quarto exibia camisas e calças meio dobradas, meias escondidas em nichos improvisados, um guia turístico de Londres usado como marcador de passagem. Ele começou a organizar tudo em silêncio, como se arrumar a mala fosse uma forma de ordenar o pensamento. Foi quando o telefone da antessala da suíte tocou.

Seco. Antigo. Disparou como um alerta.

Walter franziu o cenho. Era cedo demais para ligação da recepção. E ninguém, além de Daniela Thomas e a equipe do filme, sabia que ele e Fernanda estavam ali.  Porém Dani e os outros já tinham voltado ao Brasil, logo após o Festival de Roterdã. Só ele e Fernanda haviam estendido a estadia por alguns dias — uma fuga velada, um tempo suspenso que ninguém mais precisava entender.

Caminhou até o telefone com passos lentos, mas firmes, atento para não despertar Fernanda no quarto ao lado.

— Bom dia. Walter falando. – Atendeu com a voz baixa, educada, e um inglês polido de quem aprendeu cedo a usar a elegância como armadura.

 — Bom dia, Senhor Salles. Há uma chamada internacional para o senhor, vinda do Brasil. Podemos transferi-la para este ramal?

Walter parou por um segundo. O coração não acelerou, mas algo no peito se retesou — aquele tipo de tensão que não se anuncia, mas se instala. Pensou no pai. Nos irmãos. Alguma emergência? Ou pior: alguma tentativa de atravessar o véu que ele cuidadosamente havia estendido sobre aqueles dias.

— Pode transferir, sim. Obrigado.

O clique seco antecedeu o silêncio breve e denso, como se até o telefone soubesse o que vinha a seguir. Do outro lado da linha, vinda do Atlântico, uma voz que ele conhecia. Reconheceu de imediato. Familiar, seca, revestida de autoridade disfarçada de preocupação.  E o que esperavam que ele fosse. Walter não respondeu de imediato. Apenas fechou os olhos por um segundo. Um só. Quando os abriu, algo em sua expressão havia mudado.

Sutil.

Silencioso.

Mas definitivo.

O maxilar contraiu — quase imperceptivelmente, como se o corpo respondesse antes da mente. E, ainda assim, ele se manteve imóvel. Elegante. Contido. Como sempre fora treinado a ser. Ele sabia exatamente o que aquela ligação significava.

 

 

Ainda era manhã. Uma manhã cinza, londrina, que pousava com mansidão sobre a janela parcialmente entreaberta. A luz mal insinuava sua presença, como se respeitasse o que quer que estivesse adormecido ali dentro. Mas Fernanda já não dormia por inteiro. Cinco, talvez dez minutos antes de acordar, ela mergulhava ainda mais fundo — como se, em vez de emergir do sono, estivesse sendo puxada para dentro dele. Era aquele estado liminar, frágil, em que o corpo começa a despertar, mas a mente insiste em permanecer. A lembrança recente transformada em sonho voltava em fragmentos.

A respiração já tomava o ritmo do dia, mas o espírito... o espírito ainda estava preso lá. E lá, era outro tempo.

O sonho não era linear.

Era feito de recortes, sobreposições, cortes bruscos como num filme experimental. Primeiro, os cheiros — o do vinho francês no fundo da taça, o do perfume dele, limpo e amadeirado, colado ao pescoço dela. Depois, a imagem do restaurante — as luzes do Clos Maggiore filtradas por ramos de cerejeira suspensos, a penumbra de velas, a respiração de Walter próxima, a boca dele roçando seu ouvido. A maçã vermelha sendo cortada em duas. Ou seria uma romã?

A fruta agora estava nas mãos dele. Não sobre a mesa, mas no escuro — um escuro simbólico, de caverna, de ventre do mundo. Ele a estendia para ela com olhos de deus pagão. Um Hades contemporâneo, oferecendo a ela não o inferno, mas o destino. Ela aceitava a fruta. Mordia. O suco escorria doce e rubro pela mão. Havia prazer e entrega. Mas também uma promessa silenciosa de que nada seria leve dali em diante.

O sabor era doce. Mas havia algo de ferro ali. De sangue e de fim.

O sonho a conduzia como uma viagem suave. Cortava para os dois dançando sob luzes que pareciam respirar. Ela rodava nos braços dele, mas a música era muda, e o chão parecia afundar a cada giro. Tudo era sensual, quente, abafado, como uma sala sem janelas. A suíte do hotel surgia como uma extensão dessa dança — os corpos colados, o lençol ao chão, a voz dele grave ao pé do ouvido. As palavras sussurradas com aquela urgência que só tem quem sabe que está perdendo algo enquanto ganha.

Ele dentro dela. Ela arfando.

Os olhos dele escuros, flamejantes. A pergunta — “Você quer ser minha namorada?” — dita entre um suspiro e outro, como quem oferece um pacto.

Mas alguma coisa mudava.

A temperatura caía.

A luz esvaía.

E ela sabia, mesmo sem entender, que precisava ir embora. Era o preço da romã. O submundo não permitia permanência. Walter se afastava como sombra puxada por maré. Ela estendia a mão, mas era tarde. Ele desaparecia. Ela, sozinha. Com o gosto da fruta ainda na boca. E então o silêncio. Um silêncio que não era morte. Era passagem.

Do nada, uma imagem se acendia.

Eles dois estavam na caçamba de uma picape 4x4. A estrada era deserta, e à frente só existia o céu. A Patagônia emoldurada por um campo de gelo e estrelas. O frio cortava o ar ao redor, mas entre eles havia um calor tranquilo. Assistiam à aurora astral. Um céu impossível, de tintas cósmicas, como se o universo tivesse aberto uma exposição transcendental e privada só para eles. Walter estava deitado no colo dela. As mãos dadas. Ambos com rugas. Cabelos grisalhos. Um par de alianças discreto brilhando nos dedos de ambos. Ela olhava para ele com uma serenidade que não conhecia ainda em si.

— Se você pudesse ver toda a sua vida do início ao fim... mudaria alguma coisa? — perguntou ela, com a voz da idade e do amor acumulado.

Walter ergueu os olhos para ela. Sorria com a melancolia de quem já viveu tudo, mas ainda se espanta com a presença dela.

— Talvez... — murmurou. — Talvez, eu dissesse mais o que sinto. Com mais frequência.

A Fernanda espectadora sentiu o baque. Aquela fala caiu como um presságio. Ou uma súplica. Era ela ali, sim. Mas era outra também. Uma versão que havia sobrevivido. Que sabia o preço de calar. Aquilo não era só um sonho. Aquilo era um aviso. A imagem se desfez devagar, como areia por entre os dedos. E tudo voltou ao escuro.

E foi então que o som do mundo real irrompeu. Um estalo agudo havia trinado seco, metálico, real.

Era o telefone do quarto.

Ela acordou com um sobressalto, o corpo ainda preso às camadas do devaneio. Levou alguns segundos para entender onde estava. Londres. Royal Horseguards. Walter. Eles. A camisa branca de algodão ainda envolta ao redor do corpo. O travesseiro afundado ao lado. Mas ele não estava mais ali.

A voz densa e grossa vinha da antessala da suíte. E era uma voz que ela não conhecia.

— Acha que tenho quantos anos? 16? — esbravejava Walter, em algum ponto da suíte.

Ela se ergueu na cama, o lençol escorregando pelos ombros. O quarto ganhava contornos. A camisa dele em seu corpo. A mala entreaberta exposta na mesa da suíte. A luz tênue filtrada pelas cortinas pesadas.

Mas era a voz dele que doía.

Não pela altura, mas pelo conteúdo.

— Eu já sou adulto, porra.

O coração de Fernanda começou a bater mais rápido. Ela se levantou devagar, ainda tonta do sono e do sonho. Aproximou-se da porta entreaberta, a respiração contida. A voz dele vinha da antessala, mas reverberava como se partisse de algum lugar mais fundo. Havia algo na entonação — uma fúria contida, quase elegante, mas cortante feito lâmina, que arrepiava a pele dela.

— Ninguém precisa tomar conta da minha vida. — repetiu ele, mais baixo, mas com uma intensidade que vibrava nas paredes. — Eu sei quem eu sou. E mais do que isso: sei, com todas as letras, quem eu não sou. Não serei um boneco moldado pra caber na vitrine de ninguém.

Ela respirou fundo, os batimentos acelerados. Aquela voz. Aquilo não era o Walter dela. Não o Walter da ternura precisa, da fala baixa, do cuidado meticuloso. Aquilo era outra coisa. Um lado encurralado. E ele não gritava.  Walter nunca gritava. Mas falava com uma raiva elegante, funda, como quem tenta, até o fim, manter alguma dignidade intacta.

— Eu não preciso de tutela. Nem de intervenção fraterna, nem de lembrete de pedigree.

Silêncio.

— Eu escolhi outra vida, sim. Uma que não cabe no conselho de administração. Uma que não rende dividendos no fim do mês, mas que me sustenta. Não foi à toa que eu me formei em Economia. Além disso, aprendi muito com o meu pai.

Fez uma pausa. O tom era contido, mas afiado igual a um bisturi.

— O que eu faço, o que eu escolhi, é meu. E só meu. Vocês sempre acharam que o caminho que escolhi era um mero capricho. Um desvio. Mas foi esse "desvio" que me manteve inteiro. Porque foi ali, atrás da câmera, que eu finalmente me escutei. Que eu encontrei alguma paz.

A risada que escapou foi seca, sem humor.

— Eu me recuso a pagar a minha vida com a moeda do conformismo!

O silêncio do outro lado da linha parecia persistente. Mas Walter não recuava. Andava de um lado a outro, a voz ainda firme, controlada. Mas por dentro, ela sabia: ele fervia.

Mais uma pausa. E então, veio:

— Como é que é?

O tom mudou. Mais seco. Mais cortante.

— Repita.

Fernanda sentiu um calafrio percorrer a espinha. A respiração dele falhou um instante.

— Eu acho bom você tomar cuidado com quem você fala. — A voz de Walter era um murmúrio tenso, cada sílaba impregnada de ameaça velada. — Eu acho bom.

Ela soube, naquele instante, que o que quer que tivesse sido dito do outro lado — sentia que dizia respeito a ela. Não sabia como, mas sentia nos ossos, no próprio âmago.

— Você não tem a menor ideia de quem ela é. Nenhuma. — Agora a voz era mais baixa. Mas havia algo feroz na contenção. – Ela é tudo o que vocês fingem admirar: inteligente, livre, íntegra. Mas não carrega sobrenome com cifra. E por isso incomoda. E podem ter o direito de não gostar. Mas não tem o direito de desrespeitá-la!

Bingo.

O estômago de Fernanda retesou. O coração batia alto demais no peito. E ainda assim, não era medo. Era outra coisa. Um espanto íntimo. Uma emoção antiga sendo nomeada do lado de lá da parede. Uma verdade despida, dita por ele. Por ela.

— Você não tem noção do que ela é. Não tem a menor ideia da força, da inteligência, da honestidade que essa mulher carrega. — E agora, cada palavra era como um corte limpo. — Ela tem mais integridade em um silêncio do que muita gente ao redor da nossa mesa de Natal em uma vida inteira.

Fez-se um intervalo breve. Uma pausa que parecia ecoar dentro dele.

E então, veio a pergunta.

Aquela que não precisava ser dita em voz alta para ferir.

Fernanda não ouviu exatamente. Mas o efeito foi visível. A atmosfera mudou. O ar pareceu rarefeito por um segundo. E quando Walter respondeu, a voz dele saiu como um fio de aço: educado, cortante.

— Com todo o respeito que tenho pela memória dela... — ele disse, pausado, cada palavra escolhida como se esculpisse mármore — ...ainda que ela estivesse viva, e ainda que estivesse aqui... eu não estaria interessado na opinião dela sobre com quem devo ou não dividir minha vida.

Silêncio.

Ele inspirou devagar. A voz que veio a seguir carregava um luto antigo, mas firme — como quem já havia enterrado essa conversa há muitos anos.

— A memória de alguém não deveria ser usada como régua para controlar os vivos.

Fernanda sentiu um arrepio na nuca.

Era uma daquelas frases que ela sabia que carregariam peso por dias. Talvez por anos. Talvez para sempre.

— Então se é essa a régua com que medem o amor... lamento. Mas eu tô fora. Se é isso que vocês têm pra me oferecer... — Walter disse, por fim, com um desprezo elegante, cansado — então, por favor. Poupem a energia. Eu sei muito bem quem eu sou. E pela primeira vez em muito tempo... eu também sei quem eu quero do meu lado. Eu quero estar com ela.

E então, com uma delicadeza que vinha mais como ironia que como suavidade:

— Obrigado pela preocupação. Mas a minha vida, por enquanto, ainda me pertence.

O clique seco do telefone preencheu o quarto como um ponto final. Um fim de linha. Walter permaneceu alguns segundos parado, o telefone ainda na mão, o olhar perdido em algum ponto da madeira escura da antessala. O que ele não sabia — ainda — era que do outro lado da parede, Fernanda também estava parada. Sentada. Os olhos presos no vazio. Os ouvidos ainda queimando. O corpo ainda tentando entender como era possível caber tanto amor e tanta dor numa mesma ligação.

E ela soube.

A partir dali, algo tinha se deslocado entre eles. Algo invisível, talvez inevitável. Porque por mais que houvesse beleza naquela defesa apaixonada, havia também uma rachadura. A porta entreaberta revelava o contorno da antessala ainda mergulhada na penumbra. O clique do telefone ecoava dentro dela como um abalo tardio.

O ponto final de uma conversa que, embora não fosse dirigida a ela, a atravessava inteira. O quarto permanecia silencioso, cúmplice do que acabara de acontecer. E ela, ali, entre o quarto e a antessala, pensava se devia cruzar a porta ou esperar que ele o fizesse.

Foi quando ouviu passos.

Walter vinha em direção ao quarto — não apressado, mas também não lento. Um passo entre o alívio e o constrangimento. Um passo de quem precisa sair de um lugar em chamas para respirar. Quando a porta se abriu, os dois se viram. E por um segundo, o ar pareceu pesar.

Walter estacou. Fernanda também.

Ele não se surpreendeu por encontrá-la ali. No fundo, já sabia. Sabia desde o momento em que sentiu o próprio controle se esgarçando do outro lado da linha. Sabia que aquela conversa, por mais que tentasse conter entre quatro paredes, já havia escapado. Já a havia alcançado.

E ela estava ali, com os olhos grandes, silenciosos, assustada. O susto não era só pelo tom da voz dele. Era por reconhecer um lado de Walter que não conhecia. Um lado menos solene. Mais ferido. E feroz. Ele respirou fundo. E quando falou, a voz veio diferente. Como se estivesse limpando a cena, tentando devolvê-los ao lugar onde o mundo ainda fazia algum sentido.

— Bom dia, minha cara Senhorita Torres. — disse ele, com uma suavidade que beirava o cuidado.

O apelido, tão naturalmente carinhoso, tão “Walter”, causou nela uma pequena fissura. Uma pequena ternura. Mas os olhos dele, os olhos não mentiam. Ainda havia fúria ali. Não dirigida a ela, mas transbordando da conversa anterior, acumulada nos músculos tensos da mandíbula, na linha rígida dos ombros.

Ela não respondeu de imediato. Apenas o observou. E então, com a voz ainda embargada pelo susto:

— Aconteceu alguma coisa? — ela perguntou, com aquela franqueza tranquila que só quem sabe lidar com dor sabe usar.

Walter hesitou. Não por covardia, mas por cálculo emocional. Porque ele sabia que, às vezes, o que se diz para proteger, fere. E o que se cala para poupar, pesa.

— Foi só uma ligação. Coisas da vida que não cabem nesse momento. Nada que precise te preocupar.

— Walter… — disse, com um tom que pedia atenção, não defesa. — Se eu estiver atrapalhando... se for eu o motivo dessa ligação, desse desconforto visível no seu rosto, me diga. Eu aguento ouvir. O que eu não aguento é não saber onde estou pisando.

— Você não tá atrapalhando nada. — respondeu, agora sem disfarce, mas ainda tentando conter o estrago que sentia prestes a acontecer. — Mas tem coisas que são minhas. E eu preciso lidar com elas antes de trazê-las pra você.

Ela assentiu, mas o gesto vinha carregado de outro tipo de entendimento.

— Talvez... — disse, com a voz mais baixa agora, quase reflexiva — talvez não seja uma boa ideia a gente continuar com isso.

A frase não foi dita com raiva. Nem com mágoa. Foi dita como quem constata uma falha estrutural numa casa bonita demais pra desabar. E ainda assim, prestes a desabar.

Walter se desfez por dentro.

— Nanda, por favor... não. — A voz saiu com uma urgência nova, vulnerável, quase febril. — Não diz isso.

Ela desviou os olhos por um segundo. Só o suficiente para evitar desmoronar.

— Eu só não quero ser... aquela parte da sua vida que, mais adiante, alguém vai apontar e dizer: " foi aí que ele errou."

Walter deu um passo à frente. E o que havia nos olhos dele já não era só afeto. Era súplica silenciosa.

— Você não é um erro. — disse, devagar. — Se tem uma coisa que me lembra quem eu sou, que ainda me ancora quando tudo parece ceder... é você.

Fez uma pausa curta, e foi fundo. Mais fundo do que costumava deixar os outros verem.

— Eu cresci ouvindo que precisava ser muitas coisas. Um nome. Um espelho. Um legado. E tudo isso foi... peso. Aparência. Estrutura. Mas com você, Nanda, não tem performance. Tem presença. Com você, tudo o que eu finjo ser não cabe. Porque você me vê e isso, pra mim, é aterrorizante. E... essencial.

Ele respirou, como quem chega ao fim de uma travessia.

— Se eu perco você agora, não é só o fim de uma história. É o fim do lugar onde eu ainda consigo ser verdadeiro.

Silêncio.

— Fica, por favor.

O silêncio entre eles pesava como vidro grosso. E ao mesmo tempo, era ali — exatamente ali — que morava a verdade. Naquela manhã, Fernanda conheceu dois rostos inéditos do homem que amava: o Walter tomado por uma fúria ancestral. E o Walter tomado por medo. O medo real. O que aparece quando se está prestes a perder aquilo que dá sentido ao mundo.

Havia uma quebra na voz dele, na linha do queixo, no modo como os olhos tremiam ligeiramente sem desviar dos dela. Fernanda nunca o tinha visto assim. Não em quase dois anos de convívio, não em meses de set, nem mesmo em horas de amor desarmado.

E naquele instante, algo nela cedeu. Não por pena, mas por reconhecimento. Porque no meio daquela tensão, entre a raiva ainda ressoando da ligação e a confissão muda do desespero, ela viu ali uma pureza. Uma doçura antiga, envergonhada, quase infantil. Um pedido nu, sem jogo, sem cálculo. Um homem pedindo que ela não desistisse dele.

Ela deu dois passos à frente, devagar. Tocou de leve o ombro dele.

— Eu não vou embora. — sussurrou.

Walter respirou como se estivesse voltando à superfície depois de muito tempo submerso.

E então, antes que ela dissesse qualquer coisa, ele se ajoelhou.

Ali mesmo, sobre o carpete macio da suíte, no chão de uma manhã londrina ainda acinzentada. Ajoelhou-se com os olhos cravados nela, e, num gesto inesperado e avassalador, envolveu a cintura dela com os braços e encostou o rosto na barriga dela e inspirou profundamente o cheiro dela que se misturava com o amaciante da camiseta dele que ela vestia.

Beijou ali.

Não com erotismo. Mas com devoção.

Beijou como quem agradece, como quem jura fidelidade, como quem encontra o altar onde finalmente pode descansar.

— Obrigado... — murmurou, o rosto ainda colado ao ventre dela. — Obrigado. Obrigado. Obrigado.

O calor da respiração dele queimava a pele de Fernanda. E, de repente, ela se viu com os olhos marejados, os dedos afundando nos cabelos dele, puxando com cuidado, como se o embalasse.

Beijou o topo da cabeça dele com um cuidado ancestral, e inalou — devagar — aquele cheiro de pele, de perfume, de Walter. Um cheiro que ela conhecia há anos e, ainda assim, nunca conseguia nomear sem estremecer por dentro.

— Mas você tem que me prometer uma coisa. — disse ela, com a voz baixa, quase uma partitura. — Me prometer que vai sempre me contar a verdade. Sempre. Seja bonita ou não.

Walter ergueu o rosto devagar. Os olhos ainda úmidos, mas com aquela lucidez grave que sempre morava nele quando falava sério.

— Sim. — disse. — Eu acho justo.
Fez uma breve pausa. E completou:
— Esse problema é meu, tá bem? Me deixa resolver.

E ali estava, de novo, o Walter que ela conhecia. O homem que amava o controle não por vaidade, mas por responsabilidade. Que colocava o corpo na frente do caos quando podia. Que sabia proteger, até de si mesmo.

Fernanda assentiu. E abaixou-se um pouco para nivelar o olhar com o dele.

— Tá bem. Lembra que eu não sou de vidro. Eu aguento. — disse, tocando a lateral do rosto dele com ternura. — Só não me deixa no escuro. Estamos nisso juntos. Certo?

— Certo. – Ele assentiu baixinho. Walter a olhava como se estivesse na presença de algum ser iluminado, um ser que havia lhe absolvido dos seus pecados.

Ele fechou os olhos, por um segundo. Um segundo apenas. Depois se levantou devagar, puxando-a para perto. Abraçou-a firme, com as mãos espalmadas nas costas dela, como quem aprende o contorno de um porto seguro.

Ainda entre os braços dele, Fernanda sentiu o aperto se tornar mais suave. Um gesto menos urgente, mas ainda necessário — como se Walter, aos poucos, se permitisse voltar a respirar. O silêncio que se seguiu era espesso, cúmplice. E então, com a voz mais leve, ele murmurou perto do ouvido dela, a boca quase roçando os fios desalinhados do cabelo:

— Essa camiseta... não era sua, da última vez que conferi.

Ela soltou uma risada baixa, abafada contra o peito dele. Walter afastou o rosto apenas o suficiente para encará-la, os olhos ainda vermelhos do embate anterior, mas agora tingidos com um brilho brincalhão.

— Parece que alguma ratinha andou fuçando nas minhas coisas enquanto eu dormia.

— Ratinha? — ela arqueou uma sobrancelha, fingindo ofensa. — Ontem à noite eu era sua coelhinha. Hoje sou uma ladra de closet?

— É que a coelhinha estava mais comportada ontem à noite... — disse ele, com um sorriso enviesado, quase tímido, mas cheio de malícia contida.

Fernanda balançou a cabeça, divertida, os olhos faiscando.

— Eu acordei no meio da madrugada com frio. — explicou, com a voz ainda arranhada de sono. — Minhas roupas estão todas na minha suíte. E aí... — ela puxou um pouco a barra da camiseta, olhando para o próprio corpo com um fingido ar de inocência — essa estava ali, dobrada, me chamando.

Walter cruzou os braços, teatral, como quem avaliava o cenário de um crime minucioso.

— Primeiro foi o casaco. Agora a camiseta. É um complô bem planejado.

Fernanda arqueou uma sobrancelha, sarcástica.

— Só pra constar nos autos: o casaco foi ideia sua. — disse, apontando com o queixo para ele. — Você que me cobriu anteontem quando estávamos voltando de Knebworth.

Ele deu de ombros, fingindo culpa.

— Mas, sim... você tinha razão. — Continuou ela, abrindo um sorriso travesso. — Eu não ia devolver mesmo. Daqui a pouco eu tô levando suas meias também.

— E meu sobrenome. — Murmurou ele, mais baixo, quase sem pensar. E quando percebeu o que tinha dito, não recuou — apenas a olhou, sério de novo, como quem sabe que às vezes a piada diz mais do que o silêncio.

Fernanda sustentou o olhar. O silêncio que se instalou depois disso não era constrangido — era contemplativo. Como se ambos tivessem parado, por um segundo, para escutar o eco do que não foi dito.  Por um segundo, a leveza se curvou àquele subtexto que sempre pairava entre eles — como se qualquer brincadeira carregasse, também, a promessa de um futuro possível. E então, como se algo no corpo reconhecesse antes da mente, ela lembrou.

Do sonho que teve há instantes.

Eles dois, mais velhos.

A curva da estrada deserta no sul da Patagônia.
A carroceria da caminhonete aberta sob o céu costurado de estrelas.
O vento cortando o silêncio como uma canção baixa.
Walter deitado em seu colo.
Uma aliança discreta no dedo esquerdo dele. E no dela.
Nenhuma palavra dita entre os dois — e, ainda assim, tudo compreendido.

Fernanda alisando os cabelos grisalhos dele com os dedos, como quem agradece por ter chegado até ali inteira.

E a sensação. Aquela sensação.

Uma paz inexplicável. Como se, depois de todas as perdas, desvios, silêncios, eles tivessem finalmente se encontrado na linha certa do tempo. Como se o amor deles tivesse resistido — não por sorte, mas por insistência. Como se fosse inevitável.

E agora, ali de pé, de camiseta alheia, no meio de uma manhã em Londres, Fernanda sentiu o presságio como um sopro morno nas costelas.

Fernanda Torres Moreira Salles.

O pensamento veio assim, inteiro, sem aviso. Como quem entra sem bater. Quase falou em voz alta. Como se pudesse conter o próprio impulso com um comando racional. A lembrança do sonho se misturava ao presente, embaralhando o tempo. Não sabia se era premonição, desejo ou só delírio do inconsciente. Mas o corpo já havia sentido.

Aquela ideia — de carregar o nome dele — lhe provocava algo entre vertigem e devoção. Não por status, nem por desejo infantil de pertencimento. Mas porque, naquele momento, Walter era uma espécie de lar. E, ainda assim, o sobrenome dele era absurdamente familiar aos sentidos dela. Como se já o tivesse usado numa outra vida.

“Acalma, Fernanda.” — pensou. — “Não vai romantizar o delírio antes do café da manhã.”

Fernanda sustentou o olhar dele, mas não por muito tempo. Sabia dos riscos de prolongar silêncios com Walter — silêncios demais entre eles costumavam virar abismos. Então desviou com leveza, puxando a gola da camiseta emprestada com os dedos, como quem ajeita uma lembrança.

— Pelo amor de Deus, homem… — disse, num tom que tentava soar casual, mas que carregava um traço de exaustão doce e incredulidade na borda das palavras. — Você é um dos homens mais bilionários do Brasil e está sonegando uma camiseta velha pra sua namorada? Eu pensava, sinceramente, que você fosse o último cavalheiro do mundo moderno.

A frase caiu com suavidade, mas o efeito foi imediato. Walter permaneceu em silêncio, os braços ainda cruzados, mas o olhar... o olhar mudou. Uma tensão quase imperceptível desenhou-se no contorno da boca, como se algo dentro dele tivesse se retraído, não de medo — mas de desejo antigo reconhecendo um nome.

Minha namorada.

Ele não sorriu de imediato. Apenas a observou, em silêncio. Como quem escuta uma nota musical rara que há muito não se ouvia. O mundo parecia ter diminuído à medida que aquelas palavras reverberavam — não pela novidade, mas pelo reencontro com uma ideia que ele já tinha carregado no corpo por décadas, mas nunca tinha ouvido dela, assim, em voz alta.

Então, com uma calma grave, Walter descruzou os braços e se aproximou. Os gestos dele, mesmo os mais simples, pareciam sempre coreografados por uma ternura contida. Tocou com o indicador a base do queixo dela, e com um gesto quase involuntário, ergueu seu rosto até encontrar seus olhos.

— Repita. — pediu, sem necessidade de explicar o quê.

Fernanda sorriu com a boca, mas hesitou nos olhos. Era raro ele pedir assim — sem rodeios. O silêncio entre eles ficou suspenso, morno, cúmplice.

— A frase toda? — murmurou ela, como quem precisa de tempo para lidar com a vulnerabilidade que se abre quando se nomeia o que se sente.

Ele negou com um leve balançar de cabeça. Um gesto curto, mas carregado de precisão.

— Só a última parte.

A respiração dela prendeu-se por um segundo. Não era mais brincadeira. Era uma dança delicada entre o lúdico e o íntimo. Ela sabia exatamente onde ele queria chegar, e sabia que responder seria, de algum modo, dar um passo para dentro de uma casa sem porta de saída.

Mas deu.

Aproximou o rosto do dele, e com a voz baixa, quase rouca, disse:

Sua namorada? – ela repetiu, com a voz rouca e baixa, como quem testa o som de uma palavra sagrada.

Walter manteve o olhar fixo. E então respondeu, sem hesitação, com um tom que parecia vir de algum lugar fundo — a voz mais grave, mais escura, mais próxima de um instinto do que de uma escolha:

Sim.

Aquela palavra não caiu como uma resposta. Foi um selo. Uma sentença dita com a solenidade de quem já sabia, há muito, que essa era a única verdade possível.

Fernanda sentiu o “sim” reverberar no corpo inteiro. Como se o timbre dele abrisse uma porta dentro dela — uma que ela não sabia mais que ainda existia. Era um “sim” que carregava o peso dos meses que eles se evitaram nas gravações, das vezes que se cruzaram em silêncio, dos olhares contidos e dos toques imaginados. Um “sim” com gosto de entrega e de risco.

E antes que pudesse reagir, ele a tomou com os braços firmes, numa agilidade delicada que a fez rir no susto. Com um movimento preciso, enlaçou as pernas dela ao redor do próprio quadril e a ergueu. O corpo dela agora suspenso, colado ao dele.

— Walter! — exclamou, entre surpresa e prazer.

Mas ele não disse nada de imediato. Apenas a segurou, como quem segura algo raro — e inevitável. Como se agora, naquele instante, não houvesse dúvida nem hesitação.

Minha namorada. — disse enfim, quase num sussurro grave, como quem invoca uma certeza primitiva, antiga. Não era para o mundo ouvir. Era para ela. Para o corpo dela. Para o nome dela sussurrado no escuro.

Fernanda o olhou por um segundo, os olhos marejando riso e alguma outra coisa que ela não nomearia. E então, com aquele sorriso que era só dela, respondeu:

Meu namorado.

Ele riu. E a beijou.

Não com voracidade, mas com entrega. A boca dele firme, quente, conduzindo o tempo como se o mundo tivesse voltado a girar no ritmo certo. Ela prendeu os dedos nos ombros dele, os quadris apertados contra os dele, e, por um segundo, não havia Londres. Não havia voo. Não havia fim.

Só eles dois. Nomeando o que até então era só intuição.

Ainda com o corpo dela entrelaçado ao seu, Walter caminhou lentamente pelo quarto, os pés descalços sobre o carpete espesso, até o banheiro. Empurrou a porta com o ombro, deixando que o vapor morno da ducha acesa se espalhasse no ar como uma promessa.

— Vamos? — murmurou, com um brilho nos olhos que misturava desejo e devoção.

Fernanda assentiu, a testa encostada na dele. O mundo lá fora que esperasse por eles.

 


 

Na varanda da suíte, Fernanda segurava a xícara de café com as duas mãos, como quem protege algo quente demais e, ao mesmo tempo, precioso demais para ser posto no chão. Estava enrolada em um robe claro, os cabelos ainda úmidos escorrendo pelas costas. A boca ainda tinha resquício do beijo anterior. O olhar, não.

Walter, ao lado, rabiscava algo na caderneta preta apoiada no joelho. As pernas cruzadas, o semblante concentrado. O polegar pressionando levemente a borda da folha enquanto a caneta se movia com a precisão de quem traça mapas invisíveis. Havia nele uma paz meticulosa, como se cada gesto precisasse honrar o silêncio entre eles. Era nesses momentos que Fernanda mais o reconhecia — não no toque, não na palavra dita, mas naquilo que ele fazia quando achava que ninguém estava prestando atenção.

Ela sorriu, de leve. Aquele era o Walter que lhe feria de amor: o dos detalhes, o do cuidado, o das pausas. O homem que escrevia antes de partir.

— O que você tá fazendo aí tão compenetrado, Salles? — perguntou, com um tom preguiçoso e afetivo.

Ele ergueu o olhar, e o sorriso veio devagar, como se já estivesse pronto dentro dele.

— Anotando umas coisas. — respondeu. — Quero passar numa loja de discos antes da gente ir pro aeroporto.

Fernanda arqueou a sobrancelha, surpresa.

— Você é um caso sério. — disse, rindo com um espanto doce. — Vai acabar fazendo a gente perder o voo pra comprar vinil.

— É um risco calculado. — respondeu ele, como quem acabava de aprovar um orçamento de última hora.

Ela riu de novo, mas havia um nó pequeno e quente surgindo atrás do esterno. Como uma angústia que espreita no vão entre o riso e o adeus. Fernanda desviou o olhar para a rua lá embaixo, para o céu que começava a se abrir em azul pálido. E, de repente, a realidade voltou a soprar em sua nuca.

E agora?

Era isso. Estavam indo embora.

E ela sabia. Sabia que a magia que pairava sobre aqueles dois dias não resistiria ao fuso horário. Ao desembarque. Ao retorno. Ao mundo que, lá fora, já os esperava com suas réguas tortas e suas perguntas indevidas. O mundo real esperava por eles com todas as suas dúvidas, obrigações, títulos e ausências. As perguntas iriam vir, e ela sabia disso. De jornalistas, de colegas, de amigos, de si mesma. Haveria olhares enviesados. Suspeitas. Comparações. E julgamentos — sempre eles. Julgamentos estes que não se pronunciam em voz alta, mas se fazem ouvir no som dos talheres em jantares.

Como se explica o fato de, em menos de 96 horas, você saiu para divulgar um filme e volta com a certeza de estar apaixonada por alguém que sempre esteve ali? Tinha ido à Europa, especificamente à Roterdã para divulgar Terra Estrangeira. E agora ela estava voltando com um namorado. Não qualquer namorado. Mas ele. O nome que não cabia em manchete de revista porque era grande demais para qualquer letra impressa. Como se traduz o que é estar com alguém que cresceu onde o mundo é herdado, não conquistado e, ainda assim, te olha como se fosse você o ponto fixo de tudo?

Era grande demais. Bonito demais. Assustador demais.

E, ainda assim, ela não queria que acabasse. Se pudesse, congelava aquele instante: o sol pálido no rosto dele, o som da caneta deslizando sobre o papel, o cheiro do café, o gosto da véspera ainda morando nela.

Walter.

Na simplicidade de um gesto, era casa. Era silêncio bom. Era o intervalo onde a vida podia, enfim, desacelerar. Ela o olhou de novo, como se quisesse guardar aquilo com a precisão de um arquivista. E pensou, sem precisar dizer em voz alta:

Se o mundo tivesse bom senso, nos deixaria viver nesse loop. Só mais um pouco.

Ela voltou os olhos para ele. Walter seguia escrevendo, alheio à agitação leve do mundo lá fora — a cidade acordando, os sinos distantes, o tilintar ocasional de uma louça sendo posta numa mesa de hotel. Cada letra que ele desenhava na caderneta parecia conter mais silêncio do que som. Fernanda sentiu algo se apertar dentro do peito. Um chamado, talvez. Ou só uma vontade antiga de interromper o tempo.

— Walter? — disse, com a voz mais baixa do que planejava. Ele levantou os olhos, atento.

— Hm?

Ela hesitou. Depois, deixando o olhar escapar por sobre o parapeito da sacada, soltou:

— Quanto tempo dura o eterno?

Ele franziu levemente a testa. A pergunta, solta assim no meio do café, parecia vinda de outro plano. E, de certo modo, era mesmo. Ela ainda estava ali, mas havia uma parte de Fernanda que não havia voltado do sonho. Aquela parte que costumava pairar entre mundos — o do desejo e o do medo.

Ele a observou melhor, pousando a caneta sobre a mesa. O vapor do café subia, quente, distraído. Mas o olhar de Fernanda estava longe. Um tipo de longe que ele conhecia bem. Era o longe das perguntas que não se quer fazer. O longe de quando ela estava prestes a cair num abismo de si mesma.

E então Walter percebeu. Aquela frase pertencia a Lewis Carroll. "Alice no País das Maravilhas". Aquela pergunta não era retórica. Era um pedido.

— Apenas um segundo. — respondeu, com suavidade.

Ela sorriu, sem olhar pra ele. Um sorriso que vinha mais dos olhos do que da boca. O tipo de sorriso que não se forma: apenas escapa. Ele havia entendido.

— Às vezes dura 48 horas. — disse, quase para si. A frase pousou entre eles como um lenço esquecido no ar. Frágil, íntimo, definitivo.

Walter não respondeu.

Não era necessário.

Mas a olhava agora com uma atenção que não se comprava, nem se aprendia. Uma escuta profunda, silenciosa, feita de amor e de presença. Era o tipo de olhar que não interrompia — apenas convidava.

E ela sentiu. Sentiu na pele, no fundo das costelas, que aquele silêncio era um espaço seguro. Um espaço onde ela podia dizer, ou não dizer. Onde a dor podia se espreguiçar sem ser empurrada de volta para dentro. Onde o medo, ao ser nomeado, não perderia sua força, mas ganharia forma.

E por um segundo, só um segundo, Fernanda cogitou dizer.

Dizer que tinha medo do depois.

Que aquela bolha de hotel, de caderno, de vinil, de manhã cinza — estava prestes a estourar. Que a realidade vinha vindo, com passaporte e fuso horário. E que ela, que sempre foi mulher de enfrentar tempestades, mas não sabia se aguentava perder aquela paz que estava sentindo ali, ao lado dele.

— E agora, Walter? — A pergunta veio no ímpeto, sem aviso prévio. — Como é que o nosso namoro fica... quando voltarmos? — completou ela. — Quando os passaportes forem carimbados, os telefones voltarem a tocar, e o resto do mundo lembrar que você é você... e eu sou eu?

Aquela última frase ficou suspensa. Não vinha de um lugar da autocomplacência, nem da insegurança infantil. Vinha do reconhecimento maduro das estruturas. Do peso dos nomes. Das expectativas que os cercavam. Fernanda se recostou na cadeira, o olhar agora perdido em algum ponto da manhã que se abria à frente deles.

— Você nasceu dentro de um mundo que sempre soube o que esperava de você. Eu... fui me fazendo à margem. Sempre fui. Você nasceu em berço de ouro. Eu nasci no berço da luta. Eu sou o improviso. Você é o projeto. E agora eu me pergunto se cabemos na mesma moldura.

Houve uma pausa.

— Eu sei como serei vista. A atriz. A impulsiva. A mulher divorciada. Livre demais, barulhenta demais. Que riu alto demais numa festa, ou que usou um vestido errado no jantar certo. Você sabe também.

Walter escutava sem piscar, os cotovelos apoiados nos braços da cadeira, o olhar sereno, mas atento.

— Se quiser... — começou ele, com a voz baixa, polida — podemos deixar isso entre nós por enquanto. Não por medo. Mas pra que você respire. Pra que a gente respire. Fez uma pausa. — Só os íntimos saberão. Os que entendem que o que temos aqui não precisa de plateia.

Fernanda suspirou, um som leve, como quem se permitia afrouxar a armadura só um pouco.

— Você é lúcido demais pra não saber que o nosso tipo de história não passa despercebida.


— Sim. — ele respondeu. — Mas talvez o que mais me fascina em você... é que você nunca fez questão de caber.


Ela o olhou, surpresa pela resposta.


— É exatamente por isso que eu te quero ao meu lado.

Um silêncio se estabeleceu, denso e confortável. Ela desviou os olhos, a fim de conter o rubor que sentia crescer sem permissão.

— Ainda assim... eu tenho medo. — confessou, com a voz limpa. — Medo do que vão dizer. Sobre mim. Sobre você.

Walter apoiou o corpo pra frente e disse com um sorriso quase imperceptível:

— Eles sempre vão dizer algo, Fernanda. – repetiu ele, num tom mais calmo, mas sem perder a firmeza. — E talvez por isso mesmo a gente precise se blindar. Não com mentira. Com presença. Com verdade. A nossa.

Ela assentiu levemente e então, Walter viu os dedos dela tamborilando de forma ansiosa a borda da xícara.

— Vem cá.

Ele estendeu uma das mãos na direção dela. Não disse nada. Apenas aquele gesto simples, quase juvenil, como quem convida alguém para dançar. Fernanda o olhou por um segundo, hesitou — não por dúvida, mas pela consciência exata do que aquilo significava. E então foi. Com passos leves, atravessou o pequeno vão entre as cadeiras e sentou-se com cuidado no colo dele, o braço contornando os ombros, a respiração desacelerando como quem encontra um lugar seguro.

Walter segurou a perna dela com firmeza e carinho, como quem segura uma certeza. E com a testa quase encostada na dela, sussurrou:

— Algumas horas atrás, você me disse que estamos juntos nisso.

Fez uma pausa curta, o suficiente para que ela sentisse o peso — e o carinho — daquelas palavras.

— Estamos, certo?

Ela assentiu, devagar, com os olhos firmes nos dele.

E então o beijou. Um beijo curto, casto, quase tímido, mas carregado de um “sim” que não precisava ser dito.

Walter fechou os olhos por um momento, como se quisesse armazenar o gosto dela na memória, no sangue, na pele. E quando os abriu, viu que Londres, aquela cidade sempre acinzentada, parecia agora condescender com o milagre que testemunhava. Pela fresta das nuvens, um feixe de luz atravessava a manhã cinza e pousava com delicadeza no rosto de Fernanda. Como se a cidade, por um instante, tivesse compreendido que aquele ser de luz precisava ser iluminado.

— Quando a gente voltar pra casa... — começou ele, com a voz baixa, quase num sussurro que misturava intenção e afeto — eu quero fazer algo importante.

Ela recostou o queixo no ombro dele, curiosa.

— Importante como?

Ele respirou fundo, como se medisse o peso da frase antes de oferecê-la.

— Quero ir até a casa dos seus pais. Falar com eles. Com Dona Fernanda e Seu Fernando. Olhar nos olhos deles e pedir a tua mão.

A frase não caiu como uma proposta cerimonial, mas como uma afirmação de respeito. De vontade. De futuro. Fernanda ficou em silêncio por um segundo que pareceu mais longo que o necessário. E então, sorriu. Um sorriso genuíno, largo, daqueles que transbordam sem aviso e que nascem do centro do peito.

— Pedir minha mão? — repetiu, com uma expressão entre o espanto e o riso. — Walter, você tem quarenta anos. Isso só prova uma coisa.

— O quê?

Ela sorriu, provocativa, os olhos faiscando:

— Que você não namorou muito. E que é um principiante perigoso.

Walter soltou um meio sorriso, contido e cúmplice, como quem aceitava o golpe com dignidade.

— Fernanda Torres, você é uma pilantra. — disse ele, com uma falsa indignação, puxando-a para mais perto. — Não subestime a tradição do cavalheirismo dos Moreira Salles.

— Tradição, é? — ela respondeu, divertida. — Você tem alma de trovador do século XIII disfarçado de diretor moderno. Só falta você subir no cavalo e cantar uma cantiga de amor à porta da minha casa.

— E você é a minha ruína preferida. — rebateu ele, puxando-a ainda mais para perto, o nariz roçando o pescoço dela.

— A ruína mais cara do seu acervo? — ela provocou, rindo.

— A única que eu faria questão de reconstruir todos os dias, com prazer.

Ela soltou uma risada baixa contra o pescoço dele. Walter fechou os olhos por um instante, como se aquele som — íntimo, quase secreto — tivesse o poder de reordenar o eixo do mundo.

— Eu quero fazer as coisas do jeito certo. — disse ele, voltando ao tom anterior, agora mais sério, mas sem perder a ternura. — Você não é uma aventura. Não é um capricho. Você é a coisa mais definitiva que já me aconteceu.

Fernanda baixou o olhar, mordendo levemente o lábio inferior, tentando conter a emoção que subia pelos olhos, pela garganta, por todo o corpo.

— E mesmo sabendo que você é dona de si, dona do seu tempo, eu quero que seus pais saibam que eu te respeito a esse ponto. Eu os conheço, admiro e quero fazer isso do jeito certo. Porque com você, tudo tem que ser do jeito certo.

Ela apenas assentiu. Depois, apoiou a testa na dele — um gesto pequeno, mas carregado de tudo que ainda não sabia dizer em voz alta.

— Homem, você não existe... — murmurou, num tom entre rendição e encantamento.

Walter sorriu de canto. E antes que ela pudesse desviar os olhos, a beijou. Um beijo firme, lento, cheio de pertencimento. Quando mordeu o lábio inferior dela com delicadeza e firmeza, como quem quer gravar no corpo o que a fala não alcança. Fernanda soltou um “ei” abafado, entre provocação e surpresa.

— Eu existo, sim. — respondeu ele, com um sorriso leviano, um brilho nos olhos que misturava desejo e ternura. — E infelizmente pra você, bem aqui.

Ela riu e passou a ponta dos dedos pela nuca dele, deslizando devagar pelos fios. Um gesto breve, íntimo, como quem diz sem dizer: fica mais um pouco.

Mas Walter já consultava o relógio no pulso. O gesto veio com naturalidade, como tudo nele — sóbrio, contido, exato.

— A gente precisa se aprontar. — disse, ainda com a mão na cintura dela. — Quero passar em dois lugares antes do voo. Não vamos perder tempo.

— Loja de vinis... e o outro lugar é surpresa? — perguntou ela, tentando conter o sorriso.

Ele apenas sorriu, enigmático, e passou os dedos distraidamente por uma mecha do cabelo dela.

Fernanda se levantou devagar, e por um momento ficou em pé ali, de frente para ele, ainda sentindo a marca das palavras dele coladas no corpo como uma espécie de perfume invisível. A angústia que tinha rondado a manhã — aquela dúvida corrosiva, aquele medo — pareciam, agora, domesticados. Não vencidos, mas sentados num canto. Silenciosos. Temporariamente domados pelo afeto.

Porque ele tinha esse poder.

De desacelerar o mundo.

De devolver ao tempo o compasso certo. De fazer o depois parecer possível.

E naquele instante, naquela varanda que dava vista para o céu rarefeito de Londres, ela sentiu que podia partir. Não porque queria. Mas porque tinha encontrado, ali, um lugar para voltar. Um lugar que agora tinha nome.

Walter.

                    

Notes:

O que acharam?
Beijão!

Chapter 11: XI

Notes:

Olá, pessoal!
* Na última semana, infelizmente não houve atualização por conta de questões de saúde. Agradeço imensamente pela paciência e pelo carinho de sempre.
* Obrigada por cada comentário. É isso que sustenta essa história e me inspira a continuar escrevendo com o coração.
* Este capítulo é especialmente denso e cheio de referências musicais, memórias e camadas afetivas. Um mergulho mais íntimo no passado do nosso casal.
*Boa leitura! E que a trilha sonora presente neste capítulo te acompanhe com a mesma intensidade com que toca os dois!

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Músicas do capítulo:

Vapor Barato (versão Ao Vivo) - Gal Costa

I Wanna Be Adored - The Stone Roses

Wonderwall - Oasis

Weird Fishes / Arpeggi - Radiohead

Beetlebum - Blur

Club da Esquina nº2 - Clube da Esquina

I Want You (She's so Heavy) - The Beatles


 

XI

(PASSADO)

LONDRES – AGOSTO DE 1996

O coração de Fernanda pesava.

Doía.

Mas era uma dor sem anúncio, sem urgência — daquelas que não gritam, mas assentam. Que se alojam fundo, entre as costelas e o tempo, e ali permanecem, vibrando em silêncio como um eco antigo. Era o tipo de dor que não implora por salvação, apenas por espaço.

Estava parada no saguão do hotel, encostada na parede de mármore claro, os ombros levemente curvados e as mãos presas dentro dos bolsos do casaco dele — aquele mesmo que ele tinha colocado em uma Fernanda adormecida pelo frenesi e exaustão, aquele trejeito era de alguém que marcava território com um gesto delicado. O tecido ainda carregava o perfume dele. Acqua di Parma e alguma coisa mais funda — um traço de Walter que não podia ser engarrafado.

A manhã de Londres era uma aquarela desbotada de cinza e prata. Do lado de fora, a cidade seguia impassível. Os sons de malas arrastadas, de vozes abafadas, de cafés pedidos em sussurros educados, tudo indicava que o mundo voltava à sua rotação habitual. Mas Fernanda não. Ela ainda estava suspensa. Observava tudo com a precisão de quem tenta eternizar. Porém, foi o olhar que a traiu. Sem pedir licença, ele se deteve em Walter.

De costas para ela, levemente inclinado sobre o balcão da recepção, ele falava com aquela polidez que parecia já nascer no timbre da voz. Os gestos comedidos, os agradecimentos sussurrados, o cuidado com as palavras, tudo nele parecia tão natural quanto raro. A maneira como agradecia, como inclinava levemente a cabeça ao ouvir, como sorria sem mostrar os dentes. Tudo nele era medida. Tom. Tempo. Um cavalheiro em pleno 1996, sobrevivente de alguma linhagem extinta.

E então, sem aviso, algo se acendeu dentro dela. Um calor manso, que começava no estômago e subia, sem pressa, até o canto da boca. Fernanda não podia evitar. Sorriu. Porque bastava vê-lo ali, apenas existindo, para que tudo o que era pequeno se tornasse, de súbito, grandioso.

E, mesmo assim, Fernanda via o que os outros não viam.

Ele ainda estava afetado. Ainda ecoava por dentro. O Walter daquela manhã não era o da véspera. Tampouco o da noite anterior. O homem à sua frente era uma mistura de cansaço e entrega. Um homem que, horas antes, defendera com unhas e voz o direito de amar. Que sangrara em silêncio ao telefone. Que escolhera, com coragem e pesar, uma vida nova.

Agora ele respirava fundo e pousava a caneta com um gesto quase simbólico. Assinava não só a conta do hotel, mas o fim de um tempo suspenso.

Fernanda desviou os olhos.

Não por desinteresse, mas por reverência. Como se presenciasse o encerramento de um ato e não quisesse interromper. O som dos passos dele veio antes da imagem. Quando olhou de novo, Walter já caminhava em sua direção, com aquele andar tranquilo de quem conhece o próprio peso no mundo, mas não o impõe. O casaco aberto, os cabelos ainda úmidos do banho, a elegância despretensiosa que não precisava provar nada.

Parou diante dela. Ela sorriu.

E ele retribuiu com aquele sorriso que inundava os olhos e que sempre a desarmava.

— Vamos? — perguntou, estendendo a mão.

Ela não respondeu de imediato. Apenas o olhou — por tempo suficiente para marcar aquele instante em algum lugar da alma. Havia ali uma despedida sem partida, um começo dentro do fim. Depois, com um gesto calmo e firme, como quem escolhe, como quem finca pé, ela agarrou a mão dele e disse, com a voz baixa, mas clara:

— Vamos.

E colocou a mão na dele. Não como quem atravessa um lobby. Mas como quem, depois de muito adiar, aceita a travessia.

 

O táxi preto os aguardava encostado à calçada lateral do hotel. Walter segurou a porta para Fernanda, num gesto quase automático, e ela entrou com a leveza de quem não queria deixar rastros — apenas impressões. Acomodou-se no banco de trás, puxando o casaco para mais perto do corpo, como quem tentava manter ainda um pouco do calor da suíte.

Walter entrou logo depois, e com um aceno polido e a voz firme, disse ao motorista:

Berwick Street, Soho, por favor.

O tom — aquele tom — era como uma assinatura. Elegante. Seguro. De quem não apenas sabia onde queria ir, mas também como dizer isso ao mundo. Fernanda se virou devagar, os olhos pousando nele com uma ironia suave e cheia de ternura.

— O que foi? — ele perguntou, com um sorriso contido, como se já soubesse a resposta.

— Nada. — ela disse, fingindo desinteresse, e logo depois completou, com um ar deliberadamente provocador: — É só que... sempre que você fala com esse sotaque carregado de finesse, dá a impressão de que você já conhece Londres com a palma da mão.

Walter arqueou uma sobrancelha, os olhos semicerrados como quem calcula a travessura antes de soltá-la. Demorou um segundo antes de responder, só para que o silêncio provocasse.

— Londres, não. — disse, e o canto da boca se ergueu. — Mas você... eu conheço com a palma da minha mão.

Ela revirou os olhos num gesto ensaiado, mas o sorriso escapou antes que conseguisse disfarçar.

— Por Deus, homem, você é insuportável. — murmurou, travessa, encostando a cabeça no ombro dele para escapar da réplica. – Além de tudo, é presunçoso.

Walter sorriu. Mas não respondeu. Limitou-se a acomodar melhor o corpo para recebê-la ali, naquele apoio improvisado, e deixou que os dedos percorressem os fios do cabelo dela com um cuidado quase ancestral — como quem já tivesse feito aquilo mil vezes, mesmo que em outras vidas.

— Realista. — rebateu, com a mesma serenidade, e então passou o braço ao redor dela, como se fosse natural.

Fernanda, ainda com o corpo apoiado no ombro dele, ergueu um pouco o olhar, desconfiada.

— Você já foi nessa rua que falou pro motorista?

Walter negou com um leve gesto de cabeça, os olhos pousados nela como quem contempla, e não apenas observa.

— Nunca.

— Então por que tanta certeza no tom?

Ele demorou meio segundo antes de responder, como quem escolhe a palavra certa entre uma multidão de possibilidades. E então, disse com naturalidade:

— Porque você conhece.

— Eu? — Ela franziu a testa, desconcertada. — Que história é essa?

Walter apenas se inclinou e depositou um beijo no topo da cabeça dela. Foi um gesto quase imperceptível, mas carregado de intenção — o tipo de gesto que não se ensaia, que simplesmente existe.

— Logo você vai entender.

Fernanda suspirou, desconfiada, mas com aquele traço resignado de quem já conhece o modo como Walter organiza o mundo — sempre entre o gesto mínimo e a revelação inesperada. Havia nele sempre essa doçura camuflada, como quem prepara surpresas só pra ver o outro sorrir.

— Eu tenho medo desses seus mistérios, sabia?

— Eu espero — disse ele, sorrindo com os olhos — sinceramente, que você goste.

E foi o tom que o entregou. Não a frase. Foi a forma como ele disse, com o carinho de quem não fazia aquilo por grandeza, mas por prazer. O prazer genuíno de vê-la feliz. De agradá-la nos detalhes. De conhecê-la com tempo e com arte. Fernanda sorriu devagar, reconhecendo esse traço dele que a desmontava.

The Moreira Salles Effect?

Walter corou de leve, mas não desviou. Sorriu com os cantos da boca, sem negar.

The Moreira Salles Effect. — confirmou, num inglês impecável, mas com a humildade de quem não fazia alarde da própria delicadeza.

Ela inclinou o rosto e depositou um selinho nos lábios dele. Um beijo breve, mas cheio daquela cumplicidade que só se aprende com o tempo — e com o afeto bem gasto. Ainda com a cabeça repousada no ombro dele, ela olhou a cidade deslizando pela janela, com aquela melancolia doce de quem queria congelar o instante.

— Eu não sei o que eu fiz pra merecer você. Às vezes acho que ainda tô sonhando.

Walter, que acariciava devagar os dedos dela entre os seus, parou. Pegou com delicadeza a mão dela e, sem aviso, mordeu levemente aquela carninha macia na lateral da mão — entre o polegar e o indicador.

Fernanda se sobressaltou, soltando um gritinho mudo:

— Oh, Walter?

Ele riu, baixo, com aquele ar leviano e gentil que era só dele.

— Só pra você ter certeza de que eu não sou uma miragem.

Ela riu também, dessa vez mais livre. E apertou a mão dele entre as suas como quem segura um presságio bom. Porque era isso. Walter tinha esse efeito: fazia com que o mundo deixasse, por instantes, de ser peso — e virasse possibilidade.

 

A porta do táxi abriu-se com um rangido sutil, e o som que entrou primeiro não foi o das buzinas ou motores, foi o da rua vibrando como uma canção contínua. Berwick Street parecia menos uma via e mais um disco girando ao ar livre. Havia músicos de rua em cada esquina: um garoto de jaqueta jeans dedilhava os primeiros acordes de “Creep” na guitarra; mais adiante, um duo com instrumentos portáteis fazia uma versão crua de “The Immigrant Song”, do Led Zeppelin. E, entre um canto e outro, se ouvia trechos de Blur, Oasis, Radiohead, Supergrass, e claro — os Beatles, eternos como o vento que atravessava o Soho.

Fernanda desceu do carro por último. Ainda ajeitava o casaco quando parou por um instante, como quem se dá conta de algo que já sabia, mas que agora ganhava corpo, cheiro, som.

— A gente vai perder o voo por causa da sua fixação com música, é isso mesmo? — perguntou, com um sorriso terno, incrédulo, os olhos ainda varrendo os letreiros das lojas.

Walter, ao lado, apenas sorriu com falsa inocência, as mãos nos bolsos do sobretudo.

Ela deu mais dois passos e então parou de vez. O corpo todo congelou num instante de reconhecimento. O chão, as fachadas, a loja de discos com a placa da Sister Ray Records, a curva sutil da rua entre prédios vitorianos.

— Ah, não... — murmurou, entre um riso e um espanto. — Isso aqui é...

Os olhos se arregalaram com doçura.

— Essa é a rua da capa do What’s the Story Morning Glory?

Walter a observava em silêncio, o sorriso discreto. Um espectador dedicado da cena que ele mesmo escrevera para ela.

— Meu Deus, Walter... — ela balançou a cabeça, sem conseguir conter a alegria. — Essa é a rua. Aquela da fita que rodava no meu walkman até cansar. Aquela fita que, inclusive, alguém deve ter espionado.

Ele arqueou uma sobrancelha, como quem não se entrega.

— Eu não espionei. Ela estava disponível demais para ser ignorada.

— O que confirma a acusação. — rebateu, divertida.

O vento da manhã passava por entre os dois como mais uma camada de som. Os tênis dos passantes raspavam o asfalto com pressa, mas o tempo deles era outro. Um tempo suspenso, feito de lembrança e presença.

— A gente cantou esse álbum inteiro em Knebworth, parece que faz uma eternidade, mas só foi há 3 dias atrás... — ela lembrou, os olhos marejando de leve. — E agora você me traz aqui... Walter... como você sabia?

Mas, antes que ele respondesse, ela ergueu uma mão no ar, rendida:

— Não, deixa. Esquece. Isso é o tipo de coisa que é mínima demais pra alguém como você. Você saberia.

Walter apenas se aproximou e, sem dizer palavra, tirou uma mecha de cabelo dos olhos dela com cuidado, como se afinasse um instrumento.

— Eu só quis ver seu rosto quando você percebesse. — respondeu, por fim. — Isso pra mim... já vale qualquer voo perdido.

Fernanda piscou, ainda processando. A alegria lhe escorria pelos olhos em forma de espanto terno. Foi então que ela franziu a testa, num gesto repentino, e começou a apalpar os bolsos do casaco.

— As Kodaks... Walter, as Kodaks estão visíveis? — perguntou, com uma urgência teatral. — A gente precisa recriar essa capa. Você acha mesmo que vamos desperdiçar essa chance?

Walter arregalou os olhos, entre divertido e resignado.

— Nanda…

— Não. — cortou ela, já puxando a alça da bolsa e vasculhando dentro. — Isso aqui é singelo demais pra ser só mais uma memória sua de me ver emocionada. Isso é patrimônio afetivo do nosso namoro, ok? É coisa de casal.

— Casal que recria capas de disco no meio de Londres?

— Exatamente. — retrucou, já o puxando pela mão para o meio da rua. — Não me envergonhe na frente do Oasis, Salles.

Walter seguiu, rindo baixo. O asfalto de Berwick Street se estendia à frente como uma fita analógica viva. Os sons ao redor — o violão insistente na calçada, os passos, a vida que seguia — agora pareciam trilha sonora de um filme alternativo. Deles.

Primeiro, fizeram como na capa do disco: ela apontando a câmera para ele enquanto ele caminhava, com a expressão sóbria de alguém que carrega todas as faixas ocultas de um álbum raro. Depois inverteram os papéis. Walter, agora atrás da lente invisível, capturando a leveza grave com que Fernanda existia no mundo.

Logo depois, pediram a um rapaz de moletom dos Stone Roses e um sorriso camarada de quem já havia passado por ali mil vezes. Fernanda, com aquele carisma espontâneo que só ela tinha, acenou com a mão. Então pediu ao rapaz que tirasse uma foto dos dois juntos, no mesmo enquadramento histórico.

— Oi, perdão por te incomodar! Você poderia tirar uma foto nossa?

O rapaz assentiu prontamente, já estendendo a mão para a câmera descartável. Ela o instruiu com entusiasmo contido:

— A gente quer recriar a capa do What’s the Story Morning Glory?, sabe? Dois andando, um vindo na direção da lente, o outro de costas. Só que com a gente.

O garoto abriu um sorriso cúmplice. Claro que sabia.

Walter se posicionou primeiro. Caminhou lentamente pela Berwick Street, os passos ritmados como se tivesse ensaiado aquilo a vida inteira. Fernanda fez o mesmo, vindo em direção a ele com a naturalidade de quem sempre pertenceu àquela rua, ou talvez àquela cena. Seus olhos estavam nele, e só nele.

No instante exato em que o rapaz apertou o botão da câmera descartável e o filme girou, Walter e Fernanda se cruzaram no centro da rua. Um vinha em direção à lente. O outro ia em direção contrária. Era uma pose ensaiada, uma homenagem, uma brincadeira. Mas algo, naquele milésimo de segundo, fez o tempo suspender.

Eles se olharam.

E ali, no breve espaço entre um passo e outro, algo dentro de cada um cedeu, como uma trava interna sendo liberada. Como se aquele momento, encenado por fora, revelasse por dentro uma verdade que vinha se construindo há muito tempo.

Walter, de onde estava, sentiu como se visse Fernanda pela primeira vez e, ao mesmo tempo, como se já a conhecesse desde sempre. A luz de Londres caía sobre ela, recortando seus traços com uma delicadeza quase simbólica. E ele soube. Soube no fundo dos ossos. Aquela mulher, com todas as suas arestas, com todas as suas verdades sem verniz, era o que ele buscava, mesmo antes de saber que buscava. Ela o entendia sem esforço. E, mais raro ainda: o aquietava.

Desde menino, Walter se sentira deslocado, mesmo cercado de tudo. Crescera entre silêncios elegantes e corredores longos demais, onde era mais fácil manter a pose do que confessar o vazio. Sempre tentara caber. Em moldes, em expectativas, em sobrenomes. Mas com Fernanda, ele não precisava caber. Ela era o lugar onde ele finalmente podia se espalhar por inteiro.

E naquele segundo, parado no meio da rua, compreendeu com clareza: era ali que ele queria estar. E era com ela.

Fernanda, ao se aproximar dele para a foto, foi atravessada por uma sensação que não conseguiu nomear de imediato. Era como se o corpo dela reconhecesse antes da razão. Como se todas as vezes em que ela acreditou ter amado tivessem sido ensaios para aquele agora. Walter estava ali. Com os ombros largos de quem aguenta o mundo e os olhos tristes de quem carrega mais do que diz. E ela soube, como quem reconhece um abrigo em terra estrangeira, que ali havia descanso.

Depois de tantas curvas, tantos amores que prometeram e falharam, tanta força empenhada em fingir que não doía... Fernanda se viu finalmente entregue. Não de forma cega, mas lúcida. Era o amor mais claro que já sentira. Porque era inteiro. Era maduro. E era real.

A foto foi tirada. O clique soou. O rapaz agradeceu e seguiu o caminho. Mas eles ficaram ali. E embora estivessem sorrindo, sabiam, com a profundidade de quem já viveu o suficiente para reconhecer um ponto de inflexão, que aquela imagem não era apenas uma lembrança bonita.

Era uma marca.

Uma prova íntima de que algo da qual eles não sabiam nomear, talvez fosse a vida, o mundo, ou até mesmo o destino havia dado um jeito de colocá-los frente a frente. Duas almas cansadas, sim. Mas não mais sozinhas.

Walter estendeu a mão e Fernanda se ancorou a ele. Um sorriso cúmplice surgiu nos lábios de ambos, o calor da mão dele entrelaçada na dela atravessando o corpo como uma corrente leve, mas viva.

— Mal posso esperar pra ver essas fotos. — disse, num tom que mesclava ternura e entusiasmo contido. — A gente precisa revelar todas. Montar um álbum de viagem. Daqueles bem bregas, sabe? Com legenda escrita à mão. “Londres, agosto de 1996. Dois forasteiros suspeitos flagrados em Berwick Street.”

Walter riu baixo, os olhos ainda nela.

— Você quer um álbum? Vai acabar com um box inteiro. — respondeu, com a tranquilidade de quem já aceitara que os melhores excessos da vida não cabem em 24 frames da Kodak. — Mas eu topo. Desde que você prometa escrever as legendas. Com sua caligrafia de adolescente rebelde e suas ironias nas entrelinhas.

— Feito. — ela respondeu, apertando a mão dele de leve.

Foi quando, à frente deles, se formou uma pequena aglomeração. Parecia uma bolha de outro tempo no meio do Soho. Jovens com calças largas, jaquetas de camurça e camisetas surradas de The Smiths, The Stone Roses e The Cure formavam uma roda improvisada, onde um violão soava alto demais para não chamar atenção. O ar cheirava a cigarro amassado e chuva recente. Então, algo chamou a atenção de Walter. Ele fez um leve aceno com a cabeça, como quem ouve algo de longe. Fernanda franziu o cenho, mas não teve tempo de perguntar. Ele já estava puxando delicadamente sua mão.

— Vem cá — murmurou, quase cúmplice.

Caminharam até o grupo. O som preenchia a rua sem invadir. Ela o seguiu, meio sorrindo, meio intrigada, até a outra extremidade da rua, onde uma pequena multidão se formava em semicírculo em torno de quatro garotos com guitarras e um tamborim improvisado em uma caixa de madeira. No chão, uma caixa de fita cassete aberta exibia capas feitas à mão.

E então veio a música: I Wanna Be Adored, do The Stone Roses.

Fernanda reconheceu os primeiros acordes. Era como uma névoa que invadia os sentidos. A melodia densa, hipnótica, que parecia repetir a mesma súplica até virar mantra. Ela sorriu devagar. Conhecia aquela canção. Mas nunca a tinha escutado assim, no coração de Londres, nos braços de alguém que ela amava.

Walter parou atrás dela, como se quisesse que ela fosse o centro daquele momento. Passou o braço com naturalidade pela clavícula dela, num gesto que misturava proteção e ternura, e repousou a cabeça com suavidade sobre o ombro dela. O peso era mínimo, mas o gesto carregava tudo.

E então ela escutou.

A voz dele.

Baixinha, sem pretensão alguma de ser ouvida — exceto por ela.

“…I don’t have to sell my soul

He’s already in me

I don’t need to sell my soul

He’s already in me

I wanna be adored…”

Era a voz de Walter cantando.

Não exatamente afinada, mas cálida. Como se cada palavra fosse extraída da garganta com a medida exata de quem viveu o suficiente para saber que algumas canções são orações disfarçadas. Fernanda não se mexeu. O corpo inteiro em silêncio, mas por dentro, a alma estava em movimento. Assistia ao mundo por um novo ângulo: o de uma mulher que, pela primeira vez em muito tempo, sentia-se amada na frequência certa.

Era só uma música. Só uma rua. Só um homem cantando ao pé do ouvido dela.

Mas era tudo.

Ela quis virar o rosto, olhar para ele, dizer alguma coisa, mas não disse. Sabia que se o fizesse, quebraria o encantamento. Era preciso deixar aquele instante passar devagar, como um filme bem montado. Deixar que aquela voz — rouca, quente, íntima — continuasse a flutuar no ar entre eles, carregando o que os silêncios haviam tecido nos últimos dias.

Na última repetição da música, Walter apertou Fernanda contra si com um gesto quase imperceptível, mas carregado. A ponta do nariz dele roçou, sem querer, a pele nua do ombro dela, e aquele toque fez o corpo de Fernanda responder antes mesmo do pensamento. Ela inclinou o rosto de leve na direção dele, num gesto mudo, mas preciso. Era um carinho — não para iniciar nada, mas para confirmar tudo.

O som das palmas veio como um retorno ao mundo. A pequena aglomeração em torno do grupo explodiu num aplauso contido, mas entusiasmado. Walter e Fernanda aplaudiram também, não apenas pela performance, mas pela delicadeza de terem sido atravessados. Ainda estavam de mãos dadas quando o vocalista, com um sorriso maroto e olhos semicerrados de quem sabia exatamente o que fazia, dedilhou os primeiros acordes de uma nova canção.

Os olhos de Fernanda se ergueram na mesma hora, antes mesmo que a voz surgisse.
Ela não disse nada — só sorriu. Um riso breve, cúmplice, descrente da coincidência. E então balançou a cabeça, como quem tenta conter o próprio coração, mas sem sucesso.

Walter entendeu na hora.
Claro que entendeu.
A música era Wonderwall.

A música que tinha selado o primeiro beijo deles.

O hino suave de um momento que havia se gravado na pele: o beijo em Knebworth, a multidão ensandecida ao redor, os dois no meio do furacão, e ainda assim — ilesos. Isolados. Inatingíveis.

Ela olhou para ele de soslaio. E, naquele instante, Walter não viu apenas a atriz que fazia piada com tudo, nem a mulher que dominava uma sala com duas palavras e um cigarro apagado entre os dedos. Viu a menina. Ou melhor, a menina-mulher. Aquela de olhos vivos, cheios de voracidade e ainda assim famintos de ternura. Os olhos dela brilhavam para ele com uma entrega despretensiosa. E foi aí que algo se deslocou dentro dele.

Porque, apesar de tudo ter acontecido tão depressa — o show, as confissões, o beijo, o jantar, a suíte, a cumplicidade — parecia que eles já tinham atravessado uma vida inteira. E, no entanto, o beijo em Knebworth tinha sido há apenas três dias. Três dias. Era quase ofensivo que o tempo real tivesse essa precisão matemática quando, para ele, já parecia um antes e um depois.

Fernanda tinha esse dom. O de bagunçar as horas. De fazer o tempo parecer líquido  e, ainda assim, essencial. De desacelerar o mundo só com a presença. E Walter, que sempre fora tão sóbrio com os próprios sentimentos, orou em silêncio.

Uma prece emudecida.

Mas com uma fé exata, íntima e pagã, que só as pessoas silenciosas conhecem. Pediu a quem quer que fosse o responsável por esse tipo de coisa, que aquilo durasse. Que ela durasse. Que ele tivesse tempo para amá-la direito. Para conhecer o que nela era delicado demais pra ser dito, caminhar ao lado mesmo quando ela mudasse de rumo, e estar presente até no que ela guardava em silêncio.

"Não precisa ser fácil", pensou, como se conversasse com o invisível. "Mas, por favor... que seja possível.”

O refrão da música veio como um sopro limpo no peito.

"Because maybe… you’re gonna be the one that saves me…"

E então, como se algo invisível os cercasse, como se o tempo realmente parasse em um pequeno raio ao redor dos dois, eles se olharam. Com a delicadeza de quem já sabia. Com a gravidade de quem já tinha perdido — e, ainda assim, ousava de novo.

E se beijaram.

Discretamente.
Mas com o fervor exato de um pacto.

Não era cena para os outros. Não era gesto para o mundo. Era apenas isso: dois adultos cansados encontrando no amor um lugar de refúgio. Na rua onde tantas vozes ecoavam, naquele instante, só existia uma canção. Só existia aquele beijo. E tudo o mais — o voo, o filme, os jornais — era silêncio.

Nos instantes que seguiram, Walter encontrou o olhar de Fernanda e então, ele sorriu, sorriu com aquela expressão de menino travesso que ele raramente deixava escapar, mas que, quando vinha, era só pra ela.

— Você sabe o que isso significa, né? — perguntou ele, com a voz quase sumida pelo som da rua.

Fernanda fingiu desentendimento, o olhar maroto:

— Não faço ideia do que o senhor está falando.

Ele inclinou o rosto, mais próximo, como quem vai contar um segredo de infância:

— Nanda, foi ao som dessa música que a gente se beijou pela primeira vez.

Ela mordeu o lábio inferior, como se tentasse conter a própria lembrança.

— Foi mesmo, Salles?

— Foi sim, sua pilantra. — respondeu ele, rindo de leve, os olhos mergulhados nos dela.

— Olha, essa já é a segunda vez que você me chama assim hoje. — disse ela, com falsa indignação.

— É que você não tem jeito mesmo. — retrucou, os dedos ainda entrelaçados nos dela.

Walter ainda sorria quando Fernanda levantou a mão e, com delicadeza, acariciou o rosto dele. A ponta dos dedos percorreu o traço do queixo até a têmpora, como quem traçava um contorno já conhecido — mas que, mesmo assim, fazia questão de memorizar de novo.

— Obrigada. — disse, baixo, com uma sinceridade quase tímida. — Por ter me trazido aqui. Por saber que esse álbum... que essa rua... que tudo isso significava alguma coisa.

Walter apenas encostou o rosto mais na palma da mão dela. Um gesto silencioso de aceitação e, talvez, de reverência. Como se dissesse: "Eu sei. Eu sempre soube."

A canção se esvaneceu no fundo. O grupo de jovens ainda tocava, mas o volume emocional do momento já havia atingido o clímax. Walter apertou levemente os dedos dela mais uma vez, e então, com a naturalidade de quem compartilha o mesmo compasso, eles se afastaram da pequena multidão. Caminharam devagar, como quem sabia que o mundo recomeçaria logo, mas que, por ora, ainda havia tempo.

— Agora, por favor — disse Fernanda, puxando-o pelo braço com um entusiasmo quase infantil — quero ver que tipo de vergonha você vai passar na frente de um balcão de discos. Porque, veja bem, você leu todas as minhas fitas, espionou meus cassetes no set de Terra Estrangeira, e ainda me trouxe no santuário do Britpop. Tá na hora de me igualar nesse jogo.

Walter riu, deixando-se arrastar pela mão dela em direção à Sister Ray Records. O nome da loja já reluzia à frente, como uma promessa.

— Isso é uma competição? — perguntou ele, divertido, com aquela elegância despretensiosa que só ficava mais aguda quando ele se fazia de desentendido.

— Claro que é uma competição. — retrucou ela. — Você já começou com vantagem. Eu tô completamente exposta. Você já conhece minhas melodias. Agora eu quero saber as suas.

Ele fez uma pausa. Olhou para ela de lado, com um sorriso curto, carregado de afeto e ironia fina.

— Acha que consegue adivinhar?

Fernanda estreitou os olhos, como quem lê uma pauta em silêncio antes de dizer a primeira fala. Walter era mesmo uma composição complexa: afinado demais para ser óbvio, melódico demais para ser decifrado de primeira. Tinha o tipo de profundidade que não vinha com refrão fácil.

— Você tem cara de quem escuta Gonzaguinha quando precisa lembrar no que acredita e Radiohead quando precisa esquecer.

Walter sorriu de leve, o olhar preguiçoso e atento.

— E o que mais?

Ela cruzou os braços, inclinando levemente o corpo na direção dele, como quem desafia:

— Buena Vista Social Club, mas só pra receber os amigos em casa. Jantar harmonizado, luz baixa, camisa de linho. Aquela coisa "espontânea" ensaiada por dias.

— Isso é uma crítica?

— É um elogio. — respondeu ela, com um sorriso enviesado. — Você é o tipo que deixa o álbum tocando duas horas antes do jantar começar.

Walter riu, sacudindo a cabeça com aquele ar de quem aceita a leitura sem se render completamente.

— Nada mal.

— Acertei?

— Você me captou no intervalo entre uma faixa e outra. — respondeu, com aquele meio sorriso que ela já conhecia, o que precedia a entrega de uma verdade. — Gosto de música que pensa. Que sente. Que sangra devagar.

— Não esperaria menos de você, Walter.

— E você, Senhorita Torres, é o tipo que diz que não liga pra música ambiente, mas sabe exatamente qual faixa está tocando quando beija alguém pela primeira vez.

Ela ergueu uma sobrancelha, surpresa.

— Pegou pesado agora.

— Só estou tentando me igualar. — respondeu ele, com aquele tom polido demais pra ser inocente.

Fernanda deu uma risada baixa, entre cínica e cúmplice. E então, inclinando um pouco o rosto, deixou escapar, com aquela mistura exata de sinceridade e provocação:

— Eu só lembro da música quando é alguém que vale a pena.

Walter arqueou uma sobrancelha, o sorriso crescendo devagar, como quem reconhece uma provocação feita sob medida pra ele.

— Então o mérito é da trilha sonora?

— Não, Salles. — disse ela, saboreando cada sílaba. — O mérito é do diretor que soube a hora certa de colocar a música no fundo.

Walter sorriu de verdade. Aquele sorriso que vinha não só dos lábios, mas dos olhos e da memória.

— Espero estar na sua fita cassete preferida, então.

Ela segurou o olhar dele por um segundo a mais, como quem sintoniza com algo que já sabe de cor.

— Você não tá só no lado A da fita. — disse, com a voz mais baixa, mas firme. — Você está em looping constante.

Eles sorriram juntos. E era isso: o jogo, o riso, o dueto nas entrelinhas. O prazer de serem lidos — e relidos — um pelo outro. Walter se aproximou um pouco mais e, num tom quase conspiratório, sussurrou:

— Mas você acertou em cheio. Especialmente no Gonzaguinha. Nos dias em que o mundo parece desandar, é ele quem me ancora.

Fernanda sorriu, lenta, com aquele brilho antigo nos olhos.

— Faz sentido... — disse, como quem fala só pra si. — Você sempre teve um jeito de carregar o mundo nos ombros sem fazer alarde. Mas é claro que Gonzaguinha combinaria contigo.

Walter apenas a olhou, cúmplice. Era aquele tipo de elogio que não se respondia — se guardava. Como um bilhete dobrado no bolso da memória. E então, quase sem transição, chegaram à porta da Sister Ray Records.

A fachada era modesta, mas carregava a alma de uma era. No coração do Soho, aquele pedaço de chão cheirava a vinil e rebeldia. Entraram como quem entra num templo pequeno, mas necessário. Um santuário feito de vinis gastos, de capas com mofo e memórias, de vozes que pareciam vir de outro tempo.

As prateleiras de madeira gasta se alinhavam em corredores estreitos e labirínticos, como se cada seção escondesse um universo particular. Havia pôsteres do Nirvana, flyers de shows do Blur, caixas com singles promocionais e uma parede inteira dedicada ao britpop, logo à esquerda da entrada.

O cheiro era uma mistura de papel velho, plástico e esperança. Aquela esperança de quem acredita que um disco certo pode salvar um dia ruim ou uma vida inteira. Walter tirou os óculos escuros e os pendurou na gola da camisa de algodão. Fernanda, animada, já começava a passar os dedos pelos álbuns empilhados.

— Meu Deus... — murmurou. — Isso aqui é a Disneylândia dos adultos com bom gosto.

— E dos nostálgicos incuráveis. — completou Walter, aproximando-se.

Ela riu, puxando um vinil dos Smiths da estante. Os olhos dele não estavam na prateleira — estavam nela. Era ali, naquele gesto distraído, na maneira como ela examinava a capa com a ponta dos dedos, que residia o centro daquilo tudo. Não era sobre música. Era sobre vê-la feliz.

E Fernanda, sem precisar olhar para ele, soube.

— Você me trouxe aqui por minha causa. — disse, com a voz leve, mas firme. — Não era só sobre as fitas. Nem sobre a capa do Oasis. Você queria me ver assim. Solta. Inteira.

— Eu gosto de te ver no teu território. — respondeu ele. — Mesmo quando você acha que está no meu.

A loja pulsava num ritmo silencioso e sagrado. Fernanda já se afastava entre as prateleiras, puxando capas de discos como quem busca pistas num relicário, quando de repente, voltou sobre os passos com aquele riso leve, ensaiando provocação.

— É bem a sua cara mesmo ser fã do Gonzaguinha. — disse, parando ao lado de Walter, que examinava a seção de MPB com ar concentrado.

Ele arqueou a sobrancelha, sem tirar os olhos do disco à mão.

— Ah, é? E por quê?

Ela não respondeu de imediato. Passou os olhos pelas capas de vinil à frente, mas o pensamento estava nele. E então, sem rodeios, falou. Com sinceridade nua. Com aquele tom de quem sabe que não precisa florear o que já é bonito por si só.

— Porque você tem essa alma sonhadora que não se ilude. — disse. — Você acredita, mas sem romantizar. Aponta o que tá errado, mas sem berrar. Sem precisar agredir pra dizer. Você tem esse dom de escancarar as rachaduras nas entrelinhas. Sem perder a ternura, nem a elegância e isso, Walter… isso é raro.

Ela fez uma pausa curta, como se ponderasse se devia continuar — mas continuou.

— Gonzaguinha era assim também. — continuou ela. — Falava do país como quem fala da casa onde mora. Com raiva e amor ao mesmo tempo. Com lucidez, mas também com afeto. E você, quando está atrás da câmera... você filma o Brasil como quem ainda acredita que ele pode melhorar. Mesmo quando ele desaponta. Você tem um jeito de escutar o mundo que me lembra ele.

Walter ficou em silêncio. Apenas a observou. E naquele silêncio havia algo mais que admiração. Havia gratidão. Havia espanto. Como se ele não se achasse digno daquele tipo de leitura, e ainda assim, ela o tivesse lido exatamente como era.

Mas Fernanda sabia. Sabia que ele sentia tudo. E que aquele tipo de leitura — íntima, sem retoques, sem máscara — o atravessava como poucas coisas na vida. Ela deu mais um passo entre os corredores da loja, mas parou e voltou o rosto na direção dele.

— Se você continuar assim... não vai demorar pra o mundo inteiro te perceber. — disse, com um sorriso suave. — Talvez até um Oscar venha. Vai ver é isso: a elegância do teu gesto é o que dá forma à denúncia. Essa tua voracidade tão educada, incomoda e encanta ao mesmo tempo.

Walter abriu um sorriso contido, quase tímido. Coçou o queixo devagar, como quem se esconde atrás de um gesto qualquer.

— E desde quando você virou profeta, hein? — brincou, o tom leve, mas com os olhos ainda presos ao que ela havia dito antes.

Fernanda deu de ombros, teatral, os dedos dançando no ar diante do vinil que segurava.

— Profeta, não. Visionária, no máximo. Ser profeta carrega uma responsabilidade espiritual muito pesada... — disse, com aquele sarcasmo sutil e afetivo que era só dela. — Visionária é mais charmoso. E mais preciso também.

— Preciso, é? — ele arqueou uma sobrancelha, fingindo dúvida.

— É. — ela afirmou, sem piscar. — Eu só prevejo o que já tá óbvio pra quem sabe olhar.

Sorriu de leve, ainda absorvida pelo que havia dito e pelo modo como ele havia escutado. Mas, como era do seu feitio, não deixou o momento se perder na solenidade.

— Mas calma lá. — disse, afrouxando a intensidade com um arquejo de sobrancelha e um gesto maroto. — Ainda tô analisando seus discos. Isso aqui pode mudar tudo. — E puxou, com falsa gravidade, um LP de Mercedes Sosa, examinando a capa como uma detetive de vinil.

Walter riu, o riso grave e quente, passando um braço por trás dela como quem sela uma aliança invisível.

— Quer fazer um trato? — disse, com o tom leve de quem sabe exatamente o que está propondo.

— Diga. — respondeu ela, ainda com o disco em mãos, mas já desconfiada do brilho travesso nos olhos dele.

— A gente se separa por vinte minutos. Cada um escolhe três discos. Três que marcaram. Que doeram. Que curaram. Os mais íntimos. E depois... a gente revela. Jogo limpo.

Ela fingiu pensar, colocando o Mercedes Sosa de volta com um exagero dramático.

— Certo. Mas saiba que, dependendo da sua seleção, minha previsão pode ser revista, hein? — disse, brincando com a fala anterior. — Visionária, sim. Mas não irresponsável.

— Eu prometo tentar estar à altura. — respondeu ele, com a sobriedade elegante de quem realmente desejava isso — não só pra impressionar, mas pra merecer.

E então, como dois conspiradores num pacto mudo, se separaram pelos corredores da loja, entre prateleiras e memórias. Era só um jogo. Mas, entre eles, até os jogos vinham com verdade.

 

A loja era um refúgio sonoro. Um labirinto de capas surradas, lombadas coloridas e cartazes pendurados como bandeiras de outra era. Havia algo de quase profético naquele silêncio entre faixas, entre prateleiras, entre memórias.

Fernanda caminhava devagar, os dedos passando pelas capas como quem procura uma lembrança específica no meio de um sonho. Ao tocar Clube da Esquina, sentiu o cheiro do apartamento dos pais no Rio, o som distante da vitrola na sala e os pés descalços dela mesma, girando entre as almofadas como se a infância nunca tivesse acabado. Sorriu. Não por saudade, mas por gratidão. Depois veio Abbey Road. Um aceno para o caos organizado da própria juventude: ousada, criativa, estranha, rebelde. E por fim, ali, meio escondido entre álbuns de jazz latino, ela encontrou Buena Vista Social Club. Ao puxá-lo da prateleira, o gesto foi quase cúmplice.

O sorriso veio antes da lembrança: a dança no Clos Maggiore, o toque quente das mãos de Walter nas costas nuas dela, o corpo guiado como quem lê uma partitura secreta. A voz aveludada e arrastada dele sussurrando feitiços em espanhol no ouvido dela. O coração deu um salto contido, e ela riu sozinha, como quem reencontra algo íntimo demais pra ser dividido em voz alta.

 

Do outro lado da loja, Walter já segurava dois álbuns sob o braço — I Put a Spell on You da Nina Simone e The Wall do Pink Floyd. O primeiro, escolhido como quem escolhe uma oração. O segundo, como quem reconhece o próprio passado nas rachaduras de um muro. Mas foi ao encontrar FA – TAL Gal A Todo Vapor que ele parou.

Pegou o vinil com reverência, como se estivesse puxando um segredo do fundo do mar. “Vapor Barato” ecoou em sua mente — não como trilha, mas como destino. E por um instante, ficou ali parado, com os três discos na mão e os olhos presos à capa, como quem agradece à vida por ter colocado Fernanda no caminho certo da sua escuta.

Vinte minutos tinham se passado. E, como haviam combinado, se encontraram no canto mais escondido da loja, entre as sessões de trilhas sonoras e álbuns fora de catálogo. Um espaço apertado demais para quem não se conhece. Amplo demais para quem já se ama. Cada um com três discos nos braços, e um universo inteiro na ponta dos dedos.

— Então? — Walter perguntou, encostado na estante ao lado, os braços cruzados e o olhar fixo nela. — Quais foram os escolhidos da Senhorita Torres?

Fernanda mordeu de leve o canto do lábio, como quem guarda o segredo só mais um segundo para aumentar o prazer da revelação. Estava sentada no chão, com as pernas dobradas sob o corpo e os discos empilhados ao lado, como cartas de um tarô afetivo.

— Primeiro... esse aqui. — disse, puxando delicadamente Clube da Esquina. Entregou nas mãos dele como quem entrega uma relíquia pessoal.

Walter recebeu o vinil com respeito, como se soubesse que segurava mais do que um álbum. Era uma cápsula do tempo.

— Clube da Esquina... — repetiu em voz baixa, quase como um ritual. — Lirismo em estado bruto.

— E memória. — completou ela, com um sorriso que não chegava a ser triste, mas era feito de saudade.

Ela o olhou por um instante, depois baixou os olhos e passou os dedos pela borda da capa, como se tocasse o passado.

— Meus pais dançavam essa música... Clube da Esquina nº 2. — disse. — Eu lembro deles girando na sala como se o mundo estivesse suspenso. Aquilo era... mágico. Eu ficava parada só olhando, querendo crescer rápido pra poder fazer parte daquilo.

Fez uma pausa, respirou devagar.

— Acho que, no fundo, toda vez que escuto essa música, ainda estou lá. Sentada no carpete, olhando os dois. Ainda esperando minha vez de dançar.

Walter não disse nada. Apenas assentiu com um olhar que escutava mais do que qualquer palavra. Sabia que havia beleza naquilo que se escolhe lembrar — e mais ainda no que se escolhe dividir.

— O segundo... — ela continuou, puxando Abbey Road com um ar quase de desculpa antecipada. — Eu sei, é óbvio. Mas eu não sou uma mulher de esconder seus clichês.

Walter riu com um brilho nos olhos.

— Seria estranho se você não tivesse escolhido. Você é puro Paul com momentos de George. Rebeldia em formato de psicodelia organizada.

Ela riu, fingindo indignação.

— Eu levo isso como elogio, tá?

— Foi feito pra ser. — respondeu, passando os dedos pelo vinil com reverência. E então, com a voz mais baixa, quase grave, deixou escapar como quem não conseguia segurar o pensamento:

— Se eu tivesse que te ver dançando uma música dos Beatles, desse álbum em específico... seria I Want You (She’s So Heavy).

Fernanda arqueou uma sobrancelha, curiosa, divertida.

— É mesmo?

Walter assentiu, os olhos agora fixos nela, com aquela intensidade que dispensava enfeites.

— Totalmente selvagem. Descalça. Suada. O cabelo bagunçado. O quadril obedecendo à guitarra como se fosse código secreto. Uma dança que não se repete, não se ensaia. Voraz e sem culpa.

Ela mordeu o lábio inferior, apenas para conter o sorriso que ameaçava se abrir por completo. Mas ele continuou, e a voz estava diferente — mais densa, mais grave. Um pouco rouca.

— É como se Lennon e McCartney tivessem escrito essa para você. Cada nota parece te procurar. E eu... — ele fez uma pausa breve, depois inclinou o rosto, um centímetro mais perto. — Eu seria o homem na poltrona, preso no feitiço. Só te observando. Querendo que a dança não acabasse nunca.

O silêncio entre os dois se adensou. A loja ao redor, com seus vinis rangendo sob dedos e suas músicas tocando ao fundo, desapareceu por um instante. Ficaram só eles — a distância entre uma palavra e outra carregada demais para ser inocente.

Fernanda inclinou a cabeça, o olhar afiado e terno, aquele tom sóbrio e irônico que era só dela:

— Quem sabe... eu não dance pra você, Salles?

Walter sorriu. Aquele sorriso silencioso que vinha quando ele sabia que tinha sido desarmado — e gostava da sensação. O tipo de sorriso que guardava promessas, fome e fé.

— Eu esperaria uma vida inteira por essa cena, Fernanda.

E ela soube. Soube pelo modo como ele disse o nome dela. Pelo jeito como o olhar dele pousava nela, não como quem desejava uma mulher, mas como quem venerava um milagre. Que aquilo não era só provocação. Ele se aproximou um pouco mais, agachando-se ao lado dela, os dois quase encostando joelhos.

— E o terceiro? — perguntou com a voz baixa, com aquele tom cúmplice de quem sabia que ela guardava o melhor para o fim.

Fernanda sorriu de lado, travessa. Os dedos brincavam com a borda do disco ainda escondido embaixo dos outros.

— Esse... — disse, com uma pausa calculada — é especial. Não tanto pela história que carrega, mas pela história que ainda tá começando a escrever.

E puxou o vinil de Buena Vista Social Club, estendendo para ele como quem oferece uma provocação doce.

Walter sorriu devagar. Um sorriso que nascia nos olhos antes de alcançar a boca.

— É claro. — murmurou Walter, quando viu a capa do álbum nas mãos dela. A voz veio baixa, como quem reconhece algo que já sabia — mas que, ainda assim, o desarma.

Fernanda não respondeu de imediato. Apenas girou o disco nas mãos, os dedos deslizando pela capa como se cada centímetro carregasse memória. Ou promessa.

— Esse aqui… — disse, com a voz mais baixa, mais quente, como se não estivesse falando com ele, mas confessando algo ao próprio desejo — esse aqui é seu.

Walter a olhou com atenção, mas não interrompeu. Havia uma solenidade suave no modo como ela dizia aquilo. Uma entrega. Uma fresta aberta.

— É seu, Walter. Não pelo que o álbum diz, mas por como você o faz soar. — Ela soltou um leve riso, entre rendida e provocadora. — Desde o jantar... Clos Maggiore... Chan Chan tocando... e você ali, com o espanhol arrastado nos meus ouvidos. Como se soubesse exatamente o tempo entre um desejo e outro.

Walter mordeu levemente o canto do lábio. Não havia arrogância ali. Havia humildade de quem sabe o que sente — e sente fundo.

— Eu lembro. — disse ele, quase num sussurro. — Cada compasso.

Ela continuou, os olhos agora presos aos dele:

— Desde aquele momento no jantar, esse disco parou de ser do mundo. Virou seu. Virou meu. Mas mais seu do que meu. Porque ele tem isso que você tem: a mistura de elegância com raiz, de cuidado com instinto. Você dança como fala. Comedidamente. Mas com vontade. E eu… — ela hesitou, mas não recuou — eu queria que você soubesse disso.

Walter, que até então a ouvia com aquele silêncio que não pesa, mas acolhe, estendeu a mão até tocar a lateral do disco. E, num gesto lento, deixou que os dedos dele escorregassem até os dela. Um gesto mínimo, mas tão íntimo quanto qualquer confissão.

— É curioso... — disse ele, com a voz já um pouco mais rouca — esse disco foi feito pra durar. Como quem não se apressa porque sabe que tem tempo. Como a gente, talvez.

Fernanda sorriu. Um sorriso cheio de calor e travessura.

— Você é mesmo insuportavelmente romântico, né?

— Só com você. — respondeu ele, com aquele meio sorriso que vinha quando o desejo e a ternura dividiam a mesma frase.

— Isso devia ser ilegal. — murmurou ela, com humor — você, seu sotaque espanhol macio, e Chan Chan no fundo.

— Mas não é. — sussurrou Walter. E se aproximou, o bastante para que a respiração dos dois se misturasse.

Eles ainda estavam próximos — o espaço entre os corpos reduzido a um intervalo de respiração. Mas foi Fernanda quem, como sempre, atravessou o momento com humor e afeto, quebrando a solenidade com um sorriso enviesado:

— Agora é a sua vez. Vamos lá... me mostre o que você guardou pra mim.

A provocação veio sem desviar os olhos, como quem já sabia que o que viria carregava peso, mas também beleza. Walter riu, baixo, aquela risada sem pressa que nascia no peito antes de alcançar os lábios. Pegou o primeiro disco com cuidado — quase com reverência — e mostrou a capa.

I Put a Spell on You, Nina Simone.

Fernanda ergueu as sobrancelhas, surpresa e tocada.

— Uau. Começamos bem.

— Esse disco me lembra a minha infância. — disse ele, com a voz ainda baixa, mas clara. — Lembro dos jantares longos, da mesa muito grande pra pouca conversa... e da voz dela ao fundo. Densa. Dolorida. Como se ela dissesse tudo que ninguém ali tinha coragem de dizer.

— Você encontrava abrigo na dor dela. — disse, num sussurro quase intuitivo.

Walter apenas assentiu, sem palavras. E passou para o segundo disco.

The Wall, Pink Floyd. — disse, com um sorriso que carregava certa timidez, como se aquele lado dele ainda pedisse permissão para existir.

— Agora sim. — disse Fernanda, brincando, para aliviar o clima. — O rebelde interno começando a dar as caras.

Walter soltou um riso breve.

— Você acha que só você tem direito à reputação de subversiva?

— Eu sempre soube que você puxava meu saco, Salles. — provocou, divertida. — Mas você é o tipo de rebelde entrelinhado. Escreve revoluções com letra miúda.

O sorriso dele vacilou. E então, com uma honestidade que doeu só por ser tão silenciosa, Walter murmurou:

— Eu nunca fui rebelde.

A frase não veio carregada de drama. Era apenas... nua. Um fato lançado ao mundo, como se tivesse escapado antes que ele pudesse conter. Fernanda não respondeu. Apenas permaneceu ali, sentada, inteira e quieta o bastante para que ele não se recolhesse da própria vulnerabilidade.

Walter olhou para o vinil por um instante, como se a coragem estivesse ali, impressa entre as faixas, e então disse:

— Quando eu era pequeno... — começou, num tom quase despretensioso, como quem fala mais para si do que para o outro — havia algo de solene em tudo. As vozes, a casa, os horários, até os talheres. Tudo parecia ter sido ensaiado pra caber dentro de um molde. Fez uma pausa, buscando palavras que não soassem como mágoa, mas memória.

— E eu… eu era o menino que passava os dedos pelas bordas do tapete persa só pra ver se o desenho se repetia no avesso. Que colecionava silêncios porque os ruídos pareciam... perigosos. Inconvenientes. Fui aquele que ouvia mais do que falava. Que sentia demais, mas não tinha muito espaço pra sentir.

Fernanda o escutava com uma atenção que não interrompia. Uma escuta que não julgava, nem apressava, mas que abria espaço. O peito apertado com a nitidez daquele retrato. A solidão que não gritava, mas fundava quem ele era. A criança sensível demais para o mundo que não sabia acolher o sensível.

— Você era um menino profundo demais pra superfície em que te criaram. — disse ela, por fim, com a voz limpa e doce, mas firme. — E você encontrou refúgio nas frestas. Nas entrelinhas. Na arte.

Walter não respondeu. Mas o olhar dele era o de quem se sabia visto. Inteiro. Sem precisar se despir.

— E hoje — completou Fernanda, com um meio sorriso contido — você continua traduzindo tudo que sente. Só trocou o toca-discos pela câmera. Mas ainda é a mesma alma que escutava Nina e Pink Floyd na vitrola da sala. Só que agora… você tem alguém ouvindo com você.

Ele a encarou. E naquele olhar havia uma mistura de espanto e gratidão muda. Era como se ela tivesse acessado uma gaveta que ele nem sabia que ainda guardava chave.

— Você é um problema, Torres. — murmurou ele, com um sorriso que não era de defesa, mas de rendição. — Você enxerga fundo demais.

Ela tocou de leve o joelho dele com o pé, travessa:

— Só enxergo o que você deixa escapar, Salles. E você... escapa por poesia.

O silêncio que se seguiu era espesso e confortável. Walter apoiou The Wall ao lado dos outros e olhou para ela com aquele brilho raro — o de quem, por fim, podia descansar na presença de alguém.

— Quer saber o terceiro disco? — perguntou, mais leve.

— Claro. — respondeu ela, com uma serenidade que era quase íntima.

Walter demorou um segundo. Então, com um brilho discreto nos olhos, puxou o último disco com reverência. E o nome, antes mesmo de ser dito, já morava no sorriso dele.

— “Fa – Tal. Gal a Todo Vapor.”

Ela sorriu, imediatamente.

— Agora você se superou.

— É que esse disco... — começou ele, e os olhos buscaram os dela — esse disco mudou de significado nos últimos tempos. Eu ouvia por admiração. Agora ouço por memória.

— Memória de quê?

— De você. — respondeu ele, sem vacilar. — Vapor Barato agora... tem seu cheiro. Tem sua voz.

Ela riu, mas os olhos estavam úmidos. Porque Walter, mesmo quando dizia pouco, dizia tudo. Walter segurou o disco por mais um instante, como se o peso dele fosse maior que o vinil. Como se segurasse, ali, um ponto de virada.

— Lembro de Lisboa. — disse ele, com a voz mais baixa, como quem recita um segredo.

Fernanda o olhou, curiosa, atenta.

— A gente estava no set. Cansados. Meia-noite ou mais. Procurando uma música pra cena da Alex, lembra?

Ela assentiu com a cabeça, os olhos mergulhados nos dele.

— E você... — ele continuou, os lábios desenhando a lembrança com precisão — você brincava com a borda do copo, distraída. Como se o tempo todo estivesse ouvindo uma frequência que ninguém mais captava.

Fernanda sorriu de leve, já se lembrando.

— E de repente — ele disse, com um brilho nos olhos — você começou a cantar Vapor Barato. — sussurrou, como se ainda escutasse. — E depois mudou, como se algo tivesse descido inteiro em você. Sem ensaio. Sem afetação. Sem proteção. Só você e a melodia... crua. E eu...

Walter respirou fundo. O disco ainda entre as mãos.

— Eu soube. Ali. Que estava perdido. — confessou, com ternura grave. — E não era só por causa da voz. Era por você. Porque só você faria caber essa música num filme sem que ela parecesse uma escolha estética. Você era a própria música. Era ela quem te atravessava.

Fernanda abaixou os olhos, tomada por um calor silencioso. Não disse nada. Só escutou.

— Não é à toa que eu te chamo de Honey Baby. — disse ele, com um sorrisinho íntimo. — Porque você é doce, sim. Mas você também é densa. Você escava tudo o que toca. Você tem raízes, Nanda. E eu... — a voz dele ficou mais rouca, como se quase não coubesse no corpo — eu gosto de coisas profundas.

Ela ergueu o olhar devagar. Não era um flerte. Não mais. Era confissão.

— Ainda bem. — disse ela, com um sorriso pequeno, mas firme. — Porque eu não saberia ser rasa nem se tentasse.

Walter se inclinou um pouco, o suficiente para que as testas quase se encostassem. Os olhos dele fixos nos dela, como se aquela distância mínima entre os dois fosse o intervalo exato entre um segredo e a sua revelação.

E então ele a beijou.

Não como quem cede ao impulso, mas como quem se reconhece no gesto. Um beijo que começou suave, mas que logo se aprofundou — porque entre eles não havia superfície. Era boca que procura porto, desejo que não precisava de tradução. As mãos dele encontraram a cintura dela com naturalidade. Ela respondeu com a mesma fome silenciosa de quem já se sabia escolhida. Ali, no fundo da loja de discos, entre prateleiras e vinis gastos, não havia mais 1996, nem Londres, nem nada além do instante.

Quando se afastaram, o ar entre eles ainda parecia carregado de eletricidade calma. Fernanda mordeu o lábio, rindo baixo.

— A gente ainda tem duas horas em solo londrino… e nem começamos a escolher os discos novos pra levar pra casa.

Walter passou os dedos pelos cabelos dela, ajeitando uma mecha com um gesto que dizia mais do que qualquer fala.

— É que eu orbito em torno de você, Nanda. — respondeu, com um sorrisinho rouco, quase resignado. — Toda vez que tento fazer outra coisa, você me puxa de volta. Como se fosse gravidade.

Ela riu, baixinho.

— Acontece que eu tenho um campo magnético muito particular.

— Você é uma tempestade solar disfarçada de atriz. — murmurou ele, beijando o topo da cabeça dela com um carinho exato.

Antes que o tempo os apressasse de novo, ela ergueu o indicador com um brilho nos olhos:

— Espera. Antes da gente escolher os discos novos, a gente precisa documentar os antigos.

Walter entendeu na hora. E assentiu, já puxando do bolso a Kodak que tinha registrado milimetricamente todos os momentos deles dois. Fernanda fez o mesmo, e, num pacto silencioso, eles organizaram a cena.

Ela foi a primeira. Posicionou-se em frente a uma das prateleiras de madeira, com os três discos firmes nos braços: Clube da Esquina, Abbey Road e Buena Vista Social Club. Sorriu daquele jeito só dela — o sorriso travesso que vinha antes de uma provocação — e piscou um olho para a lente.

Walter apertou o botão.

Click.

A imagem que nasceria dali era uma cápsula: uma mulher com os pés fincados em décadas de música e os olhos acesos por uma paixão recente.

Depois, foi a vez dele. Com Nina Simone, The Wall e Gal a Todo Vapor apoiados no antebraço, Walter posicionou-se com a timidez elegante de quem nunca se acostumou com holofotes virados para si. Mas o sorriso veio mesmo assim — lento, mas caloroso — e, num gesto espontâneo, apontou com o dedo indicador para os discos, como quem diz: "está tudo aqui".

Fernanda riu antes de tirar a foto.

Click.

E, por um instante, tudo ficou suspenso. Eles sabiam que estavam congelando memórias. Não só para lembrar — mas para não esquecer. Era o tipo de coisa que a vida não repete. Mas que, se bem guardada, pode ser revista em silêncio, num domingo à tarde, quando o tempo apertar.

E ali estavam eles. Dois adultos com bagagens emocionais complexas, passados diferentes, futuros incertos. Mas com as mãos cheias de música. E um ao outro. Ainda que por pouco tempo. Ainda que, talvez, para sempre.

 


 

AEROPORTO DE HEATHROW — LONDRES

O vidro largo do terminal emoldurava a pista como uma vitrine de partidas. Aviões taxiavam com precisão coreografada sob o céu de Londres, aquele cinza elegante que parecia nunca se apressar. Fernanda estava parada ali, imóvel, as mãos nos bolsos do casaco — o dele, ainda — e os olhos fixos em um ponto indefinido no horizonte.

Era isso. Estavam voltando pra casa.

No peito, um calor tranquilo. Não era tristeza. Era gratidão. Uma espécie de paz rara, que carregava exaustão e alegria na mesma medida. Como se o corpo inteiro tivesse compreendido que viver também era isso: deixar–se atravessar.

Pensou em tudo. Em Roterdã. No show. Em Knebworth. No Clos Maggiore. Nas mãos dadas. Nos discos. Em Berwick Street. No beijo sob Wonderwall. Em Vapor Barato sussurrado no fundo da loja. Em como ele olhava pra ela. Em como a presença dele reorganizava o mundo.

Era surreal. E, ainda assim, real demais.

Sem querer, os pensamentos escorregaram para o corpo de Walter sobre o dela. A suíte do  The Royal Horseguards voltou como um sopro quente.  A lembrança vívida — do calor, do peso, da forma como ele a virava com precisão e desejo, a boca no pescoço, os gemidos abafados e sussurrados diretamente no ouvido. Como se ele pedisse permissão com o toque e ao mesmo tempo não deixasse espaço pra dúvida. Sentiu um calor sutil subir pelo ventre e um leve tremor nas pernas. Era quase indecente lembrar daquilo em um aeroporto. Mas não havia nada de vulgar naquela memória. Era bonito demais. Assustador de bonito.

E então, como se o universo conhecesse seu timing cênico, Walter apareceu ao lado. Dois copos de café na mão. A expressão serena, os cabelos ligeiramente desalinhados pelo vento que entrava do portão de embarque. Não disse nada de imediato. Apenas a observou e soube. Sabia reconhecer o olhar dela quando ela viajava por dentro.

Ela ainda olhava os aviões.

— Ainda está refletindo sobre a fragilidade da existência humana a dez mil metros de altura? — ele perguntou, oferecendo o café com uma sobrancelha arqueada e um humor tão polido quanto indecente.

Fernanda mordeu o lábio, rindo. Aquela frase era dela. Tinha sido dita numa tarde no Aeroporto do Galeão, antes do voo para Roterdã e, agora, retornava reciclada no corpo da memória. Não respondeu de imediato. Apenas virou o rosto e o olhou de lado, como quem volta de um sonho sem pressa.

— Algo assim. — murmurou, pegando o café das mãos dele, os dedos se tocando com uma calma conhecida. — Ou talvez só estivesse pensando o quanto você é gostoso... biblicamente.

Ele riu. Aquele riso baixo, vindo do estômago, quente e cúmplice.


— Você tá tendo flashbacks sexuais da noite passada, é isso?

— Não. — disse, com a voz baixa, umedecendo os lábios antes de continuar. — Estou tendo uma sessão retrospectiva completa. Com direito a trilha sonora e classificação indicativa para maiores.

Walter respirou fundo, aquele fundo que precedia o impulso. O desejo já estava nos olhos, mas o gesto foi terno. Chegou mais perto, o suficiente para o calor entre os dois se tornar presença física.

— Então saiba que, assim que pisarmos em solo pátrio, vou carregar você nos braços até onde quer que seja. — disse com a voz rouca, íntima. — E vou deitar com você. Com calma. Com pressa. Com fome. Do jeito que a gente quiser.

Ela sorriu de canto, com aquele sorriso que só saía quando o corpo inteiro concordava.
— Isso é uma promessa ou uma ameaça?

— É só um aviso. — respondeu, com a boca próxima demais da orelha dela. — Daqueles que você não vai querer evitar.

E, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele a abraçou por trás. O copo ainda estava nas mãos dela, mas os ombros encontraram o peito dele, e ela se permitiu recostar.

— E se eu fugir? — perguntou, sem virar o rosto. — E se eu decidir evitar?

Walter não respondeu de imediato. Sorriu de leve contra a pele dela, quase com pena da tentativa. O queixo dele roçava devagar na curva do ombro dela. E então disse, num tom baixo, grave, com as palavras pousando feito brisa — e lâmina:

— Fuja. — murmurou. — A coelhinha pode correr o quanto quiser. Mas eu sempre vou achar você.

Ela mordeu o lábio, o riso contido, provocador.

— Você sabe o que me prometeu. – disse ele, com a voz mais baixa agora, e os lábios perigosamente próximos da nuca.

Ela virou levemente o rosto, os olhos semicerrados, como se desafiasse:

— Foi só uma fruta, Salles.

— Não. — retrucou ele, quase num sussurro. — Foi uma romã. Você comeu. Inteira. No meio do jantar mais bonito da sua vida. E agora você vai se lembrar. Sempre. Do gosto, do lugar, de mim.

Ela suspirou, sem conseguir esconder o arrepio. A pele era o único lugar onde ela não conseguia mentir. A referência mitológica não era só charme. Era código. Era Walter sendo Walter. Sensual, culto, preciso. E ela, sendo Fernanda, achava aquilo insuportavelmente excitante. O jogo de poder, de palavras, de mitologias entrelaçadas ao desejo. Aquela forma como ele a entendia por dentro e ainda assim pedia passagem, com reverência.

— Você é impossível.

— Só com você. — ele respondeu, com aquele tom que sempre parecia a última frase antes do inevitável.

De frente para os aviões, os vidros altos do terminal projetando o reflexo dos dois como um dueto sutil. Fernanda sentia a respiração dele na nuca. Com o rosto colado no perfume dos cabelos dela, ele sentia que ali havia lar.

— Acho que o avião atrasou. — murmurou ela.

— Ótimo. — respondeu ele, apertando um pouco mais o abraço.

Walter encostou um pouco mais o rosto na curva entre o pescoço e o ombro dela, como se aquele gesto pudesse selar o momento, ou atrasar o relógio mais um pouco. A voz, quando veio, era baixa, mas carregada de pensamento:

— Estive pensando... parece que estou com você há uma vida inteira.

Fernanda sorriu, sem virar o rosto.

— Engraçado. Pensei exatamente isso, há poucos minutos.

Ele a apertou mais um pouco, e por um instante não disse nada. Como se digerisse o silêncio antes da próxima verdade.

— Mas não é só isso. — continuou, enfim. — Não é sobre o tempo. É sobre o lugar. Agora eu entendo por que você não queria sair de Londres. Por que quis prolongar esses dias.

Ela se afastou só o suficiente para olhar pra ele, os olhos atentos, abertos.

— Foi incrível andar com você por essas ruas… — ele disse, quase sorrindo com a lembrança. — Sem que ninguém soubesse quem éramos. Sem pressa, sem máscara. Sem sobrenome. Não é que eu esteja negando de onde venho. Não é isso. Mas é bom, às vezes, ser só... um homem andando ao lado da mulher que o faz feliz. E ninguém perguntar nada.

O silêncio entre eles era denso, mas não desconfortável. Era o silêncio dos que se entendem. Fernanda assentiu devagar, os olhos ainda nele, a boca entreaberta como se ponderasse a próxima fala. Quando veio, foi com a sobriedade lúcida de quem já sentiu o peso do que estava dizendo.

— Uma hora ou outra a gente teria que voltar. — disse, serena. — Só quem conhece os holofotes entende o valor do anonimato. A gente só entende o preço de ser invisível... depois que se torna irreversivelmente visível.

Walter respirou fundo. O olhar pousado nela agora era diferente — mais brando, mais certo.

— Obrigada... — disse enfim. — Por esses dias. Por me dar paz. Você me devolveu um tipo de silêncio que eu achava que tinha perdido.

Walter inclinou a cabeça levemente, como quem acolhe sem saber exatamente como retribuir, mas querendo. Muito.

— Eu que te agradeço. — respondeu, com a voz baixa, íntima. — Por ter sido minha casa... mesmo quando a gente não tinha chão. Por ter me permitido ser só um homem. Um estrangeiro desconhecido, numa terra que não exigia nada além da presença.

Ela o olhou, firme. Mas com ternura.

— Você não é “só um homem”, Walter. E mesmo quando tenta se esconder, carrega o mundo nos olhos.

Ele sorriu de leve, quase sem querer.

Foi então que a voz metálica do aeroporto atravessou o momento:

Senhores passageiros do voo British Airways 249, com destino ao Rio de Janeiro, favor dirigir-se ao portão de embarque…

Abaixou o rosto até que seus olhos ficassem no mesmo nível que os dela. Não precisaram dizer nada. Apenas entrelaçaram os dedos com a naturalidade de quem já havia feito isso em outra vida.

— É a gente. — ela disse, sem pressa, ainda com os olhos nos aviões.

— É. — ele respondeu, entrelaçando e apertando levemente os dedos nos dela. — Vamos?

— Vamos. — ela disse.

Como quem atravessa o mundo e escolhe ficar.

Notes:

Foi difícil dar adeus a Londres, mas a fanfic precisa seguir. Espero que tenham gostado!
Deixe seu feedback, ele faz toda a diferença! Até logo. <3

Chapter 12: XII

Notes:

Boa noite, pessoal! :)
* Esse capítulo marca o retorno da narrativa ao presente.
* Depois de algumas idas ao passado, voltamos para o agora e as consequências desse amor que atravessou o tempo.
* Espero que vocês aproveitem a leitura com o coração aberto.
* Muito obrigada pelos comentários, pelo carinho e por cada palavra que vocês deixam. É um combustível imenso pra mim.

Boa leitura, e até logo no próximo! <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Músicas que acompanharam a escrita deste capítulo:

Eternamente - Gal Costa

Caçador de Mim - Milton Nascimento

Um Girassol da Cor de Seu Cabelo - Clube da Esquina


 

XII

(PRESENTE)

LOS ANGELES - 2025

SUÍTE DO CHATEAU MARMONT – DIA DO OSCAR

A mesa da varanda estava posta com uma simplicidade quase cerimonial. Café fresco, frutas cortadas com precisão, croissants que exalavam um perfume quente de manteiga e memória. A manhã ainda era nova, e o céu de Los Angeles se abria em tons suaves, como se também ele estivesse num intervalo entre o antes e o depois.

Walter sentou-se primeiro, cruzando os braços sobre a mesa pequena, os cabelos ainda úmidos do banho, a expressão tranquila, mas desperta, como se estivesse prestando atenção a cada segundo. Fernanda veio logo depois, usando uma camiseta dele e os próprios silêncios como escudo e cobertor. Sentou-se em frente, sem dizer palavra. Pegou a xícara com as duas mãos e bebeu devagar, observando-o por sobre a borda de porcelana.

Ele escrevia.

Como sempre.

Diante dele, uma pequena caderneta de capa azul já estava aberta uma caneta pousada entre os dedos, girando entre pensamentos. Ele anotava com ritmo preciso, quase meditativo. Sempre fora assim. Velhos hábitos, de fato, não mudavam.

E havia algo de reconfortante nisso: o gesto, o ritual, o foco. Ele permanecia o mesmo homem, só que mais velho, com o vinco mais fundo na testa, mais marcado pelo tempo, pela estrada, pelas escolhas. O mesmo Walter que ela conheceu aos quarenta, agora com quase setenta. E ainda assim, havia nele a mesma urgência sutil, a mesma leveza contida, o mesmo jeito de estar presente com os dois pés e metade da alma em outro lugar.

Ela sorriu por dentro. E então disse, sem levantar muito a voz, como quem nomeia um pensamento do que como quem abre conversa:

— É como se eu já tivesse vivido tudo isso antes. Déjà vu.  

Walter a olhou, sem pressa.

— O quê?

Ela sorriu de canto. Um sorriso denso, antigo.

— Estar assim. Numa varanda de hotel. Com você. Depois de uma noite em que o mundo parou de fazer sentido e, de alguma forma, tudo parece mais claro. Mesmo que não seja.

Ele entendeu. A memória não precisava ser nomeada. Era 1996. Londres. The Royal Horseguards. O cheiro do café e o silêncio compartilhado bastavam para redesenhar o cenário inteiro. O déjà vu não era coincidência. Era espelho. Walter fechou o caderno devagar, a caneta encaixada entre as páginas. O olhar permaneceu nela, como quem reconhece um território que é, ao mesmo tempo, novo e sagrado.

— Sabe... — disse, com a voz mais baixa, mas ainda firme — eu sinto falta disso. De estar assim com você. Dividindo um café, uma manhã, um silêncio confortável. É como se, com você, até o simples parecesse grandioso. Ou digno de nota.

Walter manteve os olhos nela por alguns segundos, como quem sabia que responder de qualquer jeito seria pouco. Depois sorriu. Um sorriso manso, amoroso. Daqueles que vinham do estômago, não da boca.

— Eu também sinto falta, carinho. — disse, com uma ternura que parecia repousar nas palavras.

Houve um silêncio breve. Mas era um silêncio bom, do tipo que acolhe, em vez de afastar. E então ele acrescentou, com aquele tom brincalhão que só usava com ela:

— Sinto falta até das suas manias.

Fernanda ergueu uma sobrancelha, já desconfiando.

— Quais, especificamente?

Walter fingiu pensar por um instante, como quem pescava na memória um detalhe antigo, mas precioso.

— Do seu café, por exemplo. O Nescafé Tradição. Forte. Tinha que ser aquele, o vermelhinho. Nem o suave, nem o extraforte. Deus nos livre do extraforte. A medida exata do seu humor matinal.

Ela riu, surpresa por ele lembrar.

— Ora, tinha que ser o Forte! — defendeu-se, divertida. — O suave não acorda ninguém, e o extraforte me deixava inquieta e elétrica. Tudo é uma questão de dosagem.

— Ah, sim. — ele assentiu, fingindo solenidade. — A alquimia de Fernanda Torres: cafeína na medida certa e caos sob controle.

Ela soltou uma risada curta, calorosa. Era bom rir com ele. Rir daquele jeito que não exigia nada além da presença.

— Lembra quando a gente não achou o bendito do café em Botafogo?

— E você me fez sair de Botafogo e parar na Barra da Tijuca por causa de um vidro de Nescafé? — Walter emendou, arqueando as sobrancelhas. — Aí, quando finalmente encontramos, você comprou três potes. “Vai que acaba de novo”, você disse.

Fernanda sorriu com a xícara entre os dedos, o rosto iluminado pela lembrança.

— E acabou, né?

— Claro que acabou. — ele respondeu, tocando de leve a lateral da mão dela. — Mas não era sobre o café, e você sabe. Era sobre você sentir que o mundo estava no eixo. Que havia um ritual. Uma repetição segura.

Fez uma pausa. O olhar ficou mais brando, quase cúmplice.

— E tinha outra mania sua que eu adorava. A gente, deitado na sala do seu apartamento, você com a cabeça no meu colo, os olhos quase fechando, e The Twilight Zone passando na TV. Sua série preferida. Você conhecia os episódios de cor. Falava as falas antes mesmo do narrador. E falava baixinho, como se fosse um segredo só seu.

Fernanda sorriu, o olhar caindo no colo, como se pudesse ouvir a voz de Rod Serling ecoando no fundo da memória.

— Aquilo me acalmava. — murmurou. — Era como um abrigo.

— E quando você adormecia no meio, eu te levava nos braços pra cama. Sempre. Mesmo quando você dizia que dava conta de ir sozinha. — Walter sorriu, nostálgico.

Ela riu, com uma doçura quieta. Apenas olhou para ele por um instante longo. Como quem reconhece, no fundo do outro, um lar antigo, e ainda habitável.

— Você me mimava demais, Salles. — disse, meio nostálgica, meio provocadora. — Quando a gente namorava, bastava eu franzir a testa que você já se prontificava a atravessar a cidade inteira por causa de um pote de café.

Walter ergueu uma sobrancelha com suavidade, os olhos ainda nela.

— Ora, Nanda… — disse com uma ternura funda, quase um sussurro. — O que é que você não pedia chorando… que eu não fazia sorrindo?

Ela segurou o riso. Mas escapou mesmo assim. Porque era verdade. Porque doía um pouco — de tão bom que era.

— Mimada é pouco. — murmurou, brincando. — Eu era quase uma causa humanitária.

Walter riu com doçura, mas a risada veio acompanhada de um certo cansaço nos olhos. Fernanda o observou com mais calma agora. Os olhos percorreram o rosto dele com uma delicadeza nova, como quem lê uma página pela segunda vez e entende melhor.

Ele estava ali, com ela. Mas em algum lugar fundo, inalcançável, também estava o homem que ela amou em 1996 e durante essas tortuosas décadas. Aquele que carregava a juventude nos ombros e o mundo nas mãos. O mesmo que, num outro cenário, numa vida paralela, poderia ter atravessado a estrada inteira com ela, e não só um bairro por um pote de café.

Foi quando a imaginação invadiu. Não com a força de um sonho, mas com a sutileza de uma hipótese.

E se? E se eles tivessem ficado juntos? E se aquele Walter, aquele mesmo, estivesse agora sentado ali fosse marido dela? E se aquela varanda fosse só mais uma manhã entre muitas, depois de tantos aniversários, jantares em um silêncio agradável, brigas por bobagem, filhos?

Ela imaginou os dois atravessando juntos a estrada toda: as curvas, os desníveis, os dias ruins e as cicatrizes no caminho. Imaginou a cumplicidade envelhecendo, o humor resistindo, os corpos mudando de ritmo, mas nunca de frequência. Imaginou o que não foi. E por isso mesmo, doeu.

— Às vezes eu fico pensando... — disse, sem pressa, quase como quem confidencia a si mesma — se a gente carrega as versões não vividas da vida como fantasmas. As palavras que não dissemos, as escolhas que evitamos. As mãos que não seguramos por covardia ou por medo de machucar alguém.

Ela o olhou. E naquele olhar havia uma pergunta que já morava nela havia anos, mas que só agora se dignava a sair pela boca.

— Você se arrepende? — perguntou enfim, sem desviar os olhos. — Não do que viveu. Mas... do que não viveu?

Walter demorou um instante para responder. Não porque não soubesse, mas porque sabia demais. Porque a resposta estava tão pronta que doía na garganta. Apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçou os dedos diante do rosto e a encarou com ternura sombria.

— Eu me arrependo, sim.

Fernanda sustentou o olhar, sem piscar.

Ele continuou. A voz baixa, mas firme. Como se cada sílaba fosse pronunciada com o peso de todos os anos que haviam se passado entre eles.

— Me arrependo... de não ter feito.

Não era necessário dizer o quê. Ambos sabiam.

O silêncio voltou a se instalar, mas agora era mais denso. Como a névoa de um velho filme europeu. Não havia mal-estar, tampouco arrependimento. Mas havia o peso. E Fernanda o sentiu.

Olhou para a xícara vazia entre as mãos e pensou, com aquele tipo de dor mansa que a vida adulta ensina a suportar, que talvez tivesse ido longe demais. Justo ali. Justo naquela manhã. A manhã deles. A manhã do Oscar. Do cinema brasileiro. A manhã em que tudo devia ter o sabor do agora.

Ela suspirou, sem som.

Desculpa, Walter, pensou, sem dizer.

Ele não respondeu, claro. Continuava à sua frente, como se nada tivesse acontecido. Como se o tempo não tivesse acabado de se contorcer entre os dois.

Mas estava diferente. Os olhos agora estavam mais baixos, presos à caderneta que ele abrira de novo com uma delicadeza quase ritual. Os dedos giravam a caneta com uma cadência que denunciava um tipo de ansiedade contida quase imperceptível, não fosse Fernanda quem o conhecia tanto.

— O que você tanto escreve aí? — perguntou, inclinando o queixo na direção da caderneta.

Walter hesitou por um segundo, depois ergueu os olhos para ela. A voz veio com aquela tentativa típica dele de soar leve, mas Fernanda captou a tensão sob a superfície.

— Estava vendo nossa agenda até o fim da semana. — respondeu, quase distraído, como se fosse uma resposta simples. — Pensando nos prazos, nas entrevistas, nos jantares... e tentando entender onde é que nós iremos conseguir respirar nesse meio.

— “Nós”? — repetiu ela, com doçura.

Olhou para ela — não como quem responde uma pergunta, mas como quem sela um pacto.

— “Nós”. — confirmou ele, o olhar doce e profundo preso no dela.

Walter ainda mantinha os olhos na caderneta, como quem tentava ordenar o mundo por meio de tópicos. Mas havia algo diferente no modo como ele girava a caneta entre os dedos. Era uma inquietação silenciosa, disfarçada de método.

— Amanhã temos a entrevista para a Globo e a conferência no centro cultural de Los Angeles.  Na terça, uma conferência em Westwood. E... — ele folheou uma página, meio distraído, meio tentando preencher um vazio — Na quarta, tem a visita ao Criterion Closet, lembra? Aquela gravação de escolher nossos filmes preferidos.

O tom era neutro. Fernanda assentiu devagar, mas o olhar ficou fixo nele. Nas entrelinhas. Na pressa escondida nas pausas. Ela observou em silêncio, e só então percebeu que Walter não estava só organizando compromissos, ele estava tentando segurá-los. Tentando amarrar o tempo ao papel. Tentando fazer com que os minutos não escorressem pelos dedos como a espuma do café.

Ele anotava pequenos horários, cruzava nomes, desenhava setas. Lia e relia o mesmo trecho, como se confirmasse um itinerário interno, emocional. Mas o que os olhos dele não diziam, os ombros contavam: havia urgência. Havia medo.

Ela sabia.

Sabia que aquela agenda, aquela pressa discreta de planejar tudo, era só mais uma forma de gritar, sem voz: não acaba ainda.

Encostou a xícara sobre o pires com cuidado. Observou por um momento aquele homem que ela conhecia tão bem. O mesmo que se perdia nas palavras para não se perder nos sentimentos.  Ela o viu suspirar profundamente, ainda fingindo que conferia algo na agenda. Mas a verdade era outra. Ele só não queria encará-la agora, não enquanto a garganta carregava um nó que nem ele sabia nomear.

Fernanda esticou a mão por sobre a mesa e pousou os dedos sobre os dele. Com suavidade. Com precisão. Como quem toca o ponto exato de uma ferida antiga, mas sem causar dor.

— Calma. — disse, em voz baixa, como quem sussurra uma senha conhecida. — Eu não vou fugir.

Ele a olhou. E havia ali, no fundo do olhar, um menino velho demais pra chorar, mas ainda humano demais pra fingir que não sente. Fernanda não disse mais nada. Porque não era preciso. Ela sabia que aquele gesto: de organizar cada hora, cada nome, cada sala de hotel, era a forma que ele tinha de conter o fim. De esticar o agora. De prolongar, com a ponta de uma caneta, o que o relógio se apressava em anunciar como passageiro.

Walter apertou de leve os dedos dela. Não com força. Mas com aquele tipo de urgência que só os medos mais antigos conhecem.

— É que… — começou, sem rodeios nem apelo à culpa — da última vez, você foi embora. Só isso. Você se foi.

Não havia julgamento na frase. Só a dor crua do que não foi dito por tempo demais. A voz dele não tremeu. Era contida, racional, mas o desespero estava nos olhos. Não era acusação. Era cicatriz. Era a lembrança do vazio que ficou quando ela partiu.

Fernanda sentiu. No corpo. No fundo da garganta. No lugar onde o amor esbarra na falha e decide, ainda assim, ficar. Ela balançou a cabeça devagar, os olhos ainda presos nos dele. Como quem tenta desfazer, com um gesto calmo, um trauma antigo.

— Você sabe por que eu fui embora, Walter. — disse com doçura, mas firmeza.

Ele fechou os olhos por um instante. Como quem tenta aceitar uma verdade que já conhece, mas que ainda sangra por dentro. Quando falou, a voz vinha com o esforço de quem tenta soar racional, porém falhava. Porque ali não havia teoria, só carne viva.

— Você foi embora por minha culpa. — disse, baixo. — Porque eu deixei.

Fernanda o olhou, surpresa não pelo conteúdo, mas pela coragem.

— Eu devia ter te protegido. — continuou, a voz mais firme agora, mas ainda rouca de emoção. — Daquilo tudo. Eu deixei que te desgastassem. Eu deixei que te tirassem de mim.

Fez uma pausa, os olhos fixos nos dela.

— E você teve que escolher entre se perder ou me deixar. E escolheu certo.

Ela não disse nada. Não havia réplica para aquilo. Só o silêncio respeitoso de quem entende o peso da redenção. Walter respirou fundo. Depois baixou o olhar por um segundo, como quem se despe.

— Me perdoa. — disse, por fim. — Por ter deixado você ir embora sozinha... quando o certo era ter ido com você. Ou, no mínimo, impedir que fosse... talvez tudo tivesse sido diferente.

A frase caiu entre eles com o peso exato do que nunca fora dito.

Fernanda apertou levemente a mão dele, e só isso bastou para ele entender que o perdão já existia. Há tempos. Que o amor deles era antigo o suficiente para perdoar até o que nunca foi pedido.

— Você não precisa pedir perdão. — disse por fim.

Ela tirou a mão da dele com suavidade e encostou no peito, como quem procura uma lembrança que mora mais no corpo do que na mente.

— Mas eu entendo o que você sente. Porque... por muito tempo, eu também senti.

Permaneceu em silêncio por mais um instante. O toque dos dedos entrelaçados, ainda firme, servia como ponte entre o que tinham vivido e o que ainda não sabiam viver. Quando ela falou, a voz era serena, mas carregada de consciência. Daquelas que nascem não de um impulso, mas da caminhada lenta de quem passou anos elaborando.

— Eu também me perguntei onde é que eu devia estar, o que é que eu devia ter dito, feito, enfrentado. — ela prosseguiu, a voz um pouco mais baixa, mas firme. — Passei anos reconstruindo a linha do tempo na cabeça, como se pudesse reescrevê-la no quadro branco da minha memória. Como se pensar mil vezes fosse mudar o passado.

Walter ergueu os olhos, atentos a fala dela.

— A verdade é que, se a gente for parar pra analisar cada “e se?”... — começou, sem olhar diretamente para ele, como quem fala mais consigo mesma — cada escolha, cada porta não aberta, cada gesto que a gente deixou pra depois... a gente não vive. Você fica preso num loop eterno.

Walter a observava com atenção devota.

— Por muito tempo, eu me perguntei isso. “E se tivesse sido diferente?” — continuou ela. — “E se eu tivesse ficado?” “E se você tivesse vindo comigo?” “E se os inúmeros planos que fizemos?” Eu fiz esse exercício exaustivamente, Walter. E juro que, durante anos, foi quase um vício. Um enredo alternativo que rodava em looping na minha cabeça. Um lugar que existia só no imaginário.

Ela suspirou. O olhar agora voltado para a xícara vazia. Como se o fundo dela escondesse as respostas que o tempo não deu.

— Mas a verdade é que aquele tempo… foi o que foi. A gente fez o que pôde com o que tinha. E talvez... — agora os olhos voltaram para ele, firmes, mas doces — talvez se tivesse sido diferente, a gente não estaria aqui agora.

Fernanda desviou os olhos para a cidade ao fundo. Los Angeles brilhava em tons difusos sob o céu claro, como uma miragem real demais para ser confiável.

— Talvez... — disse, com os olhos semicerrados, como quem testa um pensamento — talvez tenha sido pra melhor. Talvez pra pior. Nós nunca iremos saber.

Franziu levemente o cenho, incomodada com a própria suposição.

— Às vezes me assusto com essa hipótese. A de que, se a gente tivesse ficado junto, lá atrás... talvez tivesse sido um desastre. Que a gente teria se ferido. Rachado.

Ele a olhava como quem grava. Como quem testemunha algo íntimo e se compromete, silenciosamente, a cuidar.

— A vida é o que é, Walter. — ela disse, com um meio sorriso triste. — E se esse foi o caminho que a gente teve, então... eu aceito. Não com resignação. Mas com reverência. Como quem entende que não se controla o mar, só se aprende a remar.

Houve um silêncio profundo. Quase cerimonial.

Então Walter, com aquela ironia delicada que guardava só para os momentos mais íntimos, perguntou:

— Romantizando tragédias, Fernanda?

Ela sorriu com os lábios, mas os olhos carregavam uma sombra antiga.

— Essa sua pergunta... essa maldita pergunta que me persegue desde 1996. — respondeu, voltando a encará-lo. — Desde aquele dia no Globe Theatre. Você me olhou daquele jeito, aquele jeito que me vê por dentro, e me perguntou isso.

Ele assentiu, lembrando. A memória era viva. O peso dela, também.

— Passei muito tempo me perguntando se era isso mesmo. Se eu era amiga do sofrer. Se eu me alimentava do drama porque era o que me cabia.

Ela fez uma pausa. A brisa da manhã bateu suave no rosto dela, mas não desviou o foco.

— Mas agora eu sei. — disse, com firmeza mansa. — Talvez, eu seja amiga da tragédia. Mas entendi que tem coisas que não foram feitas pra caber na ossada da gente. Tem planos que simplesmente não pertencem à nossa estrutura. E então, se não cabem, mas se você tem o privilégio de vivê-los... — respirou fundo — você deve deixar acontecer.

Walter fechou os olhos por um instante, como se cada palavra dela o atravessasse com precisão. Era essa a Fernanda que ele sempre amou. A que sangrava com consciência. A que entendia a vida como uma travessia e não como um enredo a ser vencido.

— Por muito tempo... — começou, a voz baixa, quase um segredo — eu me vi caminhando por mundos que não existiam. Imaginando rotas, versões da gente. Você e eu vivendo juntos em alguma casa ampla e confortável, talvez em Paraty, talvez na Patagônia ou em algum bairro antigo de Lisboa. Eu montava a cena inteira. Os móveis, as manhãs, os toques. Tudo.

Fez uma pausa, engoliu em seco.

— E por um tempo… era até bom. Quase um alívio. Como se eu tivesse conseguido guardar a gente em algum lugar seguro da minha mente. Mas... — suspirou — sempre chegava a hora de voltar.

Agora os olhos pousaram nele.

— E toda vez que eu voltava... você não estava comigo. Ficava aquele vazio no peito, aquele buraco no estômago. A ausência do que nunca existiu.

Ela abaixou os olhos, como quem procura uma conclusão dentro de si.

— Doía. Muito.

Walter a escutava com os dedos ainda entrelaçados nos dela. Sem interromper. Sem querer apressar nada.

— Então eu precisei... — ela recomeçou, agora com mais firmeza, mas sem perder a ternura — precisei aprender a ser grata.

A palavra flutuou no ar como um sussurro raro.

— Fui grata à vida, ao tempo, a qualquer força que tenha permitido que nossos caminhos se cruzassem. Mesmo que por pouco. Mesmo que não como eu queria.

Ela sorriu, um sorriso triste, mas bonito.

— Eu queria que tivesse sido mais. Que tivesse durado. Que tivesse dado certo. Mas... nem tudo é como a gente quer.

Walter baixou o olhar. Não por vergonha, mas por peso. Por verdade.

— Então — continuou ela — pra fazer as pazes com a Fernanda que eu fui, eu precisei parar de criar novos caminhos imaginários. E comecei a colocar você num outro lugar.

— Num lugar de gratidão.

Pausa.

— Eu te coloquei no pedestal da gratidão, Walter.

O nome dito assim, sem armadura, sem verniz. Apenas ele.

— Porque foi isso que me fez conseguir olhar pro passado com reverência.

Mais um silêncio. Daqueles que assentam.

— Ainda dói não ter você comigo... — confessou, sem vacilar. — Mas hoje, quando eu penso na gente, eu penso com outro tipo de dor. Uma dor que não acusa. Que não fere. Uma dor que entende.

Fez uma pausa breve. Os olhos baixos, como se buscasse dentro de si a tradução exata daquela memória que ainda queimava, mas já não sangrava.

— O tempo... — disse, então, com a voz baixa, como quem partilha um segredo com o próprio destino — O tempo não apaga as feridas, ele ensina a conviver com elas.

Walter piscou lentamente. A frase ficou suspensa no ar, densa e exata.

— Dostoiévski? — perguntou, num sussurro admirado.

Fernanda assentiu, com um pequeno sorriso que misturava melancolia e afeto.

Noites Brancas. — respondeu.

Walter escutava com os olhos. Com o corpo inteiro. E havia nele uma espécie de reverência muda, como quem assiste a uma cena sagrada e se reconhece nela.

— E hoje, mais uma vez... — continuou ela, a voz delicada, mas convicta — eu te coloco no pedestal da gratidão. Porque se não fosse por você, Walter… eu não estaria aqui. Não aqui, neste hotel, neste momento. Mas aqui, viva de verdade. Inteira. Você me salvou.

Ele piscou devagar, como quem precisa conter algo que sobe. E então balançou a cabeça. Com ternura, mas também com um certo espanto ferido.

— Não. — disse, com firmeza suave. — Não, Nanda.

Ela o olhou, surpresa com a interrupção, mas sem resistência.

— Você tá invertendo tudo. — ele disse, agora com mais calma, com mais verdade. — Se a gente está aqui hoje, se eu estou aqui hoje… é por sua causa. Você me puxou de volta pra mim mesmo. Foi você que me lembrou o que era ver o mundo com olhos limpos. Que me devolveu o desejo de filmar o que pulsa, e não só o que existe. Você foi o que me feriu e o que me curou. Se alguém tem que colocar alguém no pedestal da gratidão, sou eu. Sou eu, Fernanda.

O nome dito assim, com inteireza, como se fosse uma prece pronunciada na última fileira de um templo.

— Porque você me fez ser quem eu sou. E eu não sei que outro homem teria nascido… se não tivesse sido amado por você.

Fernanda não respondeu. Mas os olhos encheram. Não de dor, mas de reconhecimento. Ela apenas estendeu a mão novamente, como quem sela uma aliança antiga. E ele a segurou. Com as duas mãos agora. Como quem segura a coisa mais frágil e mais valiosa do mundo.

Por um momento, nenhum dos dois ousou quebrar aquele fio invisível.
Era raro demais.
Fino demais.
Forte demais.

Walter então baixou os olhos, apenas por um instante, como se aquilo fosse grande demais pra ser olhado de frente. E murmurou, mais pra dentro que pra ela:

— Obrigado por ter voltado.

— Eu nunca fui embora de verdade.  – disse, e deixou que a frase pairasse por um momento. Lembra do pacto que eu fiz com você?

Walter a olhou. Havia algo nos olhos dele que se acendeu com aquela palavra.

— Na época, eu achei romântico. Trágico, mas romântico. A ideia de que bastava comer o fruto pra ficar presa a você pra sempre.

Ela desviou o olhar por um instante, como quem volta no tempo com o corpo inteiro.

— Mas agora... depois de tudo o que a gente viveu — e do que não viveu — eu não sei mais se aquilo foi uma promessa… ou uma maldição. Parece que aquele pacto virou um fantasma que nunca deixou a gente em paz.

Walter ouviu sem desviar os olhos dela. Havia desejo ali, mas também dor. Desejo e dor como gêmeos siameses. Inseparáveis.

— Você comeu a romã. — ele disse, com aquela voz baixa, quente, que só usava quando falava de coisas sagradas ou debaixo da pele. — E eu fiquei preso ao seu ciclo desde então.

A mão dele apertou carinhosamente a dela. E os dedos se entrelaçaram como se reencontrassem o caminho de volta a um corpo conhecido.

— Seis sementes. — ele murmurou, quase como se recitasse uma escritura sagrada. — Seis meses que tive com você na primeira vez. E o resto... o resto eu passei em inverno.

Ela fechou os olhos por um instante, absorvendo a imagem. O inverno dele. A ausência dela. Tudo desenhado com um lirismo que machucava de tão verdadeiro. Walter permaneceu em silêncio. Só os olhos se moviam, fixos nela, como se o corpo inteiro estivesse tentando guardar aquela visão — a mulher que ele amava, ali, diante dele, novamente.

— Agosto de noventa e seis até janeiro de noventa e sete. — continuou ele, a voz agora mais baixa, mais íntima. — Foi o tempo que a gente teve. Seis meses. Foi o que durou do nosso namoro. Ou o que quer que tenha sido aquilo. Porque, pra mim, foi tudo. E depois… veio o inverno.

Walter sorriu, mas era um sorriso melancólico. Um canto de boca triste.

— E agora… — disse, soltando o ar devagar — agora, de novo, seis meses.

— Desde Veneza. — ela sussurrou.

Ele assentiu.

— O filme, a campanha, os festivais, os aviões, os quartos de hotel, os telefonemas que pareciam pequenos, mas mudaram tudo… Seis meses com você. De novo. Um semestre.

Fez uma pausa. O olhar perdido, mas calmo. Como se estivesse revendo, quadro a quadro, cada fração desse tempo.

— Só que, dessa vez… — disse, com a voz mais baixa — foi diferente.

Os olhos foram até ela.

— Porquê dessa vez… foi como se eu tivesse saído de um inverno longo. Muito longo. E enfim, tivesse sentido o verão chegar.

Walter sorriu, mas sem leveza. Era um sorriso rendido, fatigado de tanto conter a falta.

— E esse verão… — completou, num tom quase inaudível — tinha o teu nome. A tua pele. O teu riso. Tua luz.

Os olhos dele estavam marejados. Mas ele não desviou.

— E eu… — a voz falhou por um segundo, mas ele se recompôs — eu não sei se aguento outro inverno, Nanda. Não sei mesmo.

Era uma confissão. Uma ferida aberta, exibida sem vaidade. Sem apelo. Só verdade.

Fernanda sentiu o nó subir à garganta. Porque ela sabia. Ele não dizia por dizer. Walter era o homem mais contido que ela conhecia, e ainda assim, ali estava ele. Inteiro, vulnerável, dizendo que não saberia sobreviver à ausência dela mais uma vez.

Ela apertou a mão dele com firmeza, mas com delicadeza. Como quem segura alguém à beira de um abismo.

— Eu também não sei se aguento, amor... — disse, enfim. A voz de Fernanda saiu baixa, densa, como se carregasse uma mala antiga cheia de silêncios não ditos. — Mas a gente precisa ir com calma, Walter. Um passo de cada vez. Senão a gente tropeça no próprio desejo.

Walter a olhou. E no fundo dos olhos dela havia a dor da dúvida e o presságio da coragem.

— Não é que eu não queira. — continuou, pousando a outra mão sobre a dele. — É que... eu quero tanto, que não posso estragar. Não dessa vez. Não com você.

Fez uma pausa. Respirou fundo. O ar parecia mais leve agora, mas apenas por fora.

— Eu estou resolvendo tudo aqui dentro, sabe? — disse, tocando o peito com a mão livre. — Já entendi o que tem que ser feito. Só preciso... do tempo certo pra fazer do jeito certo.

Havia uma escolha sendo semeada ali. Uma decisão germinando entre os dedos entrelaçados.

Walter não disse nada. Só a observou como quem lê uma oração escrita à mão, com palavras entrecortadas por lágrimas.

Então, devagar, Fernanda se levantou da cadeira. Rodeou a pequena mesa da varanda com passos silenciosos e sentou-se suavemente no colo dele. O gesto era íntimo, antigo. Não tinha pressa nem vergonha. Só verdade. Só eles.

Ele a acolheu com os braços, sem surpresa. Como quem recebia de volta uma parte do corpo que havia se extraviado por anos. Ela se ajeitou ali, com naturalidade, como quem sabia exatamente onde pertencia.

Com os dedos, Fernanda começou a acariciar os cabelos recém-cortados dele. Um carinho quase ritualístico, como se quisesse gravar na memória a textura exata daquele momento. Walter, em resposta, levou a mão ao rosto dela e afastou uma mecha solta que caía sobre seus olhos. Colocou-a atrás da orelha com a mesma delicadeza com que se sela uma carta antes de enviá-la.

Ela continuou o carinho com a ponta dos dedos, traçando o contorno das entradas, sentindo o couro cabeludo sob as pontas como se cada fio contasse uma história. O silêncio que pairava era de ternura, não de ausência. O mundo inteiro parecia respirar mais devagar naquele instante.

— Você tá empolgado? — ela perguntou, em voz baixa, quase preguiçosa, os olhos ainda nos dele. — Vai ganhar seu primeiro Oscar hoje à noite.

Walter sorriu com o canto da boca. Aquele sorriso que ela conhecia bem: o de quem se esquiva da glória com humildade genuína.

— Essa noite é mais sua do que minha. — disse, num tom que mesclava afeto e convicção. — Você que elevou esse filme, Nanda. Você que deu o tom. A carne. A alma.

Ela revirou os olhos, mas o gesto vinha carregado de carinho. De desafio afetuoso.

— Lá vem você com esse negócio de me botar no pódio. — disse, mordendo de leve a parte interna da bochecha. — A noite é sua, Walter. Você sabe disso. Você vai ganhar.

Ele balançou a cabeça, quase como quem cede diante de uma força maior, e talvez fosse. Talvez fosse impossível discutir com ela quando ela falava assim, com essa voz de quem te conhecia antes mesmo do mundo saber teu nome.

Então, com os olhos presos nos dela, Walter murmurou, com firmeza amorosa:

— Nossa noite.

Fernanda o encarou. Por um momento, não disse nada. Só respirou fundo, sentindo o peso e a leveza daquela frase. “Nossa”. A palavra parecia ecoar no peito dela como um sino pequeno, mas preciso. Ela assentiu, devagar. Como quem reconhece a verdade dita em silêncio há anos.

E então o beijou.

Sem urgência, mas com fome. Um beijo que parecia querer parar o tempo — ou pelo menos negociá-lo com delicadeza. Fernanda inclinou um pouco mais o corpo, encaixando-se melhor no colo dele, enquanto os dedos de Walter deslizavam pela curva da cintura dela com uma reverência íntima, como quem mapeia um território já conhecido, mas sempre sagrado.

Ela sorriu contra a boca dele, ainda entreaberta.

— Você me beija como se ainda quisesse me convencer de alguma coisa. — sussurrou, com a respiração quente entre uma frase e outra.

— E não quero? — retrucou ele, com a voz rouca, os olhos já baixos, focados nos lábios dela.

O sorriso de Fernanda vacilou por um instante. Doçura e dor, juntas, dançando no mesmo compasso.

— Eu queria ficar... — ela começou, os dedos agora brincando com a gola da camiseta dele. — Mas preciso ir. Já fiquei tempo demais fora da minha suíte.

Walter segurou o olhar dela como se aquilo fosse suficiente pra detê-la. Não era. E ele sabia.

— Só mais um pouquinho. — pediu, baixinho, quase menino. Mas o pedido não tinha manipulação. Só pesar.

Ela passou a mão pelo rosto dele com carinho. Depois pelo cabelo, outra vez. Um gesto que encerrava, não por falta de desejo, mas por excesso de consciência.

— Eu tenho que ir, Walter. — disse com ternura firme. — A gente se vê logo.

Ele assentiu, calado. Os olhos ainda nela. Como se cada segundo de afastamento já doesse de antemão.

Fernanda se levantou devagar, ajeitando o casaco por cima do robe de forma distraída. Walter a acompanhou até a porta da suíte. O corredor do hotel estava silencioso, e por um momento, parecia que o mundo lá fora ainda não sabia do que estava prestes a acontecer naquela noite.

Ela se virou no batente da porta, os dedos já na maçaneta, e o olhar ainda preso nele — meio provocador, meio terno.

— Às 19h, então? — disse, com um sorriso enviesado. — Estarei vestida de Chanel. Preta. Minimalista. Disfarçando bem o caos interno. Mas você vai me reconhecer... pelo olhar atravessado de atriz brasileira em noite de gala.

Walter sorriu devagar, com aquele brilho nos olhos que só aparecia quando ela falava desse jeito: quando caminhava entre a ironia e a poesia.

— Eu reconheceria você até vendada numa multidão. — murmurou, com suavidade. — Mas sim, vou procurar pela mulher mais bonita do Dolby Theatre.

Ela deu um meio sorriso, entre provocada e tocada. Abaixou o rosto, selou um beijo breve nos lábios dele e sussurrou:

— A gente se vê por aí, Salles.

E, então, ela se foi.

Walter permaneceu na porta por um tempo que nem soube medir. Até o som dos passos dela sumir no corredor. E pela primeira vez naquela manhã, ele sentiu o tempo realmente passar.

 


 

O vapor tomava conta do banheiro como uma névoa íntima. No boxe, Fernanda mantinha os olhos fechados sob a água quente. A pele já levemente avermelhada, mas ela não se importava. A água escorria pelas costas, mas não levava o que mais importava. Porque o que grudava nela não era suor, nem perfume de lençol. Era a lembrança.

O terraço do Chateau.

O beijo que tinha acontecido.

As confissões de ambos na penumbra densa e quente da suíte.

A voz rouca e trôpega dele sussurrando:

 

“Me deixe pertencer a você.”

Aquela frase voltava como um sopro úmido atrás da orelha. Era como se o tempo tivesse parado quando ela ouviu a confissão dele. O mundo inteiro desacelerando ao redor deles – menos o coração dela.

Ela abriu os olhos, mas não viu o presente. Viu o corpo dele colado ao dela na penumbra. Os dedos nos seus quadris. O sussurro que misturava desejo e urgência. O sexo da noite passada voltava em fragmentos: o calor, a delicadeza, a brutal verdade de se entregar por inteiro. Não era só o corpo. Era o tempo. Era o passado exigindo um lugar no agora.

E depois...

“Eu não sei se aguento outro inverno sem você, Nanda.”

O coração dela se contraía toda vez que aquela frase surgia.

Não era dramatização. Era verdade.

E doía justamente por isso.

Passou a mão pelo rosto, tentando afastar o embaço do espelho da mente. Mas tudo estava nublado. Porque o que ela sentia por Walter não era novo, era anterior até a consciência do sentir. E, ao mesmo tempo, não era mais o mesmo amor de antes. Tinha mudado de forma, ganhado rugas, medos, maturidade. Mas ainda era ele.

O problema era o outro lado. A outra vida. O casamento. A consolidação de tudo que construíra com Andrucha. Os filhos. O companheirismo. A rotina que, embora sem sobressaltos, também não oferecia mais surpresas.

Era seguro. Era digno. Era leal.

Mas era... a mesma mesmice. E ela sabia.

Sabia porque sentia o contraste. Porque Walter devolvia a ela uma parte que tinha se calado sem que ela percebesse. Uma Fernanda que ria de um jeito específico, que mordia o lábio do lado esquerdo quando estava tentando esconder a emoção. Uma Fernanda que tinha deixado de existir no cotidiano e que voltava inteira nos braços dele.

— Por que não pode ser mais fácil? — murmurou, a voz baixa, dissolvida no vapor.

Fechou os olhos com força, como quem tenta se proteger da própria consciência. Mas a mente era uma traidora habilidosa. E logo ela pensava no colo onde sempre encontrou abrigo: o da mãe.

Dona Fernanda.

Se estivesse ali, teria um comentário certeiro, uma ironia afetuosa, uma sentença que, de tão simples, doeria de lucidez.

— O que você faria no meu lugar, minha mãe? — sussurrou, como quem lança uma prece.

Desligou o chuveiro. A água cessou, mas o caos dentro dela continuava: latente, morno, denso. Enrolou-se na toalha. O corpo ainda febril. A mente ainda em combustão. E então, como se obedecesse ao roteiro do destino, ouviu a maçaneta girar.

Era Andrucha.

— Nanda? – a voz dele ecoou pelo quarto buscando encontrá-la.

— No banheiro.

Com o rosto cansado de quem veio de longe, mas com aquele afeto silencioso de sempre. A presença dele era um lembrete: da família, da vida que tinham juntos, das escolhas que sustentavam décadas. Fernanda parou, ainda com os pés molhados sobre o piso de madeira, os cabelos pingando, o corpo coberto apenas pela toalha e a mente tomada por um nome que não era o do homem à sua frente. 

Sorriu, leve. Mas só por fora.

— Oi. — disse ela, com um sorriso contido, cruzando a soleira do banheiro.

— Oi. — respondeu ele, com o mesmo tom morno e familiar de sempre.

Ela apertou levemente a toalha contra o corpo, os cabelos ainda úmidos caindo pelos ombros, e se apoiou na moldura da porta.

— Como foi o voo?

— Longo. — ele suspirou, passando a mão nos cabelos desgrenhados. — Ainda tentando entender em que fuso eu existo. Mas consegui chegar a tempo, olha só.

Fernanda sorriu. Não aquele sorriso protocolar, mas o genuíno, cheio de alívio silencioso por vê-lo ali. Ainda que do lado errado do conflito.

— E os meus filhotes? — perguntou, com uma pontinha de doçura na voz.

A pergunta amoleceu o rosto dele. Andrucha tinha esse riso largo de pai satisfeito.

— Torcendo por você. — disse, abrindo os braços como se encarnasse os dois filhos ao mesmo tempo. — E com muita saudade da mãe leoa deles. Mal podem esperar pra te abraçar de verdade quando voltar.

Fernanda sorriu, e o sorriso veio nos olhos antes de chegar à boca.

— Meus meninos... só de saber que estão bem, já me dá eixo.

— E é isso que você sempre foi pra eles. — ele completou. — O eixo.

Fernanda se afastou para o closet e, quase sem pensar, pegou o robe leve de linho preto, o mesmo da noite anterior. Vestiu-o devagar, como quem não quer lembrar, mas lembra. E então voltou. Andrucha a observou com ternura enquanto ela ajustava o cinto na cintura.

— Passei na casa da Dona Fernanda ontem. Ela me mandou um recado. — disse, se aproximando.

— É mesmo?

— Disse pra te dar um abraço bem apertado... desses que só ela sabe dar. Com cheiro de casa, sabe?

Fernanda riu, agora sem contenção. A menção à mãe a desarmava sempre.

— Então vem cá. — disse, abrindo os braços e encostando a cabeça no ombro dele. — Cumpre tua missão.

Andrucha a envolveu. Forte. Fernanda relaxou no abraço, os pés quase descalços buscando apoio no chão do quarto.

Mas então ele aspirou sutilmente. Quase imperceptível. O tipo de gesto que ninguém nota,  exceto quem sabe. Um perfume diferente. Amadeirado. Fresco. Limpo. Estranho. Não era o perfume habitual de Fernanda, aquele toque floral seco e denso que ele conhecia há décadas. Esse tinha outra assinatura. Mais robusta. Mais masculina. Não era uma fragrância estranha.

— Você... mudou de perfume? — perguntou com leveza, como quem comenta uma mudança sutil na decoração de casa. Sem pressão, sem tensão. Só uma curiosidade lançada no ar.

Fernanda levou um segundo a mais do que o necessário para responder. A pausa curta, quase imperceptível, mas real. Depois, soltou o clássico:

— Não. É o mesmo de sempre. – respondeu com aquele tom neutro, clássico, preciso.

Ele assentiu, com aquele sorriso contido de quem capta sinais, mas prefere não interpretá-los de imediato. Não ali. Não ainda. Então, numa tentativa rápida de dissolver o clima, ela ajeitou a toalha do cabelo e caminhou até a penteadeira.

— Você já almoçou? — perguntou, sem virar.

— Não. Vim direto do aeroporto pra cá.

Ela se virou, um sorriso breve nos lábios, prático, cuidadoso.

— Ótimo. Pedi almoço pra nós dois.

Ele sorriu de volta, com o alívio silencioso de quem sabe que ainda há espaço para os gestos pequenos, mesmo quando o abismo cresce entre os grandes. Se sentou na poltrona perto da janela, e por um instante, o quarto ficou tomado por uma calmaria tênue.

Como se os dois, em silêncio, estivessem tentando manter de pé aquilo que o tempo vinha empurrando para o limite. Ainda havia ternura. Ainda havia cuidado. Mas havia também, e sobretudo, um silêncio que começava a dizer mais do que qualquer fala.

 

A bandeja foi colocada sobre a mesa redonda perto da varanda, com duas taças de vinho branco, salmão grelhado, legumes no vapor, pão fresco. Tudo simples, mas cuidado. Fernanda sempre gostou de refeições sem exageros, mesmo nos dias grandes.

Sentaram-se um de frente pro outro, como tantas vezes antes. Mas dessa vez, o silêncio entre eles não era confortável. Era denso. Não hostil, não amargo. Só... cheio demais.

Andrucha tentou puxar conversa, mencionou os meninos, comentou sobre a homenagem que toda a equipe receberia quando voltassem para o Brasil, até trouxe uma piada leve do voo. Fernanda sorriu, respondeu com a delicadeza habitual, mas havia pausas longas entre uma frase e outra. O garfo repousava muito tempo entre os dedos. Os olhos, por vezes, iam até a janela, como se procurassem algo do lado de fora.

Foi ele quem, por fim, parou de comer primeiro. Ficou alguns segundos só olhando para ela.

— Nanda?

Ela o encarou de volta, captando o olhar fixo.

— Que foi?

— Tá tudo bem?

Ela franziu levemente o cenho, não em irritação, mas em surpresa. Como se não esperasse ser notada naquela distração.

— Por quê?

— Sei lá... — ele deu de ombros, com suavidade, sem acusar. — Você tá distante. Desde que cheguei. A gente tá junto aqui, mas parece que você tá longe. Em outro lugar.

Fernanda sustentou o olhar por um segundo a mais do que o habitual. E então respirou fundo, com calma.

— Eu tô cansada. — disse, com uma franqueza desarmada. — Angustiada. Sobrecarregada. A campanha, esse momento todo... tudo ao mesmo tempo.

Ele assentiu. Compreensivo. Mas não convencido.

— Só isso?

Ela apoiou os cotovelos na mesa e entrelaçou os dedos, sem desviar os olhos.

— Se tiver algo... — disse, com sinceridade que parecia vir de um lugar antigo — eu te falo.

Houve uma pausa. Andrucha olhou pra ela como quem ainda procurava algum sinal. Mas então cedeu, da forma como quem ama há muito tempo sabe ceder.

— Tá bom. — disse apenas. E voltou a comer, sem pressionar mais.

Fernanda olhou pra ele em silêncio. Sentiu uma pontada estranha no peito, não era de culpa, mas de luto. Luto de algo que ainda existia, mas já não vibrava do mesmo jeito. O casamento deles era feito de muitas camadas. Ainda havia carinho, respeito, parceria. Mas o brilho... o brilho havia ficado em outro lugar. E ela sabia onde.

 


 

O carro parou diante da casa em silêncio.

Walter permaneceu dentro dele por alguns minutos, com as mãos no volante e os olhos fixos no nada, ou em tudo. Aquela era a casa que escolheram juntos, anos atrás, quando o futuro ainda parecia um território fértil. Ampla, elegante, serena, com suas paredes claras e janelas largas que deixavam o sol entrar como um hóspede desejado. Mas agora, mesmo banhada de luz, tinha algo de penumbra. De ressonância.

Ele respirou fundo. Passou a mão pelo rosto, como se pudesse afastar o peso com um gesto simples.

Pensou em Maria.

No início, havia uma admiração mútua. Ela o amava com aquela intensidade dos vinte e poucos anos: que se joga, que acredita, que constrói. Ele a amava também, à sua maneira: com gentileza, com zelo, com uma ternura que talvez não tivesse sido suficiente para durar uma vida inteira. Depois vieram os filhos, os filmes, os países, os voos, os silêncios.

E então, o distanciamento.

Discreto. Quase imperceptível. Como um vinco que vai se formando na dobra de um lençol bem passado. Primeiro, as conversas mais curtas. Depois, os jantares em silêncio. As viagens separadas. As decisões tomadas sem consulta. Até que o afeto virou hábito. E o hábito, um território neutro onde ambos transitavam apenas para manter de pé o que ainda restava: a família.

Eles tentaram. De verdade. Pelo bem dos filhos, pelas memórias boas, pela ideia de que poderiam reinventar o amor. Mas houve brigas. Discussões cansadas que giravam em torno dos mesmos temas. Falas atravessadas. Feridas abertas com palavras pequenas demais para justificar tamanha dor. E então veio a decisão. Serena. Madura. Triste.

Separar. Não por raiva, mas por decisão mútua.

Walter encarou a casa. Havia algo dela que ainda o prendia: o cheiro dos filhos correndo pelos corredores, as noites em que dormiram de conchinha em silêncio, os natais em que ela ria alto com as piadas dele. Mas aquele tempo já não era agora. E ele sabia.

Precisava entrar. Ainda era o pai. Ainda era o homem que assinaria papéis. Que compareceria à cerimônia. Que, talvez, ganhasse um Oscar naquela noite.

Desligou o carro. Pegou a pasta onde guardava o envelope com anotações para o discurso, uma carta não escrita para o caso de vencer. Atravessou o jardim com passos cautelosos. Quase como quem entra em um campo minado onde sabe onde pisa, mas teme os efeitos do passado.

A casa estava em silêncio. Vazia. Nenhum barulho de passos, vozes ou risos. Apenas o som abafado do próprio coração batendo contra o peito.

Passou pela sala, deixando as chaves sobre a mesa de vidro. E então seguiu para o escritório, o lugar onde sempre voltava quando precisava se concentrar. Ali, o mundo externo não entrava. Era onde escrevia, editava, decidia. Onde tudo ainda fazia algum sentido.

Walter sentou-se na cadeira giratória, respirou fundo, e abriu o laptop. O som do sistema iniciando pareceu alto demais para o silêncio da casa. Digitou a senha com lentidão, sem pressa de encarar as palavras que teria que organizar.

O cursor parecia estático na tela. Ele já havia digitado duas frases, mas nada ainda parecia digno da noite que se aproximava. Tentava nomear o que precisava dizer caso vencesse. Palavras de agradecimento. De reconhecimento. De resistência e coragem contra as opressões históricas, mas tudo soava distante demais daquilo que realmente o atravessava.

Foi então que ouviu os passos. Suaves, ritmados. Reconheceu de imediato.

A batida na porta foi discreta.

— Posso? — a voz de Maria surgiu do outro lado, educada, quase tímida.

— Claro. — respondeu, com aquele calor contido que só se usa com quem já dividiu uma vida.

Ela entrou devagar. Vestia uma roupa leve, o cabelo preso num coque despretensioso, o rosto sereno, mas levemente cansado, como quem já viveu todas as discussões que poderia viver. Os olhos se encontraram.

— Oi. — disse ela.

— Oi. — devolveu ele.

O silêncio entre eles não era desconfortável, mas dizia muito. O tipo de silêncio que só existe entre duas pessoas que se conhecem em todas as estações. Walter fechou levemente o laptop e se virou um pouco mais na cadeira.

— Como você está? — perguntou, com gentileza.

— Bem. — respondeu Maria, após uma pausa. — E você?

— Tudo certo. Tentando terminar esse discurso… no caso de ganhar. — ele tentou um sorriso pequeno, que não chegou inteiro aos olhos.

— Vai ganhar. — disse ela, como quem afirmava o óbvio, mas sem entusiasmo protocolar. Era sincero. — É um grande filme.

Walter assentiu com um leve balançar de cabeça. A tensão era tênue, mas real. Estava nos gestos, nas pausas, nos olhos que se desviavam no fim das frases.

— E as crianças? — ele perguntou, tentando resgatar uma naturalidade que já não existia.

— Saíram pra aproveitar a cidade. Foram dar uma volta no Santa Monica Pier. Vão ficar chateados por saber que o pai chegou e eles não estavam aqui para te recepcionar. — comentou Maria, com um meio sorriso terno, sem acusação, apenas constatação.

— Darei um beijo neles hoje à noite. 

Walter ficou um momento olhando para o tampo da mesa, como se procurasse uma forma de continuar a conversa sem ferir o que ainda restava entre eles, o respeito, a lembrança, e um afeto antigo que agora era quase fraterno.

Maria então cruzou os braços, como quem se resguarda sem agressividade. Só com cansaço.

— Bom… era só isso. Queria te dar um alô. — disse.

— Obrigado. — ele respondeu, sincero.

Os olhos se encontraram mais uma vez. Ninguém disse nada. Porque já tinham dito tudo em anos anteriores. Agora só restava o jeito adulto de estar juntos até não estar mais. E isso, de certa forma, também era um tipo de amor.

Ela assentiu, um gesto pequeno, e se virou para sair.

— Maria — ele chamou antes que ela deixasse o cômodo.

Ela parou. Virou-se de novo.

— Obrigado… por tudo.

Ela assentiu de leve. Esboçou um sorriso que não chegava nos olhos, mas era maduro. Reconhecedor.

— Te vejo mais tarde. E a propósito, boa sorte. — disse.

E saiu.

Walter ficou. O silêncio voltou, mas dessa vez, havia uma pequena centelha de paz nele. O cursor ainda piscava. A página ainda esperava. Mas agora, talvez, ele soubesse o que dizer.

 

Digitou o ponto final do discurso e ficou um instante imóvel, com os olhos ainda fixos na tela. O texto estava pronto, mas ele, não. Respirou fundo. O tempo avançava. Faltavam menos de duas horas para a cerimônia. Precisava se aprontar. Vestir o smoking e cumprir o protocolo.

Mas, antes de fechar a pasta, levantou-se devagar.

Caminhou até a parede lateral do escritório, onde um quadro discreto repousava. Retirou-o com cuidado e revelou o pequeno cofre embutido atrás. Digitou a senha com naturalidade. Os dedos sabiam o caminho.

Ali, repousava um envelope amarelo, já meio desbotado nas bordas. Ele o pegou devagar. Havia algo de cerimonial naquele gesto, como quem toca uma memória antes que ela desapareça. Retirou o conteúdo. Duas cédulas. Uma data impressa em negrito e caixa alta, no centro da folha:

23.11.2025

 

Passou o polegar devagar sobre os números, como quem toca um marco cravado no tempo.

Não sorriu. Mas também não franziu o rosto. Apenas ficou ali, por alguns segundos, olhando para aquilo como se tentasse capturar uma lembrança antiga ou prever um futuro que ainda não ousava imaginar.

E então, ele lembrou. Fazia tempo que evitava pensar em março de 1998. No quanto quis atravessar a multidão. No quanto não conseguiu. No quanto se arrependeu por não ter ido até ela, mesmo depois de tê-la visto. Chorando. Sozinha. Ao som de uma melodia que já era deles, mesmo quando não estavam mais juntos.

Guardou o conteúdo de volta no envelope com a delicadeza de quem sabe que há uma chance, talvez a última. Não de consertar o passado. Mas de agir diferente no presente. Juntou o envelope ao discurso recém-impresso, fechou a pasta de couro e trancou novamente o cofre. Ao sair, lançou um último olhar para o cômodo silencioso, onde nada mais se movia.  Desceu as escadas com passos firmes, atravessou o jardim com discrição e seguiu de volta ao Château Marmont.

Era hora de voltar.

 


 

Faltava menos de duas horas.

O vestido preto, brilhoso, preciso como uma armadura disfarçada de elegância já estava exposto sobre a arara da suíte, pronto para ser vestido como quem veste um destino. O tecido reluzia em silêncio sob a luz suave do entardecer que atravessava as janelas do Château Marmont, como se soubesse que, naquela noite, seria mais do que um adorno: seria escudo, seria gesto.

Logo, a equipe de maquiagem e cabelo chegaria. E com eles, o início do ritual. A transformação externa que precisava correr paralela à interna; embora essa última fosse mais difícil de domar. Na mesa ao lado, uma xícara de chá de camomila mal tocada. Na cabeça, um redemoinho.

O Oscar. A multidão. O tapete vermelho, os flashes. A imprensa. Os rumores. O olhar firme de Andrucha mais cedo. O silêncio cheio de ternura de Walter, e sua voz pela manhã mais cedo, ecoando como uma profecia íntima: “Eu não sei se aguento outro inverno sem você.”

Era muita coisa para caber num mesmo corpo.

E ainda assim, ali estava ela. Respirando fundo. Puxando o ar como quem prepara não só os pulmões, mas o espírito. Sabia o que vinha. Sabia o que significava estar ali. Era a noite do cinema brasileiro. A noite em que tudo se iluminava por fora, enquanto por dentro ainda se buscava chão. Encostou as mãos nos joelhos, firmou os dedos. E pensou: Vai passar. É só mais uma travessia.

Do outro lado da suíte, ouviu o som do zíper correndo pelo tecido. Andrucha ajeitava os punhos da camisa diante do espelho. Vestia-se com calma, como fazia tudo na vida e talvez por isso ela tenha levado tanto tempo para perceber que algo dentro dela havia começado a se mover diferente.

— Como vai ser a logística pra hoje à noite? — perguntou, sem tirar os olhos da gravata que tentava alinhar com perfeição. — Todos sairemos juntos?

Fernanda piscou, como se despertasse de dentro de si. E então lembrou da conversa pela manhã de Walter ao telefone. O tom calmo, o gesto quase natural com que ele comunicou as divisões.

— Não. — respondeu, levantando-se do sofá. — Eu vou com o Walter. Ele mencionou que sairemos num carro só. Selton e você vão com o resto da equipe, em dois outros.

Andrucha assentiu com um pequeno movimento de cabeça, mas não deixou passar:

— Igual no Golden Globe. — disse, ajustando o colarinho.

Fernanda franziu ligeiramente o cenho.

— Como assim?

Ele virou-se para ela com um sorriso breve. Um sorriso que não carregava ironia, mas talvez cansaço. Uma constatação dita como quem já não espera resposta.

— Vocês foram juntos também. No mesmo carro. Naquela noite.

Ela parou por um segundo. Engoliu a informação como se fosse uma gota de algo amargo. Mas tentou suavizar com um meio sorriso, lançando uma frase que soou mais como defesa do que brincadeira:

— Querendo ou não, todos os holofotes estão voltados pra gente. Precisamos ser os primeiros a chegar.

Andrucha respondeu sem hesitar, com um tom dúbio:

— Ah, sim. A dupla dinâmica.

Ela entendeu.

A frase pousou no ar como o prenúncio de algo que ela sabia que estava por vir. Não houve briga, nem tom elevado. Mas havia algo ali. Um aceno ao passado, ao presente. Àquilo que não precisava ser dito porque já era nítido.

Fernanda apertou os lábios. E respondeu, como quem queria retomar o controle da narrativa, ainda que só por orgulho:

— Sim. Desde 1995.

Não disse mais nada. Não precisava. Ele entendeu também.

E então, como se o universo tivesse ouvido a súplica muda que pairava entre os dois, uma batida na porta do quarto. Era a equipe de maquiagem, cabelo, produção. O ritual de transformação começava. Ela agradeceu em silêncio. Não sabia se agradecia à equipe, ao acaso ou ao atraso emocional que sustentava aquele casamento, mas era uma saída.

Uma trégua momentânea.

 


 

O relógio marcava pouco menos de quarenta minutos para a partida rumo ao Dolby.

Walter estava diante do espelho há alguns segundos longos demais. O terno sob medida, de corte clássico e tecido impecável, caía como se tivesse sido desenhado para aquela noite. Ajustou a gravata com calma. O nó já estava feito, mas ele puxou com delicadeza milimétrica, buscando um alinhamento impossível.

Pegou o Acqua di Parma sobre a bancada. Espalhou no pescoço, punhos, por baixo da gola. Respirou fundo. A ansiedade batia à porta, mas ele a recebia com compostura. Um último olhar para o envelope com o discurso, que repousava ao lado da pasta de couro. Pegou os dois com uma precisão que parecia ritual. Estava pronto.

Ao sair da suíte, o burburinho no salão principal já ganhava volume. Produtores, maquiadores, fotógrafos e convidados da equipe do filme começavam a se reunir para o trajeto até o Dolby Theatre. Faltavam cerca de quarenta minutos. Cumprimentou todos com a polidez de sempre: sorrisos contidos, toques breves no ombro, palavras gentis.

Viu Andrucha perto do bar, já trajado com um smoking escuro e a expressão sempre calma. Walter se aproximou.

— Andrucha. — disse, com um aceno leve, estendendo a mão.

— Walter. — respondeu o outro, apertando a mão com firmeza. Foi um cumprimento caloroso, mas contido. Como duas figuras centrais de uma história cujo próximo ato estava por ser escrito. Um pacto de civilidade entre duas consciências adultas, silenciosamente cientes do que se passava por baixo da superfície.

Fernanda, no entanto, não estava à vista.

Walter lançou um olhar rápido ao redor. E, como quem segue um instinto antigo, saiu discretamente em direção ao corredor que levava às suítes. No meio do caminho, o inconfundível vozeirão de Selton o interceptou.

— O homem da noite! — bradou, abrindo os braços num gesto teatral e escancarando o sorriso largo. — Impecável como sempre, Sr. Salles. Tá um espetáculo. Um verdadeiro gentleman.

Walter riu com uma timidez que lhe era típica diante de elogios calorosos. Mas o abraço entre os dois foi firme, de quem compartilhava mais do que bastidores; compartilhava história, afeto, estrada.

— Obrigado. Você tá incrível também, amigo. — murmurou, ajustando os óculos com um gesto contido. — Daqui a pouco o carro chega. — avisou Walter, com o olhar brevemente voltado para o relógio no pulso.

Selton o observou por um instante. Não era só pontualidade, era zelo. Aquela forma de cuidado com o todo, típica de Walter. 

— Fica tranquilo. — respondeu com aquele tom arrastado, carioca e sábio. — Vai dar tudo certo.

Walter assentiu com um sorriso breve, mas não escondia a inquietação no fundo dos olhos. Selton então, em um gesto típico dele de querer quebrar a tensão e ler o amigo nas entrelinhas, perguntou com leveza:

— Aliás, onde é que você se enfiou ontem depois do karaokê?

Walter o olhou, surpreso por um instante, e depois riu, baixando a cabeça.

— Sumiu bonito, hein?! — Selton completou, divertido. — Quando fui ver, nem você nem a Nanda estavam mais no salão.

O riso de Walter se manteve, contido, mas com um brilho de quem foi pego, e nem se importava.

Selton arqueou uma sobrancelha e cruzou os braços.

— Hum… — disse, como quem já tinha a resposta. — Pela sua cara, vou chutar que vocês conseguiram se resolver.

Walter não confirmou. Mas também não negou. O silêncio dele dizia mais do que qualquer frase poderia expressar.

— De certa forma, nós nos resolvemos sim.

— Que bom. Fico aliviado... — comentou, mais baixo agora, quase como quem fala consigo mesmo. — Vocês dois sempre foram a cena mais bonita desse filme todo. Foi incrível participar e ser uma parte da coluna vertebral desse projeto, Walter.  Além disso, foi incrível ser espectador da jornada de vocês dois.

Walter apenas olhou, agradeceu tocando singelamente no ombro do amigo. Era isso: estavam no ato final de um enredo que nunca saiu de cartaz. E os mais atentos, como Selton, sabiam reconhecer quando o amor voltava pro plano principal.

— A propósito, você está indo encontrá-la, certo? —  perguntou Selton, sem rodeios, mas com carinho na voz.

Apenas assentiu, com aquele meio sorriso contido que Selton já conhecia tão bem.

— Ela já deve estar pronta… — completou Selton, olhando para o corredor como se pudesse vê-la através das paredes. – Se eu fosse você, eu prepararia meu coração. Você sabe que ela é tipo uma força da natureza.

Walter sorriu, com um misto de devoção e vertigem.

— Sim. Ela é. — murmurou, quase sem perceber que havia dito em voz alta.

Selton assentiu com um sorriso

— Vai lá. — disse, batendo de leve no ombro do amigo. — Antes que a estrela mais brilhante da noite desapareça de novo do seu plano. Encontro vocês daqui a pouco.

 


 

Fernanda retocou o batom com a ponta dos dedos. Nada demais. Queria cor, não um contorno perfeito. Já estava pronta ou, pelo menos, era o que diziam os ponteiros do relógio. Mas ao se encarar no espelho, algo hesitava. O vestido caía com elegância sobre o corpo, os brincos pendiam com graça, o cabelo solto e modelado revelava a força da nuca e do queixo, e ainda assim, havia um eco de dúvida na imagem refletida.

Ela respirou fundo, ajeitou de leve a alça do vestido nos ombros, e tornou a colocar o fone no ouvido. “Caçador de Mim” seguia tocando  — Milton Nascimento. Sempre Milton, como um abraço antigo. Era a trilha que ela escolhia para domar o estômago e o coração.

E foi nesse silêncio musical que ouviu.

Toques leves, precisos, quase tímidos, mas firmes. Na madeira da porta.

Ela tirou um dos fones. Reconheceria aquela batida em qualquer lugar do mundo. E mais ainda a voz que veio em seguida:

— Nanda?

Aquele grave baixo, que soava como brisa em pele exposta. Forte. Suave. Exato.

— Entra. — disse, sem sequer se virar.

Walter entrou devagar, como se invadisse um templo. A primeira coisa que sentiu foi o cheiro. O quarto todo parecia suspenso num véu invisível de perfume. Doce, denso, misterioso. Um calor que nascia no fundo da garganta e descia, como um feitiço. Hypnotic Poison. O mesmo perfume que ela usou em Roterdã, em Veneza. Em noites de gala. Em noites com ele.

E então ele a viu.

Ela estava de costas, mas o reflexo no espelho lhe entregava tudo. O decote sutil. A postura ereta, mas vacilante. Os olhos buscando algo que não estava ali. E mesmo assim, para ele, era uma aparição. Um raio de sol que tivesse tomado forma de mulher.

Walter parou.

E disse, com a voz baixa, mas cheia:

— Você está divina. — e o “divina” não era metáfora. Era fé. — Parece que foi feita pra esse momento. Como se o tempo tivesse esperado por você.

Ela baixou o olhar, ajustando o brinco na orelha, como se quisesse ancorar-se em algo. O elogio não era vaidade, era entrega. Era um altar construído com palavras.

— Não exagera, Walter. — disse, com um riso quase sem som. Mas havia ternura. E um leve rubor que ele reconhecia: não vinha da maquiagem.

— Não é exagero. — ele continuou, se aproximando aos poucos. — É como se eu estivesse vendo o próprio sol.

Fernanda não respondeu. Só sustentou o olhar dele pelo espelho. Não havia defesa ali. Nem pose. Só ela, crua, diante do único homem capaz de decifrá-la mesmo no mais precioso dos silêncios

Walter sentiu o tempo ceder por dentro.

Aproximou-se, sem estardalhaço, e pousou as mãos nos ombros expostos dela, os ombros que, durante anos, ele soube de memória. As mãos grandes, quentes, firmes. Mãos de quem sempre lidou com o intangível: filme, luz, silêncio. E agora, com ela.

Fernanda não se mexeu. Mas o ar em torno dela pareceu estremecer.

Era como se ele segurasse o próprio fôlego do mundo só com aquele gesto. Como se a deixasse suspensa entre o chão e o abismo.

O polegar dele traçou, com reverência, a lateral do pescoço dela. Um caminho que ele conhecia. Mas não ousava repetir sem permissão. E ela, mesmo sem palavras, entregou o pescoço como se fosse um território antigo. Familiar. Sagrado.

Um arrepio lhe percorreu inteira. E, ao invés de afastar, ela inclinou a cabeça de leve, como quem se rende.

— Você... — começou, e a voz saiu num sussurro rouco, quase falhado. — Você tá tão imponente assim, desse jeito... elegante, calado... — respirou fundo, sem virar para ele. — Um homem que bastava dizer uma palavra só, Walter… uma palavra… e o mundo inteiro se dobrava.

Ela disse sem afetação, sem vaidade. Era só verdade. O tipo de verdade que só se diz para alguém que se conhece de todos os ângulos. Walter não respondeu. Apenas manteve as mãos onde estavam, firmes. E no reflexo do espelho, os olhos dele encontraram os dela mais uma vez. Como se quisesse quebrar o encanto – disse baixinho, com uma doçura que doía:

— Levanta.

Franziu o cenho, meio desconfiada.

— Traz os fones. E o celular.

Ela não respondeu de imediato. Só ergueu as sobrancelhas, já prevendo onde aquilo ia dar, e talvez justamente por isso tenha obedecido sem dizer nada. Entregou um dos fones a Walter e ficou com o outro. A ponta dos dedos deles se roçou, e um calor antigo percorreu o breve contato, como se a memória tivesse pele.

Walter não precisava explicar. Era como se um roteiro silencioso os acompanhasse desde sempre. E então, como se o destino tivesse escutado o ensaio deles no espelho do tempo, “Um girassol da cor do seu cabelo” do Clube da Esquina começou a tocar.

Walter sorriu, pequeno.
— Timing perfeito. — disse, quase em reverência.

Ela apenas o encarou com aquele meio sorriso que carregava mil subentendidos.

E então se aproximou.

Os corpos se encontraram no centro do quarto, e mesmo com a diferença de altura, havia aquele encaixe velho, conhecido, restaurado por um gesto. Walter aninhou o corpo dela ao seu com uma naturalidade que não vinha da prática, mas da memória afetiva mais antiga: como quem encontra um lugar onde sempre coube.

 

O braço dele envolveu a cintura dela, e a mão pousou leve nas costas, guiando o ritmo. A palma quente sobre o tecido do vestido. O outro braço, o dela, escorregou por sobre o ombro dele, os dedos enroscando devagar na nuca.

Fernanda fechou os olhos por um instante. E então, ela se viu de volta.

“... Vento solar e estrelas do mar

Você ainda quer morar comigo...”

De volta à sala do pequeno apartamento em Botafogo, em 1996. Ao set de Terra Estrangeira, às madrugadas suadas de verão, ao cansaço bom de quem criava alguma coisa juntos. Lembrou do walkman antigo dela e de como era um hábito sagrado dividirem os fones no fim de cada filmagem, mesmo exaustos. Dançavam na luz amarelada da cozinha, entre o som abafado de Gal, de Gil, de Clube da Esquina. Como se o tempo parasse. Como se só existissem eles dois.

Era isso.

Ali, no quarto elegante do Château Marmont, era como se os anos tivessem se curvado para devolver aquele instante. E o mundo, mais uma vez, silenciava à volta deles.

“... Se eu cantar, não chore não

É só poesia

Eu só preciso ter você por mais um dia

Ainda gosto de dançar

Bom dia

Como vai você?...”

 

A voz de Walter entrou aos poucos. Quase como uma respiração.

Ele não cantava exatamente, ele murmurava. Com aquele timbre morno, rouco, que parecia vir de algum lugar profundo do peito. E, pouco a pouco, a voz dele se misturou à de Lô Borges, num uníssono sutil, íntimo, como se a música tivesse sido feita para ter dois intérpretes: um que canta e outro que sente.

Fernanda sentiu. Sentiu tudo.

O toque, o som, o cheiro dele, o peso exato daquele momento que se gravava sob a pele.
Sentiu os braços de Walter ao redor da cintura dela, firmes, cálidos, encaixando os corpos como quem selava uma promessa ancestral.

“...Se eu morrer, não chore não, é só a lua

É seu vestido cor de maravilha nua

Ainda moro nesta mesma rua

Como vai você? Você vem?

Ou será que é tarde demais?...”

E foi aí que veio a dor.

Uma dor mansa, porém, funda. Não era nova. Era antiga, circular, como um aviso que se repete no corpo e que, desta vez, subiu com força até a garganta. Ela se apertou mais contra ele, afundando o rosto no paletó, como se quisesse imprimi-lo na memória tátil. Como se quisesse guardá-lo ali, no íntimo. Num lugar que ninguém mais pudesse tocar. Walter sentiu. Sentiu quando ela se encolheu no abraço. Quando o peito dela tremeu, discreto, e o suspiro que veio logo depois não era apenas emoção. Era um pedido mudo de socorro.

Ela estava com medo.

De tudo o que ainda viria.

De perdê-lo de novo.

A náusea veio como um reflexo. E ela cerrou os olhos, como se aquilo pudesse segurar o mundo no lugar. Como se bastasse não ver para não sentir. Passou a mão devagar pelas costas dela. Um gesto leve, quase imperceptível. Mas nela, reverberou como um sismo silencioso.

Ela tentou conter o inferno que rugia por dentro. A náusea ainda era presente, os olhos ardiam. Mas não era fraqueza, era o excesso. Excesso de sentimento, de memória, de tudo o que nunca fora dito da maneira certa. Fernanda abriu os olhos devagar, como quem emerge de um transe.

E encontrou os dele ali, tão próximos.

Walter.

Calado, atento.

O rosto sereno, mas os olhos… os olhos diziam tudo.

Uma ternura funda, quase inumana. Um amor que parecia ter atravessado existências.

E então, como se fosse puxada por alguma força que não se nomeia, ela apenas disse.

— Eu te amo.

Baixo. Sem artifício algum. Como se rezasse. Como quem crava uma estaca de verdade no meio do caos. Como quem entrega o coração sem pedir garantia de volta.

Ele não respondeu de imediato.
Sentiu.

Sentiu aquela frase atravessá-lo inteira, sem fazer curva. Porque não era só um “eu te amo”.
Era o “eu te amo” de quem estava em carne viva. De quem amava e doía. De quem amava e não sabia como caber no mundo depois daquilo. Ele levou a mão ao rosto dela. Acariciou devagar a lateral quente da pele, como se confirmasse que era real. E olhou bem dentro dos olhos castanhos dela. Profundos. Antigos. Famintos.

— Eu te amo. — disse, com a voz densa, como quem assina um compromisso com o próprio destino.

O beijo veio depois. Breve, porém inteiro. Não era o beijo de uma paixão fugaz, efêmera. Era o beijo de quem reconhecia morada. De quem sabia que ali, naquele instante, por mais que o mundo lá fora esperasse, por mais que o Dolby Theatre cintilasse em ansiedade... Nada era mais urgente do que eles dois.

A notificação do celular quebrou o feitiço.

Walter olhou discretamente para a tela. Uma notificação da produção: "O carro está na porta, prontos para sair em dez minutos." Era a vida, chamando-os de volta. A realidade estava no limiar da porta e dessa vez, eles precisariam atendê-la.

Fernanda também entendeu. Era a hora.

Eles se entreolharam, e aquele silêncio breve bastou. Era um pacto tácito: nada daquilo seria esquecido. Nada seria engolido pela pressa do agora.

Ela se moveu primeiro. Com aquela calma prática que só ela tinha. Aproximou-se, olhou para ele com aquela expressão de ternura misturada à crítica construtiva e ao humor sutil.
Passou as mãos com leveza pela lapela do paletó. Alinhou a gravata com cuidado. Fez um pequeno ajuste no colarinho.

E então, devagar, ajeitou os fios do cabelo que ela mesma tinha cortado naquela manhã, com a precisão de quem conhece cada curva do outro.

Era amor.

No gesto.

No silêncio.

Na maneira como os olhos dela subiam para encontrar os dele.

Walter não se movia. Apenas a olhava, como quem grava uma imagem para guardar uma vida inteira. Fernanda pousou a palma quente sobre o rosto dele, uma última vez. Acariciou de leve a barba bem-feita.

E com uma suavidade densa, quase uma carícia, disse:

— Engraçado pensar que é essa é a minha primeira vez no Oscar, e eu estou aqui com você. Por sua causa. – Fez uma pausa breve, deixando o olhar repousar no rosto dele. — Tem uma beleza nisso que não consigo explicar. Parece que o tempo teve que dobrar os joelhos pra isso acontecer.

Ele sorriu de leve, tocado. Quis responder com algo à altura, mas às vezes só a literatura dava conta.

O destino une aqueles que o tempo tentou separar.

A frase pairou no ar como se pedisse silêncio, como se exigisse reverência. Fernanda permaneceu ali, com a mão no rosto dele, os olhos fixos nos dele, um silêncio entrelaçado de séculos e segundos.

— Dostoiévski? — ela perguntou, num sussurro quase sorridente, como quem reconhece uma senha secreta.

Walter assentiu, com aquela leveza tão própria dele.

Noites Brancas. — respondeu, baixando os olhos por um instante, antes de encontrá-la de novo. Havia uma ternura profunda naquele olhar. A de quem reencontra o norte. O tempo perdido.

Fernanda sorriu, enfim. Não o sorriso protocolar das câmeras. Nem o sorriso hesitante das últimas semanas. Mas aquele que vinha do lugar onde moravam as lembranças mais puras. Um sorriso que dizia “eu sei”. Walter então desviou o olhar, como se despertasse do transe suave daquele instante. Olhou de soslaio para a porta entreaberta. Um gesto simples de cabeça, um convite silencioso: vamos?

Ela entendeu de imediato. Como sempre. Como desde o início. Eles tinham esse hábito de se entender no olhar. E então, lado a lado, caminharam em direção à noite que os esperava. Não como quem estreia. Mas como quem retorna.

Ao que nunca deixou de ser.  

Notes:

O que acharam?
Espero que tenham gostado! Forte abraço!

Chapter 13: XIII

Notes:

Olá, meus queridos e queridas. Boa noite!

* Mais um capítulo para vocês neste glorioso domingo!
* Gostaria de agradecer todos os comentários, mensagens e leituras generosas deixada por vocês. Isso aquece meu coração. Muito obrigada!
* Escrever esse capítulo foi intenso e muito bom: ele marca um clímax emocional, um acerto de contas com o tempo, e uma vitória que vai além do Oscar.
* Espero que vocês sintam esse carinho ao ler o capítulo de hoje.
* E como diria ela, com alma leve e o peito cheio: - A vida presta!

Beijos! <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Músicas que acompanham o capítulo de hoje:

Um girassol da cor do seu cabelo - Clube da Esquina

We broke free - Metronomy

Jigsaw falling into place - Radiohead


XIII

(PRESENTE)

 

LOS ANGELES – MARÇO DE 2025

CHATEAU MARMONT – UMA HORA E MEIA ANTES DO OSCAR

O corredor do Château Marmont parecia mais longo do que deveria.

Walter caminhava à frente, o passo firme, compassado, como se carregasse uma serenidade que era mais treino do que estado natural. O terno escuro assentava nele como uma segunda pele. As costas eretas, as mãos ora no bolso, ora soltas, mas sempre contidas.

Fernanda vinha logo atrás. E era como se cada centímetro de distância entre eles fosse ampliado por tudo o que aquela noite significava. Por tudo o que ainda não sabiam como viver. O coração dela martelava tão forte no peito que a caixa torácica parecia frágil demais para contê-lo. Era como se quisesse lembrar que o corpo era finito. Que havia um limite para o que cabia ali dentro.

Cada passo no salto soava alto demais. A cadência dos saltos finos ecoando no chão frio do corredor virou trilha sonora íntima. Um compasso de ansiedade. No fundo, ela sabia: em poucos metros, haveria luz demais. Olhos demais. Gente demais. No salão, estariam todos. A equipe do filme. Selton. Andrucha. E a noite começaria oficialmente. O Oscar.

Sentiu um zumbido no ouvido. Um leve apito, quase imperceptível, exceto para quem conhece o próprio corpo bem demais. Era o aviso: estava nervosa. Mais do que deixava transparecer. O sangue corria apressado. A respiração ficou curta. Foi nesse exato momento, como se o tempo tivesse escutado o que ela não disse, que a voz de Walter chegou abafada, porém precisa.

Ele já estava com a mão pousada sobre a maçaneta da grande porta que os levaria ao salão, onde todos os aguardavam. O som de vozes e de risos chegava como um eco distante do outro lado. A vida chamava. Mas ali, naquele segundo suspenso, o mundo ainda era só dos dois.

Fernanda parou ao lado dele — não, à frente. Virou-se de leve, ficando cara a cara com Walter. Perto o bastante para ver os traços que ela conhecia como ninguém. Os olhos dele eram um refúgio, mas também um espelho. Ambos sabiam: daquele instante em diante, vestiriam suas armaduras. Seriam figuras públicas. Um diretor. Uma atriz. Walter Salles e Fernanda Torres, respectivamente.

Mas, por um breve segundo, eram apenas eles dois. Apenas Walter e Fernanda.  Os olhares se sustentaram. Um pacto silencioso. Como se dissessem: "Seja o que for lá fora... eu tenho você."

Walter a encarou, com a ternura firme de quem compreendia cada dobra da alma dela. E perguntou, a voz baixa, mas cheia:

— Pronta?

Ela sorriu de canto, aquele sorriso que só nascia quando precisava driblar o nervosismo com ironia inteligente.

— Nunca. — respondeu. — Um ator nunca está de fato pronto.

O sorriso de Walter alargou-se com um afeto contido. Os olhos se iluminaram com um brilho cúmplice.

— Agora você parece a Dona Fernanda falando. — disse, a voz tingida de doçura.

Fernanda arqueou uma sobrancelha, provocadora, mas com um carinho fundo na voz.

— Por acaso você se esqueceu de quem eu sou filha?

Walter soltou um breve riso, rouco, como se a memória de tantas conversas com Dona Fernanda se desenhasse ali, no ar entre eles. Por um momento, ninguém disse mais nada. Bastava o olhar. Então, com um leve gesto de cabeça, Fernanda indicou a porta.

— Vamos. — Fernanda murmurou, como quem convida para uma travessia que não se faz sozinha.

Assentiu, o olhar ainda preso ao dela. Era um aceno, mas também um compromisso.

 

A maçaneta girou. Walter empurrou a porta com um gesto seguro. E, de repente, o salão se abriu diante deles. Uma onda de vozes, luzes e movimento os envolveu. O salão inteiro, antes disperso em conversas e últimos ajustes, pareceu suspender a respiração por um breve instante — até que a visão deles dois, lado a lado, surgisse no enquadramento da cena.

E então o salão rompeu em aplausos.

Não era apenas um cumprimento formal. Era um aplauso que carregava uma carga quase simbólica: como se, naquele momento, as duas peças primordiais de um quebra-cabeça tivessem finalmente sido completadas. O diretor e a atriz. O filme e sua alma.

Selton foi o primeiro a furar a solenidade, soltando um assovio forte e irreverente com a boca, o sorriso largo de quem não carregava as tensões veladas da noite.

— Aí, meus dois! — gritou, com alegria genuína.

Dani Thomas e o resto da equipe vieram em seguida, saudando Walter e Fernanda com abraços, cumprimentos, calor humano que preenchia aquele espaço de antecipação.

Walter correspondeu a todos com um sorriso sereno, elegante. Um “boa noite” dito com o tom exato que soava próximo, mas continha a medida certa de recolhimento. Era uma noite importante, e ele sabia disso.

Mais atrás, um pouco distante, Andrucha também aplaudia. Mas o gesto era mais contido. Os olhos, não. Esses acompanhavam cada movimento de Fernanda e Walter com atenção de quem já intuía as linhas invisíveis que cruzavam aquele cenário. Walter respirou fundo. Não gostava de discursos fora de hora, mas havia coisas que precisavam ser ditas e aquela era uma delas.

Deu um passo à frente, com aquele gesto calmo de quem não gosta de ser o centro, mas entende que, às vezes, precisa ocupar esse lugar. Ajeitou de leve o paletó. Respirou fundo. E então, com a voz tranquila, firme, abriu:

— Boa noite.

O salão silenciou, atento.

Ele sorriu de leve — um sorriso pequeno, mas sincero.

— Antes que a gente siga pro Dolby... — começou, a cadência da voz pausada e firme — eu só queria dizer uma coisa.

Fez uma breve pausa, os olhos passeando pelo rosto de cada um ali. Os técnicos, produtores, equipe de som, de arte, de figurino. Dani. Selton. A equipe inteira. Fernanda. E, um pouco mais ao fundo, Andrucha. Todos.

— Não existe filme sem corpo. Sem gente. Sem mãos, sem olhos, sem escuta. E aqui… — abriu um pouco mais o gesto com as mãos — a gente foi um só corpo. Cada um de vocês, cada gesto de vocês, tá em cada frame desse filme. E eu agradeço, de verdade, do fundo do que me cabe, a cada um.

O olhar dele suavizou. A voz também.

— E, se eu puder dizer com liberdade... — agora o tom era quase confessional, mais íntimo, ainda assim sereno — a gente teve, nesse filme, um coração. E teve uma alma.

Fez uma pausa. A emoção agora era visível, embora contida.

— O coração foi você, Selton. — disse, com um sorriso afetivo e um leve aceno na direção do amigo. — Porque foi você que nos lembrou, todos os dias, que fazer cinema é viver. Que sentir é parte do ofício. Que existe afeto no meio de toda essa maquinaria.

Selton abriu um sorriso largo, um pouco emocionado. O salão respondeu com um breve aplauso.

Walter prosseguiu.

— E a alma… — agora os olhos pousaram em Fernanda, e houve ali um segundo de suspensão no ar — a alma foi você, Nanda.

Não era frase de efeito. Não era vaidade. Era entrega.

— Porque foi você que trouxe pra tela o que ninguém escreve em roteiro. O que ninguém consegue capturar em câmera. O que só se sente. Foi você que deu corpo à ausência, que deu voz ao silêncio. E a gente sabe o quanto isso é raro.

O salão respondeu com um novo aplauso — esse mais caloroso, mais longo. Fernanda sentiu o peso dobrado daquela escolha de palavras. O olhar de Andrucha, ali, queimava como um foco silencioso. E ela... ela só queria que o chão abrisse, ainda que por um instante. Sorriu, mas era um sorriso pequeno, tenso. O coração batendo mais alto que qualquer voz no salão.

— Eu… — e sorriu de leve — fui só o mago que soube trabalhar o sentimento... — um olhar para Selton — e a essência... — um olhar demorado para Fernanda. — Vocês me deram as ferramentas. Eu só procurei a melhor forma de honrar o que me foi dado.

Então Walter ergueu um pouco a voz, com aquele brilho que ele tinha nos momentos de lucidez mais apaixonada.

— Independentemente do que irá acontecer no espaço de algumas horas... — e fez uma pausa, com um leve sorriso que continha toda a sua filosofia — já é uma vitória estarmos aqui. É uma vitória para o nosso cinema. É uma vitória pra história que a gente contou juntos. E que continua. Porque o cinema brasileiro não cabe em molduras, nem em premiações. Mas hoje… hoje a gente ocupa esse espaço.

Outro breve aplauso. Respeitoso. Comovido. Então ele olhou para Fernanda, com um gesto leve da cabeça, um meio sorriso que pedia cumplicidade.

— Faça as honras, Nanda.

Era um convite, mas também um gesto de afeto público. Um reconhecimento que não dava mais pra camuflar. Fernanda respirou fundo. Sabia que não tinha escolha. O salão inteiro a esperava. Antes que o ar ficasse formal demais, ela soltou com aquele tom que todos conheciam: onde o humor vinha sempre com inteligência:

— Uma responsa numa hora dessas, hein, Walter? — disse, olhando de soslaio pra ele. — Me joga esse abacaxi assim, como quem pede pra passar o sal.

Risos leves. A tensão se quebrou um pouco.

— A verdade… — continuou, agora com um brilho nos olhos — é que eu não sei muito bem o que dizer. Estar aqui já é…bom, é uma experiência megalomaníaca, pra dizer o mínimo.


Fez uma pausa, respirou fundo.

— E se torna ainda mais único quando a gente sabe que ao lado tem pessoas gigantes. — olhou ao redor, genuína. — Gigantes de talento, de coragem e de coração.

O olhar percorreu a equipe.

— Eu queria agradecer primeiro a toda essa turma que tá aqui, e aos que ficaram no Brasil, torcendo ferrenhamente pela gente.

Sorriu, com aquela centelha cínica-afetuosa que era só dela:

— É meio inacreditável tudo isso estar acontecendo em pleno domingo de carnaval, vamos combinar. Mas, como todos sabem, há coisas inexplicáveis que só acontecem abaixo da linha do Equador… e essa, definitivamente, é uma delas. Há uma espécie de realismo mágico acontecendo neste exato momento.

Outro riso geral. Alguns aplausos.

Fernanda seguiu, agora com um olhar mais quente:

— Dani… — virou-se levemente para Dani Thomas. — Amiga, parceira de ofício há mais de trinta anos. Que bom que a vida continua nos reunindo por aí. Gratidão imensa, você sabe.

Daniela sorriu largo, emocionada.

— Selton… — os olhos dela buscaram o amigo — que alegria voltar a dividir cena contigo. Primeiro em O que é isso, companheiro?, depois em Os Normais — e que dupla, hein?

Fez um gesto com a mão, como quem pede a ele para "aguentar o tranco", e jogou um beijo leve no ar.

— Meu irmão. — completou, com aquele olhar que vinha do fundo da alma.

Selton respondeu com um sorriso largo e um leve aceno, tocado.

A sala se aquietou. O tom dela foi mudando. O sorriso continuava ali, mas agora era mais brando, mais fundo. A voz já vinha de outro lugar – um lugar onde humor cede espaço pra reverência.

— E… claro. — respirou fundo. Os olhos brilharam, não só pelo reflexo das luzes. — A gente não tá aqui só por nós. Não mesmo.

Fez uma pausa breve. Como se pesasse cada palavra, como se o momento pedisse isso.

— Eu quero agradecer à Eunice Paiva. Ao Marcelo. Ao Rubens. À família Paiva. A todos que, com generosidade e imensa coragem, abriram suas memórias pra que a gente pudesse contar essa história.

O salão ficou em suspenso. Era o momento que todos sabiam que viria – mas ouvir da boca dela, com aquela voz embargada, era diferente.

— A “Santa Eunice”, como a gente chamava entre uma cena e outra… — sorriu com doçura. — Se não fosse pela força, pela dignidade, pela gana dessa mulher… nem eu, nem Walter, nem Selton, nem essa equipe inteira estaríamos aqui hoje. Muito menos estaríamos com o privilégio de representar um pedaço tão essencial da nossa história.

Fez um gesto suave com a mão, como quem acolhe, como quem reverencia.

— Eu saio daqui, hoje, com uma sensação de dever cumprido. — continuou, agora mais firme. — Porque creio que a gente soube honrar essa história. A história de uma família, sim. Mas também a história de um país que precisa lembrar, precisa refletir, precisa se olhar no espelho.

Houve um murmúrio de assentimento na sala.

Fernanda respirou mais uma vez. O olhar agora buscou, de maneira quase involuntária, a figura de Walter.

— E… por fim, ao meu diretor. — disse, a voz mais baixa, mas luminosa. — Que além de diretor, é o guardião sensível dessas histórias. Dessa história. Obrigada, Walter, por saber olhar pro que importa. Pra essência.

Não disse mais. Não precisava. O olhar que ficou pairando entre eles dizia o que as palavras não davam conta. Voltou-se, então, pro resto da equipe.

— E a vocês todos… — abriu os braços, num gesto amplo — obrigada. Por terem me ajudado a carregar esse peso – e esse privilégio – com tanta entrega. Foi uma honra trilhar essa travessia com vocês.

Um aplauso espontâneo se ergueu. Quente. Sincero. Não era só pela atriz. Era pela mulher, pela consciência, pela entrega de tudo aquilo. Fernanda sorriu, um pouco emocionada, mas com aquele brilho conhecido no olhar – aquele brilho que sempre voltava, mesmo depois das frases mais densas.

Fez um pequeno gesto com as mãos, como se dissesse “deixa eu só dizer mais uma coisinha”, como quem pede licença para um último pensamento – o sorriso já mais solto, o olhar de quem sabe rir de si mesma.

— E, olha… — disse, com a voz já levemente brincalhona, o timbre de quem sabe exatamente o efeito que vai causar — a gente passa a vida inteira nesse ofício lidando com cenas, com prêmios, com críticas, com amores, com dores… Mas vou dizer uma coisa: você sabe que a vida realmente presta quando vê o seu próprio boneco de Olinda nos carnavais de Pernambuco. Só de saber disso, já valeu tudo!

Pausa dramática.

 A sala explodiu. Risos, aplausos, palmas batidas com mais força agora, como se todos tivessem recebido o presente de um alívio naquele momento solene.

Selton gargalhou de verdade, inclinando o corpo para trás. Dani Thomas levou a mão ao peito, balançando a cabeça como quem diz “ela é impossível”, mas com um brilho emocionado nos olhos. E Walter… Walter sorriu primeiro com os olhos – como sempre fazia quando ela dizia algo que só ela poderia dizer – e depois com a boca. Um sorriso terno, inteiro. Reservado a ela.

Fernanda, quase sem perceber, lançou um olhar de soslaio na direção dele. Era um gesto antigo, tão automatizado que ela nem notava mais. Procurava nele – sempre nele – aquele traço de aprovação, de cumplicidade, de riso partilhado. Era um reflexo antigo, quase infantil, de quem precisa ver se ele ria das coisas que ela dizia, se ele estava com ela também ali, naquele jogo de palavras e afetos.

E viu.

Walter não apenas sorria. Estava profundamente comovido, como quem assistia, mais uma vez, à mulher que amava roubar a cena com a alma. Aquilo bastou para que ela respirasse um pouco mais solta, mas só um pouco.

Porém, a vida não tardou. Walter consultou discretamente o relógio, depois cruzou o olhar com ela e com os demais. Deu um passo discreto à frente e disse, com a voz calma e firme, mas com a urgência certa:

— Está na hora. — disse com naturalidade. – Vamos?

Todos entenderam o subtexto. Era hora de seguir.

O salão ganhou movimento. Casacos foram apanhados, bolsas, últimos retoques de maquiagem. A equipe inteira se dirigia, meio em bloco, meio em pequenos núcleos, para o saguão do hotel.

Walter se aproximou naturalmente de Fernanda. Não havia mais espaço para disfarces, não ali, não com aquele público íntimo que já lera todas as entrelinhas. Mas ele não parecia querer esconder. Com um gesto simples e fluido, deslizou a mão firme e discreta para a cintura dela, conduzindo-a com o cuidado de sempre. Não como quem possui, mas como quem guia. Como quem acompanha com reverência.

Andrucha, que vinha um pouco mais atrás, observava a cena. O olhar era contido, mas preciso. Não havia demonstração pública. Mas havia um arquivamento íntimo. Cada gesto, cada distância, cada proximidade – tudo era visto. E entendido.

Uma atriz que, naquela noite, disputava um dos prêmios mais importantes do cinema mundial. E tudo o que não coubesse naquele instante – todas as dores, todas as dúvidas – ficariam, por ora, do lado de fora do tapete vermelho. Walter a guiava, a mão ainda em sua cintura, e ela permitia. O salto soava alto no mármore. O coração, mais alto ainda. Talvez, agora, ela estivesse pronta para fazer a travessia ao lado dele.

 


 

O carro avançava devagar pelas ruas congestionadas de Los Angeles. O trânsito típico de noite de premiação transformava a cidade num mosaico de faróis e expectativas. Dentro do veículo, o silêncio era denso, mas não desconfortável. Era aquele tipo de silêncio que dizia mais do que qualquer frase.

Walter estava sentado de lado, o corpo ligeiramente inclinado na direção dela, como se quisesse diminuir a distância do mundo que os cercava. Fernanda, à sua frente, mexia no celular. O polegar deslizava pela tela, mas o olhar parecia pairar em outro plano. Os pensamentos dela viajavam para um lugar que ele não alcançava – ainda.

Ele a observava em silêncio. Os cabelos devidamente alinhados, mas com aquele pequeno desalinho que só ela conseguia tornar elegante. O vestido preto, o perfume ainda vibrando no ar confinado do carro. E aquele olhar concentrado, mas atravessado de emoção.

Então aconteceu.

Ela sentiu o olhar dele. Sem tirar os olhos da tela, percebeu a densidade que vinha da direção dele. Lenta, como um gesto de provocação natural, ergueu os olhos e encontrou os dele. Os olhares se cruzaram e por um instante, tudo parou. A cidade do lado de fora sumiu. Era só eles. Só aquele espaço pequeno, cúmplice.

Fernanda inclinou levemente o queixo, um sorriso enviesado surgindo no canto da boca, um gesto que misturava provocação com uma ternura antiga, conhecida.

— Você sempre teve essa mania… — sussurrou, com a voz baixa, arrastada, quase um fio. — De ficar me observando.

Walter não desviou o olhar. Aquele tipo de provocação, dita assim, em tom morno e íntimo, fazia parte da dança deles. E ele jamais recuava. Mas quando respondeu, a voz veio carregada de algo mais denso. Um desejo sombrio, mas encharcado de memória.

— Eu sempre observei você. — disse, rouco. — Desde o começo. Mesmo quando você achava que eu não via… eu via tudo.

Ele não desviou o olhar. E havia um peso ali que ela não podia decifrar – não ainda.

Porque havia sido assim mesmo depois. Depois que ela se foi. Depois que ele ficou. Por anos, em silêncio, seguira seus passos de longe. Não por invasão. Não para possuir. Mas por um impulso que nem ele soubera nomear — um instinto de cuidado que resistia ao tempo e às distâncias.

Ele a seguira com os olhos de longe, em premieres, em peças, em ruas vazias. Às vezes de relance, às vezes escondido na penumbra de uma plateia ou de um salão cheio demais. Não para invadir – mas para proteger. Só para se certificar. Só para vê-la inteira. Para garantir que o mundo, com todas as suas pressões e arestas, não tirasse dela aquilo que ele já não podia mais tocar. Mas que, ainda assim, guardava como se fosse seu maior bem.

Walter respirou fundo, como quem expulsa um fantasma que ainda pulsa.

— E agora… — continuou, a voz mais baixa ainda, quase um murmúrio — é impossível não olhar. Não olhar pra você assim… revestida de Chanel. — fez uma pausa, o olhar se tornando lâmina e desejo — Embora eu tivesse muito mais prazer em te ver vestindo nada.

Os olhos dela se apertaram levemente, como se a frase a tivesse atravessado mais fundo do que deveria naquele momento. O corpo inteiro de Walter, a voz, o olhar – tudo nele exalava um tipo de luxúria antiga, visceral, mas misturada com amor. Um amor faminto. Um amor que nunca havia aprendido a se saciar.

Ela sustentou o olhar por um segundo a mais, talvez só para não ceder. Talvez só para mostrar que ela sabia. Que ela sentia. Mas havia um pedido ali. Um limite que ela precisava colocar. Ainda que fosse um limite por um fio.

Inclinou-se levemente na direção dele, os lábios quase encostando no ar entre os dois. E sussurrou, com um fio de voz que tremia, não de medo, mas de urgência contida:

— Agora não, Walter…

Era um pedido. Mas também uma confissão. Agora não. Não porque não quisesse. Mas porque se quisesse, se cedesse ali, não haveria volta. Não naquela noite. Não naquele carro. Não antes de encarar a travessia que os aguardava.

Walter fechou os olhos por um breve instante. Só um. Para conter o que subia feito maré dentro dele. Quando abriu de novo, os olhos estavam mais calmos, mas não menos intensos.  Ele assentiu, um gesto pequeno. Compreendia. E respeitaria.

Não podia deixar transbordar ali – não agora. Já aprendera a se recompor. Quantas vezes fizera aquilo desde então? Era um mecanismo quase automático: conter, rearrumar, guardar. Ergueu o queixo levemente, como quem retoma a compostura, e com um tom de voz suave, mas forçado em leveza, perguntou:

Ergueu o queixo levemente, como quem retoma a compostura, e com um tom de voz suave, mas forçado em leveza, perguntou:

— E o que você faz tanto nesse celular, hein?

— Creio que você vai gostar. — respondeu, com um brilho nos olhos que ele conhecia bem: aquele olhar de quem preparava um pequeno feitiço.

Antes que ele dissesse qualquer coisa, ela se moveu com a leveza de quem estava à vontade ao lado dele. Rapidamente deslizou no banco, sentando-se ao lado de Walter, os ombros agora quase tocando. E então, com um toque firme na tela, o som da vídeo chamada preencheu o interior do carro. Um toque que reverberava pelo espaço apertado como um pequeno tambor de anunciação. Walter baixou o olhar para o visor, com um misto de surpresa e ternura.
Contato: Mamãe.

O sorriso veio por dentro. Quase não se mexeu nos lábios, pois era fundo demais para um gesto exterior. Mas estava ali, inteiro. Havia uma beleza silenciosa no fato de que aquilo, um momento tão íntimo, tão pequeno e tão grande ao mesmo tempo, fosse dividido com ele. Não havia nada que Fernanda não compartilhasse com aquela mulher. E agora, sem saber, ela o fazia cúmplice também.

Era pertencimento. Era ser aceito dentro de um círculo que nem todo amor alcança.

Do outro lado do oceano, no Rio de Janeiro ainda quente de fevereiro, a tela foi ganhando cor, vida, presença. A imagem surgiu aos poucos, como se atravessasse o tempo e a distância: uma senhora de cabelos grisalhos bem aparados, olhos vívidos como faróis antigos. Não era uma simples figura materna.

Dona Fernanda Montenegro.

Ali, emoldurada pelo visor pequeno do celular, com a dignidade serena de quem já vira todas as estações da vida passarem diante dos olhos. Naquele instante, no interior discreto do carro que os levava rumo a premiação, Walter sentiu o tempo suspender-se. Era como se um pedaço de lar, um dos poucos que o tempo, as escolhas e os invernos não haviam conseguido apagar tivesse se materializado ali, diante deles.

A chamada foi aceita por completo. A voz carregada de um afeto quase físico atravessou a conexão:

Nanda, minha filha...

— E aí, minha mãe? — respondeu Fernanda, naquele tom caloroso, cheio, inconfundível. O timbre que vibrava de riso e reverência, de quem chamava ao mesmo tempo a mãe e a própria raiz.

Walter permaneceu em silêncio. Observava as duas. Para ele, era como presenciar um rito sagrado. Era como se duas entidades conversassem e ele fosse um simples mortal, um homem privilegiado por ser admitido ali. Ouvia e via. Guardava.

Foi então que Fernanda, com um brilho nos olhos, disse:

— Olha quem tá aqui do meu lado.

Com um gesto breve, inclinou o celular, enquadrando-os juntos, lado a lado na tela vertical. Os rostos próximos. Um pequeno retrato improvisado, mas carregado de um simbolismo que só a história compartilhada saberia decifrar.

Do outro lado, Dona Fernanda sorriu com a ternura funda de mãe, e disse, com aquela voz que atravessava qualquer tela:

Waltinho, meu filho... tudo bem?

Walter engoliu o ar devagar, como quem sentia o peso doce daquele momento. Respondeu com carinho genuíno:

— Tudo bem, Dona Fernanda. Melhor agora falando com a senhora.

O sorriso dela se abriu ainda mais.

Vocês estão lindos. Belíssimos. — disse, e a voz vinha com aquela música que só uma mãe sabe imprimir. — Que orgulho de ver vocês dois.

Ambos não conseguiram falar, só sorriram com os olhos presos na tela.

— E como estão as coisas aí no Brasil, mãe? No Rio? — perguntou, com aquele meio sorriso que tentava disfarçar a inquietação interna.

Do outro lado da tela, Dona Fernanda deu um risinho leve, irônico e afetuoso. O olhar brilhou com uma malícia doce de quem via além da superfície:

— Uma completa loucura, Nanda. — respondeu, com aquele timbre que carregava décadas de palco, mas que ali era só mãe. — Os meninos me mostraram fotos, vídeos… tem máscara de carnaval com a tua cara circulando por aí.

Fernanda soltou uma risada baixa, a mão tapando de leve a boca, como fazia desde menina.

— Até virei boneco de Olinda, mãe. Nosso povo é louco!

Dona Fernanda riu também, os olhos marejando pelo afeto.

— Loucos, sim. — disse com uma leve inclinação de cabeça, como quem sela uma certeza. — Mas, quando se trata de torcer... somos o povo mais apaixonado do mundo.

Walter, ainda em silêncio, absorvia aquela troca como quem assiste a um espetáculo íntimo. Não era apenas uma mãe e uma filha conversando – era uma mulher que sabia da história deles dois, do peso daquela noite, das entrelinhas que preenchiam aquele carro. Ele carregava um respeito cerimonial por Dona Fernanda. E ela, por sua vez, o tratava como quem já o aceitara há muito tempo como um dos seus.

Fernanda respirou fundo, o sorriso ainda no rosto, mas com um brilho novo nos olhos. Depois perguntou, com uma voz que saía um pouco mais baixa:

— E você mãe, tem algum conselho para mim?

Do outro lado da tela, a senhora de cabelos grisalhos se endireitou um pouco. Fez aquela pausa silenciosa que sempre precedia as palavras que realmente importavam. Não era só um conselho de mãe. Era algo que vinha da mulher que atravessara o tempo, os palcos, os afetos e conhecia profundamente a história dos dois que agora dividiam aquele banco de carro.

Aproveita, minha filha. Só isso. — fez uma pequena pausa, como quem busca o peso certo das palavras.

Os olhos dela pousaram primeiro na filha, com ternura e uma ponta de gravidade. Depois, como quem sabe mais do que diz, desviaram-se com naturalidade e pousaram em Walter. Fitaram-no com uma suavidade densa, sem julgamento, sem interferência, apenas um olhar de quem reconhece. De quem vê. E sabe.

Por um segundo, o ar dentro do carro pareceu rarefeito. Walter sustentou aquele olhar com o respeito de quem sempre soube que, ali, não cabiam disfarces. Foi então que Dona Fernanda falou, com a voz serena, mas atravessada de significado:

Aproveitem. — disse, simples, como quem resume a sabedoria de uma vida. Fez uma pequena pausa, como se quisesse que a palavra se assentasse no corpo dos dois. — Memento vivere. — completou, com um sorriso sutil, os olhos ainda nos dois. — Lembrem de viver. De verdade.

Não explicou mais nada. Não precisava. Era um conselho sobre a noite, claro. Mas era também – e talvez principalmente – sobre tudo o que estava ali não dito. Sobre as escolhas que cada um deles ainda teria que fazer. Sobre o tempo que não se recupera. E sobre as oportunidades que a vida, quando muito generosa, oferece duas vezes.

Walter baixou os olhos por um instante, como quem absorvia aquilo mais fundo do que deixaria transparecer. Fernanda sorriu. Mas o sorriso se quebrou de leve nos cantos da boca, quando sentiu a garganta trancar.

Aquilo doía. Doía de um jeito bom, porque vinha carregado de tudo. Da história, da luta, da entrega. E do fato de que, talvez, nenhuma outra pessoa no mundo pudesse entender o que aquela noite significava para ela como a mãe entendia.

— Obrigada, mãe. — disse enfim, com a voz trêmula, umedecendo os lábios para não deixar a emoção transbordar. — Por tudo.

Vai dar tudo certo, minha filha. — respondeu Dona Fernanda, agora com um sorriso que trazia o abraço que o oceano impedia. — Estamos aqui.

Antes que Fernanda encerrasse a chamada, a voz de Dona Fernanda voltou a soar, agora com um timbre um pouco mais quente, carregado de um afeto antigo:

Waltinho… — chamou, e o diminutivo não vinha de condescendência, mas de uma ternura que atravessava décadas.

Ergueu um pouco o corpo, inclinando-se discretamente para o celular, o olhar atento e reverente. Fernanda, ao lado, apenas observou, o coração já apertado por antecipação.

— Estou lhe ouvindo.

— Há vinte e cinco anos... — começou Dona Fernanda, com um meio sorriso que trazia consigo um mundo inteiro — eu fiz esse rito com você. Lembra?

Assentiu, lento, os olhos já marejados de lembrança.

Eu cuidava do Vinícius… cuidava de você… naquele turbilhão que foi o Central do Brasil. E você foi tão gentil. Tão inteiro. Nunca me esqueço do que disse, aí em Los Angeles: que tudo aquilo não valia se não se tivesse quem segurar a mão da gente por dentro.

A voz dela vacilou um pouco, mas prosseguiu:

Hoje, veja só… quem faz essa travessia ao seu lado é a minha filha. — e um brilho diferente passou pelos olhos dela. — Os ciclos… A vida é mesmo um palco cheio de repetições, não é?

Walter sorriu, um sorriso tocado, humilde diante da verdade simples que Dona Fernanda acabara de costurar entre passado e presente. Foi então que ela disse, com um tom que era quase um pedido, quase uma prece, mas também um lembrete sutil do que os dois sabiam há muito tempo:

Cuida dela pra mim, Walter... — e naquele instante, por meio das entrelinhas da sutileza, ele entendeu o que ela quis dizer. Não era apenas sobre o Oscar, nem só daquela noite.

Fernanda baixou os olhos, o rosto completamente tomado por uma emoção que mal conseguia segurar.

Walter respirou fundo. E não precisou pensar.

— Sempre. — respondeu, com a voz firme, carregada de um compromisso que não envelheceu um dia sequer. — Sempre, Dona Fernanda.

Houve um breve silêncio — não de constrangimento, mas de reverência. Como se todos os anos entre eles tivessem acabado de se alinhar numa linha invisível de afeto e respeito.

Então, com um sorriso leve, amoroso:

Então vão. — disse Dona Fernanda, os olhos brilhando. — Façam bonito. Estaremos aqui torcendo por vocês.

A ligação havia sido encerrada. O carro ficou em silêncio por um momento. Mas naquele pequeno espaço, havia algo a mais agora. Um pacto silencioso, renovado. E um pedaço de passado que voltava, não como peso — mas como bênção.

Walter inclinou um pouco mais, o rosto perto. Fernanda fez o mesmo, como se aquela cumplicidade que transbordava precisasse de um gesto. As testas se tocaram, delicadas. A respiração de ambos saiu mais lenta, como se soubessem que, por um segundo, tinham atravessado alguma fronteira invisível.

Foi Walter quem fechou os olhos primeiro. Fernanda, então, encostou os lábios nos dele. Um selinho leve, preciso. Mais um selo do que um beijo – um pacto silencioso, um reconhecimento mútuo do que compartilhavam ali.

Depois, ainda colados, Walter murmurou, sem abrir os olhos:

Memento Vivere?

Fernanda sorriu contra a boca dele.

Memento Vivere. — Afirmou, como se, naquele instante, aceitasse enfim o que a mãe dissera e o que a própria filha já sabia.

Por ora, era isso.
Por ora, bastava viver.

 

O carro deslizou até parar. Do lado de fora, flashes já iluminavam o ar como pequenas explosões de estrelas. O tapete vermelho se derramava em rubro e dourado, carregava o simbolismo da estrada por onde passavam aqueles que, por uma noite, encarnavam o brilho de um ofício feito de sombras.

Fernanda ajeitou-se no banco. Inspirou fundo. Não era mais um nervosismo frívolo. Era outra coisa agora: uma ansiedade com a textura do encantamento. Como quem, mesmo sabendo dos riscos, aceita entrar no labirinto e quer ir até o centro.

Do outro lado, Walter a observava em silêncio. Sabia ler cada gesto. O modo como ela acomodava a clutch no colo. O olhar que, vez ou outra, descia para as próprias mãos como quem busca, sem perceber, um ponto de apoio no corpo. Sabia que, atrás daquela respiração controlada, das mãos que se ajustavam no tecido do vestido, havia uma menina e uma mulher coexistindo.

Ansiosa. Pronta. Assustada. Feroz.

O motorista abriu a porta e a realidade avançou. E, com ela, o som. Os flashes. A harmonia feroz do espetáculo.

No pequeno trecho até a entrada, Fernanda caminhava ao lado de Walter. Dava pequenos pulinhos, quase imperceptíveis, como se o corpo precisasse descarregar a tensão da espera. Murmurava baixinho uma melodia, resquício do ritual que sempre a acompanhava em estreias. Pequenos rituais para domar o indomável.

Walter percebeu. Ele sempre percebia. E, num gesto simples, como quem segura um instante precioso entre os dedos, tocou-lhe a mão. Sem palavras. Sem necessidade delas. Apenas aquele calor discreto, que dizia mais do que um discurso poderia.

Ela olhou de lado. Não precisaram sorrir. O olhar disse: obrigada. E ficou.

Chamaram-nos.

O cerimonial quebrou o ar. Era a hora das fotos. Walter, então, soltou devagar a mão dela, mas não sem antes apertá-la levemente, um gesto que dizia: vai. É teu. Eu sei. E estou aqui.

Deu um passo atrás. Deliberadamente. Aquele era o instante dela. E ele, mais do que ninguém, entendia: certos momentos não se dividem. Se oferecem. Se reverenciam.

Fernanda sentiu o gesto. Inspirou uma vez mais. E foi. Avançou com aquele equilíbrio que não se ensina: o vestido perfeito, o sorriso que vinha do lugar certo, os olhos que carregavam história. Ao fundo, Walter a via atravessar a luz. E, naquele olhar que guardava, havia mais do que orgulho: havia gratidão. Por vê-la inteira. Por vê-la ali.

Quando o chamaram, ele avançou. Impecável, discreto, consciente do lugar que ocupava. Mas havia um detalhe que nem ele sabia disfarçar: os olhos. Carregavam um brilho que nenhuma luz de câmera seria capaz de reproduzir. Era um brilho que vinha de dentro. De muito antes dali.

E foi quando viu. Fernanda, com a elegância despretensiosa que sempre lhe foi natural, ergueu as mãos na direção dele. O gesto foi pequeno. Íntimo. Mas bastou. Não era um convite formal – era um chamado. Um chamado que atravessava o véu de todo o resto.

E ele foi.

E, como se o corpo soubesse antes da mente, a mão dele deslizou — sem hesitação, sem pudor — até a cintura de Fernanda. Era um gesto antigo, quase ritualístico. Algo que vinha do instinto. De um tempo em que a protegê-la, mesmo em um gesto simples como aquele, era tão natural quanto respirar. O toque não era leve. Não era teatral. Era possessivo, ainda que inconsciente.

Fernanda sentiu. E sorriu. Mas não com os lábios, com o corpo todo. A pele, a respiração, o olhar. Girou levemente o rosto e, com a ponta dos dedos, traçou um carinho breve e seguro na lateral do rosto dele. Então, sem que precisassem combinar, ela se inclinou de leve, encaixando o rosto na lateral da bochecha dele – um gesto de entrega, de pertencimento. De quem já não precisava mais lutar contra o que sentia.

Os flashes pipocaram.

E, por um segundo, o mundo todo desapareceu. Porque, na imagem que ficaria registrada naquela noite, o que se veria não era apenas um casal de artistas prestes a disputar e dispostos a retornar para casa com um Oscar. Era um reencontro. De almas. De corpos que, depois de tantas estações, se permitiam — enfim — aquele momento de felicidade.

Walter fechou os olhos por um instante. Sentiu o perfume dela, a textura da pele, o calor do rosto contra o seu. Era ali, naquele segundo roubado aos deuses do tempo e da convenção, que ele teria colocado a eternidade se pudesse. E Fernanda, por sua vez, respirava fundo. Sabia. Sabia que, por mais que a vida lhe cobrasse contas depois daquela noite, aquilo… ninguém lhe tiraria mais.

Não naquele instante. Não daquela forma.

Logo após os flashes, com os corações ainda ritmados por aquela travessia íntima que só eles tinham compreendido, vieram os chamados para as entrevistas. Tiveram que se separar – não sem um breve toque de dedos, quase imperceptível, antes de cada um seguir para um lado do Red Carpet.

Fernanda foi abordada por um jornalista brasileiro, um rosto conhecido, gentil. Estava leve, sorrindo mais do que esperava de si mesma. Aquele tipo de euforia que não vinha só do evento, mas da força de estar inteira ali. O vestido impecável, os olhos vibrantes, a voz firme. E ela falava sobre o filme, o elenco, o cinema brasileiro. Sobre Walter. Sobre como aquela noite era muito maior do que qualquer prêmio individual.

Do outro lado, Walter concedia entrevista a uma repórter da GloboNews. Já mais contido, mas com aquele brilho que lhe escapava sempre que se falava nela.

— Walter, se você pudesse escolher um prêmio esta noite… qual escolheria? — perguntou a jornalista, com um sorriso sagaz.

Ele não hesitou. Nem um segundo.

— Pra Nanda. — disse, com uma convicção tão natural que a resposta pareceu parte de um pensamento antigo, de algo que ele já sabia há muito.

— Não para o filme? — ela insistiu, surpresa.

Walter sorriu de canto, quase indulgente. Como quem compreendia a pergunta, mas não aceitava o jogo.

— Não. Pra ela. — repetiu, com suavidade. — O filme… o filme é importante. Mas ela é o filme. Ela é a alma dele. — E com um leve gesto das mãos, como quem molda algo no ar, completou: — Foi ela que elevou tudo. O que a gente construiu só tem a força que tem… porque tem a Nanda dentro.

A jornalista sorriu, tocada. E comentou:

— Curioso. Ela disse exatamente o oposto. Que escolheria o prêmio de Melhor Filme.

Walter baixou os olhos, sorriu com um carinho quase doloroso, como quem sabia. Como quem entendia demais aquela mulher. Então, ao erguer o olhar de novo, ele a viu de longe, do outro lado do salão iluminado. Fernanda falava com o jornalista, os ombros soltos, o corpo iluminado, o sorriso solto no rosto. Havia nela um ar quase adolescente de quem, por fim, se permitia brilhar.

E foi nesse momento que ela sentiu. Virou o rosto e os olhos deles se encontraram no meio da multidão. Não precisaram de gestos, nem de palavras. Apenas sorriram um para o outro.

— Fernanda, a sua parceria com o Walter… como você definiria? Depois de tantos anos, de três filmes juntos, o que mudou — ou permaneceu — entre vocês?

Ela sorriu, aquele sorriso pequeno que carregava tanto de cumplicidade quanto de ironia leve.
Olhou de relance para o outro lado do salão e Walter, como sempre, parecia saber. Então voltou os olhos para o repórter.

— Olha… o Walter me conhece há tanto tempo que, às vezes, eu acho que a gente nem precisa falar muito. É como se fôssemos parceiros de uma vida. — soltou um pequeno riso. — E ele é maníaco. Eu também. Então, de certo modo, a gente se entende numa linguagem muito específica… nem sempre decifrável pros outros, mas muito nossa.

O jornalista riu com ela. Fernanda prosseguiu, agora um pouco mais contida:

— E é bonito pra mim que Terra Estrangeira tenha sido o filme que nos fundou… — a voz se abrandou — e Ainda Estou Aqui seja o filme da maturidade. Do tempo. Daquilo que a gente conseguiu, enfim, contar… juntos.

O jornalista assentiu, interessado, e aproveitou para perguntar:

— E como é trabalhar com ele como diretor?

Fernanda sorriu mais largo dessa vez, quase com um brilho nos olhos.

— Walter é direto. Muito. E tem uma precisão quase cirúrgica no que quer. — ajeitou o cabelo, pensativa. — Eu costumo dizer que ele é como um sniper. Mira e acerta. Mas — acrescentou, agora com um tom mais afetuoso — ele também te dá uma responsabilidade grande. Porque acredita que você vai entregar. E ninguém quer decepcionar alguém que confia tanto assim em você. Ele é incrível, um brilhante cineasta.

— Imagino. — o jornalista sorriu. — E pra fechar… uma pequena sorte pessoal. — Disse, tirando do bolso um pequeno bottom do Pikachu e oferecendo a ela. — Pra você, pelo brilho. Pelo jogo. Que seja uma noite incrível.

Ela riu, encantada, como uma criança que ganha um talismã.

— Ah, isso eu adorei. — recebeu o presente com as duas mãos. — Vou guardar com carinho. — com um movimento rápido, colocou o Pikachu no bolso lateral do vestido. — Um pouco de sorte nunca é demais, né?

— Boa sorte, Fernanda. E parabéns por tudo.

— Muito obrigada. — tocou levemente o braço dele, sempre elegante. — E uma boa noite pra você.

Com isso, afastou-se. E à medida que caminhava, já se permitia um sorriso mais solto.  Os olhos, inevitavelmente, buscaram Walter. E lá estava ele. Esperando. Com as mãos nos bolsos da calça, carregando aquele sorriso contido. Ao lado dele, Selton, relaxado, com as mãos nos bolsos e um sorriso aberto no rosto. Assim que ela se aproximou, foi logo dizendo, num tom de afeto travesso:

— Não consegui te abraçar no Château, Selton, mas agora posso. — e, sem hesitar, envolveu-o num abraço quente e verdadeiro.

— Você está maravilhosamente maravilhosa. Linda como sempre. — ele respondeu com aquele jeito expansivo e risonho.

Fernanda soltou uma risada, ajeitando os fios de cabelo que haviam escapado no abraço.

— Ah, nós três estamos. — lançou um olhar cúmplice para os dois. — Um trio de responsa, hein?!

Walter sorriu, discreto, os olhos iluminados por aquela cena que parecia, por um instante, suspender todo o peso da noite.

Mais adiante, Daniela Thomas, Andrucha e o restante da equipe se aproximavam. Alguns acenos, sorrisos, toques rápidos nos ombros. O clima entre todos era de celebração, mas também de contenção, pois sabiam que era a última passagem antes do inesperado.

Um funcionário da produção do Oscar se aproximou, com o característico headset no ouvido, sinalizando para que pudessem se dirigir ao teatro e tomar seus assentos. Walter fez um gesto sutil com a mão para que Fernanda seguisse à frente. E, caminhando lado a lado, ele não conteve a curiosidade:

— O que é que você tem aí? — perguntou, de olho no pequeno objeto que ela segurava com um cuidado quase ritual.

Fernanda sorriu, divertida, como quem preparava um golpe certeiro.

— Um Pikachu. — respondeu, como se fosse a coisa mais natural do mundo. — Um jornalista me deu, disse que era pra dar sorte. Um querido!

Walter arqueou levemente uma sobrancelha. Ficou um segundo em silêncio, como quem puxava um fio da memória.

— Ah... — murmurou, com um sorriso discreto, quase cúmplice. — Aquele bichinho que solta raio. Você disse uma vez, numa entrevista, que se sentia como ele. Foi a caminho da Comic Con, não foi?

Fernanda não demonstrou surpresa, mas por dentro sentiu um leve impacto. Não era qualquer um que lembrava desses detalhes. Não era qualquer um que assistia entrevistas dela com esse nível de atenção. Ela piscou devagar e sorriu, com uma ponta de ironia afetuosa.

— É… o bichinho que solta raio. — confirmou, agora com a voz mais baixa. — Boa memória, hein, Salles.

Walter deu de ombros, como se dissesse "é inevitável".

— Faz sentido. — completou Selton, com um sorriso largo. — A descrição é perfeita.

— Quando se trata de você… — respondeu para ela, com uma calma que escondia o quanto aquilo era verdade.

Selton, que vinha um passo atrás, observava tudo com um sorriso nos cantos da boca. Era sempre um espetáculo assistir aquele jogo subterrâneo entre os dois que era feito de palavras, silêncios e tudo que não se dizia. Fernanda apenas riu, balançando a cabeça. E os três, com aquela leve eletricidade no ar, seguiram em direção às portas douradas do teatro.

 

Adentraram no teatro. E por mais que as câmeras, o burburinho e o protocolo tentassem dizer que aquilo era só mais um grande evento… não era.  Era o Oscar.

Os olhos de Fernanda percorreram o espaço como quem tentava absorver tudo ao mesmo tempo, o dourado das colunas, o veludo vermelho das cortinas, o brilho quase líquido das luzes, que pareciam suspensas no ar. Cada detalhe parecia gritar um aviso silencioso: Você está aqui. Agora.

Selton ao lado também se permitia aquele encantamento discreto, os olhos atentos, um sorriso de quem não precisava esconder que estava vivendo um momento raro.

Walter, um passo atrás, observava os dois com carinho. Para ele, havia algo de déjà vu naquele cenário. Já havia atravessado aquele mar de luzes uma vez, na época de Central do Brasil, quando o mundo se abriu em câmera lenta diante dele.

Mas ali, vendo Fernanda e Selton maravilhados, se pegou sentindo um leve e bom tipo de inveja. Aquele brilho no olhar, aquela vertigem da primeira vez – era um frescor que ele, agora, só podia contemplar nos outros.

Foi quando pararam por um instante. Logo seriam guiados para os respectivos assentos, cada um em uma seção diferente do teatro. Era o último momento juntos antes da cerimônia começar. Walter se voltou para eles, a expressão comedida, mas os olhos, eles diziam tudo.

— Independentemente de qualquer coisa... — começou, a voz baixa, porém firme, para que fosse só deles. — Foi lindo. Vocês me ajudaram a atravessar essa viagem inteira. Se estamos aqui hoje... isso se deve a vocês. Sou imensamente grato.

Fernanda o encarou. Não havia formalidade ali. Era um agradecimento que vinha do osso. Engoliu em seco. Depois, sorriu pequeno, mas verdadeiro.

— O que tiver de ser, será. — disse, com aquela suavidade densa que só ela tinha.

Selton, que até então os observava com um carinho explícito, se adiantou. Segurou a mão dos dois, uma em cada lado, e repetiu como se fosse uma prece, como se selasse o pacto da noite:

— O que tiver de ser, será.

Fez uma pausa. E com aquele brilho teimoso de esperança nos olhos, completou:

— E será nosso.

Houve um instante de silêncio. O tipo de silêncio que não precisa de palavra alguma para vibrar no ar.

Fernanda e Walter se entreolharam. Ambos céticos, ambos atravessados por medos e lembranças demais. Mas naquela hora, por um breve e raro instante, a centelha de esperança passou pela alma deles. E quase como se obedecessem a um mesmo impulso, falaram juntos quase num sussurro:

— Será nosso.

Selton sorriu. Não porque eles dissessem, mas porque, naquele momento, sabia: aquilo vinha de um lugar fundo. De um desejo que atravessava a razão. Seguindo o protocolo da cerimônia, ele ficou localizado em um assento mais afastado do palco principal, Walter e Fernanda, por sua vez, seguiram mais adiante.

— Não gosto dessa logística do Oscar. — comentou ela, os olhos atentos ao caminho. — Todo mundo separado, espalhado em pontos estratégicos. Parece um jogo de xadrez.

Concordou com ela em silêncio. Estavam quase no nível do palco agora, ambos pararam e então ele verificou o cartão que estava em suas mãos.

— O meu lugar é aqui. Sétima fileira. — indicou com um gesto simples. — E o seu… — levantou os olhos para ela. — Terceira fileira. Um pouco mais à frente.

Ela assentiu e preparava-se para seguir quando ele se inclinou discretamente, com aquela ironia doce que lhe era natural:

— Se sentir falta de mim, é só olhar pra trás. Estarei um pouco distante. Não tão longe assim.

Fernanda revirou os olhos, mas o sorriso foi inevitável.

— Você é muito presunçoso, Salles. — provocou, com a voz tingida de carinho. — Mas… pra você não se preocupar, qualquer coisa eu recorro ao belo cavalheiro de lindos olhos verdes disfarçado de cineasta.

— Meus olhos são lindos mesmo? — caçoou, abaixando um pouco a cabeça, como se conspirasse com ela.

Ela revirou os olhos, com um fingido ar de exasperação:

— Desde que te conheço, Walter… você carrega esse par de olhos verdes que parece… — procurou a palavra certa, e então sorriu de leve — esmeralda. Um crime, na verdade. Chega a ser um crime a cor dos teus olhos.

Ele apenas sorriu. Mas um sorriso quente, um tanto orgulhoso e só para ela.

Já no momento de se separarem, Fernanda deu um passo em direção a ele. Walter a acolheu com naturalidade, as mãos pousando na cintura dela de um jeito possessivo, mas contido, como se dissesse: você é minha, mas eu sei que preciso soltar.

O abraço foi breve, mas inteiro.

E então, bem junto ao ouvido dela, a voz baixa, aveludada, que sempre lhe desarmava as defesas:

— Estarei torcendo por você, minha Honey Baby.

A frase atravessou o corpo de Fernanda. Como sempre fazia. Um arrepio denso. Porque ela sabia exatamente de onde aquele apelido vinha – da noite em Roterdã, em 1996, quando Terra Estrangeira fora exibido e ele, entre risos, alegria e ternura, a chamara assim pela primeira vez. Ele a tinha batizado com aquele apelido que, desde então, tinha o peso de um feitiço.

Mas ela também sabia responder.

Com um sorriso que carregava séculos de cumplicidade, olhou para ele e murmurou:

— E você, Dante... — o olhar agora grave, carregado de um afeto denso. — Espero que, enfim, chegue ao fim da tua jornada.

Walter a fitou, os olhos se acendendo, a voz saindo baixa e profunda, como quem dizia muito mais do que parecia:

— Se você lembra bem da história de A Divina Comédia, Nanda... Dante só terá êxito e paz de espírito se aquilo que lhe é mais precioso retornar a ele.

Ela soube. Soube o que ele queria dizer. E por um instante, quase não respirou.

Então, sem palavras, eles se despediram. Ela seguiu adiante, em direção ao seu assento na terceira fileira, sentindo o olhar dele queimando em suas costas. Walter não se moveu. Acompanhou com os olhos cada passo dela, até que ela se sentasse e, num gesto quase inconsciente, lançasse um último olhar por sobre o ombro, encontrando-o ainda ali — inteiro.

E ambos sabiam que naquele instante, nenhum prêmio no mundo parecia maior do que aquele fio invisível que os ligava.

 

Fernanda acomodou-se no assento reservado, deslizando a mão suavemente sobre o tecido aveludado da poltrona. O veludo vermelho sob seus pés, a luz âmbar recortando os contornos da plateia, as figuras imponentes e familiares — artistas, cineastas, lendas — compondo aquele cenário de magnitude quase mitológica. Estar ali ainda parecia uma dobra do tempo, uma realidade paralela em que tudo o que foi sonhado se condensava, por fim, em matéria.

Ela olhou em volta, devagar. Reconhecia rostos. Admirava trajetórias. Por um instante, sentiu-se pequena, não por insuficiência, mas por reverência. Era muita história reunida sob um mesmo teto.

Por um momento, permitiu-se apenas estar. Sentiu o corpo presente, a alma ansiosa, mas também uma parte de si olhando a cena de fora, como quem presencia o próprio sonho materializado. Foi aí que a lembrança a atravessou como um trovão.

Tio Paulo.

Lembrou da festa em família, há muitos anos, quando ela havia vencido Cannes. Tudo virava motivo de comemoração na casa dos Montenegro-Torres, e Fernanda havia sido a razão daquela celebração. Entre abraços e risos, ele a envolveu num gesto firme e emocionado, os olhos brilhando com aquele orgulho que só quem ama sem reservas consegue sustentar. E disse, entre o riso e a profecia:

— Um dia, quero te ver no Oscar.

Na época, Fernanda riu, cética e doce.

Não porque duvidasse de si, mas porque sabia, talvez melhor do que ninguém, o quanto era difícil. Não bastava ser talentosa. Era preciso ralar, persistir, abrir caminhos com as próprias mãos num país onde o ofício era mais batalha do que glória.

Agora ali, diante da imensidão daquele teatro, Fernanda sorriu com a lembrança. O peito se apertou. Era um aperto bom, doce, orgulhoso. E então, sussurrou baixinho para si mesma, quase como se ele ainda estivesse ali, ao seu lado:

— É, tio Paulo… você estaria orgulhoso de mim.

O pensamento ainda pairava quando sentiu o toque leve no ombro. Virou-se. Andrucha.

Ela lhe sorriu com gentileza, o tipo de sorriso que se cultiva com anos de convivência. Ele se sentou ao lado, ajeitando o paletó com um gesto automático, e lançou um olhar pelo teatro, como quem tentava compreender a coreografia do lugar.

— Tudo certo? — ele perguntou, olhando nos olhos dela, mas não atravessando.

— Tudo sim — respondeu, com o mesmo sorriso curto, a mesma civilidade.

— Estranho isso, né? — disse, em voz baixa. — Todo mundo separado… No Globo de Ouro era mais… junto. Todo mundo na mesma mesa.

— Comentei a mesma coisa com o Walter... — respondeu Fernanda, também em tom baixo, acompanhando com os olhos os últimos ajustes da produção no palco.

— Ah, sim — ele assentiu, breve, como quem registra algo e ao mesmo tempo evita o eco do nome.

Conversaram algumas frases a mais, coisas triviais, alinhadas às circunstâncias: elogios à organização da cerimônia, comentários sobre os filmes indicados, alguma menção sobre os filhos e o calor carioca. Mas havia um ar rarefeito entre os dois, como se o que não era dito ocupasse mais espaço do que qualquer palavra.

As luzes baixaram com delicadeza calculada, como se o teatro inteiro prendesse a respiração antes de ser tomado pela solenidade. Uma mudança quase imperceptível no ar, mas Fernanda sentiu no peito, no estômago, nas mãos que repousavam sobre o vestido com mais rigidez do que ela percebia.

Iria começar.

A cortina invisível da cerimônia se abriu, e o coração dela martelou. Havia três categorias para eles naquela noite. Três chances. Três cordas bamba.

Mas Fernanda, cética como sempre, realista por defesa, já havia convencido a si mesma de que duas estavam fora do alcance. Melhor Atriz estava fora de cogitação. Melhor Filme havia uma possibilidade, porém pequeníssima. Seu medo real, visceral, era pela décima oitava categoria da noite: Melhor Filme Internacional.

Ali, sim, havia esperança. Ali, sim, Walter poderia ser reconhecido. E o filme — aquele filme — teria a consagração que merecia. Mas ali também morava o medo.

Medo de não voltarem pra casa com nada.

Medo de vê-lo com aquele sorriso de aceitação polida, mas com os olhos opacos.

Medo de ter falhado.

Porque ele vivia dizendo que ela era a alma. Que sem ela o filme não pulsava. Que ela havia elevado tudo – a narrativa, o olhar, a estrutura.

E se não tivesse?

E se tivesse errado a mão, escolhido a nuance errada, respirado no tempo errado? E se não tivesse alcançado os corações que precisava alcançar?

A mente não parava.

Melhor Ator Coadjuvante.

Melhor Filme de Animação.

Melhor Curta de Animação.

 

Três prêmios. Três suspiros que não eram dela.

Ela aplaudia. Sorria. Mas o peito doía.

 

Melhor Figurino

Melhor Roteiro Original

Melhor Roteiro Adaptado.

 

Cada número era um passo mais perto da beira. Um degrau mais alto nessa escada vertiginosa.

Melhor Maquiagem

Melhor Montagem

Melhor Atriz Coadjuvante.

 

As mãos estavam frias agora. A cerimônia avançava para o décimo prêmio da noite, faltavam oito categorias.
Oito.

Melhor Direção de Produção

Melhor Canção Original

Melhor Curta Documentário

 

Décima segunda categoria tinha sido anunciada, Fernanda sentia o estômago mudar de lugar. O tempo parecia se arrastar com uma crueldade quase litúrgica. Ela não ouvia os nomes sendo ditos com clareza, mas tudo se embaralhava. Entre um prêmio técnico e outro, os dedos dela roçaram a barra do vestido, discretamente, num gesto quase infantil de conter a ansiedade. Era como se o corpo todo vibrasse em dualidade: esperança e pavor.

Melhor Documentário

Melhor Som

Melhores Efeitos Visuais

Estava se aproximando.

 

O host havia anunciado o intervalo. Era um break, um momento de recuperar o fôlego antes de seguirem para as etapas finais. Por alguns segundos, acreditou que daria tudo certo. Que haveria justiça e recompensa. Que aquele seria o fim de um ciclo de amor e trabalho. No segundo seguinte, achou que tudo desabaria. Que aquele seria o fim de outra coisa — mais íntima, mais oculta, mais devastadora. Olhou para trás. Queria vê-lo.

E viu.

Walter estava quatro fileiras acima, ao lado de Maria. Impecável. Impossível negar: ela era a imagem da elegância clássica, com um penteado perfeitamente preso, o conjunto de alfaiataria preto e a serenidade de quem sabia se portar em qualquer espaço.

Fernanda não soube dizer se foi Walter quem a procurou com o olhar primeiro, ou se os dois se encontraram no mesmo segundo. Mas encontraram. E naquele breve instante — talvez menos que um segundo inteiro — disseram o que não podiam dizer em voz alta.

Havia um silêncio partilhado entre eles que falava com exatidão. Ele viu a angústia nos olhos dela e, com um leve erguer de queixo e um meio sorriso que era mais suporte do que alegria, a tranquilizou. Ela, por sua vez, respondeu com um piscar lento e quase imperceptível, como se dissesse “Estou aqui.”

As luzes voltaram. O intervalo tinha terminado.

Faltavam dois.

Dois.

Seria anunciado Melhor Curta em Live Action e em seguida, Melhor Fotografia. O último anúncio antes de chegar a vez deles. O coração de Fernanda descompassou não de medo, mas de memória. Era assim que sua mente se defendia: corria para o único lugar onde o tempo era dela. Onde o corpo não tremia e a respiração encontrava um ritmo. Ela se abrigou na lembrança daquele café na Gávea em Janeiro de 2022.

Voltou ao instante em que dissera “sim” para viver Eunice. Na época, não sabia exatamente para quem estava dizendo sim – se para a personagem, para o filme… ou para ele. Talvez para os três.

Lembrou do set.

Do primeiro dia de gravações.

Do cuidado que Walter teve com ela desde o primeiro minuto.

Dos “com licença” e “por favor” ditos com ternura e convicção.

Do silêncio cúmplice entre uma tomada e outra.

Dos olhares que se encontravam quando nenhum dos dois tinha coragem de dizer o que estava atravessando por dentro.

Dos sorrisos curtos, contidos, mas cheios de passado.

Dos toques sutis — o ajuste de uma manga, um leve apoio nas costas, uma observação sussurrada no ouvido dela, uma mão que encostava na outra por acaso e que carregavam a densidade do oceano.

Melhor Fotografia.

Lembrou de Selton e das crianças. De Valentina e sua doçura intensa.

Lembrou de todos dançando no final de um dia de gravação, a energia leve que contrastava com o peso da história.

Lembrou de como Walter se atrapalhava ao tentar manter uma certa distância funcional e falhava com graça – porque ele sempre se aproximava um pouco mais do que pretendia.

Lembrou de como ele preparava o espaço para que ela pudesse florescer.

Lembrou daquele último dia de gravação, os dois na beira da praia.

O mar se estendendo à frente como se também assistisse em silêncio. Os pés afundados na areia úmida, as pernas molhadas até a canela, o vento salgado trazendo promessas antigas. A água ia e voltava, e eles também, como se o tempo os tivesse devolvido a si mesmos.

Ali, naquele intervalo de tempo, ela tinha sido feliz.

Viva.

Como se aquele filme – aquele tempo com ele – tivesse sido um presente. Um respiro raro. E agora, ela pensava, talvez fosse justo retribuir. Talvez, entregando esse prêmio a ele, estivesse também oferecendo o que tinha de mais sincero: gratidão.

Amor. Mesmo que não nomeado.

Um acerto entre almas.

E então, como num respiro que antecede o mergulho, o anúncio seguinte chegou.

Melhor Filme Internacional.

As luzes do palco suavizaram, e o som se acomodou como se o mundo inteiro estivesse prendendo o fôlego. O coração disparou. Não havia mais escudo. Não havia mais ensaio. O mundo agora cabia num envelope. Num nome. Num segundo. E ela sabia, sabia com o corpo, com o sangue que esse seria o instante que poderia mudar tudo.

Penélope Cruz surgiu no centro do palco, vestida com um branco elegante que parecia carregar a solenidade do momento. Os olhos escuros, brilhando sob os refletores, tinham a sobriedade de quem sabia o que aquele instante representava.

Buenas noches!  — disse, com aquele timbre aveludado em espanhol. — É uma honra estar aqui esta noite para apresentar o Oscar de Melhor Filme Internacional.

Na tela atrás dela, os indicados começaram a surgir, um a um, em ordem alfabética. Mas o primeiro título a aparecer foi aquele.

"Ainda Estou Aqui."

A imagem do enquadramento da família Paiva feliz na sorveteria tomou conta do telão. A voz de Walter em off, o rosto dela em cena. Fernanda sentiu o coração reverberar no peito, não como um tambor de guerra, mas como um sino em manhã de missa. Era como se, por um instante, tudo aquilo tivesse valido a pena. Toda a espera. Toda a dor.

Os demais indicados seguiram. Excelentes. Gigantes. Ela sabia. Mas ali, naquela noite, ela queria mais do que vitória. Queria justiça. Queria entrega. Queria Brasil. Queria ele.

A base católica que carregava desde criança se impôs como um reflexo. Orava para todos os santos da sua infância. Para todos os instantes do passado. A mente não dizia, mas o coração sussurrava:

“Por favor, por ele.

Para ele.”

Penélope segurava o envelope agora. A expectativa pairava, sólida como pedra. E então, ela rompeu o lacre. O som do papel rasgado foi quase um trovão no silêncio.

— E o Oscar vai para…

A pausa. A respiração contida do mundo inteiro.

Fernanda fechou os olhos por um segundo.

“Por favor. Para ele.”

I'm Still Here.

Foi como se o ar voltasse ao corpo. Não explodiu — inundou. O alívio percorreu os pulmões de Fernanda como uma onda quente, e os olhos se encheram antes mesmo que o sorriso completo encontrasse seu rosto. Era de Walter. Era do Brasil.

Ela se levantou com um ímpeto que era dela – de filha, de atriz, de mulher, de amor antigo. Todos aplaudiam. Ovacionavam. Selton levantou atrás, Dani Thomas batia palmas com a alma. Andrucha aplaudia com compostura. Mas Fernanda só tinha olhos para ele.

Ele vinha em direção a ela, com aquele sorriso contido e enigmático que sempre a atravessava.  Os dois braços apontados para ele, como se dissessem “É você. É todo seu”. O sorriso iluminava discretamente o caminho, mas os olhos… os olhos procuravam só um lugar: ela.

E então, Walter chegou.

O abraço foi um choque. O reencontro de dois corpos que conheciam o caminho um do outro. Ele a puxou com força, com precisão. A mão dele encontrou a cintura dela, como sempre encontrava, com aquele toque que era delicado e possessivo ao mesmo tempo. O rosto dele afundou no dela. Era o mundo inteiro ali, comprimido num instante de carne e silêncio.

— Eu te disse. — sussurrou Fernanda, com a voz embargada, atravessada de tudo o que não havia sido dito nos últimos 30 anos.

Fernanda fechou os olhos e o apertou mais. Mais forte do que devia, mas não mais do que precisava.

— É nosso. — Walter respondeu.

E naquele segundo, enquanto o mundo gritava em aplausos e a câmera tremia em flashes, eles estavam sozinhos. Dois em um. O sol e a terra reencontrando a órbita. Walter seguiu para o palco, mas ainda com o perfume dela na gola do paletó. Um vestígio, um relicário, uma presença. E Fernanda voltou ao seu lugar —inteira. Em paz. Porque tinha sido por ele. E por eles. Sentou-se devagar, como quem assenta o corpo depois de atravessar um terremoto.

Pela primeira vez naquela noite havia silêncio dentro dela. Não aquele silêncio da dúvida. Mas o silêncio da paz. Olhou em volta. A plateia aplaudia. Gente do mundo inteiro aplaudindo um filme brasileiro, uma história contada por vozes suas, filmada com sangue, suor, alma.

E ele.

Ele, ali em cima, recebendo com a sobriedade de quem sempre soube que cinema não se ganha — se vive.

E ela tinha vivido.
Com ele.
Por ele.

Sorriu. Não para ninguém, mas para si mesma. Um sorriso que começava devagar e nascia de dentro. E ali, naquela terceira fileira, de frente para o palco mais cobiçado do mundo, sentiu o improvável acontecer dentro do peito: felicidade.

E então murmurou, com a boca quase imóvel, mas com a alma totalmente extasiada:

— A vida presta.

E hoje... hoje ela presta pra cacete.

 

Notes:

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