Chapter Text
O som abafado de risadas se espalhava pela Vanguarda — ou melhor, pelo velho galpão que os Jovens Vingadores tinham escolhido como base secreta. Por fora, era apenas mais um prédio esquecido nos cantos industrializados de Nova York, com janelas quebradas, grafites apagados e um portão de metal que rangia quando o vento batia. O tipo de lugar que todo mundo ignorava.
E era justamente isso que tornava o interior tão surpreendente.
Lá dentro, o espaço parecia moldado por sonhos adolescentes com orçamento limitado, mas criatividade infinita. Cortinas improvisadas com lençóis coloridos dividiam áreas. Equipamentos de treino ocupavam um canto: sacos de areia, pesos, um manequim de combate com o capacete do Capitão América desenhado à caneta. Do outro lado, almofadas e pufes disputavam território com controles de videogame, copos de refrigerante e sacos vazios de salgadinhos.
No meio disso tudo, Kate Bishop sentava-se no peitoril largo de uma janela interna, observando o caos com uma caneca de café frio nas mãos e um peso invisível nos ombros.
Ela fingia que estava apenas vigiando, mas na verdade estava pensando demais. Como sempre. Cassie dizia que ela nunca se calava — nem mesmo em pensamentos. Talvez fosse verdade.
Três anos. Três anos desde que sua vida virou do avesso. Desde que sua mãe foi presa. Desde que enfrentou a máfia do agasalho no Natal. Desde que conheceu Clint Barton. Desde que duelou contra uma assassina russa mortal, intensamente complicada, surpreendentemente cativante e… linda. Perigosamente linda.
Kate afundou um pouco mais no suéter largo que vestia, o olhar perdido entre Kamala e Tommy, que discutiam alguma coisa sobre quem era melhor no Mario Kart. Kamala gesticulava como se estivesse argumentando num tribunal. Tommy só revirava os olhos, rindo.
Era reconfortante assistir àquilo. Familiar. Humano. Algo que ela não sentia desde a prisão da mãe — uma ferida que ainda estava cicatrizando.
Mas não impedia a sensação de deslocamento que às vezes tomava conta de Kate. Como agora.
Ela tinha tudo o que sempre quis — ou quase tudo. Uma equipe. Um codinome. Um arco. Um cachorro. Um cargo que a colocava no comando de uma empresa de segurança. Uma base secreta com nome estiloso. Pessoas que confiavam nela.
E, mesmo assim, havia momentos como este, em que ela se sentia uma fraude vestindo uma fantasia. Uma criança.
Líder. Que piada.
Ela não se sentia líder de coisa nenhuma. Era só... Kate. A garota que adorava filmes de ação, que sonhava ser heroína desde os nove anos, que treinou até cair, que deu tudo de si — mas que, por dentro, ainda tinha vinte e cinco anos e nenhuma ideia do que estava fazendo com a própria vida. Quem pensou que seria uma boa ideia fazê-la líder de um grupo de adolescentes eufóricos e hormonais?
Ela tentou não pensar em Clint. De verdade. Tentou parar de checar o celular toda noite, esperando alguma mensagem sarcástica, algum conselho velado, algum lembrete de que não estava sozinha. Mas ele estava cada vez mais distante. Talvez porque confiasse nela. Ou talvez porque estivesse cansado. Kate não podia culpá-lo.
E então havia Yelena.
A lembrança da assassina loira a invadiu com força. Não só pela tensão das lutas, mas pelo que veio depois — os olhares e comentários trocados, os sorrisos, os encontros em seu apartamento, a forma como Yelena sempre se dirigia a ela pelo nome completo com aquele sotaque rouco, mas cheio de carinho.
Kate tinha se sentido pequena diante dela. Mas também... viva.
E agora, ela não fazia ideia de onde Yelena estava. Se estava bem. Se pensava nela. Provavelmente não. Ela era apenas a protegida de Clint Barton. Uma amizade passageira… Um beijo que não devia ter acontecido.
A caneca estava quase vazia, e ainda assim, ela a segurava como um escudo. Lucky subiu devagar até o parapeito e encostou o focinho na coxa de Kate, como se soubesse que ela estava mergulhada demais nos próprios pensamentos.
Ela sorriu com ternura, passando os dedos pelas orelhas dele.
“Você é o único que nunca vai me abandonar, né, Lucky?”
Do outro lado da base, Billy estava sentado no chão com um livro velho e pesado no colo. O grimório parecia respirar junto com ele, suas páginas carregadas de energia mágica que mesmo quem não era sensível sentia vibrar no ar. Seu olhar era sério.
Peter e Cassie estavam mexendo em um aparelho improvisado com restos de drones e fios de teia — provavelmente um novo sistema de defesa.
America socava o saco de areia com precisão quase meditativa.
Kamala agora discutia com Tommy sobre qual sabor de milk-shake era mais digno de super-heróis. O assunto tinha escalado para um debate sobre baunilha ser “sem graça” ou “clássica”.
Kate soltou um riso baixo, mas ele não durou.
O que estou fazendo aqui?
A pergunta surgiu sem aviso, afiada e cruel.
Será que todos ali estavam mesmo prontos para a responsabilidade do nome Vingadores? Será que estavam apenas seguindo sonhos infantis?
“Kate!” A voz de Kamala a trouxe de volta com um sobressalto.
“Hã? Que foi? Não fui eu!”
“O Billy tá falando de um ritual mágico sinistro e a gente precisa de uma adulta responsável.”
“Como se vocês me ouvissem…” Ela riu, saindo do parapeito e se aproximando dos demais. “Billy, eu não quero ser perseguida pelo Freddy Krueger. Nada de rituais macabros na Vanguarda. Ainda estou pagando minhas flechas novas.”
Billy levantou-se, hesitante, segurando o grimório com delicadeza.
“É um ritual de conexão espiritual. Capaz de encontrar qualquer pessoa, em qualquer lugar do planeta.” Ele olhou diretamente para Kate, os olhos cheios de esperança contida.
Por um instante, ninguém disse nada.
O silêncio caiu como um cobertor pesado sobre a base. Mesmo Tommy parou a discussão com Kamala, virando-se na direção do irmão com uma expressão que misturava ceticismo e... desejo. O desejo de acreditar.
Kate cruzou os braços, observando Billy. Ele parecia mais velho ali. Mais determinado. O livro pulsava em suas mãos com uma energia que ela não entendia, mas respeitava.
“Você quer tentar encontrar sua mãe.” Ela disse, sem rodeios.
Billy assentiu. “Acho que ela ainda está viva. Em algum lugar. E... se ela estiver tentando se esconder, talvez essa seja a única forma de alcançá-la.”
Tommy bufou, mas seu menosprezo soou fraco. “E se não for? E se for uma armadilha? Magia não é tipo... confiar no Wi-Fi da vizinha. Pode dar muito errado.”
“Eu sei.” Billy respondeu, a voz baixa. “Mas se houver uma chance, mesmo que mínima, eu preciso tentar. A gente precisa.”
America se aproximou, cruzando os braços também. “Qual o risco?”
Billy folheou algumas páginas, lendo rápido. “O feitiço exige concentração. Um círculo mágico. Algumas palavras em latim antigo. Nada que eu já não tenha feito antes.” Ele fez uma pausa, hesitando. “Mas... pode chamar atenção. Se alguém estiver tentando esconder Wanda com magia, esse tipo de ritual pode atrair olhares indesejados.”
Kamala franziu o cenho. “Tipo... vilões? Magos do mal?”
“Ou algo pior.” murmurou Billy.
Kate inspirou fundo, massageando as têmporas. Sua cabeça latejava. Ela queria dizer não — por segurança, por responsabilidade, por puro medo. Mas então olhou ao redor.
Tommy, tentando disfarçar a ansiedade com piadas. Kamala e America, firmes. Peter, atento ao que todos diziam. Cassie, já começando a afastar almofadas para abrir espaço. E Billy... com aquele olhar.
Esperança, dor e determinação misturados em um só.
“Se vamos fazer isso...” Ela disse por enfim. “Vai ser com todo o cuidado. Nenhum passo sem me avisar. Nenhuma frase em latim sem minha autorização. E se o chão começar a brilhar ou alguém desmaiar, eu encerro a sessão.”
“Combinado.” Billy disse com um pequeno sorriso.
“E se um portal do inferno se abrir…” murmurou Tommy. “Eu grito primeiro.”
“Você sempre grita primeiro.” disse Kamala, empurrando ele de leve.
Enquanto eles riam, nervosos mas unidos, Kate recuou um pouco, observando o grupo que tinha chamado de time. Eles não eram perfeitos. Longe disso. Mas talvez, só talvez... fossem exatamente o que o mundo precisava.
Ou pelo menos o que ela precisava.
Billy sentou-se novamente no centro do círculo depois de explicar como funcionava o ritual, com o grimório aberto à sua frente. Seus dedos percorreram as páginas amareladas até pararem em um símbolo gravado com tinta escura e rústica — uma estrela de oito pontas dentro de um círculo, cercada por runas que tremulavam levemente, como se fossem escritas com fumaça.
“Todos prontos?” Ele perguntou, a voz mais firme do que seus olhos deixavam transparecer. A ansiedade dele era contagiante.
Cada um dos Jovens Vingadores pegou uma vela e ocupou uma posição ao redor do círculo. As chamas tremeluziam mesmo sem vento, como se já sentissem a aproximação de algo maior. Kate pegou a dela por último, acendendo com um isqueiro roxo de caveirinha que provavelmente era da America.
“Okay, isso tá parecendo cena deletada de Buffy, a Caça-Vampiros .” Murmurou Peter, enquanto se sentava ao lado de Kamala.
“Eu amo essa série!” Disse Cassie, do outro lado de Kamala.
“Se o ritual invocar um demônio, eu posso socar ele, né?” America perguntou, casual, como quem pergunta se pode pegar o último pedaço de pizza.
Billy não respondeu. Seus olhos já estavam fechados, e seus lábios murmuravam a língua antiga do feitiço. O ar mudou. Ficou mais denso. Mais elétrico. Como o momento exato antes de uma tempestade.
As chamas das velas aumentaram em sincronia, esticando-se para o teto como se tentassem tocar o firmamento. Linhas de luz dourada começaram a brilhar sob os pés deles, traçando lentamente o símbolo do grimório ao redor de Billy.
Kate observava, fascinada, a maneira como os fios de energia mágica pareciam conectar todos no círculo, como veias de luz. A vela em sua mão estava estranhamente quente, mas não a queimava. Havia algo... vibrando dentro dela. Algo além do ritual.
Enquanto seus olhos se perdiam nas chamas, sua mente começou a vagar novamente — maldita mente hiperativa .
Ela pensou em Billy. Em sua dor contida, em sua esperança desesperada. Era fácil esquecer que ele ainda era um adolescente quando se carregava tanto poder nos ombros. Ele estava tentando se reconectar com a mãe que todos achavam perdida para sempre. Isso exigia coragem. Amor. Fé.
E ela?
Se fosse com ela… quem tentaria alcançar?
A resposta surgiu sem esforço. Como se estivesse sempre ali.
Yelena.
Kate mordeu o lábio, desconfortável. Ela não via a loira desde... desde aquela noite. Desde que tudo acabou.
Kate sacudiu a cabeça, tentando afastar esses pensamentos. Foco, Kate… Você é a líder dos Jovens Vingadores. Foco!
Uma lembrança se fixou em sua mente.
E o que essa palavra significa?
A voz de Yelena soou em sua cabeça, trazendo de volta as lembranças daquela primeira noite em seu apartamento.
A minha irmã morreu por causa dele... Ela foi um dano colateral?
Foi nesse momento que a vela na mão de Kate tremeu, como se um vento invisível estivesse soprando sobre ela. A chama balançou... e mudou. Sua cor se alterou de laranja para um azul profundo e intenso, como o brilho do gelo sob a luz da lua.
E, por um instante que durou o tempo de um suspiro, ela viu.
A silhueta de uma mulher dentro da chama. Ombros largos. Cabelos ruivos. Ela parecia se aproximar.
Kate piscou, engolindo em seco. “Billy…”
Mas não conseguiu terminar.
Um estrondo cortou o ar como o bater de asas de uma criatura mitológica. Um turbilhão se formou no centro do círculo, levantando papéis, almofadas, poeira — e o pobre Lucky, que se escondeu atrás do sofá. As velas apagaram ao mesmo tempo. As linhas de luz explodiram como vidro se estilhaçando, e todos foram lançados para longe como bonecos de pano.
Kate caiu de costas contra o tatame do canto, o ar fugindo de seus pulmões. Sua cabeça girava. Seu coração batia como um tambor em pânico.
O silêncio seguinte foi ensurdecedor.
Peter se ergueu tossindo, com teia grudada no próprio rosto. “Status: parcialmente vivo.”
Kamala ajudou Tommy a se levantar, enquanto Cassie segurava a vela apagada, agora rachada ao meio. America já estava em pé, olhando ao redor como se esperasse um ataque vindo das sombras.
Billy ainda estava no centro, ajoelhado, o grimório fechado e quieto. Ele parecia esgotado. Frustrado. E, acima de tudo, triste.
“Não funcionou.” Ele sussurrou, a voz abafada pela decepção. “Eu achei que... eu senti que estava perto...”
“Ei, calma.” Kamala se ajoelhou ao lado dele, apertando seu ombro. “Foi incrível. E assustador. Mas a gente vai continuar tentando.”
“Ela tá lá fora, Billy.” Disse Cassie. “A Wanda. Você vai encontrá-la. Juro.”
Os outros murmúrios de apoio seguiram, um por um. Kate também se aproximou, ajoelhando ao lado do grupo, e colocou a mão sobre a de Billy.
“Você tem a gente.” Disse com suavidade. “E nós não vamos desistir de você.”
Billy tentou sorrir, mas seus olhos estavam marejados.
Aos poucos, o grupo foi se dispersando, reorganizando as almofadas e recolhendo os copos virados. Parecia que o momento havia passado, e com ele, a esperança do feitiço funcionar.
Mas Kate ainda sentia algo.
Um arrepio sutil em sua pele. Como estática. Como o eco de algo que permanecia.
Dentro dela.
Ela levou a mão ao peito, como se pudesse tocar a sensação. Era suave, mas pulsante. Quente e fria ao mesmo tempo. Como um segredo sussurrado em outra língua.
Ela não disse nada. Devia ser só o cansaço. Talvez o choque.
Talvez…
Talvez não fosse nada.
Uma sombra silenciosa se formou no canto da memória.
Não Yelena. Não essa Viúva.
Alguém mais antiga.
Mais... lendária.
A figura que Clint nunca conseguia mencionar sem que a voz falhasse.
Uma pessoa que Kate queria muito ter conhecido.