Chapter Text
Pra cima
Asgard II fervilhava de calor naquela tarde de céu limpo. O som do redstone vibrando pelos trilhos, os pistões comprimindo estruturas secretas e o barulho rítmico dos martelos ecoavam pelos corredores. Uma jaqueta estilo aviador chamuscada e parcialmente rasgada repousava sobre uma cadeira empoeirada do dormitório, essa jaqueta a qual pertencia ao garoto de 11 anos, magricela, descalço e com um par de óculos de proteção enormes no topo do chapéu de ferro com orelhas de gato, de correr aos pulos pelo pátio com um plano insano em mente e um cachecol voando ao vento.
- SATO! SAAAATO, VEM CÁ!
Berrou ele, derrapando ao fazer uma curva entre dois pilares de obsidiana. Se direcionando a sala de reuniões e comando.
- FUNCIONOU NO PAPEL! TEM QUE FUNCIONAR NA VIDA REAL!
Sato ergueu os olhos do mapa de recursos do armazém e suspirou com um sorriso discreto, a máscara repousando sobre a mesa mostrando o rosto cançado do homem negro e alto. A capa cobria parte dos ombros totalmente parada ao que o vento não entrava na sala. Fit estava coberto de carvão, com os cachos espetados e olhos atentos, as mangas arregaçadas até os ombros e os braços todos rabiscados com caneta: cálculos de impulso, ângulos de decolagem, setinhas e palavras todas juntas como "eixodobrafluidorredstoneasa23+9=√9". Ele tremia de empolgação mechendo o corpo de um lado para o outro enquanto estralava os dedos inconscientemente.
- Respira primeiro. E depois me explica.
Disse Sato, abaixando-se ao nível dos olhos do menino.
Fit inspirou tão fundo que quase perdeu o equilíbrio para trás. Depois soltou tudo de uma vez e falou numa velocidade tão rápida que Sato foi lentamente ficando boquiaberto ao tentar entender o que o molequinho falava:
- Eu peguei aquele carrinho de mina quebrado, consertei, aí adaptei com aquele pedaço da hélice do Xcc2 que você deixou no laboratório! E acoplei uma asa que eu modelei em pedra de obsidiana porque o peso dela dá o impulso descendente que... é... tipo um mergulho! MAS! Se tiver vento lateral, eu consigo planar por cima do telhado da fornalha central!
- Você vai pular do telhado da fornalha central?
- Sim!
Fit respondeu com o maior sorriso do mundo, os olhos verdes brilhando.
- Já calculei o vento e tudo!
Sato olhou em volta analisado. Ninguém por perto. Ele cruzou os braços, assentiu revirando os olhos.
- Mostra. Mas não pula sem eu estar lá embaixo. E sem capacete, nem pensar.
Fit deu um pulo e saiu correndo de novo.
________
Na parte mais alta da torre da fornalha de Asgard II, entre canos fumegantes e passagens estreitas, estava montado o "protótipo": um carrinho de mina cortado ao meio com uma cadeira de ferro soldada em cima, e duas asas de pedra polida amarradas com cordas de linho e... *fio dental*. Sim, fio dental.
Fit sentou no assento com orgulho, girando os controles (um bastão com botões que ele mesmo tinha soldado). Estava tão focado que não parava de mexer os pés para frente e para trás, batendo o calcanhar no ferro ritmicamente. Os lábios murmuravam baixinho:
- Vooooom... shkkkk... aproximação a 23 graus... torre de controle aqui é o Fit...
Ele repetia sons e frases da cabeça como se estivesse em outro mundo. E, de certa forma, estava. No próprio filme de ação em sua mente ele carregava uma tripulação fugindo de um monstro. Tinha de fazer um grande salto com um avião na galáxia. E um detalhe importante é que ele sempre se imaginava como um daqueles pilotos de filmes de guerra, carregando uma foto da família na carteira.
Sato assistia da parte de baixo, com o walkie velho e quase quebrado preso no ombro e a mão já posicionada para ativar o colchão de feno e slime que ele havia colocado disfarçadamente lá embaixo. porque confiava em Fit, mas não *tanto* assim.
- Pronto, Capitão Sato86 da torre de controle?
A voz de Fit veio pelo rádio. Ele fingia um tom sério e falava como se estivesse em um dos filmes de ação que ouvia pelo rádio quando a frequência captava as das dimensões mais próximas.
— Pronto, piloto Fit. Autorizado para decolagem.
Sato levou a mão a cabeça em posição de sentido, como se fosse um grande soldado.
O menino apertou o botão e... nada aconteceu.
Ele fez uma careta, deu dois tapinhas no painel e resmungou alto:
— SÓ FUNCIONA QUANDO NÃO É PRA FUNCIONAR, NÉ?
Depois se levantou, começou a pular com o carrinho para ver se pegava impulso. Por algum motivo ainda não explicado, o fato da ação não ter dado o conforto que Fit esperava fez o garoto se frustrar. O humor pareceu mudar tão derrepente quando um click ao ligar uma lâmpada. Ele tinha uma regra mental inconsciente: Ele ia voar, precisava, custe o que custar.
Sato assistia de braços cruzados, tentando não rir.
Até que...
*VRUUUUMMMM!*
Uma corrente de vento bateu com força e o carrinho disparou pela rampa improvisada. Fit gritou não de medo, mas de pura adrenalina:
— EU TÔ VOANDO! EU TÔ VOAND-!
*"PLÁC!"*
O impacto foi suave, graças ao colchão de slime. Fit quicou, girou no ar e caiu de costas com uma risada alta, daquelas que vinham do peito e dos joelhos arranhados.
- TÔ VIVO!
Gritou ele, com os olhos arregalados de empolgação, ainda deitado no chão com o chapeuzinho caído para cima do rosto.
- EU VOEI! CÊ VIU, SENHOR SATO? EU VOEI!
Sato caminhou até ele, ofereceu a mão. Fit aceitou, mas levantou sozinho, sacudindo o cabelo, ajeitando os óculos de proteção e o chapeuzinho e tirando carvão do nariz. O cachecol verde levemente solto no pescoço e frouxo por conta do vento e da queda
- Você tem mesmo uma alma de piloto, pivete.
- Um dia eu vou construir um avião tão grande que vai dar pra levar Valkyria inteira, vai ter até o símbolo da águia na parede. E vamos embora daqui, só voando! Vamos embora antes da próxima incursão, é! Eu, você, Xcc2, até o Kinorama se elu quiser vir!
- E pra onde a gente vai?
Fit olhou o horizonte. O sol começava a descer, dourando tudo. Ele sorriu grande, os olhos esmeralda refletindo o amarelo do astro rei que se punha. Ergueu a mão direita para o céu como se quisesse pegar a da mãe.
- Pra cima.
Sato riu. Assentindo.
- Você é uma dor de cabeça constante.
Ele desarrumou o capacete do pivete o puxando pra baixo só para estressar a criança. Começando a sair andando rumo a sala de reuniões de novo.
- Eu sei.
Fit respondeu com orgulho, mordendo a manga da blusa e puxando de novo o bloquinho de papel, já rabiscando a versão 2.0 do plano mirabolante, os pés inquietos, os sons de avião sussurrando nos lábios como um hino secreto. Logo começou a escrever o próximo roteiro para sua transmissão de rádio, ele não sabia se alguém o ouviria.
Ele não sabia se alguém realmente entendia o perigo do mundo em que ele teve o azar de nascer, mas tem a glória de sobreviver. Ele não sabe se os sonhos são importantes pra mais alguém... Talvez ele fosse sapeca, energético, *diferente*, um furacão, uma chama que não se apaga. Ele não sabe o próprio lugar na *terra*, mas sabe que um dia vai ter o abrigo do céu.