Chapter 1: A Promessa do Dragão e da Lua
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Diziam que Fengxian havia seduzido meio império com um olhar.
O problema é que, naquela noite de verão, o outro meio estava reunido na mesma sala e o homem mais difícil de dobrar, Lakan, "A Raposa Branca da guerra", a observava em silêncio pela primeira vez.
O general tinha fama de coração gelado e ela, de ser uma chama disfarçada em perfume.
Os membros do Clã Kan não contavam os detalhes, mas todos sabiam que, uma cortesã da Casa Verdete e um estrategista imperial se casaram, pelo motivo de que o império não havia conseguido impedir a união. Lakan desafiou tradições e Fengxian recusou títulos de concubina e, quando enfim a união foi reconhecida, o Clã Kan, já influente, se tornou intransponível.
Kan Maomao e Kan Lahan nasceram no fim do outono, sob o céu de nuvens rasgadas e o perfume fresco das folhas em queda. O choro de Maomao foi breve, quase meticuloso, e seus olhos pareciam medir o mundo com desconfiança, desde o berço, rejeitava toques, abraços ou carinhos prolongados, um contraste absoluto com Lahan, que se agarrava ao colo da mãe como se cada segundo longe dela fosse insuportável.
Cresceram em um lar onde os jantares vinham com debates filosóficos e as manhãs eram preenchidas com estratégias de cerco desenhadas sobre papel de arroz. O clã dizia que Maomao fora moldada como uma joia, não para brilhar, mas para cortar, já Lahan, desde cedo, era visto como o herdeiro estratégico que Lakan desejava: um guerreiro com cérebro, criado para sustentar o nome da família como um pilar bem fincado.
Filhos de uma ex-cortesã e de um general de elite, Maomao e Lahan herdaram o melhor e o pior dos dois mundos: a mente analítica de Lakan e a beleza perigosa, afiada como um leque de aço, de FengXian.
— Está torta. — disse Lakan certa vez, ao vê-la desenhar os ventos dominantes no mapa do sul.
Ela não protestou, apagou, refez e aprendeu.
FengXian, por outro lado, ensinou-lhes a ler o mundo pelas entrelinhas: a reverência falsa, a traição em um gesto delicado, e como dizer três coisas diferentes com uma única frase bem dobrada.
Lahan era o oposto da irmã: alegre, falante, vaidoso e teatral, era ele quem a arrastava para ver peças de teatro, quem inventava jogos de enigmas políticos nos almoços e quem se sentava ao seu lado nos dias em que as pressões da linhagem pesavam demais sobre seus ombros ainda infantis.
Maomao, no entanto, era como uma flor cultivada no meio da neve: silenciosa, bela e repleta de espinhos. Preferia livros e a jardinagem, do que as grandes festas e danças, embora apreciasse música e banquetes em silêncio como se fosse parte deles, mas acima deles. A "Princesa da casa", como diziam os servos, uma cópia melhorada da mãe, segundo Lakan, mas para FengXian, ela era apenas... uma garotinha perigosa.
Apesar das diferenças, os gêmeos eram unidos, unidos como duas lâminas dentro do mesmo estojo.
O problema era quando essas lâminas se atritavam.
FengXian perdeu a conta das vezes que teve que intervir, as brigas entre os filhos não eram inocentes; eram intelectuais com consequências físicas e Lahan, mesmo sendo o menino, não hesitava em se defender com a mesma brutalidade que Maomao usava para atacar.
Jardim dos fundos — Residência do Clã Kan
As cigarras gritavam como demônios em transe, e o calor da tarde fazia o chão de terra batida soltar um cheiro seco de poeira quente. Sob a sombra das amoreiras, folhas caíam como confetes preguiçosos, cobrindo o que já se tornara um campo de batalha particular dos gêmeos Kan.
Maomao, sentada de pernas cruzadas, moía ervas secas com uma pedra, a expressão impassível de uma pequena general que já havia vencido guerras em pensamento. À frente, Lahan empilhava pedras como se fossem tropas em formação.
— Se você disser que o Primeiro Ministro não era culpado, juro que arranco sua língua e prego na porta de um altar ancestral. — murmurou Maomao, sem tirar os olhos da mistura.
— Ele só seguiu ordens! Estratégia política, você que é obtusa! — rebateu Lahan, erguendo os braços como um ator de ópera dramática.
Maomao ergueu os olhos, com um sorriso que gelaria o sangue de qualquer adulto.
— Escolha sua sentença de morte: pedra ou terra? — ameaçou o irmão com um sorriso sutil no rosto.
— Você é insana.
— E você é burro com entusiasmo, já é algo.
Lahan pegou uma pedra e lançou, errou por pouco.
Maomao nem se mexeu, apenas lambeu o dedo, pegou uma bolota de barro e moldou com precisão cirúrgica.
A ponta da língua escapava no canto da boca, estava concentrada, sua mira era mortal.
Três pedras depois, Lahan já corria em círculos, em pânico:
— PAAAIII! MÃÃÃEEE! ELA VAI ME MATAR!
— Chama de novo, e eu te enfio essa raiz onde nem a medicina ancestral alcança. — ela gritou, brandindo uma raiz torcida como se fosse um punhal sagrado.
Ele tropeçou, caiu de cara na terra.
Maomao saltou sobre ele como uma sombra vingativa.
— Diz que eu estava certa.
— Você devia viver num templo abandonado com crânios e gatos mortos.
— Que ótima ideia, — sussurrou ela, entediada. — Mas primeiro... vamos testar quanto tempo leva até a sujeira entrar pelo nariz e sair pela orelha.
Começou a enterrar o rosto dele com terra, metódica, silenciosa, quase serena.
Ria sozinha, com um brilho sádico nos olhos.
— Agora meu irmão, você está respirando História, literalmente.
— MMMRFF!
Lahan se debatia, mas ela cravou os joelhos nos ombros dele como uma rocha viva.
— Você é meu irmão, então não tem permissão pra morrer. Entendido?
Foi então que um grito rasgou o ar:
— O QUE É QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI?! — FengXian apareceu correndo, o hanfu desalinhado e o leque pendendo da mão.
Ela puxou Maomao pelas axilas como quem salva um criminoso do próprio crime.
— Ele me chamou de estúpida e errou o enigma.
— Ela me enfiou uma minhoca na boca, mãe. Uma minhoca!
FengXian olhou para os dois, depois para o céu, como se esperando que algum ancestral a arrebatasse.
— Eu devia ter continuado como cortesã... Pelo menos os nobres só brigavam na cama. — murmurou de forma quase inaudível.
Maomao, de braços cruzados, lambeu o polegar sujo com um ar de estudo:
— A terra está mais salgada que ontem. Será que o solo tá absorvendo o suor do Lahan?
O menino estremeceu.
— Você precisa de um exorcismo...
— E você de um enema cerebral. — rebateu Maomao, afastando-se com a dignidade de um imperador.
Lahan olhou para a mãe, com lama na boca e lágrimas nos olhos:
— Ela vai dominar o mundo, mãe...
— E você vai ser o primeiro a morrer se continuar provocando sua irmã. — respondeu FengXian com a naturalidade de quem narra o destino.
Foi naquele dia, entre terra, gritos e ameaças poéticas, que FengXian e Lakan perceberam com clareza algo que o clã ainda levaria anos para admitir: Maomao não havia sido feita para brilhar... mas para destruir com elegância.
[. . .]
14 anos mais tarde.
Residência do Clã Kan — A casa do da Serpente e do dragão
Naquela manhã, o pavilhão dos banhos do clã Kan parecia suspenso no tempo.
O vapor subia lentamente pelas paredes entalhadas em madeira escura, serpenteando entre as ranhuras de dragões e flores de ameixeira como se os próprios deuses respirassem ali. Pétalas flutuavam preguiçosamente sobre a superfície da água, tingindo o ofurô de rosa e nostalgia.
Maomao afundava os ombros com lentidão, como quem calculava a profundidade exata onde corpo e pensamento se equilibram. Os cabelos longos, agora de um tom verde-escuro polido como jade molhada, espalhavam-se sobre a água como uma hera viva, os olhos azuis estavam semicerrados, não em tédio, mas em análise.
Não era o banho que detestava, era o tempo de inércia que ele exigia.
Sentada a uma distância respeitosa, uma das servas recitava os compromissos do dia, a voz baixa, treinada para não distrair:
— A Senhora Qiao, da casa do chá, trará seu filho. A governanta Ying enviou cerejas frescas da capital. O mestre Yan marcou encontro para a nona hora. O oficial Song solicitou uma audiência privada...
Maomao passou os dedos molhados pela lateral do pescoço, onde um traço de calor ainda pulsava, cada movimento seu parecia ensaiado, mas não para seduzir e sim para dominar como quem conhece os olhos que a observam, mesmo quando está sozinha.
— ...o Conselho das Províncias quer resposta até o fim da semana... — murmurou a serva.
Mas Maomao já não escutava, sua mente viajava pelo conteúdo da última carta de Lakan, que falava sobre o impasse naval no sul, os portos bloqueados, os mercadores insatisfeitos e um suposto colapso iminente entre as Três Províncias.
"Estão testando quem vacila primeiro" pensou, os olhos fitando uma pétala murcha, prestes a afundar.
Ela a empurrou suavemente com o dedo, vendo-a girar em círculos antes de sumir sob a espuma leve.
Tudo era uma questão de tensão, de observar quem cede, de aplicar pressão nos pontos certos, como em um corpo ou em uma mesa de negociações.
— As cerejas são um agrado ou um aviso? — perguntou sem olhar, em tom brando.
A serva piscou, confusa.
— Senhora?
Maomao então olhou para ela, como se seus olhos pudessem decifrar mais do que as palavras.
— Cerejas fora de época. É Um gasto incomum... para uma governanta econômica, ou ela está querendo se desculpar... ou se aproximar de alguém que teme, verifique com quem ela esteve em jantares nos últimos cinco dias.
— Sim, senhora.
A jovem desapareceu quase sem ruído, e Maomao fechou os olhos novamente.
A água estava morna, quente o suficiente para fazer o corpo relaxar, mas não a ponto de fazê-la esquecer que o mundo lá fora era uma rede de espelhos quebrados e ela, o fio que os costura.
Ao longe, o som de uma flauta solitária cortava o pátio, um som melancólico, quase masculino.
Ela abriu um olho, sorriu de lado.
Lahan estaria de volta em breve e a peça voltaria ao tablado.
Pouco depois do banho Maomao caminhava pelo corredor polido, a seda cor de ameixa dançando discretamente sobre os tornozelos. Os cabelos, ainda úmidos, estavam presos em uma trança frouxa, pesada como uma serpente adormecida sobre suas costas. A pele ainda guardava o calor do banho, mas o rosto já vestia a neutralidade necessária.
Na entrada da sala de chá, Lahan esperava, inclinado levemente como quem aguarda o início de um espetáculo.
— A Senhora Qiao está aqui com o filho. — anunciou em voz baixa, os olhos analisando a irmã da cabeça aos pés. — Você parece uma armadilha de primavera.
— E você como sempre parece um poema inacabado. — Maomao ergueu uma sobrancelha. — Cuidado, Lahan, quando sorri demais, é porque está escondendo algo e espero não ter surpresas desagradáveis.
— Estou apenas curioso para ver o que fará com ele, dizem que é bonito, mas um tolo.
Maomao revirou os olhos fazendo um sinal com as mãos para que os servos guiassem a Senhora Qiao até a sala, a mulher ajeitou o penteado apressada com as mãos trêmulas, o filho, era um jovem de traços delicados e olhos um tanto vaidosos, curvou-se com elegância ensaiada.
"Ele parece uma ninfa, seria mais apropriado se fosse mulher, com certeza seria feito de cortesã se estivesse exilado em vila com outros homens, claramente não sobreviveria, é delicado demais, pouco másculo e nem ao menos tem uma presença marcante.", Maomao pensou de forma rápida enquanto analisava o homem de cima abaixo, seus olhos tinham o costume de assustar a todos e era nítido isso pela feição da Senhora Qiao.
— Lady Kan, é uma honra respirar o mesmo ar que a senhora.
— O ar é o mesmo para todos, mas nem todos sabem o que fazer com ele. — Maomao sentou-se sem pressa, cruzando as pernas sob as dobras do hanfu, a voz doce como uma canção infantil. — Que vento trouxe a senhora até minha casa?
— Meu filho retornou da capital com honrarias do Ministério do Protocolo, julguei apropriado apresentá-lo à corte do sul. — a mulher ofereceu uma bandeja de cerejas com um sorriso tenso.
— Um presente fora de época e fora de lugar — murmurou Maomao, pegando uma cereja com dedos delicados. Girou-a entre os dedos como quem pesa um segredo. — Cerejas amadurecem no tempo certo, a pressa, às vezes, apodrece o que poderia florescer.
O rapaz enrubesceu, Lahan pigarreou para conter o riso.
Maomao provou a fruta, cuspiu o caroço em um pequeno prato esmaltado.
— A doçura é breve, o amargor vem depois.
— Irmã, — interrompeu Lahan, divertido — não assuste todos os candidatos antes do primeiro chá.
Ela sequer desviou o olhar.
— Só os que não servem para jogar.
A Senhora Qiao se despediu pouco depois, alegando compromissos na Casa do Chá Imperial, o filho, porém, saiu com passos rápidos demais como quem foge de algo que nunca entendeu.
Assim que a porta se fechou, Maomao virou-se para o irmão.
— Mais um pretendente eliminado, que venha o próximo. — riu bebendo um pouco do chá em sua xícara — Eles se assustam por besteira, bom concordo que não aceitaria nenhum noivado com o filho do clã Qiao, ele era muito afeminado.
Lahan riu do modo de falar da irmã, o que fez com que ela revirasse os olhos rindo também.
— O próximo não pode ser descartado com poesia e veneno verbal. — Lahan sentou-se ao lado da irmã. — O oficial Song está nos corredores, quer falar com você... sobre o casamento imperial.
Ela não respondeu de imediato, apenas apanhou um leque de papel perfumado, abrindo-o com um estalo que cortou o silêncio.
— Mande o entrar, mas não prometo uma resposta agradável. — comentou brevemente concentrada nos biscoitos espalhados pelo pequeno pote de vidro.
O oficial Song entrou com a rigidez de um homem treinado demais para dobrar, trazia o selo de ébano do palácio, e nos olhos, o brilho de quem não tem tempo a perder com jogos.
— Lady Kan. — ele se curvou com respeito. — Vim como ponte entre o trono e sua linhagem.
— Uma ponte deve ser forte o suficiente para não ruir ao primeiro passo. — Maomao indicou o assento com um gesto. — Fale.
— O Príncipe da Lua deseja selar aliança com o clã Kan por meio de um casamento, os conselheiros votaram por unanimidade, o pedido é formal.
— Um pedido que vem com selo, e não com flores, curioso eu diria. — Maomao inclinou-se levemente, os olhos estreitando-se. — O império está inquieto.
Song hesitou.
— A movimentação naval no sul... os tratados comerciais com o clã Bai... há rumores de que alianças estão sendo costuradas longe dos olhos do Imperador.
— E o império quer segurar as pontas costurando-as a mim. — ela sorriu, era tão óbvio, a filha do general e princesa influente do clã, era óbvio que não demorariam para a família entrar em contato — Diplomacia vestida de noivado, genial de fato.
O oficial respirou fundo, mas não rebateu, sabia que Maomao não era como as outras jovens da corte, ela não se dobrava com joias ou títulos. Era o tipo de mulher que desmontava estratégias com um olhar, que discutia manobras militares durante o chá e memorizava tratados comerciais como quem recita poesia.
— A última vez que o imperador enviou um emissário ao nosso clã foi para implorar desculpas. — lembrou Lahan, girando o copo de porcelana com desdém. — Quando tentaram oferecer Maomao como concubina do Imperador atual, agora o príncipe deseja um noivado com minha irmã? A bizarrice é de família...
— Um irmão bastardo de nosso pai, querendo aliança fácil com a capital — completou Maomao, sem tirar os olhos do oficial. — Uma oferta insolente, feita sem consulta à minha vontade ou à dignidade da casa. Sequer tive que levantar a voz, meu pai e minha mãe por sorte, o enterraram politicamente antes mesmo de eu terminar de rir da proposta.
Houve um breve silêncio, o oficial Song engoliu seco.
— Desde então, é notório que muitos pretendentes buscaram vossa mão... mas nenhum teve êxito.
— Porque nenhum deles sabia sequer como me olhar sem tentar me decifrar como um quebra-cabeça ou engolir é claro, não posso esquecer esse infeliz detalhe. — Maomao falou com certo pesar, mesmo tendo uma realidade diferente de muitas moças, ela ainda era uma mulher e mesmo sem toques, lhe dava repulsa quando a olhavam como se fosse apenas um objeto ou o pior, um pedaço de carne pronto para ser servido — E, francamente, não estou à venda, não fui criada para ser moeda de troca de alianças enferrujadas. — ela disse com firmeza, deixando o leque repousar sobre o colo.
Seu vestido era de um tom profundo de ameixa, e seus cabelos longos, ainda levemente úmidos do banho matinal, caíam como seda escura sobre os ombros. Ela parecia uma deusa da guerra disfarçada de cortesã, e era exatamente essa ambiguidade que desconcertava seus opositores e, quem sabe, fascinava o próprio príncipe.
— E agora o Príncipe da Lua quer negociar diretamente com o Clã Kan. — Maomao disse, com calma quase irônica. — Curioso que ele próprio venha como peça de barganha, imagino se é iniciativa dele... ou de alguém mais velho e desesperado para conter rachaduras internas no império.
— O príncipe tem intenções sérias. — retrucou o oficial, mais defensivo. — E uma carta formal de pedido de noivado foi escrita à mão por ele, reconhece vossa força, vossa inteligência... e sua singularidade.
— Singularidade é um termo gentil para uma mulher que não obedece ninguém. — murmurou Lahan, rindo com deboche.
Maomao fitou o céu além das cortinas de seda do pavilhão, onde as nuvens se acumulavam preguiçosas no azul, quando falou novamente, sua voz estava baixa, porém cheia de comando:
— Ser consorte de um príncipe mimado e teatral nunca esteve nos meus planos, ainda mais um que não teve coragem de me procurar diretamente todos esses anos. — seu olhar cortou o oficial como uma lâmina. — Mas... se ele enviou um emissário pessoalmente, ao menos mostra que está disposto a descer do pedestal, isso é um começo.
— Então... considera a proposta?
— Considerar é uma palavra educada para observar um peixe se debater fora d'água. — respondeu ela, repousando a xícara. — Vou avaliá-lo pessoalmente e se ele quiser mesmo uma aliança... que aprenda a nadar comigo. Não vou afundar por ninguém, que ele venha aqui pessoalmente e eu direi se aceito seu nobre pedido.
O oficial, sem resposta, inclinou-se em silêncio, sabendo que tinha recebido mais do que qualquer outro enviado teria ousado arrancar de Maomao.
Lahan, ao lado dela, apenas sorriu com orgulho sombrio.
— O tabuleiro está armado, irmã e você... ainda é a peça mais perigosa em jogo.
Ela sorriu de volta, com olhos frios e brilhantes.
— Sempre fui.
— Mas como pretende seguir com isso? — Lahan perguntou, apoiando os cotovelos sobre a mesa e entrelaçando os dedos, os olhos fixos na irmã como quem analisa uma fórmula complexa.
Maomao mastigou lentamente o último pedaço do doce que tinha em mãos antes de responder, os olhos semicerrados como se calculasse cada passo a seguir. Seu tom, contudo, manteve-se sereno.
— Se ele realmente vier... irá conversar com mamãe e papai. Eu permanecerei em meus aposentos, afastada de toda aquela formalidade protocolar, não quero dar-lhe o privilégio da minha presença de imediato. — ela deu de ombros com delicadeza, limpando os cantos dos lábios com um lenço de linho. — Mas você, Lahan, será os meus olhos, se achar que ele é digno, se perceber algo de real intenção, direi minhas condições por meio de você.
Ela finalizou com um sorriso suave, quase gentil, contrastando com a sagacidade afiada que se escondia por trás de cada palavra.
Lahan arqueou uma sobrancelha, entre incrédulo e divertido.
— Você possui uma mente ardilosa, Maomao... — murmurou com um pequeno riso abafado. — Ele é um príncipe, é o próprio império se dobrando diante dos seus pés e ainda assim, você o faz esperar por migalhas.
Ela levantou os olhos para ele com uma expressão serena, mas sem traços de submissão, com um movimento ágil, pegou outro biscoito, e antes de levá-lo à boca, estendeu o braço e beliscou as bochechas do irmão com uma única mão, forçando-as para frente de maneira infantil.
— E a sua irmã, caro irmão, é a Princesa do Clã Kan. Uma nobre criada com disciplina, conhecimento e propósito. — disse com voz doce, mas firme, sem desfazer o gesto. — Eu não fui moldada para ser escrava de nenhum homem, nem para viver enjaulada num palácio dourado, decorativa e silenciosa.
Ela soltou as bochechas dele, alisando a saia com um suspiro leve, o olhar agora mais grave.
— Se sou exigente, é porque aprendi que toda concessão descuidada custa muito caro. Um acordo desses não é apenas sobre casamento... é sobre sobrevivência, sobre manter-se inteira dentro de uma estrutura feita para nos engolir.
Lahan esfregou o rosto onde as mãos dela haviam apertado, entre um resmungo e um sorriso resignado.
— Está se tornando mais perigosa que a mamãe, sabia? — comentou, mas no fundo, havia orgulho em sua voz.
Maomao apenas voltou a tomar seu chá, olhando pela janela com aparente desinteresse, mas por dentro, cada detalhe estava sendo arquitetado com precisão.
— Espero que ele esteja preparado. Porque se não estiver... será apenas mais um nome a ser esquecido no fundo de uma taça.
[. . .]
O sol ainda subia preguiçoso sobre os telhados do distrito nobre quando os criados começaram a circular com mais pressa pela residência do clã. Os portões tinham sido polidos, os vasos cerimoniais preenchidos com flores brancas e lavanda recém-colhida, e o aroma de carne cozinhando lentamente no vapor misturava-se ao das especiarias trazidas de regiões distantes.
O grande salão interno, o chão de madeira encerada brilhava sob a luz do pátio, cortinas de seda clara balançavam suavemente, presas por cordões dourados. Na cabeceira da mesa principal, FengXian observava com um leve sorriso enquanto uma das servas ajeitava as almofadas cerimoniais. Ela usava um yuanlingshan simples, mas de tecido refinado da cor do vinho, o que destacava bem seus olhos vermelhos, o cabelo esverdeado preso com uma delicada fivela de jade, sua postura era elegante, imperturbável.
— Não estamos recebendo uma procissão imperial, querida. — murmurou Lakan, entrando com passos calmos, os braços cruzados. Seu semblante era sempre um pouco soturno, mas hoje havia algo mais ali: cautela.
— Estamos recebendo o enviado de uma. — respondeu ela, sem desviar o olhar das flores na mesa. — E isso, meu caro, exige uma encenação adequada.
Lakan bufou levemente e aproximou-se dela, observando os detalhes da disposição, os olhos claros analisavam a decoração com mais frieza.
— Encenação é uma coisa... mas transformar o salão em um templo de reverência ao príncipe? Isso me parece um pouco... excessivo. Ainda mais se Maomao não tem intenção alguma de encontrá-lo diretamente.
— Ela tem intenção de observá-lo pelas entrelinhas e, convenhamos, a encenação é para ele, não para ela. — FengXian virou-se para o marido com um sorriso maroto, os olhos cheios de ironia. — Às vezes, é preciso oferecer um banquete para deixar claro que não estamos famintos.
Lakan encarou a esposa por alguns segundos antes de rir baixinho, o tipo de riso que vinha de alguém que já perdera batalhas muito maiores, mas aprendera a apreciar as sutilezas das vitórias silenciosas.
— E pensar que um dia me apaixonei por uma cortesã rebelde que roubava uvas no jardim da madame na Casa Verdete. — murmurou ele.
— E pensar que eu ainda te amo mesmo sendo ranzinza assim. — devolveu FengXian, encostando a mão suavemente no peito dele antes de se afastar.
Ao fundo, Maomao havia entrado sem fazer ruído, os passos cuidadosos como os de quem atravessa um campo minado. Ela observava o salão, passando os dedos pelos tecidos, cheirando discretamente os incensos e tocando os talheres com a ponta dos dedos. Ao vê-la, Lakan cruzou os braços novamente e a fitou com sobriedade.
— Então... decidiu aceitar o jogo, Maomao? — disse ele com voz firme.
Ela não respondeu de imediato, continuou sua inspeção meticulosa, e só depois de ajustar uma flor levemente torta no arranjo principal, virou-se.
— Ainda estou avaliando o tabuleiro. — respondeu, direta. — Mas se o império quer jogar, não vejo por que não devemos impor as regras da nossa casa.
— As regras da nossa casa são perigosas, filha. — ponderou Lakan. — Você está entrando num jogo onde nenhuma jogadora sobrevive sendo apenas inteligente. É preciso ser implacável... e saber quando ceder também.
FengXian, atrás dele, aproximou-se da filha com a calma de quem caminha entre espelhos, tocou suavemente o braço dela, guiando-a para o centro do salão.
— Olhe ao redor, Maomao, cada objeto aqui carrega um significado, as flores falam de paz e ordem, as taças são de vidro transparente, porque nada deve parecer oculto, mas toda essa delicadeza é uma armadilha, se mal compreendida.
Maomao assentiu, os olhos fixos na mesa como se visse algo além.
— E ele? — perguntou, quase em sussurro. — O príncipe... o que ele representa para vocês?
FengXian e Lakan se entreolharam, trocando um olhar carregado de passado. Foi Lakan quem respondeu primeiro:
— Um risco, um aliado improvável, um possível fantoche do Império, ou um jogador que deseja romper as amarras do trono. Ninguém sabe ao certo, só o tempo dirá se ele é perigo ou oportunidade.
— E você, mãe?
FengXian sorriu, enigmática.
— Para mim, ele é apenas mais um homem encantado pelo veneno sutil que você carrega no olhar. — disse, com um toque de ironia. — O mais perigoso de todos os encantos, porque é involuntário e irresistível.
Maomao abaixou os olhos, séria, sua mente já trabalhava, costurando possibilidades.
— Então vamos recebê-lo com todas as honras. — disse, por fim. — E ver até onde ele consegue manter a máscara intacta.
A jovem se afastou lentamente, deixando os pais no salão ainda à meia-luz, FengXian a acompanhou com os olhos, uma sombra de preocupação atravessando seu rosto.
— A menina que criei, se tornou uma fortaleza. — murmurou.
— Sim. — respondeu Lakan, com pesar e orgulho na mesma medida. — E fortalezas atraem cercos.
Ao meio dia tingia de âmbar as curvas do céu sobre a região oeste da capital, as bandeiras do clã Kan, com seu brasão ancestral de um dragão e serpente vermelha em meio às nuvens, tremulavam serenas no topo da muralha principal da mansão.
Sob a sombra comprida das árvores de ginkgo, um palanquim ornamentado com véus de prata parou diante do portão externo. Os guardas, instruídos com rigor, já esperavam. A madeira perfumada da estrutura mal havia tocado o chão quando um jovem de presença inegável desceu com leveza.
Ka Zuigetsu, conhecido nos círculos políticos como Príncipe da Lua ou como Príncipe Jinshi, parou por um instante para observar o local. Seu olhar violeta, frio e afiado como vidro de orquídea, deslizou por cada detalhe da construção dos Kan — a simetria das lanternas, a posição dos pinheiros, a distância entre os degraus. Era o tipo de homem que enxergava mais do que era mostrado e jamais deixava de registrar aquilo que era ocultado.
Seus cabelos longos e roxos, bem cuidados e parcialmente presos por uma fita de seda preta, balançavam suavemente ao vento. Nenhuma joia em excesso, nenhuma arrogância visível, apenas a presença silenciosa e firme de alguém que sabia muito bem o peso de cada gesto.
Uma serva de vestes rosadas se curvou profundamente ao vê-lo.
— Príncipe Jinshi, vossa presença honra este solo. — sorriu de forma gentil — Os senhores do Clã Kan aguardam vossa entrada.
Ele assentiu com leve inclinação de cabeça e seguiu, acompanhado apenas por dois guarda-costas discretos e um criado silencioso que carregava um pequeno estojo de madeira escura, o que ele trazia não era apenas um presente, mas uma declaração de guerra e desejo velado.
O salão da mansão principal fora preparado com discrição e elegância, nada chamativo, como ditava a tradição Kan. A mesa de centro era baixa, feita de nogueira e cerâmica, ladeada por almofadas de seda em tons frios. Uma única flor branca, havia sido disposta no centro, como símbolo de neutralidade.
Sentados lado a lado, Lakan, FengXian e Lahan formavam a imagem silenciosa da autoridade Kan. Lakan mantinha a postura firme, os cabelos escuros já salpicados de prata, vestido com sobriedade e olhos atentos. FengXian, serena, trajava tons escuros de vinho e púrpura com bordados dourados sutis, observando tudo com um olhar calculado. Lahan, o mais jovem, mantinha-se ereto, com semblante analítico e vestes discretas, absorvendo cada detalhe com a precisão de um futuro estrategista.
Jinshi inclinou-se com um respeito calculado.
— Jinshi, ao serviço do Império, trago palavras do Sol e da Lua, com a benção do Imperador.
Fengxian observou cada sílaba como quem analisa a estrutura de um veneno raro, Lakan apenas fitava o visitante com olhos impenetráveis, como quem encara o mar em tempestade em silêncio, mas pronto para afundar barcos.
Um jovem servo colocou o estojo de madeira sobre a mesa. Jinshi abriu-o com reverência, lá dentro, repousava um pergaminho selado com o emblema imperial, acompanhado de um par de pulseiras de jade lapidadas em formato de serpente e leão — um símbolo calculado.
— Trago um desejo formal, unir os destinos da linhagem Kan com a da Família Imperial. O nome verdadeiro do proponente, como bem sabem, é reservado apenas à futura esposa... e aos que compartilham a confiança íntima do Trono.
Lahan estendeu a mão, examinando o selo, seus olhos dourados se estreitaram.
— O nome do proponente é velado, mas suas intenções não deveriam ser. Qual é, exatamente, o propósito desta união?
Jinshi olhou diretamente para o irmão de Maomao, seu tom era calmo e por isso mesmo, mais perigoso.
— Proteger aquilo que é raro, cultivar aquilo que é promissor e manter longe o que é ameaçador.
Fengxian trocou um olhar com Lakan, e então perguntou, com voz doce demais para ser inofensiva:
— E acredita que nossa filha é algo a ser cultivado, protegido... ou uma ameaça?
Um pequeno sorriso ergueu o canto dos lábios de Jinshi.
— Talvez tudo isso ao mesmo tempo, minha senhora.
Na ala leste da mansão, Maomao sentia a água quente escorrer por sua pele enquanto a serva massageava seus ombros com óleos de flor de ameixeira, outras gotas rolavam pelas laterais da banheira de madeira laqueada, entre ervas frescas e vapor perfumado.
Ela suspirou, havia se sujado de barro até os joelhos horas antes do almoço ser servido ao príncipe, ao colher cascas de raízes e flores amargas no jardim medicinal. Estava preparando um tônico analgésico que aprendera com seu tio Luomen, mas acabou sendo interrompida por uma serva que, em desespero, praticamente a arrastou para dentro do banho.
— Princesa, sua pele precisa estar luminosa... os emissários já chegaram...
Maomao não se importava com a aparência, mas entendia o jogo.
Enquanto uma das moças penteava cuidadosamente seus longos cabelos verdes, outra passava óleo de lavanda e bálsamo de camélia por sua pele, seus olhos azuis, herdados do pai, estavam fixos no vazio à frente.
"Então é isso."
O príncipe havia chegado, um jogo de alianças, como previsto, mas o adversário... era inesperado.
Ela havia escutado boatos, fragmentos de cartas, cochichos nos corredores, Ka Zuigetsu, o Príncipe da Lua. O homem de olhos violeta e ambições silenciosas. Um nome que dançava entre lendas e verdades ocultas.
— Ele está no salão. — murmurou a serva atrás de si, como se não pudesse conter a curiosidade. — Dizem que é belo como uma pintura viva.
Maomao sorriu, sem humor.
— Pinturas não sangram, nem tomam decisões.
O pente deslizou novamente por seus fios e em sua mente, ela já traçava cenários: aceitação, recusa, atraso, silêncio diplomático. Sabia que aquele homem não viera por amor, nem por pura política, havia algo mais, algo que ainda não compreendia.
"Se ele deseja entrar em minha vida como aliado... ou como sombra, terá que aprender que os Kan não dobram a cabeça para luas ocultas."
Ela fechou os olhos, inspirando fundo.
"E eu... não sou uma princesa que se deixa escolher sem escolher de volta."
Enquanto isso, no salão principal, Jinshi recostava-se com elegância, as mangas caídas em dobras perfeitas. Seus olhos pousaram por um instante sobre a cortina de jade no fundo do corredor, atrás da qual sabia que a verdadeira partida ainda não havia começado.
Maomao não estava ali.
Mas ele já sentia sua presença, como se uma brisa inquieta soprasse por entre as colunas do palácio. E ele soubesse: não seria fácil tocá-la.
E por isso... ele estava disposto a tentar.
[. . .]
O silêncio que pairava no salão após a leitura da carta imperial era espesso como melado de ameixa. Jinshi repousava as mãos sobre o colo, os longos cabelos roxos dispostos com perfeição sobre o ombro direito. Seus olhos violetas estavam serenos, mas cada músculo de seu rosto dizia o contrário, ele estava em campo de batalha e sabia disso.
Lakan foi o primeiro a falar.
— Compreendemos a honra deste gesto, vossa alteza, mas como bem sabe, um nome forte como o da minha filha exige mais do que honrarias poéticas.
O tom era diplomático, mas o olhar agudo como uma lâmina embebida em veneno indicava que o jogo não seria fácil, Jinshi não se abalou. Retornou com um aceno leve, quase desinteressado.
— O Imperador está ciente da singularidade da Lady Kan, por isso pessoalmente, como prova de que essa aliança é não apenas política... mas simbólica. O elo entre a lua e o verde do sul.
FengXian, que até então permanecera em silêncio ao lado do marido, ergueu o olhar com calma e firmeza. Os cabelos presos com adornos de jade e turquesa balançaram levemente. Sua voz, doce e profunda, preenchia o salão sem esforço.
— Um símbolo é apenas um selo bonito, Vossa Alteza. — disse servindo-lhe vinho junto a sopa de carne que haviam preparado — O que me importa, como mãe, é o modo como minha filha será tratada. Ela cresceu longe das cortes, é estudiosa, direta, acostumada à liberdade e à razão, ela não sobreviveria como ornamento de salão, mesmo que fosse coroada imperatriz.
Jinshi sorriu de canto, um movimento sutil, mas que não passou despercebido.
— Lady Kan, tenha certeza: jamais me interessaria por uma mulher que se deixasse enfeitar, sua filha é conhecida até no palácio como mente viva, não como peça de coleção. Não vim domesticá-la, vim porque só alguém como ela poderia me encarar de igual para igual.
Lakan apertou os olhos.
— E ainda assim, veio negociar sua mão como quem oferece cargos.
— Vim como servo do Imperador, mas estou aqui também como homem. A proposta é do trono, mas o interesse... é meu.
Por um instante, o salão ficou em silêncio. FengXian desviou o olhar para o vapor que da comida recém servida a mesa e depois voltou-se para o príncipe.
— E se ela recusar?
— Então aceitarei. — disse Jinshi, com sinceridade que quase traía seu orgulho. — Mas não sem tentar convencê-la com todo o meu ser.
Foi quando Lahan, que havia permanecido em pé discretamente ao lado da entrada do salão, inclinou-se para o pai e murmurou com respeito:
— Com vossa licença.
Lakan o liberou com um aceno de cabeça, sem desviar os olhos de Jinshi.
[. . .]
Lahan atravessou os corredores da mansão como se caminhasse por campos minados. Conhecia sua irmã melhor que qualquer um, sabia que, por trás dos olhos observadores, ela já teria feito mil cálculos e ainda assim, só ouviria o que precisasse, Maomao não era vaidosa, mas gostava de ser considerada.
Chegou à ala dos banhos e pediu permissão para entrar na antessala, quando a serva abriu a divisória de seda, encontrou Maomao sentada diante de um espelho de bronze. Os cabelos ainda úmidos, soltos sobre os ombros, perfumados com óleo de chá branco, ela o olhou pelo reflexo.
— Já estão me vendendo?
Lahan sorriu.
— Estão tentando comprar, mas o preço está alto, você fez bem em não estar lá.
Ela se levantou com calma, puxando o robe de seda escura para cobrir o corpo.
— E o Príncipe da Lua? — perguntou, enquanto ajustava o cinto do robe. — Tão celestial quanto dizem?
— Não se iluda, ele fala pouco, mas as palavras vêm limpas como aço forjado. — seu olhar focava nos da irmã — O papai testou, mamãe fincou posição e até agora ele não vacilou.
— Então não é um bobo com rosto bonito.
— Longe disso. — Lahan a observou. — Ele disse que te quer porque você o confrontaria de igual pra igual, que não veio domesticar ninguém.
Maomao sorriu de canto, caminhou até a janela que dava vista para o lago interno.
— Um sedutor racional, um lobo educado.
— Ainda assim, não mentiu em nenhum momento.
— É, e isso é o que mais me preocupa. — ela girou nos calcanhares, os olhos azuis faiscando — Porque os piores homens são os que dizem a verdade com muita calma, são aqueles que fazem você acreditar que escolheu, quando na verdade... já estava escolhida.
Lahan não respondeu, apenas a observou por um momento, antes de inclinar-se levemente em gesto de despedida.
— Quer que eu diga algo a eles?
— Diga que só me apresentarei ao pôr do sol daqui 3 dias e que, se quiser me convencer, o príncipe terá que sentar-se comigo no jardim com as ervas e as formigas.
— Isso é um teste?
— É uma pergunta. Se ele aceitar, talvez tenha a resposta certa.
Lahan sorriu outra vez, havia nela algo de sua mãe, mas o olhar... era ácido como de Lakan.
E assim, voltou ao salão, levando a proposta incomum da filha que, mesmo sendo chamada de princesa, jamais deixaria de ser, antes de tudo, uma alquimista.
O salão permanecia silencioso quando Lahan atravessou as portas, seus passos ecoaram entre os pilares entalhados, com os bordados de dragões nas vestes se movendo levemente com o balanço ritmado do andar. Não havia pressa, só firmeza.
Fengxian ergueu os olhos com um leve brilho curioso, Lakan, ao lado, com as mãos entrelaçadas, manteve o rosto de pedra. Jinshi, sentado à frente, voltou a se erguer sutilmente, tentando decifrar, desde já, a resposta que viria.
Lahan parou diante deles, a postura era altiva. Os olhos, escuros como os da mãe, tinham agora a precisão cortante herdada do pai.
— Minha irmã agradece pela consideração. — começou, com voz firme — Ela compreende o peso de um pedido formal de união vindo do senhor príncipe Jinshi... mas minha irmã tem suas próprias condições.
Jinshi sustentou o olhar, mas não respondeu de imediato, atrás dele, um de seus assistentes moveu-se discretamente, inquieto.
— Condições? — repetiu Lakan, por fim, num tom baixo. — Que tipo de condições pode uma jovem que recusou tantas regalias propor agora?
Fengxian apenas sorriu pequeno, misterioso, como se já soubesse, ela conhecia bem a filha que tinha e vindo de Maomao, poderia se esperar tudo de pior para afastar um pretendente.
Lahan, imperturbável, prosseguiu:
— Maomao não aceitará nenhum encontro imediato, nem audiência privada, enquanto não for respeitada sua liberdade de escolha. Ela solicita três dias, nesse tempo, deseja que ninguém do palácio ou de sua comitiva tente abordá-la.
— E após os três dias? — indagou Jinshi, a voz baixa, tensa.
— Se ainda desejar vê-la, — disse Lahan, com um leve erguer de sobrancelha — deverá retornar ao jardim oeste da residência, exatamente ao pôr do sol, quando as formigas estiverem mais ativas entre os canteiros e o ar ainda guardar o aroma da terra molhada.
Fengxian soltou uma pequena risada abafada por trás do leque. Lakan lançou-lhe um olhar, mas nada disse.
— O jardim... entre formigas e plantas... — murmurou Jinshi.
— Sim, ela quer que a encontre ali, sem avisos, sem assistentes, sem presentes, apenas o senhor e suas intenções.
— Isso é um teste. — constatou Jinshi, encarando Lahan como se tentasse ver além da resposta.
— Isso é a Princesa do clã. — respondeu ele — Ela quer ver se o senhor é capaz de atravessar os três dias com paciência e humildade, se é capaz de pisar onde ela pisa, sentir o mundo dela, sem filtros, sem adereços.
O silêncio caiu denso.
Fengxian, então, se pronunciou, tranquila:
— Uma mulher que cresceu entre ervas e venenos não pode aceitar flores arrancadas à força. Ela precisa ver se o perfume é real... ou apenas cosmético.
Lakan pigarreou, talvez estivesse irritado, talvez estivesse impressionado, mas se manteve em silêncio.
Jinshi inspirou profundamente, passou uma das mãos nos cabelos longos, os olhos violeta perdidos por um instante no vazio.
— E se eu for? — perguntou — E ela não aparecer?
Lahan inclinou-se levemente, como se prestasse reverência, mas havia um fio de provocação nos lábios.
— Então, senhor príncipe, terá tido o privilégio de entender o que é esperar alguém que nunca prometeu vir, talvez, o torne mais próximo dela do que qualquer outro já esteve.
E com isso, ele deu meia-volta, deixando atrás de si três pessoas mergulhadas em silêncio e significados.
O crepitar da madeira perfumada nas lamparinas do salão acompanhava o silêncio que seguiu à declaração de Lahan. Jinshi permaneceu por mais alguns instantes na mesma posição, as mãos unidas sobre o joelho, os olhos baixos, como se meditasse em segredo.
Então, erguendo-se com a leveza que o tornava tão difícil de ler, ele se curvou diante dos anfitriões.
— Agradeço a hospitalidade e o banquete do Clã Kan... e a clareza com que me receberam.
Fengxian retribuiu com um leve aceno, o leque fechando com um estalo seco, seus olhos pousaram em Jinshi com uma expressão que flutuava entre a aceitação e a curiosidade, como se observasse o desabrochar de uma semente rara que não se sabe se florescerá na luz ou na sombra.
Lakan se levantou logo depois, mais por cortesia do que por qualquer emoção explícita. Apertou o punho fechado diante do peito num gesto cerimonial contido e disse:
— Príncipe Zuigetsu, aguarde o tempo com sabedoria e entenda... em nossa casa, o silêncio muitas vezes vale mais do que promessas. — Lakan disse firme com ousadia ao falar o verdadeiro nome do Príncipe da Lua.
Jinshi inclinou a cabeça, respeitoso, mas o violeta dos olhos ardia como uma brasa bem velada. Ele estava acostumado a ser desejado, a ser aceito, mas agora... agora seria testado no terreno que não lhe pertencia, no mundo dela.
Antes de cruzar o limiar das portas, Lahan o acompanhou, conduzindo-o pelos corredores emoldurados de papel pintado e lanternas pendidas. Os dois caminharam lado a lado, calados, até a entrada da ala externa.
Ali, Lahan falou, num tom mais brando:
— Se for mesmo ao jardim... não tente impressioná-la, apenas... escute.
Jinshi lançou-lhe um olhar breve, quase grato.
— É tudo o que eu quero. — murmurou.
E então partiu, seguido por seus assistentes.
O salão principal dos Kan recobrou sua serenidade habitual assim que o príncipe da lua cruzou os portões em silêncio. O som suave do portão se fechando ecoou por alguns segundos e então cessou, deixando apenas o farfalhar do vento entre os biombos e o leve tinido das porcelanas na bandeja de chá.
Fengxian afastou o leque com um gesto elegante, mas seus olhos tão semelhantes aos de Maomao, mantinham-se estreitos, avaliando o vazio que restara após a visita real.
— Ele fala bem. — comentou, sem emoção. — Talvez até deseje sinceramente o bem dela, mas desejo não basta.
Lakan, ainda em pé, olhava para o espaço onde o príncipe estivera sentado, seus dedos tamborilavam contra o punho da espada cerimonial presa à cintura. Não como ameaça, mas como hábito antigo, instintivo.
— Você viu como ele reagiu quando Lahan mencionou a condição? — perguntou, enfim. — Nenhum protesto, nem sarcasmo. Apenas o silêncio.
— O silêncio é perigoso, Lakan, pode esconder arrogância... ou esperança. — Fengxian se levantou e caminhou até a janela de papel translúcido, onde a sombra do jardim pintava um jogo de folhas e luz — Ou os dois.
Ele a observou por um instante, antes de dizer:
— Maomao não é como outras jovens e você sabe, ele terá que se curvar à maneira dela ver o mundo, se quiser algo além da promessa.
— E se quiser apenas a promessa? — murmurou Fengxian.
Antes que qualquer um respondesse, passos sutis ecoaram pelas escadas, Maomao surgiu ao topo dos degraus, com a postura serena, quase despreocupada, de quem retorna de um banho morno. O cabelo recém-trançado brilhava sob a luz das lanternas, solto em ondas que a emolduravam com a suavidade de uma tinta natural. O cheiro de óleo de crisântemo e hortelã ainda a seguia.
Ela não disse nada.
Apenas desceu, serena, o frasco de cerâmica ainda preso entre os dedos, quando seus pés tocaram o chão polido do salão, Fengxian se virou e a fitou com um olhar que oscilava entre ternura e cálculo.
— Já sabíamos que um dia isso aconteceria — comentou, cruzando os braços por dentro das mangas do quimono escuro. — Mas não imaginei que seria tão cedo, nem que ele seria tão... vistoso.
— Ele tem os olhos do luar. — disse Lakan com ironia discreta, sentando-se outra vez. — Mas carrega um ar... incômodo, como se estivesse acostumado a não ser negado.
Maomao se aproximou, sentando-se com leveza ao lado da mãe. Não pediu permissão, ela nunca o fazia, mas o gesto em si já dizia que estava pronta para escutar.
— E vocês? — ela perguntou, sem rodeios. — O que acham dele?
Lakan riu suavemente, apoiando o cotovelo no joelho, o leque de Fengxian se abriu com um sussurro.
— Ele não desviou os olhos do pai, nem hesitou diante da autoridade da mãe. — começou Fengxian. — Mas ao ouvir sobre você... piscou apenas uma vez. Um detalhe que talvez passe despercebido a muitos, mas não a mim.
— Quando Lahan disse que teria que te encontrar entre formigas e plantas, — completou Lakan — ele não riu. Nem franziu o cenho, aceitou como se fosse um convite... ou um desafio.
Maomao escutava tudo em silêncio, os olhos azuis voltados para a sombra do biombo, onde os reflexos do jardim tremeluziam.
— E você, Maomao? — a voz da mãe era baixa, mas direta. — Quer esse laço?
Ela demorou a responder, suas mãos repousavam sobre o tecido macio do vestido, e havia um brilho nos olhos que não era emoção pura, mas sim pensamento, análise, raciocínio.
— Quero que, se ele vier, seja por mim. Não pelo que represento. Nem pelo que esperam de mim.
Fengxian sorriu, de leve, foi um sorriso raro, quase imperceptível, mas Maomao o percebeu. Um reconhecimento silencioso entre duas mulheres que sabiam demais e falavam de menos.
Lakan apenas assentiu.
— Então aguardaremos. — disse, encerrando o assunto.
Maomao se ergueu, prestes a voltar para seus aposentos, mas antes de partir, murmurou:
— Se ele vier... quero vê-lo com as mãos sujas de terra e não com perfume de lótus no colarinho.
Fengxian baixou o leque devagar.
— Então que assim seja.
E o salão voltou ao silêncio, enquanto a noite tombava sobre a mansão Kan.
Chapter 2: Três dias até o pôr do sol
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Na manhã seguinte, o palácio parecia ainda mais vasto, como se a imensidão de seus corredores e salões ecoasse a quietude que pairava no ar. O silêncio não era apenas a ausência de ruídos, mas uma sensação quase palpável, como se até as pedras guardassem um segredo tenso. A luz suave do sol filtrava-se pelas janelas altas, desenhando sombras delicadas que se estendiam preguiçosamente pelo chão de mármore.
Jinshi vestia uma túnica de linho claro, tecido que normalmente caía com precisão sobre seus ombros largos, valorizando a postura rígida que ele mantinha como herdeiro do trono, mas naquela manhã, a roupa parecia rebelde, dobrando-se de forma irregular e incômoda, como se seu próprio corpo resistisse ao papel que precisava desempenhar. Não era apenas o tecido que teimava em não ceder - era ele próprio, Jinshi, em meio a um turbilhão silencioso, desconexo do costumeiro controle frio e implacável.
Cada movimento dos servos parecia vagaroso demais, cada palavra formal trocada com os conselheiros soava distante, como se as vozes se perdessem entre as paredes ancestrais do palácio. Seu olhar, geralmente firme e direto, demorava-se nas janelas, onde o mundo externo prosseguia indiferente: o zumbido insistente das cigarras, o lento deslocar das nuvens em um céu azul pálido. Ali, naquele instante, ele mediria o tempo não por relógios ou agendas, mas pelo ritmo da natureza, simples e implacável.
Três dias.
O número parecia carregar um peso absurdo, uma espera que parecia quase risível para alguém tão acostumado a moldar a própria realidade com ordens e decretos. Três dias para encontrar uma jovem, alguém que dominava os venenos com a mesma precisão com que dominava seus impulsos. Uma mulher que, por vontade própria, se mantinha longe dos salões dourados, preferindo o silêncio das plantas e a companhia dos insetos e dos livros, como se seu mundo não pudesse ser medido pelas joias ou pela pompa do palácio.
Encontrá-la assim, entre formigas e folhas, parecia contrariar todas as convenções. Como se sua posição de príncipe, seu poder, sua herança, não fossem nada diante daquela simplicidade feroz. Era quase como se ele fosse um pretendente qualquer, um homem comum, invisível perante sua presença austera e segura.
E, no entanto, paradoxalmente, era exatamente isso, esse cenário tão simples, tão terreno, que mais aguçava seu sangue. Que atiçava uma fome de desafio e reconhecimento que nenhuma corte, nenhum trono, jamais poderia saciar.
No segundo dia, o palácio parecia respirar com mais cautela, como se até os servos tivessem aprendido a moderar os passos e conter a curiosidade. Jinshi levantou antes do nascer do sol e atravessou os corredores envoltos em penumbra. Nem mesmo as lanternas haviam sido acesas ainda, havia uma inquietação sob sua pele algo denso, persistente como o prenúncio de uma febre emocional.
Na sala do trono, despachou os ministros com uma frieza atípica, interrompeu relatórios, adiou decisões e dispensou conselheiros antes mesmo que as cortinas tivessem tempo de abrir-se por completo. Aquilo causou murmúrios abafados nos corredores laterais. O herdeiro, sempre tão minucioso, de repente desinteressado pelas tratativas imperiais? Mas nenhum deles ousou questionar.
Jinshi caminhou lentamente até seus aposentos, onde o jardim interno filtrava o som de uma fonte de pedra. Por um tempo ficou ali, observando a água escorrer, refletindo a luz e fragmentando sua própria imagem, havia algo desconcertante naquela espera. Ele, que sabia comandar tropas e domar o olhar de qualquer cortesã com um movimento sutil, estava à mercê do tempo. À mercê dela.
Pouco depois, enviou um mensageiro até Luomen, o médico do palácio, não mencionou nomes, apenas um pedido comedido, escrito com caligrafia controlada: um conjunto de ervas relaxantes, e uma infusão "Para acalmar pensamentos inquietos".
A resposta veio em poucas horas, com a precisão de alguém que conhecia não apenas a medicina, mas também a alma humana:
— O melhor antídoto para o orgulho ferido, Alteza, — dizia a nota, escrita em tinta seca com um leve perfume de cânfora — é o tempo e talvez uma jovem que não o tema.
Jinshi leu uma, duas vezes, antes de dobrar o papel com cuidado e guardá-lo dentro da manga da túnica, não respondeu, mas o papel queimava ali, junto à pele. Como se as palavras de Luomen pesassem mais que uma ordem imperial.
Na tentativa de distrair-se, desceu à biblioteca do palácio, pousou os olhos sobre rolos antigos de tratados, textos diplomáticos da fronteira norte, histórias de dinastias longínquas que antes o fascinavam, mas os caracteres se embaralhavam.
Sentou-se à mesa de leitura, mas não abriu nenhum pergaminho, em vez disso, fitou a caligrafia antiga entalhada nos pilares de madeira da biblioteca. Frases sobre honra, dever e virtude, palavras que soavam vazias em sua boca ultimamente, como poderia ser justo, quando não era imparcial? Como poderia governar com sabedoria, quando se sentia tão pessoalmente... inflamado?
Perto do entardecer, passeou sozinho pelo caminho de pedras do pátio oeste, onde flores de ameixeira começavam a abrir. Lembrava-se da última vez que vira Ah-Duo ali, envolta em véus claros, conversando com as damas mais jovens. Por um impulso contido, desviou do caminho usual e tomou a direção de seus aposentos. Talvez... talvez precisasse ouvir a mãe. Não como imperatriz, mas como mulher, como esposa e como alguém que um dia também tivera medo.
Mais tarde, quando o céu começava a tingir-se de dourado entre as colunas do palácio interior, Jinshi sentou-se nos aposentos silenciosos da Imperatriz. Um bule de porcelana jazia entre eles, com chá de crisântemo ainda quente. Ah-Duo, sempre composta até no silêncio mantinha a postura ereta mesmo quando não havia olhos sobre ela. Servia o chá sem pressa, como quem saboreia o tempo, e observava o filho com uma atenção gentil, firme, que não exigia palavras.
Ele quebrou o silêncio, os olhos fixos nas próprias mãos, como se temesse que o contato visual revelasse demais.
— Mãe... — começou, hesitante — como... como a senhora soube que estava pronta?
Ah-Duo ergueu os olhos, os traços serenos, mas atentos.
— Pronta para quê, meu filho?
— Para o casamento, para ser esposa do imperador, para se tornar... a mãe da nação.
Ela pousou a xícara devagar, como se o gesto merecesse reverência. Seus olhos, antes tranquilos, pareceram mergulhar em outra vida - uma vida há muito enterrada sob camadas de deveres e títulos.
— Ah, isso.
Um pequeno sorriso se formou em seus lábios, não era de nostalgia, mas de algo mais raro uma memória que ainda doía, mas que também sustentava.
— Ninguém está verdadeiramente pronta, Zui. — sua voz era como um calmante, suave e apaixonante — A gente aprende caminhando, mas vou te contar algo que talvez te surpreenda.
Ele ergueu os olhos, atento, como se aquela conversa pudesse ser a primeira verdade que escutava em dias.
Ela continuou:
— Quando fui convocada para a seleção, eu não queria estar lá, o palácio me parecia uma prisão dourada e, quando chegou minha vez de ser apresentada ao imperador, ele ainda era apenas o jovem príncipe herdeiro, mas com os olhos de quem carregava o mundo nas costas. Lembro que ele parecia exausto, estava sentado, reto como uma estátua, enquanto as outras jovens falavam sobre suas habilidades, seus talentos, suas virtudes.
Fez uma pausa, e Jinshi podia vê-la de novo naquela sala distante, vestida em brocados desconfortáveis, mas com a alma pulsando por liberdade.
— Quando chegou minha vez, eu disse: "Se o senhor estiver cansado, podemos não falar. Eu preferia estar viajando como uma comerciante do que aqui, me exibindo, então pode me dispensar."
Jinshi arregalou os olhos, surpreso dando risada.
— A senhora disse isso mesmo?
Ela riu, um riso baixo e cheio de lembrança.
— Disse e, pela primeira vez, ele me olhou. — sorriu nostálgica — Não como se olham candidatas - mas como se olha alguém que quebra um padrão. Yang perguntou o que eu venderia, que rotas eu tomaria, o que eu sabia sobre comércio. Eu falei da Rota da Seda, das políticas fiscais do norte, de como os pequenos mercadores eram sufocados por impostos injustos.
Ela pousou a mão sobre a mesa, com calma.
— Conversamos... de verdade e pela primeira vez naquela sala, ele tirou a máscara, riu, discordou de mim, me provocou, me ouviu e quando me despedi, ele disse: "Espero que um dia ainda possamos discutir as taxas alfandegárias de forma menos formal." Foi naquele momento, Jinshi, que comecei a respeitá-lo, o amor veio depois, mas o respeito... nasceu ali.
O silêncio entre os dois agora era denso de significado.
— Então foi fácil? — perguntou Jinshi, com a voz rouca.
— Não, nunca é, mas foi real e naquela época... o reino estava em paz, pudemos construir devagar, antes de seu pai subir ao trono pudemos viajar bastante e conhecer o mundo antes de assumir essa grande responsabilidade. — Ah-duo permaneceu contemplativa relembrando do passado — Eu tinha medo também, mas ele me permitiu ser quem eu era e eu, em troca, lhe ofereci verdade.
Jinshi assentiu, devagar.
Depois, quase num sussurro:
— Tenho medo de não estar à altura de... decepcionar. A Princesa Kan, dizem que ela é admirável, além de inteligente, digna do posto em que está. — suspirou pesado sentindo os olhos violetas da mãe lhe encarando fixamente — Eu nunca a vi, mas já a admiro só pelos relatos e, talvez por isso mesmo... tenho medo de não conseguir alcançá-la. De ser apenas um nome... um título, um fardo.
Ah-Duo se aproximou e tocou sua mão com suavidade, a mão dela era fria, mas firme como mármore aquecido ao sol.
— Amar alguém não exige perfeição, Zuigetsu, exige presença, escuta, humildade.— acariciou o rosto do filho com certo cuidado — Você é meu filho e, mesmo que tenha crescido entre protocolos e véus de mentira, ainda carrega uma luz própria, mas não pense que precisa ofuscar para brilhar. Às vezes, é o brilho constante que mais aquece.
Jinshi respirou fundo, como se algo dentro dele cedesse.
— E se eu não conseguir amá-la?
— Então a respeite, construa dignidade nesse laço. O amor pode vir... ou não e a deixe partir, mas o respeito é o solo, sem ele, tudo apodrece.
Ela apertou levemente os dedos do filho e prosseguiu:
— E se conseguir amá-la, se ela permitir ser amada por quem você é, e não pelo que esperam que seja, então você entenderá por que eu nunca fugi deste palácio. Mesmo quando sonhava em vendê-lo inteiro por uma vida nas caravanas do sul.
Jinshi baixou a cabeça, os olhos umedecidos, sem vergonha.
— Obrigado, mãe.
Ela levantou o rosto dele com a ponta dos dedos, como fazia quando ele era pequeno.
— Você tem o direito de sentir medo, mas tem também o dever de ser honesto com seu coração, mesmo aqui... entre paredes tão antigas... ainda se pode escolher como viver e com quem.
E enquanto o chá esfriava, e a tarde se esvaía em ouro sobre os ladrilhos frios, Jinshi entendeu que o amor, no fim, não era sobre encantamento ou cerimônia, mas sobre coragem. A coragem de se mostrar inteiro, mesmo num mundo que só aceita máscaras.
[. . .]
No terceiro dia, Jinshi recusou todos os compromissos oficiais e passou a manhã no pátio de pedras brancas, observando a dança lenta dos peixes no lago artificial, não almoçou, não leu, apenas esperou da maneira mais cruel para alguém como ele: sem controle.
E quando o sol começou sua lenta curva descendente no céu, o príncipe enfim se levantou, vestiu uma túnica mais simples, de azul profundo com bordados em dourado envelhecido, e saiu do palácio com passos firmes, levando apenas um guarda discreto e uma pequena caixa de madeira em mãos.
O portão lateral da mansão Kan se abriu sem alarde, mas a natureza pareceu captar o momento.
O sol já beijava a linha dos telhados, tingindo o céu com tons alaranjados e lilases. O ar estava morno, e o aroma de lavanda e terra úmida pairava com leveza, Jinshi atravessou o caminho de pedras sem fazer ruído, guiado apenas por um servo da residência que o acompanhava alguns passos atrás, calado, mas atento.
Quando dobraram a última curva entre os arbustos de hibisco, ele a viu.
Maomao folheava uma das compilações de Li Shizhen quando escutou a algazarra vindo da entrada principal da mansão. Um coro desordenado de vozes agudas e passos apressados rompeu a tranquilidade da tarde, seguido pelo tilintar de sinos e o latido ofendido de um cão velho. Ela fechou o livro com um suspiro tão pesado que quase deslocou a espinha.
— O caos tem nome e sobrenome - murmurou revirando os olhos.
— MAOMAOOO! — gritou uma voz infantil, antes que três vultos atravessassem o portão interno com a ferocidade de um vendaval rural.
Zhìyuǎn veio primeiro, tropeçando na própria sandália enquanto tentava manter um ar digno, segurava um galho de bambu como se fosse uma lança e olhava em volta como um pequeno general insatisfeito, Fen Fang e Yaling vinham logo atrás — a primeira carregando um ninho de pássaro que dizia ter salvado de uma árvore e a segunda com o rosto todo sujo de doce de feijão e folhas no cabelo.
— Vocês voltaram mais cedo que o previsto. — disse Maomao, levantando-se com a lentidão de quem pressente o desastre. — Quem soltou vocês?
— O vovô disse que era hora de aprendermos coisas de verdade e a Senhorita Chiyo, nos trouxe aqui. — disse Fen Fang, orgulhosa e sorridente. — Tipo colher urtiga sem chorar e identificar cocô de porco.
— Quero fazer remédios igual a você! — Yaling gritou, abraçando a irmã pelas pernas. — E usar vestidos bonitos, e ficar com cara de quem não dorme por causa do trabalho.
— Você tem cara de quem não dorme porque não para quieta. — rebateu Zhìyuǎn, já tentando escalar um dos pilares do jardim.
Maomao suspirou.
— Eu costumava ser única, uma filha só, silenciosa, centrada, adorada.
— E então nasceu grudada comigo, lembra? — disse Lahan, que surgira encostado no batente, com um sorriso debochado. — Depois vieram mais três, como se nossos pais fossem camponeses cultivando nabo em série.
— Não me lembro de ter sido consultada — resmungou Maomao, mesmo que, no fundo, um sorriso ameaçasse romper a expressão sisuda.
— Maomao! — Yaling se pendurava agora nos ombros da irmã. — Posso mexer no seu estojo de venenos? Eu prometo não lamber nada!
— Absolutamente não. — ela tirou a irmãzinha com delicadeza e entregou-a nos braços de Lahan. — Vocês três são como ervas daninhas: nascem, crescem, grudam em tudo e ainda atraem insetos.
— Mas você gosta de insetos! — disse Fen Fang, sacando uma larva do bolso.
— Fen Fang, por favor, diga que isso não está vivo. — Maomao a encarou incrédula.
A astúcia dos irmãos era surpreendente.
— Claro que está! A gente trouxe do campo, se chama General Meleca.
Maomao cobriu os olhos.
— Céus, me levem. — comentou levantando as mãos para o alto.
Foi nesse instante, em meio ao pandemônio infantil, que ela o percebeu
Aquele silêncio distinto, um tipo raro, firme, quase cerimonial, como o vácuo entre uma pergunta e uma resposta.
Ela se virou, e lá estava ele.
Jinshi, à sombra do corredor de pedra, parado com uma expressão indecifrável, usava um hanfu azul profundo que contrastava com o calor do entardecer, e segurava uma pequena caixa de madeira com ambas as mãos, como se carregasse algo delicado demais para um mundo tão barulhento.
Zhìyuǎn foi o primeiro a percebê-lo, com olhos semicerrados e desconfiança infantil.
— Quem é esse? — perguntou com a natural agressividade protetora de um irmão mais novo. — Por que ele tá te olhando desse jeito?
— É só um... conhecido — disse Maomao, lutando para manter a compostura.
— Ele parece um pavão de templo — comentou Fen Fang.
— Um pavão triste — completou Yaling, que agora encarava Jinshi com um biscoito pela metade na mão.
Jinshi, que jamais fora descrito com tanta precisão em tão poucas palavras, abriu um leve sorriso tesignado, e por algum motivo, genuinamente encantado.
— Eu não sabia que a Lady Kan tinha soldados tão... implacáveis — disse ele, com reverência contida.
— São mais como pragas controladas — respondeu Maomao, agora desconcertada e talvez mais mal humorada do que gostaria de admitir.
Ela se aproximou dele, guiando os irmãos para longe com a autoridade de quem sabia misturar cicuta com açúcar e, por um breve momento, Jinshi se perguntou como alguém podia parecer tão implacável e tão absolutamente acolhedor ao mesmo tempo.
Enquanto as crianças corriam para dentro, Lahan ficou para trás, sacudindo a cabeça com divertimento.
— Boa sorte, príncipe. — murmurou, e sumiu com a tropa mirim.
Maomao cruzou os braços diante de Jinshi, tentando não parecer nervosa.
Por um instante, tudo ficou suspenso, os olhos azuis dela, os mesmos de Lakan, mas mais profundos, mais inquisidores encontraram os olhos violeta de Jinshi, e o ar pareceu rarefeito.
— Três dias — disse ela, com um leve arquejo de voz. — Pensei que encontraria um cadáver esperando aqui, coberto de formigas.
— Lamento desapontá-la. — respondeu Jinshi, com um sorriso enviesado. — Estou vivo e aparentemente sem picadas.
— Então veio cumprir uma promessa, não achei que príncipes levassem a sério esse tipo de coisa, especialmente se envolvesse... sujeira.
— Há sujeiras piores do que as do jardim. — retrucou ele, abaixando-se para examinar uma trilha de formigas que contornava um vaso quebrado. — Algumas estão nos corredores dourados da corte, outras, na teimosia das mulheres de olhos azuis.
Maomao não respondeu de imediato, em vez disso, estendeu a mão até a mesa ao lado e ofereceu-lhe uma xícara de chá. Ele hesitou, depois pegou com firmeza, tocando de leve seus dedos no processo, calor, pele.
— Sabe — ela disse, voltando os olhos para as flores que murchavam ao lado do banco -, esperava que pedisse para ver o que havia por trás da minha recusa, esperava até alguma chantagem, mas veio e esperou. Isso é... surpreendente.
— Eu não vim para convencê-la — respondeu Jinshi, sentando-se à sua frente, mantendo a distância protocolar entre nobres e noivas em potencial. — Vim para ver se... havia sentido no meu desejo.
O silêncio pairou entre eles como uma respiração contida.
— E há? — ela perguntou, sem mudar o tom.
— Ainda estou analisando. — o sorriso dele era afiado. — Mas o relatório inicial é promissor.
Ela riu, de verdade, um som baixo, quase rouco, que o atingiu no peito como um soco gentil.
— Então, Alteza, — disse ela, cruzando as pernas com elegância displicente — está disposto a escavar jardins, enfrentar insetos e suportar conversas afiadas só por uma possível chance?
— Não por uma chance, por uma certeza. — os olhos dele escureceram, intensos. — A certeza de que não me contentarei com menos.
Ela o fitou, longamente e , por um momento, algo nela suavizou.
— Então traga luvas da próxima vez. — a voz dela foi um sussurro. — Há ervas que picam e outras que curam, nem sempre é fácil distinguir.
— Pegue aquela cesta ali, Alteza. — disse Maomao, sem olhar para ele, apontando com o queixo para uma pequena estrutura de vime junto à sebe. — E cuidado ao pisar: há uma colônia de besouros enterrados sob a hortelã.
Jinshi arqueou uma sobrancelha, mas obedeceu.
Não era como se estivesse acostumado a obedecer comandos e, no entanto, ali, naquele jardim, onde os insetos eram reis e as ervas falavam mais do que os conselheiros do palácio, Maomao era soberana e, ele... apenas um homem de olhos atentos e mãos limpas demais.
Ela se abaixou com facilidade, colhendo folhas de shiso com precisão, examinando cada uma contra a luz. O hanfu dela deslizou como seda líquida pelos braços e pernas, revelando vislumbres da pele salpicada de sol, o cheiro da terra, da planta esmagada entre os dedos, do suor que se formava sob o calor do entardecer... tudo parecia mais vívido com ela ali.
— Sabe para que serve essa erva? - ela perguntou, sem o encarar.
— Uma pista: não é para chás relaxantes. — respondeu ele, aproximando-se mais do que o necessário.
Ela inclinou o rosto na direção dele, os olhos semi-cerrados com desdém performático.
— Ajuda a controlar envenenamentos e náuseas, útil em festas de corte, onde a comida é farta e a confiança escassa.
— Parece... familiar.
— Imaginei.
Ela passou por ele, roçando o braço contra o seu com naturalidade estudada. Ele se virou, acompanhando-a com os olhos, como se ela fosse uma equação que ainda não sabia decifrar — mas desejava, com urgência.
— Essa aqui, — ela disse, agachando-se próxima a uma flor azul miúda — é a flor do sono. Se ingerida em excesso, paralisa, se queimada, serve para afugentar pragas. — Tocou-a com delicadeza. — Sempre tive carinho por ela.
— Curioso apego - murmurou Jinshi, ajoelhando-se ao lado. — E se fosse usada contra você?
— Eu aprenderia a neutralizá-la. —seus olhos se voltaram para ele. — A maioria dos venenos é só uma questão de dose.
O silêncio seguinte foi preenchido por uma tensão densa, quase física.
Jinshi segurava a cesta com uma das mãos e a outra descansava sobre a coxa, onde uma pequena aranha se arriscava a atravessar o tecido nobre de sua roupa.
— Não se mexa. — disse Maomao, abruptamente.
Ele obedeceu.
Ela se aproximou, lentamente, e com dois dedos capturou a aranha com precisão. A palma da mão roçou no peito dele — talvez sem querer, mas foi o suficiente para que Jinshi sentisse a espiral quente subir do estômago à garganta.
Ela depositou o inseto sobre uma pedra e o observou seguir caminho.
— Um príncipe obediente... — disse ela, quase zombando. — Estou impressionada.
— Não costumo permitir que mulheres subam por cima de mim — disse ele, com um sorriso enviesado. — Mas se for por uma aranha, abro exceção.
Ela o fitou por um instante, depois voltou a colher folhas com um movimento seco.
— Imagino quantas exceções tenha feito ultimamente.
Ele não respondeu, apenas a observava.
Não apenas com desejo, embora houvesse isso também, mas com uma espécie de fascínio inquieto. Maomao tinha o tipo de inteligência que ferve por baixo da pele. O tipo de beleza que não pede atenção, mas a segura firmemente quando chega.
Ela, por sua vez, analisava.
Cada movimento dele, a forma como ele se dobrava para pegar um caule de alecrim, como o suor começava a umedecer a nuca, como as mãos dele, antes artificiais, polidas já tinham traços da terra entre os dedos. Ele estava ali presente e estranho.
- Está mesmo disposto a se sujar por uma mulher que não sorri fácil, não cozinha, não dança e prefere formigas a flores? — ela perguntou, erguendo os olhos de um punhado de folhas amargas.
— Estou disposto a ser vencido por ela — respondeu ele, sem hesitar.
Maomao parou por um segundo.
— Vencido?
— Sim. — ele se aproximou mais uma vez, e a voz dele caiu num tom grave e baixo. — Não por humilhação, mas por rendição, à sua lógica, à sua língua afiada, à forma como você me enxerga e ainda assim não foge.
Ela o encarou, a distância entre os dois já não era suficiente para esconder o que se formava ali.
— Cuidado — disse ela, em tom quase inaudível. — Uma dose errada dessa erva, e tudo que é nobre... desmorona.
— Talvez eu queira mesmo desmoronar.
Ela não disse nada, arqueou uma sobrancelha.
E assim, naquele jardim repleto de risos infantis e folhas esmagadas, algo silencioso e novo começou a brotar, mais teimoso que as ervas daninhas, e muito mais perigoso.
O jardim dos fundos exalava um cheiro denso de terra úmida e folhas amassadas. Sob a copa rarefeita das árvores frutíferas, o sol filtrava-se em recortes dourados, repousando sobre as bordas dos vasos e nas costas arqueadas de Maomao.
Ela estava ajoelhada, cotovelos sujos de barro, mas o olhar límpido e cirúrgico como uma lâmina bem afiada, havia formigas circulando entre suas mãos e raízes, mas nada parecia incomodá-la. Nem mesmo a presença de Jinshi, que se equilibrava desconfortavelmente a um palmo dela, tentando não parecer deslocado - e fracassando.
— Você nunca viu uma raiz de angélica de perto, Jinshi? — perguntou ela, sem levantar os olhos, mas ciente da tensão nos ombros dele.
— Já li sobre elas — respondeu, com esforço, encarando o nódulo branco que ela acabara de expor. — Mas não em meio a formigas, nem em companhia tão... minuciosa.
— Minuciosa? — ela soprou o pó da raiz com delicadeza provocante. — Que palavra educada para uma mulher que enfia as mãos na lama e pergunta demais.
Jinshi sorriu, mas foi um sorriso contido, observou-a em silêncio por um instante, o olhar escorregando da nuca exposta ao contorno quase imperceptível da clavícula sob a gola frouxa da túnica.
— Não vejo isso como um defeito - disse ele. — Desde que as perguntas não sejam uma armadilha.
Maomao ergueu os olhos, o sorriso dela agora era uma linha fina, perigosamente ambígua.
— E se forem?
— Depende da intenção da armadilhadora.
Ela se endireitou com lentidão, limpando a ponta dos dedos na bainha da própria túnica antes de caminhar até o regador de cerâmica. Derramou a água sobre as raízes, sem pressa.
— Suponha — começou ela, em tom leve demais para ser casual — que uma mulher pergunte a um homem por que ele insiste em segui-la até um jardim esquecido no fim da tarde, em vez de permanecer em seu palácio perfumado, entre fãs e poemas.
Jinshi a acompanhou com o olhar, o som da água era quase hipnótico.
— Talvez — respondeu ele, quase sem hesitar — porque esse jardim, embora menos perfumado, é mais interessante. E a mulher, embora cheia de espinhos, tem um perfume que não se copia.
Maomao sorriu, mas não corou.
— Flertes baratos não combinam com a sua voz, Jinshi.
— Nem você com suposições falsas, se quiser saber algo, pergunte.
Ela pousou o regador no chão, se aproximando devagar, o rosto inclinado. Ficaram a menos de um braço de distância, havia formigas entre eles e perguntas demais.
— Você tem medo de mim? — sussurrou ela, mas havia algo afiado na pergunta.
— Eu deveria?
Maomao ergueu o queixo, observando-o como se estudasse uma planta rara. Depois, deu de ombros.
— Talvez. Não é qualquer um que tolera minhas raízes.
O silêncio que se seguiu foi denso, mas não desconfortável, Jinshi abaixou-se ao lado dela, finalmente, pegou a enxada pequena e tentou imitar o gesto que ela fizera momentos antes, mas de modo desajeitado.
Ela não corrigiu, apenas observou.
— Isso foi um elogio? — perguntou ele, sem a encarar.
— Foi um aviso.
Antes que pudesse continuar, ouviram um sussurro abafado vindo de trás do cercado do pomar.
— Shhhh! Ele tá olhando! — advertiu Fen Fang.
— E ela tá tão séria! Será que vai casar com esse? — Yaling sorria travessa.
— Ou será que vai assustar ele também, igual os outros? — apostou Zhìyuǎn com certa honestidade.
Maomao soltou um suspiro baixo, mas seus olhos brilharam, os irmãos estavam de volta.
As folhas se mexeram e Zhìyuǎn, Fen Fang e Yaling se espremeram por entre as frestas do arbusto, tentando observar sem serem vistos e falhando miseravelmente.
— Peço desculpa pela indelicadeza dos meus irmãos - disse Maomao, erguendo-se com a tranquilidade de uma tempestade à espreita. — Embora... não estejam totalmente errados.
Jinshi arqueou uma sobrancelha, surpreso com a franqueza.
Fen Fang arregalou os olhos.
— Não estamos errados? Então vocês vão mesmo casar? — perguntou sorridente — Seu quarto vai ser finalmente meu?
—Vai sonhando peste.
Zhìyuǎn franziu o cenho, protetor:
— Você gosta dele, irmã?
Maomao olhou para Jinshi, depois, para as mãos sujas de terra, então voltou o olhar para os pequenos.
— Isso, meus queridos, ainda está em fase de... observação botânica.
Yaling, que mal entendia metade do que era dito, gritou animada:
— Viva o príncipe das plantas!
E Jinshi, pela primeira vez desde que pisara naquela casa, soltou uma gargalhada que era tão limpa quanto inesperada.
Maomao virou-se de costas e voltou ao seu canteiro.
Mas por dentro, sentia que as raízes tinham começado a se enredar.
E quando o sino da casa tocou ao longe - um chamado para a refeição noturna, nenhum dos deles se moveu de imediato.
Nem a brisa os separava mais.
A casa parecia mais silenciosa do que antes, talvez fosse o contraste com a inquietação dos pensamentos que carregavam, ou talvez o próprio ar houvesse se tornado espesso, como o resíduo de algo que não fora dito, mas pairava entre eles como vapor após o banho.
Maomao caminhava alguns passos à frente, Jinshi a seguia com as mãos entrelaçadas nas costas, o olhar cravado na nuca dela, como se cada movimento contivesse algum código secreto.
Ela não olhou para trás, mas sabia, sabia que ele a observava.
Sabia desde o momento em que seus dedos haviam se tocado sobre o caule do crisântemo, quando ele, sem querer ou não, deixara o gesto durar mais do que devia e o que deveria ser apenas um toque breve de jardineiros se tornara uma epifania silenciosa.
Ela tentava afastar o calor residual disso, o modo como ele parecia tão deslocado e ainda assim tão à vontade entre as ervas, tão observador e distraído ao mesmo tempo, com o rosto iluminado em meio à sombra das glicínias.
Mas os pensamentos de Maomao sempre foram treinados para fugir da sedução, disciplinados até hoje.
Quando cruzaram o vão da casa em direção ao salão de jantar, ela notou que Jinshi desacelerou os passos ao lado dela. Por reflexo, ela também diminuiu o ritmo.
— Ainda está com terra nos dedos, alteza — comentou, sem olhar.
— É uma honra carregar o perfume do jardim de sua família — respondeu ele, com aquele tom grave e disfarçadamente sarcástico. — Imagino que meus servos desmaiarão ao me ver assim.
Ela franziu um canto da boca, sem conter um quase sorriso, odiava quando ele fazia isso, usava o humor como escudo, como disfarce, ela o via.
— Não são as mãos que revelam a sujeira de um homem, mas o que ele tenta esconder atrás delas.
Jinshi parou, respirou devagar, como quem saboreia a provocação.
— Então, devo me preocupar com o que você consegue enxergar?
Ela se virou pela primeira vez, os olhos estreitos, fixos nos dele.
— Eu não me preocupo com o que não posso mudar.
E então entrou.
No salão, os criados já dispunham a mesa, a mãe de Maomao dava ordens com gestos econômicos, enquanto o pai observava os pratos com olhar apurado, Lahan já estava sentado, tamborilando os dedos sobre a mesa, e fez um gesto rápido com o queixo ao ver os dois se aproximando.
— Vieram inteiros, que surpresa. — brincou FengXian sorrindo.
Jinshi respondeu com um sorriso polido, Maomao apenas ocupou seu lugar.
Nada mais foi dito.
O silêncio durou apenas até a terceira colher de sopa.
Foi Lahan quem abriu o jogo, como sempre o fazia com um sorriso cortês que não chegava aos olhos:
— Então, alteza... — começou, segurando a tigela de chá como quem segura uma arma elegante — ...o jardim agradou ou apenas serviu para alimentar sua conhecida tendência à introspecção?
Jinshi ergueu uma sobrancelha.
— Agradou, mais do que eu esperava, confesso. Embora talvez tenha me distraído demais para analisar as plantas com precisão.
— Ah — respondeu Lahan, meneando a cabeça com falso pesar, — uma pena. Maomao gosta de ser avaliada com precisão, principalmente quando está entre ervas e venenos, claro.
A mãe limpou os lábios com calma, pousando os hashis na borda da tigela.
— A precisão, alteza, é essencial quando se trata da nossa filha, ela pode parecer... rude em certos momentos, mas é apenas uma máscara, como a vossa. — Zhìyuǎn falou enchendo a boca de carne.
Maomao segurou o riso, não precisava participar daquela dança, os pais e os irmãos dançavam por ela, mas isso não a impediu de beliscar Zhìyuǎn por debaixo da mesa.
Mas foi nesse momento que a porta lateral deslizou com um leve rangido, revelando três pequenas figuras espremidas atrás do painel de madeira.
— Já acabou o veneno? — perguntou Zhìyuǎn, com os olhos arregalados e o cabelo bagunçado, ele falava como quem esperava ouvir gritos ou explosões a qualquer momento.
Fen Fang, de olhos atentos e expressão séria demais para seus nove anos, puxou o irmão para trás pela manga.
— Shh, não interrompe, eles estavam na parte das indiretas.
Yaling, com os cabelos presos de qualquer jeito e o rosto sujo de giz, espiava com curiosidade por cima do ombro da irmã:
— Já assustou ele também, irmã? Ou ele vai voltar mais vezes?
A mãe suspirou profundamente, pousando a xícara com calma.
— Eu achei que vocês estivessem estudando o clássico da etiqueta ao invés de curiar a vida alheia de Maomao.
— Estávamos — respondeu Fen Fang, com absoluta convicção, — mas isso aqui é etiqueta avançada.
O pai deu uma breve risada pelo nariz, sem tirar os olhos de Jinshi.
— Esses são os mais jovens, já deve tê-los conhecido, impossível fugir do olhar deles. — disse ele, num tom que misturava resignação e orgulho — Infelizmente, não pudemos podá-los a tempo.
Zhìyuǎn fez uma reverência desajeitada na direção de Jinshi.
— Alteza, se minha irmã gritou com o senhor, ela não quis ofender, ela é assim com todos que aparecem aqui achando que vão casar com ela.
Maomao levou a mão ao rosto, em silêncio, Jinshi, por outro lado, curvou-se levemente, contendo um sorriso.
— Agradeço a gentileza da advertência, ficarei atento.
Yaling cochichou algo no ouvido de Fen Fang, as duas riram, a mãe finalmente fez um gesto e os três irmãos saíram, pisando em silêncio de propósito, o que os tornava ainda mais barulhentos.
Quando a porta se fechou, Jinshi soltou o ar devagar.
— Confesso que temi mais os caçulas do que seu pai.
— Com razão - disse Maomao. — Eles sabem onde ficam os frascos mais perigosos da casa e onde me esconder quando não quero ser encontrada.
— Eles falam com mais liberdade do que muitos ministros do Império — comentou Jinshi, divertido.
— E são mais eficientes também — respondeu Lahan. — Eles já sabem o que querem da vida e, claramente, estão apostando se ela vai casar ou fugir de novo.
FengXian murmurou algo inaudível, e Lakan disse, quase como um pensamento que escapou:
— Esperteza em excesso na infância é um aviso do destino, pode ser bênção ou castigo.
Todos calaram-se por um instante, como se cada um tivesse engolido uma reflexão maior do que o chá comportava.
Maomao manteve os olhos na mesa.
Mas ali, no fundo da garganta, um gosto amargo subia, não era o chá, nem o incômodo dos irmãos. Era o que ninguém ali dizia, mas todos viam: a possibilidade real de que aquele jantar não fosse só um teste de comportamento, mas uma introdução disfarçada.
A possibilidade de uma escolha futura.
O jantar foi servido sem grandes cerimônias: arroz com raízes macias, peixe ao vapor com folhas de mostarda, e uma sopa de cogumelos que fumegava no centro da mesa, mas por mais que o aroma fosse aconchegante, pairava algo não dito entre os quatro.
Maomao serviu-se em silêncio, sentia o peso do olhar dele sobre seus dedos, sobre o movimento leve com que soprava a colher antes de levá-la aos lábios. Ele a observava como se tivesse descoberto uma nova língua e estivesse desesperado para compreendê-la.
Jinshi, por sua vez, comia pouco.
A colher parava no meio do caminho, os olhos fixos num ponto qualquer ou nela, era difícil saber, havia uma mistura desconfortável de presença e devaneio em sua expressão, como se o corpo estivesse ali, mas o espírito ainda repousasse entre os vasos de hortelã.
Lahan falou alguma coisa sobre as chuvas dos últimos dias, mas ninguém respondeu.
A mãe de Maomao pigarreou e serviu mais chá.
Foi então que Jinshi quebrou o silêncio:
— O jardim é mais antigo do que parece.
O pai ergueu os olhos.
— Era da minha mãe, depois de um tempo, Maomao assumiu.
Jinshi olhou para Maomao, ela manteve os olhos na sopa.
— Não imaginei que a senhorita gostasse de cuidar de vida... viva.
Ela ergueu uma sobrancelha, então finalmente o encarou.
— Eu cuido do que posso controlar, o resto, deixo para os tolos que acreditam que sentimentos podem ser podados como hortelã.
Um ruído de riso escapou da garganta de Lahan, abafado pela borda da tigela, o pai de Maomao sorriu com os olhos, FengXian não riu, mas pela primeira vez, relaxou os ombros.
Jinshi sustentou o olhar de Maomao por um longo momento e então baixou os olhos para o chá.
Nada mais foi dito.
FengXian limpou os lábios com calma, pousando os hashis na borda da tigela.
— A precisão, alteza, é essencial quando se trata da nossa filha, ela pode parecer... rude em certos momentos, mas é apenas uma máscara, como a vossa.
Maomao segurou o riso, não precisava participar daquela dança, os pais dançavam por ela.
Jinshi manteve a compostura, serviu-se de um pedaço pequeno de nabo e respondeu, com voz límpida:
— Imagino que máscaras sejam comuns em qualquer casa que preze pela sobrevivência.
O pai, que até então comia em silêncio, ergueu os olhos, sua voz veio grave, porém desprovida de agressividade:
— Algumas máscaras são feitas para ocultar intenções, outras, para proteger feridas e há as que são vestidas por prazer ou vaidade.
Ele olhou Jinshi nos olhos por longos segundos.
— O senhor sabe qual é a sua?
O ar pareceu prender na garganta de Maomao, Jinshi abaixou os olhos para o chá.
— Ultimamente, me pergunto isso todos os dias.
A sinceridade da resposta causou um leve incômodo à mesa, como se, por um momento, todos tivessem tocado em algo frágil demais para estar à mostra ali.
Mas foi a mãe quem recolheu o clima, como uma anfitriã que se recusa a deixar o vinho azedar.
— É raro vermos alguém do seu nível se sujeitar a esperar três dias por uma conversa em meio a formigas.
— Formigas bem cuidadas - acrescentou Lahan.
— E perspicazes — disse Maomao, baixando os hashis. — Podem sentir o medo de um homem antes que ele saiba que o tem.
Jinshi olhou para ela, havia, nos olhos dele, uma tensão interna que nem mesmo ele parecia compreender. Como se ela estivesse sempre três passos à frente, como se, por mais que tentasse, nunca conseguisse prever onde aquela mulher terminaria uma frase.
— Não tenho medo — respondeu ele, baixando a tigela. — Apenas... curiosidade.
— A curiosidade, alteza — disse Lakan, cortando uma fatia de peixe com precisão cirúrgica — ...é a irmã ingênua da obsessão.
— E a madrasta do arrependimento — completou FengXian, como quem recita um provérbio antigo.
Jinshi segurou o riso, pela primeira vez, Maomao viu uma centelha genuína em seus olhos, não o de provocação, mas de encanto. Eles estavam fazendo com ele o que ela fazia com os outros: analisando, tensionando, observando, era quase como se o tivessem colocado sob vivissecção.
— Parece que sou o prato da noite - disse ele, por fim, erguendo a taça de chá. — E fui temperado com ironia e ervas sutis.
— Ora, alteza, — disse Lahan — se não aguentar o tempero, não deveria ter vindo jantar, achei que meus irmãos caçulas já tinham lhe dado uma prévia. — sorriu sarcástico.
Maomao não resistiu, um pequeno riso escapou, abafado pela manga da roupa, Jinshi a encarou de relance, e naquele instante, ambos sabiam: estavam mais próximos do que gostariam de admitir.
A conversa afrouxou então, migrando para temas mais amenos, as chuvas recentes, os mercados de ervas em declínio, os insetos em temporada fértil, mas tudo era permeado de duplos sentidos e Jinshi, por mais astuto que fosse, sabia: estava cercado de estrategistas e a mais perigosa de todas estava ali, com os olhos semicerrados e o dedo girando o chá em círculos lentos, como quem manipula um remédio.
Ou um veneno.
Quando finalmente o jantar chegou ao fim, Jinshi se ergueu com a polidez de quem sabe que já fora vencido em campo simbólico e ainda assim permanece digno.
— Agradeço a hospitalidade — disse, curvando-se levemente.
FengXian respondeu com um gesto de cabeça, Lakan, com um grunhido suave, Lahan, com um sorriso.
Maomao o acompanhou até a entrada com Yaling, em silêncio.
Antes de cruzar o portão, ele se virou, hesitante.
— Nos vemos no pôr do sol.
Ela assentiu.
— Traga luvas, se não quiser ser picado por formigas. — pontuou Yaling sorrindo sapeca no colo da irmã.
Ele sorriu, quase num sussurro.
— E se quiser?
Maomao ergueu as sobrancelhas.
— Então escolha bem qual mordida deseja provocar.
E fechou a porta.
Maomao permaneceu ali por alguns segundos após fechar a porta, o som firme da madeira ecoando suavemente contra as paredes internas da casa. Não havia vento, mas sentia o ar se mover de algum modo invisível, como se até os elementos aguardassem, suspensos, o que viria dali a três dias.
— Ele parece uma princesa com aqueles olhos Maomao.
— Eu também acho Ya, ele parece menina. — brincou com a irmã.
— Podemos vestir ele com suas roupas e maquiagem, assim teremos outra princesa. — Zhìyuǎn falou com convicção, o que fez a primogênita rir genuinamente.
— Acho que já temos três princesas e isso já é o suficiente não acha?
— Não, acho que se tivéssemos mais uma seria divertido. — Fen Fang disse abraçando o gêmeo.
"Deus me livre que a mamãe e o papai resolvam fechar a fábrica agora... vou me traumatizar antes mesmo de pensar em ter meus próprios filhos", pensou Maomao com uma exaustão que beirava o riso, enquanto afagava os cabelos de Yaling, que lutava bravamente contra o sono, o corpo mole e quente aninhado em seus braços.
Apesar de dizer com frequência e ênfase que detestava a ideia de ter irmãos, ninguém mais no clã ousaria duvidar do zelo silencioso que ela tinha por eles, era um cuidado que Maomao negava com palavras, mas entregava nos gestos: na forma como penteava os cabelos finos de Fen Fang pela manhã, no modo como ajeitava os cobertores dos gêmeos antes que a brisa noturna atravessasse o papel das janelas.
Naquela noite, os pequenos haviam vencido sua resistência habitual com o cansaço dos jogos no pátio. A contragosto — como se estivessem sendo forçados a abdicar do trono de imperadores do caos — os gêmeos se deitaram na cama baixa, ainda resmungando baixinho sobre quem teria mais espaço.
Maomao, com paciência treinada entre remédios e cortes de precisão, apenas os cobriu com o lençol fino, ajeitou o travesseiro de Fen Fang, e então caminhou até o outro lado do quarto, onde Yaling já piscava devagar, os cílios batendo como asas cansadas.
Sentou-se ao lado da pequena, que imediatamente se aconchegou, puxando um pedacinho de sua manga com os dedos minúsculos.
— Vocês vão me matar de cansaço antes dos trinta — murmurou Maomao, sorrindo de canto.
Mas o sorriso se tornou cheio, leve, verdadeiro, quando ela se inclinou para beijar a testa de cada um, como quem sela uma promessa de cuidado silencioso.
Depois de um último olhar demorado, como quem deseja guardar aquele instante, ela se ergueu devagar e fechou a porta com lentidão, cuidando para não ranger.
Na penumbra do corredor, suspirou fundo.
Era o único momento do dia em que a casa parecia respirar com ela, o único intervalo de paz: quando os pequenos dormiam ou quando viajavam.
Maomao encostou a testa na madeira fria da porta fechada.
Por um instante, o mundo deixou de ser barulhento.
Do outro lado da casa, os passos dos pais e de Lahan se afastavam, a conversa já retornando a temas triviais, mas ela sabia: cada um deles estava ciente do que aquele jantar havia deixado exposto. Não as intenções de Jinshi, essas eram quase impossíveis de decifrar por completo, mas algo mais revelador: o efeito que Maomao tinha nele e o que ele causava nela, ainda que ela não dissesse em voz alta.
Caminhou de volta pelos corredores pouco iluminados, passando pelas estantes com vidros opacos, pelas samambaias penduradas e pelos pequenos frascos de infusão alinhados com precisão ao longo da parede. Cada detalhe daquela casa era um lembrete: ela vinha de um lugar onde o veneno era manipulado com a mesma leveza com que se servia chá.
Ao chegar à sala de chá, encontrou os pais e Lahan ainda sentados, o bule sendo reabastecido.
— Não demorou — comentou o pai, sem levantar os olhos.
— Ele hesitou no fim — disse Lahan, sem se referir ao portão, mas ao olhar que Jinshi lançara antes de partir. — Isso pode ser útil.
— Ou perigoso. — ponderou a mãe, girando a xícara com dedos ágeis. — Há homens que hesitam por vaidade e há os que hesitam porque sentem demais. Não sei qual dos dois ele é ainda.
Maomao se sentou em silêncio, cruzando as pernas sobre o tatame.
Observou o vapor que subia do chá recém-servido, inspirou fundo, canela, cravo e algo mais profundo, terroso, como raiz de ginseng envelhecida, eles estavam preparando um antídoto? Ou apenas uma memória?
— Seja qual for o tipo de hesitação, — ela disse, por fim — não muda o fato de que ele voltará, as crianças o amaram, ainda não conseguiram traumatizá-lo por completo.
Todos assentiram contendo o riso.
— E você? — perguntou a mãe, olhando-a de soslaio.
Maomao ergueu os olhos, havia algo em sua voz que ninguém ali jamais ouvira: uma pausa.
— Eu? — sorriu. — Eu estarei no jardim com as formigas.
E então tomou um gole de chá.
Lento, silencioso, quase cruel.
Lá fora, a noite caía por entre os beirais como um segredo guardado entre folhas. E na sombra das ervas secando no varal, Maomao soube: dali a três dias, quando o sol tocasse o horizonte, algo mudaria. Talvez nela ou talvez nele.
Talvez nos dois.
Mas, até lá, ela teria tempo.
Tempo para preparar o solo.
Tempo para observar as reações.
Tempo para escolher a mordida certa.
Chapter 3: O Perfume das palavras não ditas
Chapter Text
E mais uma vez, Maomao havia pedido três dias ao Príncipe da Lua.
Ela mesma já havia perdido a conta de quantas vezes adiou aquela decisão, às vezes, nem sabia ao certo o que a fazia hesitar, não era dúvida disso tinha certeza, tampouco medo. Talvez fosse só o hábito de resistir por esporte, ou talvez um resquício de orgulho mal curado.
O curioso era como ele ainda a suportava.
Um príncipe, um homem cercado de rituais, adulado por nobres, temido por cortesãos, um nome gravado entre os mais altos registros do império... e ali estava ele. Rendido às vontades de uma mulher que, se quisesse, poderia desmantelar o palácio inteiro com meia dúzia de palavras afiadas.
Ela era uma peça central, disso tinha plena consciência, mas ainda assim, não deixava de ser cômico ver um príncipe, acima de sua posição, obedecer seus caprichos como se fosse um criado. No fim, tudo dependeria dela e ele sabia.
Nos fundos da casa, onde a política não alcançava e o protocolo era enterrado sob a terra quente do quintal, o dia seguia com uma calma quase preguiçosa.
A luz filtrava-se suave entre as folhas da parreira, lançando sombras dançantes sobre o chão de terra batida, o cheiro de figo amadurecendo no pé misturava-se ao aroma terroso das ervas recém-colhidas, e o vento morno carregava consigo o som das risadas infantis.
Ali, sob a sombra trançada das parreiras, os três irmãos mais novos de Maomao estavam reunidos em sua já tradicional conferência de guerra.
— Ele não piscou quando a mamãe derramou chá nele sem querer — disse Zhìyuǎn, com os braços cruzados sobre os joelhos e o queixo afundado, os cabelos negros e lisos reluziam um tom esverdeado quando tocados pela luz, seus olhos azul-púrpura, tão expressivos quanto os da mãe, estavam semicerrados de pura desconfiança.
— E nem quando as formigas subiram nele — completou Yaling, franzindo o nariz como se ainda sentisse o cheiro do "inimigo". Ela tinha apenas seis anos, mas seu tom já carregava uma autoridade precoce e impiedosa. Os cabelos castanho-escuros dançavam soltos sobre os ombros miúdos, e os olhos roxo-acinzentados faiscavam com cada nova suspeita. — Aquela foi uma ofensiva legítima, formiga até o tornozelo, e ele nem se mexeu.
Sentada com as pernas cruzadas como uma pequena eremita, Fen Fang, com suas longas tranças verde-escuras caídas sobre o ombro, examinava com concentração um pedaço de tecido de algodão amarelado. Linhas bordadas à mão cruzavam o pano como rotas de espionagem.
— Tem algo de... quieto demais nele — murmurou, os olhos rubros semicerrados. — Como se estivesse sempre prestando atenção e ele é bonito demais, isso é um problema, de costas, parece uma mulher.
Os outros dois travaram por um segundo, antes de explodirem em gargalhadas tão altas que o galho da parreira pareceu tremer.
— Ei! Ele é bem másculo! — defendeu Zhìyuǎn, tentando falar entre uma risada e outra. — Mas tem aquele jeito... elegante. Anda como quem nunca pisou num lugar com poeira.
— É isso! Ele anda como se tivesse medo de sujar as meias invisíveis. — zombou Yaling, rindo tanto que caiu para o lado — UM PAVÃO EMPLUMADO! — gritou animada em meio as risadas.
Fen Fang não riu, mas um sorriso brotou em seus lábios, seus olhos permaneciam fixos no pano bordado, as mãos movimentando-se com precisão.
— Gente muito bonita nunca é confiável, — decretou. — a beleza serve pra distrair dos defeitos.
— E ele cheira bem demais — acrescentou Yaling com um muxoxo teatral. — Isso é ofensivo, homens normais não deveriam cheirar a cravo e jasmim depois de uma tarde no jardim. — — disse apontando para Zhìyuan que fedia mais que um javali.
— Se manca pirralha. — disse bufando empurrando a pequena com certa facilidade, o que a fez rir.
— Já está decidido, — anunciou Fen Fang, com a seriedade de uma magistrada. — vamos testá-lo.
Zhìyuǎn ergueu uma sobrancelha.
— Testar como? Com veneno? — perguntou, animado demais para o gosto da irmã.
— Ainda não, isso seria precoce. — pontuou de modo sério, os venenos poderiam ser adicionados futuramente para testá-lo melhor, mas isso custaria suas cabeças, Maomao odiava quando mexiam em suas poções e venenos sem permissão, mas por essa situação valeria a pena cada sermão e puxão de orelha — Primeiro, aplicamos o método das Três Bobagens.
Yaling bateu palminhas, empolgada.
— Ah esse! Eu adoro esse plano.
Fen Fang se endireitou e começou a listar com os dedos como se apresentasse uma tese ao Imperador:
— Primeira bobagem: mentiras absurdas sobre a nossa irmã, vamos dizer que Maomao guarda fios de cabelo de cadáveres ou que conversa com plantas como se fossem crianças. Se ele reagir com nojo ou tentar disfarçar demais...
— Ele é falso — completou Zhìyuǎn, com seriedade teatral.
— Segunda bobagem: trabalho sujo — continuou Yaling. — Vamos pedir ajuda com o composto do jardim, com as minhocas, esterco, tudo. Se ele não puser a mão na terra...
— É só mais um príncipe mimado — concluíram os dois irmãos juntos, com ar entediado.
— E a terceira, e mais importante bobagem — disse Fen Fang com solenidade — ciúmes, vamos inventar que Maomao tem outro pretendente. — sorriu maléfica — Um médico pálido e doente, ou talvez um oficial do exército, robusto, com uma cicatriz no rosto. Se ele não reagir...
— Ele não serve pra ela — repetiram os três em uníssono.
O silêncio se seguiu por um instante, trocando olhares cúmplices, até que Zhìyuǎn rompeu com um sorriso enviesado:
— E se ele passar por tudo?
Yaling deu de ombros, pragmática:
— Aí a gente... aceita com relutância, mas ele vai ter que nos levar no Festival da Lua e comprar muito doce pra compensar.
Fen Fang, no entanto, permanecia calada, seu olhar vermelho estava pousado no jardim, onde uma silhueta se movia entre as sombras, — Maomao, equilibrando uma bandeja de bambu cheia de folhas secas para pôr ao sol. Seus movimentos eram suaves, mas havia algo diferente neles. Um cansaço quieto no modo como pisava, como se seus pés tivessem andado léguas em silêncio.
— Se ele passar por tudo... — disse Fen Fang, num tom mais baixo — talvez a gente precise começar a tratá-lo como... parte da família.
Dessa vez, nenhum dos três respondeu, a palavra família pesava mais do que qualquer brincadeira.
E atrás da janela de correr, Maomao, que escutava tudo enquanto fingia separar folhas de lótus, suspirou, o sorriso que escapou foi breve, mas inevitável.
— Príncipe ou não... que os deuses tenham piedade dele — murmurou, virando-se para dentro com um arquejo de riso preso nos lábios. — Porque meus irmãos... não terão.
Era curioso como seus irmãos a viam — quase como uma divindade, alguém inalcançável.
Um exagero, ela admitia, ainda que reconhecesse seu valor e sua posição naquele tabuleiro político. No fundo, sabia que todas aquelas travessuras não eram sobre ela, eram por ela, um esforço infantil e adoravelmente teimoso de protegê-la, como se ela mesma não fosse capaz.
Mas aqueles pestinhas... tinham tanto dela quanto de Lahan, juntos, eram quase um tratado diplomático em forma de caos.
E Maomao não sabia se ria, se chorava ou se começava a preparar antídotos.
[. . .]
O sol ainda não havia atravessado os jardins internos do palácio quando Jinshi, envolto em camadas de seda fina cor de âmbar, permanecia em silêncio diante da mesa ornamentada com papiros abertos. Seus dedos, longos e delicados, repousavam sobre o selo lacrado em cera vermelha — uma carta vinda do Clã Kan.
Ou melhor dizendo, das crianças do Clã Kan.
A caligrafia era um amontoado de traços trêmulos e firmes ao mesmo tempo, havia restos de tinta nos cantos da folha, como se os pequenos tivessem discutido entre si sobre quem escreveria o quê.
"Senhor Príncipe Jinshi (nome terrível primeiramente), somos Zhìyuan, Fen Fang e Yaling, irmãos da nossa bonita e assustadora Maomao. Estamos escrevendo essa carta, pois vimos a forma como você a tratou ontem, mesmo que eu não tenha aprovado o toque das mãos, achei muito indecente, mas viemos aqui escrever que queremos que cuide bem dela.
Ela gosta de chá amargo e de dormir no lado esquerdo da cama, ela também ronca quando está muito cansada (não conte a ela que falamos isso), esperamos que você não seja mais um idiota engraçadinho, se não vamos lhe dar um chute, raspar sua cabeça e te envenenar a sangue frio.
Yaling desenhou um passarinho e uma flor.
Se você se casar mesmo com nossa irmã poderia nos dar um cavalo? E muitas tortas de ameixa? Um pra cada irmão? Menos pro Lahan, a gente não se importa com ele, mas pode nos dar um cavalo, Fen Fang quer um preto, Yaling um branco e eu quero um marrom bem bonito e grande.
E claro seria apropriado dar uma pulseira com a flor de lótus cravejada em rubis como símbolo da união (Fen Fang)
Desde já agradecido, esperamos você daqui 3 dias.
Residência do Clã Kan, Zhìyuan, Fen Fang e Yaling."
Ao lado da assinatura, um desenho torto de um pardal segurando um ramo de jasmim com o bico, Jinshi sorriu discreto, mas ainda assim, um sorriso de verdade.
— Ela ronca? — murmurou, dobrando cuidadosamente o papel — E ainda querem me exigir 3 cavalos? Fascinante.
Foi quando Jiang entrou pela porta com a postura ereta de sempre, os longos cabelos presos apenas com um laço de jade escuro, arrastando Jin-Ye consigo como quem arrasta um pacote barulhento demais para carregar sozinho.
— Ele está aqui, finalmente. — disse Jiang com o cenho franzido. — Faz meia hora que você sumiu depois da audiência, o papai está esperando.
— Esperando para me usar como peão, você quer dizer — retrucou Jinshi, dobrando as mangas.
Jin-Ye, com os olhos avermelhados faiscando de curiosidade, puxou a carta da mão do irmão, mesmo sem permissão.
— Uma carta? Quem te escreve de forma tão infantil?
— Os irmãos dela. — respondeu Jinshi com serenidade perigosa.
— Que irmãos?
— Os pequenos. — ele tirou das mãos de Jin-Ye com um gesto quase carinhoso. — O casal de gêmeos e a caçula, o menino Zhìyuan é sagaz, já Fen Fang me ameaçou de chutes e venenos, e a pequena Yaling me desenhou um passarinho e me exigiu um cavalo, na verdade os trÊs me exigiram cavalos.
Jiang e Jin-Ye não conseguiram controlar as risadas ao ouvir a exigência dos pequenos herdeiros do clã Kan, pelo menos eles sabiam se impor.
— A Lady Kan tem irmãos mais novos? — Jin-Ye estreitou os olhos. — E não contou nada pra gente, típico de vocês dois. Eu precisei ouvir sobre esse noivado por Lingli, acredita? Ela soube por Lihua, que soube de Lady Gyokuyou! Até o Liang de 8 anos sabe! O LIANG! Eu sou sua irmã, você saiu da mesma imperatriz que eu.
— Isso foi... poético. — Jiang riu com ironia. — Ainda que dramático.
— Mas sim querida irmã, Lady Kan tem irmãos mais novos. — Jinshi se levantou, alisando os ombros da túnica. — O papai quer ver todos os filhos homens e as consortes da corte. Vamos antes que a voz de Jin-Ye acabe nos precedendo.
A garota mostrou a língua, ignorando o irmão conforme saía de seus aposento, os acompanhando, Jinshi tinha uma auréa a qual ela invejava, mas era de uma forma positiva, ele sabia como se portar, na verdade ele e Jiang eram invejáveis, ela era apenas a cópia dos príncipes gêmeos da imperatriz, e o peão reserva junto de Lingli se algo desse errado, esse era o fardo de ser uma mulher dentro da família imperial.
O salão da Assembleia Celestial era reservado para momentos que demandavam estratégia e controle, o imperador estava sentado no trono menor, uma das raras ocasiões em que permitia o uso do tom de conselheiro e não de regente.
À sua esquerda, sentava-se Ah-Duo, a imperatriz, fria e inabalável como gelo sobre uma espada afiada, os cabelos escuros adornados por peônias brancas, e os olhos examinando cada herdeiro como se fossem peças em um tabuleiro invisível.
Lady Gyokuyou, com seu sorriso gentil e vestidos florais, trocava olhares com Lady Lihua que, embora jovem, sustentava o olhar de quem sabia exatamente onde o poder se escondia sob as palavras suaves.
Liang estava sentado com as pernas balançando no assento de almofadas, com um pão de mel nas mãos e os olhos arregalados diante do debate que se iniciava.
— A aliança com o Clã Kan é essencial. — começou o imperador. — Mas caso falhem, temos planos secundários, a força naval de Jiangmen está bloqueando três províncias do Sul, se os Kan recuarem, vamos perder os portos de Chang-nyu e a rota de sal refinado, Jinshi?
— Eu irei me casar com a princesa Kan. — declarou ele, sem hesitar. — Mesmo que ela me odeie.
— Isso não vai acontecer. — murmurou Jin-Ye, divertida. — Ela vai odiar metade de você, amar a outra e te deixar confuso por meses, já posso ver você emburrado nos corredores do palácio.
— Ela parece ser mais esperta do que você. — disse Lingli, esticando o pescoço atrás da cortina de seda onde espiava. — Isso é... encantador, finalmente alguém que pode bater de frente com o gêmeo do Jinshi também.
Jiang ergueu uma sobrancelha.
— Por que fui incluso?
— Porque são dois em um e os dois são insuportáveis. — respondeu Yao Jun com um sorriso vitorioso.
O imperador silenciou com um gesto, olhou para Lihua e Gyokuyou, que trocaram olhares breves, e finalmente para Ah-Duo, que apenas assentiu.
— O Clã Kan está em posição delicada, muitos não querem esse casamento, temos espiões dizendo que os irmãos da princesa têm o apoio de parte do Conselho Norte, se a Lady Kan aceitar, será pela sobrevivência política da própria linhagem e isso deve ser levado em conta.
— E se não aceitar? — perguntou Jinshi, tenso.
— Então... — o imperador fitou Jinshi com pesar camuflado —...tudo volta ao tabuleiro, o impasse do sul se torna guerra, o porto será perdido. O casamento poderá ser redirecionado para Lingli, ou mesmo para Jin-Ye, caso o Clã Kan aceite outro herdeiro.
— O quê? — Jin-Ye se levantou. — Me deixe fora desse jogo, eu sou bonita demais pra virar escudo político.
Lihua não conteve a risada, era melodiosa, quente, ela repousou uma das mãos sobre Liang, que agora dormia encolhido no colo dela.
— O mundo é cruel até com os bonitos, minha flor, aprenda isso enquanto ainda dorme com amuletos de pelúcia.
Jinshi não se moveu, seus olhos estavam cravados na carta das crianças, guardada agora entre suas vestes, como se aquele pedaço de papel infantil tivesse mais peso que os mapas abertos diante do imperador, mais do que rotas marítimas, linhagens, ou tratados.
Naquela noite, ele escreveria uma resposta aos pequenos, talvez fosse uma forma de se aproximar ainda mais da família, crianças quando cativadas se tornam amorosas e dóceis, e como irmão mais velho de cinco pragas, ele saberia como conduzir aquela situação, ao menos era o que pensava.
Afinal eles eram do clã Kan e a chance de serem persuadidos pelo charme do príncipe eram baixos, mas isso não impediria Jinshi de tentar, embora ele já soubesse de sua derrota.
[. . .]
Um pouco mais tarde após a tarde de reuniões com sua família Jinshi, finalmente pôde descansar e sentar próximo de sua mesa para responder a carta dos pequenos Kan, ele não sabia ao certo o que escrever, era a primeira vez em vinte e três anos que ele sentia medo de algo que não fosse sua posição no trono ou que não envolvesse política.
Maomao era assustadora e belíssima, mas seus irmãos conseguiam ser ainda mais inquisidores do que a própria irmã mais velha e isso era surreal, os genes de terror eram bem vísiveis, quase palpáveis ele diria.
Jinshi balançou um pouco a cabeça para afastar os pensamentos que tomavam sua mente, preparou a pena, a tinta e um enorme papel para responder os pequenos, e esperava de verdade que obtivesse uma resposta positiva a longo prazo.
"Para os nobres e perigosíssimos irmãos da temível Maomao,
Recebi sua carta com a devida solenidade e temor que ela exige, confesso que precisei de três xícaras de chá (amargo, em homenagem à sua irmã) antes de decidir como respondê-la e mais um bom tempo pensando se deveria redigir meus desejos finais antes de continuar a leitura.
Antes de qualquer coisa: sim, "Príncipe Jinshi" não é exatamente o nome mais simpático que se possa carregar. Não fui eu quem o escolheu, garanto, se fosse por mim, talvez algo como "Guardião Supremo da Honra de Lady Kan" fosse mais adequado para este momento.
Agradeço, com verdadeira sinceridade, pela forma direta e ameaçadora com que expressaram o amor que têm pela sua irmã. Isso apenas reforça a preciosidade que ela é, e me faz entender ainda mais o quão importante será para mim estar à altura da confiança de vocês... e escapar com vida.
Sobre os apontamentos:
Chá amargo: já solicitei aos criados que mantenham estoque eterno em nosso palácio.
Lado esquerdo da cama: devidamente reservado. Aprendi rápido a não discutir com ela.
Roncar quando cansada: juro solenemente que levarei esse segredo comigo até o túmulo — desde que não seja por envenenamento de vocês.
Quanto às ameaças:
Raspar minha cabeça? Uma ousadia perigosa, mas admito que fiquei curioso com o estilo que imaginam.
Envenenamento a sangue frio? Suponho que seja o equivalente a um aperto de mão caloroso entre irmãos.
Yaling, recebi seu desenho, o passarinho parece feliz, a flor é linda, pretendo mandá-los emoldurar e colocar ao lado do meu leito de morte, caso as tortas não cheguem rápido o suficiente para aplacar a fúria de vocês.
Agora, respondendo às solicitações:
Cavalos: Um preto para Fen Fang, um branco para Yaling, um marrom bonito e grande para Zhìyuan. Encomendados diretamente dos estábulos reais. A questão sobre Lahan... permanece em avaliação.
Tortas de ameixa: já enviei ordens à confeitaria imperial. Vocês não vão apenas receber tortas, vão receber a história da torta de ameixa contada em camadas, com creme doce e selos dourados.
Pulseira com flor de lótus cravejada em rubis: por mais absurdo que pareça, já mandei esboçar o design. Se minha futura esposa sobreviver à ideia, ela talvez use. Se não, eu usarei para me lembrar do dia em que três crianças me obrigaram a desafiar a joalheria imperial por uma flor de rubis.
Por fim, agradeço profundamente pelo carinho feroz com que defendem Maomao. Vocês são, sem dúvida, o exército mais leal que ela jamais terá. Prometo que cuidarei dela com o mesmo zelo — ou melhor, já que minha cabeça depende disso.
Espero que esta resposta satisfaça vossos termos e caso um dia queiram visitar o palácio, a pequena Yaling poderá me ensinar a desenhar passarinhos.
Vejo vocês dentro de três dias.
Com reverência, temor e uma certa dose de afeto,
Jinshi"
[. . .]
As tortas chegaram antes da carta se quer ser aberta, um baú de madeira entalhada foi deixado à porta da residência Kan, junto a um selo que ostentava o brasão do palácio interno. Assim que o avô anunciou a entrega, as crianças dispararam pela casa como se Jinshi houvesse enviado um exército de pôneis encantados.
Fen Fang, sempre desconfiada, deu três voltas em torno do baú antes de decidir abri-lo. Zhìyuan fez questão de tirar as tortas uma por uma e cheirá-las como um mestre pasteleiro em treinamento. Yaling... bem, Yaling mal esperou: afundou o dedo no recheio brilhante da torta de ameixa mais próxima e, depois de lamber com expressão quase religiosa, declarou:
— É mágica.
Logo a confusão se instalou, três bocas falando ao mesmo tempo, três pares de mãos tentando pegar a torta "com mais creme", três discussões simultâneas sobre qual cavalo seria mais bonito quando chegasse. Fen Fang argumentava que cavalos pretos eram mais rápidos à noite, enquanto Zhìyuan exigia saber se o cavalo marrom vinha com sela dourada, Yaling, a menor, mastigava com os olhos brilhando, com o rosto já manchado de ameixa, murmurando:
— Ele leu meu desenho... Ele vai aprender a desenhar passarinhos...
— Ele mandou tortas com SELOS! — gritou Zhìyuan, erguendo uma fatia como se fosse um tratado real.
No meio do caos açucarado, Maomao apenas os observava, estava de pé, apoiada na ombreira da porta, lendo a carta dobrada com um cuidado clínico, os olhos percorreram cada linha mais de uma vez. O cenho franzido, depois arqueado, o canto dos lábios hesitou entre o desdém e... uma pontada de sorriso, pequenino, quase invisível.
Ela releu especialmente os trechos sobre o "lado esquerdo da cama" e a "pulseira de flor de lótus em rubis", como se analisasse cada palavra não apenas com a mente de uma política, mas com o olhar de quem sempre desconfiou de qualquer homem que ousasse gostar dela.
Depois dobrou a carta com precisão, como se fosse um documento oficial de guerra.
No entanto, ao olhar para os irmãos, Maomao deixou os olhos passearem. Um a um.
Fen Fang tentava convencer Zhìyuan a trocar um pedaço de torta por uma promessa futura de andar primeiro no cavalo.
Zhìyuan, emburrado, dizia que não confiava em promessas feitas com a boca cheia.
Yaling, com as bochechas coradas, já começava um novo desenho, dessa vez de um cavalo com asas.
E ali, naquele caos doce, Maomao percebeu que Jinshi — com toda sua arrogância disfarçada e reverência torta — havia realmente lido a carta das crianças e, mais ainda, as havia levado a sério.
Ela encostou a carta dobrada no peito por um breve instante.
Só então sussurrou, num tom que ninguém ouviu:
— Idiota...
Mas o sorriso que veio depois sutil, contido, quase imperceptível não tinha nada de desgosto, ele havia começado a conquistá-la ali através do amor e atenção pelos seus irmãos mais novos.
O quintal da residência Kan, já estava agitado pelas gargalhadas de Fen Fang e os gritinhos de empolgação de Yaling, mergulhou num súbito silêncio quando se ouviram cascos ecoando no portão principal. Um servo correu para atender, murmurando sobre "visitas imperiais" e "coisas improváveis que só essa casa atrai".
Ao escancarar o portão, três cavalos surgiram, majestosos sob a luz tênue do fim da tarde, não estavam sozinhos, um cocheiro da corte, vestido com insígnia bordada em fios dourados, guiava-os com uma expressão resignada, como se refletisse silenciosamente sobre o quão longe já tinha ido seu senso de dignidade.
— É o preto! É o preto! — gritou Fen Fang, disparando em direção ao cavalo de pelagem escura e reluzente. Seus olhos brilhavam como pedras preciosas, e seu corpo miúdo mal alcançava o flanco do animal, mas isso não o impediu de tentar escalá-lo imediatamente, como se fosse uma montanha pessoal.
Yaling prendeu a respiração ao ver o cavalo branco, os olhos tão arregalados quanto seus pequenos punhos apertados contra a boca.
— Ele tem estrelinhas! No nariz, olha, Maomao! — ela correu até a irmã, puxando sua manga, os olhos implorando aprovação.
Zhìyuan, por sua vez, foi tomado por um silêncio reverente diante do cavalo marrom, era enorme, de porte firme e olhar inteligente, ele se aproximou lentamente, como se sentisse que aquele animal carregava o peso de uma promessa real. Quando sua mão tocou o pescoço quente do cavalo, sussurrou, quase para si mesmo:
— Vou chamá-lo de General Ameixa.
Maomao, parada sob a sombra do alpendre, observava tudo com os braços cruzados e expressão impassível, mas seus olhos, sempre clínicos, absorviam cada detalhe: o tremor sutil das mãos de Yaling ao acariciar o cavalo branco, o sorriso debochado e orgulhoso de Fen Fang ao ameaçar galopar por ali mesmo, o brilho nos olhos sérios de Zhìyuan.
Ela suspirou.
— Idiotas. Todos vocês. — murmurou, mas havia um leve riso escondido na voz, e seus olhos suavizaram por um instante.
O cocheiro da corte se aproximou, limpando o suor da testa.
— Estes são os cavalos encomendados por Sua Alteza o Príncipe Jinshi. Os selins foram personalizados conforme as descrições feitas por... — ele lançou um olhar hesitante aos três pequenos — ...vossas senhorias, suponho.
Yaling agarrou o braço do cocheiro com sua típica urgência infantil:
— Tem nome o meu? Posso mudar? Eu quero chamar de Nuvem-Que-Balança!
Fen Fang já havia se pendurado na cela como um macaquinho:
— Diz pra ele que o meu é o Trovão Negro! E que só come cenoura descascada!
Zhìyuan continuava calado, mas havia lágrimas contidas nos cantos de seus olhos, ele acariciava a crina do seu cavalo como quem guarda um segredo sagrado.
Maomao caminhou devagar até eles, parou ao lado de Zhìyuan e, pela primeira vez em muito tempo, pousou a mão na cabeça do irmão mais novo.
— Ele acertou, não foi? — disse, quase num sussurro.
Zhìyuan apenas assentiu e Maomao olhou para o céu como se esperasse que Jinshi estivesse lá, pendurado em alguma nuvem, com um sorriso convencido, provavelmente estava.
— Maldito lunático. — ela disse baixinho, antes de voltar ao seu lugar no alpendre, onde o cheiro das tortas de ameixa ainda pairava no ar, entre cavalos de conto de fadas, risos infantis e uma jovem que, mesmo com toda sua lógica, começava a duvidar da própria capacidade de resistir.
[. . .]
O fim da tarde tingia os corredores do Palácio Interno com um dourado suave, depois da longa audiência com o Imperador e as consortes, Jinshi permitiu-se um raro momento de descanso — um encontro informal com os irmãos. Sem servos, sem rituais. Apenas uma das salas de chá do Pavilhão de Jade, ocupada pelo riso abafado e olhares cúmplices daqueles que, mesmo filhos de mães diferentes, foram criados sob a mesma asa.
Jin-Ye, vestindo um hanfu lavanda, servia o chá com a leveza de quem fazia aquilo desde sempre, os olhos vermelhos cintilando com malícia, Lingli e Yao Jun estavam deitados em almofadas, rindo de algo que ela cochichara. Jiang estava encostado em um biombo, observando com sua habitual reserva, olhos azuis calmos, postura ereta, e as mãos atrás das costas.
— Então, irmão, — começou Jin-Ye, entregando-lhe uma xícara com um sorriso debochado — como foi realmente esse encontro com a famosa Lady Kan? Dizem que você ficou tão vermelho que quase te confundiram com um pêssego maduro.
Jinshi pigarreou, tentando manter a compostura, mas seus dedos apertaram ligeiramente a xícara de porcelana.
— Foi... inesperado, ela estava tentando organizar uma parte abandonada do jardim do templo do clã, achei que poderia ajudar.
— Você? Zuigetsu, ajudando com sujeira e folhas? — Lingli arqueou uma sobrancelha ruiva, apoiando o queixo na palma da mão. — Aposto que levou meia hora só pra descobrir como amarrar a manga pra não sujar a túnica.
— Eu... improvisei, oras. — Jinshi murmurou, já ouvindo a risada abafada de Yao Jun.
— Aposto que ele amarrou a manga com fita de seda imperial! — o irmão mais novo caía em gargalhadas. — E depois reclamou que as mãos ficaram cheirando a terra!
— Não fiquem zombando. — Jiang interferiu suavemente, embora um canto dos lábios dele também estivesse curvado. — Zuigetsu nunca se ofereceria para limpar um jardim se não estivesse profundamente interessado, não é do seu feitio.
— E ela? — perguntou Jin-Ye, recostando-se. — É verdade que ela é filha de Lakan, aquele estrategista de fronteira?
— Sim — respondeu Jinshi, desta vez com mais seriedade. — Ela é a gêmea mais velha junto de Lahan, mas viveu uma parte da infância com a mãe nas cortes menos favorecidas, não se deixa iludir por títulos, não está interessada em ouro, nem em glória. Ela... gosta de coisas simples, chá de menta fresca, silêncio e caminhar entre as pedras do templo. — seu sorriso era leve e genuíno — E uma ótima irmã mais velha do casal de gêmeos Zhìyuan e Fen Fang, e da pequena Yaling, vocês iriam adorá-los.
Por um momento, todos ficaram em silêncio, era raro ouvir Jinshi falar com tanta honestidade sobre alguém.
— Gêmea, hein? Família com dose dupla em gêmeos — Lingli trocou um olhar cúmplice com Yao Jun, que já estava tentando conter o riso. — Isso significa que os genes são fortes.
— Muito fortes. — Yao Jun engatou. — Já pensaram? Se Zui e Lady Kan tiverem filhos, podem nascer gêmeos! Duplos Jinshi correndo por aí com olhos violetas e cabelos bagunçados.
— O pesadelo dos tutores do futuro! — completou Jin-Ye, rindo alto.
— Se forem como a Lady Kan, talvez sejam até piores — acrescentou Lingli, com um brilho divertido nos olhos. — Ela me parece o tipo que desestabiliza todos com palavras.
Jinshi ruborizou até a ponta das orelhas.
— Vocês estão sendo ridículos. — murmurou, mas sua voz tinha um tom mais suave do que de costume.
Jiang, em silêncio, se aproximou e tocou de leve o ombro do irmão.
— Mas está feliz, não é? — perguntou apenas.
Jinshi hesitou, olhando para a xícara vazia entre as mãos e então, com um suspiro lento, respondeu:
— Assustado, mas sim... talvez esteja começando a entender o que significa estar feliz com alguém.
Os irmãos silenciaram, até mesmo Lingli e Yao Jun, sempre prontos para uma piada, pareciam respeitar aquele momento.
— A mãe... — começou Jin-Ye, os olhos baixos —, ela sempre nos ensinou que família não é apenas o que herdamos, mas o que escolhemos proteger. Ela lutou para que fôssemos tratados iguais. Não importa de que ventre viemos... crescemos como irmãos.
— E é por isso que vamos te apoiar. — disse Jiang, firme. — Mesmo que essa Lady Kan ainda esteja te fazendo arrancar raízes com a mão.
— Mesmo que vocês tenham filhos gêmeos com cabelo roxo esvoaçante e voz de trovão. — Yao Jun sorriu largo.
— Mesmo que a Imperatriz descubra que você limpou o jardim com um lenço de cerimônia imperial e desmaie — provocou Lingli, rindo alto.
Jinshi, enfim, riu junto, um riso raro, solto, nascido de algo mais profundo que humor: de amor, confiança e pertencimento.
Ali, entre irmãos que dividiam o sangue do mesmo pai, mas principalmente os laços de uma infância sem distinções, Jinshi sentiu-se menos príncipe e mais... humano.
Ele adorava aqueles momentos, era como se o tempo parasse por alguns minutos e ele pudesse aproveitar cada detalhe e cada momento ao lado dos irmãos, ele não sabia o que os esperava no futuro, então o que restava era aproveitar a companhia de todos, enquanto podia e isso dizia muito de si mesmo.
O silêncio foi gentil, preenchido pela brisa que dançava entre os galhos floridos e a cortina do salão.
— Sabe, se você e Maomao tiverem filhos... — começou Lingli, sorrindo de lado.
— Imagino as crianças sendo miniaturas sarcásticas com cabeças cheias de conhecimento perigoso. — Jin-Ye disse rindo abertamente entre os irmãos.
— Ou uma gangue de pequenos alquimistas armando armadilhas pelos corredores do palácio — acrescentou Jiang.
Jinshi cobriu o rosto com a mão, vermelho.
— Vocês são impossíveis.
— Mas verdadeiros — murmurou Yao Jun, sorrindo de lado, ainda tentando manter a compostura, embora seus olhos já tivessem se estreitado com o esforço de não rir.
O riso ecoou pelas paredes de pedra e madeira, aquecendo o pátio como um sol invisível, era nesses momentos, quando estavam todos reunidos, que a realidade do título, das responsabilidades, se desfazia. Eram apenas irmãos, de diferentes mães, mas criados sob o mesmo teto, amados pela mesma figura maternal: a imperatriz.
— Vocês sabem... ela sempre fez questão disso — disse Jin-Ye, com a voz suavizada pela lembrança. — A Imperatriz Ah-Duo, a mamãe, nunca nos tratou nós como filhos de concubinas e filhos diretos do imperador. Sempre nos apresentou ao povo como irmãos completos, herdeiros iguais, fez questão de que comêssemos juntos, estudássemos juntos, vivêssemos juntos.
— Ela nos ensinou o que é ser família, mesmo em meio à política — completou Jiang.
— E agora ela está vindo, não é? — perguntou Lingli, voltando os olhos para o corredor de onde vieram.
Foi quando os passos começaram a ecoar no mármore polido, um perfume floral e suave antecedeu a figura esbelta da imperatriz Ah-Duo, seu vestido púrpura escuro arrastava-se com elegância, e os cabelos longos da mesma cor estavam presos em um elaborado penteado imperial, adornado com pequenas flores prateadas. Seus olhos violetas eram profundos, tão belos quanto severos, mas havia neles um brilho de ternura ao ver seus filhos reunidos.
— Vocês fizeram exatamente o que eu imaginei — disse, com um sorriso sutil nos lábios. — Estão rindo sem mim.
— Mãe! — Jin-Ye foi a primeira a se levantar, correndo para abraçá-la, os outros vieram em seguida.
A imperatriz recebeu cada um com um carinho discreto, mas real, abraços que duravam o suficiente para reconfortar, mãos que tocavam rostos com ternura. Quando chegou em Jinshi, seus olhos se demoraram mais tempo nos dele.
— Eu soube que você encontrou a garota e que ela lhe permitiu pisar no jardim dela — disse ela, em voz baixa, com um brilho de aprovação no olhar. — Isso vale mais do que mil alianças políticas.
— Ela me aceitou, não com um sim... mas com silêncio e isso foi tudo que eu precisei — respondeu ele, segurando a mão da mãe.
Ah-Duo olhou ao redor, contemplando seus filhos, cada um com sua cor, sua energia, sua origem e sorriu com genuína satisfação.
— Eu os criei para isso, para que fossem diferentes, mas nunca distantes. Irmãos não apenas no sangue, mas no coração e agora, quero conhecer essa jovem... essa Lady Kan que, ao que parece, fez o impossível.
— E o que seria o impossível, mãe? — perguntou Yao Jun.
— Conquistar o coração de Jinshi — respondeu ela. — E fazê-lo sorrir com sinceridade.
A imperatriz caminhou com elegância até o assento central e sentou-se com graciosidade, observou cada um dos filhos presentes novamente. O sorriso dela se ampliou ao perceber a proximidade entre eles, mesmo sendo frutos de diferentes mães, os irmãos estavam unidos, conversando, rindo, como ela sempre desejou, sem diferenças e sem disputas internas.
— Lembro-me do dia em que Jiang e você nasceram — disse ela, com um olhar distante. — Uma tempestade assolava a cidade. Os monges diziam que quando gêmeos nascem sob o trovão, ambos carregarão destinos que se entrelaçam ao do império — ela olhou para Jinshi com ternura. — E agora você se prepara para formar um novo elo.
— Não sei se é o destino, mãe. Mas... ela não foi uma escolha racional, foi inevitável.
Ah-Duo sorriu, como quem já sabia.
— Então é o amor.
Um silêncio confortável se instalou, até que, claro, Yao Jun não resistiu:
— Majestade, já que estamos entre revelações... devo avisar que Jinshi e Maomao têm ótimos genes para filhos gêmeos.
— Ah, por favor! — Jinshi levou a mão ao rosto, escarlate — Novamente essa pauta Jun?
— Eu apoio essa união genética, é uma pauta muitíssimo importante querido irmão. — brincou Jin-Ye, sorrindo.
— Abençoados sejam os pequenos gênios que virão — acrescentou Lingli, rindo com gosto — Afinal, precisam vir filhos saudáveis do príncipe que ascenderá o trono do papai.
A imperatriz gargalhou, suave, mas verdadeira.
— Se os deuses quiserem, que venham com saúde, mas já é uma benção ter filhos que se amam. Como mãe, isso é tudo o que importa.
E por um breve instante, enquanto todos se olhavam com carinho, risos contidos ou orgulhos expostos, não havia trono, nem obrigações, nem medo do amanhã.
Apenas uma família — unida, diversa, intensa e absolutamente leal.
[. . .]
Três dias depois — Residência do Clã Kan
O sol tingia o céu com tons de âmbar e carmesim enquanto Jinshi chegava ao pátio da família Kan, Lahan caminhava ao seu lado, observando os irmãos mais novos, que corriam com entusiasmo em direção ao estábulo onde os três cavalos recém-chegados estavam sendo cuidadosamente tratados. O ar estava impregnado do cheiro da terra úmida e do feno fresco, uma mistura que trazia tranquilidade ao ambiente.
— Venham, rápido! — gritou um dos meninos, segurando a mão dos outros enquanto guiava Jinshi pelo caminho de pedras que levava ao estábulo. — Eles são maiores do que eu imaginei! O príncipe Jinshi mandou para a gente!
Os olhos das crianças brilhavam como estrelas, tão vivos que parecia impossível não se contagiar com aquela alegria inocente, Lahan observava aquilo com um sorriso suave, seus braços cruzados.
— Nunca tinha visto meus irmãos tão entusiasmados com algo desde que você respondeu à carta deles — disse baixinho a Jinshi. — Aquela encomenda das tortas e agora os cavalos, a casa toda parece ter ganhado vida.
Jinshi inclinou ligeiramente a cabeça, contente por ter conseguido trazer um pouco de luz àquele lar, sua atenção, no entanto, foi rapidamente capturada pela figura que surgiu silenciosa ao seu lado.
Maomao estava ali, firme e serena, a sombra suave do entardecer delineando seu perfil delicado, porém imponente. Seus olhos, profundos e enigmáticos, encontraram os dele com uma intensidade calma, quase desafiadora.
— Lahan, — disse ela com uma voz baixa, porém decidida — por favor, leve os pequenos para dentro, preciso falar a sós com o príncipe Jinshi.
Lahan assentiu, chamando as crianças que relutavam em se afastar dos cavalos, prometendo que poderiam visitá-los depois. Enquanto os passos pequenos se afastavam, Maomao e Jinshi ficaram ali, no silêncio confortável e carregado de significado.
Ela deu um passo à frente, encarando-o com uma expressão que misturava gratidão e firmeza.
— Alteza, — começou ela, a voz ligeiramente trêmula, revelando uma vulnerabilidade escondida — obrigada por ter respondido à carta dos meus irmãos, por toda a atenção que teve com eles, é um gesto muito bonito e que valorizo é claro... Mas, honestamente, não precisava ter enviado os três cavalos, eles ainda são tão jovens, e eu... — ela respirou fundo — E ainda nem dei uma resposta concreta, se aceito o seu pedido de casamento.
Jinshi a observava atentamente, cada palavra dela gravada em sua mente, como se o tempo ao redor desacelerasse só para que aquele momento pudesse se estender.
Com cuidado, retirou do bolso uma pequena caixa delicadamente trabalhada, feita de madeira escura e polida. Abriu-a lentamente, revelando uma pulseira de lótus feita de ouro fino, com um rubi vermelho pulsando no centro, brilhando sob a luz morna do entardecer.
— Isto é apenas um presente. — disse ele, com um sorriso suave, estendendo a pulseira para ela — Caso algum dia você aceite meu pedido, que esta pulseira seja o símbolo de nossa aliança e da minha fidelidade a você, princesa Kan.
Maomao pegou a pulseira com as mãos ligeiramente trêmulas, o brilho do rubi cintilando com intensidade contra o tom quente de sua pele, como se a joia tivesse sido feita sob medida para ela. Por um breve instante, sentiu o coração tropeçar, não por vaidade, mas pela delicadeza contida naquele gesto.
Ela não era exatamente uma entusiasta de joias, embora possuísse peças dignas da nobreza do País de Li. Gostava delas, sim, mas acabava esquecendo de usar ou as guardava para ocasiões que julgava especiais demais para a vida comum, no entanto, havia algo naquela pulseira que era diferente.
Mesmo sabendo que o presente fora, na verdade, um pedido direto de Fen Fang ao príncipe, Maomao não conseguiu evitar o calor que subiu por seu rosto. A vergonha a pegou de surpresa, quase infantil, não por ter recebido, mas por ter se sentido... tocada.
Jinshi, como sempre, foi atento aos detalhes, escolha da pedra, o tamanho exato do fecho, a leveza do bracelete que não incomodava o pulso — tudo parecia pensado para ela. E, ainda que houvesse uma intermediação infantil no pedido, era impossível ignorar que ele havia escutado. Escutado e escolhido algo que, de forma inexplicável, encaixava-se nela com naturalidade.
Como se fosse a peça que faltava.
E isso, para alguém que por tanto tempo aprendera a não esperar gestos de ternura, a comoveu mais do que gostaria de admitir.
Seus olhos se encontraram por um longo instante, nenhuma palavra era necessária; havia ali um mundo inteiro de promessas não ditas e sentimentos ainda por descobrir.
— É... belo — murmurou ela finalmente, uma ponta de sorriso se formando em seus lábios.
O vento sussurrou ao redor deles, como se o próprio tempo pausasse para ouvir aquele silêncio carregado de significado.
Jinshi, então, falou com uma voz que parecia conter toda a paciência e esperança do mundo:
— Não há pressa, Maomao, o que desejo é que você tome seu tempo, que sinta o que realmente quer. Eu estarei aqui, esperando, com respeito e lealdade.
Ela sentiu o peso daquelas palavras, o cuidado escondido nelas, e algo dentro dela, uma chama tímida, acendeu-se, mas a dúvida, o medo e as responsabilidades ainda formavam um muro alto demais para derrubar tão rápido.
— Obrigada, príncipe Jinshi — disse, finalmente, retirando o olhar da pulseira para encará-lo com uma sinceridade que lhe doía no peito. — Por agora, só posso pedir que me entenda, não sei o que o futuro reserva, mas... prometo que serei justa com todos nós.
Ele assentiu, um leve sorriso nos lábios, enquanto o céu atrás deles mergulhava nas sombras da noite, marcando o fim de um dia e o início de uma nova etapa incerta, mas cheia de possibilidades.
— Boa tarde, Lady Kan — disse Jinshi com suavidade, sua voz parecendo ecoar além do pátio silencioso.
Ela respondeu com um aceno leve, os olhos fugindo por um instante dos dele, como se ainda digerisse tudo o que havia acontecido naquele curto intervalo de tempo. Quando ele se virou para partir, escoltado pelos servos discretos, Maomao permaneceu ali por mais alguns segundos, estática.
Foi só quando os passos dele sumiram no corredor de pedra que ela abaixou o olhar para a pequena caixa em suas mãos. O estojo escuro de madeira, simples e elegante, ainda guardava um pouco do calor de suas mãos anteriores, com cuidado, ela o abriu mais uma vez.
A pulseira repousava sobre o veludo como uma flor rubra em meio à neve. Aquela peça parecia pequena demais para o peso de tudo que carregava — o pedido inocente da irmã, o olhar atento de Jinshi, a sombra de um compromisso que agora pairava sobre ela com mais firmeza.
Maomao passou os dedos pela pedra, contemplando o brilho profundo do rubi, era bela, era delicada e, de algum modo, parecia conversar com partes dela que há muito estavam em silêncio.
Um suspiro escapou de seus lábios antes que percebesse, parte dela se sentia tocada, verdadeiramente agraciada pelo gesto. Outra parte, porém, sentia o peso sutil de um nó se formando dentro do peito, não era só sobre a joia, era sobre tudo que ela simbolizava, uma escolha sendo feita por ela, mesmo que envolvesse seus sentimentos.
"Será que ele entende a gravidade o que está pedindo?", pensou, sem amargura, apenas com a estranha tristeza de quem é empurrada gentilmente a um destino que ainda não sabe se deseja de verdade.
Fechou a caixinha devagar, como se selasse seus pensamentos junto dela, em silêncio, voltou-se para o interior dos aposentos, onde as luzes já estavam mais tênues, carregando consigo a pulseira e um turbilhão de sentimentos que ainda não sabia nomear.
[. . .]
Mais tarde naquela mesma noite
A luz das lamparinas projetava sombras dançantes nas paredes enquanto Maomao e FengXian se sentavam em um canto reservado do amplo salão, longe dos olhares atentos dos servos e dos irmãos pequenos que já dormiam.
FengXian tomou um gole de chá e observou Maomao com um olhar cuidadoso, como se tentasse decifrar cada gesto, cada hesitação.
— Então, como foi? — perguntou ela, sua voz suave, mas firme. — Ele trouxe os cavalos, não é? As crianças ficaram encantadas, pelo que me disseram.
Maomao fechou os olhos por um instante, como se quisesse prender o momento e as emoções que sentiu.
— Sim. — respondeu — Os cavalos chegaram três dias atrás, e Jinshi veio pessoalmente hoje, meus irmãos... nunca estiveram tão felizes. Foi bonito vê-los tão animados, e Lahan disse que aquilo deu vida à casa.
FengXian sorriu levemente, mas logo seu rosto ficou mais sério.
— E você? O que sente? — perguntou, apoiando o queixo na mão. — Sobre ele... sobre esse noivado.
Maomao respirou fundo e abriu os olhos, encarando a amiga com uma sinceridade quase dolorosa.
— Eu não sei se aceito o noivado mãe. — confessou. — Não por ele, mas por mim mesma, nunca pensei em casamento assim, como algo certo para mim. Há uma expectativa enorme sobre meus ombros, tradições e deveres que parecem me sufocar. E Jinshi... ele é diferente do que imaginei, gentil, paciente, respeitoso, mas ainda assim, sinto que preciso descobrir o que realmente quero. — disse com a voz um pouco mais pesada do que esperava — Não posso me entregar só por obrigação.
FengXian assentiu, compreendendo cada palavra.
— Você tem tempo — disse ela. — Não precisa se precipitar, o príncipe entende isso, não é?
— Sim — Maomao concordou. — Ele me deu uma pulseira hoje, um símbolo de aliança e fidelidade, mas deixou claro que não há pressa, que devo sentir o que é certo para mim.
Um silêncio confortável se instalou entre as duas.
— Sabe, — continuou Maomao, um sorriso leve surgindo em seus lábios — talvez o que eu realmente espere desse noivado seja mais do que uma união política. Talvez seja a chance de encontrar algo verdadeiro, um respeito que eu nunca tive antes. — revirou os olhos, segurando a taça com certa ironia — Talvez, no fundo, eu só anseie por um casamento igual ao seu e o do papai... ao mesmo tempo em que tenho pressa em responder o príncipe.
FengXian sorriu com ternura e levantou a taça de chá em um brinde silencioso, depois, apoiou-a com leveza no colo e observou a filha por um momento, como se enxergasse nela um reflexo antigo de si mesma.
— Quando eu conheci seu pai, eu não esperava nada, Maomao — disse, com a voz tranquila, mas firme. — Não esperava que ele fosse olhar além do que todos viam... além das máscaras e dos papéis, mas ele viu e, com o tempo, eu aprendi a abaixar a guarda. Respeito não se impõe, nem se exige, ele se constrói, um gesto de cada vez.
Maomao baixou o olhar, pensativa, os dedos traçavam a borda da taça de porcelana sem real intenção, mas com a mente longe, voltando à joia guardada, ao sorriso do príncipe, ao pedido da pequena Fen Fang, e à sensação ambígua que tudo aquilo lhe causava.
— Eu só... não sei se é real — murmurou. — Não sei se ele me vê mesmo ou se vê a ideia do que represento. Às vezes ele é tão atencioso... mas outras, tão enigmático, me sinto como se estivesse tentando decifrar um mapa com as rotas cobertas de névoa.
FengXian soltou uma risada suave, compreensiva.
— Talvez ele esteja tentando fazer o mesmo com você, minha filha. — ela se inclinou um pouco, pousando a mão com carinho sobre a dela. — Você sempre foi complexa, Maomao, brilhante, prática, afiada, mas há partes suas que você esconde até de si mesma. Se você quiser ser vista de verdade... terá que se permitir ser visível.
Maomao permaneceu em silêncio por um tempo, digerindo as palavras da mãe, o ar da noite adentrava pelas cortinas semiabertas, trazendo consigo o perfume das flores do jardim imperial e um toque de melancolia suave.
— O que eu faço se eu não conseguir corresponder? — perguntou em voz baixa, quase como um segredo.
FengXian sorriu de novo, agora com um brilho doce e sereno no olhar.
— Então seja honesta com ele e com você. Às vezes o amor nasce do cuidado... e às vezes o cuidado é o suficiente para começar alguma coisa, mas se não for — ela deu de ombros com elegância — então você o avisará, o mundo não vai ruir por isso.
Maomao soltou uma risada baixa, meio cínica, meio agradecida, ergueu a taça e tocou a da mãe com suavidade.
— Você sempre sabe o que dizer.
— Eu sou sua mãe — respondeu FengXian, sorrindo com orgulho. — E conheço bem essa sua mania de fingir que nada te toca, mas eu vejo e ele também está começando a ver.
O silêncio que se seguiu foi confortável, Maomao olhou para o céu escurecendo pela varanda, enquanto sentia dentro de si a corda bamba entre razão e sentimento se esticar mais um pouco. Ainda havia incertezas, sim, mas, pela primeira vez, elas não pareciam intransponíveis.
E isso, por ora, era o bastante.
Mais tarde, sozinha em seu quarto, Maomao sentava-se diante da pequena penteadeira de madeira, com os cabelos verdes caindo soltos sobre os ombros, o rosto parcialmente iluminado pela chama vacilante da lamparina.
A pulseira repousava ao lado de uma tigela de cerâmica com água morna e ervas, como se aquele objeto estrangeiro ali destoasse da simplicidade de seu quarto. Ela estendeu a mão e tocou o rubi, sentindo a superfície fria da pedra contra a ponta dos dedos.
Não era uma mulher de joias, nunca fora, achava supérfluo, vaidoso, mas aquele presente...
Suspirou.
"É apenas um presente, mas caso aceite meu pedido, que essa pulseira seja o símbolo da nossa aliança e da minha fidelidade."
As palavras de Jinshi ecoavam em sua mente como se ainda estivessem suspensas no ar, entre o que foi dito e o que ficou por dizer.
Ela havia observado o modo como ele a olhava, não com desejo, nem com medo, nem com pressa, mas com algo mais difícil de identificar. Algo entre esperança e resignação, uma ternura silenciosa, que não a pressionava, mas que pedia, com urgência, para ser sentida.
Maomao fechou os olhos por um instante.
Não era mais aquela garota cínica, fechada apenas para as ervas e venenos, imune às relações humanas, o tempo a havia transformado as pessoas, os caminhos, as feridas e, sim, talvez até Jinshi, mas aceitar um noivado com ele... significava aceitar que ela podia ser desejada não apenas por sua utilidade, mas por si mesma.
"Será que estou pronta para isso?" pensou, apertando os próprios punhos.
Ao fundo, os sons abafados da respiração dos irmãos em sono profundo lhe traziam conforto. A casa estava viva, com risos correndo pelos corredores, os cavalos, as tortas... a carta de Jinshi tinha reavivado algo nos pequenos, mas dentro dela, algo muito mais sutil se acendia — uma dúvida que era também desejo.
"Eu quero decidir por mim mesma, não ser conduzida, não ser oferecida como uma peça."
A aliança, se viesse a acontecer, teria de ser sua escolha.
Ela olhou para a pulseira mais uma vez.
Com dedos lentos, colocou-a ao redor do pulso, não como aceitação, mas como uma forma de sentir o que aquilo provocava. O rubi era pesado, mas confortável e, pela primeira vez, o adorno não lhe pareceu estranho... parecia seu.
Ficou em silêncio, sentindo o frio do metal contra a pele quente.
Depois, sussurrou para si mesma:
— Jinshi... se eu for me entregar a alguém, que seja com consciência que seja com liberdade e talvez... só talvez... seja com você.
A chama da lamparina tremeluziu.
E naquela noite, entre a dúvida e a coragem, Maomao adormeceu com a pulseira ainda no pulso.
Chapter 4: O Selo da Serpente e do Dragão
Notes:
Confesso que esse capítulo ficou mais emocional do que eu planejava, não tenho irmãos, mas ficou nítido o amor de irmãos entre Jinshi e seus irmãos e de Maomao com os dela e MDS QUE COISA LINDA, enfim boa leitura
Chapter Text
O sol já estava alto quando Jinshi, com o semblante calmo e o andar tranquilo, aceitou o convite para um passeio pelo pátio interno da residência do Clã Kan, diziam que ele queria "esticar as pernas", mas quem conhecia um pouco do Príncipe sabia que sua verdadeira motivação era sempre uma análise silenciosa do ambiente — uma curiosidade aguda por tudo o que Maomao criara com suas próprias mãos.
Ele caminhava lentamente, olhos atentos, como quem desenha mentalmente cada pedra do caminho, cada sombra das árvores, cada aroma que pairava no ar, seu olhar plácido e gentil escondia a mente estratégica que nunca descansava.
Não demorou para que Zhìyuǎn, o irmão mais novo e implacável, surgisse ao seu lado, cruzando os braços com a expressão cheia de ironia e uma pitada de suspeita.
— Você sabia — disse ele, com voz firme, como quem revela uma verdade ocultada — que minha irmã fala dormindo? E não em chinês, mas em línguas estranhas, às vezes parece que amaldiçoa alguém; outras vezes, que invoca venenos raros.
Jinshi virou-se devagar, um sorriso quase imperceptível curvando os lábios.
— Imagino que seja comum entre alquimistas, o inconsciente é um terreno fértil para mistérios.
Zhìyuǎn franziu o cenho, surpreso com a resposta desarmada.
Nesse instante, Yaling apareceu, estalando a língua, balançando a cabeça como se prestes a contar um segredo obscuro.
— E tem mais, às vezes, ela conversa com as plantas, sabe? Chama-as de filhos, uma vez a ouvi acalmando uma raiz de lótus como se fosse um bebê com cólica.
Jinshi ergueu uma sobrancelha, divertido, mas manteve a serenidade.
— Melhor que muitos tratem as raízes assim, com atenção, afinal, elas sustentam a vida mais do que qualquer palavra.
Fen Fang, que havia aparecido silenciosa ao lado do poço, estreitou os olhos com uma seriedade quase cômica.
— Ah, e sabe o que ela disse outro dia? Que jamais se casaria com um homem que não saiba identificar urina de rato pelo cheiro.
Jinshi engoliu em seco, controlando um sorriso e um tremor discreto no lábio inferior.
— Um critério bastante... específico. — Sua voz era um fio de seda, cuidadosamente neutra.
— Inegociável. — Fen Fang assentiu firme. — Ela mesma deixou isso claro.
O príncipe olhou para os três com serenidade absoluta, como o céu azul após uma tempestade breve.
— Bom saber. — e seguiu o caminho, caminhando com tranquilidade desconcertante.
Os irmãos se entreolharam, derrotados por aquela calma inacreditável.
— Ele é... estranho. — Zhìyuǎn balançou a cabeça. — Deveria ter rido, ficado chocado, ou pelo menos perguntado por que alguém guardaria lágrimas de cadáver.
— Ele não riu, não negou e não julgou. — Fen Fang murmurou. — Estamos diante de uma frieza quase sobrenatural.
— Tá, então vamos para o segundo teste, hora de sujar as mãos. — Yaling cruzou os braços, com brilho de desafio nos olhos.
O calor abafava o quintal como uma névoa densa, e até os insetos pareciam arrastar-se devagar. No centro do jardim, um círculo de vasos de barro e baldes antigos cercava uma pilha generosa de composto orgânico, uma mistura rica, viva, quase palpável no ar, tanto para as plantas quanto para o olfato mais sensível.
Zhìyuǎn, já com luvas de couro e um lenço cobrindo metade do rosto, acenou para Jinshi, fazendo um gesto teatral, como quem convida para um conselho secreto.
— Alteza, bem-vindo à Etapa Dois: a Prova de Fertilidade, literalmente, Maomao disse que só respeita quem entende o valor da matéria-prima.
Jinshi ergueu um leve sorriso, elegante e contido.
— Composto e minhocas, para ser exato. — Fen Fang surgiu ao lado, carregando um balde cheio de terra úmida e pequenos seres que se retorciam. — A tarefa é simples: montar a camada de drenagem, adubar com equilíbrio, transplantar as mudas da estufa para os vasos.
— Ah, e sem ajudantes, tem que sujar as mãos. — Yaling ressaltou, com o ar de quem impõe uma regra inflexível.
— Ou seja, uma armadilha disfarçada de teste. — Jinshi tirou o anel de um dedo com calma, enrolou as mangas com elegância e se ajoelhou entre as pedras, com as mãos mergulhando na terra rica.
Ele não fez careta, não reclamou do cheiro forte ou da textura pegajosa, manipulava as minhocas com cuidado, desviando o olhar discretamente, como se meditasse para não pensar demais no que tocava.
Zhìyuǎn sussurrava ao caderno, impressionado:
— Ele não vomitou, isso é... preocupante.
Yaling, rangendo os dentes, observava cada gesto.
— Olhem a postura, ele dobra o joelho com a elegância de um lorde mesmo quando está lidando com minhocas. Não é natural.
Fen Fang analisava as mudas ao redor.
— Ele escolheu as melhores, separou as que tinham raízes muito enroladas. Quem o ensinou?
Do outro lado, Maomao surgia, silenciosa como uma sombra, encostada à sombra de uma macieira, observava cada movimento, sem intervir, com os braços cruzados e o olhar afiado.
Quando Jinshi terminou, limpou as mãos no pano áspero deixado por eles, não fez careta e levantou-se, examinando as unhas com um ar satisfeito.
— Missão cumprida. — Fez uma reverência sutil, quase teatral. — Querem avaliação formal ou partimos para o próximo teste?
Maomao tossiu atrás dele, voz seca.
— Eles vão testar você até que não reste dúvida. Ou um cadáver.
Jinshi virou-se e, pela primeira vez naquele dia, encarou Maomao diretamente.
— Posso sobreviver a ambos. — disse com uma segurança tranquila.
Ela sorriu, não doce, mas com o brilho afiado de uma lâmina recém-afiada.
— Espero que sim. Os testes só começaram.
[. . .]
Após o jantar, a casa dos Kan mergulhava num silêncio tenso e ameno ao mesmo tempo, lamparinas penduradas lançavam uma luz suave e tremulante, enquanto o aroma de crisântemos secos preenchia o ar.
Jinshi sentou-se diante dos irmãos Kan para um momento que Fen Fang chamara de "convivência informal". Maomao, oficialmente, não estava presente, a desculpa deles era que "ela foi cuidar de uma infusão no ponto", disseram. Na verdade, ela se escondeu atrás da porta entreaberta, com o coração batendo em um ritmo estranho entre a curiosidade e o nervosismo.
Zhìyuǎn começou, com voz calma, porém carregada de perigo.
— Alteza, dizem que o valor de um homem se revela não quando é amado, mas quando é desafiado.
Fen Fang completou, mordendo uma fruta seca com teatralidade.
— Ou deixado esperando.
Yaling sorriu, apoiando-se no braço da cadeira.
— Ou contradito.
Jinshi ergueu a sobrancelha, intrigado.
— O que exatamente estão perguntando?
Zhìyuǎn cruzou os braços.
— Que tipo de mulher costuma escolher? Obediente? Bela? Inteligente? Virgem? Submissa?
— Ou todas essas juntas? — ironizou Yaling, com um sorriso malicioso.
O silêncio tomou o ambiente como uma cortina pesada, Jinshi não hesitou, na verdade nem imaginava que eles sabiam tantas palavras que ele só veio ter noção depois dos treze anos, antes disso ele chorava porque tinham escondido seus brinquedos favoritos.
— Nenhuma dessas qualidades me interessa isoladamente, nenhuma delas garante uma boa esposa. — bebeu um gole do chá com calma. — Prefiro as que são difíceis de entender, que não me escolhem por títulos, que não fingem suavidade para parecerem moldáveis.
Yaling estreitou os olhos.
— Como a Maomao, então?
— Exatamente como ela. — a resposta saiu curta, firme, como uma lâmina afiada.
Fen Fang o encarou com mais atenção.
— E se ela não quiser você?
— Não sou arrogante para esperar isso, mas sou persistente o suficiente para merecer uma chance. — depositou a xícara sobre a mesa, com delicadeza. — Vocês estão me perguntando como irmão ou como inquisidores? Porque, se for o segundo caso... — inclinou-se levemente — tenho mais segredos do que imaginam, mas nenhum deles envolve desrespeitar Maomao.
Maomao, escutando atrás da porta, sentiu o peito apertar, um misto de orgulho e irritação e, surpreendentemente, uma ponta de atração, mas isso ela jamais admitiria em voz alta.
Zhìyuǎn piscou lentamente.
— Hm, ele sabe jogar.
— Não gaguejou nem uma vez. — Fen Fang murmurou, ainda mastigando.
— Tô começando a gostar dele. — Yaling sorriu com malícia.
No fim, Jinshi levantou-se, agradeceu pela hospitalidade e caminhou até a porta, parou por um instante, como se percebesse a presença oculta de Maomao.
— A Lady Kan pode ser afiada, mas os irmãos são lâminas bem temperadas também. — sorriu levemente.
Assim que se afastou, Maomao deslizou para dentro, o rosto corado, sem saber se queria socá-lo... ou beijá-lo.
A cozinha estava mergulhada em sombras suaves, iluminada apenas pela luz vacilante da lamparina sobre a mesa de madeira antiga. O cheiro das ervas secas misturava-se ao aroma do chá já frio, criando um ambiente íntimo e quase sagrado. Maomao encostou-se contra a parede fria, os braços cruzados sobre o peito, tentando ordenar os pensamentos que se embaralhavam dentro dela.
O rosto ainda queimava com o rubor inesperado, aquela mistura ambígua de irritação e fascinação pelo príncipe Jinshi. Como podia um homem ser tão calmo, tão seguro, e ainda assim mexer com ela de um jeito que nada conseguia explicar?
Ela fechou os olhos e respirou fundo, sentindo o aroma das folhas secas, quase como um amuleto contra a confusão que a dominava.
"Ele pode sobreviver a tudo... mas será que eu consigo sobreviver a ele?"
O silêncio da casa parecia agora mais pesado, carregado com perguntas não ditas e respostas que não queria aceitar.
Enquanto isso, no quarto privativo dos irmãos Kan, Zhìyuǎn, Fen Fang e Yaling trocavam olhares entre sussurros e risadas baixas.
— Ele é diferente. — Zhìyuǎn afirmou, a voz carregada de respeito e surpresa. — Não é o tipo que se impressiona fácil, nem que se intimida com nossos testes infantis.
— É quase... humano demais para um príncipe — murmurou Fen Fang, ajeitando o lenço ao redor do pescoço.
— Ou frio demais para ser realmente humano — retrucou Yaling, com um brilho travesso nos olhos.
No entanto, por trás da brincadeira, havia uma admiração sincera, aquela calma inesperada despertava algo novo em cada um deles, um misto de respeito e cautela.
[. . .]
No dia seguinte, ainda antes do sol romper por completo o horizonte, Maomao caminhava pelo jardim em direção ao pequeno altar ancestral, onde algumas flores recém-colhidas repousavam com delicadeza, o ar fresco da manhã trazia consigo um alento para sua alma inquieta.
Ela suspirou, afastando os fios soltos de cabelo do rosto, e ficou ali, em silêncio, contemplando o céu tingido de azul suave.
De repente, uma sombra familiar apareceu ao seu lado, era FengXian, sua mãe, que caminhava lentamente, vestida com o hanfu tradicional da família, os olhos carregados de uma sabedoria que só o tempo traz.
— Pensando em Jinshi? — a voz da mãe era suave, quase um sussurro que parecia respeitar o segredo da manhã.
Maomao não respondeu imediatamente, olhou para a mãe, os olhos ainda marejados, e então assentiu.
— Eu não sei se quero que ele me conquiste... ou que simplesmente me desafie até o limite.
FengXian sorriu levemente, colocando a mão no ombro da filha.
— O amor verdadeiro não é um caminho fácil, minha filha, é uma batalha diária entre quem somos e quem queremos ser. Às vezes, é necessário se perder um pouco para se encontrar de verdade.
Maomao fechou os olhos, absorvendo aquelas palavras como um bálsamo e uma provocação ao mesmo tempo.
— Sinto medo, medo de que, no fim, eu me perca nesse jogo e que a única coisa que reste seja o vazio.
— O medo é humano, — FengXian respondeu, com ternura — mas ele não pode ser a prisão que nos impede de viver, você tem o direito de escolher, Maomao, escolher seu próprio destino — mesmo que isso signifique quebrar tradições e expectativas.
Um silêncio confortável caiu entre as duas, como se o tempo tivesse diminuído seu ritmo para acompanhar o pulsar do coração de Maomao.
Mais tarde naquela manhã, Maomao encontrou-se no gabinete de Lakan, a sala, repleta de mapas e registros antigos, era o reino de seu pai, um homem que governava com a mesma firmeza que aplicava na estratégia militar.
Quando Maomao empurrou a porta e entrou sem dizer palavra, foi como se o centro de gravidade da sala tivesse mudado.
Lakan ergueu os olhos devagar.
Ela não usava maquiagem, não estava de uniforme ou traje cerimonial, os cabelos estavam soltos, ligeiramente bagunçados, e as olheiras que carregava indicavam mais inquietação do que cansaço.
— Maomao — ele disse, apenas isso.
Ela fechou a porta atrás de si e andou até ele como quem atravessa um campo de areia movediça. Parou, não diante da mesa, mas ao lado da cadeira onde ele se sentava.
— Posso... ficar aqui um pouco? — perguntou, com a voz baixa.
Lakan fez algo raro: afastou as anotações da mesa com um gesto largo e se levantou e, mais raro ainda, abriu os braços.
Maomao hesitou, por um instante, os lábios tremularam, mas então deu um passo à frente, depois outro e se deixou envolver.
Ele a sentou no colo como fazia quando ela era uma garotinha assustada com trovões e ela, que tantas vezes fora espinho, agora se permitia ser flor cansada.
O abraço dele era quente, silencioso. Seguro.
— A verdade, Maomao... — ele disse, com a voz mais baixa do que jamais usara com soldados ou imperadores — ...é que, se fosse por mim, você nunca precisaria casar, nunca precisaria representar nada além de si mesma. Só isso já seria o bastante para mim.
Maomao fechou os olhos e encostou o rosto no ombro do pai.
Ele prosseguiu:
— Mas... o mundo não é esse, o mundo cobra, espera, usa nossos nomes como ponte para os que virão. Você carrega o peso de ser nossa filha, de ser a primeira menina nascida nessa geração do clã, mas ainda assim... antes de tudo isso, você sempre será o meu bebê.
A voz dele falhou por um segundo.
— Minha primeira menina, a que me fez aprender o que era amar com medo, amar com orgulho. A que me ensinou a respirar de novo quando achei que meu coração fosse feito só de aço.
Maomao mordeu o lábio inferior, os olhos úmidos.
— Eu não sou fácil, pai...
— E eu também não, mas nunca duvide disso: o que você decidir, estarei ao seu lado. Não por dever, mas por amor, porque você é minha filha e ninguém neste império tem o direito de escolher no seu lugar.
Ela se agarrou à túnica dele com mais força.
— Mas esse pedido de noivado só existe porque envolve a política do cargo que eu represento nessa família como princesa do clã. A longo prazo, Fen Fang e Yaling só teriam bons casamentos se eu tiver um bom casamento, assim como o seu e o da mamãe, eu deveria saber instruí-las, não é? Mostrar o caminho certo...
Ela parou, os olhos marejando.
— Nunca me importei com a pressão de fato... amo a adrenalina, mas pela primeira vez me sinto derrotada por algo que ainda nem tenho resposta, enrolar ele é mais divertido do que aceitar o pedido de fato.
Lakan soltou um suspiro, acariciando os cabelos da filha com os dedos calejados.
— Sabe o que me faz mais feliz nisso tudo?
Maomao ergueu o olhar, confusa.
— Você ainda consegue rir no meio da tormenta. — dizia admiro — Você ainda é você, isso... é o que me dá paz.
Ela escondeu o rosto no peito dele por um instante, como se buscasse guardar aquele momento em um frasco de vidro, para abrir quando o mundo a sufocasse de novo.
E então, num fio de voz:
— Promete que vai continuar me chamando de bebê mesmo quando eu estiver com rugas?
Lakan sorriu, um sorriso que poucos no império já viram.
— Se me permitir continuar por perto... vou te chamar assim até o último dia da minha vida.
Silêncio.
Um silêncio que dizia: você não está sozinha.
[. . .]
Maomao ainda usava o robe leve de dormir, mas seus olhos estavam mais afiados que qualquer bisturi, a conversa com os pais pela manhã havia sedimentado tudo em sua mente, ela não hesitava, sabia o que queria e como queria.
— Prepare uma carta — ordenou a um servo de confiança. — Será selada em nome da família Kan.
Enquanto o homem se apressava, ela mergulhou o pincel na tinta negra e escreveu, com a precisão cirúrgica que a tornara temida tanto na medicina quanto na política:
"Ao Príncipe da Lua, Ka Zuigetsu,
Por meio desta, em nome da Casa Kan — representada por seu brasão ancestral do dragão e da serpente vermelha — declaro que aceito a oferta de noivado proposta por Vossa Alteza.
No entanto, aceito sob minhas condições, que não são súplicas, mas exigências.
Permanecerei ativa como herborista, médica e mulher livre, não tolerarei imposições que anulem meu intelecto, minha liberdade de ir e vir, ou meu direito de falar e agir por minha vontade.
Não aceitarei silenciamento, tampouco adulação vazia, serei esposa como sou filha de minha casa: com cabeça erguida, mãos firmes e juízo próprio.
Que esta união seja feita sob a égide da igualdade — não do controle.
Kan Maomao."
Ela selou o pergaminho com cera escarlate e pressionou o anel com o emblema da família: o dragão e a serpente entrelaçados, duas forças astutas em equilíbrio.
— Entregue pessoalmente em mãos ao príncipe e diga ao portão do palácio que esta mensagem não é súplica, é declaração.
O servo desapareceu antes mesmo do sol se erguer por completo
[. . .]
A grande sala de reuniões do palácio respirava solenidade, a luz cálida das lanternas de papel refletia-se no piso encerado, revelando discretamente as colunas entalhadas com dragões e fênix — símbolos de poder e prosperidade. Nas paredes, pinturas ancestrais retratavam batalhas e cerimônias da linhagem Ka, lembrando a todos que cada decisão ali tomada carregava o peso de séculos.
Ao centro, uma longa mesa de madeira escura reunia figuras que moldavam o destino do império, o silêncio era denso, quase palpável.
Ah-duo, mãe de Jinshi e matriarca reconhecida por sua presença imponente, estava sentada na poltrona de braços mais elevada, um pouco afastada da mesa, mas num ponto onde cada olhar inevitavelmente se voltava para ela. Sua postura ereta, as mãos unidas sobre o colo e o olhar que parecia atravessar a alma denunciavam que não se tratava de uma mera reunião de família — era um conselho estratégico.
À sua esquerda, as concubinas Gyokuyou e Lihua observavam com a atenção de quem aprendeu, ao longo de anos, a decifrar o que não era dito. Gyokuyou mantinha um sorriso sereno, mas seus olhos avaliavam cada reação; Lihua, mais contida, respirava lentamente, absorvendo cada detalhe antes de falar.
Jinshi, ainda com o pergaminho lacrado pelo selo da família Kan nas mãos, mantinha-se de pé, como se a própria postura fosse uma resposta ao peso da mensagem que carregava. Ao lado dele, seus irmãos — Jin-Ye, Jiang, Lingli e Yao Jun — trocavam olhares breves, carregados de expectativa e curiosidade contida. Cada um sabia que, naquele momento, alianças e futuros podiam mudar.
O som seco da voz de Ah-duo quebrou o silêncio.
— Então... é verdade. — sua entonação não era de surpresa, mas de confirmação calculada. — Lady Kan aceitou o noivado.
As lanternas oscilaram levemente com a brisa que atravessou a sala, como se até o ar aguardasse a resposta.
Jinshi assentiu com firmeza, o olhar direto, sem se permitir hesitar.
— Sim, mãe, mas não se iluda, ela não se submeterá às convenções, Lady Kan impôs condições claras... e traz consigo um espírito indomável. — uma pausa breve, suficiente para que todos ali entendessem a implicação. — Ela não será... uma noiva comum.
O murmúrio contido que percorreu a mesa não era de desaprovação, mas de avaliação silenciosa. No coração da corte, onde cada gesto era observado e cada palavra carregava consequências, todos sabiam: a chegada de Lady Kan não representava apenas um casamento. Representava grandes mudanças.
Gyokuyou entrelaçou as mãos no colo, um leve sorriso ocultando sua leitura mais profunda.
— Não poderia ser diferente... afinal, Lady Kan carrega no sangue a herança de FengXian, a Serpente Astuta de Jade.
Lingli arqueou as sobrancelhas, curiosa.
— FengXian...?
Yao Jun, ainda com o cenho franzido, inclinou-se para frente, a voz baixa, quase respeitosa diante do silêncio que pairava na sala.
— Ouvi falar de algumas lendas que giravam sobre seu nome... mas nunca soube a verdadeira história.
Gyokuyou desviou levemente o olhar em direção a Ah-duo, como quem pede permissão para falar. A matriarca, no entanto, desviou os olhos para o chão, um gesto raro de desconforto, o movimento foi breve, mas suficiente para que todos percebessem que aquele assunto carregava sombras antigas. Então, Gyokuyou respirou fundo, como quem abre um cofre de memórias que talvez devesse permanecer trancado.
— FengXian — começou, a voz suave, mas firme — foi uma das mais belas e célebres cortesãs de sua geração. Os homens pagavam fortunas apenas para vê-la dançar ou ouvir a cadência de sua voz. Aos quinze anos, assim como a imperatriz Ah-duo, Lady Lihua e eu, ela foi entregue ao palácio como concubina do Antigo Imperador. Não era apenas um presente de beleza... era um presente de inteligência.
Ela fez uma pausa, olhando cada um deles, medindo o efeito das palavras.
— Cortejada por generais, poetas e nobres, louvada em versos e canções, ela poderia ter sido a joia da corte, mas o que a tornou lenda não foi sua graça... foi o que ousou fazer.
Jiang, inquieto, inclinou-se sobre a mesa.
— E por que ela deixou o palácio?
Foi Ah-duo quem respondeu, a voz baixa, mas cortante como uma lâmina polida:
— Porque tentou... e conseguiu... envenenar o Antigo Imperador.
As palavras ecoaram como o som de um sino fúnebre, o ar pareceu ficar mais pesado, e até as chamas das lanternas tremularam.
— Há boatos — prosseguiu Ah-duo, sem suavizar — de que ela se deitou com ele... e o estrangulou. Outros afirmam que, com a bênção da Imperatriz Viúva, fingiu cuidar dele em sua "demência", enquanto o envenenava lentamente.
Os olhares se voltaram para ela, mas Ah-duo não piscou, sua voz, agora mais grave, parecia trazer o peso de segredos guardados por décadas:
— A verdade... é mais sombria. O Antigo Imperador tinha hábitos abomináveis, seu olhar recaía sobre crianças... não com inocência, era mais fácil manipular uma garotinha, do que uma mulher e infelizmente muitas tiveram suas vidas ceifadas nesse momento.
Um silêncio espesso caiu sobre a sala, Jin-Ye fechou os punhos sobre a mesa, Lingli baixou os olhos, evitando encontrar os dos irmãos, Jiang prendeu a respiração, como se temesse ouvir mais.
— FengXian não podia ficar calada diante disso — disse Ah-duo, e pela primeira vez, havia ali um traço de admiração. — Ao lado de Anshi, criou uma teia para afastá-lo das meninas do palácio. Ela se deitou com ele, sim... para que sua atenção recaísse apenas sobre elas, e não sobre as crianças e, pouco a pouco, o envenenou até que não restasse mais fôlego no corpo dele.
— E saiu ilesa? — perguntou Jin-Ye, a incredulidade clara.
Gyokuyou inclinou a cabeça, o olhar sombrio.
— Com a proteção de Anshi e a astúcia que lhe rendeu o título de Serpente Astuta de Jade, sim. Foi libertada do palácio com honras veladas. Retornou ao mundo como cortesã e recusou cada proposta de casamento que lhe foi feita e foram muitas. Até que conheceu Lakan... o melhor general e estrategista que nosso exército já teve.
Lihua, que até então permanecera em silêncio, deixou escapar um comentário, sua voz carregada de cálculo:
— A união deles foi mais do que um casamento. Foi um pacto de ferro, Lakan e FengXian tornaram-se uma muralha política, ninguém ousaria tocar no clã Kan sem medir duas vezes as consequências.
Jinshi, que mantivera o pergaminho lacrado entre as mãos, apertou-o com mais força, sentindo o peso de sua responsabilidade.
— E Lady Kan como a filha primogênita deles, possuí grandes vantagens políticas.
Ah-duo assentiu lentamente, os olhos fixos no filho.
— Sim, como a mãe, ela traz consigo a inteligência e a coragem de enfrentar a corte... e a ousadia de mudar o jogo, mesmo que isso signifique quebrar as regras. Este casamento... pode nos proteger de inimigos que se escondem até dentro destas paredes, mas lembrem-se... a mesma chama que aquece também incendeia.
O silêncio permanecia, denso como neblina de inverno, após as palavras de Ah-duo sobre FengXian, cada um parecia absorver o peso da revelação, até que um som diferente rompeu a quietude: passos rápidos no corredor, o choque apressado de sandálias contra o piso encerado, e um toque urgente na porta de madeira esculpida.
O capitão da guarda entrou, curvando-se profundamente antes mesmo de falar.
— Alteza, perdoe a intromissão uma mensagem urgente do Conselho de Fronteira Ocidntal.
Ah-duo ergueu o queixo, o olhar estreito.
— Fale.
O homem ajoelhou-se, retirando um pergaminho selado com tinta carmesim, Jinshi se levantou para pegá-lo e quebrou o lacre com um movimento firme. Seus olhos percorreram as linhas escritas, e um leve endurecimento na mandíbula denunciou que o conteúdo não era trivial.
Quando ergueu a voz, ela tinha o peso de más notícias cuidadosamente medidas:
— O clã Xie rompeu o pacto comercial com a província do Leste, pior... há relatos de que iniciaram negociações para se aliar ao clã Huang, que já mantém forças militares nas fronteiras.
Um murmúrio baixo percorreu a mesa, Jiang se inclinou para frente.
— Isso ameaça a rota de abastecimento, sem ela, os mercados da capital ficarão à mercê de preços e pressões políticas.
Yao Jun franziu o cenho.
— E sem abastecimento, a lealdade dos governadores provinciais será testada.
Gyokuyou, com o leque aberto à altura do queixo, falou devagar:
— Em tempos assim, as alianças matrimoniais não são mero luxo... são cordas que evitam que o barco vire.
Lingli, sempre atenta, deslizou o olhar para a mãe.
— Se o equilíbrio de poder mudar, vamos precisar de mais do que tratados para manter a segurança da família.
Foi então que Lihua, com a franqueza que lhe era própria, deixou cair a sugestão como quem lança uma pedra num lago calmo:
— O Conselho Imperial certamente falará sobre isso e quando falarem... é o nome de Jin-Ye e Lingli que virá à mesa primeiro.
Jin-Ye, sentada à direita de Jinshi, ergueu o rosto, mas não respondeu, seus olhos mantiveram a compostura, embora a rigidez nos ombros denunciasse que compreendera a gravidade da menção. Como primogênita, era moeda de prestígio político — e todos ali sabiam disso, embora Lingli também estivesse apta para ser usada nesse jogo político.
Ah-duo entrelaçou lentamente as mãos sobre o colo, olhando cada um dos filhos, como se medisse seu valor em tempos de tempestade.
— Se o clã Xie e o clã Huang unirem forças, não será apenas uma questão de comércio... será uma questão de sobrevivência e para sobreviver, será preciso fechar portas e amarrar laços antes que outros decidam por nós.
As palavras ecoaram, carregadas de aviso, não eram apenas sobre o império, eram sobre o destino da própria família Ka.
A porta se fechou após a saída do mensageiro, o silêncio que se seguiu não era vazio, mas carregado do peso de tudo que fora dito. As chamas das lanternas tremulavam levemente, projetando sombras que dançavam nas paredes adornadas com os estandartes da família Ka.
Ah-duo apoiou as mãos nos braços da poltrona, o olhar firme e calculista.
— Isso muda o jogo, se o clã Xie e o clã Huang realmente selarem essa união, o equilíbrio no Conselho se quebrará e quando isso acontece... — ela fez uma pausa — as alianças passam a ser decididas pela moeda mais valiosa que temos.
Gyokuyou fechou o leque com um estalo seco.
— As princesas.
O olhar de todos se voltou para Jin-Ye e Lingli. A primeira, como primogênita, mantinha a cabeça erguida, mas as mãos estavam crispadas sobre o colo. Lingli, mais nova, desviou o olhar, sentindo o peso da implicação mesmo sem ouvir a palavra "casamento" ser dita.
Lihua suspirou baixo.
— Em tempos de instabilidade, dois nomes como os delas são chaves para consolidar tratados. Se não agirmos rápido, alguém no Conselho sugerirá o óbvio.
Jinshi, que até então mantinha o pergaminho lacrado na mão, ergueu-se. O tom de sua voz cortou o ar com a mesma precisão de uma lâmina.
— Não. Isso não vai acontecer.
Ah-duo o fitou, surpresa pela firmeza.
— E o que sugere? Não tem muito a ser feito, o Clã Xie apesar de pequeno, é muito ganancioso e não voltará atrás em sua palavra, a não ser que o dobro do valor oferecido pelo acordo com o Clã Huang seja ofertado a eles, como uma retaliação. — a voz da imperatriz soava pesada — Entenda que o País de Li está passando por uma crise imensa Zuigetsu e que não existe outra alternativa, além das alianças matrimoniais.
— Que viremos o tabuleiro antes que nos forcem um movimento para o casamento de minhas irmãs. — disse Jinshi, encarando a mãe e depois os irmãos. — Nós organizaremos um evento oficial que coincida com o dia do Festival da Lua. Nesse dia, diante da corte e de todo o povo, anunciaremos o meu noivado com Maomao.
Houve um murmúrio contido, Jin-Ye arregalou levemente os olhos, Gyokuyou arqueou a sobrancelha, calculando mentalmente a repercussão.
— Uma demonstração pública de força e união entre o Império e os Kan — prosseguiu Jinshi, sem vacilar. — Com isso, o foco estará no noivado e na aliança que ele representa e ninguém ousará tocar nos nomes de Jin-Ye e Lingli para barganhar estabilidade.
Jiang cruzou os braços, assentindo.
— Ele tem razão. O momento exige que nos antecipemos.
Yao Jun, sempre o mais pragmático, completou:
— E ao fazer isso durante o Festival da Lua, a mensagem será impossível de ignorar, o simbolismo de prosperidade e renovação ficará associado ao acordo.
Lingli olhou para o irmão com gratidão silenciosa, Jin-Ye manteve a postura, mas o alívio suavizou, por um instante, o peso no seu olhar.
Ah-duo recostou-se lentamente, avaliando cada peça no tabuleiro que seu filho acabara de mexer, por fim, deu um leve aceno de cabeça.
— Então que seja, prepararemos o anúncio para o Festival da Lua, mas entenda, Zui... — seus olhos se estreitaram — uma vez dado esse passo, não haverá volta.
— Nem precisa haver — respondeu ele, com a mesma firmeza. — É a nossa família e eu não deixarei que ninguém use minhas irmãs como moeda de troca e apesar de odiar usar Lady Kan nesse momento como jogo político, é necessário para que eu proteja as princesas dessa casa.
O silêncio que se seguiu não era de dúvida, mas de concordância, pela primeira vez naquela noite, a família Ka parecia unida diante da ameaça que se aproximava.
[. . .]
O salão lateral estava iluminado apenas pelas lanternas de óleo, projetando sombras suaves nas colunas pintadas de carmesim. O som abafado das conversas no salão principal agora pareciam distante ali, como se aquele canto fosse um refúgio momentâneo. Jin-Ye permanecia sentada junto à janela, o olhar perdido na rua silenciosa, enquanto Lingli, mais inquieta, andava de um lado para o outro, o vestido esvoaçando levemente.
— Sabe o que me assusta? — Lingli quebrou o silêncio, sem parar de caminhar. — Não é só o que falaram agora há pouco, é saber que, se precisarem... vão nos usar sem pensar duasàs vezes.
Jin-Ye não desviou os olhos da noite.
— Sempre soubemos disso, do nosso infeliz destino. — ela suspirou frustrada — Desde crianças... mas é diferente quando você ouve a possibilidade assim... tão perto. — a voz dela tinha um peso resignado, mas também um toque de amargura.
— Eu não quero ser enviada para algum clã que mal conheço só porque isso mantém a coroa segura — Lingli murmurou, quase como um segredo perigoso, a voz carregada de um medo contido. — Nem você quer… mesmo fingindo que não liga. Eu quero me casar por amor, Jie Jie.
Os olhos verdes de Lingli, brilhantes como esmeraldas recém-lavadas pela chuva, buscavam aprovação na irmã. Havia neles a chama viva das histórias que devorava em silêncio, romances cheios de encontros ao luar e promessas eternas.
Jin-Ye, porém, não partilhava daquele brilho, para ela, casamento não era sinônimo de encantamento, mas sim de prisão — uma gaiola dourada onde, mesmo cercada de luxo, a liberdade se tornava pó. Se pudesse escolher, preferiria o silêncio de um campo distante, longe das intrigas e jogos de poder, amarrar-se a alguém só por dever, ou pior, por cálculo político, era um destino que suportava apenas por necessidade, não por desejo.
Ainda assim, ao ver o rosto de Lingli banhado de esperança, não teve coragem de arrancar aquela ilusão. Se sua irmã queria acreditar que o amor poderia vencer a razão de Estado, Jin-Ye não seria a responsável por apagar esse sonho.
No fundo, sabia que a vida de uma princesa raramente concedia escolhas
Antes que Jin-Ye pudesse responder, passos firmes ecoaram no corredor, Jinshi surgiu na entrada, a expressão carregada, mas os olhos fixos nelas com uma suavidade incomum.
— Eu ouvi o suficiente — disse ele, entrando no salão e fechando a porta atrás de si. — E quero que entendam algo: enquanto eu respirar, ninguém vai decidir o destino de vocês por conveniência política.
As duas o olharam, surpresas pela intensidade da afirmação, Jin-Ye tentou manter a postura, mas a tensão nos ombros dela denunciavam o alívio que sentia.
— É fácil falar, Jinshi... — Lingli começou, mas ele a interrompeu.
— Não é só falar. — Ele se aproximou, pousando uma das mãos no encosto da cadeira de Jin-Ye. — É por isso que pedi que o anúncio do meu noivado com Lady Kan seja feito no Festival da Lua, ele está próximo, assim logo poderão organizar a cerimônia em dias. — disse tentando passar certa segurança as irmãs — Quero que todos vejam que o império e os Kan estão juntos e isso vai, com toda certeza, afastar olhares indesejados sobre vocês, anulando qualquer decisão do conselho sobre o casamento de vocês.
Lingli trocou um rápido olhar com a irmã, como se processasse o impacto da notícia.
— Então... — Jin-Ye suspirou, apoiando o queixo na mão. — Não seremos mais só nós duas.
— Vamos ganhar uma nova irmã. — completou Lingli, com um leve sorriso, embora hesitante. — Uma irmã... perigosa.
Jin-Ye arqueou a sobrancelha, mas não discordou.
— O histórico dela e da família não é exatamente... reconfortante.
Jinshi soltou um meio sorriso.
— Vocês vão descobrir que, às vezes, ter alguém perigoso ao seu lado é melhor do que ter dezenas de aliados falsos.
Houve um breve silêncio, até Lingli murmurar:
— Pode ser... que seja uma dádiva, afinal.
Jin-Ye não respondeu, mas o canto de sua boca se ergueu levemente, enquanto do lado de fora as lanternas para o Festival começavam a ser acesas, como se a noite estivesse pronta para selar novos destinos.
[. . .]
O salão principal da residência Kan estava envolto em uma calma tensa, onde a luz suave das lanternas criava reflexos dourados nas tapeçarias ricamente bordadas que contavam histórias ancestrais da família. Maomao, vestida em um hanfu de tons delicados, permanecia junto à janela, com os olhos fixos no jardim lá fora, como se buscasse alguma resposta nas sombras das árvores.
O silêncio foi abruptamente quebrado pelo som firme dos passos de um mensageiro imperial que adentrava o salão com a solenidade que a ocasião exigia. Ele vestia o traje cerimonial azul-escuro, bordado com símbolos do dragão imperial, e carregava nas mãos um pergaminho lacrado com o selo do imperador, sua expressão era séria, e cada movimento denotava respeito e urgência.
— Em nome do Imperador, trago a convocação oficial para o Festival da Lua — anunciou, a voz clara e ressonante no espaço amplo. — Um evento de suma importância onde as principais famílias nobres do império se reunirão, neste ano, o jovem príncipe, sua alteza real Jinshi, fará o anúncio público de seu noivado com a Lady Kan, fortalecendo assim a aliança entre as casas Kan e Feng.
Maomao sentiu um nó se formar em seu estômago.
O olhar de Maomao buscou instintivamente a mãe, FengXian mantinha a postura ereta, impecável, o semblante sereno como a superfície de um lago, mas havia um brilho sagaz nos olhos, a prova de que nada escapava à sua percepção. Com a pequena Yaling adormecida no colo, o rostinho afundado contra o tecido macio de sua veste, a mulher ainda encontrou espaço para se aproximar, envolvendo Maomao num abraço lateral.
Era um gesto contido, quase formal, mas carregado de calor, FengXian sabia que, mesmo com a decisão já tomada, a filha ainda carregava receios que preferia não expor. Aceitar o noivado havia sido um ato de coragem e estratégia, mas também um salto no escuro, a mãe, experiente na arte de ler silêncios, entendia que sua função ali não era questionar, mas sustentar — lembrá-la, sem palavras, que por trás do título de princesa, da figura pública de médica e política influente, havia ainda uma jovem com medos que se esforçava para camuflar.
Ao lado, Lakan permanecia com os braços cruzados, a postura rígida e o rosto sério, mas um leve sorriso nos cantos da boca denunciava a satisfação silenciosa. Ele jamais contestaria a escolha da filha; ao contrário, admirava a forma como ela tinha ultrapassado as barreiras e aceitado o peso de uma união que traria não apenas prestígio, mas desafios. Ainda assim, conhecia bem o nervosismo que latejava sob aquela camada de classe e elegância que Maomao carregava como uma segunda pele.
Já Lahan, incapaz de manter a solenidade, inclinou-se ligeiramente para murmurar, num tom quase travesso:
— Finalmente, irmã… vou me livrar de você.
Maomao lançou-lhe um olhar que mesclava repreensão e uma ponta de humor contido.
Zhìyuan e Fen Fang mantiveram a calma, com o olhar analítico, eles espiavam curiosos perto da porta, cochichando entre si, os olhos brilhando com a expectativa de descobrir o conteúdo do pergaminho.
Enquanto o mensageiro retirava o selo do pergaminho, Maomao sentiu a ansiedade crescer, o anúncio acelerava o destino que ela ainda não conseguia compreender totalmente, a iminência do casamento, a ideia de partir para longe de tudo o que conhecia, tudo acontecendo antes que pudesse raciocinar sobre seu futuro.
FengXian, aproximando-se suavemente, falou com voz calma mas firme:
— Este é um passo crucial, minha filha. A pressa, neste mundo, é um preço que pagamos pela sobrevivência… e pelo poder. Não se iluda: haverá olhares que te pesarão e bocas que sussurrarão contra você, mas se mantiver a cabeça erguida, ninguém ousará tocar no que é seu e você nasceu para ser imperatriz, tem a classe e a força necessária para o trabalho e só isso importa.
Lakan, ao lado, avançou um passo e pousou uma mão firme no ombro da filha, o gesto carregava a força de um pilar, como se quisesse transferir para ela a solidez que ele próprio emanava.
— Estamos com você, sempre. — disse, num tom que era quase um juramento. — O que está por vir não é apenas um desafio, é também uma oportunidade. Lembre-se de que você não estará sozinha, ainda que, por vezes, pareça.
A rigidez no ar que pairava entre eles foi cortada pela voz de Lahan, com seu sorriso maroto de sempre:
— Nova casa, nova vida… quem sabe agora eu consiga um pouco de paz sem você por perto.
Apesar da tentativa evidente de aliviar a tensão, havia um afeto sutil no olhar dele, Maomao girou levemente o rosto na direção do irmão, lançando-lhe um olhar cúmplice com um sorriso sincero.
— Saiba você, que se livrou de mim, mas não das Ervas Daninha. — riu apontando para os irmãos escondidos.
Respirou fundo, como se buscasse encaixar cada pensamento e emoção em seu devido lugar, a tempestade interna era inevitável: medo, expectativa, orgulho… tudo se misturava, sabia que sua vida estava prestes a mudar de forma irrevogável, mas, entre as nuvens da incerteza, um fio tênue de determinação começava a ganhar corpo.
Ao longe, Fen Fang e Zhìyuan ainda se mantinham atentos, os olhinhos brilhando de curiosidade, uma curiosidade que parecia farejar mudanças. Aquela energia infantil, viva e genuína, era um lembrete do que estava em jogo e então, olhando para eles e para a pequena Yaling, Maomao compreendeu: era por eles, e por si mesma, que deveria enfrentar o bicho de sete cabeças chamado casamento. Não por imposição, mas porque a sobrevivência, o prestígio e a proteção dos seus dependiam da forma como ela lidaria com o que viria.
Maomao permaneceu imóvel por longos instantes após a saída do mensageiro, como se o som da porta se fechando ainda ecoasse em sua mente. O olhar fixo nas sombras que dançavam na parede não era vazio, carregava um peso contido, como se cada pensamento fosse uma maré tentando invadir a calma forçada do seu semblante. O rosto, quase inexpressivo, era uma máscara bem treinada, mas por trás dela agitava-se uma tempestade silenciosa.
Lentamente, inspirou fundo e se virou, o pano do vestido sussurrando com o movimento, começou a caminhar pelo salão, e o som ritmado dos passos sobre o assoalho de madeira preenchia o espaço como um relógio marcando o tempo até uma decisão inevitável.
Lahan, que observava cada detalhe com aquela atenção disfarçada que só irmãos conseguem ter, aproximou-se sem pressa, mantendo-se ao lado dela. Havia em seus olhos um misto de firmeza e inquietação, como se tentasse medir qual das duas emoções deveria prevalecer naquele momento.
— Vamos até o gabinete do papai — sugeriu ele, num tom baixo, quase confidencial. — Sei que você precisa conversar… nem que seja só para me desdenhar, revirar os olhos e depois me abraçar fingindo que foi sem querer.
A frase arrancou dela um meio sorriso, breve e involuntário, que se apagou quase no instante em que surgiu. Em vez de responder, Maomao parou por um momento e o encarou com aquele olhar entediado que ele conhecia desde a infância, o mesmo que dizia “Você não vai ganhar essa discussão, mas vou te acompanhar só para não ouvir reclamações depois”.
Sem trocar mais palavras, ela o seguiu pelo corredor silencioso até o gabinete, a porta, já entreaberta, revelava o espaço vazio: a mesa imponente, o cheiro leve de tinta e papel, a penumbra que deixava cada móvel com contornos mais pesados. Era como entrar num território de decisões sérias, onde até o ar parecia exigir postura.
Postura que muitas vezes ela tinha para lidar com os negócios da família seguindo alguns dos conselhos do gêmeo mais novo, afinal eles eram os herdeiros do Clã, na ausência de Maomao após o casamento, Lahan que dirigiria os negócios da família, na falta dos pais em algum momento.
Maomao entrou primeiro, passando os dedos distraidamente sobre a borda de um biombo, como se quisesse sentir algo sólido em meio ao turbilhão que a rondava. Lahan fechou a porta atrás de si e recostou-se nela, os braços cruzados.
— Então… — ele começou, num tom mais sério que o habitual. — Vai me dizer o que está pensando ou quer que eu adivinhe? Porque se for para adivinhar, vou ter que buscar a minha bola de cristal.
— Eu não estou pensando, Lahan — ela respondeu, a voz controlada, mas carregada de uma calma tensa. — Estou tentando… não pensar.
— O que não é exatamente o que você faz de melhor. — ele rebateu, arqueando uma sobrancelha. — Você sempre pensa, calcula, desmonta tudo na cabeça, até quando está quieta, eu sei que está planejando dez passos à frente.
Ela o olhou por alguns segundos, sem expressão, antes de soltar um suspiro lento.
— E se eu não quiser jogar esse jogo? E se eu não quiser estar no tabuleiro de ninguém?
Lahan descruzou os braços, aproximando-se.
— Maomao, você já está no tabuleiro desde que nasceu e você sempre procura problemas pra resolver, então fingir que pode sair é como achar que dá pra mudar a direção do vento soprando contra ele.
Ela desviou o olhar, como se aquelas palavras fossem um incômodo admitido.
— É sempre assim com você… nunca diz “vai ficar tudo bem”, só me lembra do quanto estou presa.
— Porque eu te conheço — respondeu ele, firme, porém com um calor fraternal na voz. — Você não precisa de um conto de fadas, precisa de alguém que te diga como sobreviver dentro dessa gaiola até conseguir abrir a porta.
Por um momento, o silêncio preencheu o gabinete, Maomao apertou levemente a barra da manga, o gesto quase imperceptível revelando a tensão que escondia.
— E se a porta nunca abrir?
Lahan deu um meio sorriso, suave, mas carregado de afeto.
— Então a gente quebra a fechadura juntos.
Ela ergueu os olhos para ele, finalmente deixando um canto dos lábios se curvar num sorriso breve e cansado.
— Você é insuportável.
— E você é dramática. — ele deu um passo atrás, como se a pequena troca de farpas fosse a pausa necessária para aliviar o peso do momento. — Mas é a minha irmã dramática, então… acostume-se.
Maomao rolou os olhos, mas a tensão em seus ombros parecia um pouco menor, talvez não houvesse solução imediata, mas pelo menos ela não estava sozinha para enfrentar o que vinha.
— Você não vai conseguir fugir disso, Maomao — disse ele, num tom que não era de dureza, mas de constatação. — Mas… também não precisa atravessar tudo sozinha.
— Não é só medo do que vou encontrar, é medo de… deixar tudo isso para trás, a casa, vocês, até as brigas irei sentir falta. — confessou cobrindo o rosto.
— Não se preocupe com as brigas, — sorriu malicioso — você pode até não ter mais os seus irmãos para brigar, mas vai ter um marido para nos substituir.
Maomao o encarou furiosa batendo em Lahan com uma almofada da cadeira ao qual estava encostada.
— Idiota.
Ele se aproximou devagar, colocando uma mão em seu ombro.
— Mas não importa para onde você vá, vai continuar sendo minha irmã mais insuportável e preferida. — um leve sorriso surgiu em seu rosto. — E se um dia precisar, eu atravesso o império inteiro para ir te buscar.
Por um instante, Maomao ficou imóvel e então, respirou fundo, virou-se para ele e abriu os braços, sem dizer nada. Os olhos, porém, estavam úmidos
Lahan não hesitou: a envolveu num abraço apertado, erguendo-a do chão como fazia quando eram crianças.
— Mimadinha — murmurou contra o cabelo dela.
Maomao riu baixinho, apesar do nó na garganta, sabia, no fundo, que aquela seria a última vez que ele a carregaria assim antes do casamento. Por isso, fechou os olhos e se permitiu guardar o momento, como se pudesse congelá-lo para sempre.
Chapter 5: Sombras e Sussurros
Notes:
Confesso que escrevi esse capítulo muito no pique entre ou é oito ou oitenta, porque tudo mudou drasticamente num piscar de olhos e terminei o capítulo, simplesmente ouvindo S&M da Rihanna, enfim boa leitura a todos :))))))))
Chapter Text
Ninguém ousaria questionar a origem de Maomao.
Ela não apenas vinha de um berço nobre — carregava-o na postura, no olhar e na forma precisa como pronunciava cada palavra. Desde muito cedo, aprendera a valorizar essa posição não como um simples título herdado, mas como uma responsabilidade que moldaria seu destino. Compreendia, com uma lucidez rara para a idade, o quão privilegiada era, e que esse privilégio exigia preparo, controle e renúncia.
Metade de sua vida fora dedicada a um treinamento rigoroso, pensado não apenas para formar uma dama respeitável, mas para moldar uma líder capaz de governar tanto uma casa quanto um império. Enquanto outras crianças viviam mergulhadas em risos e jogos, Maomao, ainda menina, deixava de correr pelos jardins ao lado do irmão para se sentar diante de mapas, pergaminhos e registros de comércio. Ali, com disciplina férrea, absorvia o intricado tecido das estratégias políticas que Lakan tecia com maestria.
Não se tratava apenas de aprender regras de etiqueta ou saber conduzir conversas diplomáticas; era estudar o jogo invisível, aquele que se desenrolava nas entrelinhas das palavras e no silêncio calculado entre um gesto e outro. Maomao conhecia o peso de cada decisão, entendia como um movimento errado poderia derrubar décadas de estabilidade.
Desde muito jovem, Maomao aprendeu que a vida não era um simples acaso, mas um delicado e estratégico tabuleiro de Go — um jogo onde cada peça movida podia decidir destinos. Sabia que precisava agir com rapidez e precisão, antecipando o movimento do oponente para impedir sua vitória. Não bastava ser veloz, era preciso ser implacável, inteligente e usar todos os recursos à disposição.
Na inocência da infância, descobriu que certas artimanhas simples, como oferecer álcool e doces ao pai durante as partidas, quebravam sua concentração, permitindo que ela vencesse com facilidade. Ainda mais eficaz era sua provocação sutil a Lahan, seu irmão, que, distraído, perdia a linha de raciocínio, resultado da mistura de sua persistente astúcia e da provocação calculada. Esses pequenos truques mostravam que Maomao não se deixava limitar por regras rígidas — ela dominava o jogo, dentro e fora do tabuleiro.
Embora o Go fosse profundamente valorizado na casa do clã, servindo como metáfora para o poder e a política, Maomao recebia ensinamentos muito além do que a maioria dos nobres poderia sequer imaginar. Seus pais, especialmente por terem uma mente mais aberta e maleável em relação aos costumes e à educação, deram a ela uma formação que fugia dos padrões tradicionais e estreitos da nobreza.
Aos treze anos, Maomao teve seu primeiro contato com aulas de guzheng e guqin — instrumentos ancestrais cujas melodias eram capazes de acalmar, encantar e até manipular emoções. A dança, por sua vez, fazia parte da sua essência, assim como uma ligação ancestral com a Casa Verdete, o bordel mais renomado do Distrito do Prazer. Não era apenas um lugar de lazer, mas um santuário da história de sua família, o antigo lar de sua mãe FengXian.
FengXian, com sua sabedoria adquirida em batalhas pessoais e sociais, fazia questão de levar Maomao e Lahan à Casa Verdete, mas apenas em momentos de calmaria, longe dos olhares indiscretos dos clientes, ou durante eventos cerimoniosos organizados pelas cortesãs. A “Vovó”, como era carinhosamente chamada a Madame dona do Bordel pela infância das crianças, era a proprietária daquele império de mulheres e segredos. Admirava profundamente FengXian, que apesar das inúmeras confusões e desafios enfrentados em sua juventude, havia conseguido não só sobreviver, mas construir um casamento feliz e uma família digna de respeito — um feito que poucas cortesãs jamais alcançariam.
Na Casa Verdete, Maomao recebeu ensinamentos preciosos das irmãs mais velhas — Meimei, Pairin e Joka — que a introduziram na arte dos jogos de prazer. Ali, sob a orientação da mãe e das cortesãs, aprendeu as técnicas ancestrais de sedução, a arte de conquistar e desarmar um homem, seja ele tomado pela fúria ou pela solidão. Aprendeu a ler desejos ocultos, a manipular emoções e a controlar situações complexas com uma graça que escondia um poder sutil, mas devastador.
Foi por tudo isso que FengXian sabia que ela e Lakan haviam criado uma força singular, uma pequena potência dentro da nobreza. Maomao era uma mulher de múltiplas facetas: fluente em diversos idiomas, conhecedora dos dialetos locais, uma estrategista nata no campo político. Sua capacidade de posicionar-se frente aos problemas e adversários políticos deixava muitos sem palavras e com poucas armas para contra-argumentar.
Assim, a iminente ida de Maomao ao Palácio Imperial era, para FengXian, uma esperança e uma ameaça ao mesmo tempo — um presente para seu clã, mas também uma maldição para aqueles que cruzassem seu caminho. Maomao carregava no sangue a astúcia venenosa da serpente e a força feroz do dragão, uma combinação que a tornava tão imprevisível quanto poderosa.
A luz tênue da tarde filtrava-se pelas janelas envidraçadas da Casa Verdete, espalhando um brilho suave que acariciava as paredes revestidas por tapeçarias vermelhas e destacava os entalhes delicados dos móveis antigos. Lanternas de papel pendiam do teto como pequenas estrelas apagadas, projetando sombras que dançavam lentamente, conferindo ao ambiente uma aura de mistério e reverência.
FengXian caminhava ao lado do marido, segurando firme as mãos dos filhos, cujos rostinhos transbordavam curiosidade e inocência. Os olhos de Yaling, mais atentos e contemplativos, captavam cada detalhe daquele espaço que já fora o refúgio de sua própria juventude.
— Hoje, minhas pequenas estrelas — sussurrou FengXian para o marido, o tom grave suavizado por um sorriso discreto — vão testemunhar algo que muito desejaram conhecer. É importante que nunca esqueçamos nossas raízes.
Ela agachou-se com delicadeza diante dos gêmeos, ajeitando com precisão o penteado de Fen Fang e alinhando a gola do hanfu de Zhìyuan. Cada gesto seu carregava o peso de gerações, de hitórias vividas e de um legado que se recusava a ser esquecido.
FengXian mantinha contato constante com as cortesãs do Bordel, seu antigo lar, uma rede de mulheres fortes e resilientes que, como ela, haviam enfrentado desafios impensáveis. Pairin, Meimei e Joka adoravam Maomao e as crianças, tratando-os com um carinho que ultrapassava o simples afeto, era um laço materno, quase palpável, uma extensão do amor que nunca deixaram de oferecer.
Era impossível conter a alegria e a algazarra que explodiam sempre que Pairin via as crianças crescerem rápido demais para seus olhos cansados, como se cada risada, cada passo dado, lhes devolvesse um pouco da maternidade que a vida lhes roubara. Ver FengXian realizada ao lado dos filhos era para ela como uma redenção, uma chance de reviver sonhos interrompidos e alimentar esperanças renovadas.
Naquele instante, a Casa Verdete não era apenas um bordel, nem apenas um lugar de memórias amargas e glórias passadas. Era um santuário de histórias, uma fortaleza invisível onde passado e presente se entrelaçavam, moldando o futuro de uma linhagem que jamais seria esquecida.
O silêncio do jardim parecia pesar nos ombros de ambas, enquanto a brisa noturna sussurrava segredos entre as folhas. FengXian segurou as mãos de Maomao com firmeza, o olhar fixo na filha, carregado de uma intensidade que ia além das palavras.
— Maomao... — começou ela, a voz baixa, como se cada sílaba fosse uma confissão arrancada das profundezas — Hoje, quando vi você defender seus irmãos daquele homem desprezível, reconheci algo muito antigo em você. Algo que pensei ter enterrado junto com o passado.
Maomao ergueu os olhos, buscando no rosto da mãe alguma pista, algum sinal do que estava por vir.
— Eu também fui aquela jovem que se recusou a silenciar diante da injustiça a muito tempo atrás. — continuou FengXian, a respiração pausada, pesada. — Com 15 anos fui entregue ao palácio como presente, uma joia para o Antigo Imperador, mas o que ele era... — ela engoliu em seco, como se o simples pensamento trouxesse de volta os horrores — era uma sombra que devorava inocência e esperanças.
A voz dela quebrou por um instante, antes que retomasse com um peso quase insuportável.
— Eu fiz o que ninguém ousou, envenenei aquele homem que afligia tantas vidas, não por vingança cega, mas para proteger aqueles que não podiam se defender. Para salvar crianças, mulheres... para salvar a dignidade que ele tentava destruir.
Maomao sentiu o mundo girar ligeiramente, um misto de choque e reverência apertando seu peito.
— Vi você naquela luta desesperada, naquela fúria incontrolável que escapa das amarras da nobreza. Eu vejo muito de mim dentro de você, é como se você carregasse a astúcia da serpente em seu sangue, aquela astúcia, aquela coragem brutal que desafia o destino.
FengXian apertou as mãos da filha com mais força, lágrimas silenciosas escorrendo.
— É por isso que te amo, Maomao, porque, mesmo com esse peso, mesmo com esse destino que nos ameaça, você não recua. Você luta. Assim como eu lutei. — os olhos de FengXian se enchiam de lágrimas observando Maomao — E eu vejo, nunca tive dúvidas, mas hoje tive a certeza que como Imperatriz, você será incomparável e a mais sagaz a subir ao trono.
Maomao, com o olhar úmido, sentiu a magnitude daquele legado e o peso das palavras de sua mãe, a responsabilidade que pulsava em suas veias como um juramento silencioso.
— Não estamos sozinhas — concluiu FengXian, a voz firme, cheia de determinação e amor. — A chama que arde em nós é uma herança, e também uma promessa: protegeremos os nossos, custe o que custar.
No silêncio que se seguiu, mãe e filha permaneceram unidas sob as estrelas, duas forças entrelaçadas pelo passado e pelo futuro, preparadas para enfrentar as sombras que se avizinhavam com uma coragem indomável.
[. . .]
Mais tarde, já no silêncio acolhedor do quarto principal, FengXian e Lakan permaneceram lado a lado, olhando pela janela para o céu que escurecia lentamente, tingido pelos últimos vestígios do crepúsculo. O peso do dia ainda se fazia presente em seus olhares, reflexo da inquietação que os acompanhava.
— Nunca imaginei que nossas crianças passariam por algo assim — começou FengXian, a voz baixa, quase um sussurro. — Maomao é forte, mais do que qualquer um poderia prever, mas... ver os pequenos assim, assustados... é uma dor que rasga o coração.
Lakan inclinou-se, envolvendo-a num abraço protetor, os dedos acariciando suavemente os cabelos dela.
— Eles são nossa herança, FengXian. Nossos laços de sangue, de alma. Protegê-los não é apenas nosso dever, é nossa essência, Maomao tem essa chama feroz porque sabe que a responsabilidade é enorme. Ela carrega não só o peso do nosso nome, mas a promessa de manter essa família unida.
Ela suspirou, encostando a cabeça no peito dele, sentindo o ritmo firme da respiração que a acalmava.
— Às vezes temo que essa carga possa esmagá-la. Que a pressão de ser tão forte, tão preparada, a faça perder a leveza da infância, da juventude. Ela já abre mão de tanta coisa... — a voz angustiada, mostrava a vulnerabilidade e a preocupação de uma mãe que conhecia bem seu filhote.
Lakan apertou-a um pouco mais, como se quisesse transmitir toda a força que sentia.
— Maomao sabe o que faz e nós também. O que aconteceu hoje mostra que não podemos baixar a guarda, mas também que estamos criando filhos capazes de enfrentar o mundo, mesmo em sua dureza.
Um sorriso tênue surgiu nos lábios de FengXian.
— E Lahan, sempre tão sereno, mas com a coragem silenciosa que todos admiramos, ele tem um jeito único de proteger, não é?
— Exato — concordou Lakan, olhando nos olhos dela com intensidade. — Ele é a âncora dessa tempestade, um porto seguro. Juntos, formamos a muralha que nossos filhos precisam.
Por um momento, ficaram em silêncio, embalados pela cumplicidade que só anos de convivência e batalhas compartilhadas podem construir.
Então, com um gesto suave, Lakan passou as mãos pelo rosto de FengXian, segurando-a com delicadeza.
— Mesmo em meio à escuridão que às vezes nos cerca, você é minha luz constante, minha força. — confessou beijando a ponta do nariz da esposa.
Ela sorriu, emocionada, e respondeu, quase num sussurro:
— E você, meu refúgio.
Seus lábios se encontraram numa carícia lenta, cheia de significado, um pacto silencioso de amor, esperança e resistência diante do que viesse.
Naquele momento, entre o calor do abraço e o silêncio compartilhado, FengXian e Lakan encontraram um alento para suas almas inquietas — a certeza de que, juntos, seriam capazes de enfrentar qualquer tempestade.
[. . .]
5 dias depois...
A manhã estava cinzenta, o céu carregado de nuvens, como se o clima pressentisse que o dia traria mais do que simples protocolos. O corredor que levava ao gabinete do Ministro Wei estava silencioso, exceto pelo som compassado das sandálias de Maomao sobre o piso de pedra polida. À sua esquerda, Lahan caminhava com a expressão contida, mas havia um leve brilho de divertimento em seus olhos, como se aguardasse ansiosamente pelo momento de ver alguém ser desmontado peça por peça pela língua afiada de sua prima.
O chamado para comparecer ao gabinete havia chegado na noite anterior, sob o pretexto de “Tratar de assuntos pendentes do Clã Kan”. Maomao sabia que aquilo, na prática, significava um interrogatório velado sobre as intenções da sua família e possíveis alianças, desde que assumira publicamente parte das funções administrativas do clã, poucos ousavam subestimá-la, mas muitos ainda tentavam testar seus limites.
O oficial responsável, Ministro Wei, aguardava atrás de uma mesa larga de madeira de nogueira, ladeada por rolos de pergaminho, contas de jade e uma chaleira fumegante. Era um homem de meia-idade, barba longa e olhos treinados para medir cada expressão alheia, ele levantou-se com um gesto protocolar, mas o olhar calculista denunciava que a cortesia era apenas fachada.
— Princesa Kan, Mestre Lahan… — começou ele, inclinando-se brevemente. — Agradeço por atenderem tão prontamente, temos questões que necessitam de um esclarecimento mútuo.
Maomao acomodou-se com calma, ajustando a manga do hanfu azul-acinzentado que usava, seus gestos eram precisos, quase frios, mas nada nela passava despercebido.
— Questões? — indagou, sua voz carregada de uma polidez cortante. — Ou tentativas de sondagem disfarçadas de diplomacia?
Wei hesitou por um instante, um reflexo quase imperceptível que denunciou o desconforto inicial. Lahan, sentado ao lado, ocultou um sorriso atrás da mão.
— Apenas desejamos compreender as recentes movimentações comerciais do Clã Kan — respondeu o ministro, retomando o controle. — Houve mudanças significativas nas rotas de fornecimento de grãos e seda. Alguns nobres consideram… abrupto.
— Abrupto para aqueles que estavam confortáveis no privilégio de intermediar recursos sem oferecer contrapartida justa — rebateu Maomao, com suavidade calculada. — Nosso objetivo é reduzir desperdícios e evitar que o povo pague o preço da ineficiência de certos intermediários.
O ministro pigarreou, buscando manter a postura.
— Uma decisão tão direta pode ser interpretada como desrespeito aos acordos estabelecidos.
— Os acordos foram estabelecidos em um contexto que já não existe — respondeu Lahan, sua voz firme, mas carregada de ironia sutil. — O cenário mudou. Negar-se a adaptá-lo seria, no mínimo, um ato de incompetência.
Maomao se inclinou ligeiramente para frente, os olhos fixos no ministro.
— Ministro Wei, o senhor sabe tão bem quanto eu que rotas monopolizadas por famílias decadentes prejudicam não apenas os cofres do Estado, mas a própria imagem da corte. A pergunta real não é se podemos mudar, mas se o senhor tem coragem de sustentar publicamente que devemos continuar alimentando parasitas.
O silêncio que se seguiu foi tão denso que parecia pesar sobre os ombros de todos os presentes. O ar na sala estava carregado, como se até o incenso queimasse mais devagar. Wei, tentando salvar as aparências, serviu-se de chá, mas o leve tremor em sua mão direita denunciava a pressão do momento. O líquido bateu contra as paredes da xícara com um som quase inaudível, mas suficiente para que Lahan, observador atento, notasse.
Ele apoiou o queixo na mão, os dedos cobrindo parcialmente os lábios, e fixou os olhos em Maomao com a expressão de quem assiste a uma partida de go em que já enxerga, vários lances à frente, a derrota inevitável do adversário.
— Não viemos aqui para pedir permissão — declarou Maomao, levantando-se com calma ensaiada. Sua postura ereta e o tom controlado de voz davam à frase um peso que nenhuma ameaça explícita poderia superar. — Viemos para informar e, se houver resistência… — ela fez uma pausa longa, quase cruel, permitindo que o silêncio se infiltrasse em cada canto da sala — …haverá consequências políticas. O senhor sabe exatamente quais.
A frase não era uma flecha lançada às cegas, mas uma lâmina afiada encostada no ponto exato do inimigo.
O ministro permaneceu imóvel, seus olhos, por um breve instante, brilharam com algo que poderia ser raiva ou medo, mas ele conteve qualquer reação. Apenas inclinou a cabeça, em um gesto calculado que encerrava a reunião sem oferecer nem rendição explícita, nem desafio aberto.
Ao saírem pelo corredor de piso encerado, Lahan deixou escapar uma risada curta, abafada o suficiente para não ecoar e não chegar aos ouvidos do anfitrião.
A reunião havia terminado, e, apesar da expressão neutra, Lahan exibia no olhar a satisfação contida de quem sabia que haviam deixado o oficial do gabinete sem argumentos.
— Querida irmã… às vezes me pergunto se aprecia mais a arte da diplomacia ou a da humilhação.
— Ambas — respondeu Maomao sem virar o rosto. Seus passos eram rápidos, mas elegantes, como quem não quer conceder ao ambiente a satisfação de vê-la partir às pressas. — Uma não sobrevive sem a outra. E ele… era um idiota ambicioso, não volte a fazer negócios com um homem de mente tão pequena.
Lahan assentiu, ainda sorrindo, enquanto observava a forma como ela atravessava o pátio da casa Anqio.
— Você pegou leve demais com ele — comentou Lahan, baixando o tom, a voz grave quase um murmúrio. — Achei que fosse despedaçá-lo em menos tempo.
Maomao ergueu uma sobrancelha, ajustando a manga do hanfu.
— Não é prudente despedaçar todas as peças de um tabuleiro de uma vez. Algumas são mais úteis quando acreditam que ainda têm liberdade de movimento.
Lahan soltou um meio sorriso.
— A velha raposa Kan ficaria orgulhosa.
Maomao não respondeu.
Já cruzavam o átrio quando uma presença distinta se fez sentir antes mesmo que fosse vista. Uma aura de autoridade, familiar demais para que ela confundisse, ao lado da escadaria, conversando com dois assessores e vestido com um traje azul profundo de seda, estava ele.
Jinshi
O sol da tarde tocava-lhe os cabelos violetas com um brilho quase etéreo, ao notar Maomao, os olhos dele se estreitaram levemente, não de irritação, mas de interesse calculado.
— Lady Kan — disse Jinshi, com uma reverência breve, formal demais para os que conheciam a verdade. — Que coincidência.
Maomao inclinou-se apenas o suficiente para a etiqueta.
— Vossa Alteza que coincidência, de fato. — a palavra carregava a ironia que só ele perceberia.
Lahan, com a naturalidade de quem sabe o que deve — e o que não deve — presenciar, fez uma breve saudação e afastou-se, deixando-os a sós sob o pretexto de ir buscar a carruagem
Jinshi aproximou-se devagar, mantendo o tom de voz baixo, quase íntimo.
— Está mais… formal do que o normal. Seria impressão minha ou me trata assim para disfarçar o quanto sente minha falta? — ele a provocava com um sorriso no rosto encurtando a distância que havia entre eles.
Maomao notando a aproximação deu dois passos para trás mantendo-o longe e no lugar dele.
— Sente-se à vontade para acreditar no que lhe for conveniente. — replicou Maomao, os olhos fixos nos dele, porém sem qualquer traço de afeição. — Eu, por outro lado, estava apenas cumprindo deveres políticos.
Ele sorriu, não como quem reage a uma frase, mas como quem saboreia um segredo, o movimento lento dos lábios era quase insolente, como se cada sílaba que estava prestes a sair fosse parte de um jogo que ele já considerava ganho.
— Deveres políticos… — disse por fim, o tom arrastado. — Engraçado ouvir isso da minha futura esposa.
Maomao não desviou o olhar, mas a sutileza na curvatura de sua boca sugeria ironia.
— E eu imagino que seja igualmente engraçado para um príncipe cortejar alguém que não se deixa seduzir por títulos ou promessas — respondeu, a voz limpa, sem pressa. — Para mim, este noivado ainda não passa de um arranjo… útil.
Jinshi inclinou-se levemente, sem quebrar o limite da etiqueta, mas avançando o suficiente para que apenas ela sentisse a diferença na temperatura do ar entre eles.
— Um dia… — murmurou, e o peso na voz fez a frase pairar no espaço — …você vai parar de fingir que não se importa.
Ela manteve o olhar preso ao dele, como quem mede a distância exata antes de um golpe, não houve sorriso, nem piscada, apenas a frieza calculada de quem sabe que recuar é dar vantagem.
O silêncio se instalou, denso, carregado de algo que não era dito, do lado de fora, as vozes no pátio soavam distantes, quase irreais. Então Maomao avançou um passo, o suficiente para que sua presença tocasse a dele sem que chegassem a se encostar, e falou como quem fecha uma porta lentamente:
— Até lá… — fez uma pausa breve, para que ele sentisse o corte — …creio que o senhor terá muitas oportunidades para exercitar a paciência.
Virou-se, deixando o perfume leve de seu hanfu no ar, e seguiu na direção de Lahan.
Jinshi permaneceu imóvel, observando-a se afastar, o sorriso não era de quem foi derrotado, mas de quem aprecia a resistência da presa antes do desfecho inevitável. O brilho em seus olhos não era paixão simples — era a convicção silenciosa de um caçador que entende que a espera, por vezes, é a parte mais prazerosa da caça.
A luz da tarde refletia-se no tecido azul-acinzentado do hanfu, e Maomao, sem interromper o passo, ajeitou a saia e subiu na carruagem com a precisão de quem evita, quase por instinto, o mínimo respingo de poeira.
Dentro do veículo, a tensão política parecia evaporar. Maomao enrolava lentamente as mangas largas, como quem se perde em um pensamento distante. Para Lahan, essa mudança súbita era fascinante: há poucos minutos, sua irmã havia sido o aço que entortava um ministro — alguém que, em certos círculos, possuía mais influência do que ela — ou como ela tinha destruído com classe qualquer flerte do Príncipe da lua com ela e agora se deixava cair no assento, distraída, como uma criança que retorna de uma brincadeira intensa.
Ele sempre achava essa transformação um espetáculo raro, a maneira como Maomao transitava entre o calculismo frio da corte e a intimidade quase despreocupada de quem não tem testemunhas.
A carruagem se afastava do local lentamente quando Lahan soltou uma risada baixa, quase audível apenas para Maomao.
— Bem, irmã, acho que o príncipe está gostando desse jogo mais do que deveria. — Ele cruzou os braços, os olhos brilhando de diversão. — Aquele sorriso no final… parecia mais um convite do que uma ameaça.
Maomao ajeitou as mangas do hanfu, seu olhar fixo na janela por onde o jardim passava como um borrão de cores outonais.
— Jinshi gosta de desafios — disse, com um leve tom de ironia. — E eu gosto de lembrar que ele ainda está longe de entender com quem está lidando.
Lahan arqueou uma sobrancelha, divertido.
— Ah, sim, a eterna criança escondida atrás do rosto sério da grande Maomao, mas não me diga que vai deixar que ele a veja assim tão facilmente.
— De jeito nenhum — respondeu ela, com um sorriso quase imperceptível. — Ele acha que me conhece, que pode decifrar meus gestos e prever minhas palavras, mas no jogo que jogamos, Lahan, conhecimento é poder, e eu tenho muitas peças que ele ainda não viu.
— Parece que o príncipe vai precisar de muita paciência mesmo ou de um bom manual de instruções para lidar com você. — Lahan riu, satisfeito. — Já posso imaginar as futuras reuniões. Você, impecável, fria e ele, tentando não perder a compostura.
Maomao se virou para encará-lo, a expressão séria, mas os olhos brilhando com a faísca da provocação.
— Exatamente e no fim, quem cansar primeiro, perde. E acredite, Lahan, essa pessoa não sou eu.
Lahan sorriu malicioso, ajeitando-se no banco da carruagem como quem se prepara para um duelo verbal.
— Sabe, irmã, acho que se ele soubesse o quanto você gosta desse tipo de batalha, até apostaria suas fichas. Aposto que Jinshi nem imagina que a verdadeira guerra acontece longe dos olhares da corte.
Maomao riu, curta e seca, quase como um desafio lançado.
— Se ele pensa que a corte é o campo de batalha, está redondamente enganado, a verdadeira guerra é jogada em silêncio, em sutilezas, nas entrelinhas do que não se diz e eu sou mestre nisso.
Lahan inclinou-se para frente, o olhar brilhando com aquela mistura de admiração e provocação que só irmãos compartilham.
— Mestre? Não sabia que a minha irmã tinha um título tão pomposo, deve ter sido um prêmio por não se apaixonar por ele no meio da conversa.
Maomao estreitou os olhos, fingindo uma ameaça, mas o sorriso nos lábios denunciava que estava gostando do jogo.
— Ah, Lahan, não subestime o poder de uma mulher que sabe guardar seus sentimentos como um segredo de estado. Jinshi vai descobrir que nem tudo o que parece frio é vazio.
— E ele vai precisar de toda a paciência do mundo para desvendar esse enigma. — Lahan gargalhou. — Quer saber? Aposto que no fundo, ele gosta de ser desafiado. Afinal, quem resiste a você e seus encantos?
Ela olhou para ele, os olhos brilhando com cumplicidade.
— Pois então, irmão, que a partida continue. Só espero que você esteja pronto para jogar do meu lado, e não contra mim.
Lahan bateu no ombro dela, satisfeito.
— Sempre do seu lado, irmã, mas não se esqueça: até as melhores jogadoras podem ser surpreendidas.
Maomao sorriu, um sorriso que era promessa e aviso ao mesmo tempo.
— Então que venham as surpresas. Estou pronta.
[. . .]
Casa Verdete: A Dança da Serpente Verde
A Casa Verdete estava mergulhada numa penumbra cálida e perfumada, onde lanternas de papel pendiam do teto baixo, espalhando um brilho suave sobre as paredes entalhadas e os tecidos vermelhos que decoravam cada canto. O ar carregava murmúrios, risos contidos e o sutil tilintar de taças de vinho, enquanto o som delicado do guzheng preenchia o salão com uma melodia hipnótica.
No centro do salão, uma fileira de cortesãs dançava em perfeita sincronia, seus movimentos fluídos acompanhando a música como ondas no mar. Entre elas, Maomao destacava-se com uma presença que impunha respeito e atração ao mesmo tempo.
Ela vestia um hanfu modificado para realçar sua figura — um tecido de seda esmeralda que capturava a luz com reflexos quase líquidos. O decote profundo delineava seu busto generoso, ornamentado por bordados dourados que serpenteavam pelo tecido como vinhas delicadas. A cintura, marcada por um cinto fino de jade, acentuava suas curvas elegantes, e a saia esvoaçante acompanhava cada passo, criando um efeito hipnotizante.
Seus cabelos verdes, presos em um coque frouxo, tinham mechas soltas que caíam com graça pelos ombros, enquanto seus olhos azuis intensos brilhavam sob as lanternas, lançando olhares que desafiavam quem ousasse encontrá-los.
Ao seu lado, as outras cortesãs — vestidas em tons de vermelhos, rosas e dourados — completavam o espetáculo, mas era impossível não perceber que Maomao dominava o centro das atenções, não apenas pela beleza singular, mas pela aura de mistério e controle que emanava.
Jinshi, oculto entre os convidados do salão, mantinha o olhar fixo nela, absorvendo cada movimento, cada gesto. Ele sabia que poucos ali conheciam a verdadeira identidade daquela cortesã — poucos sabiam que ela era a princesa do clã Kan, infiltrada naquela atmosfera de sedução e mistério.
Enquanto a música fluía, Lahan aproveitou para brincar com o público, fingindo organizar um “leilão” improvisado:
— Senhoras e senhores — anunciou com um sorriso malicioso — apresento-lhes as estrelas da noite! E uma verdadeira Princesa perdida do palácio, certamente nenhum homem sensato a deixaria escapar!
Risadas e sussurros encheram o salão. Maomao, apesar do jogo, manteve sua expressão fria e distante, seu olhar lançando um desafio silencioso ao irmão. Jinshi soltou uma risada baixa, compartilhando a tensão daquele jogo de aparências.
A dança seguia seu curso, uma coreografia meticulosa de charme, controle e poder, habilmente disfarçados sob os véus translúcidos de seda e o brilho sutil das joias de jade. Cada passo, cada gesto, parecia ensaiado para ocultar tanto quanto para revelar, um jogo silencioso de intenções ocultas e alianças veladas. No meio daquele tabuleiro de segredos e olhares atentos, Maomao reinava soberana, plenamente consciente do peso que cada movimento seu carregava.
Dançar na Casa Verdete, para ela, não era mera diversão, era uma espécie de ritual, quase um bálsamo para a mente exausta de quem vive entre intrigas e compromissos políticos. Maomao jamais se entregava completamente às festas e às danças, essa era uma verdade que deixava clara a todos que a conheciam. Ainda assim, uma vez ao ano, ela quebrava essa regra silenciosa, concedendo-se a um momento de exibição e leveza.
Aquela noite em particular era especial: sua última dança na Casa Verdete, uma despedida marcada não só pela melodia e pelos olhares fascinados, mas pelo significado profundo daquela noite. Afinal, a futura imperatriz não podia mais se permitir dançar nos bordéis, onde a classe e a elegância que moldaram sua imagem teriam de se afirmar de formas diferentes e mais sutis.
Se não ali, então onde?
Enquanto rodopiava suavemente, os tecidos de seu hanfu flutuando como névoa ao redor, Maomao sentia o peso do futuro repousar sobre seus ombros, misturado ao sabor fugaz da liberdade que aquela última dança ainda lhe permitia.
Enquanto as cortinas de seda penduradas nas janelas dançavam suavemente ao sabor da brisa, espalhando um aroma delicado de flores de jasmim pelo salão, as outras cortesãs moviam-se em uma coreografia perfeita, como se fossem partes de uma mesma obra viva. Seus passos sincronizados ecoavam levemente no chão de madeira polida, refletindo a luz amarelada dos candelabros de jade que pendiam do teto.
No centro daquela dança silenciosa de poder e sedução, Maomao sentia o peso dos olhares se fixando em si com uma intensidade quase tangível. Mas, entre todos, o olhar de Jinshi destacava-se — ele não disfarçava seu interesse. Por trás da máscara de nobreza contida, seus olhos brilhavam com uma mistura complexa de admiração e desejo, um predador cauteloso que observava cada movimento dela.
Quando a música amenizou, criando um momento de pausa, os olhos azuis profundos de Maomao se encontraram com os dele. O sorriso que brotou nos lábios de Jinshi foi sutil, quase imperceptível, mas carregava uma provocação silenciosa, como se ele conhecesse segredos que ela ainda guardava. Ele deslizou pelo salão com a graça felina de quem sabe exatamente onde e quando se posicionar, aproximando-se até que apenas ela pudesse ouvir seu sussurro:
— Não sabia que além de princesa, também trabalhava como cortesã — riu tocando nos fios de cabelo de Maomao — Será que eu tenho prioridade na lista para ficar a sós com a senhorita? — sua voz era baixa, suave, mas cada palavra parecia feita para provocar, para desestabilizar e, ao mesmo tempo, para convidar a um jogo secreto.
Maomao virou o rosto levemente, sem desviar o olhar, erguendo a mão lentamente disparando um tapa contra a cara do príncipe, mantendo a firmeza na voz
— Muitos aqui não conhecem meu verdadeiro rosto. Isso torna tudo… mais fácil, embora sinto em dizer que ninguém aqui e muito menos a vossa graça, estarão na minha lista de prioridades, afinal todos aqui não são capaz de me saciar.
Um leve sorriso, tão tênue que poderia passar despercebido, tocou os cantos dos lábios dela, mas seus olhos permaneciam gelados, impenetráveis.
Jinshi tocou o rosto ainda incrédulo com a força do tapa da Maomao, ele nunca tinha imaginado que veria esse lado dela, mas aquilo só o tinha feito ficar ainda mais atraído por ela.
Ele inclinou a cabeça, os olhos brilhando com intensidade quase hipnótica, e comentou, com um sorriso de canto que misturava fascínio e desafio:
— Fácil para você, talvez, para mim, é impossível não reconhecê-la.
Maomao retomou o movimento, deslizando entre as outras cortesãs com a graça calculada de quem domina a cena. O tecido da saia esvoaçava ao seu redor como uma nuvem etérea, fazendo com que cada passo parecesse um sussurro. Quando voltou a encará-lo, cruzou os braços com um desdém medido, sabendo o efeito daquela atitude.
— Não confunda minha paciência com afeição. — falou com seriedade, o encarando dos pés a cabeça — Este noivado é um contrato, nada além disso.
Jinshi deu um passo à frente, diminuindo ainda mais a distância, a voz tão baixa que parecia uma promessa apenas para ela:
— Um contrato que espero que um dia você veja com outros olhos… Não apenas como um benefício político, mas como algo… pessoal.
O silêncio caiu entre eles, denso como o incenso que queimava no salão, entrelaçado ao som abafado de risos e sussurros vindos das sombras. Maomao manteve-se imóvel por um instante, deixando o peso daquela frase ecoar no ar antes de devolver um meio sorriso cínico:
— A política me ensinou a nunca misturar sentimentos com estratégias, é melhor assim.
Jinshi apertou os olhos, um gesto de admiração pela fortaleza dela, mas também de determinação, pois sabia que aquela batalha estava longe de terminar:
— Você tem medo do que possa sentir, não é?
Ela virou-se, os olhos se perdendo na multidão que a observava, o rosto uma máscara de calma absoluta.
— Medo não faz parte do meu vocabulário.
Jinshi sorriu, uma mistura enigmática de desafio e fascínio, enquanto a música mudava o ritmo, e Maomao era puxada de volta ao centro da dança pelas outras cortesãs.
A lanternas penduradas no teto lançavam uma luz quente e tremulante, brincando com os tecidos de seda e os brilhos das joias que adornavam a nobreza e as cortesãs presentes. O ar estava impregnado do aroma do incenso e da leveza das risadas, um cenário perfeito para jogos de poder disfarçados em festas.
Maomao, envolta em seu hanfu esmeralda que realçava a profundidade de seus olhos, conversava com um pequeno grupo de nobres. Eles admiravam sua graça e inteligência, encantados pela cortesã misteriosa que para eles era apenas mais uma joia daquela noite — sem saber que diante deles estava a verdadeira princesa Kan. Entre os homens, um jovem oficial charmoso e entusiasmado inclinava-se com interesse para ouvir melhor suas palavras. Ele falava com leveza sobre os próximos eventos do festival da lua, tentando prender a atenção da cortesã que para ele era um enigma fascinante.
Jinshi, observando a cena de longe, sentiu o peito apertar, o sorriso confiante do oficial, a facilidade com que falava com Maomao, o leve sorriso que ela lhe dirigia, tudo aquilo soava para ele como um convite silencioso para se aproximar demais. O ar ao seu redor pareceu se fechar, carregado de uma possessividade quase palpável.
Com um movimento calculado, Jinshi cruzou a distância até eles, interrompendo a conversa com uma voz firme, porém calma, que carregava a autoridade de sua posição e a intensidade de seus sentimentos:
— Uma honra ver que a Lady desperta tanto interesse.
Os rostos se voltaram para ele, entre surpresa e respeito, Maomao ergueu o queixo, lançando-lhe um olhar frio, mas mantinha a compostura impecável:
— Vossa Alteza, sempre presente nos momentos mais... interessantes.
Ele fixou os olhos nela, e um leve sorriso de posse desenhou-se em seus lábios:
— Talvez porque me preocupe com o que é meu — murmurou, tão baixo que apenas ela ouviu.
O jovem oficial, captando a tensão no ar, recuou com elegância, deixando o espaço entre eles. Jinshi, então, aproximou-se ainda mais, a voz agora como uma brisa quente que acariciava a pele dela:
— Saiba que, embora nosso noivado seja mantido em segredo até o festival da lua, minha atenção e cuidado são reais. Não aceitarei distrações que não me agradem.
Maomao desviou o olhar por um instante, respirou fundo, e esboçou um sorriso que mesclava frieza e desafio, uma mistura que Jinshi conhecia muito bem:
— Minha liberdade é o que mantém minha força, Jinshi, mas não se engane: nem tudo que faço é para lhe agradar.
Ele deslizou a mão suavemente pelo braço dela, com voz baixa e carregada de promessa:
— E eu nunca esperei isso.
Por um momento, o tempo pareceu congelar entre eles, enquanto o mundo ao redor continuava a girar com risos, música e luzes dançantes.
Mais tarde, afastada do burburinho do grupo, Maomao sentiu uma presença familiar e inconfundível se aproximar por trás dela. Jinshi surgiu ao seu lado com a calma de quem sabe exatamente o efeito que causaria. Seus lábios se curvaram em um sorriso lento, carregado de desafio e promessa, enquanto sua voz descia em um tom baixo, quase um sussurro que cortava o ar:
— Está tentando escapar de mim?
Ela não se virou imediatamente, sentiu o olhar intenso dele pousar sobre suas costas, como se a possuísse apenas com a força daquele olhar. Então, com uma lentidão calculada, voltou-se, encontrando os olhos azuis dele com os seus, tão frios quanto profundos, sua voz saiu firme, envolta em uma provocação sutil que só ele poderia decifrar:
— Nunca escapo, apenas escolho o momento certo para aparecer. — falou o encarando com desdém.
Ele avançou um passo, diminuindo ainda mais a distância entre os dois, otom de sua voz mudou, carregado agora de um desejo latente e uma possessividade que se fazia presente em cada palavra:
— E eu escolho lembrar que você é minha noiva, mesmo que insista em negar isso.
Maomao cruzou os braços, firme e inabalável, o olhar cortante como aço polido, desafiando-o silenciosamente:
— Nosso casamento é um jogo, Ka Zuigetsu. Para mim, é apenas uma aliança política e eu só sou sua esposa, depois da cerimônia, antes disso não devo nada a vossa graça.
Com a delicadeza de quem está prestes a desencadear uma tempestade, ele tocou suavemente o queixo dela, traçando a linha da mandíbula com os dedos, enquanto um sorriso cheio de promessas perigosas se formava em seus lábios:
— Então vamos jogar para ver quem vence.
A música no salão mudou, uma melodia sedutora que convidava ao movimento, e eles foram puxados juntos para a pista de dança. Cada passo, cada gesto, falava mais do que palavras poderiam expressar — era uma conversa muda feita de olhares intensos, toques sutis e respirações compartilhadas. A eletricidade entre eles parecia quase tangível, carregando a tensão e o desejo que os consumia.
Jinshi inclinou-se para sussurrar ao ouvido dela, a voz rouca e irresistível:
— Você tenta se afastar, mas nunca consegue fugir de mim.
Maomao respondeu com um sorriso audacioso, a provocação brilhando nos olhos:
— Talvez eu goste do jogo... só não quero perder.
Por um momento, o mundo ao redor pareceu desvanecer. Longe dos olhos atentos dos outros convidados, Jinshi segurou o braço dela com firmeza, a voz cortante e carregada de intensidade:
— Quem era aquele homem com quem você falava? — Jinshi perguntou, a voz carregada de uma possessividade quase cruel.
Ela não desviou o olhar, a frieza no tom que só aumentava a tensão entre eles.
— Um convidado interessado, nada mais.
— Interessado? — repetiu ele, os olhos faiscando, a ameaça disfarçada em um sorriso sombrio.
— Vossa alteza, se quer me prender, terá que tentar outros meios. — disse, afastando as mãos dele suavemente.
Sem aviso, Jinshi agarrou o braço de Maomao e a puxou com força para um corredor vazio e pouco iluminado da Casa Verdete.
Antes que ela pudesse reagir, sentiu-se prensada contra a parede fria, o corpo de Jinshi bloqueando qualquer possibilidade de fuga. Ele inclinou-se para ela, a respiração quente tocando seu rosto, os olhos escuros brilhando de desejo e domínio.
— Te prendendo assim, princesa? — murmurou, uma mão firme envolvendo seu pescoço, começando a apertar de leve, quase em provocação, quase em teste.
Maomao percebeu a certa posição vulnerável em que se encontrava e particularmente era vergonhoso um príncipe lhe enforcar enquanto te prensa contra a parede.
"Que bela hora que Lahan me convenceu a dançar hoje.", pensou o encarando sem desviar o olhar.
Em vez de recuar, um sorriso lento e desafiador curvou seus lábios, sem hesitar, ela enrolou as pernas ao redor da cintura dele, puxando-o para perto. Surpreso, Jinshi a pegou no colo, o peso dela leve, mas o gesto carregado de intimidade e tensão.
Ela apoiou as mãos nos ombros dele, inclinando o rosto para frente num movimento ágil, seus lábios se encontraram num beijo intenso, cheio de fogo e contradições, o beijo começou suave, quase um convite, mas logo se transformou numa batalha apaixonada. Maomao conduzia o ritmo, mordendo o lábio inferior de Jinshi com delicadeza cruel, dominando o espaço, roubando o fôlego dele.
Jinshi correspondeu com pressa, a língua deslizando para dentro da boca dela, explorando, exigindo, mas ao mesmo tempo rendido àquela força que Maomao emanava. As mãos dele seguravam firme suas costas, puxando-a ainda mais junto, enquanto ela apertava as pernas com firmeza, como se dizendo: aqui, quem manda sou eu.
O beijo prolongou-se, cheio de tensão elétrica, até que Maomao se afastou lentamente, os olhos azuis brilhando com a vitória silenciosa.
Ela pousou os pés no chão, endireitou o hanfu com um sorriso meio desdenhoso, encarando-o com uma expressão quase divertida.
— Vossa Alteza, sinto informar que, mesmo tendo revertido o jogo, continua sendo eu quem domina aqui.
Jinshi permaneceu ali, imóvel, os olhos fixos na figura esguia de Maomao que se afastava com passos seguros e decididos, desaparecendo lentamente na multidão que preenchia o salão da Casa Verdete. Seu coração acelerava, um misto de fascínio e desafio pulsando em cada batida.
Ele sabia que aquela batalha silenciosa entre eles estava longe de um fim. A determinação dela, a frieza mesclada à audácia, despertava nele algo inesperado, um respeito profundo que beirava a admiração, mas também um desejo feroz de ser o único a possuir aquela chama.
O murmúrio da música, os risos ao longe, tudo parecia distante diante daquela presença que ainda ocupava sua mente. Com um suspiro quase inaudível, Jinshi virou-se lentamente, ciente de que o jogo estava apenas começando.
Naquele instante, o príncipe entendeu que, por mais que tentasse controlar o destino, Maomao não seria uma peça fácil de se dominar. Ela era, acima de tudo, uma força própria — indomável, imprevisível, e irresistivelmente perigosa.
E ele estava pronto para jogar e ser ele o dominado desse jogo.
Chapter 6: Entre o Adeus e uma nova Morada
Notes:
Confesso que preparei esse capítulo ouvindo "Prince Ali", do Live Action de Alladin e particularmente, achei que foi a combinação perfeita.
Aos que tiverem interesse tem uma playlist no Spotify baseada na fanfic
"Alianças de Poder" - LuisaluBoa leitura e espero que gostem, tanto quanto eu.
Chapter Text
2 dias depois...
O palácio imperial se despertava numa agitação incomum, os corredores de mármore ressoavam com passos apressados e murmúrios tensos. Lanternas de seda vermelha e dourada pendiam em arcos sobre as alamedas internas, banhando os jardins em uma luz quente que contrastava com a frieza das intrigas políticas que ali se desenrolavam.
Servos e criados corriam para ajustar os adornos, dispor as flores de lótus e garantir que cada detalhe estivesse à altura da importância do evento. Os preparativos não eram apenas para uma celebração, mas para uma declaração de poder e alianças.
No centro da movimentação, a família Kan se preparava em aposentos reservados, vestidos com as sedas mais finas, Jinshi, com o semblante firme, revisava os discursos e alianças, ciente do peso daquele momento. Ao seu lado, seus irmãos — Jin-Ye, Lingli, Jiang e Yao Jun — ensaiavam expressões sérias, conscientes de que suas próprias vidas também estavam entrelaçadas naquela rede de expectativas.
Jinshi mesmo ocupado com os afazeres e ajudando na organização do Festival da Lua no palácio, ele ainda não se esquecia do beijo que Maomao lhe dera naquela noite, como ele pôde senti-la por um breve momento em seus braços e o seu gosto no lábios, aquilo não era uma mulher, era o pedaço de mal caminho na terra.
E a ideia de que aquela mulher ousada e selvagem seria sua, lhe animava imensamente, ele não se importava que mandassem nele, não se essa pessoa fosse Lady Kan, ela poderia fazer o que fosse e ele ainda sim seria rendido a ela ao fim do dia.
A tensão era palpável, mas também havia um fio de esperança, um fio tênue que Maomao sentia crescer dentro de si enquanto observava a movimentação do palácio, era estranho observar tantas pessoas no mesmo ambiente e tantos nobres reunidos em um único lugar.
Os nobres começavam a chegar, trajando seus melhores trajes, sussurrando entre si sobre o que aquele Festival da Lua revelaria.
Para Maomao, cada passo ecoava não só no chão frio do palácio, mas no caminho que ela agora precisava trilhar — um caminho marcado por alianças, segredos e a coragem de ser quem era, mesmo quando o destino parecia querer prendê-la em correntes invisíveis.
[. . .]
No canto reservado do palácio, onde a família Kan se preparava para o grande Festival da Lua, o ambiente tinha uma energia contagiante e caótica, apesar da solenidade do evento. Entre os adultos, trajes finos e expressões sérias, as crianças corriam livres pelo amplo pátio, suas risadas claras quebrando momentaneamente o peso da política e das alianças.
Zhìyuǎn, Fen Fang e Yaling estavam especialmente travessas naquela tarde, tramando algo que claramente não seria nada inocente. Com olhos brilhantes e sorrisos maliciosos, se aproximaram sorrateiramente de Jinshi, que observava a movimentação da família com semblante sério, o pergaminho do convite ainda apertado em uma das mãos.
— Jinshi — chamou Zhìyuǎn, com um tom de voz que misturava doçura e firmeza — se você fizer Maomao infeliz no casamento, nós três vamos te envenenar!
Fen Fang e Yaling assentiram vigorosamente, cruzando os braços e lançando olhares desafiadores ao jovem herdeiro.
Jinshi piscou surpreso, um sorriso involuntário escapando dos lábios diante da ousadia das crianças.
— Vocês são pequenas serpentes, hein? — brincou, olhando para as meninas com uma expressão meio divertido, meio preocupado. — Mas espero que saibam que casamento não é brincadeira, porque comigo ela será muito feliz garanto.
Enquanto as crianças saíam correndo, se escondendo atrás das colunas e jardins, Jinshi torcia em pensamento para que seu irmão mais novo, Liang, que também estava entre os pequenos, não fosse corrompido por aquelas ideias audaciosas.
"Que meu irmãozinho não se perca nas travessuras dos pequenos Kan," pensou Jinshi, com um misto de divertimento e apreensão, consciente de que mesmo entre as futuras gerações, a luta pelo poder e proteção da família já se manifestava em suas formas mais inesperadas.
A noite deslizava lentamente pela Casa reservada dos Kan, suas paredes se tingindo de sombras longas e cálidas, enquanto a expectativa pelo Festival da Lua pairava no ar como uma névoa silenciosa. Maomao, inquieta, caminhava de um lado para o outro no quarto amplo, os passos ecoando num ritmo que parecia desafiar a serenidade ao redor.
Servas tentavam, com gestos delicados e sorrisos pacientes, fazer com que ela permanecesse sentada, imóvel, mas a ansiedade parecia incansável — uma força que a impelia a se mover, a não se deixar prender.
Do outro lado da casa, os sons graves de pedras sendo movidas no tabuleiro de Go chegavam até ela, acompanhados pela calma e concentração de seu pai e de Lahan. O jogo — mais que um passatempo — era uma guerra silenciosa de estratégias, um reflexo daquilo que Maomao sabia esperar do mundo que a cercava.
Enquanto isso, na sala adjacente, FengXian puxava com um sorriso a orelha de Zhìyuǎn, repreendendo a criança por ter sujado seu hanfu verde-claro pouco antes do início das celebrações. O riso genuíno de Maomao, leve e verdadeiro, escapou como um lampejo de luz na tensão da noite.
Ela voltou o olhar para si mesma, observando o hanfu que vestia — tecido fino, delicado, com bordados dourados que reluziam à luz das lanternas, desenhando flores de lótus que pareciam flutuar em seu corpo. O penteado elaborado deixava à mostra seus cabelos verdes, presos com grampos de prata e pequenas pérolas, realçando o contraste com seus olhos azuis intensos. A maquiagem sutil marcava seus traços com elegância, mas ao se ver no espelho, Maomao não podia deixar de notar o reflexo familiar: o rosto delicado e imponente que tanto lembrava sua mãe.
Fen Fang girava no meio do quarto, o hanfu verde-limão esvoaçando com graça, uma réplica da irmã em miniatura, viva e alegre. Era impossível não ver ali o próprio reflexo da infância, os momentos perdidos que agora pesavam no coração de Maomao, trazendo consigo uma saudade que se misturava a uma responsabilidade crescente.
FengXian se aproximou, os olhos carregados de orgulho e ternura.
— Você está radiante, minha querida — disse, baixando-se para beijar a bochecha da filha. — Você cresceu tanto, Maomao.
O silêncio se fez entre elas por um instante, o olhar de Maomao pousando novamente no reflexo do espelho, desta vez contemplando não só a imagem, mas o peso do legado que carregava. Seus cabelos verdes, o nariz fino, os olhos profundos, o corpo curvilíneo e o gênio indomável — tudo herdado de FengXian.
Por mais que tentasse esconder, aquele amor pela mãe era palpável, e momentos assim, tão simples, se tornavam preciosos, como gemas raras em sua memória.
— Obrigada, mãe — respondeu, a voz baixa, quase um sussurro, ainda brincando com o decote do hanfu, como se aquele gesto pudesse afastar o nervosismo que a dominava. — Acho que é só o nervosismo... afinal, é uma noite importante.
FengXian sorriu, erguendo o queixo da filha com delicadeza para ajustar o colar de jade no pescoço e ajeitar o decote com cuidado, como quem protege um tesouro.
— Sei que não é o grande dia ainda, mas é um passo — disse Lakan, entrando silencioso com uma caixa de madeira finamente trabalhada nas mãos. Seus olhos brilhavam com lágrimas contidas, e a voz lhe falhava ao falar. — Você cresceu demais, minha princesa e mesmo que nunca deixe de ser nossa menininha, hoje você é uma mulher que caminha para seu destino.
Maomao sentiu o nó na garganta apertar e se deixou envolver pelo abraço do pai, seu rosto escondido contra o peito dele enquanto fingia fazer biquinho para esconder as lágrimas que ameaçavam escapar.
— Papai, não chore... — pediu, a voz trêmula. — Se você chorar, eu também vou chorar, por favor.
As únicas pessoas capazes de tocar seu coração com essa sinceridade eram Lakan e seus irmãos, principalmente Yaling e Fen Fang. Desde o dia em que ele trouxera aquela enciclopédia antiga de ervas, com a ajuda do tio Luomen, Maomao se descobrira vulnerável diante dos pequenos gestos do pai, e qualquer demonstração de afeto a fazia se esconder para não ser vista chorando.
Lakan abriu a caixa com mãos trêmulas, revelando uma coroa delicada, banhada em ouro e esculpida como três rosas entrelaçadas, salpicadas de pequenas esmeraldas que brilhavam suavemente, como gotas de orvalho.
— Essa coroa é mais do que um ornamento. — explicou ele, a voz carregada de emoção. — É uma herança dos Kan. Seja qual for o futuro, ela te lembra que você sempre será nossa princesa. Independentemente do que digam ou façam, o sangue do clã corre em suas veias.
FengXian pegou a coroa, colocando-a com cuidado sobre a cabeça de Maomao, que sentiu o peso daquele símbolo, uma mistura de honra e responsabilidade que a fez quase cambalear.
— Nós te amamos — disse FengXian, a voz firme e carinhosa.
Maomao abraçou os pais com força, o calor daqueles braços um refúgio que ela queria poder guardar para sempre. Por um instante, desejou voltar no tempo e ser aquela criança que nunca precisou carregar o mundo sozinha.
Fen Fang entrou correndo, os olhos brilhando ao ver a irmã coroada, olhando para Maomao como se fosse uma deusa.
— Você está mais linda que as flores da primavera! — exclamou, sorrindo com a pureza infantil que só uma irmã mais nova pode ter.
Maomao sorriu, puxando a pequena para um abraço apertado, beijando sua testa com ternura.
— E você está radiante nesse vestido, ouso dizer.
Fen Fang segurava uma caixinha familiar, que entregou a Maomao com uma expressão séria, quase solenemente.
— Você precisa usar isso hoje. É importante para você e para o príncipe — disse, os olhos brilhando.
Maomao abriu a caixinha e viu a pulseira delicada que Jinshi lhe dera em um momento que ainda parecia distante demais para tocar seu coração. Mesmo com a mente carregada de pensamentos e planos, sabia que não poderia deixar de usá-la — um elo silencioso entre ela e aquele casamento ainda oculto.
— Obrigada por me lembrar, Fen — sorriu, deslizando a pulseira pelo pulso com cuidado. — É mesmo muito importante.
Ela deixou o quarto com o coração apertado, sabendo que aquele seria apenas o início de uma longa jornada onde honra, política e desejos entrelaçados dariam forma ao seu destino.
Do lado de fora, o ar estava impregnado daquele misto de ansiedade e reverência que só os grandes acontecimentos carregam. Os irmãos pequenos de Maomao se aglomeravam perto dela, olhos brilhando de curiosidade e um pouco de apreensão, Zhìyuǎn, o mais sério e atento dos três, puxou delicadamente a manga do hanfu verde-escuro que envolvia a irmã, o toque quase tímido denunciando sua dúvida.
— Por que você tem que entrar naquele... naquele palanquim, Maomao? — sua voz saiu baixa, como se temesse perturbar o peso daquele momento.
Fen Fang, segurando firme a mão da pequena Yaling, completou com a voz cheia de inocência:
— Por que não pode simplesmente andar com a gente?
Maomao se abaixou um pouco para ficar ao nível dos irmãos, um sorriso terno curvando seus lábios. O calor daquele momento, misturado à responsabilidade que já sentia pulsar dentro dela, a fez falar com um tom doce, mas firme.
— Porque eu sou a noiva do príncipe Jinshi — explicou, os olhos brilhando com uma mistura de seriedade e esperança. — Na corte, a noiva deve ser apresentada com toda a pompa e cerimônia que essa honra exige, entrar pelo palanquim é o jeito tradicional de mostrar que estou pronta para assumir meu lugar ao lado dele.
Lahan, que acompanhava o grupo com seu passo calmo e seguro, aproximou-se e falou com voz firme e ao mesmo tempo gentil:
— É uma honra, crianças e também a melhor forma de garantir a segurança da noiva até o palácio, onde todos os olhares estarão atentos. Lá dentro, nada será deixado ao acaso.
Os irmãos assentiram, ainda intrigados, mas confiantes nas palavras de Lahan.
— Mas eu perguntei pra ela, não para você. — Zhìyuan pontuou mostrando a língua para Lahan.
— Peste, só não te faço comer terra porque temos um compromisso. — Lahan comentou suavizando a ameaça mostrando a língua de volta para o caçula, o que fez Maomao rir antes de entrar no palanquim.
Enquanto a família seguia à frente, o palanquim surgiu atrás, uma joia de madeira entalhada, pintada em vermelho e dourado, com panos pesados que balançavam suavemente ao ritmo dos passos compassados das servas que o carregavam. O som dos tambores distantes, o murmúrio das vozes e o eco cadenciado do palanquim nos corredores de pedra se uniam, como se a própria casa anunciasse a chegada da princesa.
Ao chegarem ao Palácio Imperial, a imponência do lugar parecia absorver todo o ruído, deixando apenas um silêncio carregado de respeito e expectativa. O salão principal estava meticulosamente alinhado: lanternas de papel pendiam do teto, lançando uma luz cálida e tremeluzente. Símbolos da lua, delicadamente recortados, adornavam as paredes, enquanto flores brancas — guardiãs da pureza — perfumavam o ar.
Diante do trono imperial, o Imperador permanecia imóvel, seus olhos graves e penetrantes encarando cada detalhe. Ao seu lado, a Imperatriz Ah-Duo exalava uma elegância silenciosa, uma presença que dominava o ambiente com calma e autoridade. As duas concubinas de alto nível, Gyokuyou e Lihua, observavam atentamente, com semblantes onde se mesclavam admiração e calculada vigilância.
À esquerda, os príncipes e princesas estavam postados em perfeita ordem, rostos compostos, olhos afiando a cena com o entendimento profundo dos jogos de poder e diplomacia que habitavam o palácio.
Quando todos os olhares convergiram para o centro do salão, Jinshi deu um passo à frente, sua voz calma e firme reverberando pelo espaço sagrado.
— Hoje, celebramos mais que o Festival da Lua — anunciou, pausando com a dramaticidade de um orador experiente. — Celebramos a aliança entre o Clã Kan e a Casa Imperial, uma união que trará estabilidade e força para nosso império.
Jinshi fez uma breve pausa, o silêncio se estendendo como um véu, então o mensageiro imperial anunciou para a corte:
— A presença do Clã Kan aqui é o testemunho dessa nova era e é com grande honra que anuncio a entrada da noiva do Príncipe Jinshi.
Nesse instante, as portas do palanquim se abriram lentamente, e Maomao emergiu para o olhar de todos, envolta num silêncio quase reverente.
Seu hanfu era de um verde profundo, carregado da densidade das florestas antigas no ápice do verão, bordado com arabescos dourados que serpentearam pelas mangas e barra, cada fio entrelaçado com uma precisão quase mágica, contando histórias ancestrais em cada curva e laçada. Por cima, um manto translúcido, de um verde mais claro, dançava suavemente a cada passo, capturando e refletindo a luz quente das lanternas penduradas, como se ela mesma fosse parte da magia da noite.
Seus cabelos, presos em um coque meticuloso, estavam adornados por pentes finos cravejados de pequenas esmeraldas que capturavam discretamente o brilho ao redor. Sobre a cabeça, repousava a coroa da Casa Kan, uma obra-prima de ouro e pedras preciosas, onde rosas douradas se entrelaçavam com pontas de esmeralda, como se um jardim eterno florescesse ali.
Os olhos de Maomao vasculharam a corte, firmes e calmos, carregando a determinação e a responsabilidade que aquele momento exigia. Por dentro, seu coração disparava, consciente de que aquela apresentação selava um destino repleto de desafios e esperanças.
Um murmúrio baixo, carregado de admiração e surpresa, percorreu o salão, e por um instante breve, mas intenso todos viram nela não apenas a noiva do príncipe, mas a verdadeira princesa do Clã Kan: imponente, serena, bela, e destinada a deixar sua marca indelével na história.
O murmúrio que percorreu o salão logo se converteu em um silêncio respeitoso, quase solene. Os olhares dos nobres, cortesãs, oficiais e guardas se voltaram para Maomao como se ela fosse a própria encarnação da lua cheia naquela noite — misteriosa, brilhante, e cheia de poder contido.
O Imperador, que até então observava com sua expressão impassível, inclinou ligeiramente a cabeça, um gesto discreto, mas carregado de aprovação. Ao seu lado, a Imperatriz Ah-Duo manteve seu semblante austero, mas seus olhos refletiam um brilho especial, como se ela percebesse algo raro na jovem princesa que ali se apresentava.
Gyokuyou e Lihua trocaram olhares rápidos e calculistas, o peso da política oscilando no ar como uma dança invisível. Elas reconheciam a importância daquele momento, a aliança não era apenas um contrato, mas um movimento delicado que poderia alterar o equilíbrio do poder.
Jinshi, do lado esquerdo, não desviava os olhos de Maomao. Havia ali uma chama oculta, uma mistura de orgulho, desejo contido e uma ansiedade quase palpável. A tensão entre eles parecia quase elétrica, embora ambos mantivessem a postura rígida e formal diante da corte.
O Imperador ergueu a voz, cortando o silêncio que começava a se espalhar.
— Que esta união seja símbolo de prosperidade para o nosso império. Que os ventos da lua iluminem o caminho destes jovens, e que suas alianças fortaleçam a paz e a justiça.
Os príncipes e princesas se curvaram em reverência, e Maomao fez uma leve inclinação com a cabeça, respondendo ao gesto com a elegância ensinada desde a infância.
Fen Fang, Yaling e Zhìyuǎn observavam da entrada do salão, ainda maravilhados e um pouco impressionados. O maior deles, Zhìyuǎn, parecia compreender mais do que qualquer um de seus irmãos, absorvendo cada detalhe como uma lição silenciosa de honra e sacrifício.
Enquanto isso, Lakan, FengXian e Lahan mantinham-se firmes, conscientes de que aquele era um momento decisivo para o futuro de sua família. A coroa sobre a cabeça de Maomao parecia carregar não apenas ouro e esmeraldas, mas todo o peso das expectativas de um clã ancestral.
Jinshi então se aproximou discretamente de Maomao, sua voz um sussurro que só ela poderia ouvir, carregado da intimidade de um segredo compartilhado.
— Você é a verdadeira luz da lua esta noite, princesa.
Ela respondeu com um sorriso que misturava ironia e ternura, consciente do jogo delicado entre eles.
— E você, príncipe Jinshi, será o guardião dessa luz, pelo bem e pelo mal.
Os olhos deles se encontraram por um momento que pareceu eternidade, antes que a cerimônia prosseguisse, implacável e cheia de promessas não ditas.
A cerimônia seguiu seu curso como um rio de tradição e poder, cada passo meticulosamente orquestrado para mostrar a grandiosidade da aliança entre o Clã Kan e a Casa Imperial. Após o discurso do Imperador, um cortejo de nobres avançou lentamente, trazendo presentes simbolizando a união: tecidos raros, especiarias exóticas, e delicadas obras de arte feitas por artesãos do clã.
Maomao permaneceu imóvel, um pilar de calma e dignidade, embora a tensão em seu peito crescesse a cada instante. Ela sentia os olhares pesados dos membros da corte — alguns de respeito, outros de avaliação fria, e alguns, claramente, de desdém velado.
Jinshi, ao seu lado, mantinha-se formal, mas seus olhos não podiam esconder a inquietação. Era como se cada movimento dela lhe provocasse uma tempestade interna: a noiva que ele desejava proteger e ao mesmo tempo conquistar, a aliada política que sabia que poderia ser seu maior trunfo — ou sua maior vulnerabilidade.
Quando chegou a vez dos príncipes e princesas se apresentarem, Jiang lançou um olhar mordaz a Maomao, uma silenciosa lembrança de que dentro do palácio, as alianças são tão frágeis quanto cristal. Jin-Ye e Lingli, por sua vez, sorriram discretamente para ela, uma aprovação rara e silenciosa que trouxe um breve calor ao coração de Maomao.
Ao mesmo tempo em que Yao Jun sorriu gracioso segurando a mão da princesa e a beijando como gesto de honra a futura imperatriz e quanto ao pequeno Liang de oito anos, fez uma reverência desajeitada, que fez Maomao rir e beijar o topo de sua testa, ele era como seus irmãos e ela amava essa parte da sua nova família, também teria mais irmãos ao qual cuidar.
Ao final da cerimônia formal, quando os oficiais começaram a se dispersar para as celebrações que se seguiriam, Maomao sentiu um toque sutil na manga do hanfu. Jinshi inclinou-se para falar ao seu ouvido, a voz baixa e carregada de um misto de desejo e promessa:
— Depois disso, dançaremos juntos. Quero ver se a princesa do Clã Kan é tão imponente na pista quanto neste salão.
Maomao respondeu com um sorriso enigmático, os olhos faiscando em desafio:
— O príncipe da lua será meu parceiro? Que honra... não vou decepcioná-lo.
Eles trocaram um olhar cheio de significados ocultos, um jogo silencioso de poder, atração e segredos que só eles compreendiam.
No meio da multidão, FengXian observava a cena, o coração apertado entre o orgulho e a preocupação. Ela sabia que aquela união era fundamental para o futuro da família, mas também sabia que o caminho de Maomao seria cheio de batalhas, algumas travadas em silêncio, outras escancaradas perante o mundo.
Lakan, por sua vez, aproximou-se discretamente de FengXian, sussurrando:
— Ela está pronta para isso, mais do que nunca.
— Espero que sim — respondeu FengXian, os olhos fixos em Maomao — porque nem todos na corte desejam ver o Clã Kan brilhar, ainda mais sabendo do poder que Maomao tem em mãos.
Enquanto isso, Maomao se preparava para seu próximo desafio: a dança que selaria, não apenas a aliança política, mas também o início do jogo delicado entre ela e Jinshi — um jogo onde a sedução, a força e a inteligência seriam suas armas mais afiadas.
O salão principal do festival estava envolto em uma aura mágica. Lanternas de papel pendiam do teto como estrelas suspensas, iluminando suavemente as paredes decoradas com motivos lunares e flores de lótus. A música tradicional flutuava pelo ar, uma melodia hipnótica de guzheng e flautas que embalava cada movimento com delicadeza e força.
Maomao surgiu na entrada do salão, seus olhos azuis brilhavam intensamente, refletindo a luz das lanternas, e seu busto farto e as curvas graciosas do corpo desenhavam-se em cada passo que dava. A essência da cortesã e da princesa misturavam-se em seus gestos, precisos e cheios de significado.
Jinshi a esperava ao centro do salão, trajando seu hanfu imperial de seda negra com bordados prateados que lembravam as fases da lua. Seus olhos fixaram-se nela com uma mistura de desejo, admiração e um ciúme que tentava disfarçar. Quando Maomao se aproximou, seu olhar se aprofundou, como se a estudasse minuciosamente, cada detalhe, cada nuance.
— A princesa do Clã Kan dança como quem domina o vento e a tempestade — murmurou Jinshi, quase para si mesmo, enquanto estendia a mão — Ainda lembro de como seus quadris dançam perfeitamente, como naquela noite.
Maomao sorriu maliciosa com o elogio, deixando que seus dedos tocasse os dele com firmeza e leveza ao mesmo tempo. A música cresceu, e eles começaram a girar, uma coreografia silenciosa onde o poder, o controle e a paixão se entrelaçavam.
Durante a dança, cada movimento deles parecia dizer mais do que mil palavras, Maomao mantinha um ar frio e calculista, seu olhar desafiador fixo em Jinshi, enquanto ele tentava quebrar sua máscara, arrancar um sorriso verdadeiro, uma faísca de emoção.
Em um giro, Jinshi puxou-a mais perto, o calor do corpo dele se chocando contra o dela. A respiração dele acelerou, mas tentou manter a compostura imperial.
— Por que tanto gelo, Maomao? — sussurrou, a voz baixa e rouca.
Ela sorriu, um sorriso que não chegava aos olhos, e respondeu com um leve toque de desdém:
— Porque o casamento é um tabuleiro de xadrez, e eu sou a jogadora que não se deixa capturar facilmente.
Ele apertou a cintura dela, a tensão entre ambos aumentando, o jogo agora ficando mais perigoso, mais íntimo.
— Talvez eu queira ser seu imperador... e sua armadilha — Jinshi disse, a voz carregada de promessas ocultas.
Maomao inclinou a cabeça, o olhar azul perfurando o dele.
— E eu, talvez, queira ver até onde você é capaz de ir para me conquistar.
O salão parecia se fechar em volta deles, o mundo reduzido ao espaço entre seus corpos e o silêncio quase palpável da música e dos olhares atentos dos convidados.
No centro, Jinshi e Maomao formavam um par impossível de ignorar. Ele, impecável em um traje profundo de azul-noite, conduzia-a com firmeza, mas Maomao devolvia cada passo com um contra-ataque silencioso, um toque mais prolongado do que necessário, um olhar que parecia questionar sua autoridade em plena frente da corte.
Nas bordas do salão, quatro figuras observavam com atenção.
— Parece que a caçada virou contra o caçador — murmurou a princesa Lingli, os lábios curvados em um sorriso quase cúmplice.
— Ou ele está se deixando ser caçado para se divertir mais — retrucou a princesa Jin-Ye, sem esconder a diversão nos olhos.
Jiang, o mais velho, soltou um suspiro carregado de ironia.
— Ele não vai admitir, mas está perdido. Aquele olhar... já vi antes. É o mesmo de um general prestes a perder a batalha e fingindo que ainda comanda o cerco e eu não o julgo por estar perdido, essa mulher é como uma miragem no deserto, nem parece real de tão bela.
Yao Jun arqueou uma sobrancelha.
— E se for o contrário? Talvez ele esteja apenas conduzindo o inimigo para onde quer.
— Essa mulher não é inimigo comum — observou Lingli, mantendo os olhos em Maomao. — Não sei se Jinshi percebeu, mas ela não joga para ganhar rápido. Ela joga para dominar o tabuleiro inteiro.
A dança terminou em um giro final. Maomao inclinou-se levemente em reverência, o olhar cravado no dele como se dissesse, sem palavras, não acabou. A corte aplaudiu, mas era impossível dizer se o calor vinha da música ou da tensão palpável entre os dois.
Jinshi permaneceu imóvel, uma tempestade contida por detrás da máscara de príncipe, enquanto os aplausos começavam a ecoar pelo salão.
Naquele momento, ambos sabiam que aquela dança era apenas o começo de uma batalha muito maior, onde o amor, o poder e o jogo político se entrelaçariam em cada passo, cada olhar, cada silêncio.
Foi então que Lahan, o segundo mais velho dos irmãos Kan, de cabelos pretos presos por uma fita de seda azul-marinho, caminhou entre os nobres com a descontração de quem já nascera dono daquele espaço. Ele mantinha um meio sorriso travesso, os olhos semicerrados como se guardassem um segredo.
Parou diante de Maomao, que terminava de servir um bolinho de lótus a uma das irmãs mais novas, e fez uma reverência exagerada, com uma mão estendida teatralmente.
— Irmãzinha, posso ter a honra de uma dança? — disse ele, com um brilho nos olhos e a voz carregada de galhofa cortês.
Maomao arqueou uma sobrancelha, desconfiada, sem disfarçar o divertimento.
— Que cavalheiresco, Lahan... Mas só se prometer não pisar nos meus pés.
— Prometo nada — respondeu ele, rindo, antes de já puxá-la gentilmente pela mão, como se temesse que ela mudasse de ideia.
Surpreendentemente, os passos que seguiram foram harmônicos, a dança começou com uma graça desconcertante, um tanto improvisada, mas cheia de leveza. Maomao, em seu hanfu verde-escuro bordado com detalhes dourados, movia-se como quem brincava com o vento, sem pretensão de perfeição, mas com a naturalidade de quem pertence àquele instante.
Seus cabelos soltos parcialmente, presos apenas por pequenos ornamentos de jade pálido, balançavam a cada volta que Lahan conduzia. O brilho em seus olhos cintilava como reflexo das lanternas douradas sobre sua pele clara, fazendo dela o ponto de luz mais espontâneo daquele salão imponente.
Zhìyuǎn, que observava com os bracinhos cruzados e bochechas infladas, não conseguiu resistir por muito tempo, aproximou-se com um muxoxo indignado, os olhos faiscando ciúme.
— E-eu também quero dançar. — falou envergonhado — Você é tão minha irmã, quanto dele!
Maomao parou no meio da volta, abaixando-se à altura do irmão, sorria com ternura que não costumava exibir tão facilmente.
— É uma honra, mestre Zhìyuǎn. Vamos?
Ele assentiu rápido, ainda fazendo um leve biquinho, e tomou a mão da irmã com firmeza determinada. Lahan abriu caminho com uma risada abafada, erguendo as mãos em rendição antes de recuar para a lateral.
O pequeno Zhìyuǎn tentava imitar os passos com toda a seriedade que um garoto de oito anos podia reunir, mas tropeçava, pisava nos pés da irmã e ria escandalosamente de cada tropeço. Maomao não se importava; girava com ele como se cada passo descompassado fosse parte de uma coreografia secreta só dos dois.
Logo, os risos chamaram atenção, Fen Fang e Yaling, as mais novas, correram descalças sobre o tatame lustroso, suas risadas agudas cortando a música suave como sinos de vento, tomaram as mãos de Maomao e Zhìyuǎn, girando em roda com eles, como pétalas rodopiando na corrente de um riacho.
A música, antes contida, parecia ter ganhado corpo, o guzheng vibrou com acordes mais alegres, como se os músicos tivessem se rendido à cena.
Era uma roda viva de crianças, Maomao ao centro, com as mangas flutuando como asas, os irmãos girando ao seu redor com passos desajeitados e corações pulsando em pura alegria. Os risos ecoavam pelo salão, alcançando até os cantos mais discretos, arrancando sorrisos genuínos dos presentes.
Alguns convidados interromperam suas conversas, um ou outro conselheiro, antes estoico, esboçou um sorriso discreto. As concubinas trocaram olhares cúmplices e riram baixinho, com os leques semicerrados cobrindo os lábios, até mesmo os eunucos, disfarçando o encantamento, trocavam olhares como quem via algo raro, um momento tão simples quanto precioso.
Do alto de seu assento reservado, a imperatriz observava com um olhar velado pela nostalgia. Seus dedos seguravam suavemente a borda do leque de marfim, mas a expressão nos olhos entregava um calor quase maternal, ela sussurrou para a dama ao lado:
— Como ela consegue ser tão... desarmadora?
Gyokuyou, que também assistia à cena com um sorriso tranquilo, respondeu com a doçura de quem conhecia a alma de Maomao melhor do que a própria corte jamais conheceria:
— Porque ela nunca tentou agradar ninguém e ainda assim... está conquistando todos nós.
E por um instante, não havia intriga, política ou formalidade, apenas o som da música, o calor dos risos, o redemoinho de cores e sorrisos de irmãos dançando sob o olhar de uma corte que, mesmo sem admitir, rendia-se à luz gentil daquela jovem que jamais pedira para brilhar.
A dança terminou entre aplausos discretos e olhares enternecidos, os irmãos ainda riam entre si, e Maomao os conduziu de volta às almofadas reservadas à família, certificando-se de que cada um recebesse um doce de jujuba e um copo de chá morno.
Ela alisou os cabelos da pequena Yaling com um gesto distraído, como se dissesse silenciosamente: "Está tudo bem, estou aqui." Fen Fang cochichava algo no ouvido de Zhìyuǎn, e os dois riam abafado, conspirando como crianças que guardam segredos preciosos demais para adultos.
[. . .]
O som distante das flautas e tambores ainda pairava no ar quando Jinshi, com um gesto calculado, tomou o pulso de Maomao e a conduziu para uma varanda lateral, afastada da multidão. As lanternas do corredor lançavam luz suave sobre seus rostos, e o contraste entre o calor do salão e o frio da noite só tornava mais agudo o que estava preso entre eles.
— Você gosta de provocar, não é? — a voz dele saiu baixa, mas densa, quase como se cada palavra fosse um desafio.
Maomao ergueu o queixo, inclinando-se até que seus lábios quase tocassem o lóbulo da orelha dele. A distância era mínima, o suficiente para ele sentir a respiração morna que roçava sua pele.
— E você gosta de ser provocado, não minta para mim, Vossa Alteza.
O músculo do maxilar dele se moveu. Jinshi respirou fundo, tentando disfarçar, mas ela percebeu o leve acelerar de seu peito. Um sorriso lento e perigoso se formou nos lábios dela — aquele tipo de sorriso que sabia exatamente o estrago que causava.
— Estive pensando... Se você pode ter concubinas... — começou, com um tom casual que contrastava com o veneno implícito — eu também posso ter concubinos.
Os olhos dele se estreitaram, escurecendo.
— Isso não é justo, Maomao, você já estará se casando comigo. Isso é o suficiente.
Ela inclinou a cabeça, como se ponderasse uma questão séria, embora a provocação fosse clara.
— Então é suficiente para você ter apenas uma esposa? — pausou, como se o sabor das palavras fosse doce demais para apressar — Caso a resposta seja não, exijo os mesmos direitos e escolherei pessoalmente os homens do meu harém. Afinal... o Imperador precisa de filhos e... a esposa de prazer.
Ele a encarou com tanta intensidade que parecia pronto para encurtar a distância, mas em vez disso, ficou imóvel, o autocontrole erguendo uma barreira frágil. A tensão se acumulava, palpável como eletricidade antes de uma tempestade.
Maomao deu um passo à frente. Agora, estavam tão próximos que, se um deles respirasse mais fundo, os lábios se tocariam. O olhar dela percorreu lentamente os traços do rosto dele — o contorno da mandíbula, a curva do nariz, os olhos violetas que a fitavam como se pudessem queimá-la.
Ela ergueu a mão, quase tocando o rosto dele, mas desviou no último instante para ajeitar o colar em seu próprio pescoço. O gesto foi lento, estudado, como se ela soubesse que ele imaginava outro destino para aquele toque.
— Está vendo? — sussurrou, com um brilho travesso nos olhos. — Tenho você na palma da minha mão... só se recusa a admitir.
Jinshi não respondeu. Apenas a encarou, e dentro dele o pensamento ecoou como um rugido contido:
"Ridícula. Serpente astuta. Maníaca."
O silêncio entre eles se alongou, denso, apenas quebrado pelo som distante das flautas e tambores que ecoavam do salão. Maomao, de braços cruzados, sustentava o olhar dele como quem saboreia a própria vitória, Jinshi, com o maxilar tenso, ainda remoía cada palavra dela, sentindo-se atingido em mais de um ponto.
Ele deu um passo à frente, encurtando perigosamente a distância.
— Você gosta de brincar com fogo, Maomao.
Ela arqueou uma sobrancelha, os lábios curvando-se em um meio sorriso provocador.
— Só quando sei que o fogo não vai me queimar.
O ar pareceu rarear. Jinshi inclinou-se ligeiramente, o perfume suave dela misturando-se ao frescor da noite. A mão dele se ergueu, quase tocando o rosto dela, mas parou no último instante, como se temesse perder o controle.
Maomao sorriu, satisfeita com o efeito que causava, sem pressa, virou-se para a porta, mas não antes de lançar-lhe um último olhar que prometia que aquele duelo estava longe de terminar.
E, enquanto ela desaparecia pelo corredor, Jinshi ficou sozinho na varanda, respirando fundo para conter o impulso de ir atrás dela, certo de que aquela mulher ainda iria levá-lo à completa loucura.
E ele soube, naquele instante, que o jogo dela não era apenas sedução. Era domínio.
[. . .]
Na manhã seguinte, em um salão reservado do palácio onde as janelas se abriam para um jardim interno silencioso, os tecidos das cortinas dançavam com a brisa suave e o aroma de chá de crisântemo pairava no ar. A Imperatriz, o Imperador e as Concubinas de Alto Nível, Gyokuyou e Lihua estavam sentados com expressão serena, porém atenta, diante deles, a família Kan estava reunida: Lakan em trajes cerimoniais escuros, FengXian com o olhar polido de sempre, e os filhos posicionados conforme o protocolo permitia ainda que alguns, como Zhìyuǎn, balançassem os pés impacientes por debaixo da longa túnica.
O Imperador foi o primeiro a falar, com um tom solene, próprio das decisões que carregavam peso político:
— Devido à futura união entre os Kan e a família imperial, consideramos necessário até mesmo por questões de segurança que a princesa permaneça no palácio até o casamento. Será um período de adaptação às rotinas e protocolos da corte.
Fez-se um leve burburinho de seda sendo ajustada quando todos se inclinaram em respeito. Ele prosseguiu:
— Além disso, gostaríamos que as meninas, Fen Fang e Yaling, viessem com ela nesse período de transição, a presença das irmãs trará conforto e estabilidade.
FengXian foi rápida em se inclinar com graciosidade e controle:
— Será uma honra, majestade, as meninas... ficarão radiantes.
Fen Fang, com os olhos arregalados de emoção, apertou as mãos da irmã mais nova como quem estava prestes a embarcar em uma aventura encantada. Yaling apenas sorriu, sem saber direito o que significava "transição", mas encantada com a ideia de dormir em palácios com lanternas mágicas.
Foi então que uma vozinha se ergueu do lado oposto, meio hesitante:
— E quanto a mim?
Zhìyuǎn olhava direto para os adultos, a testa franzida e o lábio inferior tremendo levemente. O menino ainda tentava manter a compostura, mas o olhar já era o de um filhote deixado para trás.
Gyokuyou respondeu com a voz gentil, mas clara:
— Você ficará com Lahan, claro. Os dois terão uma rotina de estudos com o mestre Lakan. Está na hora de começarem a ser introduzidos aos assuntos da corte.
A cor fugiu do rosto de Zhìyuǎn.
— Eu... com o Lahan? — olhou para o irmão mais velho como se acabasse de receber uma sentença injusta — Mas ele é... insuportável!
Lakan soltou uma gargalhada calorosa, que ecoou pelo salão como trovão bem-humorado.
— Vai aprender a usar o cérebro, garoto. Está na hora de parar de fugir dos desafios, o império não se governa só com o coração, sabia?
Zhìyuǎn cruzou os braços, emburrado.
— Só vou aceitar porque quero proteger a minha irmã grqandona Maomao, se o Lahan fizer besteira, eu denuncio!
O comentário arrancou risadas abafadas até da Imperatriz, que escondeu o sorriso com o leque. FengXian suspirou com pesar fingido, mas Maomao, parada um pouco atrás de todos, deixou escapar uma risada leve, que foi como uma brisa de verão quebrando o peso da formalidade.
Mas o bom humor de Zhìyuǎn durou pouco.
Quando chegou o momento de despedida, ele desabou.
Na hora em que Maomao se aproximou para abraçá-lo, o menino já tremia, seus olhos, antes orgulhosos, transbordaram em lágrimas silenciosas que escorriam pelas bochechas coradas. Sem dizer nada, ele se lançou nos braços da irmã mais velha, apertando-a com força.
— Irmã... irmã... — balbuciava entre soluços — não quero ficar longe... não quero...
Maomao o envolveu num abraço apertado, aconchegando o rosto do irmão contra seu ombro, beijou-lhe o alto da cabeça com carinho, as mãos afagando devagar seus cabelos.
— Ei, vai ser só por um tempo — disse, num tom baixo, maternal — Logo estaremos juntos de novo na cerimônia, você vai me levar até o altar, lembra? Vai ter que estar impecável.
Zhìyuǎn apertou mais ainda, fungando alto.
— Mas... mas não é a mesma coisa...
Maomao riu baixinho, mesmo com os olhos marejados.
— Agora é sua vez de virar o homem da casa, Zhìyuǎn, igual ao Lahan com responsabilidades, estudos... talvez até aprender a calar quando não sabe o que dizer.
Zhìyuǎn ergueu o rosto num protesto indignado:
— Não me compare com o Lahan!
As risadas foram inevitáveis até o Imperador balançou a cabeça, divertido, Lahan, de braços cruzados, respondeu com o tom mais teatral possível:
— Quem vê assim, acha que eu torturo o pirralho! Trato com carinho, igual a Maomao e veja só como sou tratado... tudo isso por ela ser mulher, né, seu sábado?
Zhìyuǎn mostrou a língua para ele sem pensar duas vezes, mas logo voltou a esconder o rosto no pescoço da irmã, ainda desolado.
Maomao continuou ali, segurando-o com firmeza, o coração apertado, mas o sorriso sereno.
Porque ali, entre lágrimas, provocações e promessas sutis, ela sabi pela primeira vez, talvez que tudo aquilo era, de fato, amor. Imperfeito, barulhento, contraditório, mas real.
E por isso, valia a pena.
Alguns servos do palácio foram cedo à residência do clã, com passos contidos e olhares discretos, trazendo cestos de laca e caixas entalhadas para guardar os pertences de Maomao. Trabalharam com cuidado, retirando vestidos finos, frascos de perfume, rolos de pergaminho e pequenas lembranças que ela havia acumulado ao longo dos anos.
FengXian acompanhava cada movimento, tentando manter a postura firme enquanto supervisionava a arrumação. De vez em quando, ajeitava um tecido para evitar que amassasse ou recolhia com as próprias mãos algum objeto mais delicado, entre uma dobra e outra, guardava também a própria saudade.
As roupas das crianças foram cuidadosamente embaladas, assim como as suas, para o tempo em que permaneceria no palácio cuidando da filha. A movimentação preenchia a casa com um murmúrio constante de passos e o tilintar suave dos objetos, mas, para FengXian, cada som parecia um lembrete de que a rotina que conhecia estava sendo lentamente desmontada.
Quando o último baú foi fechado e carregado pelos servos, restou apenas o silêncio. FengXian entrou no quarto de Maomao, agora vazio. Antes, o espaço era um pequeno refúgio vivo, estantes transbordando de livros e pergaminhos, vestidos de seda pendurados no biombo, a penteadeira repleta de potes de cerâmica e espelhos polidos. Agora, restava apenas a cama arrumada e a janela aberta, por onde a luz suave do entardecer se derramava, revelando a vista para o jardim dos fundos.
O vento entrou, balançando as cortinas de linho que Maomao havia escolhido pessoalmente, e trouxe consigo o cheiro das flores de ameixeira. FengXian pousou a mão sobre o peitoril da janela, sentindo o frio da madeira, e por um instante teve a impressão de ouvir a risada da filha, como se ela estivesse ali, recostada contra a moldura, comentando alguma novidade com aquele brilho impaciente no olhar.
Mas a voz era apenas uma lembrança.
FengXian suspirou fundo, tentando afastar a sensação estranha que apertava o peito. Sabia que Maomao estava indo para uma nova etapa, cercada de luxos e deveres no palácio, mas, para uma mãe, cada partida sempre deixava um eco no lar. O quarto, mesmo em silêncio, parecia ainda carregado da presença da filha e, ao mesmo tempo, absurdamente vazio.
O quarto, anos atrás, tinha outro cheiro, não de madeira polida e silêncio, mas o perfume doce e morno do leite. A luz que entrava pela janela era mais dourada, filtrada pelas cortinas de linho leve, e as paredes pareciam guardar o som abafado de risadas baixas e passos cuidadosos.
Sentada junto à janela, FengXian recordava-se de ter Maomao bebê aninhada nos braços, a pequena sugando com força o seio, com aquele olhar curioso e intenso que sempre buscava o rosto da mãe. Cada movimento era minucioso: os dedinhos fechados como botões, a respiração acelerada no início e depois mais lenta, como se o ato de se alimentar fosse também uma forma de escutar e conhecer o mundo.
Ao lado, Lakan embalando Lahan com um cuidado que poucas vezes se permitia mostrar, a postura, rígida no início, ia cedendo à cadência do balanço. Um braço o segurava firme, enquanto a outra mão afagava levemente as costas do bebê, num ritmo quase hipnótico.
— São tão pequenos… — murmurou FengXian, um sorriso leve curvando seus lábios. — E, no entanto, já parecem carregar o mundo nos olhos.
Lakan inclinou a cabeça, observando Maomao com um brilho raro, quase reverente, no olhar.
— Maomao sempre é muit atenta, como se estudasse tudo ao redor… até nós.
— E Lahan… — ela ajeitou o pano no ombro, olhando para o filho — tem o mesmo temperamento que você, mesmo tão pequeninho;
Ele riu baixo, um som grave que não ecoava com frequência no palácio.
— Então, coitada de você.
Ficaram assim, num silêncio vivo, apenas o som ritmado da respiração dos bebês e o suave rangido da cadeira de balanço preenchendo o espaço. O mundo parecia caber inteiro dentro daquele quarto, naquele instante. FengXian sentia o calor dos dois filhos misturado ao seu, e Lakan, apesar da expressão sempre controlada, parecia também entender que havia algo sagrado ali — algo que talvez não se repetisse.
O calor da lembrança começou a esmaecer, substituído por uma frieza sutil, mas constante, que se infiltrava como vento por frestas invisíveis. O som do passado foi sendo apagado, trocado pelo eco seco dos passos sobre o mármore polido, pelo arranhar discreto de seda e pelos murmúrios que não passavam da soleira das portas.
Quando piscou, FengXian já não segurava Maomao bebê, diante dela havia a jovem adulta, sentada na penumbra calculada do Pavilhão das Orquídeas.
As paredes altas, adornadas por painéis negros com orquídeas bordadas a fio de ouro, não carregavam calor algum; refletiam apenas um brilho frio, como se observassem cada gesto com olhos ocultos. O perfume que impregnava o ar não vinha de flores vivas, mas de essências preparadas para permanecerem idênticas dia após dia, como se ali nada pudesse mudar.
Era um lugar belo, mas inóspito e, entre aquelas paredes, Maomao não parecia apenas morar. Parecia estar sendo observada, moldada, como uma flor rara cultivada para um jardim que não era seu.
Chapter 7: Véu de Veneno
Notes:
O fato de ter dado mais de 10.151 palavras esse capítulo me assusta, mas ele me gerou muitas risadas, crise de choro e insanidade mental, acredito que a depois desse capítulo a Maomao vai ser ainda mais temida e o capítulo de quinta-feira, eu mesma vou ficar maluca escrevendo ele até lá.
Espero que gostem e não tenham medo de comentar, amo interagir com todos :))))
Chapter Text
A notícia da chegada de Maomao ao Pavilhão das Orquídeas espalhou-se rapidamente por entre os corredores e jardins do palácio, ganhando vida própria como o vento que dança entre as folhas. Naquela tarde, Maomao caminhava lentamente pelo amplo jardim que circundava o pavilhão, suas duas irmãs pequenas como sombras fiéis ao seu redor. Yaling, aconchegava-se ao colo firme da irmã mais velha, enquanto Fen Fang corria com alegria e curiosidade em direção às flores.
— Espera, espera! — exclamava Fen Fang, ajoelhando-se junto a um canteiro de orquídeas roxas e colhendo delicadas pétalas, como se colhesse um tesouro. — Mamãe vai gostar dessas, não é, Maomao?
Maomao sorriu com ternura, observando a irmã mais nova enquanto mantinha Yaling segura e tranquila contra o corpo.
— Vai sim, Fen Fang, você sempre é muito atenciosa com as flores que a mamãe gosta.
Enquanto isso, dentro do próprio Pavilhão da Orquídea, FengXian conversava em tom baixo com Lakan. Eles estavam próximos a uma janela ampla, de onde se via o jardim mergulhado em sombras intercaladas por brilhos esverdeados. As orquídeas negras balançavam sob a brisa suave, mas o ar parecia denso, carregado de algo que não vinha apenas do clima, havia segredos antigos presos àquelas paredes.
Lakan inclinou-se levemente para frente, o olhar agudo, e disse quase num sussurro:
— Eles não gostam da presença de vocês aqui... O noivado mexeu com o equilíbrio do poder na corte, há quem queira ver Maomao destruída antes mesmo do casamento.
FengXian manteve o rosto sereno, mas a tensão em suas mãos denunciava o que sentia, segurava a xícara com tanta força que o leve tilintar da porcelana se misturava ao silêncio do aposento.
— Sinto isso em cada canto por onde passo, em cada olhar que se desvia antes de encontrar o meu. — respondeu, a voz firme, mas carregada de uma gravidade silenciosa. — O palácio respira ameaças veladas, Lakan... Não é só Maomao... é toda a família que está na mira.
Lakan respirou fundo, como quem pondera antes de dar um passo adiante. Então, sem pressa, retirou de dentro das vestes um pedaço de papel amassado. As bordas estavam sujas, a caligrafia apressada e irregular. Ele o colocou sobre a mesa, deslizando-o lentamente na direção dela.
FengXian estendeu a mão hesitante, desdobrou o papel e leu. As palavras eram poucas, mas afiadas como lâminas: "A flor murchará antes de florescer."
O silêncio que se seguiu pesou sobre os dois.
— Encontrei isso hoje cedo, preso sob a porta do quarto dela. — Lakan disse, com a voz grave. — Não é só um aviso, é uma contagem regressiva.
Ela fechou os olhos por um instante, respirando fundo, tentando conter a onda fria que subia pela espinha.
— Então não é mais apenas sobre suspeitas... — murmurou, dobrando o papel com cuidado, como se temesse que até o som dele rasgar atraísse atenção. — Precisamos agir antes que essas sombras se tornem mãos.
Lakan cruzou os braços, a mandíbula contraída.
— Precisamos estar prontos para tudo. Maomao deve ser forte, mas também invisível quando necessário. Ela é capaz de se manter por si só, mas ninguém vence sozinho numa guerra como esta.
Pouco depois, Maomao retornou ao Pavilhão das Orquídeas com Fen Fang e Yaling, as duas pequenas, mesmo ofuscadas pela imponência do lugar, pareciam incapazes de conter o fascínio. Cada detalhe era para elas uma nova aventura: as colunas entalhadas com padrões de flores e dragões, o som suave das fontes ocultas nos jardins internos, o perfume delicado de incenso que se misturava ao de pétalas secas espalhadas nos corredores.
Fen Fang corria de um lado para o outro, o brilho travesso nos olhos, enquanto Yaling, mais reservada, permanecia perto de Maomao, deslizando a ponta dos dedos pelos tecidos das tapeçarias como se quisesse memorizar a textura. Maomao caminhava atrás delas, o passo seguro e vigilante, sem permitir que se afastassem muito. Por mais que o pavilhão fosse belo, havia uma frieza invisível, quase palpável, que se infiltrava no ar — um peso silencioso que lembrava a todos que ali, nada era tão simples quanto parecia.
Foi nesse momento que, de um dos corredores internos, surgiram Jin-Ye e Lingli. Os passos eram suaves, mas carregavam a cadência ensaiada de quem nasceu para ser observado. A luz das lanternas dançava sobre os tecidos caros: Jin-Ye vestia um hanfu lilás, bordado com fios de prata que formavam delicados ramos de glicínia, e um colar de jade pálido repousava sobre a clavícula. Lingli, por sua vez, usava tons de rosa perolado, com camadas sobrepostas que refletiam a luz de forma quase etérea. Ambas tinham o queixo erguido e o olhar treinado para medir cada reação alheia.
— Maomao — saudou Jin-Ye, inclinando levemente a cabeça. A voz era suave, mas havia um peso de comando nela. — Bem-vinda ao Palácio. — seus olhos percorreram discretamente Fen Fang e Yaling antes de voltar a Maomao. — Espero que possamos conversar mais vezes com calma e ficamos muito felizes de que agora seremos irmãs, verdadeiras irmãs.
O tom parecia amistoso, mas a pausa entre as palavras carregava um subtexto que Maomao entendeu de imediato: "verdadeiras irmãs" significava alianças, e alianças no palácio tinham um preço.
Lingli se adiantou um passo, as mãos delicadas entrelaçadas à frente do corpo.
— Sim, a corte precisa de alianças verdadeiras, mas amizades também, aqui é um verdadeiro ninho de cobras Maomao. — disse, o sorriso cuidadosamente moldado para ser afável e logo depois fazendo uma careta ao se referir as cobras — Espero que você se sinta em casa aqui, mesmo entre tantas incertezas seremos o seu suporte também.
Maomao devolveu o sorriso com polidez, mas não cedeu mais do que o necessário.
Antes que o silêncio se tornasse constrangedor, Fen Fang se colocou à frente, segurando firme a mão de Yaling. Ergueu um pequeno ramo de flores silvestres, o rosto iluminado de orgulho.
— Olhem! Colhi flores para vocês! — disse, como se aquele gesto fosse a coisa mais importante que poderia oferecer. — Minha mamãe vai adorar.
Yaling, ainda com o olhar tímido, inclinou o corpo para espiar por entre a saia de Maomao e completou num sussurro doce:
— Vocês também têm flores bonitas aqui?
Jin-Ye e Lingli trocaram um rápido olhar — não de desprezo, mas de surpresa genuína — e, por um instante, o protocolo se desfez. Jin-Ye abaixou-se levemente para ficar mais próxima da altura das meninas as envolvendo em um abraço doce e carinhoso.
— Temos sim — respondeu, a voz agora mais suave. — Mas acho que as que vocês trouxeram são mais preciosas.
Lingli se ajoelhou ao lado da irmã e, com cuidado, aceitou o pequeno buquê das mãos de Fen Fang.
— Vou colocá-las no meu quarto, assim, quando olhar para elas, lembrarei de vocês.
O riso leve que seguiu não soou falso.
Maomao observou a cena em silêncio, e, pela primeira vez desde que pisara no pavilhão, sentiu um calor discreto quebrando a frieza ao redor. Talvez, pensou, nem tudo ali fosse feito apenas de máscaras e segredos, talvez realmente houvessem boas intenções por trás da conversa das princesas.
Fen Fang, empolgada com a atenção, deu um pequeno passo para mais perto de Jin-Ye, erguendo o queixo como se tivesse acabado de ser promovida a florista oficial do palácio.
— Se quiser, posso trazer mais flores amanhã, mas só se vocês prometerem cuidar bem delas — disse, estreitando os olhos como se fosse uma condição séria.
Jin-Ye soltou uma risada baixa, tão controlada quanto tudo nela, e assentiu.
— Prometo, pequena florista, mas... — inclinou levemente a cabeça — talvez amanhã possamos ir juntas ao jardim interno. Há flores que só crescem aqui, e vocês poderiam vê-las de perto.
Yaling arregalou os olhos, segurando com mais força a mão de Maomao.
— Tem flores que ninguém mais viu? — perguntou, quase sussurrando, como se fosse um segredo proibido.
— Muitas — respondeu Lingli, com um sorriso que parecia feito para encantar crianças. — Mas é preciso andar com cuidado lá, certas flores não gostam de ser tocadas.
Fen Fang franziu o cenho.
— Como assim? São perigosas?
Lingli trocou um olhar rápido com a irmã, depois se inclinou para frente, reduzindo a voz a um tom conspiratório.
— Algumas... têm espinhos escondidos, outras liberam perfumes que deixam as pessoas tontas, mas todas são belas.
— Isso é um pouco como o palácio, não é? — comentou Maomao, com um leve arqueio de sobrancelha.
Houve um instante de silêncio. Jin-Ye voltou os olhos para ela, mantendo o sorriso, mas com algo mais frio por trás.
— Infelizmente. — disse, escolhendo as palavras com cuidado. — Mas até as flores mais traiçoeiras podem ser cultivadas para embelezar o jardim, se cuidadas da forma correta.
Maomao inclinou levemente a cabeça, o olhar firme.
— E algumas crescem mesmo sem o cuidado de ninguém.
Fen Fang, alheia à tensão, puxou a manga de Maomao.
— Mana, posso ver essas flores amanhã?
— Podemos pensar nisso — respondeu Maomao, sem tirar os olhos das princesas.
Lingli quebrou o clima, endireitando a postura e voltando ao tom formal.
— Ficaremos felizes em recebê-las, mas por hoje, deixem que nossas servas as acompanhem para conhecerem melhor o pavilhão.
Yaling olhou para Maomao, como quem pedia permissão. Esta respirou fundo antes de responder:
— Está bem, mas vão juntas e não se afastem.
Lingli se despediu com uma inclinação elegante, mas o último olhar que trocou com Maomao tinha um peso claro: um convite... e um aviso do que ela poderia esperar dali de dentro. O caos.
As servas conduziam Fen Fang e Yaling por um corredor ladeado por painéis entalhados, até um portão de madeira delicadamente esculpido que dava para os jardins internos do Pavilhão. A luz filtrada por cortinas de seda tingia o ambiente em tons dourados e verdes, e um perfume adocicado vinha das flores cuidadosamente dispostas em canteiros geométricos. Pequenas carpas nadavam em espelhos d'água, e borboletas brancas passavam preguiçosamente pelo ar.
Maomao, ao lado de Jin-Ye, permanecia alguns passos atrás, trocando palavras em tom baixo. A princesa caminhava com a mesma postura impecável de antes, os olhos sempre atentos.
— Vejo que suas irmãs têm energia de sobra — comentou Jin-Ye, um canto de sorriso nos lábios. — É raro ver crianças tão livres aqui dentro.
— Elas ainda não aprenderam o peso do lugar onde estão.— respondeu Maomao. — Talvez seja melhor assim... por enquanto.
O olhar de Jin-Ye se estreitou, como se buscasse medir, camada por camada, o peso e a intenção por trás das palavras de Maomao. Havia curiosidade ali, mas também uma ponta de prudência, como quem examina uma flor exótica, bonita demais para ser ignorada e perigosa demais para ser tocada sem cuidado.
— Você parece compreender que nem todas as flores do jardim são seguras — disse ela, num tom suave, porém carregado de significado. — Mas é interessante admirar a sua beleza... embora seja triste, por vezes, vê-las viver presas por tantas amarras.
Maomao inclinou a cabeça levemente, os olhos semicerrados, como quem analisa um paciente antes de receitar o remédio certo.
— O fato de que algumas flores só revelam seus espinhos quando alguém se aproxima demais demonstra uma proteção necessária. — sua voz era calma, quase distraída, enquanto desviava o olhar para as meninas ao fundo, certificando-se de que continuavam bem. — Quem cuida delas de verdade, sabe como manuseá-las... mesmo que haja espinhos.
Um leve sorriso curvou os lábios de Jin-Ye.
— Concordo perfeitamente. — ela manteve o olhar fixo em Maomao, como se quisesse gravar cada detalhe daquela expressão. — Sei que tudo aconteceu de forma repentina para você... o anúncio do casamento com meu irmão, sua mudança para o palácio,mas, Lady Kan, quero genuinamente que possamos ser amigas e não digo isso por questões políticas, — sua voz suavizou ainda mais — mas porque admiro a sua pessoa e os seus feitos.
Maomao voltou-se para ela devagar, como se estivesse analisando um exame clínico cujos resultados poderiam mudar um destino, mesmo diante de uma princesa, ela não abaixaria a guarda. Ainda assim, havia algo de verdadeiro naquelas palavras... algo que, por um instante, quebrou a camada de desconfiança. Talvez, pela primeira vez em muito tempo, Maomao pudesse ter uma amiga que não fosse Lakan disfarçado de cortesã para lhe fazer companhia em uma tarde entediante.
— Sei que, considerando o histórico da senhorita, posso soar falsa... e entenderei se preferir manter distância. — Jin-Ye continuou, observando de perto a mudança sutil no semblante de Maomao: de sereno, para reflexivo. — Mas Zuigetsu é meu irmão favorito, e por a senhorita ser a noiva dele, vai se tornar minha irmã também. Para nós, princesas, é raro criar laços verdadeiros em meio a tantas cobras, por isso insisto nessa sutil amizade.
Maomao respirou fundo antes de responder, e pela primeira vez seu tom perdeu parte do tom clínico que usava como armadura.
— Acredito no que diz, princesa, não me oponho à ideia de sermos amigas, mas devo lembrar que uma amizade sólida nasce com o tempo e a naturalidade. — uma pequena pausa, como se estivesse avaliando o peso da próxima frase. — Temos tempo para nos aprofundarmos. Por ora, proponho que marquemos uma tarde de chá ao menos duas vezes por semana. Assim também poderá criar laços com a princesa Lingli.
E então aconteceu: o primeiro sorriso sincero de Maomao para Jin-Ye.
A princesa não conteve a reação, rompendo qualquer protocolo, inclinou-se e envolveu Maomao num abraço breve, quase impulsivo. Ao se afastar, deu pequenos pulos de animação, como uma jovem que acabara de ganhar um presente inesperado. Todos ao redor, discretamente, notaram. A fama de Maomao precedia qualquer gesto, e o fato dela ter aceitado a amizade de Jin-Ye dizia muito mais sobre Maomao do que sobre a própria princesa.
— Muitíssimo obrigada pelo seu voto de confiança, Lady Kan — disse Jin-Ye, com um brilho de triunfo gentil nos olhos.
Foi então que uma figura surgiu mais adiante, vindo na direção delas, um garoto de postura altiva, vestindo um changshan azul-escuro bordado com dragões dourados, os cabelos presos com um adorno de jade. Os servos que o acompanhavam mantinham-se a uma distância respeitosa, Fen Fang e Yaling pararam, observando com curiosidade.
— Quem é aquele menino? — cochichou Yaling.
— Filho de Lady Lihua e irmão mais novo do Príncipe Jinshi. — respondeu uma das criadas, baixando a cabeça
Liang aproximou-se com passos calculados, o queixo erguido e um ar de superioridade precoce.
— Vocês são novas aqui — disse, olhando de cima para baixo para Fen Fang. — Sabem com quem estão falando? Sou o príncipe Liang.
Fen Fang ergueu uma sobrancelha, o tom de voz carregado de desafio.
— E daí?
O príncipe franziu o cenho, ofendido.
— E daí? Sou irmão do príncipe herdeiro, vocês deveriam se curvar na minha presença.
— Por quê? — Fen Fang cruzou os braços. — Você não fez nada por mim.
Liang deu um passo à frente, o peito inflando.
— Eu sou um príncipe, isso já é suficiente!
Antes que os criados pudessem reagir, Fen Fang avançou, empurrando-o com força inesperada, Liang perdeu o equilíbrio e caiu de costas no chão. Num movimento rápido, ela se jogou por cima dele, segurando-o pelo colarinho e apertando.
— E agora, príncipe esnobe? — gritou, o rosto a centímetros do dele. — Vai fazer o quê? Cadê os poderes de príncipe? HÃ? VAI FAZER O QUÊ?!
O menino começou a se debater, o rosto vermelho tanto pela raiva quanto pelo constrangimento. Alguns servos se aproximaram, mas recuaram ao ver a princesa Jin-Ye e Maomao correrem apressadas.
— Fen Fang! — a voz de Maomao cortou o ar. — Largue-o agora, ele não é o Zhìyuan, é o príncipe.
Jin-Ye, apesar de segurar o riso, ajudou a puxar Fen Fang para trás, enquanto Liang se sentava, ajeitando a roupa amarrotada. Risadinhas ecoavam entre alguns servos que fingiam não olhar.
Nesse instante, Lady Lihua surgiu, os passos rápidos e o rosto marcado pela preocupação, seu hanfu azulado reluzia sob a luz das lanternas, e seus adornos tilintavam levemente.
— LIANG! — exclamou, agachando-se para verificar o filho. — O que aconteceu por aqui?
Maomao curvou-se profundamente.
— Perdão, minha senhora. Minha irmã foi... imprudente.
Lady Lihua olhou para Maomao por um momento, antes de sorrir de forma surpreendentemente calorosa.
— São apenas crianças, e crianças às vezes se excedem. — estendeu a mão e, com delicadeza, ergueu o rosto de Maomao. — Não há o que perdoar, fiquei apenas preocupada em vê-lo caído.
Liang, ainda sentado, lançou um olhar desafiador para Fen Fang... e mostrou a língua, Fen Fang respondeu na mesma hora, mostrando a dela, num gesto infantil e provocador.
Maomao suspirou e se endireitou.
— Vamos. — disse, pegando a mão da irmã e praticamente arrastando-a de volta para o caminho da casa. — Não acredito que você fez isso com um príncipe!
Fen Fang resmungou, sem se mostrar arrependida.
— Ele mereceu. E não parece tão especial assim.
— Fen Fang! — Maomao aumentou o passo, enquanto Jin-Ye, atrás delas, sorria discretamente, como quem acabara de ganhar um novo motivo para se interessar pela recém-chegada ao palácio.
O caminho de volta ao pavilhão foi silencioso apenas na aparência, Maomao segurava firme a mão de Fen Fang, que se contorcia tentando escapar, o rosto ainda aceso de satisfação. Yaling vinha logo atrás, olhando de um lado para o outro como quem temia que qualquer parede tivesse ouvidos.
Assim que atravessaram a soleira da casa, Maomao fechou a porta com mais força do que pretendia. Soltou Fen Fang e virou-se para encará-la, os braços cruzados e o olhar que já bastava para fazer a irmã menor dar um passo para trás.
— O que foi aquilo, Fen Fang!? — a voz de Maomao ecoou pelo cômodo. — Você tem ideia do que fez? Você agarrou o filho de uma concubina de alto nível, o irmão mais novo do imperador consorte, e o jogou no chão!
— Ele começou. — Fen Fang rebateu, o queixo erguido. — Ficou falando como se fosse melhor do que todo mundo só porque é príncipe.
— Isso não importa! — Maomao se aproximou um passo, a mão apontando para ela. — Aqui dentro, palavras erradas podem custar muito mais do que uma bronca, você não pode simplesmente derrubar pessoas, muito menos príncipes!
— Por que não? — Fen Fang cruzou os braços, claramente sem entender a gravidade. — Ele nem parecia forte. Aposto que nunca trabalhou um dia na vida.
— Fen Fang... — Maomao fechou os olhos por um instante, tentando se conter. — Você não está lá fora. Aqui é o palácio. Cada olhar, cada palavra e cada gesto podem ser usados contra nós. Você quer colocar todas nós em risco?
— Mas ele mereceu! — insistiu, a voz mais alta. — Se acha melhor só porque nasceu com título.
Yaling, que até então observava em silêncio, se colocou entre as duas.
— Mana, Fen Fang não quis machucar de verdade. E você... — olhou para a irmã mais velha — sabe que ela não pensa antes de falar.
Maomao suspirou, esfregando a testa.
— Eu sei, Yaling... mas isso não muda o que aconteceu. — voltou-se para Fen Fang. — Você vai me prometer agora que nunca mais vai fazer algo assim.
— Prometer... que não vou derrubar príncipes? — Fen Fang revirou os olhos. — Tá bom...
— Não "tá bom" desse jeito. — retrucou Maomao, estreitando o olhar. — Quero ouvir você dizer com todas as letras.
Fen Fang bufou, mas acabou murmurando:
— Tá... eu prometo.
— Alto — exigiu Maomao.
— Eu prometo! — repetiu, dessa vez tão alto que Yaling deu uma risadinha.
— Ótimo — Maomao endireitou a postura, mas ainda parecia desconfiada. — E se um dia você sentir vontade de derrubar outro príncipe, vai lembrar que o seu lugar é aqui, comigo e Yaling, e que nós dependemos uma da outra para ficar seguras.
Fen Fang torceu a boca, mas assentiu. Yaling abraçou as duas de repente, como se quisesse selar a paz.
— Pronto... já passou. Vamos só ficar juntas e não brigar mais.
Maomao não respondeu de imediato, apenas retribuiu o abraço, mas, no fundo, ela sabia que essa promessa seria testada cedo ou tarde — principalmente com Fen Fang envolvida e com pavio curto.
A noite já havia caído sobre o pavilhão, e o silêncio parecia mais espesso do que o habitual, no quarto, Maomao permanecia sentada à pequena escrivaninha, a lamparina lançando um círculo de luz amarelada sobre os papéis à sua frente. Não lia nada, apenas girava distraidamente o pincel entre os dedos, enquanto a mente vagava.
O encontro com Lady Lihua voltava à sua memória em fragmentos: o sorriso polido, o toque inesperadamente gentil ao levantar seu rosto, o olhar que parecia atravessar sua fachada para sondar intenções ocultas. Jin-Ye também lhe vinha à mente, com a forma cuidadosa de escolher palavras e medir cada reação. No palácio, gestos delicados podiam ser armadilhas tão afiadas quanto lâminas.
Ela suspirou, apoiando o queixo na mão. Fen Fang e Yaling já estavam dormindo no quarto ao lado — ou pelo menos em silêncio o bastante para fingir que dormiam. O episódio da tarde com o príncipe Liang ainda queimava na lembrança, e Maomao sabia que histórias assim corriam rápido demais entre paredes tão próximas. Talvez já houvesse sussurros nos corredores.
O som suave de passos interrompeu seus pensamentos, quando ergueu os olhos, FengXian estava parada à porta, as mãos juntas à frente, o rosto iluminado pela luz vacilante das lanternas do corredor.
— Está acordada — constatou a mãe, com a voz baixa.
— Não conseguia dormir, o dia foi agitado. — Maomao endireitou-se, tentando disfarçar a inquietação. — Aconteceu algo?
FengXian entrou lentamente, o vestido arrastando pelo chão como um murmúrio, havia algo no seu semblante, uma calma que, em vez de tranquilizar, deixava tudo mais tenso.
— Há algo que você precisa ver — disse, a voz firme, sem espaço para perguntas.
Da manga larga, retirou um pedaço de papel dobrado e o empurrou pela mesa até Maomao. Esta hesitou antes de tocá-lo, os dedos pairando sobre o bilhete como se já pressentissem o peso de seu conteúdo.
Quando finalmente o abriu, a caligrafia irregular saltou aos seus olhos:
A flor murchará antes de florescer.
O som distante de um trovão rasgou o silêncio, como se respondesse à ameaça, reverberando pelas paredes do pavilhão. No corredor, Fen Fang e Yaling, despertas pelo barulho, surgiram sonolentas, espiando pela fresta da porta. Não compreendiam as palavras, mas sentiam a gravidade que pairava no ar.
Maomao fechou o bilhete devagar, como quem guarda uma arma carregada. Os dedos apertaram o papel até quase amassá-lo, e quando ergueu os olhos para a mãe, neles havia mais determinação do que medo.
— Então é assim que vai ser — murmurou, a voz baixa mas firme. — Que venham.
FengXian fechou a porta com extremo cuidado, garantindo que o silêncio do ambiente não fosse violado por ruídos desnecessários. Com um gesto firme, apoiou as mãos sobre a mesa de madeira escura, seu olhar firme e inabalável pousando sobre Maomao.
— Este bilhete — começou, a voz baixa, carregada de uma seriedade que não admitia contestação — não é mero capricho ou ameaça vazia. Quem o escreveu conhece os meandros deste palácio e o peso de suas palavras. É um prenúncio de que o tempo que nos resta é curto e que a adversidade será inevitável.
Maomao respirou profundamente, os dedos inquietos traçando círculos delicados sobre a superfície polida da mesa, enquanto sua mente girava em torno das implicações do aviso.
— Tenho sentido a mudança no ar — disse, a voz firme, embora velada por uma sombra de preocupação. — Os olhares que antes eram cordiais agora se esquivam, e a frieza entre os que deveriam ser aliados é cada vez mais evidente, não obstante, recuar jamais será uma opção.
— Não sugiro simplesmente recuar, — FengXian replicou com calma austera — mas sim a necessidade imperiosa de agir com prudência e discrição. Não basta mostrar força; é imprescindível ocultá-la quando necessário, desarmar os olhos inimigos e preservar nossas forças para o momento oportuno.
— Como traçaremos este caminho? — Maomao inquiriu, como quem busca compreender o peso de uma missão que ameaça consumir tudo.
FengXian voltou-se para a janela, observando o jardim que se estendia sob a noite cerrada, as orquídeas negras se movendo suavemente na brisa, como testemunhas silenciosas daquele iminente conflito.
— Primeiro, reorganizaremos a segurança do pavilhão. Guardas escolhidos a dedo, homens e mulheres que prezam pela lealdade absoluta, devem ser posicionados estrategicamente, mas sem causar alarde ou desconforto. Precisamos de uma rede silenciosa de proteção, capaz de agir sem ser notada.
— E quanto aos aliados dentro do palácio? — Maomao indagou, o olhar intenso. — Como podemos distinguir quem caminha conosco daquelas serpentes ocultas entre os corredores? Porque até o momento a princesa Jin-Ye é uma das poucas ao qual eu realmente estou considerando como aliada minha mãe.
FengXian retornou seu olhar para a filha, os olhos profundos irradiando uma combinação de determinação e sabedoria adquirida pelo tempo.
— Compilarei uma lista rigorosa — declarou —, baseada não apenas em lealdades declaradas, mas em ações, sinais sutis e informações veladas. A vigilância deve ser constante, e você, minha filha, deve manter um olhar atento e crítico, mesmo para aqueles que aparentam ser confiáveis. A desconfiança cautelosa será sua maior aliada.
Maomao fechou os olhos brevemente, o peso da responsabilidade tornando-se quase tangível.
— E quanto as pequenas? — sua voz baixou, carregada de afeto e preocupação. — Fen Fang e Yaling ainda não compreendem as forças que se movem contra nós, não podemos permitir que sejam expostas a essa tempestade.
FengXian suavizou o semblante, mas sua expressão manteve-se grave.
— Elas permanecerão sob minha guarda direta, devem continuar suas rotinas habituais caminhando com você ou com as servas, pois a normalidade é nossa melhor máscara contra a inquietação alheia, manterão a inocência de suas vidas enquanto o véu da proteção se mantém firme sobre elas.
Maomao abriu os olhos e falou com convicção renovada:
— Vou fortalecer minha mente para ser invisível em meio aos olhares vigilantes, endurecer meu espírito para resistir ao assalto das sombras. Se necessário, ocultarei até mesmo de mim mesma as intenções que guardo, para que o inimigo jamais as percebam
FengXian avançou um passo, apoiando uma mão sobre o ombro da filha, um gesto tanto de força quanto de ternura.
— Essa é a essência da verdadeira resistência. — afirmou solenemente — Não permitiremos que destruam a flor antes que ela floresça em sua plenitude.
O silêncio voltou a se instalar, profundo e carregado, enquanto o vento lá fora movia as folhas das orquídeas negras, sussurrando histórias de batalhas ainda por vir. Naquele instante, não era apenas um lar que se protegia, mas uma esperança delicada que dependia da astúcia, da paciência e da coragem de duas mulheres unidas pelo sangue e pela luta.
[. . .]
A manhã descia lenta sobre os jardins do palácio, tingindo as folhas com um dourado molhado. O orvalho ainda pesava nas pétalas; o ar trazia o aroma das glicínias misturado ao leve perfume do chá que alguém adagara cedo. Cada passo de Maomao sobre as pedras deixava uma impressão discreta, um sinal pequeno demais para ser notado, mas suficiente para que ela sentisse o mundo se mover a seu redor.
Ela caminhava com as mãos atrás das costas, os dedos cerrados num hábito antigo, dentro da manga, dobrado com precisão militar, repousava o bilhete daquela noite: A flor murchará antes de florescer. A frase voltava à tona com a insistência de uma música fora de tom, no palácio, as palavras raramente eram descuidadas; eram instrumentos e quando eram lâminas, cortavam sem avisar.
Lá embaixo, no gramado, as vozes das crianças quebravam a tensão — risadas claras, soltas, despreocupadas. Feng Fang e Yaling corriam atrás de pétalas que bailavam no ar. Duas servas as observavam, mãos ocupadas com tarefas pequenas, rostos que treinavam a neutralidade necessária a quem vive entre disputas antigas. A cena, à primeira vista, era um recorte de inocência; Maomao a observou com os olhos de quem sabe que os recortes se desfazem.
Seguiu pela alameda de salgueiros até o caramanchão das glicínias, onde Lahan esperava. A postura dele era impecável — o traje militar perfeitamente ajustado, o sorriso que já vira em mil retratos de cerimônia. O sol atravessava a trepadeira e desenhava padrões sobre o rosto; era como se a luz tentasse traduzir o que havia de íntimo entre eles, e falhasse.
— Já está vendendo meu nome antes mesmo de eu assinar com sangue? — ela provocou, a ironia assentindo nos lábios, firme como um aviso.
Lahan se virou com a calma de quem domina cena e público.
— Estou garantindo que ninguém tenha coragem de envenenar seu vinho. Uma irmã influente é uma irmã viva. — Inclinou-se, curto. — Você sabe que estou do seu lado.
— Influente... ou controlada. — Maomao arqueou a sobrancelha, não era apenas uma réplica; era uma hipótese, ela testava os limites.
O sorriso dele afinou por um fio.
— Aqui dentro, controle e influência andam de mãos dadas, não confunda.
O silêncio que se abriu foi denso, entre as palavras não ditas havia pactos antigos, promessas que às vezes soavam como correntes. Ela ponderou por um instante, aquele mesmo Lahan que, quando criança, protestara numa briga por um pedaço de fruta, agora falava em termos de dinastia. As pessoas mudavam de armadura com o tempo; alguns a transformavam em prisão.
Um som sobre a pedra interrompeu o compasso: Mestre Gaoshun apareceu com um pacote de seda. A reverência do homem, a maneira como depositou o embrulho nas mãos dela, o gesto contido — tudo seguia a coreografia do serviço fiel.
— Senhorita, disseram que era para si, sem remetente. — sua voz era baixa, e havia um cuidado translúcido em cada sílaba.
Maomao abriu o pacote ali mesmo, com dedos medidos.
Dentro, frascos pequenos, tampas trabalhadas, uma fita de papel com um símbolo simples, uma orquídea estilizada. Ao levantar um dos frascos, sentiu primeiro a doçura; depois, uma nota amarga que se insinuou e permaneceu, suficiente para alertar.
— Interessante — murmurou, os olhos dela cruzaram com os de Lahan.
Havia uma corrente curta de partilha ali: ambos sabiam ler sinais.
— Devo informar a guarda? — Lahan perguntou sem hesitar.
— Não — disse Maomao, calma como se decidisse sobre uma peça de xadrez. — É... apenas um presente curioso.
Gaoshun fez uma breve inclinação, Lahan ficou, observando, uma sombra de algo que podia ser proteção ou vigilância. Eles sabiam que anunciar medo era ceder muniçã
No caminho de volta aos aposentos, a cabeça de Maomao trabalhou como rodas de moinho: devagar, incansavelmente. Ela separou os frascos sobre a mesa, as tampas tilintando como pequenas campainhas que ninguém mais escutava. A doçura disfarçava um amargor intencional — não um veneno rápido, talvez; um aviso, sim. Alguém desejava testá-la, tocar sua pele com o fio da ameaça para ver se tremia.
Lahan entrou atrás dela, movendo-se com a calma de quem não precisava pedir permissão, mas observava a irmã trabalhar lentamente, aquele era seu mundo.
— Reconhece o cheiro? — perguntou, entregando a lâmina para Lahan.
Ele inspirou superficialmente e franziu levemente o nariz.
— Amêndoas amargas, baunilha para mascarar. — comentou observando a irmã.
— Arsênico. — concluiu Maomao, sem emoção. — Em dosagem lenta, quantidade pequena o suficiente para matar em dias, provocaria náuseas, feridas, queda de cabelo e falência dos órgãos.
— Realmente querem te matar de dentro para fora irmãzinha.
Maomao o encarou séria arqueando a sobrancelha balbuciando algo como "Isso, não está me ajudando."
— Quem quer que tenha enviado isso conhece você minimamente, sabe que abriria e analisaria o presente. Isso não é apenas uma tentativa de assassinato. E é uma mensagem é clara — completou Lahan. — "Podemos alcançá-la onde quiser que esteja."
Maomao manteve o olhar fixo no líquido.
— Ou querem que eu me sinta cercada, para cometer um erro.
Maomao suspirou levemente, mas o som carregava mais cálculo que preocupação.
— No palácio, o medo é tão útil quanto a lâmina, às vezes, mais.
Lahan cruzou os braços, observando a irmã.
— Vai devolver o presente?
Ela ergueu o frasco e girou-o entre os dedos, como se fosse apenas um perfume.
— Ainda não. Primeiro, quero saber a pureza do veneno, e de onde veio, o aroma das amêndoas não é qualquer um... é do tipo extraído de sementes importadas. Isso reduz o número de fornecedores.
Lahan assentiu, os olhos estreitos.
— E se conseguir rastrear a origem...
— Então saberei quem realmente quer que a flor murche — concluiu Maomao, guardando o frasco. — E, quando souber, verei se é melhor cortar o caule... ou arrancar a raiz inteira.
Maomao retirou de uma prateleira um conjunto de pequenas tigelas de porcelana, um pilão de pedra e uma pedra de toque escurecida pelo uso constante. Movia-se com precisão contida, como alguém acostumada a trabalhar sob silêncio e pressão, acendeu uma lamparina de óleo, o pavio estalando antes de estabilizar a chama, e colocou sobre ela um prato raso de cobre. Com cuidado, despejou no metal um pouco da substância retirada de um frasco de vidro fosco, cujo odor discreto lembrava amêndoas velhas.
O som leve de passos quase não a distraiu, mas ela percebeu a sombra se projetando pelo canto. FengXian entrou no cômodo em silêncio, a postura ereta e os longos cabelos verdes caindo como uma cortina até a cintura. Seus olhos, frios e atentos, primeiro percorreram o ambiente e depois repousaram na filha mais velha. Sentou-se junto às outras crianças, mas não falou, apenas observou, como se cada movimento de Maomao fosse uma peça num tabuleiro de estratégia.
— Vai analisar agora? — perguntou Lahan, quebrando o silêncio, sentando-se ao lado da irmã com a curiosidade de quem assiste a uma partida decisiva.
— Quanto antes eu souber, menos tempo o inimigo terá para se esconder — respondeu Maomao, mexendo lentamente o líquido com um pincel fino, sem desviar o olhar da reação.
Do pote lacrado ao seu lado, retirou uma pitada de pó amarelado, casca de noz torrada, moída até virar pó, e a deixou cair sobre a mistura. Ao contato, o líquido mudou de cor, escurecendo até atingir um tom acinzentado. Ela inclinou o prato, analisando o brilho da superfície, onde uma película esbranquiçada começava a se formar.
FengXian estreitou os olhos, reconhecendo o método, a voz baixa, quase inaudível, escapou num tom que era mais constatação do que pergunta:
— Casca de noz e vinagre... reação para amêndoas amargas.
Maomao apenas assentiu, absorvendo cada detalhe do que via, havia, porém, algo mais. Franziu o cenho, como quem fareja um aroma fugidio, abriu uma gaveta e retirou uma pequena tira de seda branca, mergulhando-a na mistura. Ao puxá-la, surgiram manchas azuladas — tão sutis que apenas olhos treinados poderiam identificar.
— Azul-cobalto — murmurou Maomao, mais para si do que para os outros.
O olhar de FengXian se fixou na filha, mas havia um peso silencioso naquele momento.
— Hokuaren... — completou, quase sem emoção com um certo pesar na voz. — Pigmento usado para tingir tecidos caros... e para conservar certos venenos em pó.
No silêncio, sua mente costurava rapidamente as peças — Hokuaren, o raro pigmento azul-cobalto, e a antiga vida de sua mãe como cortesã naquele reino distante. Recordou-se das poucas histórias que ouvira, sempre contadas comedidamente, como se cada palavra fosse escolhida para não ferir cicatrizes antigas.
— Mãe... o que exatamente aconteceu lá, quando você vivia como cortesã?
O olhar de FengXian por um instante, se perdeu para além do cômodo.
— Fui enviada como presente diplomático ao País de Hokuaren, lá, me ofereceram ao filho do líder local... e eu recusei. Pouco depois, fui devolvida a Li, para a Casa Verdete. — uma pausa breve. — Nunca mais ouvi falar daquela família, soube apenas que foram exterminados, sem deixar sobreviventes.
Maomao franziu o cenho, seus olhos faiscando à luz bruxuleante da lamparina, o ar parecia pesar mais naquele instante, carregado de significado.
— Nem todos.
Lahan ergueu o olhar, sério, afastando qualquer traço de brincadeira ou dúvida.
— O que quer dizer?
Ela inclinou o corpo para frente, falando com a voz baixa, quase sussurrada, como se o próprio ar pudesse ouvir e trair seus segredos.
— Esse azul-cobalto é raro, muito raro e há uma concubina de nível médio no harém que usa exatamente esse pigmento em seus tecidos e perfumes. Uma marca que não passa despercebida. Ela foi trazida para o palácio pelo próprio tio, um oficial respeitado da guarda real.
Maomao voltou os olhos para a mãe, que permanecia imóvel, os dedos entrelaçados firmemente sobre o colo, o rosto calmo, porém rígido como uma estátua. A tensão no ambiente parecia fazer cada segundo se arrastar.
— Essa mulher... — continuou Maomao, a voz firme, mas carregada de uma tristeza antiga — é da família do homem que a senhora rejeitou.
FengXian não desviou o olhar, e uma sombra sutil cruzou seu rosto antes que dissesse, quase em um fio de voz:
— Então...
— Então, mãe, — Maomao finalizou, a determinação crescendo em cada palavra — ela está usando a minha morte como vingança pela ruína da família.
Lahan, sentado ao lado, recostou-se lentamente na cadeira, a expressão tensa e pensativa.
— E você pretende...?
Um leve sorriso, quase um desafio silencioso, se formou nos lábios de Maomao.
— Dar a ela exatamente o que quer ver... — respondeu, com os olhos brilhando de astúcia — até que ela mesma se revele.
FengXian finalmente falou, com a voz firme e grave que impunha respeito:
— Sabemos com quem estamos lidando. O jogo é perigoso, mas a paciência e a inteligência são nossas maiores armas, não podemos dar brechas.
Maomao assentiu, sentindo o peso do legado da mãe, da força que corria em suas veias, enquanto Lahan apertava a mão da irmã, em silêncio, como um pacto silencioso entre eles.
[. . .]
Alguns dias depois a notícia correu pelos corredores: a princesa Maomao havia caído repentinamente doente. A cena foi orquestrada com perfeição, uma manhã tranquila, a aplicação dos "cosméticos" diante dos olhos atentos de várias testemunhas, a aplicação dos "cosméticos" aconteceu sem levantar suspeitas — um gesto delicado, quase habitual, que nada denunciava.
Poucos minutos depois, o corpo de Maomao desabou com um baque surdo contra as pedras ásperas do pátio interno, seu vestido de seda azul-celeste se espalhando como as pétalas de uma flor murcha. Seu rosto, normalmente tão vivo e expressivo, estava agora de uma palidez cadavérica, contrastando brutalmente com o vermelho-rubi dos paralelepípedos lavados pela chuva recente. Seus dedos finos se contraíram por um último instante antes de ficarem completamente imóveis, as unhas pintadas com henna arranhando sem força a superfície úmida das pedras.
— AJUDEM! — o grito agudo de Feng Fang cortou o ar como uma adaga, seguido imediatamente pelo chamado desesperado de Yaling. — A PRINCESA KAN ESTÁ MORRENDO.
O pátio, antes imerso nos murmúrios cotidianos do harém, transformou-se num pandemônio. Servas de rostos pálidos corriam de um lado para o outro, suas vestes simples esvoaçando como asas de pássaros assustados. Algumas cobriam a boca com as mãos, outras soluçavam abertamente enquanto se aglomeravam em torno do corpo frágil de Maomao.
Uma delas, mais corajosa, ajoelhou-se e tentou erguer a princesa, mas as pernas da jovem simplesmente dobraram como um boneco de pano, sua cabeça caindo para trás de maneira alarmante, revelando a linha delicada de seu pescoço onde as veias azuladas pareciam pulsar fracamente sob a pele translúcida.
Entre o grupo de concubinas que observavam a cena de uma distância segura, uma figura destacou-se. Vestindo um qipao de seda azul-marinho bordado com fios de prata que cintilavam a cada movimento, a jovem concubina avançou com passos decididos. Seu perfume — uma mistura intoxicante de baunilha e amêndoas e algo mais denso, mais doce, quase nauseante — impregnou o ar à sua passagem, fazendo com que algumas das servas mais próximas tossissem discretamente. Era o mesmo aroma que Maomao havia encontrado dias antes, escondido entre os frascos de cosméticos da corte imperial.
— Deixem-me ver! — sua voz era melíflua, mas havia uma urgência estranha em suas palavras.
Ajoelhando-se ao lado do corpo inerte, suas mãos cuidadosamente manicuradas pairaram sobre o rosto de Maomao como abutres hesitantes. Seus olhos felinos, normalmente tão doces e submissos, brilhavam com uma luz estranha, uma mistura de curiosidade mórbida e satisfação mal contida que fez até mesmo as servas mais experientes recuarem instintivamente.
O silêncio tenso foi quebrado pelo estrondo repentino da porta lateral sendo arrombada. Jinshi irrompeu no pátio como uma tempestade humana, seu rosto normalmente tão controlado agora uma máscara de fúria gelada. Seus olhos violetas, geralmente tão calculistas, queimavam com uma intensidade quase sobrenatural enquanto varriam a cena, detendo-se na figura da concubina ajoelhada.
— O que aconteceu aqui? — sua voz era baixa, quase um sussurro, mas cada palavra soou como o tinir de uma espada sendo desembainhada.
O ar ao seu redor parecia vibrar com a raiva contida, fazendo com que até mesmo os guardas mais endurecidos que o acompanhavam ficassem tensos.
A concubina congelou, suas mãos ainda pairando sobre Maomao.
Por um breve instante, seu rosto cuidadosamente composto vacilou, revelando um flash de pânico genuíno antes de se recompor numa máscara de indignação ofendida, mas antes que pudesse articular qualquer resposta, um coro de vozes agudas a interrompeu.
As irmãs menores de Maomao, até então escondidas entre as sombras das colunas do pátio, avançaram como um pequeno exército. Suas faces infantis estavam vermelhas de raiva, os olhos brilhando com lágrimas não derramadas.
— Por que você está tão interessada na saúde da princesa? — Fen Fang perguntou, sua voz fina tremendo não de medo, mas de acusação.
— Esse perfume... — Yaling continuou, enrugando o nariz com desdém — não é o mesmo que ela recusou na semana passada? Lembro-me bem como ela disse que o cheiro era enjoativo.
A concubina estremeceu visivelmente.
Seus dedos longos e brancos se contorceram no tecido luxuoso de seu vestido, as unhas pintadas de vermelho tão semelhantes ao sangue que manchava as pedras sob Maomao, deixando pequenas marcas na seda preciosa. Seus lábios finos se abriram para uma réplica cortante, mas foram interrompidos por um novo desenvolvimento.
FengXian emergiu das sombras como um fantasma vingativo, seus passos eram silenciosos, mas cada um parecia ressoar com a gravidade de um martelo batendo em uma bigorna. Em suas mãos trêmulas, ela segurava um frasco de vidro vazio, o recipiente de um cosmético caro, seu interior ainda exalando um resíduo do mesmo perfume doce e sufocante que agora impregnavam o pátio.
— Foi você! — sua voz, normalmente tão suave e melodiosa, agora era um rugido gutural que fez até mesmo Jinshi erguer as sobrancelhas. Ela ergueu o frasco como se fosse uma arma, a luz do sol da tarde refletindo no vidro como um farol de acusação. — Envenenou minha filha aos poucos com seu presente envenenado! Dia após dia, gota após gota, até que seu corpo não pôde mais resistir!
A expressão da concubina se transformou tão rapidamente que foi como assistir a uma máscara sendo arrancada. Seus traços delicados se contorceram numa máscara de ódio puro, seus olhos estreitando-se até ficarem como fendas negras e perigosas. Quando ela abriu a boca para gritar, sua voz não era mais a de uma cortesã educada, mas o uivo primal de uma fera encurralada.
— COMO OUSA PROSTITUTA?! — seu grito ecoou pelas paredes do pátio, fazendo com que os pássaros nos jardins próximos levantassem voo em pânico. Ela avançou como um tigre, suas mãos curvadas em garras, pronta para arrancar os olhos de FengXian.
Mas as irmãs de Maomao foram mais rápidas, como pequenos soldados leais, elas se colocaram entre a concubina e FengXian, seus corpos pequenos formando uma barreira viva. Ao mesmo tempo, os guardas de Jinshi agarraram a concubina pelos braços, suas mãos calejadas fechando-se como grilhões de ferro em torno de seus pulsos delicados.
Ela lutou como uma louca, seu corpo esguio contorcendo-se com uma força inesperada. Seu penteado elaborado desmoronou, enviando alfinetes de jade e prata tilintando contra as pedras. Seu perfume, antes tão refinado, agora se misturava com o odor acre do suor e do medo. Seus olhos, tão bonitos momentos antes, agora eram apenas poços negros de ódio impotente.
O salão do harém estava mergulhado numa quietude quase opressiva, as paredes antigas ressoavam os passos contidos dos guardas, e um silêncio tenso pairava no ar, interrompido apenas pelo som abafado da respiração pesada das mulheres ali presentes.
Após uma longa resistência, a concubina ergueu finalmente o olhar, e foi como se toda a fúria acumulada dentro dela explodisse em um fogo frio. Os olhos da mulher, antes temerosos, agora brilhavam com um ódio cravado, fixando-se em FengXian como uma lâmina afiada que buscava perfurar.
Suas mãos trêmulas mal conseguiam segurar a raiva que ameaçava romper os lábios, a boca se abriu lentamente, como se procurasse encontrar as palavras certas, afiadas como punhais, para ferir a mulher à sua frente. Mas antes que pudesse articular seu veneno verbal, FengXian avançou com uma elegância fria e implacável.
Vestida com seu hanfu vermelho vivo — um vermelho intenso como sangue fresco que parecia arder sob as luzes baixas — FengXian cortou o espaço entre os guardas com a firmeza de quem domina não apenas o corpo, mas também a cena. Seus passos eram compassados, cada movimento medido, um contraste brutal com a tempestade emocional que agitava a concubina.
E então, com a precisão de um golpe certeiro, a mão de FengXian subiu em um movimento rápido e definitivo. O tapa estalou no rosto da mulher, ecoando como um trovão abafado dentro do salão, o impacto fez a cabeça da concubina virar abruptamente, o rosto quase se deformando com a força da agressão.
Por um instante, a mulher pareceu congelar, o choque visível em seus olhos dilatados, o corpo tenso, mas aquele instante de paralisia foi logo substituído por uma chama mais feroz, o olhar flamejou ainda mais intensamente, enquanto ela se levantava com um ímpeto inesperado, a voz rompendo o silêncio como uma lâmina afiada.
— Eu estava a um passo de conseguir o que queria! — rugiu, a voz embargada pela mistura de histeria e desespero. — Antes da chegada dessa garota, eu teria conquistado o príncipe! Essa morte... seria justiça pela minha família!
As palavras tremiam com uma intensidade doentia, carregadas de uma dor que parecia ter se cristalizado em vingança. Atrás dela, uma figura surgiu quase como uma sombra, seu tio, a expressão dura e amarga.
— Eles nos destruíram — disse ele, a voz grave, cheia de rancor corrosivo. — Matar a filha de FengXian era apenas devolver a dor que ela nos causou.
Jinshi permaneceu imóvel, o olhar frio e firme, penetrante como uma lâmina, não desviou os olhos nem por um instante.
— E por isso escolheram envenenar uma princesa? — sua pergunta soou como um golpe seco, desafiador.
A concubina evitou o olhar de Jinshi, sua respiração acelerada e irregular, enquanto fitava FengXian com um misto de desespero e raiva contida.
— Como você descobriu que eu havia enviado os cosméticos? — sibilou, a voz carregada de descrença e desafio.
Foi quando Maomao, até então pálida e quase invisível no canto da sala, abriu os olhos lentamente. O rosto dela ainda carregava a palidez da fraqueza, mas um sorriso frio, quase cruel, se desenhou em seus lábios. Aquele sorriso não prometia misericórdia — era um presságio, uma lâmina afiada.
— Simples. — disse Maomao, a voz soando estranhamente calma, mas com uma ponta de insanidade sutil que gelava o sangue. — O composto no cosmético só existe em Hokuaren. E, por coincidência, o tom de azul que a senhorita usa diariamente é azul-cobalto — exatamente o mesmo que encontrei no recipiente.
O salão mergulhou em um silêncio sepulcral. A concubina ficou completamente sem palavras, os olhos arregalados e incrédulos. Como poderia ter imaginado que a princesa fosse tão astuta, tão longe de ser a ingênua que aparentava?
— VOCÊ É UM MONSTRO! — a mulher gritou, a voz carregada de uma raiva amarga e desesperada, para que todas as mulheres ao redor ouvissem, como uma sentença final que reverberava contra as paredes antigas.
Maomao não se deixou abalar, uma risada gelada, cortante, quase que maníaca, escapou de seus lábios. Ela virou-se para a concubina, aproximou-se lentamente, seu corpo se curvando para ficar na altura da mulher que agora estava sendo imobilizada pelos guardas.
Com mãos firmes, agarrou o queixo da concubina, forçando-a a encarar o próprio reflexo de vergonha e derrota.
E então, cuspindo com desprezo no rosto da mulher, disse com um sorriso cruel e desdenhoso:
— Tente se olhar no espelho.
Maomao levantou-se lentamente, com a dignidade de quem acaba de vencer uma batalha crucial. O salão inteiro assistia, atônito e em silêncio, impressionado e até mesmo temeroso diante da audácia da princesa e da frieza daquele momento.
Jinshi, agora mais próximo, tocou delicadamente o rosto de Maomao, buscando sinais de dor ou ferimentos que contradissessem a força que ela demonstrava.
— Você está bem? — perguntou, a voz cheia de preocupação sincera. — Vou mandar levá-la à enfermaria.
Maomao soltou uma risada suave, quase zombeteira, seu olhar brilhando com uma confiança feroz.
— Fique tranquilo, príncipe, sou médica. — brincou com ele — E isso no meu rosto? Apenas maquiagem.
Jinshi a abraçou fortemente em um gesto de desespero e alívio, apesar do gênio difícil de Maomao, ele não poderia negar que ela despertava algo nele que nem ele sabia explicar e que se a perdesse, isso sim seria sua ruína e perceber o quão inteligente ela é, armando tudo para descobrir quem tinha a ameaçado, foi de longe a coisa mais genial e intrigante que ele já tinha visto na vida.
Quando Maomao e sua família finalmente deixaram o harém das concubinas de nível médio, a atmosfera no palácio tornou-se ainda mais sombria, carregada da promessa inexorável de justiça.
Com a ordem pessoal do imperador, o príncipe Jinshi decretou a sentença de morte para a concubina e para o oficial da guarda imperial cúmplice no envenenamento. Uma morte rápida e digna — mas para Maomao, não suficiente.
Ela fez um pedido gélido, uma demanda que congelou a alma de todos que a ouviram.
— Quero assistir à decapitação da concubina, quero que a última visão que ela tenha seja o meu rosto, — disse com um olhar frio, quase saboreando a dor alheia — saboreando seu estado vulnerável e assistindo sua morte.
A justiça naquele palácio não tinha espaço para piedade.
[. . .]
Na manhã seguinte
O sol mal começava a se erguer no horizonte, tingindo o céu com tons pálidos de laranja e cinza, quando a comitiva chegou ao pátio externo do palácio, um espaço amplo, cercado por muralhas altas e austeras, onde a justiça imperial era impiedosamente executada. O chão de pedra estava frio sob os pés dos presentes, e o vento cortante fazia a túnica de Jinshi ondular, como se o próprio ar conspirasse para intensificar o momento sombrio.
Maomao estava ao lado dele, o semblante firme e imperturbável, apesar da palidez que ainda teimava em esconder a fragilidade que só ele conhecia. O príncipe sentiu uma pontada aguda no peito ao olhar para ela, uma mistura de alívio e medo — o medo cruel de quase tê-la perdido para o veneno traiçoeiro.
Enquanto a concubina era trazida ao centro do pátio, imobilizada pelos guardas, o rosto dela refletia uma mistura aterradora de medo, ódio e derrota. Seus olhos, antes tão arrogantes, agora buscavam desesperadamente um último fio de dignidade, talvez um vislumbre de clemência, mas sabiam que ali, naquele instante, não haveria misericórdia.
Jinshi não conseguia desviar o olhar da princesa, ele pensava no quanto sua frágil figura, tão cheia de bravura, havia sido ameaçada pela sombra da morte. A imagem dela deitada, pálida e quase imóvel, ainda queimava em sua mente. "Eu quase a perdi... quase a perdi..." — o pensamento martelava como um tambor impiedoso.
Sua mão involuntariamente se apertou num punho, um gesto imperceptível para todos, mas um grito silencioso dentro dele. A responsabilidade que carregava como príncipe herdeiro — e como homem, pesava como uma armadura pesada sobre seus ombros. Não podia permitir que ninguém machucasse Maomao. Ela era mais que uma princesa, mais que uma médica. Ela era o seu mundo agora.
O carrasco aproximou-se, suas vestes negras balançando como uma sombra viva, a lâmina reluzindo à luz fraca do amanhecer. A concubina, agora rendida ao destino, lançou um último olhar para Maomao — um olhar carregado de rancor e derrotas acumuladas.
Maomao permaneceu imóvel, seu olhar fixo e frio, como uma estátua de mármore, saboreando a sensação de poder naquela fração de segundos. Jinshi sentiu seu coração acelerar, não pela violência iminente, mas pelo peso da justiça sendo cumprida.
A lâmina caiu com um estalo seco, um som que ecoou pelo pátio e que parecia dividir o tempo em antes e depois, a cabeça rolou, seu olhar vazio congelado na última visão de Maomao.
Por um instante, o silêncio tomou conta do lugar, como se o mundo tivesse parado para absorver o impacto da morte.
Jinshi então olhou para Maomao, que, apesar de tudo, mantinha a postura de quem venceu uma guerra silenciosa. Ele percebeu ali a força imensa que aquela mulher possuía, uma força que o desarmava e o encantava ao mesmo tempo.
Ele sentiu uma onda de proteção crescer dentro dele, um juramento silencioso de nunca mais permitir que sombras ameaçassem a vida dela.
E enquanto os primeiros raios do sol tocavam o rosto dela, Jinshi sabia que aquela manhã marcava o início de algo irrevogável, uma ligação entre eles, forjada no fogo da traição, da dor e da sobrevivência.
[. . .]
O Pavilhão da Lua, envolto em silêncio reverente, exalava um perfume suave de ameixeiras em flor. As lanternas de papel dourado balançavam levemente, projetando sombras dançantes sobre os rostos pensativos da realeza reunida. O incidente do envenenamento ainda pesava no ar como uma névoa espessa, embora ninguém ousasse mencioná-lo diretamente — apenas através de olhares significativos e pausas calculadas nas conversas.
Entre os presentes, o príncipe Jiang permanecia à margem, seus dedos longos tamborilando contra o braço de sua cadeira. Seus olhos vermelhos, normalmente tão expressivos, estavam opacos como vidro polido enquanto observava a cena à sua frente, sua irmã Jin-Ye, sempre tão eloquente, quebrava o silêncio com voz melodiosa:
— A maneira como Maomao desvendou o esquema... foi como assistir a um jogo de xadrez divino. Cada movimento seu foi preciso como o corte de um cirurgião. — seus lábios se curvaram em admiração genuína, os braceletes de jade tilintando suavemente quando gesticulava.
O príncipe Yao Jun, normalmente reservado, inclinou-se para frente, seus ombros largos projetando uma sombra alongada no chão de mármore:
— E pensar que ela aguentou o veneno por semanas... Essa resistência não é humana, é a força de um dragão adormecido. — seus olhos estreitos brilhavam com algo entre respeito e temor.
— Ela usava o antídoto para que o organismo não absorvesse, mas foi inteligente em fazer uma maquiagem tão realista a ponto de enganar a todos. — pontuou Jinshi, elogiando a estratégia da noiva.
Jiang sentiu um nó se formar em seu estômago, seus próprios lábios se moveram quase involuntariamente:
— Sim, que sorte ela teve... De ter tantos olhos vigilantes protegendo-a. — sua voz soou mais ácida do que pretendia, e ele viu as sobrancelhas de Jin-Ye se erguerem levemente.
Foi então que as portas de ébano se abriram com um ruído suave, mas inconfundível.
A Imperatriz Viúva Anshi adentrou o pavilhão com a graça de um tigre ancião, cada passo calculado, cada movimento carregado de séculos de autoridade. Seu vestido de brocado roxo parecia absorver toda a luz do ambiente, ofuscando até as lanternas.
O olhar de Anshi varreu o salão como uma lâmina afiada, parando primeiro em Jinshi, seus olhos amendoados, normalmente tão impenetráveis, suavizaram-se perceptivelmente:
— Meu querido príncipe, — sua voz era doce — sua escolha em Lady Kan como noiva prova mais uma vez seu julgamento impecável. Uma mulher com a coragem do dragão e a astúcia da serpente. Ela será bem recebida em meus aposentos pessoais, por favor a informe com antecedência assim que possível.
Sem esperar resposta, ela estendeu as mãos, cobertas por anéis de jade que testemunhavam décadas de poder, e apertou os ombros de Jinshi com afeto genuíno. O contraste foi brutal quando seu olhar se voltou para Jiang. Seus olhos escureceram como nuvens antes da tempestade, suas feições endurecendo em uma máscara de gelo.
— Príncipe Jiang. — seu cumprimento foi tão frio que poderia ter congelado o chá nos copos próximos. A inclinação de cabeça foi tão breve que beirava a insultuosa.
Jiang sentiu seu coração afundar enquanto assistia a avó Anshi abraçar afetuosamente Jin-Ye, acariciar o rosto de Lingli como se fosse uma filha perdida há muito tempo, e até trocar algumas palavras calorosas com Yao Jun. Quando chegou sua vez, ela simplesmente... passou. Como se ele fosse um móvel, uma coluna de mármore sem importância.
Enquanto a Imperatriz Viúva partia, deixando para trás um rastro de perfume de âmbar e poder, Jiang ficou parado, seus punhos cerrados escondidos nas mangas largas de seu hanfu. Os pensamentos giravam em sua mente como folhas ao vento:
"Por quê? O que eu fiz para merecer esse desprezo? Será apenas por eu não ser o neto favorito? Ou há algo mais... algo que nunca me contaram?"
Seus olhos se fixaram em Jinshi, agora cercado pelos irmãos, a garganta apertou quando lembrou como, anos atrás, quando ambos eram crianças, Anshi presenteou Jinshi com um pingente de dragão em jade — o mesmo que ele usava até hoje — enquanto a ele dera apenas um aceno distante, mesmo eles sendo irmãos gêmeos.
No fundo do pavilhão, longe do burburinho e dos olhares atentos, Jiang permitiu-se finalmente um momento de silêncio. Fechou os olhos, sentiu o ar pesado do ambiente preencher seus pulmões e, pela primeira vez naquele dia, respirou fundo, tentando esvaziar a mente.
Quando os abriu novamente, não havia mais vestígios da mágoa que o consumia — havia, sim, uma centelha fria e obstinada no seu olhar. Se Anshi o via como indigno, ele se recusava a aceitar esse julgamento silencioso e cruel. Se o palácio inteiro se curvava a Jinshi e sua noiva, ele encontraria um caminho próprio para ascender, mesmo que precisasse forjar sua força a partir da própria sombra.
Foi então que Jinshi se aproximou, sem alarde, puxou Jiang para um canto mais reservado da casa, onde a luz era tênue e a presença de ambos podia se revelar sem máscaras.
— Eu sei como você se sente — disse Jinshi, a voz baixa, firme, porém carregada de calor. — Com as visitas da vovó... Não é fácil. Mas eu estou aqui, meu irmão.
Jiang sempre mantivera uma pose forte, uma armadura invisível que lhe dizia que não precisava se importar com o que diziam ou pensavam dele, mas naquele momento, no abraço sincero do irmão, tudo aquilo desabou. Lágrimas quentes escorreram silenciosas, e ele voltou a ser aquele menino vulnerável, escondido atrás de fachadas.
— Parece que ela gosta de todo mundo, menos de mim — confessou, a voz trêmula. — Ela me despreza de um jeito que eu nunca consegui entender, Zuigetsu.
Jinshi apertou-o contra si, como quem tenta transmitir forças que palavras não alcançam.
— Nem o papai entende a vovó, que é a mãe dele. Quem dirá nós? Ela é uma mulher complexa, séria, com motivos que talvez nunca nos revele. Não vale a pena se cobrar tanto por isso, você não precisa conquistar o amor dela, nem de ninguém.
Jiang limpou as lágrimas, o coração ainda pesado, marcado pelas constantes rejeições que Anshi lhe impusera desde a infância — um desprezo cruel demais para uma criança que só queria aceitação.
— Aliás, tenho um pedido para você — Jinshi mudou o tom, sorrindo levemente para quebrar a tensão que ainda pairava entre eles.
— O que é agora? — Jiang perguntou, voltando a sua voz normal, a habitual ironia retornando para afastar o desconforto.
— Amanhã tenho compromissos pela manhã e não poderei acompanhar Lady Kan até o Pavilhão da Lua. Quero que você vá com Gaoshun para ficar de olho nas mudanças que ela desejar: anexos, pinturas, materiais... Você tem minha autorização total para garantir que tudo esteja perfeito para ela. — o sorriso de Jinshi crescia, a fala carregada de um carinho que deixava Jiang incomodado.
"O que ela tinha de tão especial para Jinshi ficar assim? Só pode ser feitiçaria", pensou, lançando um olhar de desdém para o irmão. "Ele nunca foi assim, nem mesmo no ritual imperial quando completamos 16 anos."
— Quero que a deixe confortável, ela tem carta branca para tudo — Jinshi completou, pousando a mão sobre o ombro de Jiang.
— Espero que ela não faça você perder a cabeça — Jiang respondeu, meio em tom de brincadeira, meio em provocação.
— Acho que isso eu já perdi há muito tempo — riu Jinshi. — Vai ser interessante você conhecê-la melhor com uma conversa, vocês têm personalidades parecidas, eu diria.
— Mas jamais assistiria a uma decapitação fria e calculada como a dela — Jiang retrucou, o tom irônico.
— Exato, você faria algo pior — Jinshi riu mais alto, e o som parecia afastar, mesmo que por alguns segundos, o peso que carregavam.
Ambos riram, uma risada compartilhada que trazia o conforto silencioso da cumplicidade. Era engraçado como os gêmeos tinham um laço único — apesar de todas as diferenças, eles entendiam um ao outro no mais profundo silêncio.
Jiang era grato por Jinshi ser o herdeiro do trono, por ele ser aquele que enfrentava o mundo com uma força que ele próprio ainda buscava. Jinshi era o melhor irmão que poderia ter — e, acima de tudo, a única pessoa em quem confiava verdadeiramente. Por isso, sabia que dele poderia sempre esperar lealdade eterna ao irmão.
Chapter 8: O Gosto da Desavença
Notes:
Esse capítulo me deu depressão, risadas e confesso que senti falta de mais interações dos JinMao, mas por enquanto é o que temos e a recomendação de música que casa com o capítulo é 'Like Him" e "Crazy Girls" :))))
com isso boa leitura, Jiang é o meu protegido e é isso
Chapter Text
Quando Jiang despertou naquela manhã, o ar parecia mais denso, como se o próprio palácio o pressionasse contra a cama, cada respiração era pesada, cada gesto, lento. Carregava, naquele dia, responsabilidades que pertenciam ao irmão, não era a primeira vez e, em circunstâncias normais, não o incomodaria. Ele amava ajudar Jinshi — talvez fosse a única forma que conhecia de provar que servia para algo, mas, naquela manhã em particular, queria apenas desaparecer.
Os servos se aproximaram com a precisão silenciosa de quem já sabia seus movimentos. Um ajudou-o a despir-se, outro cuidou de seu banho. As servas que trançavam e penteavam seus cabelos evitavam olhá-lo diretamente; e quando o faziam, havia algo no fundo dos olhos delas... um resquício de medo, ou talvez de repulsa. Jiang não queria compreender e, mais ainda, não queria sentir. A verdade, no entanto, martelava dentro dele: para muitos, ele sempre seria a sombra indesejada daquela família.
Terminou de se vestir, a seda preta repousava sobre seus ombros como um manto de aço, pesada e ajustada. Diante do espelho, demorou-se mais do que deveria, tocando o próprio rosto como se tentasse decifrar um estranho.
Os olhos vermelhos, os cabelos pretos, a pele pálida, Jiang se parecia com ele, e odiava ter aquela sensação mesmo sem o ter conhecido, seria a sua aparência, por si só, desprezível o bastante para manchar qualquer tentativa de afeto?
— Vossa Alteza... está pronto para partirmos ao Pavilhão das Orquídeas? — a voz de Gaoshun quebrou o silêncio, grave e respeitosa, mas com aquela familiaridade que só ele conseguia transmitir.
Jiang virou-se, o olhar ainda turvo de pensamentos.
Gaoshun não era apenas o servo mais leal, era, para ele, como um segundo pai, desde criança cuidando dele e dos irmãos com todo amor e carinho, e ainda assim o servia tanto quanto servia ao príncipe Jinshi ou as princesas Jin-Ye e Lingli. Só Yao Jun insistia em dispensar seus cuidados, em nome de uma falsa independência.
— Gaoshun, porque ela, é tão distante comigo e com Jinshi? — a pergunta saiu mais amarga do que ele pretendia. — Quero dizer... ela ainda trata Zuigetsu com mais consideração. Ela demonstra se importar com todos... menos comigo. E quando faço algo que mereça reconhecimento... algo que honre nossa família... ela ainda me despreza.
— Ela? — Gaoshun hesitou por um instante, antes de compreender — A Imperatriz Viúva não é distante porque quer Jiang, é muito complexo toda a situação, mas ela tem carinho por você.
A mão do velho servo pousou no ombro dele, firme, protetora.
Jiang ergueu o rosto, sério, quase desafiando a resposta.
— Se ela realmente sente carinho por mim, porque ainda me olha... com tanto nojo e repulsa da minha presença?
O silêncio de Gaoshun pesou mais do que qualquer resposta.
Ele o analisou, e sentiu o velho nó no peito, aquele que só surgia quando a verdade que carregava era cruel demais para ser dita. Apenas ele, Ah-duo e o Imperador conheciam a rejeição silenciosa que Anshi nutrira desde o início referente ao bebê nascido quinze anos depois do primogênito, Yang — o atual Imperador.
E mesmo rodeado pelo amor dos pais adotivos, Jiang nunca deixara de ansiar pelo afeto daquela avó, o sangue chamava, mesmo em meio a mentiras.
— Então... eu me pareço com ele? — a voz de Jiang vacilou, mas carregava uma raiva contida.
Naquele instante, Gaoshun não viu o príncipe diante dele. Viu o menino de olhos marejados, pequeno demais para suportar tantos silêncios, agarrado aos braços dele em busca de algum consolo. O menino que ele jurou proteger de qualquer dor e que, ainda assim, carregava feridas invisíveis.
Quebrando o protocolo, Gaoshun o puxou para um abraço forte, paternal, sentiu o peso do jovem afundar-se contra ele, Jiang escondeu o rosto no ombro do servo, permitindo que as lágrimas manchassem o tecido. Ficaram assim, imóveis, como se aquele contato fosse a última barreira contra o colapso.
Quando Jiang respirou de forma mais estável, Gaoshun afastou-se apenas o suficiente para segurar seu rosto entre as mãos, limpando os vestígios das lágrimas com a delicadeza de quem não tem pressa.
— Nem você, nem Jinshi, têm culpa dos fantasmas que a Imperatriz Viúva carrega. E você, Jiang... — fez uma breve pausa, olhando fundo nos olhos dele — nunca será como ele.
Jiang deixou escapar um sorriso fraco, quase um reflexo, e passou a mão pelo próprio rosto.
— Obrigado...
— Não me agradeça, apenas recomponha-se. — a voz voltou a ser suave, mas firme. — Ainda precisamos encontrar a princesa Kan, não é adequado chegarmos atrasados.
Ele assentiu. Lavou o rosto pela última vez antes de deixar o pavilhão, caminhando ao lado de Gaoshun. O silêncio que se seguiu não era desconfortável; era como um bálsamo, um raro momento em que Jiang sentia que podia simplesmente existir. Depois de alguns minutos, Gaoshun quebrou o silêncio, lembrando-o de seus compromissos daquela tarde, logo após o encontro com a princesa Kan.
Jiang não respondeu, mas o pensamento foi inevitável:
Jinshi poderia confiar nele.
"Por isso, sabia que dele poderia sempre esperar lealdade eterna ao irmão."
Embora isso tenha mudado assim que Jiang a viu ao longe.
Ela estava mais bela do que no dia da anunciação do noivado e ele não sabia explicar por quê. Talvez fosse a simplicidade. Vestia um hanfu amarelo-claro, de mangas soltas, que fluía com cada pequeno movimento seu. O tecido, leve e quase translúcido nas bordas, deixava vislumbrar a delicadeza de seus pulsos e a graça natural do seu porte. O contraste entre o dourado suave e o cabelo esverdeado, que caía como seda viva sobre os ombros, fazia seus olhos azuis parecerem ainda mais límpidos, quase cortantes.
Ela ainda não o havia notado, estava sentada, ninando Yaling nos braços, num gesto quase inconsciente de carinho. A menina, sonolenta, respirava lentamente, os cílios pousados sobre as faces coradas. Ao redor, o pátio do Pavilhão parecia mais silencioso do que o habitual, ao menos até que a energia incansável de Fen Fang rompesse a paz, pulando nas costas das damas de companhia de Maomao, que riam com indulgência.
Devido aos últimos acontecimentos com a princesa Kan, Gaoshun fora designado pelo próprio imperador para auxiliar Maomao sempre que necessário. Não era raro vê-lo circulando por ali, trazendo pequenas soluções e cuidados, afinal, FengXian não permanecia todo o tempo no Pavilhão das Orquídeas, e, quando precisava ausentar-se para acalmar o pequeno Zhìyuǎn, — que exigia atenção quase ininterrupta de Lakan e Lahan, por causa da ausência de Maomao na casa — Gaoshun tornava-se a presença confiável para manter a ordem
Contudo, Maomao cuidava das irmãs como se fossem suas próprias filhas. Via nelas reflexos de si mesma, quando pequena, e talvez por isso seu zelo fosse tão instintivo. As meninas, por sua vez, adoravam a companhia de Gaoshun. Era cativante e, de certo modo, comovente — vê-las correr para conversar com ele sobre flores ou sobre o absurdo de haver tanta gente trabalhando no palácio.
No íntimo, Maomao sabia que, se tivesse a chance de escolher alguém para se casar, seria com alguém como Gaoshun. Alto, de olhos claros, cabelos castanhos e uma tranquilidade serena no modo de falar. Sempre prestativo, jamais indiferente. Ela jamais esquecera o dia em que Yaling teve febre e ele, junto com a senhora Suiren, cuidaram dela com tanto zelo que Maomao sentiu uma pontada de inveja pela esposa dele — inveja de poder ter ao lado um homem tão genuinamente cuidadoso.
E era cômico que como para Maomao se casar com Jinshi, era, para ela, apenas política, não carregava nenhum tipo de romance idealizado. Um meio de ampliar influência, não de viver amor. Já tinha se conformado com a ideia de que jamais experimentaria o afeto intenso que os pais haviam compartilhado. Não sentia vontade de construir algo com o príncipe Jinshi, ela não tinha disposição para criar algo que não fluía com o príncipe, divertia-se em provocá-lo, mas não havia amor. Muito menos prazer. A possibilidade de tocá-lo ou ser tocada por ele era algo que nem suportava, não era o que ela desejava, mas que muitas mulheres matariam por isso.
Ela conhecia o papel que esperavam dela: ser companheira, viajar a seu lado, fechar acordos diplomáticos e, inevitavelmente, gerar herdeiros mas era essa última parte que Maomao rejeitava com mais firmeza. As cortesãs sempre descreviam o prazer físico como uma sensação arrebatadora, mas para ela... como poderia experimentar isso com alguém cuja presença a deixava desconfortável?
Ser mãe, no sentido formal do título, não lhe atraía, seu instinto maternal já estava satisfeito em cuidar apenas dos irmãos. Por ela, bastava que seus irmãos mais novos fossem considerados seus herdeiros.
Suspirou, soprando a franja de leve, quando notou ao longe Gaoshun e... Jiang. Caminhavam juntos, aproximando-se do Pavilhão, ajustou Yaling nos braços, fechou o livro que lia e levantou-se com suavidade, como se temesse acordar a pequena.
— Bom dia, Vossa Alteza. Mestre Gaoshun. — inclinou-se, o gesto contido, mas elegante. — Ao que devo essa visita logo cedo?
Jiang a observou por segundos que pareceram longos demais. Não era só a beleza. Era a forma como segurava a criança com um cuidado que não se aprendia, apenas se tinha, algo dentro dele se rearranjou nesse instante, embora não conseguisse nomear o quê. No dia da anunciação do noivado, achara-a arrogante, presunçosa, quase irritante. Agora... a imagem era outra. Ela parecia... real, humana. Quase inacessível, mas não pela distância, e sim pela luz que emanava sem perceber.
— MAOMAO! — Fen Fang surgiu correndo, triunfante, trazendo um lagarto nas mãos. — Olha o que eu achei! Você estava procurando um, não estava? — a empolgação murchou por um segundo ao notar Jiang. — Quem é esse moço estranho?
— Shhh... Yaling está dormindo. — Maomao sussurrou, passando a mão nos cabelos da irmã. — Sim, era esse mesmo que queria, mas incline-se e cumprimente o príncipe Jiang e o mestre Gaoshun.
Fen Fang revirou os olhos, fez uma reverência apressada e, sem cerimônia, correu para os braços de Gaoshun, que a pegou no colo, aceitando o abraço desajeitado — com lagarto e tudo.
— Peço desculpas pelo comportamento da Fen Fang, mestre Gaoshun. — Maomao comentou, voz arrastada, enquanto olhava a irmã com certo cansaço. — Ela ainda não aprendeu que no palácio existem limites.
— Não tem problema, Maozinha. — Gaoshun sorriu. — Ela me lembra a época em que minha filha Maamei era pequena.
Maomao suspirou, apoiando a mão na testa. "Logo cedo... e ela já está fazendo cena na frente do príncipe..." , pensou, mas manteve-se composta. Voltou o olhar para Jiang — que, curiosamente, ainda não havia dito nada. E era estranho: parecia que ele queria falar, mas havia algo o retendo.
O silêncio prolongou-se até que Jiang, finalmente, reuniu coragem. Sentia como se Maomao drenasse toda sua energia e o fizesse esquecer de qualquer formalidade.
— Vim no lugar do meu irmão, hoje — disse, a voz ligeiramente trêmula. — Para que a senhorita possa visitar o Pavilhão da Lua e fazer as mudanças que desejar... Ele disse que não poderia acompanhá-la por conta de compromissos. Espero... ser uma boa companhia para a princesa.
Um sorriso torto, tímido, rompeu em seu rosto.
— Ah, claro, isso. — Maomao ajeitou Yaling no colo, disfarçando a surpresa com uma tosse suave. — Eu mesma já havia me esquecido dessa visita, com tantas coisas para organizar.
Jiang não respondeu de imediato. Apenas observou, absorvendo cada detalhe — a maneira como ela mantinha Yaling aconchegada, a forma precisa com que desviava o olhar quando falava, o modo como as palavras saíam controladas, mas não frias. Ele não sabia ainda, mas já estava perdido.
Maomao caminhava ao lado do príncipe, Gaoshun, sempre atento, mantinha-se alguns passos atrás, o suficiente para garantir a segurança e ainda assim permitir que os dois conversassem em relativa privacidade.
Jiang, após alguns minutos de silêncio calculado, quebrou a distância com a voz baixa.
— Ouvi sobre o ocorrido ontem... com a concubina que tentou envenená-la.
Maomao soltou um suspiro suave, seguido de um sorriso enviesado.
— As notícias correm rápido dentro desses muros. — a entonação dela foi levemente zombeteira, mas carregada de uma serenidade calculada, como se a situação fosse apenas mais um detalhe irrelevante em sua rotina. — Imagino que, neste lugar, até um resfriado de um servo chega aos ouvidos do Imperador antes que a febre comece a subir.
Ele riu baixo, mas não deixou escapar a preocupação no olhar.
— Como está sendo sua adaptação por aqui?
— Estranha. — Ela respondeu sem rodeios — É diferente do que vivi a vida toda. Ficar longe da minha família... isso pesa. A etiqueta, os protocolos, a maneira como até respirar parece algo que precisa de permissão. — ela fez uma pausa, encarando o caminho à frente. — Mas sobrevivo. A corte é como um tabuleiro e eu... aprendi a jogar desde cedo.
Houve um silêncio breve antes de Jiang prosseguir, a voz mais suave agora.
— Você me trata como alguém normal, sem toda aquela formalidade sufocante enquanto conversamos. Não recua quando está perto de mim... como a maioria faz.
Maomao o fitou com uma sobrancelha arqueada.
— E por que recuariam?
Ele desviou o olhar, quase envergonhado.
— Porque dizem que me pareço com o Antigo Imperador.
Ela parou por um momento, obrigando-o a fazer o mesmo, e o encarou diretamente, sua voz soou grave, com um peso que parecia transpassar a pele.
— Não existe razão para que eu o trate com crueldade pelos erros de alguém que não tem nada a ver com a pessoa que você é. Só porque é fisicamente parecido com ele, como todos dizem, não significa que seja como ele. — seus olhos azuis refletiam uma sinceridade quase cortante. — Do mesmo modo, não sou como todos me rotulam: uma cópia exata da minha mãe, entendo que odeie que o comparem com ele, principalmente por ser... um abusador de crianças.
Ela estendeu a mão, com a mesma suavidade de alguém prestes a acalmar um animal arisco, e tocou de leve o rosto de Jiang.
— Mas vossa Alteza é muito bonito, não deve se importar com nada disso. Até porque, se fôssemos cópias exatas deles em personalidade, e não apenas no físico... acredito que, nesse momento, eu estaria te enforcando.
A surpresa se desfez em um riso espontâneo dele, quase aliviado.
— Então devo considerar que estou seguro.
— Sim. — ela sorriu de canto. — Particularmente, acho um gesto infantil e ofensivo... quando não é usado para autodefesa. Então fique tranquilo, alteza, não irei enforcá-lo como minha mãe fez com o Antigo Imperador.
Eles riram juntos enquanto retomavam o passo.
E, aos poucos, Jiang percebia que aquela não era a mulher presunçosa e fria que julgara conhecer no primeiro encontro. Havia nela uma delicadeza, um calor que surgia por entre as palavras calculadas e, mesmo sem perceber, ele começava a ceder aos encantos sutis daquela princesa.
O caminho até o Pavilhão da Lua se revelou em uma série de pátios silenciosos, ladeados por cerejeiras em plena floração. Pequenos lagos com carpas refletiam a arquitetura refinada, onde tetos curvados em azul e branco contrastavam com colunas de madeira escura. No horizonte, as portas duplas do pavilhão se erguiam como guardiãs de um espaço reservado, com painéis pintados à mão, retratando cenas de dragões e nuvens.
Jiang abriu caminho, deixando Maomao absorver cada detalhe.
— Pode fazer todas as alterações que desejar. — a voz dele carregava uma formalidade rara para aquele momento. — É uma autorização de Jinshi... e também do Imperador.
— Do Imperador? — ela ergueu a sobrancelha, curiosa. — E por que essa generosidade repentina?
— Visto o incidente de ontem com a concubina e o... extenso conhecimento que a princesa possui sobre venenos, sem falar no fato de ser filha do mestre Lakan, meu pai odiaria que isso causasse uma ruptura no noivado e, pior, uma guerra com o Clã Kan.
Maomao gargalhou, levando a mão à boca para abafar o som, o riso cristalino ecoou pelos corredores, atraindo um olhar confuso de Jiang e Gaoshun.
— Se uma simples garota como eu consegue intimidar o próprio Imperador... acredito que segui certo os passos dos meus pais.
Ele revirou os olhos, mas não conteve um sorriso enquanto começava a guiá-la pelo interior. Maomao, no entanto, já disparava ordens com a naturalidade de quem conhecia seu valor.
— Quero que o príncipe construa um anexo próximo à casa, será minha clínica. Quero espaço para meus experimentos e para cuidar de quantas pessoas eu puder aqui dentro. — ela percorreu os corredores com passos firmes, observando cada sala — E troquem esses tons azulados... por vermelho e dourado. São as cores do meu clã. — fez um gesto amplo, já imaginando o resultado. — Também quero pinturas e brasões de serpentes e dragões em pontos específicos. — concluiu com certa autoridade.
Jiang, que vinha atrás dela com as mãos cruzadas nas costas, arqueou uma sobrancelha.
— Você não acha que está exigindo demais Lady Kan?
Maomao parou, virando-se lentamente para encará-lo. O olhar dela não era de desafio aberto, mas carregava uma calma perigosa.
— Exigir? Não foi o próprio Imperador junto ao meu noivo que permitiu? — repetiu, como se provasse a palavra na língua. — Alteza, estou apenas informando o que será necessário para que este lugar cumpra seu propósito. Se isso lhe parece demais, talvez o príncipe prefira que seus servos e servas continuem morrendo por falta de cuidados.
Ele estreitou os olhos, avaliando cada detalhe do rosto dela, a postura dela não era de súplica, e sim de alguém que já havia decidido. Isso o incomodava.
— E por que Serpentes e Dragões? — questionou, tentando quebrar o ritmo da conversa. — Não é uma combinação... comum.
— Serpentes para a astúcia, Dragões para a força. — respondeu de imediato. — Quem entrar aqui deve entender que essa casa, esse lugar. — girou o dedo por todo local — É a residência da Princesa do Clã Kan e esse é o símbolo do meu Clã e coincidentemente, o Dragão também representa a família Imperial. — finalizou com seriedade no olhar.
Enquanto voltava a andar, Jiang percebeu que Maomao não estava simplesmente decorando uma casa; estava erguendo um símbolo. Algo que, com o tempo, poderia se tornar muito mais do que uma simples casa, ao lado seria o espaço para curar feridos.
— E devo presumir — disse ele, aproximando-se e baixando o tom — que cada detalhe tem um objetivo que você não pretende compartilhar agora?
Ela lançou um leve sorriso de canto.
— O príncipe aprende rápido.
Um silêncio carregado se instalou enquanto saíam para o pátio. Os trabalhadores já aguardavam instruções, e Maomao começou a ditar ordens com naturalidade, como se já fosse a senhora daquele lugar, Jiang observava, dividido entre irritação e fascínio.
Ele sabia que, de alguma forma, ao ceder a esses caprichos, estava lhe dando mais poder do que pretendia, mas também sabia que tentar limitá-la seria como tentar conter veneno com as mãos nuas.
Jiang permanecia junto a uma das colunas, o olhar aparentemente distraído na superfície da água, mas cada pequeno movimento seu — o toque lento nos dedos, o ajuste do manto — era calculado. Havia um controle excessivo em seus gestos, como se quisesse ocultar algo... ou talvez contê-lo.
Maomao observava em silêncio, agora sentada à mesa baixa, mexendo o chá com a colher de porcelana como quem apenas espera, mas na verdade, pesava cada respiração dele, cada pausa antes de falar. Havia algo diferente no modo como Jiang a olhava agora — não com mera cortesia ou curiosidade... mas com um calor contido, que parecia crescer a cada encontro.
Ele está se deixando levar, pensou Maomao, mantendo o rosto sereno. E não percebe o quanto isso o denuncia.
Quando ele finalmente voltou a se aproximar, mostrou seu rosto em uma expressão ambígua, entre admiração e cálculo.
— Você sabe... — Jiang começou, a voz baixa, como se não quisesse que o vento levasse suas palavras. — Há algo em você que... desconcerta, não é apenas a beleza, embora essa seja impossível de ignorar. É... outra coisa.
Maomao ergueu levemente as sobrancelhas, como se não tivesse entendido a intenção, e respondeu com um tom quase neutro:
— É raro o príncipe falar assim. Está se sentindo... vulnerável?
Ele sorriu, mas não negou.
— Talvez. Ou talvez eu esteja apenas sendo honesto.
Maomao segurou a xícara com calma, deixando o vapor cobrir por um instante o próprio rosto, enquanto por dentro, suas conclusões se encadeavam como peças de um jogo perigoso. Se ele é capaz de cobiçar a noiva do irmão, é capaz de roubar qualquer coisa. Até o trono.
— A honestidade é uma faca de dois gumes, Alteza — disse ela por fim, com doçura aparente. — Às vezes corta quem fala... e às vezes quem ouve.
Jiang inclinou a cabeça, talvez intrigado, talvez desafiado. Ele estava acostumado a provocar reações, mas Maomao parecia sempre se esquivar no último momento, deixando-o sem saber se havia avançado ou recuado.
No fundo, ela sabia que aquele jogo só estava começando, Maomao levantou-se lentamente agradecendo ao chá preparado por Gaoshun e seguiu o caminho ao lado do príncipe em silêncio.
Jiang acompanhava os passos firmes de Maomao pelo corredor, observando-a como se tentasse decifrar cada camada daquela mulher que, apesar da idade jovem, carregava no andar a postura de alguém que já sabia comandar. Quando ela parou diante de uma das janelas para examinar a iluminação, ele falou, com aparente despreocupação:
— Maomao... minha avó, — corrigiu-se tossindo colocando a mão a frente da boca — quero dizer a Imperatriz Viúva, expressou o desejo de vê-la, tinha me esquecido de avisar.
O som das palavras pairou no ar, Maomao manteve-se imóvel por um instante, as mãos pousadas na madeira entalhada da janela. Por dentro, sentiu o peso da convocação — ela sabia que uma imperatriz viúva não desperdiçava tempo com encontros casuais. No entanto, nenhum traço de surpresa ou inquietação se refletiu em seu rosto.
Ela se virou, sustentando o olhar dele com calma.
— Entendo, Alteza. — disse, e um leve sorriso curvou seus lábios, como se aceitasse uma partida de jogo que não poderia recusar.
Jiang estreitou os olhos, incerto se aquele sorriso era cortesia ou provocação.
— Então venha, ao menos para esta visita, seria adequado que a senhorita estivesse... à altura da ocasião.
O caminho até o Pavilhão das Orquídeas foi silencioso, Maomao caminhava com elegância natural, a cabeça erguida, mas os pensamentos voltados para os possíveis motivos daquele encontro. Ao chegarem, as servas já aguardavam com bacias fumegantes de água perfumada, tecidos dispostos sobre mesas baixas e caixas de ornamentos abertos, revelando ouro, jade e madrepérola.
Assim que ela se sentou diante do espelho de bronze polido, Fen Fang e Yaling correram até ela, animadas como filhotes.
— Maomao, a imperatriz viúva é mesmo tão majestosa quanto dizem? — perguntou Yaling, agarrando-se ao braço dela.
— E será que ela vai gostar de você? — completou Fen Fang, com os olhos arregalados, enquanto esticava o pescoço para espiar as joias.
— Crianças. — murmurou Maomao, com paciência, embora um leve suspiro tenha escapado. — O posto de um nobre se mede pelo que constrói... não pelas roupas que veste.
As servas moveram-se com precisão silenciosa, substituindo as vestes simples por um hanfu de um vermelho profundo, tão intenso quanto o rubor de um céu ao entardecer. Sobre o tecido, fios de ouro formavam intrincados bordados: serpentes sinuosas entrelaçadas a dragões altivos, símbolos milenares do clã a que ela pertencia por direito de sangue, um emblema de poder e autoridade que não podia ser questionado. Por cima, recobriram-na com uma camada de seda negra, diáfana e leve como fumaça, que ondulava a cada respiração, criando um contraste quase hipnótico com o vermelho da base.
Seu cabelo, de um tom esverdeado incomum que lembrava jade polido sob a luz, foi erguido num penteado alto e impecável. Entre as mechas firmemente presas, pentes de jade esculpido exibiam entalhes minuciosos; de cada um deles pendiam correntes delicadas, finas como fios de orvalho, que tilintavam suavemente a cada mínimo movimento, compondo uma melodia sutil no ar.
O som cadenciado de passos ecoou pelo corredor, quebrando o silêncio cerimonial. A cortina lateral foi afastada com cuidado, revelando a entrada da princesa Jin-Ye. Ela surgiu acompanhada de duas damas de companhia, movendo-se com a elegância de quem não precisava forçar sua presença para dominar um ambiente. Vestia tons claros que faziam sobressair a suavidade quase etérea de seus traços, enquanto a luz incidia de forma a realçar o tom violeta de seus cabelos, caindo como seda ao redor do rosto. Ao ver Maomao, seus lábios se curvaram num sorriso genuíno, um gesto simples, mas carregado de calor e sinceridade raros no ambiente do palácio.
— Finalmente a reencontro vestida como a princesa que é. — disse Jin-Ye, aproximando-se sem a formalidade rígida que muitos esperavam dela.
Maomao inclinou a cabeça, mantendo o sorriso pequeno.
— Sua Alteza é generosa nas palavras.
Jin-Ye soltou uma risada breve.
— Eu falo a verdade. — disse, tocando de leve no tecido do hanfu de Maomao. — E hoje vou acompanhá-la até minha avó. Ela está curiosa... e, devo admitir, ansiosa para conhecê-la.
Maomao ergueu uma sobrancelha, mantendo o tom neutro.
— Espero estar à altura dessa curiosidade.
As duas seguiram juntas pelos corredores de pedra polida, Jin-Ye falava sobre pequenas coisas — flores do pátio, rumores triviais — mas, por trás de cada frase, Maomao percebia o cuidado de amiga genuína que tentava deixá-la à vontade. Ainda assim, a desconfiança natural permanecia ali, discreta, como um fio de seda que nunca se parte.
Ao chegarem diante dos aposentos da Imperatriz Viúva, uma das servas do palácio adiantou-se, curvando-se antes de anunciar com voz clara:
— Vossa Majestade, aqui está a presença de Lady Kan acompanhada de Sua Alteza, a princesa Jin-Ye.
O silêncio que se seguiu parecia conter um peso antigo, como se todo o ar no pavilhão aguardasse o próximo movimento.
O biombo de seda foi afastado, revelando o interior dos aposentos da Imperatriz Viúva, o ambiente exalava autoridade: paredes cobertas por painéis de laca negra, lanternas de luz suave espalhando reflexos dourados, e um tapete vermelho profundo que guiava até o trono baixo, ladeado por vasos de porcelana pintados com cenas de dragões ascendentes.
No centro, sentada com a dignidade de quem já governara sombras e luzes do império, estava a Imperatriz Viúva. O cabelo, preso num coque alto, era adornado por um fênix de ouro maciço cravejado de rubis. O rosto, marcado pelo tempo, conservava a beleza severa de quem nunca precisou levantar a voz para ser obedecida.
Maomao adiantou-se, o som das correntes de jade de seu penteado tilintando levemente, e fez uma profunda reverência.
— Vossa Majestade. — sua voz saiu firme, mas com a cadência controlada, sem pressa nem hesitação.
Os olhos violetas da Imperatriz Viúva a percorreram de alto a baixo, demorando-se nos bordados de serpentes e dragões que ornamentavam o hanfu. Um sorriso quase imperceptível se formou nos cantos de seus lábios.
— A princesa do Clã Kan... finalmente diante de mim.
— É uma honra estar em sua presença. — respondeu Maomao, mantendo a postura ereta, mas sem encarar diretamente por tempo demais.
Jin-Ye, que permanecia a um passo atrás, inclinou-se também, mas lançou a Maomao um olhar discreto, como quem oferece ânimo silencioso.
A Imperatriz Viúva apoiou as mãos sobre os joelhos, o gesto calmo mas calculado.
— O seu clã é conhecido pela astúcia e pela capacidade de sobreviver a qualquer tempestade política. — ela fez uma pausa, permitindo que as palavras repousassem no ar. — Diga-me, princesa... está aqui para servir ao império ou para servir apenas aos interesses da sua casa?
Maomao respirou fundo, mas apenas o suficiente para manter o controle interno, não havia espaço para respostas impulsivas.
— Majestade, creio que servir ao império e proteger o meu clã não são causas opostas, um reino forte exige famílias fortes... e famílias fortes contribuem para a estabilidade do trono.
Os olhos da imperatriz estreitaram-se, avaliando-a como se pesasse cada sílaba. Então, com um leve aceno, indicou que se sentasse à sua frente, numa almofada baixa.
— Boa resposta. — disse, finalmente. — Mas o que me interessa é a lealdade e a lealdade, princesa, é como o veneno: ou se prova com cuidado... ou mata rapidamente.
Jin-Ye deu um passo à frente, quebrando o silêncio que se seguiu.
—Vovó... Maomao já provou sua utilidade no palácio. Seu conhecimento... e sua postura, não é alguém que fala por falar.
A imperatriz virou o rosto para a neta, os traços suavizando apenas um pouco.
— Eu sei, Jin-Ye. É por isso que a convoquei. — voltou-se novamente para Maomao. — Não acredito em sorte, acredito em preparo e quero ver até onde o seu vai.
Maomao sustentou o olhar dela, sem se retrair, mesmo sentindo que cada respiração era medida e pesada como um teste invisível.
— Então, Majestade, espero que me conceda a oportunidade de mostrar.
A Imperatriz Viúva recostou-se levemente, os dedos tamborilando no braço da cadeira. Um leve sorriso curvou-se em seus lábios.
— Vamos ver quanto tempo você consegue permanecer de pé neste tabuleiro sem perder a cabeça... ou a coroa.
A luz filtrava-se pelas lanternas de papel pintado, projetando desenhos de fênix e peônias nas paredes de laca escura. O ar estava levemente perfumado com chá de jasmim, mas por trás daquela suavidade, havia o peso de décadas de intrigas e decisões que moldaram o império.
Maomao, trajando o hanfu vermelho, estava sentada à esquerda de Jin-Ye, que, com postura impecável, aguardava em silêncio. A Imperatriz Viúva as observava com olhos que já haviam visto o nascimento e a queda de dinastias dentro do mesmo palácio.
— Então... — a voz da imperatriz quebrou o silêncio, grave, mas fluida — ...a princesa do Clã Kan, noiva do príncipe Jinshi.
Maomao manteve o queixo erguido, mesmo sentindo o peso implícito na frase.
— Sim, Majestade. — respondeu com a serenidade de quem sabe que cada palavra pode ser registrada contra si.
— Um noivado assim não é apenas uma união de nomes. — prosseguiu a imperatriz, abrindo seu leque devagar. — É uma fusão de interesses, de territórios... e de fragilidades, sua presença aqui liga o sangue Kan e o sangue Ka, de forma que poucas alianças seriam capazes.
A menção às duas famílias fez o ar do aposento parecer mais denso, Maomao sabia que cada clã tinha seus inimigos e seus aliados instáveis.
— Minha mãe me ensinou que alianças são como fios de seda. — disse Maomao, com calma. — Belas, mas fáceis de se romper se não forem cuidadas.
A imperatriz parou o movimento do leque, fixando o olhar nela.
— FengXian... — pronunciou o nome com um misto de nostalgia e respeito. — Uma velha amiga... e, por um breve período, uma das joias mais raras deste palácio. Uma concubina que não se curvou facilmente, e que sabia exatamente quando sorrir e quando morder.
Maomao não reagiu de imediato, mas os dedos relaxaram sobre o tecido de seu vestido.
— Minha mãe falava pouco sobre o tempo em que esteve aqui. — admitiu. — Mas sempre disse que sobreviver no palácio era mais difícil do que sobreviver a uma guerra.
A imperatriz esboçou um leve sorriso, quase melancólico.
— Se você for apenas um terço do que FengXian foi... — fez uma pausa, medindo o efeito da frase — ...então não apenas sobreviverá, como poderá reinar.
A frase ficou suspensa no ar, carregada de possibilidades. Jin-Ye olhou de relance para Maomao, como se quisesse decifrar a reação dela, mas a amiga manteve a máscara impecável.
A imperatriz olhou para a neta, depois de volta para Maomao, como se estivesse decidindo algo silencioso.
— Zuigetsu é jovem... mas carrega mais peso do que aparenta. O noivado de vocês será observado de perto. E... — o tom ficou mais baixo, mas mais afiado — ...se algum dia precisar escolher entre o príncipe e o império, espero que saiba qual decisão tomar.
Maomao não piscou.
— Majestade, já aprendi que escolhas assim não são feitas com o coração... mas com a razão.
A imperatriz a encarou por mais um momento e, finalmente, inclinou a cabeça de forma sutil, um gesto raro que poderia ser tanto aprovação quanto um aviso.
O som das correntes de jade no penteado de Maomao tilintou quando ela se curvou em sinal de respeito. O jogo havia começado, e ambas sabiam que aquela conversa era apenas o primeiro movimento.
A Imperatriz Viúva apoiou os cotovelos nos braços da poltrona baixa e entrelaçou os dedos com calma, os olhos escuros fixos em Maomao.
— O príncipe Zuigetsu ainda é jovem... e ainda que carregue o sangue Kan, você deve compreender que o peso de sua casa será sempre visto como rivalidade por outros clãs. — A voz era firme, mas carregada de uma leve melancolia. — Seu clã, o das Serpentes, nunca hesitou em se mover nas sombras para garantir sua sobrevivência.
Maomao inclinou-se levemente, medindo cada sílaba antes de responder.
— Majestade, estou ciente, não espero que o noivado seja apenas um laço de afeto ou formalidade. Ele é, e sempre será, uma aliança política.
A imperatriz soltou um leve suspiro, quase inaudível.
— E você está pronta para isso? — perguntou, com a serenidade de quem questiona a alma e não apenas a estratégia.
Maomao curvou a cabeça, sem demonstrar surpresa.
— Majestade... se herdei qualquer traço da minha mãe, sei que devo usar a mente antes do coração. E sei que, para sobreviver e proteger o que importa, devo me manter firme mesmo diante de escolhas que pareçam impossíveis.
A Imperatriz Viúva Anshi inclinou o corpo para frente, o olhar avaliador tornando-se quase intenso demais para ser ignorado.
— Zuigetsu é ambicioso e perspicaz, mas imaturo em certos aspectos. Se você pretende governar ao lado dele ou acima dele, precisará aprender a ler o palácio tão bem quanto lê uma sala de guerra. Cada gesto, cada palavra, cada silêncio... tudo pode ser usado contra você.
Maomao manteve a compostura, mas a voz revelou apenas um fio de firmeza silenciosa.
— Majestade, observo e aprendo. Cada passo será calculado. Cada movimento pensado, minha prioridade é preservar o equilíbrio do palácio... e proteger meu clã.
Um pequeno sorriso curvou os lábios da Imperatriz Viúva.
— Bom... vejo que não apenas conhece seu dever, mas compreende o jogo. E lembre-se: FengXian sempre foi uma mulher que fez o impensável para garantir seu lugar. — a imperatriz fez uma pausa, como se recordasse de sua velha amiga — Se você tiver coragem e inteligência para ser apenas metade do que ela foi, então talvez... apenas talvez, seja digna de um dia tornar-se imperatriz.
Maomao manteve o olhar firme, silenciosa. A máscara de princesa controlada escondia qualquer turbilhão interno, mas cada palavra da imperatriz havia sido como uma fagulha acesa. Ela sabia que aquelas eram tanto instruções quanto testes.
— Majestade... — disse por fim, com reverência mas sem subserviência — agradeço por confiar que posso compreender o peso que me será confiado.
A Imperatriz Viúva Anshi inclinou levemente a cabeça, um gesto pequeno, mas carregado de significado.
— A confiança será conquistada, Lady Kan... mas não subestime o quanto pode ser perdida. — e, por um instante, as duas compartilharam um silêncio carregado, não de hostilidade, mas de compreensão mútua, de mulheres acostumadas a sobreviver em um tabuleiro de intrigas que poucos ousariam atravessar.
O tilintar suave do jade no penteado de Maomao marcou o fim da primeira etapa daquele teste. Ela sabia que a conversa havia terminado, mas também compreendeu que cada palavra da Imperatriz Viúva continuaria a reverberar em sua mente como uma lição que ela precisaria decifrar com cuidado nos meses e anos seguintes.
O biombo se fechou atrás delas com um leve estalo, isolando o corredor do mundo exterior, o silêncio parecia pesado, e o tilintar suave do jade no penteado de Maomao ecoava a cada passo.
Jin-Ye caminhava ao lado da amiga, mantendo a postura elegante, mas observando atentamente cada expressão de Maomao. Ela sabia que a princesa já havia percebido: tudo na audiência da Imperatriz Viúva era um teste.
— A avó não queria te intimidar... ela queria ver se você entende o jogo. — murmurou Jin-Ye, baixinho, de modo que apenas Maomao pudesse ouvir
Maomao inclinou ligeiramente a cabeça, mantendo o rosto impassível.
— Sim, todas as palavras, cada referência ao príncipe, aos clãs e até minha mãe... tudo foi calculado.
Jin-Ye sorriu, discreta, mas carregada de significado.
— Exato, mas há detalhes que você precisa compreender. Quando ela mencionou FengXian, não era apenas elogio ou nostalgia, era um aviso. Ela quis que você percebesse que herdou parte da astúcia da sua mãe, mas também que ainda precisa mostrar sua própria força, sua capacidade de navegar entre o palácio e o noivado sem se perder.
Maomao respirou fundo, deixando que o tilintar do jade lembrasse o peso de cada palavra dita.
— Então não é apenas o que foi falado... é o que ficou implícito que devo entender. — Maomao disse colocando a mão sobre o queixo pensativa.
— Perfeitamente. — Jin-Ye assentiu, olhando para a amiga com sinceridade. — E preste atenção ao Jinshi. A imperatriz viúva falou sobre ele mais do que uma vez, e não apenas por causa do noivado. Ela queria testar se você consegue avaliar o que ele pensa, prever seus movimentos, entender seu caráter. Você não é apenas a noiva dele, você é uma peça estratégica.
Maomao desviou o olhar por um instante, absorvendo o conselho.
— Então devo agir como quem observa o tabuleiro... mesmo que todos ao redor só vejam a princesa noiva.
— Sim, é o que você já faz — Jin-Ye disse suavemente, quase protetora — A confiança que a avó depositou em você é limitada. Cada passo será vigiado, cada decisão terá consequências. FengXian sobreviveu aqui porque conhecia o jogo e a si mesma. Você precisa fazer o mesmo.
Maomao olhou para Jin-Ye, sentindo a segurança da cumplicidade.
— Obrigada, Jin-Ye. — disse baixinho, com sinceridade.
Jin-Ye deu um toque leve no ombro da amiga, um gesto quase imperceptível, mas cheio de significado.
— Sempre estarei aqui, mas lembre-se: o palácio está cheio de ouro falso, saiba distinguir onde vale confiar e onde não vale. Isso salvará você... e todos que você quer proteger.
O eco de seus passos preenchia o corredor, Maomao sabia que cada palavra de Jin-Ye era mais do que amizade: era uma bússola para navegar o intrincado jogo de poder em que agora se encontrava. O teste da Imperatriz Viúva havia terminado, mas o verdadeiro desafio apenas começava.
[. . .]
O Pavilhão das Orquídeas mergulhava em um silêncio quase reverente após o almoço. Apenas o sussurro do vento, que movia suavemente as cortinas de seda, e o tilintar distante de pequenos sinos nos jardins quebravam a quietude, compondo uma melodia delicada que parecia acompanhar os pensamentos de Maomao. Ela acabara de encerrar a conversa com FengXian, cujas palavras haviam sido medidas e estratégicas, discutindo discretamente os movimentos de Jinshi e as sutilezas do noivado dentro do palácio.
Fen Fang e Yaling atravessavam os corredores com passos apressados e risadas contidas, ainda fascinadas e curiosas com os acontecimentos recentes. Ao lado de Maomao, porém, Jin-Ye permanecia serena, observando cada gesto, cada nuance de expressão, como quem lê uma partitura complexa, pronta para compreender a música antes mesmo que ela se tornasse audível.
Maomao respirou fundo, sentindo a tensão se aliviar um pouco, embora seu olhar permanecesse frio e calculista — aquele tipo de frieza que carregava perigo e cautela em doses iguais.
— Mamãe — disse, inclinando-se levemente, mantendo a voz calma mas firme — obrigada pelos conselhos. Estarei atenta a cada movimento do príncipe... e ao que está implícito, não apenas ao que ele diz.
FengXian sorriu, um gesto sereno e controlado, fruto de anos navegando nas intrigas do palácio:
— Lembre-se, Maomao: ele é jovem, mas perspicaz. Não subestime seus artifícios... e jamais esqueça que ele observa cada gesto seu.
Maomao assentiu, absorvendo cada palavra como se fossem armas silenciosas, sabia que a paciência, o controle e a astúcia seriam suas únicas proteções.
Decidiu então caminhar pelo pátio do pavilhão, buscando arejar a mente, Jin-Ye a seguiu discretamente, mantendo uma distância respeitosa, mas os olhos atentos, sempre captando detalhes sutis, enquanto brincava com as irmãs mais novas de Maomao. O sol caía sobre as pedras polidas, criando reflexos que se misturavam às sombras delicadas dos canteiros de orquídeas. O perfume das flores pairava no ar, doce, mas não o suficiente para apagar a tensão que ainda pulsava sob a pele de Maomao.
Ela quase se permitiu um instante de silêncio, até que um riso provocativo rompeu a quietude, cortando o ar como uma lâmina afiada. O som carregava desprezo e audácia, uma provocação que exigia atenção imediata, e fez Maomao contrair ligeiramente os dedos, como se segurasse o impulso de reagir antes de compreender o inimigo.
— Ah, olha só quem decidiu dar o ar da graça — disse Jinshi, surgindo com aquele sorriso que conhecia tão bem, o mesmo que sempre conseguia tirar Maomao do sério. — Vejo que você passou um tempo com sua mãe... mas será que consegue manter tudo sob controle? Fen Fang e Yaling estão realmente sob sua tutela, princesa Kan ou na tutela de minha irmã Jin-Ye? Ou vão acabar tomando conta do pátio sozinhas enquanto você se ocupa com "coisas importantes"?
O comentário atingiu direto no orgulho de Maomao, ele não estava apenas zombando; ele diminuía sua autoridade diante das próprias crianças, questionando silenciosamente se ela era capaz de manter o controle do próprio pavilhão e do clã Kan. Ele a conhecia, pouco mas conhecia — sabia exatamente como cutucar seu ponto fraco.
— Vossa Alteza... — começou ela, a voz firme, controlada, mas carregada de frio absoluto — há limites para sua insolência.
— Oh, mas é tão divertido vê-la tão séria — continuou ele, aproximando-se com aquele jeito provocativo que já a irritava há meses. — Parece até que você leva tudo a sério demais. Fen Fang e Yaling devem estar com medo de você, não é?
A paciência de Maomao se esgotou.
Ele ameaçava sua imagem de autoridade e controle, algo que ela jamais toleraria, num impulso explosivo, ignorando todos os protocolos, avançou sobre ele e o derrubou no chão com força, ficando por cima dele.
— VOCÊ SABE O QUE ACABOU DE FAZER? VOCÊ QUER CHAMAR ATENÇÃO? POIS EU MESMA VOU TE MATAR, KA ZUIGETSU! — gritou, os olhos incandescentes, a respiração pesada.
Jinshi riu, rolando levemente sob o peso dela, os olhos violeta brilhando enquanto admirava a intensidade de Maomao:
— Ai que medo de você... me enforca vai, — sorriu provocante — adoro ver mulher bonita por cima de mim — zombou, cada palavra um desafio calculado.
As mãos do príncipe agarravam firmes os quadris de Maomao, prendendo-a contra o próprio corpo. O peso dele parecia ancorá-la, e os panos vermelhos do hanfu que ela vestia se espalhavam em camadas ao redor, criando um emaranhado de seda que tornava cada movimento mais difícil.
Ele observava a cena com um sorriso contido, quase divertido, como se cada gesto dela fosse parte de um jogo que só ele sabia jogar, Maomao, por outro lado, lutava contra a pressão, debatia-se com força contida, sentindo o ar escapar em pequenas falhas enquanto tentava recuperar o fôlego.
Seus olhos se encontraram, e o príncipe manteve o contato visual com firmeza e audácia. Havia naquele olhar algo de provocador, quase desafiador, mas também uma curiosidade intensa, como se estivesse avaliando não apenas a resistência dela, mas cada detalhe de sua reação.
Maomao respirava com dificuldade, o coração acelerado, sentindo a mistura de raiva e constrangimento queimando por dentro. Cada fibra de seu corpo queria se afastar, mas a situação tornava impossível reagir com liberdade. E, ainda assim, mesmo presa, seu olhar não vacilou; estava fixo nele, desafiador, silencioso, transmitindo toda a força que ainda podia controlar em meio à vulnerabilidade imposta pelo toque e pelo aperto firme do príncipe.
Ela respirou fundo, tentando manter o controle, mas ele segurou ainda mais firme seu quadril, aproximando os corpos perigosamente deixando seus rostos quase colados. O ar carregou-se de eletricidade. Para cortar o clima e afirmar seu domínio, ela enforcou-o com força. O punho pressionava firme contra seu pescoço, o cabelo verde de Maomao caía desordenadamente sobre os ombros e parcialmente cobrindo seu rosto, desalinhado pela intensidade do movimento. Pequenos fios se grudavam em sua testa, mas isso só aumentava o olhar feroz que ela mantinha sobre ele.
Jinshi, ainda sob pressão, não demonstrava medo; ao contrário, seus olhos violeta brilhavam com uma mistura de admiração e provocação, absorvendo cada detalhe da força, da determinação e da beleza fria dela. O riso abafado dele aumentou a frustração de Maomao, mas também a lembrava do poder que tinha sobre ele naquele instante.
Jiang e Lingli correram para separar os dois, enquanto Maomao, respirando pesadamente, finalmente se levantava, o cabelo ainda despenteado, o rosto marcado pela intensidade do momento. Jinshi ajeitou o cabelo, ainda sorrindo com aquele ar desafiador, mas agora mais cauteloso.
Fen Fang, no canto, cochichou para Jin-Ye, incrédula:
— Maomao disse que eu não poderia derrubar ninguém, muito menos príncipes... mas ali está ela, enforcando o príncipe herdeiro!
Jin-Ye sorriu discretamente, admirando a frieza e o controle de Maomao mesmo na explosão:
— Eu acho que ela deveria envenená-lo. — sugeriu brincando com a pequena — Jinshi é um idiota às vezes, entendo Maomao querer matá-lo por isso.
Fen Fang, com malícia, sussurrou:
— Também acho... aliás, trouxe veneno comigo na bagagem.
Jin-Ye arregalou os olhos, chocada:
— Fen Fang... você não está brincando!
Maomao, recuperando a postura, olhou para Jinshi com olhos afiados, misturando fúria, estratégia e autoridade. Ele a provocara, conhecia seus pontos fracos e mexeu com sua imagem e prestígio, mas agora ela deixava claro que jamais permitiria que alguém subestimasse a princesa do clã Kan. Cada movimento futuro seria calculado; cada provocação, paga.
— Isso é pelo dia na Casa Verdete princesa. — Jinshi murmurou próximo de Maomao com um sorriso malicioso, ainda no chão.
Maomao ergueu uma sobrancelha, pisando sobre Jinshi, o olhar afiado fixo no príncipe, cada palavra dele era um lembrete de que ele a conhecia bem demais, mas não havia espaço para intimidação.
— Pelo dia na Casa Verdete? — repetiu, a voz baixa, fria e cortante, quase um aviso. — E você achou divertido me provocar na frente de todos? — disse, avançando um passo, obrigando-o a recuar instintivamente.
Jinshi sorriu, aquele mesmo sorriso provocador que sempre testava limites.
— Ah, princesa Kan... você sabe que me diverte ver sua paciência chegando ao limite, mas confesso que gosto quando você mostra a fera que é.
Maomao respirou fundo, tentando não deixar o sangue ferver mais do que já estava, ela sentiu o peso da provocação dele, mas também a oportunidade de transformar aquele momento em vantagem estratégica. Cada reação dele poderia ser usada, cada gesto observado e registrado em sua mente para manipular futuros movimentos do príncipe.
— Lembre-se, Zuigetsu, — disse, aproximando-se o suficiente para que ele sentisse o perfume leve de suas ervas e flores, o cabelo verde ainda despenteado caindo sobre os ombros — a próxima provocação será a última que você poderá cometer sem pagar caro por isso.
Ele inclinou a cabeça, divertido, mas com um lampejo de cautela nos olhos violeta que não passou despercebido para Maomao.
— Ah... gosto de você assim, cheia de fogo e controle, me faz querer descobrir até onde vai essa sua... ferocidade.
Maomao respirou, mantendo a expressão firme, mas internamente calculando cada movimento: ele ainda tinha liberdade de provocar, mas agora ela havia deixado claro que não seria pega desprevenida novamente.
Jin-Ye se aproximou discretamente, percebendo a tensão entre os dois, e sussurrou baixo para Maomao:
— Cuidado, Maomao... cada reação dele é uma armadilha, mas você já sabe jogar melhor que ele em certos tabuleiros.
Maomao acenou levemente, agradecendo em silêncio, e se afastou de Jinshi, mantendo distância estratégica, enquanto observava os servos ajustarem sua roupa e Fen Fang, escondida atrás de uma coluna, observava com olhos arregalados.
O príncipe, ainda sorrindo, manteve os olhos nela, admirando a mistura de fúria, beleza e controle que irradiava de cada gesto da princesa Kan, mas Maomao sabia que, apesar da provocação, ela tinha a vantagem do controle total da situação, e qualquer passo dele seria cuidadosamente registrado para futuras oportunidades de manipulação.
Jiang e Lingli ainda se recuperavam do susto quando recuaram, ajudando a separar os dois. Lingli, com os olhos arregalados, não conseguia esconder a mistura de espanto e preocupação:
— Princesa... Zui... — gaguejou, gesticulando nervosamente, como se cada palavra pudesse ser interpretada de forma errada. — Isso... isso não deveria acontecer aqui... na frente de todos...
Jiang, por outro lado, cruzou os braços, franzindo a testa, mas não conseguia conter um leve sorriso contido, percebendo a determinação e ferocidade de Maomao:
— Ele realmente a provocou demais — murmurou, balançando a cabeça. — Não posso dizer que não mereceu.
Jinshi, ainda no chão, ajeitou o cabelo com um sorriso torto, claramente divertido, mas agora com um leve toque de respeito — ou cautela — no olhar violeta. Antes que pudesse se recompor completamente, uma mão firme puxou sua orelha com força:
— Ka Zuigetsu — exclamou Jin-Ye, a voz baixa, mas firme, o olhar misto de reprovação e cuidado. — Quantas vezes vou ter que lembrá-lo de não provocar Maomao desse jeito? Você quase perdeu a cabeça e trouxe confusão para todos nós!
O príncipe gemeu, mais surpreso pelo gesto físico da irmã do que pela bronca:
— Ei! Isso dói! — reclamou, mas havia um lampejo de divertimento em seus olhos.
Fen Fang e Yaling, escondidas atrás de uma coluna, não conseguiu conter um risinho:
— Ela está puxando a orelha dele... eu acho que é justo depois do que ele fez!
Jin-Ye soltou-o, ainda mantendo o olhar sério e fixo:
— Preste atenção, Lady Kan não é apenas uma princesa bonita ou provocativa... ela sabe o que faz. E se você continuar testando limites, vai descobrir isso da pior forma possível.
Maomao, ajustando o cabelo verde despenteado e limpando levemente as mãos, permaneceu imóvel por um instante, observando a interação. O coração ainda acelerado, mas os olhos frios e calculistas, mostravam que ela já estava avaliando cada gesto, cada reação de todos ali.
Jin-Ye voltou-se para ela com um leve sorriso, como se dissesse "Ele é meu irmão favorito, mas gosto mais de você agora."
— Acho que valeu a pena, irmã... ele aprendeu uma lição. — Lingli disse aos risos chutando a perna do irmão.
Maomao apenas arqueou uma sobrancelha, o rosto calmo e controlado, mas a mente já trabalhando nas consequências e estratégias para o próximo passo. O pátio estava silencioso novamente, exceto pelo tilintar dos sinos, mas a tensão deixada no ar prometia que esse confronto seria apenas o início de muitos jogos de poder e provocação entre eles.
Chapter 9: Estresses, beijos e problemas políticos
Notes:
Esse capítulo possuí tantas camadas que acredito que até o diabo teria medo de mim e eu concordo, acredito que eu estrapolei na minha criatividade e acredito que me recolherei planejando o tão sonhado hot de JinMao, porque rapaz isso aqui tem potecial e eu to com medo, enfim Maomao roubando corações dos irmãos Ka.
Boa leitura, o próximo capítulo de sábado, provavelmente vai ser finalmente a cerimônia de casamento deles :))))))))))
Chapter Text
"Dia de costurar o vestido de casamento... eu mereço."
O dia mais temido por Maomao havia chegado.
Depois de todos os incidentes recentes — e de cada troca de farpas com Jinshi — estar trancada em um salão repleto de tecidos vermelhos parecia uma tortura lenta. As servas, eficientes e silenciosas, moviam-se como formiguinhas apressadas, carregando agulhas, fitas e rolos de seda que pareciam pesar toneladas aos olhos dela.
Uma das costureiras aproximou-se com uma fita métrica, começando a medir seu busto, Maomao manteve-se imóvel, mas por dentro só queria fugir pela primeira janela aberta.
"Onde estava minha cabeça quando aceitei a proposta de noivado do príncipe?", pensou, sentindo a fita apertar mais do que o necessário. "Ah, sim... provavelmente fora do corpo. Ou afogada num jarro de vinho ruim."
Enquanto a serva anotava medidas e murmurava para as outras sobre ajustes na saia, Maomao mantinha a expressão de princesa disciplinada, mas seus olhos azuis denunciavam a fadiga. Mais um movimento brusco com a agulha e ela teria um motivo legítimo para mandar todo mundo embora.
O pior, porém, não estava na agulha... mas na porta que se abriu.
Jinshi entrou como se fosse dono do lugar — e, de certo modo, era.
Cabelos roxos impecáveis, olhos da mesma cor brilhando com aquela malícia tranquila que apenas ele sabia usar. O sorriso preguiçoso nos lábios denunciava que ele não estava ali para verificar o progresso do vestido, e sim para se divertir às custas dela.
— Está maravilhosa... — disse, pausando para que ela absorvesse a provocação — ... para alguém que parece prestes a esfaquear a costureira.
As servas baixaram os olhos, tentando esconder o riso.
Maomao girou o rosto na direção dele, o cabelo verde caindo em mechas desalinhadas sobre os ombros, seu sorriso polido era frio, mas cada centímetro dele era ameaça velada.
— Se continuar me interrompendo, príncipe, talvez o vestido precise de menos tecido... — disse ela, a pausa cortando o ar — ... porque vou cortar a parte que cobre seu orgulho.
Ele riu baixinho, aproximando-se e afastando uma mecha verde de seu rosto com dedos leves, provocativos.
— Não seja tão cruel, princesa, ainda tem uma vida inteira para me atormentar.
Maomao respirou fundo, lembrando-se das palavras da Imperatriz e de Jin-Ye sobre manter a compostura, mas não era fácil quando o próprio noivo parecia ter como passatempo principal testar seus limites.
"Dia de costurar o vestido... e ele costurando minha paciência à força."
Foi nesse instante que o arrastar de seda e o tilintar de pulseiras anunciou duas presenças.
Lingli entrou primeiro, cabelos rosados presos em tranças delicadas que contrastavam com seus olhos verdes brilhantes. O sorriso enigmático nos lábios mostrava que ela já antecipava cada gesto do príncipe. Jin-Ye veio logo atrás, cabelos roxos soltos até a cintura, olhos vermelhos cintilando com malícia, avaliando a cena como se fosse o prelúdio de um espetáculo.
— Ah... — Lingli murmurou, fingindo surpresa. — Vejo que nosso irmão já decidiu inspecionar o vestido. Que dedicação... incomum.
— Incomum? — Jin-Ye arqueou a sobrancelha, passando por Jinshi até ficar ao lado de Maomao. — Eu chamaria de inconveniente.
— Inconveniente? — Jinshi fingiu ofensa, mas seus olhos roxos não deixavam de brilhar. — Eu apenas queria garantir que minha noiva estará deslumbrante.
Jin-Ye estreitou os olhos e, sem aviso, segurou a orelha dele, puxando com firmeza.
— Garantir que ela fique constrangida, você quer dizer. — não era uma suposição da princesa, ela afirmava séria — Irmão, contenha-se.
O príncipe ergueu o queixo, tentando manter a postura, mas a orelha vermelha denunciava sua derrota momentânea.
— Você é insuportável... — murmurou.
— Correção: eu sou útil. — retrucou Jin-Ye, soltando-o apenas para observar Lingli se inclinar, examinando um rolo de seda vermelho vinho.
— Este tom é perfeito para você, irmã. Sereno... e letal — disse Lingli, verdejando de ironia, enquanto o olhar de Maomao se fixava nas nuances do tecido.
— Vermelho vinho, então. — Maomao ergueu o queixo, cabelos verdes caindo em ondas desalinhadas. — Como o sangue... e como fogo.
Jinshi sorriu, os olhos roxos observando cada movimento da noiva, mas o brilho neles agora tinha uma ponta de respeito e cautela: ele sabia que, entre Maomao e as princesas, cada provocação seria calculada e paga com juros.
Lingli se inclinou discretamente para Maomao, baixinho, os cabelos rosados quase tocando o ombro dela:
— Se quiser, posso sugerir detalhes para o vestido... nada mortal demais, claro, apenas para lembrá-lo de que ele não está no controle.
Jin-Ye sorriu, olhos vermelhos faiscando de divertimento.
— Eu teria escolhido cores que lembrassem perigo real... mas sei que você prefere manter a compostura. Por enquanto.
Maomao fechou os olhos por um instante, respirando fundo, sentindo o tecido frio e macio contra a pele, enquanto o príncipe e as princesas permaneciam ali, observando cada gesto. Ela sabia: aquele dia não era só sobre o vestido. Era sobre mostrar que, mesmo em situações constrangedoras, a princesa do clã Kan não seria subestimada.
O deslizou pelas mãos de Maomao, impaciente e calculista, mas não podia ignorar o olhar de Jinshi que parecia perfurá-la com cada centímetro de sua presença. Ele se aproximou lentamente, passos silenciosos sobre o piso de madeira polida, e os olhos roxos brilhavam com aquela provocação que só ele sabia executar.
— Está bem concentrada, princesa — disse ele, inclinando-se ligeiramente, o rosto próximo o suficiente para que o aroma de sua colônia misturado ao perfume das flores do salão chegasse a ela. — Quase dá para sentir a tensão no ar... e eu adoro tensão.
Maomao ergueu os olhos azuis, frios, mas com uma pontada de desafio.
— Tensão é algo que você deveria aprender a respeitar, Alteza, assim como meu espaço pessoal. — respondeu, deslizando o tecido pelos ombros, provocando-o sem sequer tocá-lo.
Jin-Ye e Lingli trocaram um olhar cúmplice, Lingli, segurava um rolo de fita como se fosse um cetro; os olhos verdes faiscavam de diversão. Jin-Ye por sua vez, inclinou-se levemente, sussurrando:
— Aposto quanto você quiser que ele não sabe controlar o próprio sorriso.
— Duvido que ele consiga se conter — murmurou Lingli, erguendo uma sobrancelha, observando cada gesto de Jinshi. — Vai acabar revelando demais antes que Maomao queira.
Maomao percebeu o olhar cúmplice das duas e sorriu levemente, um sorriso que só ela sabia usar para avisar: não subestimem meus limites.
— Então, príncipe — começou ela, segurando o tecido contra o corpo, permitindo que ele visse a forma exata, mas sem revelar demais — qual detalhe do vestido você acha que deve chamar mais atenção?
Jinshi inclinou a cabeça, olhos roxos cravados nos dela, e respondeu com aquele sorriso preguiçoso e provocador:
— Diria que os ombros, ficam muito bem descobertos, mas... talvez eu prefira que você escolha por mim. — Jinshi disse beijando o pescoço dela sutilmente.
Maomao sentiu um arrepio, não de medo, mas de irritação e desafio, afastou-se, mantendo um metro de distância, e falou com uma calma afiada:
— Cuidado com o que deseja, príncipe. Algumas escolhas podem custar caro.
Ele sorriu de canto, aproximando-se mais, encurtando o espaço entre eles, e ela sentiu o ar carregado de tensão. O salão parecia se estreitar, os tecidos e luz dourada criando uma espécie de palco só para eles.
— Eu gosto de desafios. — disse Jinshi, a voz baixa, quase sussurrando. — Especialmente quando a princesa parece disposta a me "punir" por cada provocação.
"Sadomasoquista.", pensou sem recuar.
Pelo contrário, deixou que o tecido deslizasse um pouco mais, quase tocando o ombro dele, e falou com firmeza:
— Então prepare-se... porque não tolero insolência.
Nesse instante, Lingli não se conteve e suspirou teatralmente, segurando a fita com as mãos rosadas:
— Parece que vamos nos divertir bastante hoje...
— Muito mais divertido do que costurar seda. — Jin-Ye comentou, cruzando os braços e arqueando uma sobrancelha roxa. — Aposto que ele não sabe que está prestes a ser dominado por uma mulher verde e fria.
Jinshi, ciente da provocação dupla, sorriu ainda mais, mas havia um brilho de cautela agora. Ele sabia que aquela mulher de cabelo verde e olhos azuis era mais perigosa do que aparentava.
Maomao deu um passo à frente, aproximando-se ainda mais, e falou em tom baixo, controlado, quase intimidador:
— Se você quiser continuar provocando, príncipe, tenha certeza de que sabe enfrentar as consequências...
Ele ergueu as mãos, fingindo rendição, mas o olhar roxo fixo nela mostrava que a diversão para ele estava apenas começando. O ar no salão vibrava, carregado de tensão quase palpável, enquanto as princesas observavam cada gesto, cada reação, trocando sussurros maliciosos e risadas contidas.
Lingli cochichou para Jin-Ye:
— Aposto que ele vai desviar o olhar primeiro... mas não vai admitir.
— E quando ela quiser mesmo, Jinshi vai se arrepender de cada provocação — respondeu Jin-Ye, mordendo o lábio inferior, os olhos vermelhos brilhando de antecipação.
Maomao, percebendo a atenção das princesas, deixou escapar um leve sorriso frio, ajustando o tecido contra o corpo. O duelo entre ela e Jinshi não era mais apenas sobre o vestido. Era sobre domínio, provocação e paciência e ela estava decidida a sair vitoriosa.
O ar no salão parecia vibrar com cada olhar trocado entre Maomao e Jinshi, ela manteve o tecido contra o corpo, controlando cada respiração, cada movimento, como se dançasse uma coreografia silenciosa de poder. Jinshi, por outro lado, permanecia imóvel, sorrindo com aquele ar de provocação, mas seus olhos roxos não escondiam a expectativa crescente.
— Então, princesa... — disse ele, a voz baixa, carregada de malícia — parece que está tentando me deixar sem palavras. É tão... encantador.
Maomao ergueu o queixo, deixando que o cabelo verde caísse levemente sobre os ombros, obscurecendo parcialmente o rosto. Seus olhos azuis perfuravam os dele, calculando cada reação.
— Encantador? — repetiu ela, a voz calma, quase sedutora em sua frieza — Talvez seja apenas paciência... ou talvez eu esteja esperando o momento certo para mostrar que não se brinca comigo.
Jin-Ye e Lingli observavam, escondendo risadas atrás das mãos, os olhos vermelhos de Jin-Ye faiscando de diversão e os verdes de Lingli brilhando com malícia. Era como assistir a um duelo silencioso entre predadores.
Maomao deu um passo à frente, aproximando-se de Jinshi de forma medida, calculada. Cada centímetro era um desafio velado, e ele, instintivamente, não recuou, o salão inteiro parecia se contrair ao redor deles, a tensão quase elétrica.
— Você sabe... — continuou ela, deslizando o tecido pelos ombros, o toque leve o suficiente para provocar — eu poderia deixá-lo continuar... mas também poderia decidir quando ele aprenderá a respeitar limites.
Jinshi engoliu em seco, mas manteve o sorriso, apoiando-se casualmente no batente da porta.
— Eu gosto de limites... especialmente quando vêm de alguém como você.
Maomao sorriu fria, sabia que ele queria provocá-la, que cada palavra dele era uma armadilha. Mas, ao invés de recuar, decidiu manipulá-lo com paciência. Um passo à frente, outro recuando, o tecido deslizando suavemente entre os dedos. Cada gesto era pensado para manter o controle absoluto — e para deixá-lo cada vez mais próximo de perder a paciência.
Lingli, com os cabelos rosados brilhando sob a luz do salão, sussurrou para Jin-Ye:
— Ele não vai resistir por muito tempo... Você acha que ela vai atacar primeiro ou apenas testar os limites dele?
— Ela está calculando... — respondeu Jin-Ye, olhos vermelhos brilhando — E quando ela decidir agir, será... explosivo.
Maomao finalmente parou a poucos centímetros de Jinshi, a proximidade era quase sufocante. Ele podia sentir a frieza dela, a paciência mortal que carregava, e ao mesmo tempo... uma tensão que parecia mais íntima do que qualquer toque.
— Então, príncipe... — disse ela, a voz baixa e firme — estou dando a você uma última chance de sair do meu caminho. Ou... aprenderá do jeito mais difícil que não se brinca comigo.
Jinshi desviou o olhar por um instante, admirando a presença dela, o cabelo verde caindo de forma desordenada, os olhos azuis fixos nos dele, quase hipnotizantes. O ar carregado de tensão sexual parecia tornar cada segundo mais lento, cada respiração mais intensa.
— E se eu não sair? — provocou ele, aproximando-se apenas o suficiente para sentir o perfume dela, os tecidos entre eles quase colidindo.
Maomao sorriu de canto, sem quebrar a frieza, cada palavra sua era uma armadilha, cada gesto calculado para fazer com que ele perdesse o controle, mas sem ceder às próprias emoções.
— Então... você aprenderá que provocação tem consequências. — respondeu, passo firme à frente, mantendo o corpo próximo, mas ainda controlando completamente a situação.
Lingli e Jin-Ye trocaram olhares maliciosos, segurando o riso, encantadas com a frieza e manipulação de Maomao. Era uma obra-prima: ela, a princesa do clã Kan, controlando o príncipe herdeiro com frieza absoluta, transformando um momento de constrangimento em um jogo de poder e sedução.
[. . .]
O salão de costura do palácio estava envolto em um silêncio quase sagrado, quebrado apenas pelo leve tilintar de agulhas sendo guardadas e o farfalhar das sedas sob dedos habilidosos. Maomao recuou um passo, observando seu reflexo no espelho de laca: o vestido vermelho vinho, agora finalizado, moldava-se perfeitamente às suas curvas, como se fosse uma segunda pele. O tecido brilhava sob a luz do entardecer que filtrada pelas janelas de papel de arroz, dando-lhe um ar etéreo e, ao mesmo tempo, perigosamente calculista.
— Está perfeito, Maomao. — a voz melodiosa de Jin-Ye ecoou à sua direita.
A princesa de cabelos verde-escuros e olhos claros como aproximou-se, os lábios curvados em um sorriso malicioso. Seus passos eram leves, quase felinos, enquanto circulava Maomao como um pássaro avaliando sua presa.
— Sim. — concordou Lingli, surgindo à esquerda com seu cabelo rosa balançando como pétalas de cerejeira. — E letal... como gelo afiado.
Maomao não respondeu imediatamente.
Em vez disso, deslizou os dedos pela cintura do vestido, sentindo a textura impecável sob sua pele. Sabia que aquela roupa não era apenas um traje, era uma armadura, uma declaração silenciosa de sua posição agora elevada no jogo palaciano.
— Vamos a um salão mais reservado. — disse, a voz tão fria quanto o inverno nos jardins do palácio. — Precisamos revisar os últimos detalhes... sem interrupções indesejadas.
Antes que pudessem se mover, porém, os batentes da porta se abriram com um leve rangido. Jinshi adentrou o espaço com a graça de um gato satisfeito, seu sorriso indolente iluminando o ambiente como um farol de provocação.
— Então é aqui que o príncipe se despede, não é? — murmurou ele, os dedos tocando a barra do vestido de Maomao com uma familiaridade que fez suas costas se arrepiarem.
Ela não recuou, mas seus olhos estreitaram-se.
— Bom... que seu dia continue tão belo quanto sua paciência — ele completou, inclinando-se em um gesto quase irônico antes de se virar e sair, deixando para trás um rastro de perfume amadeirado e um silêncio carregado de tensão.
Assim que a porta se fechou, Jin-Ye não conteve o riso sufocado.
— Do jeito que ele está... acho que você será domada facilmente na noite de núpcias.
Maomao virou-se lentamente, os lábios se curvando em um sorriso que não chegava aos olhos.
— Só se for ele a ficar de pernas bambas, não é? — retrucou, cruzando os braços. — A virgindade mútua é uma praga, mas eu sou filha de uma cortesã. Cresci rodeada por mulheres que sabiam exatamente como fazer um homem gemer. Acredite, será mais fácil eu dominá-lo do que o contrário.
Lingli e Jin-Ye trocaram um olhar, os rostos iluminados por uma malícia eminente.
— Espera... a senhorita sabe bem que os príncipes Jinshi e Jiang... já não são mais virgens? — Jin-Ye perguntou, os dedos entrelaçando-se de excitação.
Lingli riu baixinho, como um sino de vento, observando o olhar assustado de Maomao a medida que as duas irmãs se complementavam.
— Quando os herdeiros passam pela iniciação do Ritual Imperial, perdem a virgindade, e uma cortesã é convidada para... guiá-los, no caso deles o ritual durou até o amanhecer, foram tempos sombrios. — Lingli sentiu o corpo arrepiar um pouco enojada só de lembrar.
Maomao franziu a testa.
— Como vocês sabem disso?
As duas princesas se entreolharam antes de soltarem risadas abafadas.
— Jinshi pediu para que alguns servos nos deixassem espiar parte do ritual — Jin-Ye confessou, os olhos brilhando. — Depois, nos levaram aos nossos aposentos, nada muito explícito, mas... suficiente para aprender algumas coisas, mas confesso que foi assustdador.
Maomao suspirou, aliviada por não ter sido ela a testemunhar aquela cena, mas uma pontada de curiosidade ainda a perturbava.
— Bom... pelo menos não tive que ver ninguém pelado, aprendi com as cortesãs e... bem, aprendi a beijar por conta de um rapaz de quem gostava aos treze anos, aquele sim tinha o beijo perfeito. — sorriu apenas de lembrar, logo tampando os lábios com as mãos.
Os olhos das princesas se iluminaram como brasas.
— Então você precisa nos ensinar tudo que sabe. — Lingli insistiu, avançando um passo. — Inclusive como beijar.
Maomao arregalou os olhos assustada.
— Se eu replicar o que aprendi... provavelmente seria decapitada. — disse passando a mão em volta do pescoço.
— Não se preocupe com isso. — Jin-Ye sorriu, cruzando os braços. — Confiamos em você, não vamos deixar que ninguém saiba disso.
Sem demorar muito, as três expulsaram as servas restantes e trancaram as portas, o salão, agora vazio e envolto em um silêncio íntimo, transformou-se em um santuário de segredos proibidos.
Maomao sentou-se em um banco de madeira laqueada, a postura firme como a de uma instrutora.
— Na Casa Verdete, as mulheres se beijam por diversão e para ensinar as novatas. — explicou, os dedos tamborilando no colo. — Uma de vocês senta sobre meus joelhos. O nobre que beijar estará sentado ou de pé, mas, de qualquer modo... — ela estendeu as mãos, demonstrando o movimento. — Eu puxo pela cintura.
Lingli hesitou por um segundo, o rosto corado, mas a curiosidade falou mais alto. Com cuidado, sentou-se no colo de Maomao, suas mãos tremendo levemente ao se apoiarem nos ombros da amiga.
— Relaxe. — Maomao murmurou, antes de envolver sua cintura com um braço e puxá-la para perto.
O beijo foi firme, técnico, mas carregado de uma intensidade que fez Lingli arfar. Quando se separaram, os lábios da princesa estavam levemente inchados, seus olhos vermelhos estavam escurecidos de fascínio.
— Minha vez! — Jin-Ye não perdeu tempo, empurrando Lingli para o lado.
Desta vez, Maomao permitiu-se um sorriso genuíno.
— Vocês são insaciáveis.
Lingli apenas riu, jogando os cabelos rosados para trás.
— É mais pela curiosidade de sentir, o que você fez minha irmã acabou de sentir.
"O palácio virou um novo bordel... e, como sempre, estou no centro do jogo.", pensou ainda surpresa com a personalidade curiosa e afoita das princesas, se Lady Gyokuyou e a Imperatriz Ah-duo soubessem disso, ela estaria morta, literalmente.
Maomao respirou fundo e, com a postura firme de quem sempre controla a situação, virou-se para Jin-Ye
— Agora, minha vez de ensinar você — disse, a voz calma e firme, mas carregada de autoridade. — Sente-se sobre meu colo. Não tenha medo, isso é apenas aprendizado.
Jin-Ye, com os cabelos arroxeados caindo sobre os ombros, arregalou os olhos verdes, hesitando por um instante antes de se acomodar cuidadosamente, Maomao posicionou suas mãos na cintura da irmã, mantendo o corpo próximo, e então a guiou, explicando cada passo.
— Veja, os lábios devem pressionar com firmeza, mas não de forma agressiva. A língua entra apenas se houver consentimento e ritmo — instruía, deslizando o toque com paciência, quase como uma coreografia.
Jin-Ye tremeu levemente ao sentir a proximidade e a precisão de cada movimento, o rosto dela corou, mas ao mesmo tempo a expressão mostrava concentração absoluta, misturando surpresa, fascínio e diversão.
— Mais perto, mas devagar... assim — continuou Maomao, aproximando ainda mais os corpos. — Segure firme pela cintura, mas mantenha equilíbrio. A respiração é tão importante quanto o beijo.
Lingli, de braços cruzados, não se conteve e riu baixinho.
— Olhe para você, Maomao, Jin-Ye quase não respira, e você ainda consegue manter o controle absoluto, Jinshi vai ficar extremamente satisfeito depois de casar com você.
Maomao revirou os olhos, ignorando a provocação, embora um pequeno sorriso frio aparecesse nos lábios.
— Eu odeio a ideia de cumprir meu papel como consorte, então qualquer satisfação dele não é minha preocupação. — respondeu, mantendo a seriedade enquanto ajustava cada gesto da irmã.
Jin-Ye, ainda no colo de Maomao, sentiu-se dominada pela intensidade da instrução, cada toque, cada pressão, era calculado, frio e estratégico, como se Maomao estivesse mais preocupada em ensinar poder do que afeto. Ela percebeu o controle absoluto da princesa do clã Kan, e ao mesmo tempo sentiu uma excitação inesperada.
— Agora feche os olhos e sinta o ritmo. — Maomao sussurrou, aproximando-se ainda mais. — A mão que segura a cintura nunca relaxa, nunca. É você quem domina o momento.
Jin-Ye obedeceu, fechando os olhos, sentindo cada toque, cada instrução. A tensão entre elas era intensa, quase elétrica, mas Maomao mantinha o controle absoluto, observando cada reação, cada gesto, com paciência e frieza.
Lingli não resistiu e cutucou Maomao, sorrindo maliciosamente:
— Você está abusando, sabia? Ele vai estar de joelhos depois dessa... quer dizer, se casasse com você agora, já estaria completamente perdido.
Maomao soltou um suspiro e ergueu uma sobrancelha, desviando o olhar:
— Não é da sua conta, além disso, não tenho intenção de me preocupar com isso.
— Ah, mas que orgulho você vai dar para ele! — Jin-Ye sussurrou, ainda entre os beijos e toques, tentando controlar a excitação e a concentração.
Maomao, com um sorriso frio e calculista, continuava a guiar a irmã, corrigindo postura, posição das mãos e ritmo do beijo. A cada instrução, a tensão quase sexual aumentava, enquanto as princesas observavam e brincavam, comentando com risadas baixas sobre como o príncipe herdeiro seria "dominado" quando se casasse com a verdadeira princesa do clã Kan.
— Na Casa Verdete, cada movimento é aprendizado — disse Maomao, pausando por um instante e olhando para as duas com autoridade. — Vocês aprendem, mas eu mantenho o controle. Nunca esqueçam disso.
As meninas assentiram, ainda ruborizadas, mas sorrindo maliciosamente, enquanto Maomao mantinha o ar de frieza e domínio, revelando que, apesar da provocação e do clima intenso, era ela quem detinha o poder absoluto.
Maomao respirou fundo, mantendo o controle absoluto sobre a situação com Jin-Ye ainda no colo, ela deslizou a mão pela cintura da irmã, ajustando levemente a postura, o ritmo do corpo e a pressão dos lábios. Cada gesto era calculado, frio e estratégico, como se estivesse ensinando mais do que apenas um beijo: ensinava poder, presença e domínio.
— Segure firme, mas sem esmagar — instruía, enquanto guiava a língua de Jin-Ye com delicadeza. — Cada movimento tem que ter intenção. Não é só prazer... é controle.
Jin-Ye arfava baixinho, o corpo tenso, mas obediente, tentando absorver cada instrução. Os olhos verdes brilhavam de surpresa e excitação, e ela não conseguiu conter um pequeno gemido ao sentir a precisão e força da amiga.
Lingli, encostada em uma coluna, cruzou os braços e riu, os olhos vermelhos faiscando de malícia.
— Olhe só, Jin-Ye... está praticamente hipnotizada, Maomao não está apenas ensinando a beijar, está mostrando quem manda. Jinshi vai desmaiar de inveja.
— Não se esqueçam, meninas, — Maomao interrompeu, mantendo a frieza e autoridade — o objetivo não é agradar ninguém além de vocês mesmas. Se fizerem direito, os nobres aprenderão a lidar com a força de uma mulher treinada.
Jin-Ye apertou a cintura de Maomao, tentando manter o equilíbrio, mas a respiração pesada denunciava a tensão quase sexual que crescia a cada segundo. Maomao, sem perder a paciência, aproximou-se ainda mais, posicionando o corpo de Jin-Ye perfeitamente e guiando o beijo com firmeza, sem pressa.
— Agora é a vez de sentir o controle, — disse Maomao, sussurrando no ouvido da irmã — e de aprender que não é o príncipe quem domina... é você.
Jin-Ye arqueou as costas, surpresa e extasiada, mas obediente, seguindo cada instrução. O beijo se tornou mais intenso, e o ar do salão carregou uma tensão quase elétrica, como se cada segundo estivesse pendurado em um fio invisível de desejo e provocação.
Quando Maomao finalmente se afastou de Jin-Ye, a irmã permaneceu imóvel por alguns segundos, respirando rapidamente, os olhos verdes brilhando de emoção e diversão.
— Minha vez! — exclamou Lingli, sem esconder a empolgação, avançando para o colo de Maomao com coragem.
Maomao suspirou, desviando o cabelo verde do rosto e posicionando Lingli com firmeza, mas novamente mantendo a frieza estratégica.
— Lembre-se, controle é tudo — disse. — Quem segura a cintura domina o momento, quem guia a respiração controla a situação.
Lingli corou, mas não recuou, Maomao aproximou seu corpo do dela, guiando as mãos e lábios, mostrando cada técnica com precisão e calma. O primeiro beijo foi leve, quase acadêmico, mas a cada toque e orientação, a tensão sexual aumentava, deixando ambas as princesas quase sem fôlego.
— Isso... está... incrível. — Lingli conseguiu sussurrar entre os beijos, os olhos vermelhos faiscando de intensidade.
— Lembre-se do controle — respondeu Maomao, mantendo o ritmo, a postura e o domínio. — Sempre você conduz o momento.
Jin-Ye, ainda recuperando o fôlego, não pôde resistir e cutucou Lingli:
— Aposto que você não esperava que Maomao fosse tão... intensa.
— E olha que ainda não terminou! — Lingli respondeu, sorrindo maliciosamente. — Esse treino é praticamente uma aula magistral de dominação e sedução.
Maomao revirou os olhos, ignorando os comentários, mas um pequeno sorriso surgiu em seus lábios.
— Vocês duas se distraem demais. Concentrem-se no aprendizado, ou vão estragar a técnica.
A aula prosseguiu, com instruções detalhadas sobre pressão, ritmo, posição das mãos e respiração. Lingli e Jin-Ye se revezavam, cada beijo aumentando a tensão, a intimidade e o humor no salão. Maomao, paciente e fria, mantinha o controle absoluto, corrigindo e guiando cada gesto, enquanto as princesas aprendiam não apenas a beijar, mas a dominar e compreender o poder que isso poderia lhes dar.
— Depois desse treino, — disse Jin-Ye, ainda corada — Jinshi vai ser completamente controlado por você na noite de núpcias.
Maomao revirou os olhos, ignorando o comentário com frieza, enquanto ajustava novamente a postura da princesa.
— Não me importa o que ele vai ou não sentir, meu objetivo não é agradar nobres. — a frieza e autoridade voltavam em cada palavra. — Mas, se aprenderem direitinho, vocês também terão poder.
Lingli e Jin-Ye trocaram olhares, sorrindo maliciosamente, satisfeitas com o domínio e o humor da princesa do clã Kan. E assim, o salão se transformou em um terreno de aprendizado, provocação e tensão, com Maomao no centro, ditando as regras do jogo, fria, estratégica e irresistivelmente controladora.
— Mas isso ainda continua tão estranho, eu beijei vocês, as princesas, vocês serão praticamente minhas irmãs, meu Deus, isso é insano demais. — Maomao desabafou ficando de pé se servindo um copo d'água.
As princesas riram a abraçando mutuamente e a encarando com certo carinho e gratidão.
— Fique em paz Maomao, somos irmãs, mas não fizemos isso com nenhuma intenção conspiratória a colocar o príncipe em perigo. — Jin-Ye zombou — Foram apenas aprendizados que nós insistimos.
— Creio que isso já nos ajuda bastante de como nos situar quando for necessário, obrigada princesa. — Lingli sorriu de modo fofo inclinando-se para Maomao.
"Essas cenas ainda vão me assombrar por muito tempo, que os deuses tenham piedade de mim, porque isso é uma traição com o príncipe.", Maomao pensou não por temor ou afeição por ele, mas sim por temer a própria morte.
[. . .]
Depois de uma tarde inteira dedicada aos estudos e ensinamentos das princesas, Maomao ainda sentia a cabeça cheia de números, nomes e gestos a serem corrigidos. As damas de companhia a acompanhavam em silêncio pelos corredores do Pavilhão, os passos ecoando levemente sobre o piso de madeira polida. O ar estava carregado da fragrância de incenso e flores frescas, mas, mesmo assim, havia uma tensão que Maomao não conseguia ignorar: cada som do palácio principal parecia amplificado, cada sombra parecia se mover com intencionalidade própria.
Quando a mensagem chegou de forma oficial, — a solicitação do Imperador para que ela se apresentasse no palácio principal — um arrepio percorreu sua espinha. Não era comum que ele chamasse diretamente a princesa recém-chegada; normalmente, intermediários ou conselheiros se encarregavam dessas formalidades.
Maomao respirou fundo, endireitou-se e ajustou o hanfu com cuidado, os tons alaranjados e esverdeados refletindo a luz suave que entrava pelas janelas altas. Enquanto caminhava pelos corredores principais, podia sentir olhares discretos sobre si — servos, guardas e damas curiosos, todos se perguntando o motivo da convocação. Ela manteve a postura, porém, no íntimo, seu coração acelerava com uma mistura de apreensão e curiosidade.
Cada passo a aproximava do grande portão do salão do trono, onde o Imperador normalmente recebia visitas oficiais. A sensação de que algo importante estava prestes a acontecer crescia a cada segundo. Maomao sabia que não se tratava apenas de um cumprimento protocolar: havia algo a ser discutido, uma decisão a ser tomada, e ela precisava estar pronta para qualquer surpresa que aquele encontro pudesse trazer.
O grande salão do conselho estava iluminado pelo sol da tarde, filtrando-se pelas janelas de vidro colorido. Mapas do império e das regiões em crise estavam estendidos sobre a mesa central, e o clima era tenso. O Imperador e a Imperatriz Ah-Duo observavam atentamente, avaliando cada gesto, cada palavra.
Maomao fora informado que enfrentaria um teste crítico: conduzir uma discussão sobre a crise no país ao lado do príncipe herdeiro, Jinshi, o que a fez ficar levemente aliviada por não ser nada mais grave, apenas mais um dia podendo exibir seus talentos esnobando o príncipe.
Maomao manteve a postura ereta, cabelos verdes presos parcialmente, mas algumas mechas caindo com naturalidade sobre os ombros. Os olhos azuis analisavam cada detalhe dos mapas e dos relatórios, enquanto respirava fundo, controlando a ansiedade e mantendo a compostura.
— A situação em Xian-An está se deteriorando — começou Jinshi, com aquele sorriso preguiçoso que sempre a provocava — e parece que precisamos de soluções rápidas, mas me diga, princesa Kan, como você lidaria com um levante iminente em uma província estratégica?
Maomao ergueu o queixo, mantendo o tom firme e sereno:
— Primeiro, é preciso avaliar os líderes locais e entender as causas reais da insatisfação, só depois podemos decidir se aplicaremos medidas diplomáticas ou ações militares. Um erro pode custar vidas e desestabilizar o Império.
Jinshi inclinou-se ligeiramente, aproximando-se de forma que o corpo roxo e firme se colocasse perigosamente perto do dela, o olhar roxo intenso observando cada reação:
— Diplomacia, sempre diplomacia... e se as negociações falharem? Não me diga que você prefere fugir para uma biblioteca a agir, princesa.
Maomao não recuou, mas permitiu que a proximidade dele aumentasse a tensão entre ambos, sem perder o controle:
— Fugir não é uma opção. Planejar e executar com precisão é e você, Vossa Alteza, deveria saber que precipitação não é uma estratégia vencedora.
Ele sorriu, o canto dos lábios provocando, como se estivesse apreciando o equilíbrio entre autoridade e frieza dela:
— Então você se considera mais brilhante que eu? — murmurou, a voz baixa, quase provocando, enquanto o calor de seu corpo se aproximava. — Mais brilhante e... mais irresistível, talvez?
Maomao manteve os olhos fixos nele, uma leve curvatura no lábio sugerindo um sorriso controlado, frio e calculista:
— Se considerarmos estratégias e disciplina, sim. Quanto ao resto... — ela inclinou a cabeça, aproximando-se o suficiente para que o cheiro dele chegasse até ela — ...a lição de hoje é que ninguém domina o outro facilmente. Nem você, nem eu.
A Imperatriz Ah-Duo, sentada ao lado do Imperador, observava cada movimento com olhos calculistas. Ela não apenas avaliava a capacidade de Maomao lidar com crises, mas também sua habilidade em controlar o príncipe herdeiro, cuja provocação constante poderia desestabilizar qualquer pessoa menos experiente.
Jinshi tentou interromper, apontando para o mapa e sugerindo uma manobra arriscada:
— E se enviarmos tropas sem consultar os líderes locais? Rápido, decisivo... e potencialmente desastroso.
— Exatamente — rebateu Maomao, a voz firme, os olhos azuis penetrantes, refletindo frieza estratégica — Desastroso para nós, desastroso para o Império, qualquer ação sem análise é imprudência.
A tensão entre eles não era apenas política; cada provocação, cada gesto físico, aproximava-os, carregando o ar de eletricidade quase sexual. Jinshi inclinou-se para sussurrar, apenas o suficiente para que ela ouvisse:
— Sabe, princesa, é impressionante ver você tão séria... e tão desafiadora.
Maomao apenas ergueu o queixo, controlando a respiração:
— Aprenda a separar provocação de política, príncipe. Aqui, as vidas do império são mais importantes do que o seu sorriso.
O Imperador assentiu levemente, satisfeito com a postura de Maomao, ela não apenas defendia sua visão, mas também mantinha o controle sobre Jinshi, mostrando autoridade e frieza mesmo diante de sua proximidade e provocações sutis.
Quando a reunião terminou, a Imperatriz Ah-Duo comentou discretamente ao Imperador:
— A princesa Kan não só compreende as estratégias políticas, como sabe controlar quem precisa ser controlado. Jinshi pode ser seu noivo, mas ela já demonstra poder sobre ele.
Maomao respirou aliviada, embora por dentro a adrenalina ainda corresse.
Ela sabia que cada palavra, cada gesto, cada provocação de Jinshi seria usada para medir seus limites, mas hoje ela havia mostrado: ninguém no palácio poderia subestimá-la.
[. . .]
O corredor que levava à saída do salão do conselho estava silencioso, exceto pelo som compassado dos passos de Maomao e Jinshi. A luz do fim de tarde atravessava as janelas de vidro colorido, refletindo tons rubros e dourados que pareciam incendiar o ar entre eles.
— Impressionante — disse Jinshi, aproximando-se de Maomao, o tom baixo e provocador, quase íntimo — você realmente sabe como me deixar sem argumentos, princesa.
Maomao manteve o olhar firme, os olhos azuis penetrando nos dele, enquanto sentia o calor sutil do corpo próximo, mas seu sorriso era frio, calculado, uma mistura de autoridade e provocação:
— E você deveria aprender a separar charme de estratégia, príncipe, aqui fora, nenhum sorriso vai salvar tropas ou manipular aliados.
Ele riu baixinho, a voz baixa e rouca:
— Ah, mas eu adoro quando você fala assim... séria e firme... mas ainda assim tão perto.
Ela respirou fundo, permitindo que apenas uma mecha verde caísse sobre o rosto, e inclinou-se levemente, o suficiente para que ele percebesse que não recuaria:
— Se achar que intimidação funciona comigo, esteja preparado para ser... neutralizado.
Um silêncio carregado pairou por alguns segundos antes de Lingli e Jin-Ye aparecerem no final do corredor, inclinando-se para espiar os dois como se observassem uma peça de teatro. Lingli, com seus cabelos rosados e olhos verdes cintilantes, sorriu maliciosa:
— Nossa... parece que o príncipe finalmente descobriu quem domina quem.
Jin-Ye, cabelos roxos e olhos vermelhos brilhando de diversão, aproximou-se mais, a voz baixa e provocadora:
— Ou talvez ele só esteja tentando resistir, aposto que vai desmoronar em cinco minutos.
Maomao revirou os olhos, tentando ignorar o comentário, mas não pôde evitar um leve sorriso de canto de boca. Então, Jinshi, percebendo a presença das princesas, se afastou um pouco, mas ainda mantinha aquele olhar roxo intenso fixo nela:
— Vocês duas parecem sempre prontas para me julgar... mas não percebe que estão do lado errado do jogo?
Lingli se aproximou com um passo elegante, brincando com a fita de seu vestido:
— O jogo é com ela, Jinshi. Você só é uma peça que tenta se mexer sozinho.
— E você parece a rainha das peças, — Jin-Ye acrescentou, inclinando-se para sussurrar — mas cuidado, princesa Kan ainda pode te ensinar algumas lições...
Maomao olhou para as duas, a calma e o controle ainda impecáveis, e respondeu com firmeza, mas com um toque de humor que só as conhecidas entenderiam:
— Continuem falando, ele que lute para se manter inteiro.
O príncipe suspirou, mas não recuou, aproximando-se novamente, diminuindo a distância entre eles. A tensão quase sexual voltou a rondar o ar, mas agora carregada de um jogo de provocações e controle mútuo. Maomao sabia exatamente como manter o equilíbrio: firmeza, paciência e um toque de frieza estratégica.
— Acho que o conselho terminou cedo demais. — murmurou Jinshi, com aquele sorriso preguiçoso, mas os olhos brilhando de desafio. — Fora do salão, parece que você continua a me dominar.
Maomao, com um sorriso gélido e calculado, inclinou-se apenas o suficiente para que ele sentisse o perfume sutil, e respondeu:
— Domínio não é brincadeira, príncipe. É estratégia e você ainda tem muito a aprender.
Lingli e Jin-Ye, observando de perto, trocaram olhares cúmplices e maliciosos. Lingli comentou, baixo:
— Aposto que ele vai passar o resto do dia tentando se provar.
— Ou implorando por revanche — acrescentou Jin-Ye, a voz carregada de diversão.
Maomao revirou os olhos novamente, ignorando os comentários, mas por dentro sorria, sabia que o jogo político e pessoal não acabaria tão cedo, e que a tensão entre ela e Jinshi ainda renderia muitas horas de desafios, provocações e momentos quase impossíveis de ignorar.
O salão ficava para trás, cheio de vozes e sussurros, Maomao e Jinshi caminharam lado a lado pelo corredor interno do palácio, o piso de pedra polida refletindo a luz das lanternas penduradas nos pilares. A tensão política parecia ter ficado para trás, mas a eletricidade entre eles não diminuía.
— Então, príncipe, — começou Maomao, com o canto da boca curvado num sorriso sarcástico — você sobreviveu ao caos... sem sujar suas roupas. Isso é um milagre?
Jinshi arqueou a sobrancelha, fingindo indignação, mas não conseguia esconder um sorriso:
— Sobreviver ao caos é fácil quando se tem uma ótima... — ele pausou, encarando-a, provocador — ...companheira de equipe.
Maomao rolou os olhos, mas não conseguiu evitar um riso contido. Um silêncio breve caiu entre eles, suficiente para que o ar carregado de tensão se tornasse quase palpável. O toque acidental de mãos ao pegar o corrimão do corredor enviou um arrepio rápido por ambos, e eles trocaram um olhar que dizia mais do que qualquer palavra.
— Acidental? — ela provocou, a ponta dos dedos roçando os dele.
— Claro que sim... totalmente acidental. — Jinshi respondeu, um brilho travesso nos olhos. — Mas se você quiser fingir que foi intencional, não vou reclamar.
Maomao riu, o som baixo e divertido ecoando pelo corredor silencioso, quando chegaram ao pátio, o vento frio da noite os envolveu, balançando os tecidos dos hanfu. Lanternas refletiam na água da fonte central, criando reflexos que dançavam sobre suas faces.
Ela se inclinou ligeiramente, como se ponderasse algo, e disse em voz baixa:
— Sabe, príncipe, por um momento pensei que você fosse realmente confiável... mas não posso permitir que se gabe.
— Ah, então é isso, — Jinshi respondeu, dando um passo mais perto. — Você quer me provocar, mas não admitir que gosta?
Maomao virou o rosto, fingindo desinteresse, mas a ponta de seu cabelo roçou a mão dele quando passou, e Jinshi estendeu o dedo, tocando suavemente sua bochecha.
— Cuidado, princesa... — disse ele, a voz rouca — cada gesto seu me tira do sério.
— Talvez eu queira isso... — ela murmurou, a provocação clara, os olhos brilhando de diversão e desafio.
O vento noturno brincava com os tecidos de suas roupas, enquanto eles caminhavam pelo pátio silencioso. Maomao olhou para Jinshi com aquele sorriso afiado que sempre a fazia sentir-se poderosa e, ao mesmo tempo, vulnerável de um jeito que ela detestava admitir.
— Sabe, príncipe, — disse ela, aproximando-se dele e diminuindo deliberadamente o espaço entre seus corpos — você é muito convencido para alguém que quase se deixou enganar por um mensageiro apavorado.
Jinshi sorriu, mas dessa vez não tentou disfarçar o efeito que ela tinha sobre ele.
— Convenção é para aqueles que não sabem improvisar. — ele deu um passo mais perto, e o toque de seu ombro roçou levemente o dela. — E improvisar é muito mais divertido com você por perto.
Maomao fingiu indignação, mas o riso que escapou traía seu divertimento, ela levantou a mão, tocando de leve o peito dele, empurrando-o apenas o suficiente para provocar, sem intenção de se afastar totalmente.
— Divertido? Você chama isso de diversão? Estou começando a pensar que você gosta de testar meus limites.
— Talvez eu goste... — Jinshi respondeu baixinho, aproximando o rosto do dela sem quebrar o jogo. — Mas só se você não reclamar.
Ela desviou o olhar, mas o rubor que subiu pelas bochechas a traiu. Então, num movimento rápido, tentou empurrá-lo de leve com a mão, mas o toque dele segurou seu braço, firme e firme, não de forma agressiva, mas íntima, provocando um arrepio que percorreu sua coluna.
— Interessante... você fica vermelha facilmente, Maomao. — ele inclinou a cabeça, observando-a com atenção. — Isso me intriga.
— É você que provoca... — murmurou ela, tentando recuperar a compostura. — Eu só... reajo.
Jinshi deu um passo mais perto, os corpos quase se tocando agora, o ar entre eles parecia vibrar com cada respiração. Ela sentiu o calor dele e, por um instante, tudo o que restava era aquela proximidade, o sutil toque de mãos, o cheiro do tecido e da pele, e os olhos dele que não desgrudavam dos seus.
— Então continuaremos com esse jogo, princesa? — ele perguntou, com a voz rouca e divertida ao mesmo tempo. — Até quem ceder primeiro?
Maomao respirou fundo, os lábios curvando-se num sorriso que misturava desafio e desejo contido.
— Talvez eu deixe você vencer... um dia. — ela quase sussurrou, sabendo que a provocação atingira o ponto certo.
Eles permaneceram ali, entre a luz e a sombra, rindo baixinho, se provocando com toques quase ousados e olhares intensos. O pátio tornou-se um campo de tensão carregada de humor, desejo e desafio, onde cada gesto e cada respiração preparava o terreno para algo muito mais explosivo, mas ainda estava por vir.
Cada passo de Maomao e Jinshi diminuía a distância entre eles, e os olhares intensos eram quase mais íntimos que o toque. Quando ele finalmente inclinou-se, o beijo começou com firmeza, mas com contenção, quase como um desafio: ele queria testar até onde ela cederia.
Maomao, por um instante, permitiu-se corresponder, sentindo o calor da boca dele e a pressão de suas mãos nos braços dela. Seus corpos se aproximaram instintivamente, respirando em sintonia, cada toque carregado de tensão acumulada, cada movimento provocando arrepios. Ela podia sentir o impulso de se render completamente... mas isso não fazia parte do seu jogo.
Com um gesto súbito, Maomao recuou apenas o suficiente para criar espaço, mantendo o contato com a ponta da boca dele, os dedos deslizando levemente pelo peito dele como se estivesse testando a firmeza da pele e da presença. Então, com precisão e controle, ela mordeu suavemente os lábios do príncipe, não de forma agressiva, mas firme o suficiente para marcar sua autoridade naquele instante.
— Hm... — Jinshi murmurou surpreso, os olhos arregalados pelo toque inesperado.
Maomao sorriu, retirando-se alguns passos, erguendo a cabeça e encontrando o olhar dele com a frieza divertida que só ela sabia usar.
— Lembre-se, príncipe... — disse, a voz baixa e provocativa — eu não me deixo conquistar tão facilmente.
O toque do beijo ainda pulsava entre eles, uma lembrança ardente, mas a mensagem estava clara: qualquer tentativa de dominá-la teria que passar por sua inteligência, astúcia e controle absoluto. E, com esse aviso, ela virou-se, caminhando com graça e confiança em direção ao seu pavilhão, deixando Jinshi observando, ainda em silêncio, fascinado e consciente de que aquele jogo estava longe de terminar.
Maomao atravessou o corredor que levava ao seu pavilhão, cada passo firme e elegante, o hanfu balançando com graça. O frio da noite parecia não tocá-la, e o ar leve do pátio contrastava com o calor que ainda ardia na boca, onde Jinshi havia provado sua determinação.
Ao abrir a porta de seu pavilhão, foi recebida imediatamente pelo burburinho das suas irmãs mais novas, que correram em direção a ela com sorrisos radiantes e braços abertos.
— Irmã! — exclamaram em uníssono, abraçando-a, puxando-a para pequenas rodadas e risadas.
Maomao sorriu genuinamente, sentindo-se acolhida e, por um momento, completamente desligada do jogo político e da tensão que Jinshi havia provocado. Mas havia mais uma surpresa: Lahan estava lá, com o sorriso largo que sempre iluminava seu rosto.
— Lahan! — ela exclamou, correndo até ele, os braços envolvendo-o com alegria contida e animação. Sem pensar, girou-o levemente, quase como em um movimento infantil, rindo com a leveza que só ele conseguia arrancar dela.
Ele a segurou com firmeza, mas sem perder a diversão, girando-a lentamente e rindo junto, enquanto as irmãs a observavam encantadas.
— Ah, você continua igualzinha. — disse Lahan, sorrindo.
— E você continua igualzinho a tentar me assustar. — respondeu Maomao, rindo, girando mais uma vez e sentindo a leveza que contrastava com o calor intenso do beijo que acabara de trocar com Jinshi.
Do lado de fora, pelo pátio, Jinshi permanecia em silêncio, observando cada gesto. Seus olhos não desgrudavam dela, absorvendo a naturalidade, a alegria e a energia que ela exalava com as irmãs e com Lahan. A frieza e a provocação de antes ainda pulsavam entre eles, mas ali, à distância, ele podia ver outra faceta de Maomao, a mulher que sabia ser divertida, carinhosa e totalmente encantadora.
O contraste era evidente: de um lado, o jogo intenso de provocação e química com Jinshi; do outro, a leveza e a pureza de seus laços familiares e amizades, mostrando que, por trás da princesa astuta e provocadora, existia alguém capaz de irradiar alegria e humanidade.
Jinshi continuou ali, observando em silêncio, ciente de que aquele momento apenas intensificava o fascínio que sentia por ela, e que, cedo ou tarde, teria que lidar novamente com a intensidade, o controle e a provocação de Maomao. Mas por enquanto, apenas assistia, intrigado, e um sorriso pequeno e contido surgiu em seus lábios — ele sabia que o jogo estava longe de acabar.
O pavilhão estava cheio de risos e movimento. As irmãs mais novas corriam ao redor de Maomao, puxando-a para pequenas brincadeiras, mostrando cartas, peças de jogo e tecidos coloridos, todas tentando impressionar a irmã mais velha. Maomao ria com naturalidade, envolvida na alegria das crianças, girando levemente, ajeitando o hanfu e distribuindo pequenos puxões brincalhões.
— Olhem só para você, — disse Lahan, rindo ao observar a cena — sempre tão cheia de energia, mesmo depois de tanto caos.
— É a minha especialidade, — respondeu Maomao, girando novamente e lançando-lhe um sorriso rápido e travesso. — não posso deixar que a diversão desapareça só porque alguns homens no palácio acham que podem nos assustar.
Enquanto isso, do lado de fora do pátio, Jinshi permanecia em silêncio, os olhos fixos nela. Observava cada gesto, cada riso, cada movimento gracioso de Maomao, absorvendo a energia dela com fascínio contido. Havia algo fascinante na forma como ela conseguia ser ao mesmo tempo provocadora, encantadora e completamente despreocupada com a tensão política ao redor — pelo menos, naquele momento.
Quando as irmãs se dispersaram para brincar em outros cantos do pavilhão, Maomao se aproximou de Lahan, que a esperava com expressão séria, diferente do sorriso leve que mantinha antes. Ele a conduziu discretamente para um canto mais isolado, próximo às janelas abertas do pavilhão, onde o vento frio da noite entrava suavemente.
— Maomao... — começou Lahan, a voz baixa, carregada de preocupação — precisamos conversar.
— O que aconteceu? — perguntou Maomao, imediatamente notando a mudança no tom dele.
Ele respirou fundo antes de continuar:
— Estão ameaçando o clã Kan. — Nossos pais estão tentando segurar a situação para que não atrapalhe o seu casamento... mas pelo que me disseram, o plano de alguns pode incluir sequestrá-la.
Maomao sentiu o coração acelerar, e sua mente imediatamente começou a analisar cada possibilidade, cada risco.
— Se... se isso acontecer comigo? — perguntou, a voz firme, mas carregada de tensão.
— Isso poderia iniciar uma guerra, — respondeu Lahan, sem hesitar. — Um conflito que ninguém quer, mas que alguns grupos radicais poderiam considerar inevitável.
Ela mordeu o lábio por um instante, processando a informação. O brilho nos olhos de Maomao se tornou mais intenso, misturando determinação, raiva contida e estratégia imediata.
— Então não podemos permitir que isso aconteça. — a voz dela era firme, como aço. — Se alguém tentar me sequestrar, terá que enfrentar mais do que apenas meus pais.
Lahan assentiu, compreendendo a intensidade da reação dela.
— Eu sabia que você reagiria assim... mas precisa agir com cautela. A situação é delicada.
Maomao respirou fundo, o peso da responsabilidade se misturando com a adrenalina, ergueu o queixo com firmeza, os olhos fixos em Lahan.
— Então, o que devemos fazer, irmão? — perguntou, a voz carregada de determinação e urgência.
Lahan cruzou os braços, a expressão tensa refletindo a gravidade da situação.
— Primeiro, precisamos descobrir quem está por trás dessas ameaças, — disse ele, a voz baixa, cuidadosa. — Não podemos agir sem ter certeza, alguns movimentos são políticos, outros... são mais perigosos.
Maomao inclinou a cabeça, analisando cada detalhe.
— Precisamos reforçar a segurança imediatamente, — continuou ela, o tom firme e estratégico. — Guardas extras, rotas alternativas, mensageiros secretos para manter contato com os aliados do clã Kan. Se alguém tentar nos surpreender, não teremos outra chance.
Lahan assentiu, impressionado com a rapidez e a precisão da irmã.
— Certo. E quanto aos nossos pais? Eles estão tentando manter tudo sob controle, mas se virem que a situação pode explodir... — ela fez uma pausa, os olhos dele refletindo a seriedade do que ela não precisava completar.
— Eles farão o que for necessário para proteger o clã e garantir meu casamento, — interrompeu Lahan, firme. — Mas se alguém ousar te sequestrar, — ele fixou os olhos nela com intensidade, — terá que lidar comigo primeiro.
Lahan respirou fundo, sentindo a mistura de coragem e determinação que sempre a caracterizara.
— Muito bem... então reforçaremos a segurança, enviaremos espiões discretos para investigar e, se algo acontecer, estaremos prontos. Mas... — sua voz baixou, carregada de cautela — qualquer movimento precipitado pode piorar a situação.
Maomao assentiu, o pensamento estratégico já girando em sua mente.
— Então fazemos tudo com inteligência, irmão, mas não recuaremos. Se tentarem me sequestrar, não apenas frustrarão o plano, pagarão o preço.
Enquanto ela e Lahan traçavam os próximos passos, cada movimento e cada decisão tornavam claro que Maomao não era apenas uma princesa ou uma noiva: era uma força estratégica, implacável quando necessário, e alguém que desafiaria qualquer homem — até Jinshi — a tentar controlá-la.
Maomao e Lahan permaneceram no pavilhão apenas o tempo necessário para traçar os primeiros passos do plano. Assim que saíram novamente para o pátio, instruíram alguns guardas de confiança que permaneciam discretos entre as sombras.
— Reforcem a entrada norte e verifiquem cada mensageiro que chegar, — disse Maomao, a voz firme, enquanto Lahan distribuía ordens complementares aos outros. — Não podemos permitir qualquer deslize.
Os guardas assentiram, movimentando-se com eficiência silenciosa, e Maomao seguiu para verificar os pontos estratégicos do pátio e das rotas de acesso ao pavilhão, acompanhada por Lahan. Cada passo era calculado, cada olhar observando possíveis falhas, enquanto eles discutiam discretamente sinais e códigos para alertar sobre qualquer suspeita.
— Precisamos de mensageiros secretos entre as aldeias próximas, — acrescentou Lahan. — Qualquer informação que chegue deve passar por nós antes que se espalhe.
— Concordo, — respondeu Maomao, cruzando os braços e avaliando mentalmente as rotas e entradas. — E os aliados do clã Kan precisam ser acionados, mas discretamente, não podemos mostrar ao inimigo que estamos cientes das ameaças.
Enquanto eles planejavam e distribuíam tarefas, Jinshi permanecia na sombra de um pilar próximo, observando cada gesto dela. Não fazia barulho, mas cada decisão de Maomao, cada olhar firme e cada comando seguro só aumentavam o fascínio que ele sentia. Ele percebeu também o efeito que ela tinha sobre os guardas e sobre Lahan, todos atentos e respeitosos, seguindo-a sem questionar, impressionados pela autoridade natural que ela exalava.
Ela então se aproximou de Lahan, abaixando a voz:
— Precisamos estar preparados para qualquer movimento surpresa, se alguém tentar me sequestrar, será rápido e direto. Devemos ter planos de contingência, rotas de fuga e aliados estratégicos em alerta.
— Já pensei em algumas rotas alternativas, — disse Lahan, inclinando-se para mostrar discretamente mapas dobrados. — mas nenhuma delas será segura se o inimigo antecipar nossos movimentos.
Maomao olhou para ele com intensidade, e um brilho calculista surgiu em seus olhos:
— Então precisamos ser imprevisíveis e, mais importante, devemos usar o elemento surpresa a nosso favor.
Enquanto eles ajustavam os detalhes do plano, Jinshi não pôde evitar um pequeno sorriso. Ele se manteve na sombra, curioso e intrigado, percebendo que cada movimento dela, mesmo em meio à seriedade, carregava aquele toque de provocação sutil que ele conhecia bem. Ela era audaciosa, inteligente e completamente incontrolável, exatamente como ele adorava, e temia, ao mesmo tempo.
Chapter 10: O Segredo e a Cerimônia de Casamento
Notes:
Postando mais cedo, por conta de alguns compromissos que tenho
Espero que gostem, porque eu amei escrever todos os detalhes de JinMao
13.190 palavras, aproveitem :)))))))
Chapter Text
Na manhã seguinte, o Pavilhão de Cristal estava banhado por uma luz dourada que se filtrava através das amplas paredes de vidro. A claridade refletia nos painéis polidos e no piso de mármore claro, criando pequenas ondas luminosas que dançavam suavemente pelas paredes. O aroma fresco das flores recém-colhidas misturava-se ao leve perfume de chá que vinha de uma mesa meticulosamente arrumada. As porcelanas eram finas, quase translúcidas, e cada vaso, por menor que fosse, exibia arranjos harmoniosos de flores brancas e lilases.
Lady Lihua, vestia um hanfu em tons azulados detalhado com pérola e bordados discretos de magnólias, aguardava de pé. Seu sorriso era suave, porém havia uma sombra de preocupação em seu olhar, algo que Maomao, acostumada a decifrar nuances de expressão, percebeu imediatamente.
— Bom dia, Maomao — saudou Lihua, com voz baixa e acolhedora, como quem chama alguém de volta para casa. — Que bom que pôde vir hoje, estava a dias querendo conversar com a senhorita. — sorriu gentilmente com uma leve animação no olhar.
Maomao inclinou-se num gesto respeitoso, mantendo o olhar firme, mas não frio.
— Bom dia, Lady Lihua. O senhorio do chá está... impecável — respondeu, deixando que uma ponta de genuína admiração transparecesse, pois cada detalhe gritava cuidado e intenção.
Sentaram-se em silêncio por alguns instantes, o som delicado da água sendo servida nas xícaras preenchia o ar com um ritmo quase meditativo. Lihua iniciou a conversa como quem traça um círculo largo antes de chegar ao centro.
— Diga-me... como tem sido sua rotina no palácio? — perguntou, soprando levemente a superfície do chá antes de beber. — Os estudos, os compromissos... espero que não esteja se sobrecarregando.
— Tenho administrado bem até o momento. — respondeu Maomao, girando levemente a xícara entre as mãos. — Não é simples, mas aprendi a separar o que é prioridade do que é apenas ruído.
Lihua sorriu de leve, como se aquela resposta confirmasse algo que já suspeitava sobre o caráter da jovem. No entanto, o sorriso logo se desfez em algo mais introspectivo, seus dedos afagaram a borda da xícara, hesitantes, antes de pousá-la sobre a mesa.
— Maomao... preciso de sua ajuda. — a voz de Lihua baixou, adquirindo um peso íntimo. — Não peço isso da sua pessoa como princesa, mas como médica, de alguém em quem posso confiar sem reservas.
O olhar de Maomao estreitou-se levemente, não havia mais o tom leve de antes, e a tensão súbita no ar era quase palpável.
— Claro, minha senhora. — Maomao fez uma breve inclinação voltando seu olhar para Lady Lihua — Se estiver ao meu alcance, farei, mas o que exatamente deseja?
Lihua respirou fundo, como se cada palavra exigisse coragem.
— Suspeito que possa estar... grávida. — seus olhos, por um momento, pareceram se fixar em algum ponto distante. — Já perdi oito filhos ao longo dos anos... e ainda assim, depois de tudo, consegui dar à luz a Liang. — confessou entre um alívio e certa angústia em sua voz — Não quero correr mais riscos, preciso de cuidados especiais, e de alguém que entenda que... cada dia agora é frágil.
Houve um breve silêncio, em que Maomao apenas a observou, percebendo não apenas a confissão, mas o peso das perdas e a coragem de verbalizar aquilo.
Quando respondeu, sua voz foi firme, mas carregada de respeito.
— Farei o possível para garantir sua saúde e a do bebê, Lady Lihua. — endireitou-se um pouco, seu tom assumindo a precisão profissional que a caracterizava. — Se permitir, podemos ir agora ao seu quarto, quero confirmar tudo e explicar os cuidados necessários.
Lihua assentiu e se levantou lentamente, como se cada movimento fosse calculado para não quebrar algo invisível. Caminharam pelo corredor até seus aposentos, onde a luz filtrada por cortinas de seda tingia o ambiente de um tom dourado e acolhedor.
Maomao realizou o exame com precisão, medindo o pulso, observando a respiração, verificando pequenos sinais físicos. O silêncio era profundo, interrompido apenas pelo som leve das mãos da médica trabalhando, ao fim, ergueu o olhar.
— Realmente a senhorita está grávida. — a pausa foi breve, mas significativa. — No entanto, precisará de repouso absoluto, evite esforços, situações que possam gerar abalo emocional e qualquer exposição a riscos. A gestação ainda é inicial... e, como sabe, o início é o período mais delicado.
O alívio foi visível no rosto de Lihua.
Um sorriso tímido, mas verdadeiro, floresceu em seus lábios, apesar da tensão que ainda permanecia nos olhos.
— Obrigada, Maomao. —Lihua beijou as mãos de Maomao como se a agradecesse — Confio plenamente em você e peço que este assunto permaneça em segredo absoluto... nem o Imperador, nem a Imperatriz devem saber, por enquanto.
Maomao assentiu, sem hesitar.
— Seu segredo estará seguro comigo.
Um instante de silêncio se instalou, não de forma desconfortável, mas pesado de significado, o ar parecia mais denso, como se a confiança recém-estabelecida fosse um pacto invisível. Então, Lihua, com um gesto lento e deliberado, estendeu a mão e tocou levemente a de Maomao.
— Você não é apenas minha médica agora... é minha confidente, pode saber que aqui a senhorita também possui uma amiga.
Maomao sustentou o olhar dela, e por um momento não houve hierarquia, apenas duas mulheres unidas por um segredo que podia mudar destinos.
— Então cuidarei de você como cuidaria de mim mesma. — disse Maomao, em um tom baixo, mas carregado de promessa com um pequeno sorriso entre os lábios.
E Maomao sabia, no fundo, que o que havia começado como uma consulta médica acabava de se tornar algo muito mais profundo: uma ligação de lealdade que, no palácio, poderia ser tanto uma bênção quanto um fardo.
Ao deixar os aposentos de Lady Lihua, Maomao caminhou pelos corredores do palácio com passos firmes, mas o olhar distante. O perfume de magnólias ainda lhe grudava à pele, misturado à lembrança recente do toque frio, quase trêmulo, da mão da concubina. O pacto que acabara de firmar ainda ecoava dentro dela, não como um juramento formal, mas como um peso invisível que passava a acompanhá-la a cada respiração.
No Pavilhão de Cristal, a luz dourada parecia pura, mas Maomao sabia que por trás de qualquer beleza naquele lugar, havia sombras que observavam. Os corredores eram mais do que pedra e madeira: eram artérias por onde corriam rumores, alianças e traições.
Grávida.
A palavra repetia-se em sua mente como um tambor lento e não apenas grávida — grávida em silêncio. No palácio, uma gravidez podia significar a elevação de uma concubina ou sua ruína, tudo dependia de quem soubesse primeiro e de como a notícia se espalhasse.
Maomao sabia que Lihua tinha razão em querer manter segredo. Uma revelação precoce poderia atrair olhares gananciosos, provocar a inveja de outras mulheres da corte, ou até mesmo despertar suspeitas de figuras muito mais perigosas. O Imperador poderia ser manipulado, a Imperatriz poderia ver nisso uma ameaça direta à sua influência, embora fossem amigas tudo poderia mudar dependendo da abordagem que fosse a noticiado sobre a gravidez da concubina. E havia ainda aquelas que se moviam nas sombras, concubinas com sorrisos doces e mãos manchadas de veneno, eunucos cuja lealdade se comprava com moedas, e conselheiros que viam vidas como peças em um tabuleiro.
Todos, de alguma forma, poderiam se beneficiar ou se prejudicar com aquela criança.
Ela parou um instante, encostando-se em uma das colunas do corredor, observando de longe dois servos conversarem em voz baixa. Não ouviu o que diziam, mas o simples movimento das bocas lhe lembrou como as paredes do palácio pareciam ter ouvidos. Qualquer deslize, qualquer mudança na rotina de Lihua, poderia gerar perguntas, uma ausência prolongada nas cerimônias, uma expressão de fadiga mais acentuada, e os rumores nasceriam.
Maomao respirou fundo.
Se fosse apenas um segredo médico, ela poderia guardá-lo sem dificuldade, mas aquilo... aquilo era política em estado puro. Era mexer em um delicado equilíbrio de poder que mantinha muitas cabeças presas a seus pescoços.
— É cedo demais para que isso chegue aos ouvidos errados.. — murmurou para si mesma.
Enquanto retomava o caminho até seus aposentos, já planejava. Teria de ajustar discretamente a dieta de Lady Lihua, reduzir os riscos sem chamar atenção, e talvez encontrar uma desculpa convincente para justificar visitas regulares. Tarefas que exigiriam criatividade... e cautela, ainda mais ela com um filho pequeno e animado.
No entanto, uma preocupação mais incômoda começou a tomar forma em sua mente. Havia uma pessoa que provavelmente perceberia antes dos outros, caso observasse de perto: Jinshi. Ele não era apenas atento — tinha o tipo de olhar que atravessava camadas e se descobrisse, Maomao sabia que seria impossível impedi-lo de intervir, o que, por si só, poderia mudar completamente o jogo.
Quando atravessou o pátio, a brisa da manhã trouxe-lhe um arrepio, não pelo frio, mas pela lembrança de que, no palácio, segredos raramente permaneciam segredos por muito tempo.
E agora, ela carregava um que poderia custar vidas.
Maomao atravessava o pátio interno, carregando mentalmente a lista de ajustes que teria de implementar para proteger Lady Lihua, quando sentiu aquele incômodo sutil, a sensação de estar sendo observada.
Não diminuiu o passo, não olhou para trás de imediato.
No palácio, demonstrar que se percebeu algo podia ser o mesmo que convidar o observador a se aproximar. Continuou caminhando, mas deixou que o olhar vagasse pelos reflexos das colunas polidas e das lâminas d'água do jardim, procurando o ângulo certo.
E ali estava ele.
Encostado levemente a uma das colunas do pavilhão, Jinshi parecia parte da arquitetura: imóvel, mas impossível de ignorar. Vestia um hanfu escuro com discretos fios dourados nos bordados, e o sol filtrado pela copa das árvores acentuava o brilho frio dos olhos, fixos nela. Não havia pressa em seu olhar, tampouco qualquer disfarce de que estava analisando cada passo seu.
— Que coincidência encontrá-la tão cedo, Lady Kan. — disse, quando ela se aproximou, com aquele tom neutro que não revelava se era provocação ou simples constatação.
Ela parou a uma distância segura, mantendo a postura ereta e o semblante impassível.
— O palácio é grande, mas não impossível de cruzar — respondeu, seca. — Há muitas pessoas para esbarrar nos corredores.
Jinshi arqueou levemente uma sobrancelha, como quem anota mentalmente o modo defensivo da resposta.
— E mesmo assim, aqui está você. — Fez uma pausa breve, estudando o rosto dela como se buscasse microexpressões. — Vejo que veio do Pavilhão de Cristal.
Maomao não confirmou nem negou, o silêncio, no entanto, foi tão calculado quanto uma resposta direta.
— Curioso... — continuou ele, caminhando lentamente em sua direção, mas sem invadir o espaço pessoal. — Quando alguém anda com esse ar concentrado, é porque traz na cabeça um enigma... ou um problema.
— Ou apenas pensamentos meus. — rebateu Maomao, finalmente deixando que um leve sorriso de canto surgisse, como quem sugere que ele estava presumindo demais. — E o senhor sabe que não costumo compartilhá-los.
— É verdade. — o sorriso de Jinshi foi breve, mas tinha algo de afiado. — Mas também suponho que sei reconhecer quando você esconde mais do que deveria.
As palavras pairaram no ar como lâminas invisíveis, ele não estava perguntando — estava avisando que percebia algo suspenso no ar.
Maomao ajustou a postura, inclinando a cabeça ligeiramente.
— Então, se sabe disso, também deve saber que insistir não mudará nada.
Jinshi observou-a por mais alguns segundos, depois recuou um passo, como se aceitasse — ou fingisse aceitar, a barreira que ela impunha.
— Por enquanto. — disse, e virou-se para seguir seu caminho.
Ela ficou parada por um instante, observando-o se afastar com o andar calculado de quem nunca dá um passo sem pensar no efeito. Sabia que ele não acreditara em nenhuma fachada que tivesse apresentado e isso significava apenas uma coisa: Jinshi voltaria.
[. . .]
Um pouco mais tarde já no salão principal do palácio Maomao estava em um estado de agitação silenciosa, os servos se moviam como sombras bem treinadas, carregando bandejas de porcelana, estendendo tecidos finos sobre longas mesas e ajustando lanternas de seda nos suportes de madeira entalhada. O teto alto, pintado com cenas de dragões dourados entre nuvens, refletia a luz das tochas, dando ao espaço um brilho solene.
Maomao entrou sem pressa, os passos ecoando levemente sobre o piso lustrado, o cheiro suave de incenso de sândalo misturava-se ao aroma doce das flores que já adornavam as extremidades do salão. Naquela tarde, cada detalhe importava, o casamento exigia uma perfeição que não se media apenas em beleza, mas em mensagem.
Ela aproximou-se da mesa principal, onde descansavam listas e anotações feitas de próprio punho, e começou a revisar. Conferiu mentalmente a posição das cadeiras, a simetria dos arranjos, a ordem dos lugares conforme as regras de etiqueta imperial.
Foi quando percebeu a presença que a observava de perto.
— Você está com o cenho franzido, Lady Kan, isso não faz bem para a noiva, se estressar 1 dia antes da cerimônia. — disse uma voz firme, mas não severa, às suas costas.
Ela se virou e encontrou Ah-Duo, a Imperatriz, vestida com um hanfu de seda num tom profundo de púrura, bordado com fios dourados que desenhavam fênixes em pleno voo. A cor era intensa, mas o olhar da Imperatriz transmitia algo ainda mais marcante: segurança.
— Majestade. — saudou Maomao, inclinando-se respeitosamente. — Estou apenas revisando para garantir que não haja falhas.
Ah-Duo caminhou até a mesa e pegou uma das anotações, percorrendo com os olhos rápidos as linhas escritas.
— Nenhuma cerimônia de peso acontece sem falhas ocultas — disse, devolvendo o pergaminho. — O segredo é fazer com que ninguém as perceba.
Maomao permitiu-se um breve sorriso.
— Por isso estou verificando três vezes.
"Meticulosa e perfeccionista demais, Maomao vai dar muito trabalho ainda.", pensou a Imperatriz a observando atentamente.
A Imperatriz deu alguns passos, olhando para o espaço como quem já havia presidido dezenas de eventos semelhantes e conhecia de cor cada armadilha.
— As lanternas na ala leste estão ligeiramente desalinhadas. Pouca gente notaria... mas o Imperador, sim, ajuste-as antes que alguém mais apressado resolva "corrigir" de forma errada.
Maomao fez sinal para um servo, que imediatamente se dirigiu às lanternas.
Ah-Duo continuou andando, os olhos atentos a cada detalhe.
— A sequência das cadeiras de honra está correta, mas as almofadas precisam estar alinhadas ao centro da mesa, não ao encosto, é um detalhe, mas simboliza atenção.
— Entendido. — Maomao fez outra anotação mental.
Quando a Imperatriz voltou a se aproximar, pousou uma das mãos sobre a mesa, levemente inclinando-se na direção dela.
— Lembre-se: amanhã, cada olhar, cada gesto, será avaliado, o casamento é mais do que a união de duas pessoas. É um espelho da força e da harmonia do império.
Maomao sustentou o olhar de Ah-Duo.
— É por isso que quero que tudo esteja perfeito.
Ah-Duo assentiu, e dessa vez sua expressão suavizou.
— E estará, porque você tem algo que muitos aqui não têm: não teme os olhares que julgam.
Ficaram lado a lado por um momento, observando os servos ajeitarem o salão, entre uma ordem e outra, Maomao sentia que a presença da Imperatriz era como uma muralha silenciosa ao seu lado, não havia necessidade de falar mais, pois o apoio dela estava implícito em cada intervenção precisa, em cada ajuste que fazia com as próprias mãos.
Maomao permaneceu em silêncio, apenas ajeitando um tecido, mas seus olhos revelavam que absorvia cada palavra.
— Sobre Jinshi... — a imperatriz prosseguiu, baixando ainda mais o tom — ele tem uma habilidade rara de ler expressões, mesmo as mais sutis. Evite dar respostas rápidas demais, ou poderá mostrar mais do que deseja, pausas calculadas, são essenciais Lady Kan.
A frase ficou suspensa entre elas, como uma peça delicada de porcelana prestes a cair.
— E quanto aos seus... segredos,— Ah-Duo escolheu bem o momento de olhar diretamente para ela — mantenha-os firmes como pedras submersas. Invisíveis à superfície, mas inabaláveis.
Maomao sentiu um frio percorrer-lhe a espinha, havia ali, nas palavras da imperatriz, o peso de alguém que já carregara fardos semelhantes.
Ah-Duo então endireitou a postura e, com naturalidade, começou a ajustar um conjunto de velas sobre um altar lateral. Para qualquer um que olhasse de longe, parecia apenas a imperatriz ajudando nos preparativos, mas, para Maomao, cada gesto vinha acompanhado de um conselho não dito: mantenha-se firme, não permita que percebam a correnteza sob as águas.
Quando se afastou, Ah-Duo deixou apenas uma última frase no ar, quase como um sussurro:
— No dia do casamento... sorria para todos, mas só confie no silêncio.
[. . .]
O salão principal estava quase pronto, a luz filtrava-se pelas altas janelas, tingindo de dourado o brilho dos sedosos tecidos pendurados no teto. Maomao ajeitava uma das mesas laterais, conferindo pela terceira vez a posição das flores, quando sentiu Ah-Duo aproximar-se, os passos leves mas firmes.
Ah-Duo sorriu de lado, mas sua voz baixou, tornando-se mais afiada.
— Então lembre-se: olhares, sorrisos, até o jeito de tocar o cálice... tudo comunica algo. A corte é um jogo, Maomao. E neste jogo, revelar demais é perder. Especialmente com um noivo... observador.
Maomao percebeu o tom carregado de subtexto, mas não respondeu. A imperatriz, no entanto, não parecia disposta a recuar.
— Ele vai testar você, às vezes de forma sutil, às vezes não, não caia nas provocações. — Ah-Duo ajustou um brocado sobre a mesa.
As palavras ficaram pairando no ar, e Maomao se viu momentaneamente presa nelas, que não percebeu o leve ranger da porta, nem os passos que avançavam pelo salão até que uma voz familiar rompeu o clima.
— Falando de mim pelas costas? — Jinshi entrou com um sorriso enviesado, o olhar demorando-se mais do que o necessário sobre Maomao, como se procurasse algo escondido.
Ela manteve o rosto impassível, mas sentiu o corpo reagir, não pela surpresa, mas pela mistura desconfortável de estar sob seu escrutínio logo após o alerta da imperatriz.
— Apenas de como você ainda parece não ter saído da adolescência — respondeu Ah-Duo sem sequer olhá-lo, como quem comenta sobre o tempo. — Algumas coisas não mudam.
O sorriso de Jinshi se estreitou, mas ele não recuou.
— Ah, mas certas mudanças são... interessantes. — seus olhos voltaram-se para Maomao, e havia ali algo mais que simples curiosidade. — Por exemplo, certas damas que antes me olhavam agora parecem evitar meus olhos de propósito.
Maomao ajeitou calmamente um laço na mesa, sem lhe dar o prazer de uma reação imediata.
— Talvez porque olhares constantes sejam inconvenientes.
Ele inclinou a cabeça, aproximando-se apenas o suficiente para que a distância entre eles se tornasse um detalhe carregado.
— Ou talvez porque têm algo a esconder.
Ah-Duo observava a cena com a tranquilidade de quem assiste uma partida de tabuleiro.
— Cuidado, Jinshi, se provocar demais, talvez descubra coisas que não está pronto para ouvir.
O sorriso dele se abriu outra vez, mas os olhos permaneceram estreitos.
— Ah, duvido, eu sempre estou pronto.
O silêncio que se seguiu à saída lenta de Ah-Duo parecia denso, carregado do eco das palavras que ainda pulsavam na mente de Maomao. Ela ajeitava alguns arranjos de flores vermelhas e douradas sobre uma longa mesa de madeira escura quando percebeu — antes mesmo de olhar — a sombra se projetando sobre o piso polido.
— Mexendo em tudo sozinha de novo... — a voz de Jinshi veio suave, quase divertida, mas com aquele tom que escondia um segundo significado. — Vai acabar se cansando antes do próprio casamento.
Maomao não ergueu os olhos, mas sentiu o peso da presença dele às suas costas, próximo o suficiente para que o perfume sutil do óleo de sândalo chegasse até ela.
— Se eu esperar que alguém realmente útil apareça, o salão não vai ficar pronto a tempo. — respondeu, seca, endireitando um vaso.
— Útil, hm? — Jinshi deu um passo mais perto, passando os dedos pelo tecido de uma cortina, como se estivesse inspecionando. — E se for alguém que entende tanto de política quanto de flores? Posso oferecer meus serviços... em ambas as áreas.
Maomao suspirou, finalmente o encarando.
— Imagino que seu conceito de "serviços" seja bem seletivo.
Ele sorriu, mas os olhos não perderam a intensidade.
— Minha mãe ainda estava aqui há pouco, não estava? — perguntou casualmente, mexendo em outro arranjo, inclinando-se o bastante para que seu ombro quase tocasse o dela. — Deve ter sido uma conversa interessante, ela não visita qualquer pessoa.
Maomao desviou o olhar, continuando a alinhar a toalha sobre a mesa.
— Foi apenas sobre a organização do salão.
— Claro — disse ele, como quem acredita e não acredita ao mesmo tempo. — Mas... só para garantir, não vai me surpreender com nenhum segredo durante a cerimônia, vai?
Ela girou lentamente a cabeça, arqueando uma sobrancelha.
— Segredos? Se eu tivesse algum, certamente não seria a você que eu contaria.
O sorriso dele se ampliou, e por um instante Maomao percebeu que Jinshi não estava apenas brincando, havia algo de sério na forma como a observava. Ainda assim, ele se inclinou para ajustar um pequeno enfeite sobre a mesa, aproveitando para deixar a mão roçar de leve sobre a dela, como se fosse um movimento acidental.
— Só cuide para que não se traia por um gesto, princesa. — disse, a voz baixa o suficiente para obrigá-la a prestar atenção. — O salão inteiro estará olhando.
Ela manteve o queixo erguido, mas o coração acelerou, Jinshi, satisfeito com o desconforto que provocara, recuou meio passo e olhou ao redor.
— Além disso — acrescentou, com um tom quase infantil, mas carregado de intenção — quero ter certeza de que estará perfeita... afinal, este casamento é tão meu quanto seu.
Maomao apertou o pano que segurava, lutando para não deixar escapar nenhuma reação que entregasse o efeito que ele causava.
Ela endireitou a postura, os dedos se fechando em torno de uma pilha de tecidos dobrados, como se pudesse se blindar com aquele gesto mecânico, mas cada dobra que fazia parecia perder o alinhamento certo quando sentia a presença de Jinshi atrás de si, não apenas atrás, mas próximo o suficiente para que o calor dele fosse perceptível.
— Está torto. — ele disse, voz baixa, como quem partilha um segredo ao pé do ouvido. Antes que ela pudesse retrucar, Jinshi já se inclinava para ajustar o pano em suas mãos, os dedos tocando os dela de forma acidental... ou nada acidental. — No seu casamento, Lady, tudo vai ser observado, cada gesto, cada desvio, melhor treinar agora.
Ela não respondeu, respirando fundo e se afastando dois passos para retomar outra pilha, Jinshi a seguiu com a naturalidade irritante de alguém que não precisava pedir permissão para ocupar qualquer espaço.
— Não tenho tempo para brincadeiras — ela disse, ainda sem encará-lo.
— Brincadeiras? — o sorriso dele se refletiu no tom suave, mas cortante. — Eu só quero garantir que a futura princesa não seja pega desprevenida... em nenhum sentido.
Maomao fechou os olhos por um instante, estava consciente de como cada palavra dele vinha carregada de um duplo sentido, política e insinuação, verdade e provocação.
Ele pegou outra peça de tecido, erguendo-a diante dela como se examinasse a qualidade.
— Sabe, você poderia esconder segredos até do Imperador, mas não de mim. — disse, quase num murmúrio. — Eu aprenderia a lê-la... cedo ou tarde.
Maomao sentiu o sangue correr mais rápido, não de medo, mas de pura frustração e algo mais, algo que não queria admitir.
Jinshi então se inclinou levemente, entregando o pano dobrado de volta, de modo que suas mãos se encontrassem.
— Além disso — completou, com um sorriso que só ela podia ver —, não é tão ruim quando eu ajudo, não é?
"Eu diria que é péssimo, vossa Alteza.", se ele lê-se seus pensamentos ficaria extremamente frustrado em como Maomao claramente o desprezava.
O salão estava quase vazio, exceto pelo som distante de passos dos servos carregando bandejas. Maomao fechou a tampa da caixa de seda que examinava e se virou, percebendo que Jinshi se aproximava.
Não recuou, ao contrário, permaneceu no mesmo lugar, obrigando-o a parar a apenas um palmo dela.
— Ainda mexendo nessas coisas? — ele perguntou, num tom que tentava soar casual, mas soava mais como um teste.
— E o príncipe ainda sem saber ficar quieto. — ela respondeu, medindo-o com o olhar rápido, como se decidisse onde ele se encaixaria na disposição do cômodo.
Jinshi deu um passo a mais, diminuindo a distância, esperava que ela se afastasse, como sempre fazia, mas Maomao não se moveu.
Seus olhos se prenderam aos dele, serenos, enquanto inclinava o corpo só o suficiente para alcançar uma caixa atrás dele, fazendo com que seu braço quase encostasse na manga dele. Um quase toque, milimetricamente calculado.
Ele franziu o cenho, mas não recuou.
Ela, por sua vez, continuou seu trabalho, como se ele fosse apenas mais um móvel no caminho. A cada movimento, a proximidade se repetia: a dobra da manga roçando na dela, o calor de um respiro mais próximo do que deveria.
Pequenos acasos, ou assim pareciam.
— Você... está fazendo de propósito — ele murmurou, num tom baixo, quase acusatório.
Maomao arqueou uma sobrancelha, como se não entendesse.
— Oh? Eu só estou organizando, não posso escolher onde o senhor decide ficar parado. — disse, voltando-se para a prateleira, mas com um canto de boca quase imperceptivelmente erguido.
Jinshi ficou ali por mais um instante, observando-a, sem saber se recuava ou se cedia ao jogo. No fim, fez o que ela queria: permaneceu, preso na dúvida se era ele quem a cercava ou se era ela quem o mantinha onde queria.
Ele não se afastava, mantinha-se ali como um espírito obsessor, a uma distância calculada, próximo o bastante para que Maomao percebesse o calor dele, mas longe o suficiente para que fosse impossível acusá-lo de estar no caminho.
— Posso ajudar com isso? — a voz dele soou suave, quase inofensiva, enquanto sua mão pairava sobre o mesmo rolo de seda que ela acabara de alcançar.
— Não é necessário. — ela respondeu, sem encará-lo, apenas ajustando o tecido com precisão, mas não recuou. Permaneceu ali, a ponta do ombro roçando de leve na manga dele quando se inclinou. Foi sutil... mas intencional.
Jinshi arqueou uma sobrancelha, intrigado.
Normalmente, ela desviava, recuava, hoje, não. Hoje, ela parecia... medir cada centímetro entre eles.
Enquanto Maomao passava ao lado para pegar uma bandeja, deixou que a ponta do quadril quase — quase — encostasse nele. O suficiente para que Jinshi, que estava acostumado a provocá-la, perdesse por um instante o ritmo da respiração e sentisse seu corpo queimar, quase implorasse pelo contato com o corpo dela.
— Está... estranhamente silenciosa hoje. — ele comentou, aproximando-se por trás enquanto ela ajeitava os jarros, a voz grave ecoando próxima à nuca dela.
Maomao sorriu de canto, sem virar o rosto.
— Silêncio, às vezes, fala mais do que palavras.
A frase pairou no ar, Jinshi sentiu que não era apenas uma provocação. Era um desafio.
E pela primeira vez desde que se conheceram, ele teve a sensação incômoda de que talvez... não fosse ele quem estava conduzindo o jogo.
Maomao continuava ocupada com a fileira de vasos de porcelana sobre a longa mesa lateral, deslizando-os alguns centímetros para alinhar melhor. Não havia pressa nos movimentos, mas também não havia abertura para que Jinshi interferisse — ainda assim, ele permanecia ali, um passo atrás, como se estivesse à espera do momento exato para intervir.
— Esse vaso ficaria melhor um pouco mais à esquerda — ele murmurou, inclinando-se. O ombro dele roçou levemente no dela, um contato rápido demais para ser considerado acidental, mas calculado o suficiente para soar casual.
Maomao não se afastou.
Pelo contrário, manteve a posição, o que fez Jinshi recuar meio passo, estranhando a ausência da reação que esperava.
— Talvez — ela respondeu, seca, ajustando o vaso milimetricamente. — Ou talvez o problema esteja na iluminação.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Na iluminação, ou em quem a observa?
Maomao o encarou de relance, sem sorrir.
— Quem observa geralmente projeta o que quer ver.
A frase, tão simples, pareceu prender Jinshi por um instante.
Ele tentou recuperar a iniciativa, aproximando-se pelo outro lado da mesa, colocando a mão sobre a borda como se fosse avaliar o equilíbrio da peça. No entanto, Maomao se adiantou, inclinando-se à frente, cruzando a distância entre eles de forma sutil, obrigando-o a recuar de novo para não esbarrar.
— Está muito perto de cair. — ela comentou, com naturalidade, referindo-se ao vaso... mas o tom baixo deixava no ar a ambiguidade.
Jinshi forçou um pequeno sorriso.
— É, e quando algo está perto de cair, costuma-se segurar... com firmeza.
— Ou deixar cair, para ver se realmente quebra. — retrucou ela, voltando à arrumação como se a conversa não tivesse peso algum.
Ele ficou ali, parado por alguns segundos, sentindo que cada troca não o aproximava dela, pelo menos não da maneira que ele queria e o desconforto de não ter o controle daquela distância começava a se misturar a uma estranha fascinação.
[. . .]
Ao final da organização Maomao prosseguiu ignorando Jinshi, a caminho dos corredores, mas o corredor parecia ter se estreitado ao redor deles, as lanternas lançando sombras oscilantes sobre os pilares e sobre o hanfu dela, que se movia com graça calculada. Cada passo que Jinshi dava parecia medido, tentando impor autoridade, mas o corpo e a postura de Maomao negavam qualquer submissão. Havia um ritmo invisível entre os dois, um jogo silencioso que misturava comando, desafio e atração velada.
— Sobre a clínica... já organizei os documentos necessários. — disse Jinshi, a voz baixa, firme, quase oficial. — Precisamos revisar a equipe e definir prioridades antes que os recursos sejam liberados pelo Imperador.
Maomao não desviou o olhar das lanternas acima. Cada gesto seu, cada passo sereno e contido, transmitia controle absoluto, ele sentiu o peso da frieza dela, mais provocativo do que qualquer comando que pudesse emitir.
— E também é importante que você me informe sobre os profissionais que irão trabalhar lá, não posso aceitar que qualquer um interfira nos seus pacientes. — continuou ele, tentando adicionar uma nuance de intimidade na voz, subestimando deliberadamente a frieza calculada dela.
Ela desviou apenas o suficiente para que seus olhos encontrassem os dele de relance, os lábios curvados num sorriso quase invisível. O gesto foi minúsculo, mas suficiente para mostrar que sua tática não surtiu efeito.
— Parece que estou sendo ignorado de propósito. — disse ele, tentando recuperar a tensão, deixando escapar um tom de provocação que não enganava nem a si mesmo nem a ela.
— Apenas observo o príncipe e escuto com atenção, não preciso mais que isso. — respondeu Maomao, o tom sereno e cortante. Cada palavra era medida, cada sílaba reforçava que ele não ditaria o ritmo.
Ao chegarem ao Pavilhão da Lua, o jardim sob a luz prateada refletia nos caminhos de pedra e nos canteiros delicadamente cultivados. O vento leve carregava o perfume das flores, e o reflexo da lua parecia intensificar a presença de Maomao,antes que Jinshi pudesse reagir, ela se moveu. Rápida, elegante, prensou-o contra uma coluna de pedra.
O corpo dela colado ao dele deixava pouco espaço para respirar.
O decote do hanfu expunha o suficiente para provocar, e o calor que se irradiava entre os dois era quase tangível. Jinshi desviou o olhar, sentindo seu rosto ruborizar, e isso apenas fez Maomao sorrir, maliciosa, saboreando cada reação dele.
— Você flerta, provoca... — sussurrou ela, o hálito quente roçando o pescoço dele — mas quando é hora de agir, se retrai.
Sem esperar resposta, inclinou-se e mordeu levemente a pele delicada do pescoço dele, Jinshi estremeceu, a sensação percorrendo-o em ondas, despertando uma mistura de tensão e desejo que ele não conseguia controlar.
— Não tenha medo, — murmurou Maomao, a voz baixa, provocante — a chance da minha saliva ter veneno é só de sessenta por cento. Os outros quarenta não seriam contagiosos... pra você.
Ela se afastou lentamente, mantendo o olhar firme, deixando Jinshi parado, respirando de forma irregular, absorvendo cada gesto, cada provocação, cada detalhe da presença dela. O silêncio do pavilhão se tornou denso, carregado, quase sufocante. Ele percebeu, com clareza dolorosa, que naquele instante não tinha controle algum sobre a situação, que cada movimento dela era um desafio e uma promessa simultaneamente.
Jinshi manteve-se imóvel por segundos, os olhos fixos onde ela estivera, o corpo ainda reagindo ao toque e à proximidade. Cada passo dela, cada gesto, cada provocação calculada não apenas desarmava sua autoridade, mas acendia algo dentro dele que ele ainda não ousava admitir, uma atração que queimava silenciosa, latente e inevitável.
Jinshi permaneceu no Pavilhão da Lua, os ombros ainda encostados na parede onde Maomao o havia prensado instantes antes. O silêncio do jardim parecia mais alto que qualquer conversa que já tivesse ouvido, a respiração dela, a proximidade, o toque calculado, tudo estava gravado em sua mente, e ainda assim ele não conseguia admitir que fora completamente dominado pela situação.
Tentou racionalizar. "Foi apenas um teste", disse a si mesmo. "Ela precisava me mostrar limites." Mas a memória do contato físico, do decote exposto, do sorriso que misturava malícia e controle... isso não podia ser ignorado. Cada pensamento parecia contradizer a lógica que ele costumava aplicar para lidar com Maomao.
Ele se recordou das palavras dela, da provocação sussurrada ao ouvido e do aviso sobre o veneno. Não era apenas o perigo físico que o deixava inquieto, era a forma como ela conseguia misturar humor, intimidação e um poder silencioso que o deixava sem resposta. Ele percebia que qualquer movimento em falso seria percebido, avaliado, e possivelmente usado contra ele.
"Ela não flerta à toa... ela joga", murmurou mentalmente. Cada gesto dela era estratégia, cada toque um cálculo. Jinshi percebeu que, pela primeira vez em semanas, não era ele quem controlava o ritmo entre os dois. A frieza calculada dela, combinada com a intimidade súbita, criava uma tensão que não sabia como desfazer.
Tentou se lembrar do que aprendera com a imperatriz Ah-Duo, mas nada se aplicava. Maomao não estava apenas jogando o jogo político; ela estava reescrevendo as regras diante dos próprios olhos. O sorriso dela, confiante e desafiador, ainda pulsava em sua mente como seimar uma marca indelével.
Por fim, ele se afastou da parede, respirando fundo. Cada passo em direção à saída parecia arrastado, pesado, como se carregasse não apenas o corpo, mas o peso da provocação e da frustração. Sabia que, da próxima vez que se encontrassem, não poderia subestimá-la. E, paradoxalmente, isso o excitava e irritava na mesma medida.
Jinshi se deteve no centro do pavilhão, olhando para o céu noturno refletido nas pedras polidas, sentindo que, pela primeira vez, não controlava nada. Nem o espaço, nem o tempo, nem as emoções que Maomao havia provocado com apenas alguns segundos de proximidade. E, em algum canto de sua mente, ele se perguntou se realmente queria retomar o controle ou se, secretamente, desejava que ela continuasse ditando as regras do jogo.
[. . .]
O Pavilhão da Lua estava silencioso quando Jiang e Jin-Ye chegaram, trazendo um pouco de ar fresco e riso contido com a visita inesperada. Um dia antes da cerimônia, queriam conferir como o noivo se comportava, mas ao entrarem, encontraram Jinshi completamente desnorteado, sentado numa cadeira de madeira, os ombros caídos, o olhar perdido e a expressão confusa.
— Parece que alguém está muito abalado. — murmurou Jiang arqueando uma sobrancelha enquanto se aproximava, observando a postura desajeitada do irmão.
— Ou foi derrotado — acrescentou Jin-Ye, rindo baixinho. Ela cruzou os braços, o sorriso brincando nos lábios, observando cada detalhe de Jinshi que parecia incapaz de reagir. — Sempre soube que Maomao saberia como te dominar de uma forma que nem você estava preparado.
Jinshi ergueu a cabeça, surpreso, a confusão misturada à curiosidade:
— Como assim? — perguntou, a voz ainda carregada de incredulidade, virando-se para os dois irmãos.
Jin-Ye deu de ombros, o sorriso largo agora carregado de diversão maliciosa:
— É óbvio, não é? Maomao é filha de uma cortesã com contatos na Casa Verdete. Qualquer homem poderia ser dominado por ela, é natural. Ela conhece o mundo e sabe exatamente como manipular gestos, olhares... homens. — completou, olhando diretamente para Jinshi, que sentiu o rosto esquentar.
Jiang soltou uma risada baixa incrédulo, balançando a cabeça.
— Bem... parece que o poderoso Zuigetsu não é tão poderoso assim.
Jinshi suspirou, o corpo relaxando lentamente, quase derretendo sobre a cadeira de madeira. Cada palavra, cada riso contido dos irmãos fazia-o reconhecer o óbvio: estava, de fato, completamente subjugado pelo jeito calculado de Maomao. Um misto de frustração e fascínio tomou conta dele, deixando-o vulnerável de uma forma que não admitiria em voz alta.
— Vocês dois são insuportáveis. — murmurou, tentando manter o mínimo de dignidade, mas não conseguindo evitar o riso que escapou involuntariamente.
Os irmãos não puderam conter a diversão. Jin-Ye inclinou-se levemente sobre ele:
— Ah, Zuigetsu... finalmente alguém conseguiu te colocar no lugar certo e olha que ainda falta um dia para a cerimônia.
Jinshi balançou a cabeça, um sorriso pequeno surgindo nos lábios, resignado e encantado ao mesmo tempo. Naquele momento, não havia nenhuma autoridade dele que pudesse se impor. E a consciência de que Maomao, com toda sua frieza calculada e provocação, já tinha vencido o jogo, trouxe-lhe uma estranha sensação de alívio misturada a excitação.
As portas se fecharam atrás de Jiang e Jin-Ye, deixando o Pavilhão da Lua mergulhado em um silêncio pesado. O riso abafado dos irmãos ainda ecoava em sua mente, como se zombasse de cada fraqueza que ele tentava ocultar sob a máscara de príncipe perfeito. Jinshi deixou-se afundar na cadeira de madeira, os ombros rígidos perdendo a compostura, e percebeu que o ar parecia mais denso, mais difícil de respirar.
"Maomao sabe como dominar um homem."
A frase de Jin-Ye latejou em sua cabeça como um selo incandescente. Não era apenas um comentário ácido; era uma verdade perigosa, nua e cruel, que ele havia sentido na pele horas antes. Aquela mordida ousada, o rastro invisível que ainda queimava em seu pescoço, não era um gesto de afeto — era uma declaração de guerra.
Ele ergueu uma das mãos até a própria pele, os dedos roçando o ponto onde os dentes dela haviam se cravado. O toque despertou nele uma onda contraditória: raiva pela ousadia, humilhação por ter sido incapaz de reagir, e uma excitação visceral que ele se recusava a nomear. Jinshi era o príncipe que ditava as regras, que comandava olhares e silêncios, mas diante de Maomao, toda essa arquitetura desabava como areia.
"Não foi veneno... mas poderia ter sido", murmurou para si, lembrando-se da frase envenenada que ela soltara com um sorriso frio. Só 60% de chance. Só. Como se brincar com sua vida fosse um detalhe insignificante.
Ele fechou os olhos e sentiu o peso da própria impotência. Nunca ninguém o havia deixado tão à deriva, como se fosse ele a peça num tabuleiro que desconhecia. Maomao, com sua calma calculada e insolência afiada, não apenas quebrara suas defesas, ela o fizera gostar de estar quebrado.
Isso o corroía, isso o fascinava.
Jinshi inspirou fundo, tentando resgatar a compostura, mas o coração insistia em acelerar, como se aguardasse o próximo encontro, o próximo golpe. Cada lembrança do decote insinuado, da risada abafada contra sua pele, reabria nele uma fissura incômoda e irresistível.
"Eu deveria dominá-la... mas é ela quem dita o ritmo."
Quando abriu os olhos, o salão parecia maior e mais vazio, como se até as paredes tivessem testemunhado sua derrota silenciosa. Pela primeira vez em muito tempo, Jinshi se sentia nu, desarmado, exposto.
E, no fundo, percebeu uma verdade ainda mais inquietante:
Ele queria mais.
[. . .]
O silêncio pesado do Pavilhão da Lua ainda parecia assombrar Jinshi, mas o sol da manhã seguinte erguia-se dourado, atravessando as cortinas de seda com um brilho suave que prometia renovar o dia. Enquanto o noivo permanecia mergulhado em seus dilemas, em outro canto do palácio, a noiva começava a ser preparada para a cerimônia.
Maomao foi conduzida por servas atenciosas até os arredores do Pavilhão das Concubinas. Os jardins estavam decorados com flores frescas de ameixeira e peônias, enquanto incensos de jasmim e lótus se espalhavam pelo ar, perfumando cada respiração com algo entre serenidade e melancolia. O ambiente tinha um quê de sagrado, e ainda assim vibrava com vida feminina, como se ali o peso do império fosse suavizado por cumplicidade e risos abafados.
Assim que entrou, Maomao encontrou um cenário acolhedor, reunidas ao seu redor estavam Lady Gyokuyou, radiante como sempre, Lady Lihua com sua calma serena, a imponente Imperatriz Ah-Duo, e sua mãe FengXian, cujo olhar parecia conter tanto orgulho quanto apreensão. Próximas, aguardavam suas irmãs pequenas, Fenfang e Yaling, que mal conseguiam conter a curiosidade infantil. Ao fundo, duas presenças sorridentes, as princesas Lingli e Jin-Ye, ambas observavam com interesse a preparação, cada qual com sua postura refinada, mas com uma centelha de juventude que quebrava a rigidez das normas palacianas.
— Finalmente a noiva chegou! — exclamou Lady Gyokuyou, batendo palmas delicadamente, arrancando sorrisos ao redor. — Pensei que iria fugir do próprio ritual.
— Não seria surpresa, se ela assim o fizesse. — comentou Fen Fang, de imediato, com seu tom zombeteiro — A Maomao tem esse jeito dela... já pensou se ela some no meio do caminho e volta com uma poção qualquer?
O comentário fez algumas servas rirem baixinho. Até Yaling, de apenas seis anos, escondeu o rosto atrás das mangas, tentando conter o riso infantil.
Maomao arqueou uma sobrancelha, mantendo o semblante sério:
— Se eu realmente quisesse fugir, não seria com uma poção qualquer.
A resposta seca fez a sala explodir em gargalhadas. Até mesmo Jin-Ye, geralmente mais reservada, deixou escapar um riso discreto. Lingli, ao contrário, soltou uma risada aberta e musical, aproximando-se de Maomao.
— É por isso que gosto de você, não importa a ocasião, sempre tem uma resposta na ponta da língua.
Maomao desviou o olhar, sem responder, mas o leve rubor nas orelhas denunciava sua embaraçosa honestidade.
Lady Lihua, sempre doce, interveio com suavidade:
— Hoje não é dia para fugas, Lady Kan, este banho é tradição antiga. Serve para purificar, acalmar... e também para lembrar que a noiva não entra sozinha em sua nova vida.
As servas, com movimentos delicados, começaram a retirar as camadas de tecido que cobriam Maomao, até guiá-la para a tina de madeira laqueada, cheia de água morna e pétalas de rosas brancas. O vapor se erguia como névoa, envolvendo a noiva em uma aura etérea.
Fen Gang inclinou-se, provocadora:
— Nunca pensei que veria você tão obediente, irmãzinha.
— Não se acostume. — murmurou Maomao, afundando-se lentamente na água.
O calor envolveu seu corpo, e por mais que tentasse manter-se impassível, um suspiro escapou de seus lábios, arrancando olhares cúmplices de todas.
FengXian, sua mãe, aproximou-se com um pote de cerâmica contendo óleos perfumados.
— Não torça esse nariz, preparei esta mistura eu mesma. Lavanda para acalmar sua mente, ylang-ylang para suavizar a pele... — seu olhar pousou firme na filha — e sândalo, porque você vai precisar de coragem.
— Coragem para quê? — Maomao perguntou, desconfiada.
Antes que FengXian respondesse, Yaling, travessa, soltou em voz alta:
— Ora, coragem para lidar com o príncipe, é claro!
A sala explodiu em risos. Até a Imperatriz Ah-Duo, que até então permanecia imponente e silenciosa, arqueou os lábios em um leve sorriso.
Enquanto as servas lavavam delicadamente os cabelos de Maomao, Lady Gyokuyou se inclinou, com o brilho maroto nos olhos.
— Quem diria, princesa? Quando a conheci, a senhorita era só uma jovem arredia que fingia não se importar com nada. E agora... está aqui noiva do homem mais cobiçado do império, vulgo meu queridíssimo irmão.
— Que sorte a minha. — retrucou Maomao, sarcástica, fazendo Jin-Ye gargalhar mais uma vez.
Lihua balançou a cabeça com ternura.
— Você mostra frieza... mas nós sabemos, não é? — aproximou-se, como quem partilha um segredo — No fundo, sente mais do que revela.
Maomao desviou o olhar, fixando-se na superfície da água que refletia sua expressão contida.
FengXian começou a pentear seus cabelos úmidos com um pente de jade, desembaraçando cada nó com calma maternal. Fenfang, observando de lado, murmurou:
— Mamãw fazia isso comigo quando eu era criança. — Maomao comentou com a voz um pouco mais doce, sentindo os dedos passando por entre os cabelos.
— E agora faço isso pela última vez, antes de vocês casar. — respondeu FengXian, sorrindo. — Porque hoje é o dia mais importante da vida dela.
— Importante? — Maomao resmungou. — Para mim, ainda parece só mais uma formalidade.
Yaling balançou as perninhas, impaciente, e rebateu com uma franqueza infantil:
— Se fosse só formalidade, ninguém estaria aqui. Está todo mundo cuidando de você porque é especial.
Por um instante, o silêncio pairou. Então, surpreendendo a todas, Maomao riu baixo, cúmplice:
— Talvez eu... esteja um pouco nervosa.
As mulheres sorriram, trocando olhares de ternura. O ambiente, antes protocolar, se encheu de leveza, conversas paralelas surgiram, histórias engraçadas, piadas irreverentes de Yaling, observações espirituosas das princesas Lingli e Jin-Ye, que compartilhavam com Maomao a juventude e a sensação de estar no limiar de responsabilidades maiores do que seus próprios desejos.
Foi então que a Imperatriz Ah-Duo ergueu a voz grave, fazendo o salão inteiro silenciar:
— Chega de risos. — seus olhos pousaram em Maomao com firmeza. — Hoje, você não é apenas filha, nem médica, ou uma política. Hoje você é noiva. Carregará consigo o peso de sua história, mas também o cuidado de todas nós aqui. Entre no salão mostrando força, mas sem esconder o que recebeu neste banho: carinho, união e esperança.
O coração de Maomao apertou no peito, pela primeira vez, abaixou a cabeça em respeito sincero.
— Compreendo...
O banho foi finalizado com massagens em seu corpo e o trançar de seus cabelos em mechas grossas, que seriam adornadas com flores e ornamentos mais tarde. As mulheres continuaram cuidando dela como se fosse uma joia rara, e entre risadas, confidências e olhares cúmplices, Maomao percebeu que aquele momento de união feminina era único. Era como se, antes de se tornar noiva diante de todo o império, ela tivesse sido consagrada por aquelas que a amavam, cada uma à sua maneira.
O salão resplandecia em dourados e carmesins, impregnado pelo aroma suave de sândalo queimando em finos incensários. As janelas estavam cobertas por véus de seda translúcida, filtrando a luz do fim da manhã e tingindo o ambiente em tons quentes, como se o próprio sol abençoasse o momento.
As damas de companhia aproximavam-se em passos leves, carregando baús de laca pintados com dragões e flores de ameixeira. Dentro deles repousavam o vestido de noiva — um hanfu vermelho-vinho profundo, bordado com fios dourados que formavam fênix em pleno voo, símbolo da ascensão da mulher ao posto de consorte. O tecido reluzia, pesado e imponente, um peso que não era apenas físico, mas também simbólico.
Maomao, sentada sobre uma almofada de brocado, tinha os olhos azuis ainda úmidos pelo banho ritual de óleos e flores, mas levemente pintados pela maquiagem das princesas. Seu cabelo verde, agora solto e escorrido, caía em ondas até quase tocar o chão, perfumado com essência de jasmim. As princesas Lingli e Jin-Ye, cada uma com seus trajes cerimoniais, aproximaram-se. Lingli usava rosa claro, bordado em delicados florais que refletiam sua vivacidade. Jin-Ye, em contrapartida, trajava um roxo profundo, com detalhes prateados que realçavam a solenidade de sua presença.
— Segure firme, irmãzinha — murmurou Lingli, ajustando no pulso de Maomao o bracelete dourado com o pequeno formato da flor de lótus cravejado de rubis que Jinshi lhe dera.
"E isso é para me dar sorte, sorte de eu não me matar até o final da cerimônia, casamento meu maior medo... E agora estou aqui quase pronta para me casar com ele... Não queria que fosse assim, não desse modo.", o rosto de Maomao variava de preocupado para entendiado e o dia mal tinha começado.
— Não é apenas uma noiva hoje. — completou Jin-Ye com a voz firme, colocando os brincos de ouro fino. — Você é um símbolo.
A cada ornamento, Maomao sentia o peso da tradição sobre seus ombros, mas o contraste entre a solenidade da ocasião e o carinho sincero daquelas mãos femininas tornava a atmosfera paradoxalmente leve.
Então, a Imperatriz Ah-Duo entrou, ladeada pelas concubinas Gyokuyou e Lihua. Todas vestiam trajes cerimoniais dignos da posição que ocupavam, mas naquele instante eram apenas mulheres, mães, figuras maternas de um jovem que agora seria marido. Carregavam juntas um objeto envolto em pano carmesim. Quando o desvelaram, revelaram uma coroa única: delicada, mas majestosa, trabalhada por um joalheiro renomado, com ouro trançado em espirais, incrustações de pérolas e safiras que pareciam refletir o azul dos olhos de Maomao.
— Este é nosso presente — disse Gyokuyou, emocionada.
— Não apenas como mulheres do palácio, mas como as mães de Zui. — completou Lihua, segurando as mãos de Maomao.
— Ver você assim... — Ah-Duo sorriu, comovida, erguendo a coroa antes de posicioná-la sobre os cabelos verdes cuidadosamente penteados. — É como entregar um pedaço do futuro para alguém que já é parte dele.
As três a abraçaram juntas, emoldurando a jovem com afeto sincero, Maomao, contida, respirou fundo, mas não conseguiu segurar o tremor das mãos.
Logo depois, quando todas saíram, os servos preparavam o palanquim, restou apenas silêncio no salão. O eco do incenso queimando preenchia o espaço, até que passos se aproximaram: FengXian e Lakan entraram, acompanhados dos irmãos Lahan e Zhíyuan. Os olhos de Zhíyuan já estavam vermelhos antes mesmo de tocar a irmã.
— Maomao.. — ele murmurou, atirando-se contra ela em um abraço apertado, chorando convulsivamente em seu colo.
Maomao acariciou os cabelos do caçula, tentando acalmá-lo, enquanto Lahan se aproximava em silêncio, envolvendo-a também em seus braços largos.
Pouco depois, Yaling e Fen Fang chegaram correndo, os olhos marejados, e os quatro irmãos se enlaçaram num abraço coletivo, como se tentassem congelar aquele instante. Ao fundo, Lakan observava em silêncio, ainda em lágrimas pesadas descendo sem pudor, e FengXian segurava sua mão, igualmente emocionada.
— Vocês cresceram depressa demais... — murmurou FengXian, tentando sorrir através das lágrimas.
Quando os irmãos se afastaram um pouco, foi a vez de Lakan se aproximar. Ele puxou a filha para um abraço forte, esmagador, como se ainda fosse capaz de protegê-la do mundo.
— Minha filha... se em algum momento você quiser fugir, se quiser abandonar tudo... basta dizer. Eu dou um jeito. Eu sempre darei. — sua voz era grave, mas os olhos úmidos denunciavam a vulnerabilidade.
Maomao riu baixinho, apesar do nó na garganta, e encostou o rosto no ombro do pai, envolvendo seus braços em volta do pescoço de Lakan.
— Pai... mesmo que eu queira desistir, eu não posso, é o meu casamento, — seu olhar era pesado e sua voz totalmente trêmula, Maomao não sabia o que lhe aguardava e essa era a parte mais angustiante — Eu tenho medo de tudo, porque isso é novo para mim e porque principalmente não existe amor entre ele e eu. Não era isso que eu sonhava para a minha vida, mas é o que pode me garantir uma boa posição e o bem do meu clã.
As palavras ficaram suspensas no ar.
FengXian e Lakan se entreolharam, como se compartilhassem em silêncio uma vida inteira, então, a mãe se aproximou e beijando o topo da cabeça de Maomao, com ternura.
— O amor, minha filha, às vezes não é dado de imediato, se houver vontade das duas partes, ele pode ser construído... com paciência, com tempo. — FengXian pontuou segurando o rosto da filha como se segurasse uma joia — Você está segura, mesmo que ainda não entenda o que sente, o príncipe não é alguém cruel.
Maomao fechou os olhos e deixou as lágrimas correrem, finalmente se permitindo chorar nos braços dos pais. Era o limiar entre sua infância e a vida adulta — uma transição feita não de contos românticos, mas de responsabilidades e medos. Ainda assim, cercada por sua família, sentiu um fio de força percorrer-lhe o coração.
O som do gongo ressoou distante, o palanquim já a aguardava.
E, com o coração apertado e adornos pesando como correntes, Maomao sabia: dali em diante, nada seria igual e não teria mais volta.
[. . .]
As câmaras reais estavam em completo movimento, mas dentro do quarto reservado ao noivo, o silêncio pesava entre as camadas de seda e os tecidos bordados em dourado que aguardavam ser vestidos. Jinshi estava sentado, o corpo rígido, enquanto os servos terminavam de ajeitar suas vestes matrimoniais da antiga tradição. O vermelho profundo do traje contrastava com a pele clara e os cabelos roxos, cuidadosamente presos em arranjos solenes. Seus olhos violetas, normalmente serenos e calculados, agora tremiam com uma insegurança que raramente alguém poderia testemunhar.
Ao lado, Jiang terminava de ajeitar os próprios punhos, disfarçando o riso ao observar o gêmeo mais velho claramente tomado pelo nervosismo. Yao Jun, sempre calado, mas atento, apenas cruzava os braços encostado em uma das colunas, o olhar divertido diante da cena.
— Eu não sei se devo ir — confessou Jinshi, a voz grave, baixa, quase um segredo. — Não sei se consigo... encará-la.
Jiang ergueu a sobrancelha, debochanddo, como sempre.
— Se for o caso, eu vou no seu lugar, me visto com a roupa cerimonial e ninguém percebe.
Jinshi virou o rosto lentamente, lançando-lhe um olhar sombrio.
— Você está brincando, mas se ela segurasse a minha mão...
— Eu já estaria preparado para o sacrifício. — Jiang respondeu com exagero teatral, levando a mão ao peito como se fosse um herói trágico.
Jinshi inspirou fundo, fechando os olhos por um instante.
— E se... se ela me beijar?
Yao Jun arqueou as sobrancelhas, surpreso, e Jiang soltou uma gargalhada curta.
— Você não quer saber até onde eu iria, não é?
O silêncio de Jinshi denunciava sua tensão, e o sorriso torto de Jiang só crescia.
— Hah! — Yao Jun balançou a cabeça, divertido. — Parece até que quem vai casar é você, Jiang. Está tão à vontade que soa como o verdadeiro noivo apaixonado.
— Talvez eu estivesse menos inseguro com uma mulher daquela, a Lady Kan é uma mulher intrigante e excepcional, Zuigetsu tem sorte, mas não parece valorizar essa sorte. — Jiang devolveu, sem perder a ousadia.
Jinshi revirou os olhos, exasperado, mas a pontada de ciúmes atravessou sua pele como agulha fina.
— Se você tocar um dedo nela, Jiang, eu juro que você morre.
— Tenho muito medo de você sim, confia meu irmão — rebateu Jiang, com ironia carregada e então, com um gesto rápido e firme, empurrou Jinshi para frente, quase para fora do quarto. — Agora, chega de drama. Vai logo pro salão, antes que a cerimônia seja minha em vez da sua.
Yao Jun riu alto, e Jinshi, mordendo a própria língua para não ceder ao nervosismo, deixou-se levar, cada passo pesado como chumbo, enquanto seu coração batia em descompasso com a calma que tentava demonstrar.
[. . .]
Os corredores do salão imperial estavam cobertos de seda vermelha e dourada, lanternas balançavam levemente, perfumando o ar com incenso de sândalo. O som suave de cítaras e flautas preenchia o ambiente, preparando todos para o momento mais esperado: a entrada da noiva.
Do lado de fora, o palaquim de Maomao parou diante da escadaria principal, as portas se abriram, revelando-a em toda sua preparação. Seu vestido de seda carmesim com bordados em fio de ouro refletia a luz do sol, os adornos de jade e rubi nos cabelos esverdeados faziam cintilar cada movimento. O véu leve cobria parte do rosto, deixando apenas o olhar frio e calculado visível, olhos esses, que pareciam fitar ninguém e todos ao mesmo tempo.
As damas que a acompanharam ajeitaram a cauda do vestido. O murmúrio da corte correu como vento: "Que beleza estonteante... é mesmo ela?"
Dentro do salão, todos se levantaram, inclinando-se em respeito, no altar, Jinshi aguardava com os trajes cerimoniais com o cabelo preso em adorno imperial, ele parecia impecável, mas quem prestasse atenção notaria o leve tremor em seus dedos, escondidos sob as mangas largas. Seus olhos violetas não desgrudavam do caminho por onde ela viria.
A música intensificou-se. Maomao começou a andar, seus passos eram lentos, precisos, sustentados por uma postura ereta, treinada e impenetrável. Não havia sorriso, apenas o silêncio de quem domina a si mesma diante de mil olhares.
Nas laterais, os comentários surgiam, abafados mas inevitáveis.
— Ela parece odiar estar no centro de tudo isso — murmurou Lahan, observando a gêmea com a sobrancelha arqueada, a voz carregada de ironia e afeto fraternal.
Jin-Ye, que estava próximo, ouviu e não deixou passar:
— Você não sabe de nada. — ele riu baixo. — Maomao consegue sustentar os olhares melhor do que qualquer um aqui.
"Da mesma forma como gosta de ser exibida dançando na Casa Verdete, Maomao odeia ser o centro quando se trata de situações políticas, ela quase explodiu quando debutou para a sociedade como princesa do Clã Kan, em seu casamento ela fingiria sua morte apenas para não concluir o ritual cerimonial.", Lahan riu com o pensamento voltando a atenção para a garota ao seu lado.
— Eu conheço a minha irmã. — Lahan retrucou, cruzando os braços. — Sei o quanto ela detesta ser exposta assim.
Jin-Ye se virou para ele com um meio sorriso, apresentando-se de forma descontraída, como se já se conhecessem de longa data:
— Então você é o famoso gêmeo dela, Lahan certo? — deu uma risadinha cúmplice. — Sou Jin-Ye, irmã do noivo. — riu — Pois bem... vamos apostar?
Lahan arqueou uma sobrancelha.
— O que Vossa Alteza, gostaria de apostar? Quem vai se matar primeiro? — brincou sem desviar o olhar da princesa.
— Quem vai entrar em colapso primeiro. — Jin-Ye apontou discretamente para o altar. — Eu digo que vai ser Jinshi, ele está muito tenso.
Por um instante, o silêncio entre os dois foi quebrado por uma gargalhada abafada.
— Concordo totalmente. — respondeu Lahan, balançando a cabeça. — Aposto todas as minhas fichas nele também.
Os dois riram baixo, cúmplices, enquanto no centro do salão Maomao caminhava com o mesmo semblante frio, e Jinshi, imóvel à sua espera, sentia cada passo dela pesar sobre sua respiração.
O salão inteiro parecia prender o fôlego.
Cada passo dela parecia ecoar mais alto do que qualquer música, arrastando a respiração coletiva da corte.
Mas foi quando os olhos dela encontraram os de Jinshi que o tempo, para ele, simplesmente parou.
Ele a encarava como se estivesse diante de uma miragem — ao mesmo tempo irreal e inevitável. A beleza impecável, o porte firme, a serenidade artificialmente composta... tudo parecia projetado para desarmá-lo. Só que não era apenas a beleza, era o olhar.
Maomao o atravessava com aquela calma calculada, sem tremer, como se a cerimônia fosse uma encenação qualquer e ela tivesse ensaiado sua própria indiferença. Para todos, era uma noiva majestosa. Para ele, era um veneno doce, um lembrete cruel de quem detinha o verdadeiro controle naquele instante.
Jinshi sentiu a garganta secar, a memória da provocação anterior — a frieza, o sorriso que não chegava aos olhos — voltou a pulsar dentro dele como uma ferida recente. Agora, diante de todos, deveria ser ele o centro da autoridade, o príncipe imponente, mas o peso do olhar dela o fazia vacilar por dentro.
Ela se aproximava, passo após passo, como uma predadora que disfarça a caça sob véus de seda. E, mesmo que sua postura não deixasse escapar nada além de disciplina, havia algo nos olhos dela que o desafiava: um lampejo sutil, irônico, como se dissesse silenciosamente que ele seria o primeiro a desmoronar.
O coração de Jinshi batia tão forte que quase o denunciava.
Respirou fundo algumas vezes, forçando a compostura, mantendo o sorriso cerimonial, mas cada segundo daquele olhar sustentado o corroía. A tensão que os unia não era visível a ninguém mais, mas entre eles era um fio esticado ao limite, prestes a partir.
E, quando finalmente ela parou diante dele, a poucos passos, não houve palavras, apenas a batalha muda dos olhos.
A cerimônia podia estar apenas começando, mas, para Jinshi, já era uma guerra interna.
Os olhos dele se fixaram nos dela, incapazes de desviar, o salão inteiro aguardava em silêncio, mas só existia aquele instante entre os dois.
Jinshi, com a voz baixa demais para os outros ouvirem, deixou escapar:
— Pretende me derrubar ainda aqui, diante de todos?
Maomao sustentou o olhar, o canto dos lábios curvando-se imperceptivelmente.
— Eu não preciso derrubar o que já vacila por si só.
Jinshi a observou sem palavras para rebater o argumento de Maomao, ainda sim nesse momento ela conseguia desmontá-lo por completo, seria correto afirmar que em menos de minutos Jinshi estaria desmaiado diante todos os convidados, apenas por estar frente a frente da noiva, do perigo e de sua condenação eterna, a mulher ao qual aos poucos roubava seu coração por inteiro.
O silêncio logo se quebrou com a voz grave do cerimonialista, ressoando pelo salão amplo, ordenando que os noivos se posicionassem para o início da cerimônia. Jinshi, ainda atravessado pelas palavras cortantes de Maomao, sustentava a compostura com cada músculo tenso sob as vestes pesadas, o olhar violeta não se permitindo vacilar.
Maomao, com o rosto sereno, avançava cada gesto com precisão quase mecânica, como se tivesse calculado cada inclinação, cada passo, cada reverência. Ainda assim, seus olhos, quase furtivamente se encontravam com os dele, lançavam fagulhas de ironia e de algo que ele não ousava nomear.
O cerimonialista entoava as tradições, descrevendo a união que selava não apenas dois destinos, mas também o peso da casa imperial diante dos deuses e dos homens. O som dos instrumentos, suaves ao fundo, sustentava a solenidade do momento.
Do alto, em seus lugares de honra, o imperador observava em silêncio, as mãos firmes sobre o braço do trono, os olhos estreitados em aprovação discreta. A imperatriz, ao seu lado, sorria de modo contido, encantada tanto pela imponência do filho diante de todo o salão quanto pela inesperada beleza da jovem que agora partilharia o destino imperial.
Entre eles, o ar era quase palpável como se, a cada palavra proferida pelo mestre da cerimônia, uma nova camada de tensão se sobrepusesse, cobrindo a solenidade com algo mais íntimo, mais perigoso, mais humano.
O cerimonialista inclinou-se ligeiramente e, com voz firme, deu início à primeira etapa do rito: as oferendas aos ancestrais. Dois altares laterais haviam sido preparados com frutas, flores e incensos acesos, o aroma de sândalo e jasmim envolvendo o salão em uma neblina suave. Cada gesto de Maomao era medido, cada movimento dos punhos de Jinshi contido.
— Primeiro, ajoelhem-se diante dos ancestrais. — anunciou o cerimonialista.
Eles se inclinaram em sincronia perfeita, corpo e mente tensionados, Jinshi podia sentir a respiração de Maomao, controlada e calma, contrastando com a própria vontade de se inclinar para frente e sussurrar algo que não deveria ser dito em público. Cada reverência dela era uma lembrança silenciosa de que, mesmo diante de toda a formalidade, ele não detinha controle algum sobre o que se passava entre eles.
Em seguida, vieram as oferendas mútuas, pequenos cálices de vinho eram apresentados, Jinshi estendeu o braço com firmeza, segurando o recipiente com cuidado, enquanto Maomao inclinava-se para aceitar, o toque das mãos quase imperceptível, mas suficiente para fazer o príncipe sentir um choque elétrico que percorreu todo o braço.
O salão permaneceu em silêncio absoluto, o imperador observava cada passo do filho, satisfeito com a dignidade e a compostura de ambos. A imperatriz ao lado do trono, com olhos brilhando discretamente, segurava o próprio sorriso, era a beleza de um ritual perfeito, de uma união marcada pelo dever e pela tradição, mas também pela curiosa intensidade entre os dois jovens.
Eles beberam o vinho, cada gole um símbolo da união e da submissão aos ritos ancestrais e então veio a reverência conjunta, onde, lado a lado, inclinavam-se diante dos altares e depois um diante do outro, o gesto carregado de significado.
Maomao manteve os olhos fixos nos de Jinshi por um instante mais longo do que o necessário, como se medisse a reação dele. Ele, por sua vez, engoliu em seco, os lábios contraídos, incapaz de desviar o olhar, a sensação de que estava sendo desarmado, novamente, era quase física.
Cada movimento, cada gesto, cada silêncio parecia amplificado pelo espaço cerimonial, a tensão não era apenas política, mas pessoal. Eles se uniam oficialmente diante da corte, mas a guerra silenciosa de olhares e provocações continuava a fluir, invisível para todos os outros.
Quando a reverência terminou, o cerimonialista deu um passo à frente, declarando que a cerimônia continuaria com a bênção final e o acompanhamento até o salão do banquete, mas, para Jinshi e Maomao, nada mais ali parecia apenas protocolo, cada passo seguinte seria carregado da mesma eletricidade que os olhares trocados no altar.
O cerimonialista respirou fundo, erguendo as mãos em direção aos noivos, o salão, antes em silêncio absoluto, mergulhou em meio de murmúrios contidos.
— Pela autoridade do trono imperial e pelos deuses que nos observam, declaro o Prícipe da Lua e a Princesa do Clã Kan unidos em matrimônio! — a voz ressoou, firme e solene, fazendo os instrumentos cessarem como se o próprio ar tivesse parado.
No instante em que a declaração ecoou pelo salão, Jinshi sentiu o mundo desabar e ao mesmo tempo explodir. Ele desviou levemente o olhar para Maomao, e encontrou nela aquele mesmo brilho calculado, aquele sorriso imperceptível nos cantos dos lábios, como se dissesse: "Você não tem o controle, nunca teve, agora você está preso a mim e não eu a você."
Ele engoliu em seco, sentindo o calor subir ao rosto, Maomao, mantendo postura impecável, deixou que o encontro de olhares se prolongasse apenas o suficiente para fazê-lo perceber que o que acontecia entre eles não se encerraria ali. A tensão era quase palpável, carregada de promessa e desafio silencioso.
Os dedos de Jinshi tremeram discretamente ao lado do corpo, contidos sob as mangas largas do traje, enquanto ele lutava para não deixar transparecer nada. Ela, por outro lado, permanecia fria, quase divertida com o efeito que causava. Cada passo dela ao lado dele, cada leve inclinação do corpo durante a reverência final, fazia o sangue dele ferver sem que pudesse reagir.
Quando o cerimonialista indicou que a cerimônia havia chegado ao fim, um servo abriu caminho para conduzi-los ao salão seguinte, onde o banquete e as oferendas de comida e bebida esperavam.
— Por aqui, vossa alteza. — anunciou o servo, gesticulando com deferência.
Jinshi respirou fundo e, por um instante, ousou deixar seus ombros relaxarem levemente. Mas ao lado dele, Maomao caminhava com passos medidos, os olhos sempre presos aos dele, silenciosa e controladamente dominando a situação.
Enquanto eram conduzidos pelo corredor ornamentado, as tochas refletiam nos adornos, nos bordados dourados e nos cabelos verdes de Maomao. Ele podia sentir o perfume dela, misto de incenso, seda e algo indefinível, intoxicante e proibido. Cada movimento dela provocava uma tensão sutil em seu corpo, uma guerra silenciosa que nenhum protocolo conseguia apagar.
Maomao deteve os passos no meio do corredor, como se o silêncio ao redor tivesse se adensado de repente. Seus olhos, ligeiramente turvos de inquietação, encontraram-se com os de Jinshi, que não hesitou em caminhar até ela assim que percebeu sua hesitação. Havia algo raro naquela pausa, um recuo que não era próprio dela, um brilho de desconforto que escapava em seu olhar firme.
Quando a distância entre os dois diminuiu, Jinshi, levado por um impulso que mal compreendeu, estendeu as mãos e tomou as dela. Seus dedos a envolveram com uma delicadeza que contrastava com a força contida de seu gesto. Maomao não recuou, permitiu o toque, ainda que a contragosto, como se testasse até onde iria aquela ousadia silenciosa.
Nos olhos dela havia algo que raramente se revelava: uma vulnerabilidade quase escondida, mas nítida o suficiente para fazê-lo prender a respiração. Por um instante, o mundo pareceu suspenso entre os dois, um espaço onde a frieza costumeira dela cedia lugar a uma fragilidade inesperada e ele, ciente da preciosidade daquele momento, não ousou soltar suas mãos.
— Vossa Alteza... — Maomao falava com certa dificuldade, agora não era apenas Vossa Alteza, era "Senhor meu marido", era estranho para ela analisar a posição que agora ocupava a poucos minutos — Eu sempre quis me casar por amor e não por causa de uma aliança política, esse casamento está fadado ao fracasso, mas ainda sim, eu tentarei ser uma boa consorte. — os olhos azuis de Maomao desviam o olhar do rosto de Jinshi, sentindo as lágrimas do próprio rosto escorrer.
Ela ainda se recordava da época em que viu a primeira interação amorosa dos pais entre ela e Lahan, eles eram pequeninos aprendendo a andar e se apoiando um ao outro e a forma como Lakan havia beijado de forma delicado as bochechas de FengXian a envolvendo num abraço quente e terno, enquanto Maomao e Lahan tentavam caminhar até eles com dificuldade, essa era sua primeira lembrança sobre seus pais e era o que guardava em seu coração, a forma como o amor deles parecia ultrapassar barreiras.
— Porquê, meu verdadeiro sonho Zuigetsu era ter o que meus pais tinham, o amor deles que sustentou a minha casa, o meu clã, — a forma como falava de seus pais era a entonação mais suave que Jinshi já a tinha escutado, era uma forma meiga e suave de admiração velada — eu queria ser como eles, amando o meu primeiro amor e sendo amada também...
Os olhos de Maomao já se debulhavam em lágrimas, sua voz embargando e o sorriso falho no rosto encarando Jinshi que a observava com afeição e admiração, ela estava sendo ela mesma naquele momento, mostrando um lado que talvez nem ele imaginava que existia.
— Com o meu pai, eu entendi o que era o amor, porque eu fui o seu segundo maior amor, eu era como sua esposa e tinha o seu gênio impaciente. — Maomao sorriu deixando escapar uma risada limpando as lágrimas com a ponta dos dedos — Meu pai foi meu herói e me ensinou que amar é a forma mais linda e genuína de demonstrar que a vida é muito maior do que imaginamos.
Lakan era um homem admirável, não que ele fosse perfeito, Maomao entendia isso, mas a forma como demonstrava a devoção eterna a esposa e o amor pelos filhos, era isso que Maomao almejava para sua vida, mas sabia que como Princesa do Clã e como mulher, não poderia se dar ao luxo de espelhar sua vida amorosa na história dos seus pais, eles tiveram uma sorte, que talvez ela não tivesse e por isso não nutria grandes expectativas.
— E agora casada com você tudo parece novo e diferente, não digo isso porque confio em você Jinshi, mas porque eu preciso ser sincera, pois não vou me forçar a viver ou fazer algo que claramente não existe amor e cá entre nós, duvido muito que sejamos realmente felizes, porque não temos o amor que eu almejei para a minha vida, eu não sinto nada por você além de desdém Alteza. — concluiu com certo pesar na voz, Maomao queria que as coisas fossem diferentes, mas como tudo estava se prosseguindo seria difícil crescer amor onde foi semeado uma união por política, com a finalidade de trazer paz para o país.
Jinshi a observou com cautela, como se tentasse decifrar a sombra que passava pelo olhar dela. Será que Maomao o via como um homem sem coração, capaz de reduzi-la apenas ao papel de esposa, forçando-a a cumprir deveres matrimoniais como uma prisioneira da tradição? Será que acreditava que ele seria alguém que arrancaria sua honra à força, semeando dor em vez de nutrir um vínculo de afeto?
O pensamento o feriu mais do que ousaria admitir. Não era esse o homem que ele era. Não fora assim que fora moldado. Desde a infância, a Imperatriz e as concubinas lhe ensinaram que uma mulher não era um objeto de conquista, mas sim um ser digno de respeito. Ele cresceu cercado por figuras femininas que lhe mostraram força, astúcia e compaixão e como poderia esquecer? Nas veias corria o sangue de uma mãe, e em sua vida pulsavam a presença de duas irmãs que ele jurara proteger e honrar.
E agora, diante de Maomao, aquele ensinamento antigo parecia ecoar mais forte do que nunca. Não queria dominá-la, mas sim conquistá-la.
— Compreendo o que a princesa diz e concordo com tudo, porque por muito tempo eu também quis um casamento onde houvesse amor, porque cresci vendo o amor dos meus pais e acho belíssimo, — o olhar dele encontrou o dela — entendo meu pai por ter outros filhos para manter a linhagem, mesmo que fosse com outra mulheres, mas o amor pela minha mãe nunca diminuiu no decorrer dos anos, ele continua sendo um tolo apaixonado pela mesma garota pelo qual o encantou aos 15 anos. — Jinshi disse com sinceridade se pondo de joelhos em frente a Maomao que o observava assustado — Por isso Maomao, como marido prometo me esforçar para que você se sinta amada e acolhida por mim, não será fácil e nem acredito que será leve, mas estou disposto dedicar toda minha vida se necessário em devoção completa a senhorita e jamais a obrigarei cumprir seus deveres como esposa se assim não estiver pronta.
Os olhos de Maomao piscaram freneticamente por alguns instantes, ainda sem acreditar no que acabava de ouvir do príncipe ajoelhado aos seus pés lhe prometendo um amor que ne ela sabia se seriam capazes de construírem juntos, ele estava lhe prometendo o mundo, quando ela mesma estava se negando a viver algo que poderia lhe render a felicidade que tanto buscava.
— Serei paciente, temos uma vida inteira, ao qual eu posso esperar pela senhorita, acredito que meu amor não é e nunca será frágil, e o principal nosso casamento não é um fracasso, ele mal começou princesa. — Jinshi sorriu beijando as mãos de Maomao demonstrando sua devoção — Por isso, espero cumprir tudo o que estiver ao meu alcance para que seja feliz ao meu lado.
Maomao o observou se levantar, lhe abrindo o caminho para acompanhar o servo que os esperava um pouco mais a frente, ele ergueu a mão para que ela segurasse e assim o fez, era surpreendente como ele um príncipe ficou de joelhos apenas para mostrar fidelidade e juras de amor, Maomao sentiu o corpo inteiro tremer.
Ela respirou profundamente caminhando em silêncio agora ao lado do seu então esposo e herdeiro do trono, ela não sabia o que esperar daquele momento, mas sabia que aos poucos tudo iria se clareando, mesmo ela não sabendo lidar com tantos pensamentos ao mesmo tempo.
Ao entrarem no salão do banquete, a luz das lanternas douradas iluminava mesas carregadas de iguarias, frutas exóticas, vinhos aromáticos e doces delicados. A corte aplaudia discretamente, admirando a beleza da noiva e a imponência do príncipe, mas para Jinshi, todo o salão parecia desvanecer diante do que acontecia entre ele e Maomao.
E enquanto se posicionavam lado a lado diante das mesas, prontos para receber os cumprimentos e iniciar as oferendas de comida e bebida, ele percebeu que aquela tensão, aquele jogo silencioso de poder e sedução, não havia terminado, estava apenas começando.
O salão do banquete exalava aromas ricos de especiarias, frutas e vinhos antigos, o murmúrio contido da corte se misturava ao tilintar das taças de porcelana, e a música suave preenchia os espaços entre as conversas formais. Maomao e Jinshi ambos lado a lado diante das mesas, cumprimentando discretamente dignitários e familiares, mas a tensão entre eles era quase tangível.
Ela caminhava com passos leves e medidos, cada movimento calculado para que os olhares se prendessem nela, e ele não conseguia disfarçar o efeito que isso tinha sobre seu corpo e mente. Em meio às saudações, Maomao deixava escapar pequenos gestos: um olhar demorado, um leve arqueamento de sobrancelha, ou um sorriso quase imperceptível, provocando nele uma mistura de fascínio e desespero silencioso. Jinshi, tentando manter a compostura, sentia cada instante como se estivesse sendo avaliado e dominado ao mesmo tempo e, em silêncio, sabia que ela gostava disso.
Mas nem todos estavam concentrados apenas na cerimônia.
Pouco tempo depois, Jinshi começou a empalidecer, o corpo tremendo levemente, o príncipe levou a mão à boca, cambaleando e desviando discretamente para uma área mais afastada do salão. Maomao franziu o cenho, confusa, observando o noivo com a respiração acelerada, os olhos arregalados.
— O que... está acontecendo? — murmurou ela, inclinando-se ligeiramente para frente, mas sem saber se deveria se mover ou chamar alguém.
Foi Zhìyuan, rindo baixinho, quem rompeu a dúvida:
— Ah, não se preocupe, é só que nós temperamos a comida do príncipe um pouco... para testar se ele realmente merecia a Maomao.
Fen Fang, mordendo o lábio para conter a risada, acrescentou:
— Ele não nos pareceu bom o suficiente, então decidimos apimentar a situação.
— O QUE?! — Maomao gritou, a voz cortando o murmúrio do salão. Todos os olhares se voltaram para ela.
Ela engoliu em seco, recuperando a compostura com um gesto rápido, e disparou discretamente pelo corredor, o tecido pesado do vestido cerimonial arrastando-se atrás dela. A cintura adornada com joias tremia enquanto ela retirava o vidrinho de antídoto que sempre carregava consigo, com mãos firmes, ela aproximou-se de Jinshi, que estava encostado na parede, pálido, os olhos semicerrados, suando frio.
— Beba isto, agora! — ordenou ela, entregando o pequeno frasco junto a um pouco de água.
Ele aceitou, ainda ofegante, e Maomao mesmo angustiada correu para pegar um cesto próximo para que ele pudesse se apoiar enquanto o efeito do veneno começava a passar. Em meio ao desconforto, Gaoshun entrou silenciosamente na sala reservada, oferecendo suporte.
— Acho que seus irmãozinhos levaram a sério demais me envenenar — brincou ele, apesar do mal estar e do vômito frequente — É engraçado te ver preocupada, Maomao, gosto desse semblante.
Ela não tinha tempo para sorrisos, com o rosto vermelho de raiva e preocupação, bateu firmemente nas costas dele enquanto ele se curvava para vomitar, xingando baixinho entre respirações:
— Idiota! Como você deixa isso acontecer comigo? Idiota!
Enquanto o veneno era neutralizado, Maomao ajudava Jinshi a se limpar, seu toque firme e controlado guiando cada gesto. Ele finalmente suspirou, exausto e um pouco envergonhado, e por um instante ambos ficaram em silêncio, só sentindo o peso do resgate e da proximidade forçada.
— Pronto... agora podemos voltar — disse ela, ajustando a gola do vestido e limpando algumas manchas de vinho ou restos do mal-estar — Mas da próxima vez, você não me envergonha assim, entendeu?
Jinshi apenas assentiu, ainda recuperando a compostura, enquanto Maomao conduzia ambos de volta ao salão do banquete, mantendo o controle absoluto da situação, mas permitindo que o príncipe sentisse, de forma clara e silenciosa, que ele jamais poderia subestimá-la.
Ela o conduziu de volta ao salão do banquete, agora mais firme, mas ainda permitindo que ele sentisse a força silenciosa de seu controle. Cada passo dela era calculado, medido, deixando claro que, mesmo em público, era ela quem ditava o ritmo da situação. Ele, exausto e pálido, tentava retomar a compostura, ajustando o traje e respirando fundo, mas a lembrança do veneno e da intervenção de Maomao permanecia viva, queimando como uma marca silenciosa.
Os convidados voltaram a se movimentar, retomando as oferendas e cumprimentos, mas para Maomao e Jinshi, tudo parecia em câmera lenta. O príncipe mal podia acreditar que, mesmo debilitado, ela continuava a dominá-lo com um olhar, um gesto mínimo ou um leve arqueamento de sobrancelha. E ela, por sua vez, mantinha a postura impecável, uma mistura de severidade e provocação velada, como se cada segundo daquele banquete fosse um lembrete de que ele não tinha controle sobre ela.
Quando o cerimonialista anunciou o término oficial do banquete e a transição para os aposentos reservados para a noite de núpcias, Maomao se afastou discretamente, recolhendo-se com a mesma elegância com que entrou, deixando Jinshi ainda digerindo a humilhação silenciosa e o fascínio que sentia por ela.
No silêncio que se seguiu, entre as mesas vazias e os olhares respeitosos da corte, ficou claro que aquele casamento não seria apenas uma união política. Era o início de um jogo sutil, uma batalha silenciosa de vontades, tensão e desejo contido — e ninguém mais, nem a corte, nem o próprio Jinshi, poderia prever quem realmente controlava a situação.
Enquanto os convidados se dispersavam e os últimos acordes da música cerimonial ecoavam pelo salão, Maomao caminhou sozinha pelos corredores ornamentados acompanhada de algumas damas de companhia, sentindo o peso da responsabilidade, o segredo que carregava e a certeza de que os próximos dias seriam ainda mais intensos. Cada olhar, cada gesto, cada provocação que vinha de Jinshi seria enfrentado com a mesma frieza e inteligência que ela sempre cultivara.
Chapter 11: Pequenos Afetos
Notes:
Achei que não ficou tão bom quanto eu queria e peço desculpas por isso.
Só gostei da cena da banheira e o restante me esforcei pra deixar bom, mas ainda não estou contente com o resultado
Chapter Text
[. . .]
Algumas horas antes
O banquete já se encontrava em seu auge, o salão estava tomado pelo aroma forte de especiarias, carnes assadas, frutas cristalizadas e vinho servido em jarras ornamentadas. As risadas se misturavam ao som de instrumentos, e a atmosfera parecia mais leve do que a formalidade anterior da cerimônia.
Jin-Ye, sentada entre damas e outros convidados nobres, ergueu a taça com delicadeza, as bochechas já ruborizadas denunciavam o efeito do álcool, mas seus olhos brilhavam não apenas pela bebida, e sim pela inquietação que se agitava dentro dela. Do outro lado da mesa, Lahan conversava pouco, mas observava tudo. Seus gestos eram contidos, sua postura mais sóbria do que o ambiente pedia.
— Não está bebendo? — Jin-Ye perguntou de repente, inclinando-se um pouco em direção a ele, num tom carregado de curiosidade.
Lahan desviou os olhos para ela e esboçou um meio sorriso.
— Bebo apenas o suficiente princesa.
Ela riu, quase um riso solto demais para seu costume.
— "Suficiente"... você é tão controlado.
A conversa se arrastou entre pequenas provocações e perguntas sutis, até que, quando a maior parte dos convidados começava a se dispersar, Jin-Ye aproveitou a oportunidade, segurou o braço de Lahan com naturalidade e, quase como quem pede apoio, murmurou:
— Poderia me acompanhar? Os corredores parecem tão longos depois de tanto vinho...
Ele hesitou apenas um instante, mas acabou permitindo que ela se apoiasse.
Caminharam juntos pelos corredores menos iluminados, as tochas lançando sombras nas paredes, Jin-Ye parava vez ou outra, fingindo perder o equilíbrio, até que já próximos de seus aposentos, se voltou para ele.
— Sabe, Lahan... — ela disse com a voz mais baixa, arrastada, e um sorriso misterioso nos lábios — há algo curioso em você, diferente dos outros homens da corte.
Antes que ele pudesse responder, ela deu um passo à frente, aproximando-se tanto que o aroma adocicado do vinho em sua respiração quase o envolveu. Suas mãos deslizaram até a cintura dele com uma ousadia calculada, enquanto o olhar ardente se firmava no dele.
Lahan não se moveu, apenas a olhou, paciente, como quem espera a conclusão de um gesto óbvio.
O coração de Jin-Ye acelerou, ela pensava no que ouvira, no que vira Maomao fazer sem sequer perceber que estava sendo observada. Tentava replicar: o toque firme, a respiração quente, a maneira de guiar o ritmo.
Como se tivesse nas mãos uma fórmula infalível. — ela pensava que tinha, coitada.
Subiu no colo dele ao se sentar no banco do corredor, puxando-o consigo, e capturou seus lábios em um beijo intenso, ensaiado.
Por um breve instante, parecia que dominava a cena, mas Lahan não retribuiu como ela esperava. Ele conhecia demais aquela dança, cada gesto, cada suspiro, cada tentativa de manipular a intensidade.
Com calma desconcertante, segurou-a pelo pulso, afastando minimamente o beijo, seus olhos estavam fixos nela, quase duros, mas não frios.
- Maomao te ensinou isso, princesa? - perguntou baixo, quase num sussurro. - O toque na cintura... a mão no pescoço... e a respiração que dita o ritmo?
Jin-Ye estremeceu, sentiu-se ao mesmo tempo exposta e fascinada.
Ele inclinou levemente a cabeça, o olhar penetrando o dela.
— Não fez errado, não me entenda mal. Para um homem comum, nesse momento, você já o teria de joelhos. — a voz de Lahan era serena, suas mãos encostadas no banco, longe do corpo da princesa, o que a fez ficar levemente frustrada — Foi uma boa aluna devo admitir.
O rubor dela aumentou, um misto de embriaguez, vergonha e desejo.
— Mas... — continuou Lahan, sua voz mais grave — há coisas que ela não te ensinou.
Jin-Ye engoliu seco, sentindo o corpo aquecer ainda mais sob aquelas palavras.
— Todos os homens são iguais... só rompem de formas diferentes — murmurou ela, quase como um desafio, como se quisesse se convencer disso.
E então tentou beijá-lo de novo, com mais força, como se fosse capaz de dobrá-lo.
Mas Lahan segurou firme seu rosto, sustentando o olhar dela.
— Se quer me conquistar, princesa... — disse devagar — não será fingindo ser como a minha irmã que conseguirá. Eu conheço os truques dela, afinal aprendi os mesmos e vi ela criar os próprios.
Jin-Ye ficou paralisada, nunca nenhum homem havia cortado sua iniciativa daquela forma.
Lahan aproximou os lábios de seu ouvido, a voz baixa, quente, mas firme:
— Vai ter que tentar de outra forma, a senhorita terá que ser você mesma.
O silêncio que se seguiu foi denso, carregado de uma tensão elétrica, Jin-Ye, ainda sentada no colo dele, sentia-se vulnerável e ao mesmo tempo provocada, como se uma chama tivesse sido acesa, não pela técnica emprestada, mas pela primeira vez em que alguém a recusava por enxergar demais.
Jin-Ye afastou-se bruscamente, os olhos semicerrados como se tentasse esconder a súbita onda de calor que lhe subira às faces. O vinho ainda fazia efeito, mas não tanto quanto o embaraço de ter suas tentativas desarmadas com tanta naturalidade. Arrumou a gola do próprio vestido, respirando fundo, e então ergueu o queixo com altivez, como se nada tivesse acontecido.
— Vejo que não é tão fácil de impressionar quanto eu pensei, Lahan — disse, a voz firme, embora o rubor em seu rosto a traísse. — Talvez eu tenha superestimado o poder das lições que aprendi.
Ele inclinou-se um pouco para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, os olhos fixos nela com um brilho de ironia.
— Não foi um erro, princesa, a senhorita executou cada passo com perfeição, só que esqueceu de um detalhe. — ele pausou, deixando o silêncio pesar. — Eu conheço a origem desses truques, eu estava lá quando eles foram criados.
Jin-Ye mordeu o lábio inferior, entre raiva e excitação, o orgulho a impedia de admitir que tinha sido pega de surpresa, mas uma parte dela sentia um arrepio de desafio.
— Então está me dizendo que não há nada que eu possa fazer para despertar seu interesse? — provocou, aproximando-se um pouco, porém sem tocar nele. — Ou será que você apenas teme se perder sendo controlado ao invés de controlar ?
Lahan ergueu uma sobrancelha, como se a acusação não o abalasse.
— Não se trata de temer, princesa. — sua voz soou baixa, quase um sussurro. — Se quer a minha atenção, terá que conquistá-la sendo Jin-Ye, não uma sombra da Maomao.
Ela recuou meio passo, mas sorriu com malícia, a respiração ainda acelerada.
— Talvez você esteja apenas adiando o inevitável — disse, provocante, o olhar faiscante. — Todos os homens acabam rendidos, cedo ou tarde.
Lahan soltou uma risada curta, carregada de ironia.
— Então talvez eu seja a exceção que vai obrigar você a aprender outro jogo.
O silêncio entre eles voltou a se estender, carregado, denso, Jin-Ye virou o rosto, como se desse por encerrada a tentativa, mas seus olhos ainda brilhavam, cheios de uma mistura de frustração e desejo.
Jin-Ye respirou fundo, afastando-se apenas o suficiente para que o corpo não denunciasse o calor que ainda a dominava, a boca ainda latejava pelo beijo, e ela ergueu o queixo, altiva, como se tivesse recobrado o controle.
— Então é assim? — provocou, a voz carregada de um veneno doce. — Você prefere me analisar como um estudioso, em vez de me desejar como homem?
Lahan manteve a calma, quase um sorriso insinuado nos lábios.
— Não me subestime, princesa. Desejar é fácil. O difícil é não se contentar com um truque já ensaiado.
Os olhos de Jin-Ye faiscaram, ela se aproximou de novo, sem encostar, deixando apenas o perfume e a respiração invadir o espaço entre eles.
— Cuidado, Lahan... um homem que rejeita o que lhe é oferecido costuma se arrepender depois.
Ele inclinou o rosto, próximo o bastante para que o hálito dela roçasse sua pele, mas firme em não ceder.
— E uma mulher que insiste em ser outra pode acabar esquecendo quem realmente é.
Por um instante, o silêncio pesou entre eles, feito corda esticada prestes a arrebentar, Jin-Ye arqueou um sorriso, quase desafiador.
— Talvez você me veja como aprendiz... mas eu gosto de provas. Quem sabe um dia eu não lhe mostre o quanto posso surpreender?
Lahan sustentou o olhar dela, sem piscar.
— Nesse dia, princesa, não precisará imitar ninguém. Só precisará ser Jin-Ye. — concluiu com um sorrisinho no rosto.
Jin-Ye deu um passo para o lado, como quem estava prestes a encerrar aquele duelo verbal, o manto arroxeado dela se arrastou no chão, contrastando com a serenidade quase insolente de Lahan.
Mas, quando passou por ele, a princesa deixou a ponta dos dedos deslizar pelo braço dele, lenta, proposital, até chegar ao punho. Não foi um carinho, nem uma despedida: foi uma marca, uma lembrança insolente de que ela sempre voltaria a testar os limites dele.
Ela inclinou o rosto, quase tocando o ouvido dele, e sussurrou:
— Cuidado, Lahan, não sou quem você pensa.
Sem esperar resposta, ergueu-se com a altivez que só ela sabia sustentar, caminhando pelo corredor como se carregasse o próprio império nas costas.
Lahan permaneceu imóvel por um instante, sentindo a ardência deixada pelo toque delan o fundo, um pensamento lhe atravessou em silêncio.
"Ainda vai ser perigoso subestimar essa mulher, mas divertido analisar até onde ela aguenta."
Ele retomou o passo, mas com um meio sorriso contido — não era derrota, nem vitória, era apenas o prelúdio de um jogo que estava longe de terminar.
[. . .]
Os aposentos, decorados com tecidos rubros e dourados, refletiam a atmosfera pesada de um casamento imperial. O incenso queimava lentamente em um canto, espalhando um aroma doce e persistente, enquanto Maomao permanecia sentada diante do espelho de bronze. As damas de companhia ajustavam seu penteado, soltando mechas cuidadosamente, deixando-o mais solto e natural, ao mesmo tempo que retiravam parte do peso daquelas vestes de cerimônia, a seda caía em ondas sobre sua pele, contrastando com o rubor que ainda restava em suas bochechas da agitação anterior.
Jinshi, por sua vez, entrou pouco depois, acompanhado por seus próprios servos, vestia uma túnica mais simples do que a da cerimônia, ainda assim impecável, marcada pelos detalhes de bordado dourado nos punhos. Sua expressão, porém, destoava da formalidade: um riso contido insistia em escapar dos lábios ao lembrar-se da cena no salão. Assim que os olhares se encontraram, as damas de Maomao se retiraram em silêncio, deixando os dois sozinhos diante da vastidão do aposento.
— Então… — Jinshi se aproximou devagar, a sombra de um sorriso zombeteiro se desenhando em sua face. — Os teus irmãos têm um senso de humor… peculiar, confesso que já esperava uma recepção fria, mas envenenar o noivo no próprio banquete… isso supera qualquer expectativa.
Maomao, que até então mantinha a postura rígida, desviou o olhar e bufou, meio indignada, meio divertida:
— Não tem graça, Jinshi, poderia ter sido fatal. — seus olhos se voltaram para ele, firmes e acusadores.
Ele ergueu as mãos em falsa rendição, mas o sorriso não se desfez.
— Foi apenas uma brincadeiras de criança, — ele riu — já passei por venenos piores do que uma dose mal dosada escondida na comida.
Maomao balançou a cabeça, incrédula, mas não conseguiu conter um riso nervoso que escapou.
— Você fala disso como se fosse uma travessura boba. — disse, reprimindo outra risada. — Eles não estavam jogando dados ou quebrando porcelanas, Jinshi, estavam tentando se livrar de você.
— E, no entanto, estou aqui. — Ele se aproximou mais, a voz tornando-se mais baixa e carregada de ironia. — Vivo, casado, e na mesma cama que você. — disse com a voz um pouco mais provocante — Acho que isso significa que perdi o medo.
— Seus rins quase foram cozidos vivos pelos venenos dos meus irmãos, e você está aí, rindo como se fosse uma piada qualquer.
Jinshi deu um suspiro teatral, como se estivesse no palco de uma peça e quisesse arrancar risos da plateia.
— Ora, não deixa de ser engraçado… — disse, com aquele sorriso provocador que Maomao odiava e temia gostar demais. — Aparentemente, já sou tão indesejado como marido que a própria família da noiva resolveu me testar.
Maomao cruzou os braços, semicerrando os olhos de um jeito que não escondia sua indignação.
— Testar? Isso poderia ter custado sua vida e, consequentemente… a minha também. — completou, sem perceber de imediato o peso implícito nas próprias palavras.
Jinshi ergueu a cabeça, apoiando-se nos cotovelos, e a encarou demoradamente, um brilho curioso e quase travesso nos olhos.
— Então você admite que se importa.
— Eu admito que não quero morrer junto com um tolo. — rebateu, tentando disfarçar o rubor que subia às bochechas, desviando o olhar para os cabelos ainda soltos que caíam em volta do próprio ombro.
Ele gargalhou, e o riso leve se espalhou pelo quarto.
Mas silêncio que se seguiu foi pesado, mas não desconfortável. Eles se observavam, como se cada palavra dita naquela noite carregasse um peso maior do que todas as cerimônias juntas, Maomao respirou fundo, tentando romper a barreira invisível.
— Jinshi… — começou, hesitando. — Essa união não é apenas sobre nós dois, carrega o peso de tudo o que vem com seu título, com o nome da minha família, com a forma como o império nos observa. Não é simples.
Ele se sentou ao lado dela, não tão perto, mas próximo o bastante para que a distância fosse sentida como escolha. A voz dele veio calma, mais séria agora:
— Eu sei. — seus olhos a analisaram com atenção, sem pressa. — Cresci ouvindo sobre dever, honra e aparência. Sei o que esperam de mim, sei o que esperam de nós, mas o que quero entender… — ele inclinou o corpo um pouco, aproximando o olhar ao dela — …é o que você espera nesse momento.
As palavras o surpreenderam tanto quanto a ela, Maomao piscou devagar, sentindo a garganta seca, a resposta não era simples, mas ela não queria parecer vulnerável.
— Eu espero que… não sejamos devorados por essas expectativas. — sua voz saiu mais baixa do que pretendia, quase um sussurro. — Que não percamos o pouco de nós mesmos que resta em meio a tudo isso.
Jinshi arqueou as sobrancelhas, satisfeito pela honestidade.
— Então, ao menos nisso concordamos. — ele relaxou os ombros, deixando escapar um suspiro leve. — Se vamos carregar um peso, que seja juntos, nem que seja para rir dos venenos e dos irmãos conspiradores ao final do dia.
O canto da boca de Maomao se ergueu, embora ela tentasse esconder, a cumplicidade silenciosa se firmava ali, entre provocações, risos contidos e a gravidade daquilo que os cercava.
— Está mesmo rindo? — ela provocou, virando o rosto. — Você quase morreu há poucas horas.
— Justamente por isso. — Jinshi inclinou a cabeça, fixando o olhar nela com intensidade. — A vida é curta demais para não rir de sua teimosia em me salvar… ou da sua expressão quando percebeu o que tinha acontecido.
Maomao suspirou, cruzando os braços como se quisesse erguer uma barreira invisível, mas os olhos brilhavam, denunciando a vulnerabilidade.
— Você é insuportável.
— Eu sei. — Ele riu baixinho, deixando a tensão se transformar em algo mais íntimo. — Mas agora é tarde demais para fugir, sou o seu insuportável.
O quarto parecia encolher ao redor deles, iluminado apenas pelas lamparinas, e cada sombra parecia acompanhar seus gestos e olhares, Maomao finalmente se deixou cair na cama ao lado dele, não tão próxima para perder o controle, mas perto o suficiente para que Jinshi sentisse sua presença firme e decidida.
— Você está quieta — disse ele, quebrando o silêncio que crescia entre eles, a voz baixa, provocativa.
— Não. — respondeu ela, com a boca quase um fio de ironia, mas o olhar fixo nele denunciava que, de fato, estava refletindo sobre tudo. — Estou tentando processar que você conseguiu rir de algo que poderia ter acabado conosco.
Jinshi inclinou-se levemente, aproximando a cabeça, mas não demais.
— Rir é mais fácil que gritar ou entrar em pânico, mas quer saber a verdade? — ele fez uma pausa, os olhos violetas cintilando com malícia e seriedade ao mesmo tempo. — Eu estava encantado, encantado com a forma como você conseguiu virar o jogo a seu favor.
Maomao desviou o olhar, fingindo frieza, mas o coração acelerou.
— Então você gosta de ser controlado, não é? — provocou, a ponta da voz doce e perigosa ao mesmo tempo.
Ele riu baixo, o som quase um sussurro.
— Não, mas gosto de ver você assumir o controle… e ao mesmo tempo me provocar, me fazer pensar que posso manter alguma vantagem.
Um silêncio carregado caiu sobre eles, e Maomao percebeu que estava tão perto de atravessar a fronteira entre provocação e algo mais profundo quanto ele, mas ainda assim manteve a postura firme, respirando devagar, tentando dominar a própria inquietação.
— Então, é isso? — perguntou ela, em tom desafiador, mas suave — O que vamos fazer com todo esse peso que a cerimônia trouxe? Político, social, emocional… — suspirou — Não me diga que você só quer rir dele e depois ignorar o que isso realmente significa.
Jinshi sorriu, mas dessa vez sem provocação, apenas sinceridade, aproximando o rosto dela do dele, deixando que ela sentisse o calor.
— Eu não posso ignorar, mas também não posso carregar sozinho. — ele segurou a mão dela levemente, um gesto quase imperceptível, mas carregado de promessa. — Quero dividir isso com você, Maomao e se estivermos juntos nisso, nada pode nos derrubar.
Ela olhou para a mão dele, depois para os olhos, e algo se rompeu por dentro, a tensão, o medo e a cautela se misturaram com algo inesperado: confiança.
— Mas e se você se arrepender? — murmurou, ainda testando os limites da situação, seu rosto próximo, quase tocando o dele.
— Então terei que confiar que você vai me segurar nesse momento. — respondeu ele, com um sorriso tímido e quase desarmado, tão diferente do provocador que a desafiava durante o dia todo.
Maomao soltou um leve riso, quase nervoso. A tensão sexual e psicológica não precisava de mais nada. Estava ali, nos olhares, nos gestos contidos, no calor compartilhado sem toque direto, na cumplicidade silenciosa que ambos finalmente podiam admitir sentir.
Por alguns instantes, eles ficaram ali, lado a lado, respirando devagar, absorvendo cada nuance do momento, cada pequena vitória e derrota do jogo que vinham jogando desde o banquete. Não havia pressa, apenas a certeza de que, juntos, poderiam enfrentar tudo que o mundo exterior colocasse entre eles.
O quarto, antes pesado com cerimônia e expectativa, agora era apenas deles, um espaço onde o riso, a tensão, a provocação e a sinceridade coexistiam, moldando a primeira noite de uma união que não seria simples, mas certamente inesquecível.
Maomao se ajeitou na cama, ainda sentindo o calor da presença dele sem tocá-lo, após alguns minutos de silêncio compartilhado, ela quebrou a quietude com uma pergunta direta, porém carregada de curiosidade e desafio:
— Jinshi… me diga de uma vez por todas. O que te levou, de fato, a me pedir em casamento? De onde surgiu toda essa coragem de enfrentar o Clã Kan… e por que justamente eu? — perguntou curiosa.
Afinal, Maomao sabia dos boatos que rondavam a seu respeito, sobre sua beleza e inteligência, mas isso o príncipe poderia encontrar em qualquer família nobre e até de mais relevância que o próprio Clã Kan, era curioso como ele tinha chegado aquela conclusão se fosse levantar o histórico de Lakan com o Imperador nos últimos anos.
Jinshi suspirou, escondendo o rosto por debaixo das cobertas, a sombra do quarto deixando apenas um brilho nos olhos. Sua voz saiu baixa, quase tímida, mas firme:
— Quando te vi pela primeira vez, eu tinha catorze anos, foi em um evento social… e depois, aos dezesseis, quando você debutou… algo em você… fez com que eu tivesse uma pequena paixonite. Não era apenas beleza… era a forma como você se mantinha perante todos, sempre tão segura, tão firme. Me fez ficar… levemente obcecado pela sua presença.
Ele fez uma pausa, ainda escondido, e continuou:
— Mesmo sabendo dos boatos de que você rejeitava inúmeros pedidos de casamento… esperei a hora certa. Desde aquele incidente no palácio, quando seu nome foi ofertado como uma possível Concubina do meu pai, eu tive que esperar mais alguns anos para fazer o pedido e eu tive que passar por cima das ordens do mestre Lakan… e sabia que dessa vez eu tinha que agir de forma correta.
Maomao riu baixinho, lembrando-se do momento em que seu pai, Lakan, havia ameaçado o Imperador caso ela fosse tomada como concubina.
— Ah, sim… — disse ela, entre risos. — Meu pai… lembro como hoje o dia que ele ameaçou destruir o Império se isso acontecesse, me recordo bem da expressão de ódio e espanto naquele dia.
Jinshi riu baixinho também, a voz abafada pelas cobertas.
— Por causa disso… eu queria fazer tudo certo. De alguma forma, reparar o que aconteceu, mesmo anos depois, mas, desde a primeira vez que te vi, soube que, em algum momento, nos casaríamos, sempre soube.
Maomao o observou desconfiada, arqueando uma sobrancelha.
— Sempre soube? — perguntou, intrigada. — Você… me ama a esse ponto?
Ele suspirou novamente, a voz baixa e pensativa:
— Eu gosto de você, Maomao, da pessoa que você é, você me intriga e me faz conhecer e enxergar de uma outra perspectiva, mas amar… amor de verdade é delicado demais para se declarar tão cedo. A atração, a admiração, o desejo… isso já existia, mas o amor… ele precisa de tempo para se construir, para se fortalecer. Não posso dizer que te amo ainda, mas sei que quero descobrir isso contigo, passo a passo.
Ela respirou fundo, absorvendo cada palavra, a tensão, o coração acelerado, o calor e o silêncio do quarto pareciam amplificar tudo que não era dito, tornando aquele momento ainda mais intenso.
Maomao sorriu, um pouco mais suave, aproximando-se levemente, mas mantendo seu controle habitual:
— Então… vamos construir esse amor, com cuidado, aos poucos, mas saiba que vou testar você a cada passo.
Jinshi ergueu a cabeça das cobertas, o brilho nos olhos firme e divertido:
— E eu espero ansioso por cada teste, Maomao, por cada um.
Por alguns minutos, eles permaneceram ali, lado a lado, compartilhando silêncio, risadas leves, olhares e respirações. Nenhum toque era necessário, a noite se tornou um pacto silencioso: ambos conscientes do peso do casamento, da história que os unia, e da promessa de que iriam enfrentar juntos todos os desafios que surgissem.
[. . .]
O sol da manhã entrava preguiçoso pelas janelas do pavilhão nupcial, iluminando os móveis de madeira polida e os painéis de seda pintados com flores e pássaros. Maomao despertou lentamente, ainda sentindo a lembrança da noite anterior pulsando na pele e na mente, o outro lado da cama estava vazio, mas o cheiro inconfundível de Jinshi permanecia no quarto, sutil e penetrante, lembrando-a de que agora, oficialmente, eram marido e mulher.
Ela se levantou com cuidado, ajustando os finos tecidos do robe de seda que ainda cobriam seus ombros, e caminhou até a janela. Lá fora, o palácio começava a se movimentar, com serviçais preparando as áreas comuns e damas de companhia organizando os espaços para o dia. Apesar da beleza tranquila da manhã, Maomao sentiu a responsabilidade do que havia mudado entre ela e Jinshi: não mais apenas olhares e provocações, mas uma união oficial, carregada de expectativa e de olhares atentos do clã e da corte.
Pouco tempo depois, Jinshi apareceu, já vestido com uma túnica leve e impecável, os cabelos ainda levemente despenteados, mas os olhos violetas carregados daquele brilho provocador e seguro que ela conhecia tão bem. Ele parou à porta, observando-a com um misto de curiosidade e divertimento.
— Bom dia, minha querida esposa. — disse, com aquele sorriso que sempre conseguia tirar Maomao do sério. — Dormiu bem?
— Mais ou menos. — respondeu ela, semicerrando os olhos. — E você? Está melhor?
Ele riu, aproximando-se sem pressa, e se inclinou levemente, como se o simples gesto pudesse medir a distância que havia entre eles.
— Estou vivo… por enquanto, mas confesso que a noite passada me deu mais do que eu esperava.
Maomao cruzou os braços, tentando disfarçar o rubor que subia às bochechas, mas o leve sorriso nos cantos da boca traía sua curiosidade e prazer em provocá-lo.
— Esperava mais o quê? Que eu fosse dócil e silenciosa? — provocou, inclinando a cabeça para um lado.
— Não, nunca esperei isso de você. — respondeu ele, firme e ao mesmo tempo divertido. — Mas ainda assim… — e ele fez uma pausa, aproximando-se apenas o suficiente para que o calor do corpo dela chegasse a ele sem toque direto — eu não imaginava que a calma da manhã pudesse ser tão perigosa quanto os seus olhares provocantes de noite.
Ela riu baixinho, mexendo nos punhos da túnica, tentando manter o controle.
— Perigosa, eu? Não exagera, marido.
— Perigosa, sim. Para mim. Para todos que tentarem cruzar o nosso caminho. — disse ele, com aquele tom sério que raramente usava, mas que, quando vinha, fazia Maomao prestar atenção em cada palavra. — Mas… perigosa de um jeito que me fascina.
O quarto ficou em silêncio por alguns instantes, preenchido apenas pela luz suave da manhã e pelo som das folhas balançando levemente do lado de fora. A tensão não precisava de gestos ousados, nem de declarações explícitas. Estava presente no ar, nos olhares, nas pequenas aproximações, no calor contido.
Maomao respirou fundo, sentindo-se mais segura, mas ainda consciente do peso de sua posição do que significava para ambos aquele casamento.
— Precisamos nos preparar para o dia, Jinshi. Há compromissos oficiais, cumprimentos, visitas. Não podemos simplesmente nos perder aqui o dia inteiro.
— Eu sei. — respondeu ele, com um sorriso leve, recuando apenas o suficiente para lhe dar espaço. — Mas podemos… aproveitar alguns minutos só nossos, antes que o mundo volte a nos engolir.
Ela assentiu, um sorriso discreto e cúmplice surgindo em seus lábios. Não havia pressa, não havia intimidade física forçada, apenas o reconhecimento silencioso de que agora eram parceiros, cúmplices e adversários num mesmo jogo, prontos para enfrentar tudo que o dia lhes reservasse.
E assim, a manhã começou, a primeira como marido e mulher, cheia de expectativas, provocações sutis e uma tensão silenciosa que nenhum protocolo poderia quebrar.
[. . .]
A manhã seguinte ao casamento começou calma, mas carregada de pequenas tensões e olhares atentos, Maomao caminhava pelos corredores do palácio com Gaoshun ao lado, quando foi surpreendida pela presença da princesa Jin-Ye, que já a aguardava sentada em um divã decorado com sedas roxas e rosas.
— Maomao, como foi… a noite de núpcias? — perguntou Jin-Ye, tentando disfarçar a curiosidade, mas com os olhos brilhando de expectativa.
Maomao arqueou uma sobrancelha, deixando escapar um sorriso contido.
— Não houve consumação. — disse com naturalidade, sem rodeios.
O olhar de Jin-Ye ficou frustrado e surpreso, quase implorando por mais detalhes, mas Maomao manteve a calma, inclinando-se levemente em direção à irmã.
— Estamos indo devagar. É algo novo, Jin-Ye… e, por enquanto, ainda estamos apenas nos acostumando com a ideia de sermos marido e mulher.
A princesa soltou um suspiro, frustrada, mas também fascinada com a frieza e o autocontrole da amiga. Antes que pudesse insistir, Lahan surgiu ao virar do corredor, os passos firmes ecoando suavemente pelo salão. Ao ver Maomao, ele se curvou com respeito, saudando-a de forma elegante, e depois virou-se para cumprimentar a princesa.
— Bom dia, irmã. — disse, com um leve sorriso que fez Maomao soltar um pequeno riso.
— Bom dia, Lahan. — respondeu Maomao, mantendo o tom cordial.
Jin-Ye, ainda sentada, sentiu as bochechas corarem e desviou o olhar por um instante, mas Lahan, percebendo o gesto, riu baixinho, divertido.
— Vejo que alguém está envergonhada — comentou, provocando-a sutilmente.
Jin-Ye tentou disfarçar, mas a expressão de constrangimento a denunciava, e Maomao não deixou de notar o efeito de Lahan sobre a princesa.
— Ele é sempre assim? Inconveniente? — murmurou a princesa, meio resmungando.
— Para mim, não é novidade. — respondeu Maomao, arqueando uma sobrancelha, divertida com a situação — Vejo para chegar a esse nível de conversa, tiveram muito tempo juntos na cerimônia ouso dizer.
Os três compartilharam um momento de risos contidos, até que Gaoshun reapareceu, lembrando Maomao do compromisso seguinte: inspecionar a obra da clínica antes da mudança definitiva dela e de Jinshi para o Pavilhão da Lua.
— Vamos, Maozinha. — disse ele, conduzindo-a pelo corredor interno, enquanto Lahan e Jin-Ye se despediam com pequenas reverências.
Enquanto caminhavam, Maomao mantinha o semblante concentrado, mas a mente revisava os detalhes do dia anterior, o peso da cerimônia, a tensão com Jinshi e o que ainda precisava ser ajustado na clínica. Ao entrarem no Pavilhão da Lua, o aroma de madeira recém-polida misturava-se com o cheiro suave de incensos, e Maomao observava cada detalhe das mudanças feitas: o mobiliário, as divisórias, os equipamentos médicos e a decoração que tornaria o espaço funcional, mas ao mesmo tempo acolhedor.
— Tudo está quase pronto. — comentou Gaoshun, seguindo sua direção e observando cada gesto. — Só faltam alguns ajustes finais antes que vocês se mudem definitivamente.
Maomao acenou, satisfeita, mas mantendo o olhar crítico sobre cada canto.
Cada detalhe precisava estar perfeito, não apenas pela funcionalidade da clínica, mas também pelo simbolismo que aquele espaço representava para ela e para Jinshi.
Enquanto revisava as últimas mudanças, o silêncio do pavilhão permitia que Maomao refletisse sobre a rotina recém-inaugurada como esposa e futura gestora de seu próprio espaço.
O som de passos firmes ecoou pelo corredor de madeira, anunciando a chegada de Jinshi, ao abrir a porta do Pavilhão da Lua, ele entrou com postura impecável, trajando seu robe elegante, mas o olhar não conseguia se desprender de Maomao, que examinava cuidadosamente os detalhes da clínica ao lado de Gaoshun.
— Parece que deixaram o pavilhão exatamente como você queria. — disse Jinshi, aproximando-se devagar, cada palavra carregada de interesse velado.
Maomao desviou o olhar apenas por um instante, e quando retornou o contato visual, um leve sorriso curvou os lábios.
— Exatamente como eu queria. — respondeu, mas a tensão em sua voz deixava claro que parte de seu interesse estava em observar a reação dele. — Mas ainda há ajustes a serem feitos, nada perfeito demais para que possamos testar os limites do espaço.
Jinshi se inclinou levemente sobre uma das mesas recém-instaladas, mantendo a distância, mas os olhos não saíam dela.
— Então vou ajudá-la a encontrar esses “limites”, senhora. — disse, com um sorriso que misturava provocação e cumplicidade, quase desafiando-a a reagir.
Maomao continuou andando pelo salão, inspecionando a disposição dos móveis e a iluminação natural que entrava pelas janelas de vidro, mas permitiu, deliberadamente, que ele se aproximasse um pouco mais do que seria necessário. Cada passo dele era calculado, mas ele se via atraído pela presença controlada e pelo charme silencioso da esposa.
— Este canto precisará de uma prateleira adicional para os medicamentos. — comentou Maomao, apontando, enquanto seu braço se aproximava do dele, quase tocando-o. O gesto era discreto, mas a tensão entre eles tornou o ar quase elétrico.
Jinshi arqueou uma sobrancelha, percebendo o efeito sutil, mas controlando-se:
— Se for assim, posso providenciar, mas imagino que você queira testar minha paciência primeiro — disse, com uma voz baixa, quase íntima, que só Maomao poderia compreender completamente.
Ela parou, cruzou os braços e o observou com os olhos azuis penetrantes:
— Talvez eu queira apenas ver se você consegue acompanhar meu ritmo. — um silêncio pairou, carregado de significado, enquanto ambos mediam o espaço e a reação um do outro.
Gaoshun, percebendo a tensão, manteve-se em segundo plano, garantindo que o casal tivesse privacidade suficiente para inspecionar a clínica sem interrupções, mas o silêncio entre eles não era apenas ausência de palavras; era um jogo de olhares, gestos e provocações silenciosas, cada um tentando decifrar os limites do outro sem romper a formalidade do momento.
— Se você continuar assim, vou acabar me acostumando mal. — Jinshi murmurou, mais para si mesmo do que para ela, mas Maomao ouviu e permitiu-se um sorriso sutil, satisfeito por ver que seu efeito ainda funcionava mesmo após o casamento.
Ela deu um passo em sua direção, apenas o suficiente para que ele percebesse, mas sem se aproximar demais:
— Então é melhor se acostumar, Jinshi. Porque eu não vou facilitar — disse, com um tom calmo, quase maternal, mas carregado de desafio.
Ele respirou fundo, recuperando a compostura, e respondeu com a mesma leve provocação:
— Então vamos ver quem realmente define as regras neste novo território…
O clima entre eles, mesmo em público e rodeado de móveis e utensílios da clínica, continuava carregado de tensão psicológica e flertes discretos.
Eles caminharam lado a lado em direção à casa.
A entrada estava cuidadosamente arrumada, como se alguém tivesse se preocupado em preparar o ambiente para recebê-los. O chão polido refletia a luz suave das lanternas, e os tons de vermelho e dourado se espalhavam pelas paredes e colunas, contrastando de maneira elegante com a madeira escura, o lugar parecia respirar tradição e imponência.
Pequenos desenhos gravados em painéis e biombos se destacavam: flores delicadas, dragões que se entrelaçavam em danças eternas com serpentes, símbolos de força e prosperidade. Cada traço parecia pulsar com vida própria, dando cor e energia ao espaço.
Maomao avançava com calma, o olhar analítico percorrendo cada detalhe, ora se detendo nos padrões minuciosos, ora na disposição harmoniosa dos objetos. Havia algo quase científico em seu modo de observar, como se decifrasse a linguagem oculta da casa.
Jinshi, alguns passos atrás, não ousava interromper aquele momento. Observava em silêncio, como se o simples ato de vê-la se mover pelo ambiente fosse um privilégio, a cada gesto dela, a cada olhar curioso que lançava, sentia uma felicidade discreta, mas intensa, crescer dentro de si. Havia entusiasmo em sua expressão contida: era como se o lar ganhasse sentido apenas por ser contemplado pelos olhos de Maomao.
Maomao caminhou até o último quarto do Pavilhão da Lua abrindo a porta cuidadosamente, os olhos imediatamente captando a vastidão do espaço. Era grande demais, o suficiente para abrigar cinco pessoas, e as roupas e objetos espalhados mostravam que ainda estava meio bagunçado.
— Por que está assim? — perguntou, arqueando uma sobrancelha, enquanto o corpo todo se inclinava levemente para dentro do quarto, curiosa e cautelosa.
Jinshi aproximou-se, observando-a com calma, a postura relaxada contrastando com a atenção que colocava nela.
— Esse será o quarto para os bebês que vierem a nascer. — respondeu ele, quase como se explicasse algo óbvio, mas com certo receio. — Em vez de dividir em vários quartos pequenos, decidi manter apenas três grandes neste pavilhão. Dois são bem espaçosos, e um um pouco menor, mas ainda confortável.
Maomao corou levemente, desviando os olhos por um instante, sem dizer nada, o silêncio, porém, carregava significado, e Jinshi, percebendo, inclinou-se para perto dela, o olhar firme nos olhos dela:
— Então… o que você acha da ideia de ter filhos? — perguntou, como se pudesse ler seus pensamentos.
Ela respirou fundo, medindo cada palavra antes de responder:
— Desde que ajudei a mãe no parto repentino de Yaling e cuidei dos meus irmãos mais novos e isso inclui o Lahan mesmo ele tendo a minha idade… de certa forma, a maternidade já foi consumida ali, cuidando e criando eles. Mas gerar um filho… ainda me parece estranho. — houve um tremor em sua voz — As complicações, os riscos… são grandes. — ela baixou o olhar, um rubor subindo pelo pescoço. — Mas, sim, como esposa e futura imperatriz, é meu papel te dar herdeiros Zuigetsu. Afinal, o verdadeiro campo de batalha das mulheres sempre foi o momento do parto.
As palavras saíram de Maomao carregadas de pesar, a voz baixa, quase como um sussurro que carregava cicatrizes. Ela tinha apenas dezesseis anos quando se viu diante de uma cena que jamais esqueceria: o parto dos gêmeos.
Era uma tarde chuvosa. A água castigava os telhados, o vento uivava pelas frestas, e cada trovão parecia ecoar a aflição dentro da casa. O ar estava pesado, saturado pelo cheiro de sangue e de ervas apressadamente queimadas para purificar o ambiente. Seu pai estava fora da cidade, e Lahan, tomado pelo desespero, havia corrido até a casa do tio Luomen que ficava do outro lado da cidade em busca de ajuda. Mas o tempo não esperou, as contrações se intensificaram, e o estado de FengXian piorou tão rápido que não restava alternativa.
Foi então que Maomao, com apenas o conhecimento rudimentar que possuía e mãos que tremiam mais do que sua respiração permitia, assumiu a responsabilidade.
Ela jamais havia visto algo tão assustador. Não sabia que a mãe carregava gêmeos. Tentou, por todos os meios, conduzir o parto naturalmente, mas o tempo passava e nada acontecia, o desespero explodiu quando os gritos de FengXian cortaram o silêncio, implorando entre lágrimas que sua filha abrisse sua barriga para salvar as crianças.
O coração de Maomao quase parou.
O peso daquela escolha caiu sobre seus ombros frágeis, com dedos trêmulos, preparou as ervas que conhecia, tentando ao menos amortecer a dor, mas quando a lâmina encostou na pele da mãe, e o corte foi feito, não houve erva ou reza que calasse os gritos que ecoaram pela casa. Gritos que ela ainda ouvia quando fechava os olhos.
A cada instante acreditava que perderia a mãe, o sangue escorria, suas mãos estavam vermelhas, e ela mal conseguia respirar de tanto medo, mas, contra todas as probabilidades, Maomao conseguiu retirar os bebês, ouviu os primeiros choros frágeis, e costurou a ferida de FengXian com a precisão desesperada de quem sabe que um erro significava morte.
O milagre aconteceu, sua mãe sobreviveu, os gêmeos estavam vivos e no entanto, para Maomao, aquele dia nunca deixou de ser uma sombra, mesmo após o parto tranquilo de Yaling dois anos mais tarde. Era uma lembrança de como a linha entre vida e morte é fina demais.
Era o trauma de alguém que, desde então, carregava um medo visceral de dar à luz.
Jinshi permaneceu em silêncio por alguns segundos, observando-a com atenção tranquila, como se analisasse cada detalhe de suas palavras e expressões, não tinha como ele saber das pequenas vivências da vida de Maomao, mas compreendia suas escolhas e jamais a confrontaria.
— Não é algo que precisamos pensar agora — disse finalmente, a voz baixa e calma, quase um sussurro que apenas ela podia sentir. — Temos muito tempo para isso. Por enquanto, este quarto é apenas… um espaço meio bagunçado. — falou mudando o teor da conversa vendo os olhos azuis da esposa voltarem a brilhar — Se você quiser usar para outras finalidades, pode. Afinal, você também é a dona desta casa.
Maomao ergueu os olhos para ele, surpresa com a gentileza e a confiança implícita naquelas palavras. Um leve sorriso se formou em seus lábios, misturando-se com o rubor que ainda tingia seu rosto. Por um momento, ambos ficaram ali, em silêncio, apenas sentindo a presença um do outro, a tensão e a intimidade velada preenchendo o espaço entre eles.
Maomao caminhou pelo quarto grande, ainda corada, passando as mãos pelas paredes vazias e imaginando o espaço.
— Sabe… — começou ela, olhando para Jinshi, que permanecia encostado na porta, os braços cruzados e um sorriso contido nos lábios — eu poderia transformar este quarto em uma biblioteca particular. Tenho alguns exemplares que gostaria de guardar e organizar que estão no Pavilhão das Orquídeas empacotados ainda, alguns livros de medicina, tratados antigos, alguns escritos de história… até receitas que compilei ao longo dos anos.
Jinshi arqueou uma sobrancelha, aproximando-se devagar, interessado e divertido.
— Uma biblioteca pessoal… soa como algo muito seu. — ele parou perto dela, observando o brilho nos olhos de Maomao enquanto falava empolgada sobre suas ideias. — E a clínica? Onde entrariam os remédios e todo o material que você usa?
Ela se virou para Jinshi de repente, os olhos azuis faiscando como se acabasse de ter uma epifania. O corpo dela, antes contido, agora parecia vibrar com energia.
— Alguns remédios e receitas podem ficar na clínica, claro — começou a falar rápido, com as mãos gesticulando no ar como se desenhassem cada ideia diante dela. — Mas outra parte do material, as anotações e livros de referência, poderiam estar aqui, ao alcance das mãos!
Enquanto dizia, Maomao deu dois passos pelo cômodo, rodopiando levemente, como se o simples ato de organizar um espaço fosse uma dança. Seus olhos cintilavam com entusiasmo, e a cadência das palavras parecia acelerar à medida que ela mergulhava cada vez mais fundo em suas próprias possibilidades.
— E ainda teria espaço para estudar, escrever e organizar… — interrompeu-se de súbito, mordendo o lábio inferior, mas não conseguindo conter o brilho que transbordava em seu rosto.
Deu um pulinho, como se tivesse acabado de lembrar de algo essencial, e virou-se novamente para ele, agora com um sorriso quase infantil.
— Eu poderia até reservar um canto só para as plantas medicinais que quero cultivar! Assim estaria tudo ao meu alcance…
Seus dedos se entrelaçaram, e ela inclinou levemente a cabeça para o lado, sonhadora, já se imaginando cercada pelos vasos, os aromas das ervas, as páginas rabiscadas com anotações.
Jinshi, parado a poucos passos dela, a observava em silêncio, quase hipnotizado. Não era a Maomao fria, analítica e distante que ele tantas vezes via; era uma versão leve, elétrica, espontânea… uma jovem que, só de falar sobre aquilo que amava, irradiava uma alegria rara.
E por um instante, ele não conseguiu evitar: um sorriso genuíno surgiu em seus lábios, contagiado pelo entusiasmo que ela mal percebia estar deixando escapar.
Jinshi deu um passo mais perto, inclinando-se, e a provocação sutil entrou em cena:
— Vejo que você já planejou cada detalhe, não é? — disse, a voz baixa, carregada de curiosidade e provocação. — Sempre tão organizada e meticulosa… é impossível não se perder em você.
Maomao sentiu o rubor subir, mas manteve o olhar firme, aproximando-se dele já recomposta de maneira quase calculada, aproveitando a companhia dele de forma intimista:
— E você? Pretende apenas observar ou vai me ajudar a definir cada canto? — perguntou, cruzando os braços, mas com um sorriso que mostrava que adorava provocar o efeito que causava nele.
Ele soltou uma risada baixa, aproximando-se ainda mais, de modo que ambos podiam sentir a respiração um do outro, mas sem ultrapassar os limites do toque direto.
— Talvez eu devesse ajudar. — murmurou, aproximando o rosto, quase tocando o dela — ou talvez apenas me deixar envolver pelas suas ideias e acompanhar o espetáculo.
Maomao riu baixinho, um som suave e provocativo, e apontou para um canto do quarto.
— Então vamos começar aqui. Eu quero limpar a estante para estes tratados e livros mais pesados. Depois, prateleiras para os manuscritos e, por fim, uma mesa de estudo perto da janela, para aproveitar a luz natural.
Jinshi assentiu, ouvindo atentamente, mas aproveitando cada momento ao lado dela, cada movimento e cada palavra como se fossem pequenos jogos de intimidade.
— Parece que este quarto vai se tornar um espaço tão seu que vou ter que me contentar em apenas observar — disse ele, sorrindo de canto, provocando-a silenciosamente.
Ela deu um passo em direção a ele, quase encostando o ombro no dele, mas desviou levemente, mantendo o controle da distância.
— Não se preocupe, Jinshi… você também terá seu espaço. — disse, os olhos azuis cintilando, e por um instante, o silêncio do quarto ficou carregado de cumplicidade e tensão velada, como se fossem apenas eles dois ali, planejando, provocando e apreciando a companhia um do outro.
Maomao começou a mover algumas caixas de livros para um canto conforme os servos traziam de um pavilhão para outro, ajeitando os volumes mais pesados com cuidado. Jinshi aproximou-se, oferecendo ajuda, e estendeu a mão para erguer um dos livros que ela segurava.
— Deixe-me — disse ele, a voz baixa, quase sussurrada, enquanto seus dedos roçavam os dela ao tocar o livro. O contato breve fez um arrepio percorrer o braço de Maomao, mas ela não recuou. Pelo contrário, manteve o olhar firme, analisando-o com interesse.
— Cuidado, Jinshi — provocou ela, mordendo o lábio inferior — não quero que você estrague minha coleção antes mesmo de começarmos a organizá-la.
Ele riu baixo, inclinando-se levemente, aproximando o rosto do dela, mas mantendo a distância mínima possível:
— Não se preocupe… posso ser cuidadoso quando quero, mas às vezes, testar limites faz parte do processo, não é?
Maomao ergueu uma sobrancelha, desafiadora, e respondeu com um sorriso sutil:
— Limites? Que limites? O quarto ainda está longe de ser perfeito, mas você parece mais interessado em testar a mim do que a organização.
Ele deu um passo para trás, mas manteve os olhos fixos nela, provocando de forma silenciosa.
— Talvez… Mas veja pelo lado bom: estou aprendendo com a melhor professora que poderia ter. — a frase foi dita como brincadeira, mas o tom baixo e o olhar firme carregavam uma intensidade que só Maomao conseguia perceber.
Ela pegou outro livro e caminhou até uma prateleira, subindo na ponta dos pés para encaixá-lo. Jinshi aproximou-se para ajudá-la, e o movimento quase acidental os fez encostar os ombros, Maomao não se moveu; apenas sorriu com leveza, sentindo a presença dele tão próxima.
— Está vendo? — disse ela, a voz suave, mas firme — Um espaço nosso pode ser organizado sem que você precise tocar em nada… mas sua companhia é bem-vinda.
Ele inclinou-se levemente para frente, como se apenas fosse respirar perto dela, e respondeu:
— Eu concordo, mas posso admitir que a parte da companhia é a melhor de todas.
Por alguns instantes, ficaram lado a lado, ajustando livros e prateleiras, mas cada gesto, cada toque quase acidental, carregava uma tensão silenciosa. O ar parecia vibrar ao redor deles, não pelo esforço físico, mas pelo jogo de olhares, sorrisos contidos e proximidade medida.
Maomao finalmente se afastou um passo, apoiando as mãos na cintura e olhando para o espaço que estavam organizando.
— Acho que por hoje é suficiente. — ela sorriu, desviando o olhar, mas sentindo a presença de Jinshi ainda perto.
Ele cruzou os braços, inclinando-se contra a prateleira, observando-a com aquela expressão de quem sabe exatamente o efeito que causa:
— Por hoje? — repetiu, com uma leve provocação. — Eu diria que ainda temos muito a explorar… este quarto, você e eu.
Maomao sorriu, apenas.
Sabia que não precisavam de mais palavras; a tensão psicológica, o flerte sutil e o toque quase acidental já falavam por eles. O quarto grande, meio bagunçado, transformava-se aos poucos em um espaço que não era apenas para livros ou estudos, mas para intimidade, cumplicidade e provações silenciosas, como se cada estante e cada canto guardasse o segredo do vínculo crescente entre eles.
Com a maior parte dos livros e objetos finalmente em seus lugares, Maomao recuou e sentou-se no chão, encostando-se na estante recém-arrumada. Jinshi observou por alguns segundos, então suspirou e se acomodou ao lado dela, cruzando as pernas de forma relaxada, mas mantendo a proximidade quase incômoda.
— Acho que fizemos um bom trabalho hoje — disse Maomao, os olhos azuis fixos nos livros à frente, mas sentindo cada movimento dele ao seu lado.
— Concordo — respondeu Jinshi, um sorriso sutil nos lábios. — Mas confesso que gostei mais do processo do que do resultado. — ele inclinou levemente o corpo na direção dela, quase tocando o ombro dela sem encostar de fato.
Maomao ergueu os olhos, percebendo o desafio implícito naquele gesto, e respondeu com ironia:
— Interessante… você gosta de organizar livros ou gosta de organizar distrações?
Ele riu baixo, o som grave ecoando pelo quarto silencioso.
— Talvez seja um pouco dos dois. — seus olhos violetas brilharam, fixos nos dela. — Mas garanto que sua presença torna qualquer tarefa infinitamente mais… estimulante.
Ela desviou o olhar, corando levemente, mas não recuou. Pegou um livro e passou por cima dele, fingindo interesse, mas sentindo o calor da proximidade dele, Jinshi aproveitou a distração para mover um pouco a perna, quase encostando nela, e comentou:
— Sabe… poderia ficar aqui o dia todo, assim, apenas observando você decidir cada canto.
Maomao suspirou, tentando manter a compostura, mas a voz carregava uma suavidade inesperada:
— Então fique à vontade, mas não espere que eu fique só olhando para você também.
Ele sorriu, inclinando-se ainda mais próximo, a distância mínima carregando tensão.
— Ah, não se preocupe… eu sei que você gosta de manter o controle, mas isso torna tudo muito mais interessante, não acha?
Por um momento, o silêncio tomou o quarto, preenchido apenas pelo som dos livros sendo ajustados e pelo ar carregado de cumplicidade. Maomao finalmente se levantou, caminhando até uma pequena mesa para organizar papéis, mas ele a acompanhou com passos silenciosos, mantendo-se ao lado dela, o olhar intenso.
— Sabe — disse ela, ainda evitando o contato direto — nunca imaginei que um quarto de livros pudesse se tornar tão… íntimo.
— Intenso, talvez seja a palavra certa. — respondeu Jinshi, e por um instante, seus olhares se encontraram, carregados de tudo que não precisavam dizer.
Ela sorriu, inclinando-se para pegar um caderno, e ele aproveitou o momento para colocar discretamente a mão sobre a dela, apenas um toque rápido, quase acidental, mas suficiente para provocar um arrepio. Maomao não se afastou; apenas manteve a mão sob a dele por um instante antes de recolhê-la, olhando para ele com um meio sorriso.
— Não se acostume — disse, mas a leveza em sua voz contradizia as palavras.
— Não se preocupe — respondeu ele, a voz baixa, quase um sussurro — Estou acostumado a desafios.
O quarto grande, que antes parecia apenas um espaço para livros e plantas medicinais, transformava-se lentamente em um refúgio deles dois. Cada gesto, cada toque quase acidental e cada olhar carregado de tensão psicológica construía uma intimidade silenciosa, permitindo que compartilhassem a presença um do outro sem pressa, sem necessidade de palavras, apenas sentindo o vínculo crescer e se aprofundar naquele espaço seguro.
Nenhum dos dois precisava falar demais; a provocação, a avaliação e a admiração estavam contidas em cada movimento.
Mais tarde, durante a visita a um dos conselheiros, um gesto público quase trivial — Jinshi inclinando-se para pegar um pergaminho e acidentalmente encostar no ombro de Maomao — provocou um sutil arrepio nela, que respondeu apenas com um leve suspiro, visível apenas para ele. Ele sorriu, satisfeito com o efeito, mas manteve a postura séria quando os demais estavam próximos.
O dia avançava entre reuniões e inspeções, e mesmo em público, o casal conseguia manter o clima íntimo e carregado de tensão. Pequenos gestos, mãos que se encontravam ao passar documentos, olhares longos disfarçados como atenção a detalhes, risadas baixas compartilhadas discretamente, mantinham viva a provocação, e todos ao redor sentiam, sem compreender, que aquela união era muito mais complexa do que aparentava.
[. . .]
O jardim estava tranquilo, exceto pelo canto distante de pássaros e pelo farfalhar das folhas com a brisa matinal. Jin-Ye se aproximou devagar , observando Lahan curvado sobre os canteiros, o olhar sério, concentrado.
— Boa tarde, mestre Lahan — disse ela, com uma voz leve, quase cantada, tentando quebrar o clima de concentração dele.
Ele ergueu a cabeça, arqueando uma sobrancelha.
— Bom dia, princesa. Veio fazer companhia às plantas ou apenas a você mesma?
— Quem sabe? — respondeu ela, sorrindo de lado. — Talvez eu queira ver como estão o jardim, ou talvez testar se consegue me ignorar.
Lahan soltou um riso baixo, balançando a cabeça.
— Ignorar você? Isso seria impossível, mas não espere que eu facilite.
Ela aproximou-se mais, inclinando-se para observar uma flor próxima e, propositalmente, encostou o braço no dele.
— Fácil demais? Então precisarei ser mais… insistente.
Ele desviou o olhar por um instante, avaliando-a, antes de devolver o toque sutil em seu ombro.
— Insistência… e você acha que isso funciona comigo? — perguntou, com a voz baixa, controlada, mas carregada de desafio.
— Só há uma forma de descobrir — respondeu Jin-Ye, com um sorriso provocador, aproximando-se mais ainda. — Mas eu já sinto que você está tão alerta quanto eu esperava.
Ele a encarou, aproximando-se sem quebrar o equilíbrio.
— Então você quer jogar… mas saiba que conheço os truques que observa e copia, não espere me vencer facilmente, princesa.
Ela riu baixinho, sentindo a tensão se tornar quase palpável.
— Então teremos que improvisar… e talvez eu precise de ajuda para descobrir o que você realmente pensa.
— Eu penso muito, mas falo pouco — disse Lahan, os olhos fixos nela. — E quando falo, você precisará ouvir com atenção, porque não repito duas vezes.
Ela deu um passo mais perto, quase encostando o corpo no dele, e sussurrou:
— E se eu quiser mais que palavras?
Ele ficou imóvel, respirando fundo, percebendo que a proximidade dela não era apenas casual.
— Então, princesa… terá que provar que consegue lidar com alguém que não se dobra fácil.
Ela sorriu, levemente desafiadora, e pousou uma mão no braço dele.
— Bom, eu adoro desafios. — e, sem perceber, o olhar dela se encontrou com o dele, carregado de tensão e promessa, deixando claro que a partida apenas começava.
Jin-Ye permaneceu perto, sentindo o calor do corpo de Lahan a poucos centímetros, cada gesto medido, cada respiração compartilhada sem toque direto. Um leve vento passou, mexendo os cabelos dela, e ele inclinou a cabeça, apenas o suficiente para sentir o perfume dela, deixando-o momentaneamente desconcertado.
— Você é mais ousada do que aparenta, princesa. — disse Lahan, com a voz baixa, controlada, mas carregada de um desafio que a fez rir suavemente — Não seria apropriado a senhorita sozinha no jardim com um homem solteiro, jardim esse que quase não possuí rondas dos guardas.
— E você é mais difícil do que imaginava. — respondeu Jin-Ye, desviando o olhar apenas por um instante antes de encará-lo de novo. — Mas não se preocupe… eu gosto de um bom desafio e realmente não seria apropriado, embora ninguém esteja nos vendo aqui para acusar de algo.
Ele deu um passo à frente, sem quebrar a distância que ainda mantinha, aproximando o peito do dela, provocando um arrepio que ela não tentou esconder.
— Então vamos ver se você consegue lidar comigo quando eu não me seguro mais. — murmurou, com um sorriso quase imperceptível, enquanto seus olhos brilhavam com a mistura de provocação e curiosidade.
Jin-Ye respirou fundo, sentindo a tensão elétrica entre eles. Sem pensar, deslizou a mão até o braço dele, sentindo o calor e a firmeza do músculo sob a seda leve de sua roupa.
— Talvez você precise me ensinar um pouco mais sobre paciência, Lahan — provocou, com a voz suave, desafiadora.
Ele se inclinou ainda mais, mantendo os olhos fixos nos dela, aproximando os lábios de sua orelha.
— Paciente? — murmurou, a respiração dele quente sobre a pele dela. — Eu posso ser paciente… mas a tentação de perder o controle está cada vez maior.
Ela sentiu o corpo reagir, a emoção subindo, e por um instante, a brincadeira virou algo mais intenso. Jin-Ye subiu ligeiramente no pé, encostando-se mais a ele, e Lahan finalmente segurou sua cintura com firmeza, sem força, apenas para marcar o espaço e o momento.
— E se eu disser que quero descobrir exatamente até onde você pode ir? — sussurrou ela, sentindo a proximidade, os olhares, o jogo de poder silencioso entre eles.
Ele sorriu, pressionando suavemente o rosto contra o dela, quase tocando os lábios, e disse com uma calma intensa:
— Então você terá que aprender… que nem tudo se conquista pela cópia dos truques da minha irmã. Comigo, princesa… você terá que ser apenas você mesma.
Ela piscou, surpresa, e um riso baixo escapou de seus lábios, parte divertida, parte constrangida, enquanto ele mantinha a postura, firme mas permitindo que ela se aproximasse, deixando claro que não seria fácil de dominar.
O jardim inteiro parecia silenciar ao redor deles, o vento, as folhas, até o canto distante dos pássaros desapareceu, deixando apenas o jogo sutil de olhares, toques quase acidentais e a tensão carregada de promessas entre Jin-Ye e Lahan.
O vento trouxe um arrepio pela pele de Jin-Ye, e ela percebeu que Lahan a observava com atenção intensa, cada detalhe de seus movimentos registrado em seus olhos. Ela se aproximou mais, sentindo o corpo dele instintivamente reagir à proximidade, mas sem perder o controle.
— Então é assim que você age quando quer conquistar alguém, Lahan? — murmurou ela, a voz baixa, provocativa. — Com olhares e sussurros, deixando a pessoa à beira de perder a paciência?
Ele sorriu, quase imperceptivelmente, inclinando a cabeça, aproximando os lábios dos dela, mas ainda sem tocá-los diretamente.
— Nem tudo é como parece, princesa. — disse ele, com a voz profunda. — E nem todo jogo é vencido pela ousadia.
Ela riu baixinho, sentindo o calor subir pelo corpo, e deu um passo mais perto, encostando-se de leve nele, sentindo a firmeza da cintura dele sob a mão que ainda não se movia.
— Então me diga… como faço para te conquistar? — provocou, com os olhos brilhando de desafio.
Lahan suspirou, aproximando finalmente o rosto do dela, e a tensão que os rodeava se condensou em um instante de silêncio carregado.
— Basta ser você mesma, princesa — murmurou, quase um sussurro. — Só assim… eu me renderei.
Jin-Ye hesitou por um instante, surpresa com a sinceridade e firmeza dele, antes de inclinar-se suavemente, aproximando os lábios. O toque foi breve, mas elétrico, um selar de olhares, sussurros e respirações misturadas, carregando toda a provocação, intimidade e cumplicidade construída até aquele momento.
O beijo se aprofundou ligeiramente, mas nunca completamente consumado, mantendo a tensão e o controle de ambos, apenas permitindo que a emoção falasse mais alto que as palavras. Ela sentiu o coração disparar, o corpo reagir, mas também a certeza de que aquele momento não precisava ser apressado.
Quando se afastaram, ainda próximos, os rostos levemente ruborizados, sorrisos cúmplices surgiram.
— Então é assim… — disse Jin-Ye, tentando disfarçar a respiração acelerada. — É assim que se conquista alguém que não se dobra fácil.
— Exatamente — respondeu Lahan, com um brilho divertido nos olhos, mantendo a distância respeitosa, mas o toque de intensidade emocional ainda pairando entre eles.
Ela sorriu, um pouco envergonhada, mas encantada.
— Então terei que improvisar…
Com um último olhar carregado de promessa, ambos se afastaram, retomando a caminhada pelo jardim, retornando à rotina do palácio, mas com a certeza de que algo entre eles havia mudado para sempre, e que aquela tensão, provocação e atração continuariam a crescer a cada encontro.
[. . .]
O dia já havia se despedido quando Maomao e Jinshi finalmente se retiraram para a suíte privada, pois o Pavilhão da Lua ainda estavam finalizando as reformas e não poderiam utilizá-lo completamente. O ambiente estava iluminado por lâmpadas suaves e velas perfumadas, o ar carregado do aroma de incenso misturado ao vapor quente que subia das duas grandes banheiras.
Maomao se acomodou na água morna, fechando os olhos por um instante e soltando um suspiro profundo de relaxamento.
— Nunca imaginei… — começou, a voz leve, quase um sussurro, — que estaria assim, nua, a poucos metros de um homem, e ainda conseguindo relaxar dessa forma.
Jinshi, já sentado na banheira oposta, com os cabelos ainda úmidos colados na testa, gargalhou, o som ecoando suave no espaço quente do banheiro.
— É que, teoricamente, todos acham que consumamos o casamento, por isso estamos assim, rindo e tranquilos… mas na prática, realmente é estranho — disse ele, piscando para ela, deixando o tom leve mas carregado de provocação.
Ela abriu um dos olhos, lançando um olhar divertido e desafiador.
— Estranho, hein? Estranho como… — ela fez uma pausa dramática, brincando com a tensão no ar — como um homem não está me perseguindo como um lobo faminto.
Jinshi arqueou uma sobrancelha, o sorriso se alargando.
— É mesmo… — respondeu, fingindo considerar seriamente a situação. — Um lobo faminto… ou um homem que só quer apreciar a companhia da esposa sem criar um escândalo?
Maomao riu baixinho, sentindo o calor subir novamente. O
vapor da água fazia com que seus olhares se encontrassem sem que houvesse qualquer barreira física, apenas algumas metros separando-os, mas a proximidade psicológica e emocional era intensa.
— E é justamente isso que torna tudo tão… confortável e estranho ao mesmo tempo — disse ela, jogando água levemente em sua direção, provocando-o de maneira sutil.
Ele desviou, fingindo se esquivar da pequena provocação, mas não conseguia esconder a expressão divertida e encantada.
— Então, o segredo é manter a distância, mas permitir que a tensão permaneça — murmurou, com a voz baixa, quase um sussurro, que fez seu peito bater mais rápido.
Maomao apoiou os cotovelos na borda da banheira, inclinando-se um pouco para frente, o que deixou o vapor e a luz das velas brincarem com o contorno de seus traços.
— Quem diria, hein? — disse, com um sorriso travesso — Nós dois, banhos quase juntos, mas sem realmente nos vermos nus um ao outro… isso é tão civilizado quanto impossível de acontecer.
Jinshi gargalhou novamente, inclinando-se ligeiramente para frente, mostrando que, mesmo separado pela distância mínima, ele se permitia a intimidade do momento.
— É que, antes, havia sempre aquela divisória antes dos servos tirarem a pouco… — comentou ele, recordando o momento em que as servas e servos terminavam as massagens separadamente. — Agora, estamos… praticamente frente a frente, mas ainda mantendo o controle.
Ela sorriu, sentindo uma mistura de nervosismo e diversão.
— Parece que estamos treinando para ver quem quebra o controle primeiro. — disse, piscando para ele, a voz carregada de provocação sutil.
Ele retribuiu o olhar, mantendo o tom sério, mas deixando a faísca de diversão evidente.
— Então, quem perder primeiro perde… — murmurou, e os dois riram juntos, a tensão e a cumplicidade criando uma espécie de jogo silencioso, íntimo e pessoal, onde cada gesto, cada sorriso e cada provocação carregavam o peso de sua atração contida.
O vapor continuava subindo, misturando o calor da água à atmosfera do quarto, enquanto Maomao e Jinshi permaneciam ali, lado a lado, desfrutando da companhia um do outro, rindo, provocando e mantendo aquela proximidade segura, mas carregada de tensão psicológica e sensualidade contida, construindo ainda mais a intimidade de seu relacionamento sem jamais ultrapassar os limites que escolheram respeitar.
Depois de longos minutos imersos nas banheiras, o vapor começou a dissipar lentamente, e eles decidiram se retirar da água. Maomao se levantou primeiro, sentindo o calor da pele exposta ao ar mais frio do quarto, e Jinshi fez o mesmo, envolvendo-se em um robe leve de seda. O contato dos tecidos úmidos com a pele ainda provocava pequenas faíscas de tensão, e cada movimento era acompanhado por olhares rápidos e cúmplices.
— Nunca imaginei que um banho pudesse ser tão… educativo — disse Maomao, ajustando o robe e cruzando os braços, a voz carregada de ironia. — Dá para aprender muito sobre controle psicológico e autocontenção.
Jinshi riu, inclinando-se para frente apenas o suficiente para que o aroma do sabonete e do incenso os envolvesse mutuamente.
— Educação intensiva, sim — respondeu, provocativo. — Mas, sinceramente, você parece bastante confortável com tudo isso… ou está apenas testando até onde consigo me controlar.
Ela ergueu uma sobrancelha, caminhando devagar até ele, cada passo marcado pelo som suave do piso de madeira e pelo deslizar do robe sobre a pele úmida.
— E se eu estivesse testando você? — perguntou, a voz baixa e quase brincalhona, deixando a frase pairar no ar. — Como saberia se você está realmente no controle ou apenas se segurando?
Ele cruzou os braços, mantendo o olhar firme, mas com um sorriso divertido.
— Então você gosta do jogo de tensão… — disse, a voz profunda, carregada de cumplicidade. — Bom saber, mas não se engane, Maomao, eu sei reconhecer uma provocação quando a vejo.
Ela sorriu, caminhando ainda mais perto, tão perto que poderiam se tocar se quisessem, mas mantiveram a distância mínima, cada centímetro criando faíscas invisíveis.
— Ah, eu sei — respondeu ela, a voz carregada de charme — só queria ver se você realmente conhece seus limites.
Ele balançou a cabeça, divertido e intrigado, e deu um passo em direção a ela, diminuindo ainda mais a distância.
— Então vamos testar juntos, certo? — murmurou. — Mas do jeito que só nós sabemos jogar.
Maomao deu uma risada baixa, quase um sussurro, sentindo a tensão entre eles aumentar sem precisar de palavras adicionais.
— Certo… mas lembre-se, Jinshi. — disse, inclinando-se levemente, tão perto que podia sentir a respiração dele — eu não sou tão fácil de dominar quanto aparento.
Ele a encarou, aproximando o rosto ainda mais, e respondeu com calma e firmeza:
— E eu não quero que seja fácil. Quero cada desafio, cada provocação… até que você decida que confia em mim completamente para se mostrar e se entregar a mim.
O silêncio tomou conta do quarto por alguns instantes, mas não era um silêncio vazio.
Era carregado de cumplicidade, tensão psicológica e uma sensualidade contida, quase palpável. Ambos respiraram fundo, absorvendo a presença um do outro, a intimidade crescente, sem nunca precisar avançar para algo além do que haviam permitido até agora.
Finalmente, eles se afastaram o suficiente para se sentarem nas poltronas próximas à lareira, ainda em robes, mantendo olhares cúmplices e sorrisos sutis. O riso se misturava à leveza do ambiente, mas a tensão velada permanecia, lembrando que cada gesto, cada provocação, cada olhar seria parte do jogo silencioso que construíam juntos, preparando o terreno para o próximo dia e todos os compromissos oficiais que os aguardavam.
Chapter 12: Primeiras Semanas
Notes:
Esse capítulo sim me senti feliz escrevendo, o que posso dizer?
Preparem o coração, temos uma nova Maomao e uma nova interação entre o casal, finalmente as coisas estão fluindo
Boa leitura amores, podem comentar, estarei respondendo todos com carinho :)))
Chapter Text
1 semana depois...
O sol filtrava-se pelas janelas do grande salão de audiências, tingindo de dourado as colunas vermelhas e os painéis entalhados em madeira. O dia mal havia começado e já se erguia diante de Jinshi uma muralha de vozes, figuras imponentes: ministros de túnicas pesadas, generais de semblante severo, enviados de províncias distantes com olhos ávidos por vantagens.
No assento elevado, ele permanecia sereno, a compostura imaculada, cada gesto calculado. À sua esquerda, estava Maomao, vestindo um hanfu cerimonioso de seda clara, bordado em fios sutis que reluziam sob a luz da manhã. A maquiagem discreta realçava a intensidade dos olhos azuis, e em suas mãos delicadas repousava um leque, mais arma do que enfeite.
Ela não falava. Apenas observava.
Os olhos de Maomao percorriam os rostos, os dedos inquietos dos ministros, as rugas de expressão que se aprofundavam com cada frase. Era quase um jogo — um jogo que ela dominava melhor do que a maioria daqueles homens experientes. O leve tremor de um queixo, um olhar desviado, um respiro mal contido: cada detalhe era um segredo que se revelava para ela.
— O príncipe é benevolente, mas precisamos agir com firmeza quanto aos tributos de verão... — começou um dos ministros, inclinando-se.
A voz era doce na superfície, mas carregada de cálculo, Maomao ergueu levemente a sobrancelha, o leque subindo até os lábios, ocultando um sorriso que beirava o deboche. Observou com atenção: três vezes aquele mesmo ministro desviara o olhar para a lateral, avaliando Jinshi, pesando respostas. Era quase engraçado vê-lo tropeçar na própria encenação.
Jinshi manteve a calma impecável, o rosto era uma máscara de autoridade, o tom equilibrado, sem pressa nem exaltação. No entanto, ele não deixou de perceber a vibração silenciosa da mulher ao seu lado, o brilho malicioso nos olhos dela, sempre atenta a detalhes que a maioria não enxergava.
Aproveitando um instante em que a atenção da corte se desviava para um relatório, ele se inclinou discretamente, os lábios se aproximando do ouvido de Maomao. A voz, baixa o suficiente para que só ela ouvisse, deslizou como uma provocação íntima:
— Está se divertindo com o meu suplício, pequena gata venenosa?
O leque permaneceu imóvel diante da boca dela, mas os olhos cintilaram em triunfo. Sem mover a postura, Maomao respondeu com frieza deliciosa:
— Só estou contando quantas vezes ele mente antes de engasgar com a própria saliva.
O comentário era seco, cruel até, mas em seus lábios havia o fantasma de um sorriso que Jinshi conhecia bem. Ele reprimiu a vontade de rir, os olhos dele brilhando em divertimento. A postura, no entanto, jamais vacilou: para a corte, era o mesmo príncipe intocável, rígido e impecável.
Ainda assim, naquela breve troca, havia um mundo oculto.
Entre provocações murmuradas atrás de leques e olhares furtivos, tecia-se um fio invisível, algo que a corte jamais suspeitaria. Jinshi e Maomao, tão diferentes, mas unidos em um jogo particular: ele, sustentando o peso do império; ela, revelando segredos com um simples arqueio de sobrancelha.
E enquanto os ministros seguiam falando, derramando palavras como moedas em um tabuleiro, Jinshi deixou que sua mão repousasse sobre o braço do trono, perto o suficiente para que Maomao percebesse — um gesto discreto, mas cheio de intenção. Ela não olhou, não se moveu, apenas apertou o leque um pouco mais forte, escondendo atrás dele o riso que quase escapava.
O salão prosseguia em uma sinfonia de vozes e argumentos. Relatórios eram lidos, listas de tributos e pedidos se acumulavam, e cada palavra parecia pesar toneladas de prata e arroz. O ministro de antes ainda se esforçava em sustentar seu discurso, oscilando entre bajulação e pressão velada.
Maomao, atrás do leque, observava com aquele olhar preguiçoso que confundia os homens ao redor. Muitos a julgavam apenas uma jovem esposa ornamental em uma reunião política entre tantos homens, ali para compor a imagem serena do príncipe. Mas quem conhecia o brilho afiado por trás de seus olhos sabia: quando ela se calava, era porque estava afiada como uma lâmina.
O ministro ergueu novamente a voz:
— Naturalmente, o aumento nos tributos de verão não prejudicará as aldeias,a afinal, as colheitas deste ano foram prósperas...
Foi nesse instante que Maomao inclinou a cabeça levemente, como se não pudesse se conter. O gesto chamou a atenção, discreto, mas notado por todos e com a voz doce, quase distraída, ela interveio:
— Que curioso... porque nos relatórios enviados da província norte, que li ontem à noite, há menção de uma praga nos campos de cevada. — baixou os olhos como se consultasse a própria memória, brincando com a borda do leque. — Se bem me recordo, o prejuízo estimado era de quase quarenta por cento da produção.
Silêncio. Um silêncio tão espesso que se podia ouvir o estalo seco da madeira quando um dos generais mexeu a cadeira.
O ministro, pego de surpresa, engasgou com a própria saliva. Tentou recompor-se, mas a vermelhidão subiu-lhe ao rosto.
— E-eu... certamente, Vossa Alteza, a senhora deve ter recebido relatórios desatualizados...
Maomao ergueu o olhar, azul faiscante, o sorriso delicado ainda estava ali, mas seus olhos diziam outra coisa.
— Oh, então quer dizer que mentiram para mim e para o senhor meu marido? — a inocência na entonação era cortante, um golpe disfarçado de ingenuidade.
Alguns ministros se remexeram, desconfortáveis. O general à direita tossiu para conter o riso. E Jinshi... Jinshi permaneceu imóvel, a postura perfeita, mas o brilho de seus olhos denunciava o prazer silencioso de assistir àquela dança venenosa.
Ele se inclinou só o bastante para que a voz grave roçasse o ouvido de Maomao, quase imperceptível aos outros:
— Pequena gata venenosa, agora todos sabem que suas garras são mais afiadas do que as minhas.
Sem se abalar, ela fechou o leque com um leve estalo e sussurrou de volta, sem olhar para ele:
— Eu só contei quantas vezes ele mentiu. Você que deixou que falasse demais.
A tensão, invisível e irresistível, se manteve entre os dois, mas para a corte, a lição estava dada: Maomao não era apenas a esposa do príncipe. Era uma presença afiada, impossível de ser ignorada.
O silêncio que se seguiu à fala de Maomao pareceu eterno. As colunas vermelhas do salão refletiam a tensão, e o som do vento lá fora parecia mais alto do que a respiração contida dos presentes. O ministro que tentara sustentar sua mentira recuou um passo, suor escorrendo pela têmpora, a mão apertando nervosamente o pergaminho que segurava.
Um general robusto pigarreou, forçando a garganta a disfarçar o riso que quase escapava. Outros ministros se entreolharam com incômodo, alguns franzindo o cenho em reprovação velada — não contra ela, mas contra o colega exposto de forma tão humilhante.
E havia ainda aqueles que, no fundo, não conseguiram esconder o fascínio: a jovem que muitos consideravam apenas um ornamento ao lado do príncipe mostrava-se tão perspicaz quanto perigosa.
Jinshi permaneceu imóvel.
O semblante era impecável, mas dentro dele borbulhava uma satisfação silenciosa. Seus olhos percorreram os homens diante de si, e então baixaram por um breve instante para Maomao, que ainda mantinha o leque fechado nas mãos, como se nada tivesse acontecido.
Foi ele quem quebrou o peso do silêncio.
— A observação de minha esposa é válida. — a voz de Jinshi ecoou serena, mas firme, como um golpe contido. — Se há discrepâncias nos relatórios, será preciso investigá-las. Não aceitaremos dados imprecisos, muito menos medidas que possam prejudicar o povo.
O ministro engoliu em seco, ajoelhando-se apressado para se redimir.
— S-sim, Vossa Alteza! Eu... providenciarei esclarecimentos imediatos.
Jinshi apenas acenou com a cabeça, dispensando a cena patética do homem. Em seguida, voltou-se para os outros, retomando o fio da audiência como se nada tivesse ocorrido. Ainda assim, todos os olhares, mesmo disfarçados, corriam para Maomao de tempos em tempos.
Ela, por sua vez, fingia não notar, o leque repousava suavemente sobre o colo, e seu rosto permanecia sereno, quase distraído, mas atrás da máscara, Maomao se divertia.
Enquanto um enviado provincial relatava os números da última colheita, Jinshi inclinou-se ligeiramente, sem alterar o tom de voz nem perder o ritmo do discurso:
— Agora eles sabem.
Maomao ergueu o olhar devagar, olhos azuis faiscando de malícia contida.
— Que não devem subestimar uma simples esposa? — murmurou, arqueando a sobrancelha.
O canto da boca de Jinshi se curvou em um sorriso contido, rápido demais para que os demais percebessem.
— Que ao meu lado, há quem veja mais do que eles gostariam que fosse visto.
O resto da audiência transcorreu sob uma atmosfera diferente. A corte, antes acostumada a medir palavras apenas diante do príncipe, agora cuidava até dos olhares, temendo que a mulher de leque nas mãos decifrasse seus pensamentos mais íntimos.
E para Jinshi, essa mudança era preciosa, pois enquanto todos se curvavam a ele, apenas Maomao o desafiava com um sorriso debochado atrás da seda delicada.
Nos corredores dourados do palácio, onde cada coluna parecia ostentar mais séculos de tradição do que qualquer ministro poderia reivindicar em discursos, Maomao caminhava com a serenidade estudada de quem sabia ser observada. Não importava se eram reuniões, banquetes ou encontros ocasionais nos jardins: olhares a cercavam como flechas, medindo cada gesto seu.
As princesas das famílias rivais aproximavam-se com sorrisos tão afiados quanto as lâminas de seus leques. Testavam sua calma, lançando perguntas traiçoeiras disfarçadas de cortesia. Nobres mulheres cochichavam, esperando arrancar dela algum deslize, alguma resposta que a denunciasse como provinciana. Maomao, porém, mantinha a compostura com um sorriso leve, quase zombeteiro, nunca se desfazia e era justamente esse sorriso que desarmava quem esperava vê-la tremer.
Em um desses banquetes, a sala iluminada por centenas de lanternas refletia nos olhos atentos dos ministros. Jinshi, sentado alguns lugares adiante, observava como um general avaliando um campo de batalha: de braços cruzados, olhar plácido, expressão tão impenetrável que poucos notariam o brilho divertido em seus olhos.
À frente de Maomao, um diplomata estrangeiro se curvava, insistente, tentando ostentar as grandezas de sua corte. Ele falava de conquistas, riquezas e tradições como se estivesse pregando diante de um público ignorante, Maomao o escutava em silêncio, o que o encorajava a continuar. Quando, por fim, houve uma pausa, ela apenas inclinou delicadamente a cabeça e disse, com voz calma:
— Interessante, mas devo dizer que já ouvi versões diferentes... mais realistas.
O comentário, aparentemente inocente, caiu como uma pedra na superfície lisa da água, o homem enrubesceu, a vaidade ferida diante da plateia silenciosa. Orgulho e ofensa se misturavam em seu semblante, mas ele não encontrou resposta imediata.
Antes que o constrangimento se prolongasse, Jinshi levantou-se com a elegância de quem não precisava pedir licença, cada passo seu ecoava como uma sentença não dita. Colocou-se ao lado da esposa, sem dizer palavra, apenas pousando a mão de leve sobre a mesa diante dela. Foi o bastante, o gesto era simples — silencioso, mas cheio de peso — fez a tensão evaporar. Todos entenderam: "Ela está sob minha proteção. Não se atrevam."
O diplomata recuou, engolindo a própria língua. As princesas rivais trocaram olhares, desconcertadas e Maomao, sem alterar o tom sereno, tomou um gole do chá como se nada tivesse acontecido.
O retorno aos aposentos foi silencioso no início, marcado apenas pelo arrastar macio dos trajes contra o chão e o som abafado de suas respirações. Jinshi caminhava um passo atrás, deliberadamente, como se ainda saboreasse a cena diante da corte. Assim que fecharam as portas, porém, a máscara serena dele caiu, substituída por um sorriso que misturava diversão e exasperação.
— Você...e — ele começou, demorando-se na palavra como se a mastigasse — me deixa com vontade de aplaudir e estrangular você ao mesmo tempo.
Maomao riu baixo, quase um ronronar, recolhendo uma mecha solta de cabelo que caíra sobre o rosto.
— Então estamos quites. — respondeu, arqueando a sobrancelha, a voz carregada de provocação.
Jinshi estreitou os olhos, aproximando-se até que os fios de cabelo dela quase roçassem sua pele.
— Quites? Você não imagina quantas vezes hoje eu tive de conter o impulso de arrastar você para fora daquela sala só para... calar essa língua venenosa.
Ela ergueu o queixo, os lábios curvados em desafio.
— Veneno, ou antídoto? Depende de quem bebe, não acha querido?
Por um instante, o ar pareceu mais denso, como se até as paredes esperassem a próxima palavra, Jinshi suspirou, recuando meio passo, mas sem esconder o riso.
— Eu realmente devia me preocupar... um dia você ainda vai me derrubar diante de todos. — confessou revirando os olhos com um sorriso brincalhão.
— E você vai gostar, Jinshi. — retrucou ela, com a calma afiada de sempre.
O peso da audiência e das intrigas desaparecera, substituído por uma expectativa diferente, carregada apenas pela presença do outro e de algumas troca de farpas entre eles.
Ao entrarem na suíte, o aroma de ervas frescas e flores acolheu-os, duas banheiras já estavam preparadas lado a lado, com a água morna lançando um vapor delicado no ar. Entre elas, uma divisória de madeira e vidro fosco criava um limite sutil, permitindo proximidade sem invasão.
Maomao deixou o leque cair sobre a mesa lateral e ergueu os braços, soltando um leve suspiro de alívio.
— Sem ministros, sem nobres... finalmente posso respirar. — disse, com um sorriso que misturava diversão e relaxamento.
Jinshi cruzou os braços, ainda sério, mas os lábios curvando-se levemente.
— E você continua provocando, mesmo no nosso próprio quarto.
Ela sorriu, mas não respondeu imediatamente. Dirigiu-se à divisória, deslizando a mão sobre a madeira e o vidro fosco. A luz suave filtrava-se pelos contornos, e ninguém além dela sabia exatamente o que se passava. Lentamente, Maomao começou a se despir por trás da divisória, os movimentos discretos e cuidadosos, mantendo a privacidade que ainda desejava.
Enquanto isso, Jinshi permanecia próximo, ao lado da banheira, observando sem invadir o espaço dela. Havia paciência no olhar dele, um respeito silencioso pela barreira que ela ainda precisava. Ele não a veria nua sem que ela estivesse pronta, e nem precisava: a presença dela já era suficiente.
Quando Maomao entrou na banheira, a água envolvendo seu corpo, o vapor subiu, borrando ainda mais os contornos e dando-lhe o controle total sobre a situação. Ela fechou os olhos por um instante, deixando que o calor da água a relaxasse. Depois, com um gesto deliberado, afastou a divisória o suficiente para que Jinshi pudesse vê-la parcialmente. Não era nudez total — ainda assim, havia uma intimidade carregada no gesto.
— Está melhor assim? — perguntou ela, a voz baixa, brincando com a água com os dedos.
Jinshi inclinou-se ligeiramente, mantendo-se na borda da banheira, seu olhar era calmo, respeitoso, mas carregado de uma atenção intensa.
— Sim. Do jeito que você quer que eu veja. — respondeu, a voz grave, quase um sussurro. — Não tenho pressa e você decide quando estiver pronta.
Ela sorriu, divertida e satisfeita por manter o controle do momento.
— Então está bem. Posso aproveitar esta banheira tranquila, e você fica aí... me observando pacientemente.
— Pacientemente? — Jinshi arqueou a sobrancelha, um sorriso quase imperceptível nos lábios. — Você me chama de paciente, mas sabe que isso é apenas fachada. Meu interesse por você não permite outra postura.
Maomao mergulhou os dedos na água, levantando pequenas ondas que refletiam a luz quente do quarto.
— Interessante e você ainda assim consegue manter essa compostura impecável. Admirável, Vossa Alteza.
Ele riu baixo, o som ecoando suavemente entre as paredes do aposento.
— Com você ao lado, pequena gata venenosa, qualquer tentativa de compostura é sempre posta à prova.
Ela levantou os olhos para ele, os azuis faiscando atrás do vapor.
— Então continuaremos assim... você tentando não perder a compostura, e eu aproveitando cada segundo do desafio.
O vapor subia espesso na suíte, envolvendo Maomao e Jinshi em uma névoa delicada, quase mágica. A água da banheira ondulava suavemente a cada movimento de Maomao, criando reflexos dourados que dançavam sobre a pele molhada dela. Ele permanecia à beira da banheira, parado, observando com calma, cada gesto dela carregado de intenção e desafio.
Seus olhos azuis fixaram-se nos dele, faiscando de malícia, e ela deixou escapar um sorriso quase imperceptível, sabendo o efeito que causava.
— Está curioso demais para um príncipe paciente. — murmurou Maomao, a voz baixa, provocativa.
— Curiosidade não é pecado. — Jinshi respondeu, a voz grave e contida, o olhar prendendo cada detalhe dela, respeitando o espaço e o momento.
Ela inclinou-se para frente, deixando que a água escorresse pela pele como fios de seda líquida, desviando os cabelos molhados para trás e expondo o pescoço por um instante que parecia uma eternidade. Jinshi não avançou, mas seu corpo se inclinou sutilmente, aproximando-se o bastante para que Maomao sentisse o calor dele mesmo através do vapor que os envolvia. A tensão era elétrica, vibrava no ar como uma corda prestes a se partir.
Maomao percebeu o efeito que causava e, pela primeira vez, não recuou, lentamente, ergueu-se dentro da banheira, o corpo nu brilhando sob a luz suave que refletia nas gotas de água. Apoiada nos joelhos, deixou-se aproximar dele, revelando-se por inteiro sem defesas.
O olhar de Jinshi tremeu, surpreso.
Ele a encarava como se o mundo tivesse parado, seus olhos violetas, profundos e intensos, fixaram-se nos dela, azuis como cristais molhados, que o atravessavam sem pedir permissão. Ele sentiu-se desarmado, quase como se voltasse a ser um adolescente, mesmo sendo o homem que carregava o peso do império. Por tantos anos, reprimia o encanto ou talvez a paixão que sentia por Maomao, e agora, casado com ela, tinha diante de si não apenas a mulher por quem sempre fora fascinado, mas o desejo cru e palpável que se impunha sem disfarces.
A visão de seu corpo — a cintura fina, os seios enormes que se erguiam parcialmente com a respiração acelerada, o brilho da pele molhada — era mais do que ele ousava imaginar. Para Jinshi, Maomao sempre fora além de um corpo, além de um rosto bonito; mas naquele instante, vê-la tão próxima era como ser admitido no próprio paraíso.
Ainda hesitante, ele se ergueu, ajoelhando-se diante dela, a banheira os separava por meros centímetros, e essa distância era insuportável. Suas mãos deslizaram com firmeza até a cintura molhada dela, envolvendo-a com cuidado, mas a intensidade em seus olhos denunciava um desejo ardente.
Os olhares se prenderam. Azul e violeta. Frio e fogo. O choque silencioso que os fez esquecer do mundo ao redor, o ar se rarefez quando os lábios se aproximaram, cada respiração quente entrelaçando-se até que finalmente se encontraram.
O beijo veio intenso, profundo, como se fosse inevitável.
Começou devagar, com o cuidado de quem saboreia a primeira vez, mas carregado de urgência contida. Os lábios de Jinshi se fecharam sobre os dela com firmeza, explorando, puxando-a para mais perto, enquanto os dedos se apertavam levemente na sua cintura.
Maomao gemeu baixo contra a boca dele, deixando-se levar, seus olhos se fecharam, e o corpo, erguido o suficiente para que ele visse as curvas nuas entre o vapor, encostou-se ao dele sem reservas. As mãos dela deslizaram pelas costas largas do príncipe, cravando-se levemente em busca de firmeza.
O beijo aprofundou-se, ardente, quase desesperado, como se ali trocassem anos de silêncio e desejo reprimido. Cada suspiro partilhado, cada toque molhado, cada segundo prolongava o fogo que crescia entre eles.
Quando os lábios se afastaram por um instante, apenas o bastante para respirar, os olhos se encontraram novamente. Os dela, azuis, brilhavam em provocação e entrega; os dele, violetas, ardiam em desejo e adoração. Era como se estivessem presos num feitiço que não permitia recuo e nenhum dos dois parecia querer escapar.
— Você é tão contido... mas me deixa sentir tudo. — murmurou ela, a voz rouca e quente.
— Porque quero que seja você a guiar cada passo, pequena gata. — respondeu Jinshi, inclinando a testa contra a dela voltando a beijar os lábios da esposa, o calor entre eles intenso, íntimo, perfeito.
O beijo se aprofundou, lento e firme, como se cada segundo precisasse ser saboreado. Maomao arqueou o corpo levemente, pressionando-se contra Jinshi, sentindo o calor dele irradiar para cada centímetro do seu corpo. A água da banheira ondulava a cada movimento, refletindo o brilho suave das lanternas, e o vapor tornava a cena quase etérea, borrando os contornos e intensificando a intimidade entre eles.
Jinshi não se precipitou, segurando-a com cuidado, guiando a proximidade sem ultrapassar limites, como se cada gesto fosse medido pelo desejo de respeitar o tempo dela.
Maomao, sentindo a confiança do príncipe, tornou seus gestos mais ousados, as mãos dela subiram levemente, brincando com o toque da água sobre os braços e peito dele, insinuando-se sem jamais forçar. Ela arqueou-se mais, inclinando o corpo, e o beijo tornou-se mais urgente, profundo, carregado de suspiros e respirações compartilhadas.
Jinshi respondeu à ousadia dela com cuidado, mas o toque dele na cintura e nas costas molhadas de Maomao falava mais do que palavras poderiam. Cada movimento era um diálogo silencioso, uma troca de confiança e desejo contido. Ele inclinou-se um pouco mais, pressionando o corpo contra o dela, mas sem invadir totalmente o espaço que ela ainda controlava.
Ela se permitiu levantar-se um pouco, os joelhos firmes na banheira, deixando que ele observasse um pouco mais de seus seios, e ao mesmo tempo segurava a cintura dele, puxando-o suavemente para si. O calor entre eles cresceu, mas nenhum gesto era abrupto; cada toque era cuidadosamente medido, provocativo, íntimo.
Entre suspiros, Maomao sussurrou, quase entre dentes:
— Você sente... tanto quanto eu.
Ele murmurou contra os lábios dela, quase um roçar de voz:
— Mais do que imagina... mas cada passo seu me mostra exatamente como seguir.
O beijo prolongou-se, agora com movimentos mais sincronizados, a água ondulando em torno deles, o vapor envolvendo cada contorno do corpo, criando um véu que só existia para eles dois. A tensão, a provocação e a entrega eram contínuas, cada gesto aumentando a intimidade sem nunca romper o respeito e o cuidado mútuos.
Quando se afastaram, apenas o suficiente para respirar, seus rostos estavam próximos, a testa encostada, os olhos faiscando entre a provocação e a ternura.
— Você é impossível... — murmurou Jinshi, a voz grave, carregada de desejo contido.
— E você adora isso... — respondeu Maomao, sorrindo de canto, os olhos azuis brilhando por trás do vapor.
Maomao, ainda de joelhos na banheira, sorriu com malícia, sentindo o calor do corpo dele tão próximo. Sem aviso, inclinou-se para frente e puxou Jinshi suavemente para dentro da banheira, o corpo dele caindo na água morna com um leve respingo, as vestes leves que ele usava ficaram molhadas, aderindo à pele de forma sutil, destacando a firmeza do corpo dele, enquanto ele se equilibrava para não escorregar, agora por cima da mulher, que sorria maliciosa, como se tivesse ganhado um prêmio por tamanha conquista.
O príncipe soltou um riso baixo, quase um suspiro, mas manteve a calma, ele começou a se inclinar em direção a ela, mas Maomao, sentindo a intensidade do momento, ergueu as mãos levemente, interrompendo o avanço dele.
— Espera... apenas... só os beijos, por agora. — disse ela, a voz carregada de timidez e desejo, os olhos faiscando uma mistura de receio e provocação.
Por dentro, seu coração acelerava.
Ela já se sentia exposta, ver Jinshi tão perto, vendo-a nua, era mais do que qualquer coisa que já sentira, mas havia algo nele que a deixava quase sem controle. Era irresistível, a presença dele carregada de segurança, desejo e cuidado. Ainda assim, queria prolongar aquele instante, segurar a vulnerabilidade por si mesma, se permitindo apenas os beijos, deixando que o mundo inteiro desaparecesse ao redor deles.
Cada toque, cada roçar de lábios, cada respiração compartilhada era um lembrete de que, apesar da vergonha e da intimidade, ela não conseguiria resistir totalmente àquele homem que parecia capaz de desarmá-la apenas com um olhar.
Jinshi respondeu com cuidado, os braços envolvendo-a sem apertar demais, permitindo que ela conduzisse o ritmo. Cada gesto dele era deliberado, medindo o espaço, respeitando a vulnerabilidade dela. Ainda assim, o toque dele nas costas e na cintura submersa de Maomao provocava arrepios que ela não conseguia disfarçar.
— Você está tentando me enlouquecer, sabia? — sussurrou Jinshi entre beijos, os dedos deslizando pelo ombro dele, provocativa, mas ainda no controle.
— E você gosta disso. — murmurou Maomao, aproximando o rosto do dela, os lábios roçando levemente os dele, provocando sem avançar demais. — Cada gesto seu me deixa mais próxima... e não posso resistir totalmente.
Ela riu baixinho contra os lábios dele, arqueando o corpo e roçando suavemente os seios nele, mas sem mostrar mais do que já se permitira, apenas aumentando a tensão e o jogo de controle entre eles.
— Você é impossível... — murmurou Jinshi, a voz grave e rouca, quando se afastaram apenas o suficiente para respirar.
—O príncipe diz como se não gostasse do perigo... — respondeu Maomao, sorrindo, os olhos faiscando atrás do vapor, a respiração ainda ofegante.
O silêncio que se seguiu era carregado de significado, cada respiração compartilhada, cada toque involuntário um lembrete de que ali, naquela banheira, naquele instante, não havia pressa, apenas intimidade pura, provocação, cuidado e entrega crescente, como se o mundo inteiro tivesse desaparecido, deixando apenas dois corpos, dois corações e um desejo silencioso e absoluto.
[. . .]
Alguns dias depois, finalmente o Pavilhão da Lua estava restaurado.
O edifício reluzia sob a luz do sol, os tons de vermelho e dourado dançando com as sombras das colunas esculpidas, enquanto o perfume suave das madeiras polidas se misturava à fragrância das flores do jardim. O palácio inteiro murmurava sobre o príncipe e sua esposa ocupando aquele espaço reservado e luxuoso, e cada passo deles dentro do pavilhão era observado com atenção silenciosa por criados, conselheiros e visitantes.
O casal, porém, parecia alheio a todas as fofocas, ocupando-se com a rotina que aos poucos se tornava quase doméstica. Pela manhã, Jinshi partia cedo para reuniões, deixando para trás o cheiro leve dos incensos que seus servos preparavam com zelo. Maomao, sozinha, encontrava no silêncio do pavilhão uma companhia confortante. Entre livros médicos, pergaminhos antigos e suas plantas, ela passava horas absorvendo conhecimentos, rabiscando anotações e reorganizando o pequeno herbário que montara na varanda. Já havia improvisado um canto no jardim para catalogar espécies raras que as criadas traziam de regiões próximas, anotando meticulosamente cada detalhe.
À noite, quando Jinshi retornava exausto, encontrava-a sempre ocupada, às vezes com o cabelo solto sobre os ombros, roupas simples manchadas de terra ou tinta, em posições nada graciosas para uma princesa. Ele gostava de observá-la assim, com uma mistura de fascínio e divertimento silencioso.
— Você deveria, ao menos, parecer mais altiva diante dos servos. — comentou ele uma noite, recostando-se contra a moldura da porta, o olhar fixo nela enquanto ela transplantava pequenas mudas de ervas para vasos novos.
Maomao nem se virou, concentrada no trabalho, a ponta do lábio inferior entre os dentes:
— E você deveria aprender que algumas coisas só florescem se forem sujas de terra, não de seda.
O príncipe sorriu, os olhos brilhando com malícia contida, e aproximou-se silenciosamente, a mão leve pairando sobre o ombro dela antes de roçar o dedo na terra que manchava sua mão. Maomao congelou por um instante, o coração disparando, e o olhar de Jinshi encontrou o dela com aquela mistura de provocação e cuidado que só ele sabia transmitir.
— Você se distraiu, é raro ver isso. — murmurou ele, a voz grave e suave ao mesmo tempo, antes de se afastar, deixando um rastro de calor invisível onde estivera.
Maomao, mordendo o lábio para não rir alto, pegou a luva de trabalho e a atirou nele, Jinshi apenas desviou com um riso baixo, arqueando a sobrancelha.
— Você está me testando, pequena gata? — provocou, dando alguns passos para frente, aproximando-se novamente e encostando-se na borda da mesa, tão perto que a respiração dele misturava-se com a dela.
— Talvez. — respondeu ela, levantando os olhos para encontrá-lo, o olhar azul faiscando de malícia — Ou talvez esteja apenas lembrando que a princesa também pode ter suas armas.
Ele riu, um som profundo que ecoou pelo salão, e inclinou-se levemente, encostando a ponta do dedo no lábio dela, como se confirmasse silenciosamente a provocação.
O silêncio que se seguiu foi confortável e carregado de tensão leve, o calor do corpo dele próximo e o cheiro de terra e flores envolvendo ambos, lembrando-os de que, mesmo na rotina diária, existia entre eles uma intimidade sutil, provocativa e irresistível.
[. . .]
O crepitar das lanternas refletia suavemente nas paredes de madeira do Pavilhão da Lua, o perfume dos incensos, misturado ao aroma dos alimentos preparados para o jantar, preenchia o ambiente, mas não havia ninguém além deles e das criadas discretas, que saíam do salão aos poucos.
Maomao, já com um robe leve sobre o hanfu que usara durante o dia, encostou-se à varanda. A brisa noturna agitava delicadamente os fios verdes de seu cabelo. Ao fundo, o som da água de um pequeno tanque refletia a calmaria do lugar, ela respirou fundo, pensando no ritmo intenso dos últimos dias, na tensão dos compromissos oficiais, e... no quanto aquela noite prometia ser diferente.
Jinshi entrou silenciosamente, já liberado dos compromissos e ainda com o leve perfume do dia de trabalho, um robe leve cobrindo seu corpo. Seus olhos violetas percorreram Maomao, observando cada detalhe do modo como ela relaxava, como se o pavilhão fosse só deles.
— Estou parecendo que acabei de enfrentar metade do império hoje? — comentou ele, aproximando-se sem pressa.
— Não parece... mas sinto que ainda resta energia para me atazanar. — retrucou Maomao, semicerrando os olhos, um meio sorriso provocativo nos lábios.
Ele riu baixo, percebendo o jogo.
— Então, devo me preparar para ser atacado?
— Não se trata de atacar... mas de observar e saber quando se mover. — respondeu ela, lentamente se aproximando do tanque, mexendo a água com as mãos e molhando os pulsos, como se testasse a paciência dele.
Jinshi encostou-se à borda do tanque, mantendo distância proposital, mas o olhar, fixo e carregado, falava por ele.
— Você se diverte com isso... não é?
— Você também, — disse ela, mordendo o lábio com ironia — senão não estaria me estudando daquele jeito.
O silêncio caiu entre eles por alguns segundos, pesado, mas confortável, o toque da água refletia a luz das lanternas, e cada movimento era observado pelo outro como se fossem um código que apenas eles conheciam.
— Se quiser, posso ajudá-la a relaxar de verdade. — murmurou Jinshi, deixando escapar um sussurro que misturava cuidado e provocação.
Maomao olhou para ele, desafiadora.
— Eu não preciso de ajuda... mas posso te ensinar a ser mais paciente.
Ele arqueou uma sobrancelha, divertido, e fez um passo sutil em direção a ela, Maomao não recuou; pelo contrário, mexeu mais a água, deixando pequenos respingos atingirem levemente o robe dele.
— Viu? Isso foi só um teste.
— Então devo aceitar ou reagir? — provocou Jinshi, o sorriso escondendo o próprio fascínio.
— Apenas observe... e aprenda. — respondeu ela, retirando o robe leve e ficando apenas com a túnica íntima por baixo, mantendo a distância segura, mas intensa, quase desafiadora.
Ele respirou fundo, o coração acelerando, mas manteve a calma.
Cada gesto de Maomao carregava um misto de autoridade e sedução silenciosa, e ele sabia que, se avançasse sem atenção, perderia o controle da situação, algo que raramente acontecia com Jinshi.
— Eu poderia me distrair com você facilmente... mas acho que prefiro aprender a dominar a minha própria paciência primeiro. — disse ele, deixando escapar um riso grave.
— Bom... então teremos muitas oportunidades. — respondeu ela, piscando para ele, a tensão pairando entre eles, como se o ar carregasse eletricidade.
Nesse momento, uma serva discretamente entrou com o jantar leve: peixe, arroz e chás aromáticos. Maomao e Jinshi se sentaram em lados opostos da mesa baixa, mas cada movimento, cada gesto de pegar comida, era carregado de olhares, toques quase acidentais e sorrisos provocativos.
— Vai me olhar assim durante a refeição? — murmurou Jinshi, encostando a mão no tatame enquanto pegava uma taça de chá.
— Só estou medindo suas reações... e elas dizem muito sobre você. — respondeu ela, levando um pedaço de fruta à boca, sem desviar o olhar.
O jantar seguiu assim, cheio de diálogos leves, provocações silenciosas e cumplicidade velada, enquanto o mundo externo parecia não existir. A noite avançava, e a intimidade não precisava de toques explícitos, bastava a proximidade, a tensão e a dança de olhares entre ambos.
[. . .]
O sol já se encontrava no alto quando Maomao, de hanfu verde-limão simples e o cesto de madeira nas costas, caminhava pelo jardim lateral do Pavilhão da Lua. O pincel preso atrás da orelha e o bloquinho de papel aberto em sua mão davam-lhe mais ares de aprendiz ou serva diligente do que de princesa recém-casada. Gaoshun a seguia com a calma habitual, atento não apenas aos arredores, mas também ao fascínio quase infantil que Maomao demonstrava ao se agachar sobre cada nova folha, caule ou pétala.
Ela inclinou-se diante de uma pequena touceira próxima ao lago ornamental, as folhas tinham uma textura diferente do que lembrava nos manuais, mais ásperas, e exalavam um perfume levemente amargo quando esfregadas entre os dedos.
— Interessante... — murmurou, puxando o bloquinho e traçando alguns caracteres rápidos. — As flores possuem pigmento mais estável, talvez úteis para tintura ou para conservas.
O pincel riscou mais alguns detalhes, antes que ela rabiscasse ao lado: Possível uso em chás digestivos, investigar reação com outras ervas amargas.
— Se não soubesse que é princesa, diria que é uma serva dos pavilhões. — disse Gaoshun, em tom contido, mas com um leve brilho de humor nos olhos.
Maomao não ergueu o rosto, apenas sorriu de canto.
— Talvez seja exatamente isso que eu sou no momento e prefiro desse modo. — sorriu de forma divertida para Gaoshun
De repente, o som de passos leves ecoou pelo caminho de pedra, era Liang, o pequeno filho de Lady Lihua, correndo com o vigor de seus oito anos, a franja desalinhada e o olhar curioso fixo em Maomao.
— Princesa, por que está aqui, se ajoelhando na terra? — perguntou, franzindo o nariz de maneira quase ofendida.
Maomao levantou a cabeça e arqueou a sobrancelha.
— Porque gosto de estudar, nem todos os dias de uma princesa precisam ser de seda e ouro.
Liang a encarou em silêncio, intrigado, antes de se aproximar mais. Ficou ao lado dela enquanto ela folheava seu livro de ervas e rabiscava anotações rápidas. Em certo momento, Maomao arrancou um pequeno pedaço de papel, dobrou-o com cuidado e entregou ao menino.
— Para você entregar às damas de sua mãe, são instruções simples para preparar refeições que ajudarão na saúde dela.
Liang pegou o papel, olhou para ela com mais respeito e guardou no bolso.
— A princesa pode vir ao Pavilhão de Cristal sempre que quiser, eu gosto de você. — falou alegremente abraçando Maomao meio desajeitado — Mas não traga Fen Fang. — disse, quase com ciúmes infantis.
Maomao soltou uma risadinha baixa, cúmplice.
— Está bem, prometo.
O garoto correu de volta pelo jardim, desaparecendo entre os corredores, e Gaoshun não pôde deixar de comentar:
— Parece que tem facilidade com quase todas as crianças Maozinha.
Maomao se esticou, soltando os músculos das pernas após tanto se agachar, e respondeu com um sorrisinho zombeteiro:
— Criei quatro sozinha, se eu não souber lidar com um príncipe de oito anos, por favor, mande me prender.
Gaoshun arqueou discretamente as sobrancelhas, como se engolisse um comentário que preferia não fazer, e a seguiu em silêncio.
Enquanto Maomao continuava a explorar os canteiros, ajoelhada sobre a terra úmida, encontrou outra planta curiosa: pequenas flores brancas que só se abriam sob a incidência direta do sol. As pétalas, delicadas, tremiam ao menor sopro de vento, e as sementes, minúsculas, brilhavam como pérolas recém-lapidadas.
Com o pincel, ela fez uma anotação precisa em seu caderno de pesquisa, a caligrafia firme e cuidadosa: possível efeito calmante, verificar uso em casos de insônia.
Nesse instante, uma voz suave, quase etérea, rompeu o silêncio do jardim:
— Sempre com esse olhar atento... — a voz carregava uma melancolia que soava como música triste — ...mesmo às coisas que outros jamais se dariam ao trabalho de notar.
Maomao ergueu o rosto, surpresa, e viu a imperatriz Ah-Duo aproximando-se. Acompanhada por duas damas, ela caminhava com graça contida, cada passo controlado, cada gesto revestido de dignidade. Havia serenidade em sua postura, mas os olhos, profundos e escuros, carregavam um peso que não passava despercebido.
— Majestade. — Maomao inclinou-se respeitosamente, a ponta dos dedos ainda levemente suja de terra. — A natureza revela segredos... mas apenas àqueles que sabem esperar.
Ah-Duo deteve-se diante dela, deixando que o perfume discreto de flores silvestres a envolvesse. Um sorriso suave curvou-lhe os lábios, embora não alcançasse totalmente o olhar.
— Palavras bonitas. — a imperatriz comentou, a voz baixa, quase confidencial. — Palavras que soam como consolo.
Maomao a observou por um instante em silêncio, percebendo a tensão escondida sob a compostura. Então, inclinou levemente a cabeça, ousando devolver um comentário:
— Às vezes, consolo é tudo o que resta... quando já não podemos mudar o curso das coisas.
As damas de companhia trocaram olhares rápidos, inquietas com a audácia velada daquela resposta, mas Ah-Duo não pareceu se incomodar; ao contrário, seus olhos se estreitaram, analisando Maomao como se buscasse decifrá-la.
— Você fala como alguém que já perdeu muito. — murmurou a imperatriz, a melancolia tornando-se mais nítida.
Maomao apertou o caderno contra o peito, mas manteve o olhar firme.
— E vossa majestade fala como alguém que ainda guarda perdas em silêncio.
O vento soprou mais forte naquele instante, balançando as flores brancas ao redor delas, como se a própria natureza reagisse ao diálogo carregado de significados ocultos. Ah-Duo não desviou os olhos, e Maomao tampouco.
Após alguns segundos de silêncio pesado, a imperatriz esboçou outro sorriso, mais contido, quase amargo.
— Talvez por isso eu tenha curiosidade em observá-la, Maomao. — disse, em tom baixo, como se as damas não devessem ouvir. — Há algo em você que me lembra o que já fui... antes de me tornar apenas uma sombra dentro deste palácio.
Maomao respirou fundo, surpreendida com a sinceridade escondida naquela confissão, então, arriscou um leve sorriso.
— Sombras também alimentam as flores, Majestade, nem sempre são apenas ausência de luz.
Os olhos da imperatriz brilharam por um instante — talvez dor, talvez esperança. Ela não respondeu de imediato, mas caminhou alguns passos, tocando com delicadeza uma das flores brancas que Maomao havia observado.
— E ainda assim... — murmurou Ah-Duo, com a voz quase quebrada — ...é sempre a luz que todos escolhem buscar.
Maomao a acompanhou com o olhar, o coração apertado por uma compaixão silenciosa, e percebeu que por trás da figura imponente da imperatriz havia uma mulher que jamais deixara de sentir, apenas aprendera a se calar.
O jardim estava silencioso, exceto pelo som das folhas balançando ao vento, Maomao fechou seu caderno por um instante, mas manteve-o junto ao peito, enquanto Ah-Duo parecia saborear a resposta enigmática que a jovem lhe dera.
A imperatriz deixou que o olhar se perdesse nas flores brancas, mas, de repente, um sorriso mais amplo, quase travesso, se desenhou em seus lábios. Virou-se para Maomao com uma expressão que misturava curiosidade e melancolia.
— Diga-me, Maomao… — começou, a voz ainda suave, mas carregada de uma intimidade inesperada — como está sendo a vida de casada? Os deveres públicos, as obrigações… não devem ser fáceis para alguém como você, que sempre gostou da liberdade das ervas e do silêncio das observações.
Maomao piscou algumas vezes, surpresa pelo rumo da pergunta, mas manteve a compostura.
— Majestade… — respondeu com cautela, escolhendo bem as palavras — …cada dia é um aprendizado. A política não é um jardim, mas ainda assim exige paciência e eu particularmente gosto dos desafios.
Ah-Duo riu baixinho, um riso elegante, mas que carregava algo de irônico.
— Paciência… — repetiu, quase saboreando a palavra. — É exatamente o que sempre faltou ao meu filho.
Ela se aproximou mais, dispensando por um instante a presença das damas, que se mantiveram respeitosamente à distância. O olhar da imperatriz se suavizou, embora houvesse brilho de nostalgia em suas pupilas.
— Diga-me, princesa… é fácil suportá-lo? — perguntou num tom baixo, quase conspiratório, como quem confessa um segredo. — Para mim, Zuigetsu ainda é o pirralho bagunceiro que corria pelos corredores junto de Jiang, Jin-Ye e Lingli gritando pelo palácio, metendo-se em encrenca, sempre com aquele ar mimado de quem sabe que todos o adoram. — Ah-Duo suspirou fundo, como se se divertisse com a lembrança. — Às vezes, temo que ele nunca tenha deixado de ser assim.
Maomao não conteve um leve riso, a mão cobrindo os lábios por educação. Os olhos azuis cintilaram de forma sutil, como se partilhasse da imagem que a mãe havia pintado.
— Ele… ainda tem esse lado, Majestade. — confessou, permitindo-se um tom quase cúmplice. — Mas também aprendi que por trás de tanta teimosia e orgulho existe alguém que… — sua voz vacilou por um instante, como se pesar as palavras fosse perigoso demais — …sabe cuidar, mesmo que de maneira torta.
Ah-Duo ergueu as sobrancelhas, surpresa pela franqueza, a melancolia deu lugar a um sorriso genuíno, desta vez mais doce.
— Então você o enxerga melhor do que muitos. — disse, quase como um sussurro. — Até melhor do que eu, às vezes.
O silêncio que se seguiu foi pesado, mas não desconfortável. Era como se o jardim tivesse se tornado cúmplice de duas mulheres que, apesar de posições diferentes, partilhavam a difícil tarefa de compreender o mesmo homem.
Ah-Duo ergueu o rosto para o céu, como quem procurava uma resposta distante, e então voltou a encarar Maomao.
— Espero que continue tendo essa paciência com ele. — acrescentou, num tom entre advertência e carinho. — O trono, o império, a política… tudo isso pode endurecer qualquer um. E Jinshi… — seu olhar suavizou-se outra vez, mas havia orgulho ali — …ainda é, para mim, o menino que um dia carreguei nos braços e não suportaria o ver se afogar em tamanha amargura.
Maomao inclinou-se levemente em sinal de respeito, mas havia em seus olhos uma centelha que revelava algo mais: uma mistura de cumplicidade e desafio silencioso, como se dissesse à imperatriz sem palavras que ela não apenas suportaria Jinshi — mas já havia aprendido a domá-lo de sua própria maneira.
[. . .]
O caminho de volta ao Pavilhão da Lua era silencioso, mas a mente de Maomao estava repleta de anotações invisíveis. Ela não levava apenas no papel o que havia visto no jardim — as ervas novas, o comportamento do pequeno príncipe Liang, a expressão sempre dura de Gaoshun disfarçando certo orgulho de tê-la por perto. Carregava também um inventário mental das reações femininas ao redor: os olhares enviesados de algumas damas ao notarem a princesa vestida de verde simples, o leve respiro em meio as conversas com a Imperatriz Ah-duo quando Maomao se curvou a ela com respeito.
Assim que entrou novamente no pavilhão, a atmosfera parecia mais leve, o Pavilhão da Lua tinha essa aura de refúgio, um recanto dentro do labirinto do palácio, Maomao depositou o cesto com as ervas recém-coletadas, alinhou os papéis e retirou o pó de tinta do estojo. Estava pronta para retomar suas anotações quando ouviu o som delicado de passos acompanhados pelo suave farfalhar de tecidos finos.
— Princesa Jin-Ye. — murmurou, erguendo os olhos, surpresa pela visita inesperada.
A princesa, em seu hanfu lilás delicadamente bordado com flores de ameixeira, carregava consigo a leveza de alguém que parecia prestes a confessar um segredo. Um atendente deixou a bandeja de chá, e logo elas se sentaram frente a frente. O vapor aromático da infusão preenchia o ar.
— Eu precisava falar com alguém... e acho que você vai entender, Maomao. — Jin-Ye levou a xícara aos lábios, mas demorou a beber. Seus olhos faiscavam de hesitação e encanto. — É sobre... o seu irmão.
Maomao arqueou uma sobrancelha, já pressentindo a direção da conversa.
— Sobre o Lahan? — repetiu, num tom casual, fingindo desinteresse enquanto organizava alguns ramos de ervas — O que ele fez agora? Roubou o coração de mais uma nobre e descartou? Sinto em dizer princesa, mas o gene dominante de recusar as pessoas é de família e sobre o departamento Lahan, é um mistério até mesmo para mim.
Jin-Ye a observou séria ainda em silêncio, o que fez Maomao levantar o olhar desviando de suas anotações e encarando a amiga, agora ela estava entendendo, Jin-Ye havia se apaixonado por Lahn.
"Tantos nobres ao qual ela poderia se apaixonar e foi justamente no lazarento do meu irmão que conquistou o coração da mente mais brilhante do palácio, ele me paga se não houver casório ou se não romper isso antes que se torne um problema.", Maomao pensava passando as mãos pelo rosto sujando-se um pouco de tinta ainda surpresa com a revelação repentina amostra no rosto de Jin-Ye.
— Lahan. Ele... ele é diferente, não sorri como os outros nobres, não joga palavras ensaiadas no ar, não tenta impressionar com títulos ou presentes exagerados. Quando fala, é direto, por vezes até ríspido... mas há algo nele que não sei explicar. Uma firmeza. Uma sinceridade crua.
Maomao, por um instante, quase engasgou com o próprio chá, o olhar incrédulo que lançou à princesa foi rápido, mas interno a sentença ecoou com clareza: "Pelo visto, existe ainda alguém maluca o suficiente para se apaixonar por Lahan e eu mal consigo acreditar."
Disfarçando a expressão, apenas inclinou a cabeça, como quem escutava uma hipótese de tratamento medicinal estranha, mas não impossível.
— Imagino que seja... inusitado. — Maomao respondeu, mantendo o tom neutro. — Mas princesas raramente têm liberdade de escolher, e ainda assim... você parece ter feito sua escolha, pelo menos no coração e da forma mais idiota possível, desculpe o palavreado, mas eu vi ele comer uma minhoca quando éramos crianças e a princesa, meu senhor... É UMA PRINCESA.
Jin-Ye sorriu tímida, apoiando os dedos finos sobre a borda da xícara.
— Ele não é como os outros. — o olhar avermelhado de Jin-Ye pontuava cada vez mais o brilho da paixão em seus olhos — Outro dia, quando estávamos conversando no jardim, houve um instante... — sua voz baixou, os olhos se desviaram, quase envergonhados. — Estávamos tão próximos que pensei que ele fosse... me beijar, mas ele recuou, como se tivesse lembrado do peso de sua posição e eu o beijei, mas não nos aprofundamos muito.
Maomao piscou devagar, absorvendo o relato, quase riu, mas conteve-se, tomando mais um gole de chá para mascarar a surpresa.
— Então... quase um beijo. — comentou com ironia velada — Que situação embaraçosa de se ouvir.
— Mais de uma vez. — completou Jin-Ye, a voz ainda mais baixa. — E cada vez que acontece, fica ainda mais difícil não desejar que ele não recue.
Maomao largou a xícara na mesa com um leve tilintar, o olhar fixo na jovem princesa à sua frente. As palavras que acabara de ouvir ainda ecoavam em sua mente, soando quase absurdas.
Confissões apaixonadas. Sobre Lahan.
Ela piscou algumas vezes, descrente, como se o universo tivesse resolvido brincar com sua paciência.
“Ele? O mesmo homem que já me fez perder a cabeça, que eu vi bater o pé como uma criança mimada? O mesmo que eu obriguei a comer terra só para calar a boca por uns minutos? E agora... alguém suspira por ele?”
A lembrança fez seus lábios se curvarem num sorriso cético, era como assistir a uma peça mal ensaiada, em que um dos atores resolve trocar o papel no meio da cena.
Ela o conhecia desde sempre, ou quase isso. Dividiu espaço na barriga com ele — literalmente — e conviveu com suas birras, sua mania de querer ter sempre a última palavra, suas explosões de raiva quando o mundo não o obedecia. Lahan, para Maomao, sempre fora sinônimo de confusão e caos, nunca de... suspiros, embora nessa fase de sua vida estivessem mais próximos do que nunca.
No entanto, ali estava aquela jovem princesa, com o rosto ruborizado, os olhos brilhando como se falasse de um herói saído de lendas antigas.
Maomao inclinou a cabeça, apoiando o queixo na mão, e observou-a em silêncio por alguns segundos, como quem encara um enigma botânico raro.
— Você fala dele com tanta devoção que até me embrulha o estômago. — sua voz carregava uma ironia suave, como o corte de uma lâmina escondida sob a seda.
A princesa corou ainda mais, apertando as mãos no colo, mas não recuou.
— Sim... — murmurou com firmeza, quase desafiando o julgamento implícito no olhar de Maomao. — Ele me faz sentir viva.
Maomao arqueou uma sobrancelha, os olhos azuis faiscando em sarcasmo.
— Viva? — repetiu, cruzando os braços. — Estranho… porque, na maioria das vezes em que convivi com ele, o sentimento que provocava era exatamente o oposto. Quase me matou de raiva muitas vezes.
A jovem arregalou os olhos, sem saber se deveria rir ou se ofender, Maomao não se importou, bebeu mais um gole de chá, devagar, antes de pousar a xícara novamente.
— Mas suponho que o mundo seja mesmo cheio de surpresas. — disse, com um meio sorriso malicioso. — Se até alguém como Lahan é capaz de inspirar suspiros... talvez eu precise rever tudo o que achava conhecer sobre o impossível.
O silêncio caiu por um instante, denso, até que a princesa desviou o olhar, o rubor ainda mais intenso. Maomao, por sua vez, escondia o riso atrás da seriedade, divertindo-se com a cena.
No fundo, porém, uma parte dela não conseguia evitar a curiosidade. Porque, se para ela Lahan era apenas o pirralho insuportável que crescera ao seu lado, então que lado novo era esse que fazia alguém o enxergar como objeto de desejo
Mas, apesar da incredulidade, havia algo genuíno no olhar de Jin-Ye. A intensidade tímida, o nervosismo doce, sinais que Maomao reconhecia de longe.
Maomao deixou a xícara de chá de lado, o vapor dissipando-se entre as duas, os olhos semicerrados e o jeito despretensioso com que apoiava o queixo na palma da mão denunciavam que ela estava mais para diversão do que para compaixão. À sua frente, Jin-Ye parecia inquieta, mordiscando o lábio inferior antes de finalmente soltar o que a consumia.
— Maomao… você conviveu a vida inteira com Lahan. Preciso que me diga… como posso conquistá-lo?
A outra arqueou uma sobrancelha com uma lentidão calculada, como se a pergunta tivesse sido uma piada particularmente ousada.
— Conquistar Lahan? — repetiu, num tom entre ceticismo e deboche. — Tem certeza que é isso mesmo que você quer? Eu cresci dividindo teto, comida e até discussões com ele… e, acredite, não é exatamente um prêmio grandioso.
O rosto de Jin-Ye ruborizou-se de imediato, mas sua firmeza não vacilou, apertou os dedos sobre o colo da veste e ergueu o queixo.
— Não fale assim. Ele é… diferente. Forte, decidido e… — desviou o olhar, a voz rarefeita no fim, como se fosse perigoso admitir — ele me tira o fôlego.
Maomao soltou uma risadinha curta, seca, e inclinou-se levemente para frente.
— Diferente? Forte? Decidido? — repetiu cada palavra com ênfase, como se as saboreasse. — Você só não viu quando ele chorava de raiva porque eu fazia ele comer terra.
— Isso só prova que você é cruel. — retrucou Jin-Ye, franzindo o cenho.
— Cruel, não. Realista. — Maomao deu de ombros. — Mas já que insiste em entrar nessa enrascada, vou te dar a chave: não tente bajulá-lo, ele odeia sentir que alguém está se curvando só para agradar, se quer mesmo chamar a atenção do Lahan, precisa cutucá-lo.
Jin-Ye piscou, confusa.
— Cutucar?
— Exato. — Maomao inclinou a cabeça, quase como uma gata prestes a dar o bote. — Contrarie ele. Tire-o do sério. Lahan adora se sentir no controle, mas é nesse ponto que você pode vencê-lo, se conseguir arrancar dele uma reação verdadeira, sem máscara, sem pose… pronto. Já terá atravessado a muralha que ele construiu em volta de si.
Jin-Ye engoliu em seco, mas não recuou.
— Então devo enfrentá-lo?
— Enfrentar, provocar, nunca demonstrar medo, você já é assim naturalmente com o Jinshi princesa, acredito que não seja difícil agir de tal modo com meu irmão. — o olhar de Maomao brilhou, carregado de ironia. — Ele fareja insegurança a quilômetros de distância. Mas, atenção: não se renda fácil, meu irmão só valoriza o que dá trabalho.
— Parece… perigoso. — murmurou Jin-Ye, o rubor subindo de novo às bochechas.
— Perigoso? — Maomao riu baixinho, maliciosa. — Esse é só o mínimo, mas se está mesmo decidida, há algo mais que você deve gravar: o ego dele é do tamanho do palácio. Mostre que não precisa dele, e ele vai correr atrás só para provar que você está errada.
Jin-Ye apertou as mãos no colo, o brilho de desafio surgindo por baixo da timidez.
— Você fala dele como se fosse um animal selvagem.
— É praticamente isso. — Maomao recostou-se na cadeira, divertida. — Selvagens de verdade podem ser domesticados, Lahan… só se deixa prender quando encontra alguém que tem coragem de segurar a coleira.
Houve um silêncio breve, cheio de tensão. Jin-Ye inspirou fundo, como quem assumia um juramento.
— Então terei que ser eu.
O sorriso enviesado de Maomao foi a única resposta por alguns instantes, antes de arrematar com um comentário carregado de ironia.
— Boa sorte, princesa, só não venha reclamar depois… quando ele morder.
[. . .]
A noite já havia se instalado, derramando sua sombra azulada sobre o Pavilhão da Lua. O lugar, geralmente animado com passos de servos e sussurros discretos, encontrava-se estranhamente silencioso. Apenas o som suave de água fervendo e o tilintar de utensílios vinham da cozinha, misturados a uma melodia quase imperceptível — Maomao cantarolava, distraída com o movimento das mãos, mexendo em panelas e cortando pequenas raízes.
Ela usava um hanfu simples, mangas arregaçadas até os cotovelos, o rosto levemente iluminado pelo fogo da lamparina. Era uma cena que não pertencia à grandiosidade da corte, mas a algo doméstico, quase caseiro, íntimo.
Foi assim que Jinshi entrou, silencioso, carregando ainda nos ombros o peso dos assuntos políticos. O brilho austero de sua figura contrastava com a simplicidade do ambiente. Porém, assim que seus olhos pousaram na jovem, o ar rígido se dissolveu. Ele parou na soleira, apenas observando, e um riso baixo escapou de seus lábios ao ouvir aquele cantarolar desafinado.
— Não imaginei que a princesa da Lua tivesse um talento secreto para entreter a cozinha — murmurou ele, com suavidade e certo tom divertido.
Maomao se sobressaltou, quase deixando a faca escapar dos dedos. Endireitou-se rapidamente, ajeitando a franja desalinhada, e lançou-lhe um olhar semicerrado.
— Não é um talento secreto, só não gosto que fiquem espiando como se eu fosse uma cena rara, — respondeu, voltando-se às raízes, mas com a ponta das orelhas ruborizadas.
Jinshi caminhou até ela, sem pressa, a expressão branda, o calor da cozinha parecia envolvê-los, quebrando a barreira habitual de formalidade. Ele inclinou-se ligeiramente, como se buscasse partilhar daquele espaço tão trivial que ela havia criado.
— Está sozinha? — perguntou, notando a ausência de servas.
— Dispensei todos por hoje. Às vezes prefiro cozinhar eu mesma, eles fazem tudo em excesso, sempre tentando agradar. Acaba ficando impessoal, — explicou ela, mexendo com destreza o caldo na panela. — Além disso, é bom poder pensar sem barulho.
Jinshi a observou em silêncio por alguns segundos, absorvendo não apenas as palavras, mas a naturalidade com que ela se movia naquele ambiente. Era uma faceta rara, a jovem que ria sozinha de suas próprias ideias enquanto misturava ervas em uma sopa, sem a aura de intriga que envolvia o palácio.
Ele sorriu de leve, com ternura explícita.
— Você é realmente diferente de todas as outras mulheres que conheci.
Maomao bufou, desviando o olhar.
— E eu diria o mesmo de você, mas não quero inflar seu ego.
A resposta fez Jinshi rir com gosto, aquele riso solto que só surgia quando estava diante dela. Ele estendeu a mão e, por impulso, tocou de leve a manga arregaçada dela, como se confirmasse que não era uma ilusão, que aquele instante de simplicidade lhe pertencia.
— Falando em coisas diferentes... — a voz dele assumiu um tom mais sério, embora mantivesse a suavidade. — Precisamos conversar. Haverá uma caçada em breve.
Maomao ergueu os olhos, curiosa.
— Uma caçada?
— O Primeiro Ministro do clã Shi organizará um banquete em comemoração ao nosso casamento, perto do bosque onde tem a Residência da Família Imperial.— explicou Jinshi, observando cuidadosamente as reações dela. — Será também nossa primeira viagem juntos como marido e mulher.
O pincel de vapor da panela subiu entre eles, e Maomao manteve o silêncio por alguns segundos. O coração lhe deu um salto involuntário. Uma viagem. Fora dos muros do palácio. Não apenas um evento político, mas também um deslocamento que os obrigaria a partilhar mais tempo, mais proximidade.
Ela pousou a concha de madeira e apoiou as mãos na beira da mesa.
— Entendo. Faz parte do que esperam de nós, não é? Deveres de uma esposa.
Jinshi inclinou a cabeça, tentando decifrar o que havia por trás daquele tom neutro, havia uma sombra de apreensão, mas também uma aceitação silenciosa. Ele se aproximou mais, baixando o tom da voz, como se quisesse garantir que ela soubesse que não estava sozinha nesse fardo.
— Não serão apenas deveres. — O olhar dele buscou o dela, firme e sereno. — Estarei ao seu lado em cada instante.
Maomao desviou, voltando a mexer o caldo como se aquilo fosse mais interessante do que a intensidade de Jinshi, mas, em seu íntimo, sentiu o peso das palavras, como se fossem uma promessa velada.
O silêncio se prolongou, preenchido apenas pelo borbulhar da sopa, ela retomou o cantarolar baixinho, desta vez mais consciente de que ele a escutava, e Jinshi, sentado próximo, permaneceu ali, deixando-se embalar pelo som.
Jinshi a observava como quem adivinhava o turbilhão de pensamentos escondidos sob aquela calma aparente. Ele não a pressionou, apenas se levantou e a envolveu por trás, apoiando o queixo em seu ombro.
— Mesmo assim... espero que veja também o lado simples disso. Nossa primeira viagem juntos.
Maomao, ainda com a colher na mão, desviou o olhar, mordendo o lábio sem saber se deveria rir ou suspirar, mas deixou escapar:
— Você fala como se fosse algo romântico.
— E não é? — respondeu Jinshi, rindo baixinho, antes de começar a cobrir o rosto dela de beijinhos rápidos, espalhados pelas bochechas, pela testa, até perto da boca.
Ela o empurrou de leve, bufando, mas estava sorrindo mais do que queria admitir.
— Você é insuportável.
— E você está cada vez menos resistente. — retrucou, numa provocação calorosa.
E de fato, Maomao notava em si mesma uma rendição gradual.
Permitia toques, se deixava cercar por aquela ternura quase infantil dele, mas ao mesmo tempo sentia o coração bater mais rápido ao lembrar da cena da banheira — a intimidade crua, o calor sufocante que quase os fizera ceder. O contraste entre a fofura atual e aquela lembrança a fazia tremer discretamente, e Jinshi, mesmo sorrindo, também parecia desnorteado por essa sobreposição de memórias.
Ela respirou fundo, tentando recuperar a compostura.
— Em menos de três semanas... — murmurou, mais para si do que para ele.
— O quê? — Jinshi ergueu as sobrancelhas.
— Nada. — respondeu rápido, desviando os olhos.
Mas dentro dela ecoava o pensamento que a assustava e a encantava ao mesmo tempo: em menos de três semanas de casamento, estava permitindo que ele conhecesse seu lado mais vulnerável. E, talvez, estava se apaixonando de verdade.
Jinshi não insistiu, apenas a puxou com delicadeza, fazendo com que a colher repousasse de lado, e a abraçou como se fosse o lugar mais seguro que conhecia, continuando a enchê-la de pequenos beijinhos pelo rosto.
A ação a fez rir, sentindo cócegas com um leve incômodo, mas deixou que Jinshi continuasse a ser amoroso, ela estava aprendendo a deixar que ele a amasse e talvez, apenas um talvez, ela também estivesse permitindo amá-lo cada dia mais.
— O jantar podia esperar alguns instantes, não acha? — perguntou ainda a abraçando dando pequenos selinhos nos lábios de Maomao que passava os braços em volta do pescoço do marido.
— Só um pouquinho Vossa Alteza. — riu voltando a atenção nos beijos.
Esses sim pareciam mais interessantes que o cheiro da comida.
Chapter 13: A Verdadeira Caçada
Notes:
Caprichei nesse capítulo, espero que gostem da leitura, porque agora só postarei capítulo novo semana que vem.
Um beijo para todos :)))))))
Chapter Text
Na manhã seguinte, o Pavilhão da Lua já estava tomado por um ar diferente, havia caixas abertas, tecidos dobrados em pilhas elegantes e servas que iam e vinham, escolhendo os trajes adequados para a primeira viagem do casal imperial. Maomao estava sentada sobre uma esteira de palha, rodeada por sedas em tons de azul e creme, observando o desfile de opções com uma expressão que mesclava resignação e análise.
Maomao detestava os tons azulados e violetas, eram delicados demais, etéreos, com uma fragilidade que não combinava com a sua natureza prática. Para ela, eram cores fracas, belas em tapeçarias, talvez, mas insuportáveis quando lhe eram impostas como vestes. O detalhe mais irônico era que justamente essa paleta era a marca registrada do Pavilhão de Cristal, e parte do reflexo do lado materno de Jinshi. Desde que haviam se casado, as damas da corte se revezavam em sugestões insistentes de que seria adequado, até esperado, que a nova princesa se vestisse em tons que representassem a família imperial.
Mas Maomao, obstinada como sempre, se recusava. Não seria domada por convenções tolas. Quando se tratava de roupas, ela se empenhava em honrar a herança do clã Kan: vermelho vinho profundo, dourado quente como metal recém-fundido, verdes densos que lembravam folhas em pleno verão. Cada escolha de tecido e bordado era um lembrete silencioso de que não viveria como sombra de outro pavilhão.
Ainda assim, havia contradições. Ela até poderia manter a teimosia nas roupas, mas quando se encontravam a sós, longe dos olhos atentos de servos e ministros, os dois se beijavam com uma fome contida, como se cada toque fosse um pacto íntimo de que pertenciam apenas um ao outro, acima de símbolos e cores.
E Jinshi, por mais que carregasse em si a aura impecável de príncipe, se via inteiramente fascinado pela esposa, independentemente do que ela escolhesse vestir. Talvez até mais justamente por isso: porque sabia que aqueles tons eram declarações silenciosas de resistência. Azul ou não, violeta ou não, a beleza de Maomao permanecia deslumbrante — viva, forte, inegociável.
Quando Maomao entrava em um salão vestida em vermelho vinho, com os cabelos presos de forma displicente e apenas um toque de dourado nos adereços, Jinshi não via a recusa. Via a intensidade dela. E embora ela jamais admitisse, parte de Maomao sabia que era justamente esse contraste — a obstinação em ser ela mesma — que o mantinha tão cativo.
Os pensamentos de Maomao se perderam como fumaça, dispersando-se em meio ao incômodo da arrumação forçada. Ela não queria estar ali. Não queria se preocupar com cores, tecidos ou adereços, quando sua mente permanecia cravada na saúde delicada de Lady Lihua — cuja gravidez ainda se mantinha em segredo — e nos riscos que rondavam a corte como hienas famintas. Porém, as servas insistiam, a puxando de volta à realidade com vozes suaves, mas insistentes, como um enxame zunindo em seus ouvidos.
— Minha senhora, esta túnica de viagem é prática, mas talvez um pouco simples demais para a posição de esposa de Vossa Alteza — disse uma das moças, abrindo cuidadosamente um pano de seda bordado em fios dourados que cintilavam sob a luz da manhã.
O brilho dourado refletiu nos olhos cansados de Maomao, que suspirou de forma pesada, cruzando os braços.
— Se é prático, já basta. Não preciso parecer um pavão. — A frieza em sua voz era como uma lâmina bem afiada.
As servas se entreolharam, constrangidas, algumas baixaram a cabeça, outras apertaram os lábios, já acostumadas com o jeito cortante da senhora que serviam. Nenhuma ousava contrariá-la, embora o desconforto fosse palpável.
Foi Jin-Ye, sempre atrevida e de olhar afiado, quem quebrou o silêncio, a jovem princesa observava de perto, sentada com postura impecável, mas um sorriso quase zombeteiro brincava em seus lábios.
— O pavão às vezes ajuda a distrair inimigos em meio à floresta. — sua voz soou leve, porém carregada de malícia disfarçada. — Não subestime a utilidade da vaidade.
Maomao ergueu os olhos, encarando a outra com desdém silencioso, enquanto os cantos de sua boca se curvavam num meio-sorriso irônico.
— E enquanto o pavão exibe suas penas coloridas, o caçador acerta a flecha. — puxou a túnica simples de volta para perto de si, desinteressada pelo brilho dourado. — Não me parece um destino muito atraente.
Jin-Ye riu baixo, abafando com a mão delicada, mas seus olhos cintilaram de provocação.
— Ainda assim, você é a esposa de Jinshi, o mundo inteiro espera que brilhe como a lua, mesmo quando prefere ser uma pedra no caminho.
Maomao arqueou uma sobrancelha, o tom de voz carregado de sarcasmo.
— Uma pedra é bem mais útil que a lua. Você tropeça nela, cai, sangra, já a lua... só serve para poetas suspirarem.
O riso de Jin-Ye ecoou pelo aposento, chamando a atenção das servas que, aliviadas, relaxaram as tensões nos ombros. O ar parecia menos denso, ainda que Maomao continuasse carrancuda. No fundo, era óbvio que nenhuma túnica, bordado ou cor mudaria o fato de que, para Jinshi, ela seria sempre fascinante — mesmo que surgisse vestida de trapos.
Enquanto as conversas fluíam, Maomao discretamente fazia anotações mentais: o peso dos tecidos, o tipo de calçado que seria adequado, quantos frascos de óleo medicinal caberiam sem chamar atenção. Mesmo enquanto provava mantos, seu olhar clínico permanecia.
Foi nesse instante que Jinshi apareceu, silencioso como sempre quando queria surpreendê-la. Ele se apoiou no batente da porta, braços cruzados, os olhos fixos em Maomao com um sorriso quase disfarçado.
Maomao, de costas, experimentava um hanfu de viagem claro, cantarolava baixinho, distraída, sem perceber a presença do marido.
— Que cena curiosa... — a voz baixa de Jinshi cortou o ar, fazendo Maomao estremecer.
As servas se ajoelharam rapidamente, mas Jinshi ergueu a mão, dispensando as formalidades. Enquanto caminhava até Maomao, Jin-Ye mordeu o lábio inferior, tentando não rir, e sussurrou só para ele:
— Já vai começar a provocá-la, irmão? Nem cinco minutos de trégua você é capaz de oferecer?
Jinshi lançou-lhe um olhar de advertência, mas o canto da boca se curvou, Jin-Ye, satisfeita, ficou parada para assistir, como quem espera uma peça divertida.
— Então é assim que minha esposa se prepara para uma viagem oficial? — disse Jinshi, a voz carregada de falsa solenidade. — Cantando como uma passarinha enquanto se deixa vestir?
Maomao virou-se bruscamente, ruborizada, segurando a manga do manto.
— Não estava cantando. Estava... murmurando para me concentrar.
Jinshi inclinou-se, próximo o suficiente para que só ela ouvisse.
— Estava sim e é adorável. — comentou beijando o topo de sua cabeça.
Um risinho abafado ecoou ao lado deles, Jin-Ye cobriu a boca com a manga, mas não resistiu:
— Céus, vocês são um casal recém-apaixonado que não sabem se brigam ou se suspiram.
— Jin-Ye. — Jinshi a repreendeu em tom baixo, mas sem convicção.
Maomao ficou ainda mais vermelha, semicerrando os olhos como se quisesse atravessar o chão.
— Se continuar provocando, vai acabar sem o jantar de hoje.
Ele riu baixo, o som caloroso que sempre a desconcertava.
— Posso viver sem jantar, mas não sem ver esse lado distraído seu.
As servas baixaram a cabeça para esconder os sorrisos, Jin-Ye, por sua vez, apoiou o queixo na palma da mão e comentou com ironia:
— Que romântico. Se continuar assim, irmão, vai fazer até as servas suspirarem.
Maomao, constrangida, ajeitou o manto e desviou o olhar. Porém, quando Jinshi estendeu a mão e deslizou de leve o dedo pela manga que ela segurava, como se testasse o tecido, o coração dela acelerou.
— Este está lindo... — murmurou ele. — Mas acho que o azul-escuro realçaria ainda mais seus olhos. — ela os revirando com uma expressão entediada, ele sabia que ela repudiava azul em roupas.
Maomao piscou, surpresa. Jinshi raramente elogiava com tanta naturalidade e Jin-Ye, arregalando os olhos, levou a mão ao peito fingindo emoção:
— Agora sim! Quem diria... o príncipe perfeito se transformou em um marido que sabe elogiar. Vou anotar essa raridade em meu diário.
Ele lançou-lhe outro olhar de advertência, mas a irmã não recuou nem um passo, divertida, Jinshi então se voltou novamente para Maomao, sussurrando provocador:
— Além disso, se ficarmos sozinhos em tendas durante a caçada... prefiro que você use algo fácil de tirar.
— J-Jinshi! — Maomao mordeu o lábio, corando até a raiz do cabelo, dando leves tapas em seu peitoral irritada.
Dessa vez, Jin-Ye não conseguiu se conter. Gargalhou alto, atraindo olhares das servas.
— Oh, irmão... eu que achei que você fosse o mestre da etiqueta e dos modos! Nunca pensei que ouviria algo tão... inconveniente de sua boca.
Jinshi recuou um passo, satisfeito com o efeito em Maomao, mas lançou um olhar frio para a irmã.
— Se não sabe quando parar, Jin-Ye, talvez eu precise providenciar um noivo às pressas para você.
Ela ergueu as sobrancelhas, ainda rindo.
— Calma, irmão, — brincou entregando outro hanfu as servas, dessa vez um rosado — prometo que não atrapalharei sua corte discreta. Só estou me divertindo... afinal, vocês dois juntos são o melhor entretenimento do palácio.
Maomao resmungou baixinho, enterrando o rosto no manto para esconder o rubor, mas não conseguia evitar: o peito lhe doía de um jeito diferente. Um aperto doce, como se a cada pequena provocação ele abrisse espaço em seu coração.
E, em silêncio, pensou que talvez estivesse realmente se apaixonando por aquele homem, mesmo com uma testemunha inconveniente como Jin-Ye rindo da cena.
Quando Jinshi a deixou para tratar de outros preparativos da corte, o Pavilhão da Lua voltou ao silêncio que lhe era tão peculiar, Maomao permaneceu um instante imóvel, fitando a porta fechada, como se ainda sentisse o calor da presença dele no ar.
Era estranho.
Pouco a pouco, percebia-se permitindo aproximações que antes teria repelido sem hesitar, aquele príncipe — que era ao mesmo tempo um enigma e um tormento — encontrava sempre uma forma de desconcertá-la. Os beijos espalhados por seu rosto ainda latejavam como uma lembrança quente, e a cena da banheira, tão vívida em sua memória, insistia em cruzar seus pensamentos quando menos esperava.
Maomao suspirou, levando a mão à própria face. "Ridículo. Em menos de três semanas de casamento, e já começo a agir como se fosse uma garota tola.". Afastou-se das servas e Jin-Ye, procurando refúgio em sua mesa de anotações, onde a razão sempre prevalecia sobre a emoção.
Abriu um caderno de capa grossa e começou a escrever, sua caligrafia firme mas apressada:
"Riscos potenciais da viagem à caçada promovida pelo Clã Shi."
1. Exposição pública: inevitável. O banquete é uma demonstração de força política, a presença da esposa de Jinshi será observada e comentada.
2. Intrigas entre facções: o Clã Shi deseja reforçar sua posição, outros clãs podem tentar semear discórdia.
3. Alvos indiretos: qualquer deslize da esposa pode ser usado para atingir o marido.
4. Ambiente externo: caçadas sempre envolvem riscos — acidentes podem ser encenados.
5. Lealdade dos serviçais: verificar atentamente quem os acompanhará.
Fez uma pausa, molhando o pincel novamente na tinta, a realidade era que, por trás dos convites cordiais e da pompa de um banquete, havia sempre a sombra da política, o risco disfarçado sob taças de vinho e pratos requintados.
Ainda assim, enquanto rabiscava uma última nota, seus lábios se curvaram num sorriso quase imperceptível:
"Apesar de tudo, essa será nossa primeira viagem juntos..."
A contradição a incomodava, entre o dever e o afeto, havia um espaço perigoso, mas também... reconfortante.
Maomao fechou o caderno, apoiando o queixo na mão, talvez estivesse mesmo se apaixonando. Mas, ao contrário de qualquer mulher ingênua, sabia que apaixonar-se em meio a jogos políticos era também um risco calculado.
[. . .]
A viagem de carruagem foi longa, e o silêncio entre Maomao e Jinshi se alternava entre momentos de observação e pequenas conversas. Ela, concentrada em suas anotações de ervas que levava consigo para estudar durante a estadia, e ele, olhando distraído para a estrada, mas sempre atento aos gestos dela.
— Você acha que o Primeiro Ministro do Clã Shi nos receberá com cerimônia? — Maomao perguntou, ajustando o cesto de madeira com materiais de estudo em seus braços.
— Sempre recebem com cerimônia. — respondeu Jinshi, desviando o olhar dela para os arredores da estrada. — Mas duvido que esperem ver você tão... sagaz como é.
Ela sorriu discretamente, satisfeita com o elogio implícito, mas desviou o olhar, fingindo concentração nos papéis que segurava.
No dia seguinte, chegaram ao terreno do Clã Shi, sendo recebidos pelo próprio Primeiro Ministro, um homem de porte imponente, cuja expressão oscilava entre cordialidade e avaliação meticulosa. Jinshi e Maomao foram acompanhados pelo príncipe Jiang que tinha escolhido ir em uma carruagem separada para perturbar o juízo de Basen e deixar que seu irmão curtisse a companhia da esposa sem interrupções, enquanto eles se dirigiam para seus aposentos principais.
No quarto, trocaram de roupas rapidamente — Maomao optou por um hanfu leve e avermelhado, apropriado para a recepção, enquanto Jinshi mantinha as vestes nobres, pesadas e ornamentadas, que o obrigavam a movimentos contidos. Eles se dirigiram juntos para o banquete, com passos medidos, mantendo a compostura em público.
Antes que Jinshi provasse qualquer coisa, Maomao, com a perspicácia que a tornava temida nos assuntos de venenos e toxinas, experimentou discretamente a comida e a bebida, bastou um gole mínimo para sentir o calor súbito subir pela garganta até o rosto. O rubor se espalhou-lhe pelas bochechas de imediato, e seus olhos se estreitaram com irritação.
— Tsc… — murmurou, largando a taça na mesa.
Jinshi arqueou as sobrancelhas, preocupado.
— Há veneno? — perguntou baixo, pronto para afastar a bandeja.
Maomao soltou um riso curto, divertido, aproximou-se dele, quase encostando os lábios à orelha de Jinshi, e sussurrou:
— Não exatamente. A não ser que considere afrodisíacos uma forma diferente de veneno.
Ele piscou, surpreso, tentando conter a expressão de embaraço, mas Maomao já havia se afastado, rindo baixinho ao apontar com o queixo para o canto do salão.
— Veja.
Jinshi seguiu o gesto e arregalou os olhos: Jiang e Basen, que tinham se servido antes, estavam com os rostos avermelhados e os narizes sangrando, tentando disfarçar enquanto abanavam os leques com desespero.
Maomao cobriu os lábios com a manga, sufocando o riso.
— Uma dose pequena só esquenta o corpo… mas, pelo visto, eles exageraram. — ela deu de ombros, fingindo inocência.
Jinshi não resistiu e deixou escapar uma risada, embora tivesse levado a mão à boca para disfarçar.
— Maomao… como você consegue manter a calma até diante disso?
— Hábito. — ela inclinou a cabeça, os olhos semicerrados com diversão. — E porque sei como neutralizar.
Ela então se inclinou de novo, a voz suave e firme, quase uma promessa:
— Não toque nisso, mais tarde preparo algo melhor para você.
Jinshi engoliu em seco, desviando o olhar para que ela não percebesse como aquele sussurro tinha lhe afetado mais do que deveria.
— Você fala isso com uma naturalidade perigosa… — murmurou, ajeitando a gola da roupa, desconfortável.
Maomao riu outra vez, sem piedade do embaraço dele.
— E você gosta desse perigo.
Ele suspirou, rendido, mas com um sorriso no canto dos lábios.
— Maldição… gosto mesmo.
Do outro lado da mesa, Jiang e Basen tentavam conter os sangramentos enquanto eunucos já começavam a cochichar, Maomao apenas ergueu a taça, agora intacta, e brindou sozinha, satisfeita por ter vencido a situação sem esforço.
O salão estava iluminado por lanternas douradas, refletindo nos brocados pesados que caíam das colunas. Música suave de cítaras e flautas ecoava pelo ar, dando ritmo ao burburinho da corte.
Pouco tempo depois de se acomodar ao lado de Jinshi, Maomao foi apresentada às filhas do Primeiro Ministro. Lady Loulan, a mais nova, tinha um ar delicado, adornada com flores de jade no cabelo e um sorriso treinado que não escondia a chama de curiosidade nos olhos. Já Suirei, a mais velha, trajava-se com sobriedade elegante, postura impecável, e olhos azuis afiados como lâminas — o contraste entre as irmãs era gritante.
— Então esta é a famosa Princesa da Lua? — disse Suirei, inclinando levemente a cabeça, o tom polido mas carregado de uma avaliação silenciosa. — Ouvi dizer que sua língua é mais rápida que a maioria dos conselheiros do palácio.
Maomao piscou, surpresa, e depois riu, cobrindo a boca com a manga.
— Espero que seja uma fama exagerada, não tenho interesse em ser conselheira de ninguém, muito menos no meio desse ninho de cobras.
Loulan riu baixo, inclinando-se para a frente com ar cúmplice.
— Um ninho de cobras, de fato. — seus olhos brilharam de malícia juvenil. — Mas mesmo as cobras têm medo quando não sabem se foram envenenadas ou não, não é?
— Então é isso que dizem de mim… — murmurou Maomao, divertindo-se, enquanto Jinshi a observava com uma sobrancelha arqueada, como se dissesse silenciosamente “não negue”.
Suirei ajeitou as mangas com calma.
— O que dizem de você, princesa, é que sabe enxergar antes dos outros, isso é raro, principalmente aqui. As mulheres da corte muitas vezes fingem não ver nada, mesmo quando percebem tudo.
— Porque não têm escolha — completou Loulan, os lábios formando um biquinho contrariado. — Não é justo, se erramos um sorriso, se demoramos a responder… já nos condenam.
— A corte não foi feita para ser justa — respondeu Maomao, em tom seco, mas não cruel. — Foi feita para manter os fortes no poder e esmagar os desavisados.
Loulan mordeu o lábio, pensativa, e olhou discretamente para Jiang, que conversava alguns passos adiante.
— Mesmo assim… às vezes eu penso que, se uma mulher souber como jogar, pode virar a mesa.
Suirei lançou-lhe um olhar severo, mas havia um leve traço de orgulho escondido no canto dos olhos.
— Cuidado, Loulan. Palavras assim, ditas no ouvido errado, custam caro.
— Talvez. — Loulan sorriu de volta, quase desafiando. — Mas a Princesa da Lua me entende.
Maomao não respondeu de imediato, observou as duas irmãs, tão diferentes, e sentiu que ali havia mais camadas do que aparentava.
— Entendo o bastante para saber que a força de vocês está justamente nisso — disse por fim, com calma. — Enquanto Suirei mantém a fachada de perfeição e neutralidade, você, Loulan, pode se dar ao luxo de ser espontânea. Uma protege a outra.
Loulan arregalou os olhos esverdeados, surpresa, e depois riu, encantada.
— Viu, irmã? Eu disse que ela enxergava além do que devia.
Suirei não riu, mas um sutil relaxamento em sua expressão revelou que estava satisfeita.
— E você não errou, Alteza, talvez por isso tantos temam sua presença.
Nesse momento, um músico mudou o tom da canção, mais ritmada, Loulan levantou-se com graciosidade ensaiada e, em um gesto protocolar, ofereceu a mão ao príncipe Jiang para dançar. O rapaz, visivelmente atordoado pelo convite inesperado, aceitou com rigidez, como quem encara uma batalha.
Maomao, ao lado de Jinshi, não conseguiu conter a risada abafada, aproximou-se dele, os olhos maliciosos.
— Agora ele casa, nem que seja arrastado. — sussurrou.
Jinshi arqueou a sobrancelha, lutando para não rir em voz alta diante da cena.
— Você fala como se já tivesse planejado o casamento inteiro.
— Não preciso planejar. — Maomao observava Jiang tropeçar ligeiramente ao tentar acompanhar Loulan. — Ela vai arrastá-lo até o altar, mesmo que ele lute.
— Como alguém que conheço. — retrucou Jinshi, com um sorriso insinuado, fazendo-a corar levemente.
Antes que ela pudesse responder, Suirei aproximou-se delas, de pé, os olhos seguindo cada passo da irmã e Jiang.
— O que acha, princesa? Acha que minha irmã consegue dobrar esse… muro que chamam de príncipe?
Maomao respirou fundo, avaliando.
— Depende. Um muro pode ser derrubado com força, mas também pode ser escalado com paciência.
Suirei inclinou a cabeça, interessada.
— E qual método combina mais com Loulan?
— Escalada. — Maomao sorriu de canto. — Ela parece gostar do desafio.
Suirei não conseguiu esconder a risada baixa, uma raridade.
— Finalmente alguém que entende como ela pensa.
Maomao arqueou as sobrancelhas, divertida.
— A corte pode ser um ninho de cobras… mas talvez seja mais divertido quando você sabe quais delas morderiam por você.
Loulan, no meio da dança, lançou um olhar rápido para as duas, como se tivesse ouvido o comentário à distância e sorriu, radiante, como se estivesse exatamente onde queria.
Maomao mantinha um meio sorriso discreto enquanto acompanhava a conversa entre as irmãs após a dança com Jiang. Loulan, embora mais jovem, exalava uma naturalidade quase desarmante ao falar de política, como se tivesse nascido para caminhar entre nobres e diplomatas. Suirei, por outro lado, possuía uma firmeza calma, cada palavra escolhida com precisão, como se ponderasse sempre os riscos antes de se expor. A forma como se completavam era quase um espetáculo por si só.
Enquanto Jinshi se distraía rindo baixo da provocação que ela havia feito sobre Jiang, Maomao desviou o olhar para as irmãs, observando-as em silêncio por um momento.
"Loulan é vivaz, curiosa, não teme se mostrar… talvez até mais inocente do que deveria para este lugar cheio de serpentes. Já Suirei… ela mede cada passo. É como uma muralha erguida ao redor da irmã. Inteligente, leal, talvez até dura demais — mas sei bem que corações assim raramente são frios. Apenas foram forçados a se proteger."
Maomao sentiu algo inusitado: um respeito imediato, algo raro para alguém acostumada a ver através das máscaras da corte.
"Essas duas… não são como a maioria das flores de estufa daqui. Não são frágeis. Loulan floresce com o sol, Suirei se ergue como sombra firme. Talvez, apenas talvez, eu pudesse confiar nelas. Não como damas da corte, mas como mulheres que sabem o peso de serem vigiadas o tempo todo."
E, pela primeira vez em muito tempo, Maomao pensou que poderia ter ali não apenas conhecidas formais… mas possíveis aliadas.
Jinshi apenas lançou-lhe um olhar divertido, o sorriso escondido por trás da máscara de compostura, mas não deixou de notar o efeito de Maomao sobre ele, uma mistura de provocação e ternura que sempre o deixava desnorteado.
No entanto, o excesso de camadas das vestes de Jinshi começou a pesar. Ele se levantou abruptamente, o rosto pálido, e saiu apressado do salão. Maomao, imediatamente preocupada, pegou uma garrafa de água e um pacotinho de sal, correndo atrás dele pelos corredores iluminados por lanternas, tentando encontrá-lo antes que o mal-estar se agravasse.
— Jinshi! — chamou, a voz baixa e urgente, mas sem quebrar a compostura diante dos servos e guardas que passavam pelo corredor. — Estou aqui! Apenas espere um instante, preparei algo para você!
Ela o encontrou encostado em uma das árvores, respirando pesadamente, com movimentos rápidos e precisos, ofereceu-lhe a água e o sal, seu toque delicado contrastando com a firmeza da situação.
— Aqui. — disse, aproximando-se com cuidado o observando preocupada. — Apenas respire e tome isto, o mal estar vai passar logo. — disse acariciando o rosto do marido com carinho.
Jinshi olhou para ela, os olhos violeta encontrando os azuis dela, e por um momento, todo o ambiente político, o banquete e os protocolos desapareceram. Restava apenas a intimidade silenciosa de quem compartilha cuidado e preocupação, reforçando a conexão sutil, mas intensa, entre os dois.
O silêncio da floresta foi quebrado por tiros estrondosos, Jinshi, ágil, desviou instintivamente, arrancando parte das vestes pesadas. Com um gesto firme, ergueu Maomao nos braços, seu olhar intenso pedindo confiança.
— Confia em mim? — perguntou, com a voz firme, quase um sussurro, enquanto se dirigiam a uma cachoeira próxima, Maomao o encarava perplexa confiar era uma palavra forte naquele momento. — Vou te manter segura.
A queda d’água rugia como um trovão constante, borrifando gotas geladas no ar. A beirada da cachoeira era traiçoeira, pedras cobertas de musgo brilhavam sob a umidade, e a espuma branca se agitava como se quisesse engolir qualquer um que ousasse desafiar o abismo.
Sem hesitar, Jinshi lançou-se atrás dela, o corpo cortando o ar até o mergulho violento na corrente. A água o envolveu como lâminas frias, arrancando-lhe o fôlego por um instante. A correnteza era implacável, arrastando tudo em seu caminho, mas ele não a deixou escapar de seus braços. Segurou Maomao com força, lutando contra a voragem que tentava puxá-los para as rochas.
Com movimentos firmes, nadou em diagonal, usando a própria força da queda para desviar em direção a uma abertura quase invisível atrás da cortina líquida. O barulho da água despencando abafava tudo, mas ele conhecia o risco: se errasse a entrada, seriam esmagados contra as pedras.
Com um esforço que fez os músculos queimarem, alcançou a fenda e empurrou Maomao para dentro da pequena caverna oculta, finalmente emergindo num espaço estreito, iluminado apenas pela luz filtrada da queda d’água. Ali dentro, o ar era úmido, denso, e cada respiração parecia preciosa.
Ele a deitou no chão rochoso, a pele fria dela contrastando com o calor febril que o dominava. O coração de Jinshi batia tão alto que parecia competir com o rugido da cachoeira, sem pensar muito, inclinou-se e começou a soprar vida de volta nos lábios de Maomao, o gosto da água e da aflição misturados.
— Maomao… — murmurou entre uma tentativa e outra, a voz trêmula pela primeira vez em anos.
Então, de repente, ela engasgou. Tossiu com força, cuspindo a água que a afogava, e seus olhos se abriram, estreitos, focando-o com uma mistura de reprovação e alívio.
— Idiota… — resmungou com a voz rouca, as gotas escorrendo por seu rosto. — Era só não ter pulado.
O suspiro que escapou de Jinshi foi quase um riso nervoso, o peito dele finalmente relaxou ao vê-la viva. Com um sorriso cansado, passou os dedos pelo rosto molhado dela, incapaz de disfarçar a verdade que escapava no olhar:
— Eu preferiria afundar mil vezes do que te deixar sozinha.
— Maluco! — exclamou, passando a mão pelos cabelos molhados. — Você realmente precisava pular na cachoeira com tudo isso?
Jinshi riu, ainda ofegante.
— Não havia outra opção. Confie em mim, Maomao.
— S e confiar em você significa quase morrer, então prefiro não confiar. — rebateu mal humorada observando as vestes molhadas.
A água fria ainda escorria dos fios do cabelo de Maomao, grudando-os em seu rosto, enquanto o hanfu vermelho — antes reluzente e cheio de vida — agora pesava sobre seu corpo como uma sombra encharcada. Ela suspirou, passando os dedos sobre o rasgo na lateral da perna da veste, franzindo o cenho como quem lamentava uma perda.
— É quase um crime — murmurou, mexendo no tecido molhado. — Era o meu favorito.
Mesmo naquela situação, com a respiração ainda pesada, Jinshi a observava, havia algo quase cômico no contraste: Maomao, sempre prática e impassível, agora resmungava como uma garota que perdera um doce.
— Posso mandar bordar outro igual. — disse, tentando aliviar, embora sua voz ainda soasse rouca do esforço de nadar contra a correnteza.
Ela arqueou uma sobrancelha e, finalmente, um sorriso pequeno surgiu.
— Você não entende... não é apenas o tecido, esse hanfu tinha história. — ele tinha sido de FengXian anos antes de se casar.
— História? — ele insistiu, curioso.
— Histórias que não pretendo compartilhar com você. — e começou a torcer as mangas, firme e prática, sem lhe dar mais detalhes.
Jinshi desviou o olhar, envergonhado, quando ela removeu parte das camadas encharcadas, ficando apenas com a veste simples de baixo. Ele, para acompanhá-la, também se desfez das camadas superiores, sentindo o rubor subir ao rosto quando percebeu os olhos dela pousados em si por um instante.
O silêncio entre eles foi quebrado pelo gesto súbito de Maomao, que tocou suavemente o rosto dele, examinando-o como se fosse mais uma de suas ervas ou infusões.
— Está melhor? — perguntou, o tom baixo, mas carregado de atenção. — Aqui. — retirou uma pequena erva da bolsa escondida na cintura e a ofereceu. — Mastigue. Vai ajudar a recuperar o fôlego.
Ele aceitou sem questionar, mastigando devagar, e não resistiu a soltar uma risada baixa.
— Você sempre preparada, não importa a situação.
— Alguém precisa cuidar de você, já que o príncipe não pensa antes de pular em cachoeiras.
— Não pensei, apenas agi — respondeu ele, um pouco defensivo. — Não ia deixar você se afogar.
Ela desviou o olhar, escondendo um leve rubor.
A caverna úmida reverberava com o som da água caindo lá fora. Um facho de luz do céu iluminava parcialmente o espaço, criando um contraste suave entre o frio das pedras e o calor crescente que se formava entre eles.
Quando finalmente se vestiram novamente, Jinshi avaliou a situação, encarando a abertura acima.
— Suba nos meus ombros — disse, firme. — Você pode alcançar e procurar ajuda.
Maomao hesitou, olhando a distância.
— Parece arriscado.
— Mais arriscado é ficarmos esperando aqui sem alternativa.
Ela suspirou, resignada, e posicionou os pés sobre os ombros dele, estava quase alcançando, quando um sapo enorme saltou perto de sua perna, arrancando-lhe um grito contido.
— Droga! — exclamou, perdendo o equilíbrio.
Em um segundo, caiu sobre Jinshi, os dois despencando contra as pedras frias, mas o impacto foi abafado pelo calor súbito de seus corpos colidindo. O silêncio se quebrou apenas pelo som da respiração acelerada de ambos.
Os olhos de Jinshi estavam fixos nos dela, intensos, incapazes de desviar, ele soltou uma risada nervosa, envolvendo-a pela cintura, como se quisesse impedir que se afastasse.
— Você por cima de mim... me lembra quando me enforcou no pátio. — Jinshi riu passando a mão pela cabeça — Até parece que tem coragem para fazer algo comigo assim princesa.
Maomao estreitou os olhos, mas o sorriso malicioso denunciava sua provocação, inclinou-se, os lábios perigosamente próximos ao dele.
— Então o príncipe quer pagar para ver o que eu aprendi com as cortesãs?
O rosto de Jinshi ardeu em vermelho, sua mente gritava para se controlar, mas seu corpo já não obedecia.
— Maomao... — murmurou, sem conseguir completar a frase.
Ela não lhe deu tempo. Beijou-o. Primeiro com doçura, quase experimental, mas logo aprofundou o contato, roubando-lhe o fôlego. Seus lábios se moveram em um compasso que os dois não sabiam que dominavam, ora lentos, ora famintos. Jinshi retribuiu sem reservas, suas mãos deslizando pelas costas dela, sentindo a pele quente através do tecido leve.
Quando finalmente se separaram, Maomao ainda estava apoiada sobre ele, respirando rápido, mas com o sorriso travesso intacto.
— Acredito que o príncipe não precise mais de mim. Possui uma mente e estímulos o suficiente para isso. — sussurrou, rindo baixinho.
Jinshi apenas a encarou, como se o mundo tivesse parado dentro daquela caverna escondida pela queda d’água. O peito dele subia e descia com força, o rosto ainda levemente corado e os olhos fixos nela, intensos, como se quisessem gravar cada traço, cada suspiro. Maomao, por sua vez, levantou-se com a mesma naturalidade quase insolente de sempre, ajeitando a saia pesada e molhada como se nada tivesse acontecido.
— Se continuar me olhando assim, vai acabar com febre de novo. — provocou, ajeitando uma mecha de cabelo úmido que caía sobre o rosto.
Jinshi abriu a boca para responder, mas fechou-a de imediato, ele não tinha sequer palavras; tudo nele parecia entregue.
O silêncio só foi quebrado pelo som da água da cachoeira misturado a passos apressados que ecoavam do lado de fora da caverna, sobre suas cabeças. Maomao se virou instintivamente, os olhos estreitando ao perceber a aproximação. Então, ergueu a voz:
— Basen! — chamou, sentindo um misto de alívio e urgência.
O guarda debruçou-se perto do buraco em questão de segundos, os cabelos e a armadura bagunçados. Seu olhar imediatamente se fixou na figura do superior e na da jovem, ambos encharcados e exaustos.
— Vossa Alteza — Basen exclamou, quase perdendo a compostura de tão aliviado. — Está ferido?
— Só... molhado e pare de formalidades agora Basen. — respondeu Jinshi, tentando soar firme, mas sua voz carregava um resquício de cansaço.
Maomao revirou os olhos, murmurando em tom seco:
— E com o ego ferido também, imagino.
Basen sorriu encarando Jinshi com certa dificuldade de conter a risada.
Jinshi lançou-lhe um olhar de repreensão, mas não soltou seu braço quando Basen estendeu a mão para ajudá-los. O príncipe — ou melhor, o que restava da postura impecável dele — segurava Maomao com firmeza, como se temesse que ela fosse cair novamente.
Após saírem da caverna, o vento da noite os envolveu com um arrepio gelado, o ar da floresta estava impregnado do perfume de terra molhada, e o céu aberto acima deles mostrava um punhado de estrelas tímidas entre as nuvens.
Maomao inspirou fundo, a respiração irregular, e comentou em tom baixo:
— Que ironia... quase me afogo e agora congelo.
— Vai ficar bem. — murmurou Jinshi, puxando-a um pouco mais contra si, o gesto protetor fez Basen erguer uma sobrancelha, mas o guarda se conteve em silêncio.
— Se me segurar com tanta força assim, vai ser você o primeiro a desmaiar. — retrucou Maomao, lançando-lhe um olhar rápido, carregado de sarcasmo, mas também com um traço de ternura mal disfarçada.
Jinshi apenas suspirou, mantendo-a próxima, sem soltar nem por um instante.
Basen pigarreou, quebrando a tensão.
— Precisamos voltar imediatamente. — e, após uma breve pausa, arriscou: — Devo... chamar reforços?
Jinshi negou com a cabeça, finalmente soltando Maomao para ajeitar as roupas.
— Não. Já basta de olhos curiosos por hoje.
Maomao arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços mesmo com a roupa colada ao corpo.
— Então prefere guardar só para você, não é? — sussurrou, sarcástica, antes de seguir atrás deles.
Jinshi, por um instante, deixou escapar um sorriso discreto, quase imperceptível, mas carregado de significado.
O retorno a residência do Clã Shi foi silencioso, mas não sem olhares carregados de cumplicidade. Jinshi segurava Maomao firmemente pelo braço, mantendo-a perto de si enquanto atravessavam a vegetação densa, ainda com o coração acelerado. Ambos trocavam provocações leves, sussurradas:
— Quem você acha que armou tudo isso? — perguntou Maomao, franzindo a testa, enquanto ajustava o hanfu molhado.
— Não faço ideia... — respondeu ele, o sorriso surgindo em meio à preocupação. — Mas é claro que alguém queria testar nossa coragem... ou nossa paciência.
Ela revirou os olhos, mas não conseguiu conter o riso.
— Ou testar o quanto eu consigo te aturar.
Jinshi apenas ergueu uma sobrancelha, divertido, percebendo o tom de desafio e provocação que ela mantinha mesmo após o perigo.
Os servos os receberam com uma refeição preparada especialmente, totalmente segura — sem venenos, afrodisíacos ou truques de qualquer tipo, Maomao provou cuidadosamente, observando cada detalhe, e somente então permitiu que Jinshi comesse. A tensão entre eles permanecia, agora mais discreta, mas carregada de significados silenciosos.
— Estranho, não? — comentou Jinshi, observando-a com olhos brilhantes. — Sobrevivemos a tiros, cachoeira, quase afogamento... e ainda estamos aqui conversando sobre comida.
Maomao sorriu, jogando um olhar divertido.
— Estranho, mas confortante e ainda bem que estou aqui com você e não sozinha.
Depois do jantar, a noite se fechou com uma intimidade silenciosa. Ambos retiraram as roupas molhadas com cuidado e, agora nos aposentos, puderam finalmente relaxar, Jinshi tomou seu banho, Maomao ficou por alguns instantes refletindo sozinha na banheira, a água quente envolvendo seu corpo, os pensamentos girando em torno da intensidade daquele dia. Ela percebeu, com um misto de receio e excitação, que aquele era o momento certo para se entregar a Jinshi.
Levantando-se lentamente, ela caminhou até a cama, ainda molhada, vestindo apenas uma túnica de seda que grudava levemente à pele. Ele a observava, confuso:
— Por que você ainda está molhada? — perguntou, a voz carregando surpresa e curiosidade. — Não se secou?
Ela respirou fundo, corando, os olhos evitando os dele por alguns instantes antes de erguer a cabeça e encará-lo:
— Acho que estou pronta... — disse, descendo o tecido delicadamente pelos ombros — Pronta para me entregar a você.
O silêncio tomou conta do aposento por alguns segundos, carregado de tensão, desejo e vulnerabilidade. Jinshi a estudava, absorvendo cada detalhe, sentindo a mistura de coragem e timidez que emanava dela. Maomao, por sua vez, estava consciente da entrega, do risco emocional e físico, mas ao mesmo tempo de uma confiança recém-descoberta.
Jinshi se aproximou devagar, cada passo medido, sentindo o coração acelerar, sua mão tocou delicadamente o rosto de Maomao, acariciando a linha do maxilar, enquanto o cheiro do cabelo dela, perfumado com notas suaves de ervas, chegava até ele. A respiração dele ficou mais pesada.
— É isso mesmo que você quer, Maomao? — sussurrou, quase hesitante, procurando no olhar dela a certeza.
Ela revirou os olhos, um sorriso malicioso surgindo nos lábios, e num impulso decidido puxou Jinshi até a cama, jogando-o levemente para trás e ficando por cima dele. O impacto suave fez com que o riso escapasse de ambos, mas a provocação era clara.
— Se eu não estivesse pronta, garanto que não faria isso, senhor meu marido. — disse, a voz carregada de provocação e uma leve zombaria, os olhos cintilando enquanto ele a puxava para mais perto, aproximando seus lábios dos dela.
Jinshi, rendido ao momento, segurou firme a cintura dela, sentindo o calor do corpo contra o seu, e finalmente se curvou para um beijo. Um beijo intenso, carregado de desejo e curiosidade, que trouxe a mistura de timidez e entrega que ambos guardavam desde o começo do casamento.
Maomao, sentindo a força do beijo e a proximidade dele, deixou-se levar, suas mãos explorando delicadamente as costas dele, mantendo o controle da situação, mas permitindo que o toque e a intimidade crescessem.
O beijo foi como um pavio aceso, consumindo rapidamente o ar e a razão que restava entre eles. Jinshi, intoxicado pelo sabor dela, uma mistura de chá verde e algo docemente único, aprofundou o beijo, suas mãos deslizando da cintura dela para a bunda, puxando-a com um desejo quase desesperado.
Foi então que Maomao quebrou o contato, um fio de saliva ainda os conectando por um instante. Seus olhos, agora escuros de prazer e determinação, fixaram-se nos dele.
— Devagar Alteza. — ela sussurrou, a voz um pouco rouca, mas carregada de uma autoridade que fez Jinshi parar instantaneamente. — A pressa é inimiga da perfeição. Ou você já esqueceu com quem se casou?
Um sorriso de cumplicidade e desafio surgiu em seus lábios enquanto ela se ajeitava melhor sobre ele, suas coxas apertando seus quadris. Com movimentos deliberadamente lentos, ela levou as mãos a fita da própria túnica. Ela não o desamarrou com a urgência de um amante inexperiente, mas com a precisão ritualística de uma farmacêutica desvendando um composto complexo. Cada movimento dos dedos era calculado, cada dobra do tecido sendo aberta revelava mais um pedaço de sua pele pálida ao clarão fraco do quarto.
Jinshi tentou se erguer para ajudá-la, suas mãos ansiosas buscando o calor do corpo sob o tecido, mas Maomao parou seu movimento com apenas um olhar firme e um leve pressionar de suas mãos em seu peito.
— Eu disse devagar. — ela repetiu, e a ordem soou como uma promessa. — Suas mãos... deixe-as onde estão. Por enquanto.
Ele gemeu, rendido, e obedeceu, afundando na cama enquanto observava, hipnotizado, o espetáculo que ela proporcionava. Ela se libertou-se da túnica com uma graça felina, deixando-o cair ao redor de seus quadris como um halo de seda. Seu torso superior estava agora exposto, e ela se arqueou levemente, permitindo que ele visse a curva dos seios, a sombra entre eles, antes de começar a trabalhar nas roupas dele.
Seus dedos, ágeis e conhecedores, desfizeram suas vestes com a mesma eficiência. Ela não puxou o tecido, mas deslizou a mão por dentro da abertura, palma plana contra o abdômen tenso de Jinshi. Ele arfou, seus músculos contraindo sob o toque frio e deliberado.
— As cortesãs da Casa Verdete... — Maomao sussurrou, inclinando-se para baixo até que seus lábios estivessem perto de seu ouvido, seu hálito quente arrepiando a pele dele. — ...elas ensinam que a antecipação é um afrodisíaco mais potente que qualquer poção.
Enquanto falava, sua mão viajou para baixo, contornando a linha de sua cintura, contornando a promessa rígida e evidente sob a seda de suas roupas de baixo. Ela não tocou onde ele mais desejava. Em vez disso, seus dedos traçaram círculos hipnóticos na pele sensível de suas coxas, na curva dos quadris, no ponto abaixo do umbigo, sempre se aproximando, sempre recuando no último instante.
Jinshi estava enlouquecido. Sua respiração era um rugido em seus próprios ouvidos, cada nervo em seu corpo alerta e implorando por mais, suas mãos se agarraram aos lençóis, os nós dos dedos brancos, lutando para obedecer à sua ordem.
— Maomao... por favor... — ele suplicou, sua voz quebrada por um gemido abafado.
Ela finalmente — finalmente — cedeu, deslizando a mão para dentro de suas calças e envolvendo sua ereção com uma confiança que o fez estremecer da cabeça aos pés. Seu toque era firme, mas não apressado. Ela sabia exatamente como pressionar, como deslizar da base até a ponta com a palma da mão levemente torcida, uma técnica que ela observara e memorizara em dezenas de livros e conversas sussurradas.
— Elas também ensinam. — ela continuou, sua voz um pouco mais tensa agora, seu próprio prazer começando a nublar sua precisão clínica — que o controle da profundidade e do ritmo pertence àquela que está no comando.
Num movimento fluido, ela se posicionou sobre ele, guiando-o para dentro de si. Ela não se deixou cair; ela o consumiu, centímetro por centímetro agonizante, controlando cada fração de penetração com os músculos tensos das coxas. Uma onda de prazer tão intenso que beirava a dor varreu Jinshi. Seus olhos rolaram para trás, e um rugido gutural escapou de seus lábios.
Maomao, agora completamente no controle, começou a se mover.
Ela estabeleceu um ritmo lento e profundo, rotação dos quadris a cada descida, uma técnica projetada para esfregar exatamente no ponto certo dentro dela. Seus próprios suspiros tornaram-se mais altos, mais frequentes, ela se apoiou no peito dele, seus dedos se agarrando à sua pele, suas unhas deixando marcas vermelhas e rasas.
Seu cabelo, solto, formava uma cortina ao redor de seus rostos, isolando-os do mundo, o ar cheirava a sexo, a suor e ao perfume de ervas dela, Jinshi, vendo que ela estava perto do limite, tentou virar, tentou assumir o controle, suas mãos agarrando seus quadris com força.
Com um último e poderoso movimento de seus próprios quadris, ela o impediu, forçando-o a permanecer deitado.
— Não. — ela ordenou, ofegante, o rosto rubro de esforço e êxtase. — Eu não acabei.
Ela aumentou o ritmo, cada movimento mais selvagem, mais urgente do que o anterior. Jinshi, completamente dominado, podia apenas observá-la — a mulher que era sua esposa, a médica, a aluna das cortesãs — enquanto ela encontrava seu próprio clímax em cima dele. Seu corpo arqueou-se violentamente, um grito abafado escapando de seus lábios enquanto a onda de prazer a consumia.
Só então, ao sentir as contrações internas dela, Jinshi permitiu-se perder o controle completamente. Com um último e profundo gemido, ele libertou-se dentro dela, seu próprio corpo tremendo incontrolávelmente sob o dela.
O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pela respiração ofegante de ambos, Maomao, exausta e satisfeita, desabou sobre seu peito, sua testa molhada de suor encostada em seu pescoço. Jinshi, ainda tremendo, envolveu-a com os braços, puxando-a para perto.
Ele soltou uma risada fraca e abalada, beijando o topo de sua cabeça.
— Eu... — ele engasgou, sem palavras. — Eu definitivamente me casei com a mulher certa.
Maomao não respondeu com palavras, apenas sussurrou, com uma ponta de orgulho cansado e afeto genuíno contra sua pele:
— Eu sei.
O peso de Maomao sobre seu peito era quente, mole e satisfeito, a respiração ofegante dela sincronizava com a de Jinshi, criando um ritmo lento e preguiçoso que preenchia o quarto. Ele acariciava suavemente suas costas, sentindo as últimas contrações espasmódicas do prazer dela diminuírem sob sua palma.
O orgulho e a rendição dele eram uma mistura intoxicante, ele a tinha, não por força, mas por rendição e aquela rendição, ele percebeu com um pensamento súbito, era a maior prova de confiança que ela poderia dar.
A mão de Jinshi, que até então acariciava suas costas de forma consoladora, parou na curva de sua cintura. Seus dedos pressionaram levemente, não uma ordem, mas uma pergunta, Maomao ergueu a cabeça,
Seu rosto ainda ruborizado, os olhos semiabertos e vidrados., ea leu a mudança em seu olhar. A submissão anterior dele derretia, substituída por uma centelha de pura, crua possessividade.
Ela manteve seu olhar por um longo momento, e então, lentamente, com uma expressão que era ao mesmo vez um desafio e uma permissão, ela se moveu para o lado, rolando para as costas ao seu lado na cama. Foi um convite silencioso. Uma abdicação do trono que ela havia conquistado.
Jinshi não precisou de mais. Ele se moveu com uma fluidez renascida, cobrindo seu corpo com o dele. Desta vez, não havia hesitação. Sua boca encontrou a dela em um beijo que era tudo menos controlado. Era fome, gratidão e a retomada de um direito que ele havia emprestado a ela, Maomao gemeu contra seus lábios, seus braços envolvendo seu pescoço, puxando-o para mais perto, rendendo-se à nova corrente.
Sua boca deixou os lábios dela e começou uma jornada descendente. Beijou o ponto pulsante em seu pescoço, a clavícula saliente, a curva suave de um seio. Ele levou um dos mamilos à boca, lambendo e chupando até que ela arqueasse as costas, um gemido contido escapando de seus lábios. Ele sabia, instintivamente, que sua médica apreciava a precisão, a atenção aos detalhes e ele estava determinado a ser meticuloso.
Ele desceu ainda mais, beijando o plano de seu abdômen, suavemente até suas coxas. Seu corpo era um mapa de prazer, e ele estava determinado a explorar cada centímetro. Quando sua boca finalmente encontrou o centro úmido e latejante dela, Maomao soltou um suspiro cortante.
— Zui...getsu... — foi o único aviso, um sussurro entrecortado.
Ele ignorou, imerso nela. O sabor dela era adocicado, único e intoxicante. Ele usou a língua não com a técnica estudada dela, mas com a paixão crua de um homem que descobria o paraíso. Ele explorou, lambeu e sugou, guiado pelos sons que ela fazia-cada gemido mais alto, cada tremor mais violento — ela era a bússola que o guiava.
Maomao perdeu completamente o controle que tão firmemente mantivera, suas mãos se enterraram em seus cabelos, não para guiá-lo, mas para se agarrar, como se estivesse à deriva em um mar de sensações. Suas pernas tremiam ao redor de sua cabeça, e seus quadris se moviam em pequenos círculos inconscientes, buscando mais daquela boca aniquiladora.
— Lá... oh, por favor, exatamente lá... — ela suplicou, sua voz uma coisa estranha e quebrada que ela não reconhecia.
Ele obedeceu, focando sua atenção no clitóris inchado e sensível, pressionando com a língua num ritmo que a fez gritar. A tensão que havia se acumulado em seu corpo, da performance anterior e do prazer atual, apertou-se como uma corda de arco. Ela estava à beira, balbuciando palavras sem sentido, uma mistura de seu nome e de impropérios.
Ele sentiu o corpo dela ficar rígido, os músculos abdominais contraindo-se sob seus lábios. Ele não recuou. Aprofundou-se, bebendo dela enquanto a onda a atingia. O clímax de Maomao foi uma explosão silenciosa e depois estrondosa; seu corpo arqueou-se da cama, um grito abafado escapou enquanto ela se contorcia sob a língua dele, ondas de prazer tão intensas que beiravam a dor varrendo cada fibra de seu ser. Era um êxtase aniquilador, uma anestesia de puro prazer que apagou todo pensamento, todo medo, tudo, exceto a sensação que Jinshi provocava nela.
Enquanto as últimas contrações a sacudiam, Jinshi subiu novamente sobre ela, seus olhos estavam escuros, quase negros de desejo. Ele entrou nela num único movimento profundo, encontrando-a aberta, sensível e extremamente macia após o orgasmo. Ela gritou, uma mistura de surpresa e prazer residual.
Ele não esperou. O ritmo que ele estabeleceu era primitivo, urgente, uma afirmação de posse. Maomao, ainda anestesiada e tremula, não podia fazer nada além de recebê-lo. Cada embate aprofundava o estado de êxtase sonhador em que ela se encontrava. Seus gemidos eram longos e contínuos, um som de pura rendição.
Jinshi enterrou o rosto no pescoço dela, seu próprio prazer chegando ao clímax. Com um rugido abafado contra sua pele, ele explodiu dentro dela mais uma vez, seus corpos tremiam violentamente. Ele desabou sobre ela, seu peso um fardo quente e bem-vindo.
Por longos minutos, não houve movimento, apenas a respiração pesada se acalmando. A névoa de prazer lentamente se dissipou da mente de Maomao, ela piscou, voltando a si, sentindo o peso de Jinshi, a umidade entre suas pernas, a lembrança vívida de sua boca nela.
Ela não disse nada. Apenas ergueu os braços fracos e envolveu seu corpo, puxando-o para ficar exatamente onde estava. O silêncio deles era um acordo. Ele a havia dominado, aniquilado e possuído completamente e ela, a grande controladora, permitira-se ser controlada. E, naquele momento, aquela rendição final era a maior vitória de ambas as partes.
O peso dele era sólido, real, ancorando-a de volta à terra depois do êxtase que a fizera flutuar. Cada batida acelerada de seu coração contra o dela era um martelo forjando o momento na memória. O suor que grudava suas peles era um selo, uma prova tangível da fera que ambos haviam soltado e, por fim, domado juntos.
Jinshi ainda com o rosto no canto de seu pescoço e ombro, inalando profundamente o perfume dela, agora misturado com o aroma salgado de seus corpos unidos. Seus lábios moveram-se contra sua pele em um sussurro rouco e quebrado.
— Você é minha, minha esposa, minha posse, minha mulher, apenas minha.
Era uma afirmação, não uma pergunta. Uma verdade que havia sido esculpida na carne e no espírito de ambos naqueles últimos momentos frenéticos.
E Maomao, a racional, a lógica, a que sempre tinha uma resposta pronta ou um comentário ácido, simplesmente fechou os olhos e aninhou-se mais profundamente em seu abraço.
— Sim, inteiramente sua. — as palavras saíram como um suspiro, uma admissão final que não precisava de adornos.
Pois naquele silêncio compartilhado, naquele colapso mútuo, ela entendeu a ironia suprema. O verdadeiro controle não estava em comandar cada movimento, cada gemido, cada segundo. Estava na coragem de, por fim, soltar as rédeas e confiar que a outra pessoa a levaria a um lugar ainda melhor. Ele havia provado que podia acompanhar seu ritmo, superar suas defesas e, no final, merecer sua rendição.
E, para Maomao, que sempre calculava riscos e recompensas, aquele momento de pura entrega, com Jinshi, era o resultado mais perfeito e lucrativo que ela poderia imaginar.
Depois de alguns minutos, Jinshi a deitou sobre seu corpo, enquanto ela apoiava a cabeça no peito dele, sentindo o ritmo firme de seu coração. Jinshi passou a mão pelos cabelos verdes dela, acariciando com delicadeza, quase como se tentasse memorizar cada detalhe.
— Você está bem? — perguntou, a voz baixa e atenta.
— Estou... — respondeu ela, fechando os olhos por um instante. — Mas sabe, Jinshi, eu não imaginei que seria tão... intenso. Não só fisicamente, mas... estar tão perto de você, confiando assim.
Ele sorriu, beijando a testa dela.
— É recíproco, Maomao, cada gesto seu me deixou mais... ligado a você. Não apenas pelo corpo, mas por tudo que você é.
Ela riu baixinho, ainda com um toque de provocação.
— Então cuidado... posso ser perigosa até nos momentos mais calmos.
Jinshi riu também, deixando um leve beijo na curva do ombro dela.
— Então vou ter que aprender a lidar com você de todas as formas e posições possíveis.
Por alguns instantes, ficaram em silêncio, compartilhando apenas a respiração e o calor de seus corpos. A intimidade da noite havia criado uma conexão silenciosa, um território só deles, onde podiam ser vulneráveis e audaciosos ao mesmo tempo.
Maomao então se ajeitou melhor nos braços dele, olhando para o teto enquanto deixava os pensamentos vagarem. Sabia que o dia seguinte traria compromissos oficiais, intrigas e olhares atentos, mas naquele instante, tudo se resumia à presença do outro, às pequenas provocações e à sensação de segurança que só ele lhe proporcionava.
— Amanhã teremos o mundo lá fora nos observando... — murmurou ela.
— Então vamos aproveitar esta noite só nossa — respondeu ele, segurando-a com firmeza. — Cada toque, cada olhar, cada riso... será nosso segredo.
Ela sorriu, sentindo o coração aquecer, por fim, fecharam os olhos juntos, conscientes de que aquela entrega — física, emocional e psicológica — havia criado um laço mais profundo do que qualquer cerimônia ou protocolo jamais conseguiria.
[. . .]
O primeiro raio de sol atravessava os galhos do bosque, filtrando-se pelas janelas da residência imperial. Maomao despertou com o leve cheiro de ervas e madeira, lembrando imediatamente da noite anterior, e não pôde deixar de sorrir, lembrando das provocações silenciosas que haviam trocado com Jinshi.
Ele estava sentado na beira da cama, vestindo apenas uma túnica leve, os cabelos levemente desgrenhados e os olhos violetas ainda carregando aquele brilho de diversão. Ao perceber que ela acordara, inclinou-se ligeiramente, com um sorriso travesso.
— Bom dia... ou devo dizer, bom dia para a esposa que me deixou sem sono a noite inteira? — provocou, a voz baixa, quase um sussurro.
Maomao ergueu uma sobrancelha, cruzando os braços sobre o peito.
— Eu? Eu só... dormi. — sua voz carregava um leve traço de ironia. — Acho que você que não conseguiu pregar o olho.
Ele riu, inclinando-se ainda mais perto, quase roçando o nariz no dela.
— Ah, mas você sabe que não é só culpa minha... você também contribuiu, sabia? — murmurou, provocando-a com um olhar sugestivo.
Ela revirou os olhos, mas não pôde evitar um sorriso.
— Bom, então está combinado... ambos culpados, mas precisamos nos arrumar, os compromissos oficiais nos esperam.
Enquanto se levantava, Jinshi não perdeu a chance de passar atrás dela, encostando-se de leve e sussurrando:
— Culpados juntos, mas acho que ainda podemos aproveitar um pouco antes que o mundo nos observe.
Maomao desviou o olhar, corando levemente, mas murmurou:
— Não se acostume... não será tão fácil me desconcentrar em público. — disse o envolvendo com seus beijos doces e talvez até então venenosos.
[. . .]
No caminho para a sala de audiências, a tensão sexual permanecia entre eles, sutil e elétrica. Cada passo de Maomao era acompanhado por olhares rápidos de Jinshi, e ela, por sua vez, brincava discretamente, encostando-se em seu braço ou deixando o cabelo cair estrategicamente sobre o ombro dele.
— Então... você realmente vai se portar como um príncipe sério hoje? — ela murmurou baixinho, apenas para ele ouvir.
— Sério? — respondeu Jinshi, com um sorriso irônico. — Só até você me desafiar de novo.
Eles chegaram à sala de compromissos oficiais, onde nobres e emissários do Império os aguardavam. A presença do casal real chamava atenção, e Maomao percebeu rapidamente os olhares curiosos e atentos. Ela manteve a postura, elegante e impecável, enquanto o coração ainda acelerava com a lembrança da noite anterior.
Jinshi, ao seu lado, inclinou-se levemente, passando o braço por trás dela de forma quase protetora, mas com um toque sutilmente provocante.
— Tudo bem, minha esposa... vamos mostrar a todos que somos o casal perfeito. Ou pelo menos, que podemos nos comportar em público.
Ela sorriu de canto, sabendo que, por trás da etiqueta e do protocolo, a intimidade deles permanecia invisível aos olhos alheios, mas tão presente quanto a respiração que compartilhavam. Cada gesto, cada olhar, cada provocação sutil carregava o peso da noite anterior e a promessa de que, mesmo em público, o jogo entre eles continuaria.
Depois de cumprirem os compromissos oficiais, Maomao e Jinshi retornavam pelos corredores do palácio. Caminhavam lado a lado, trocando olhares sutis e gestos discretos, cada toque carregado de significado, como se fossem os únicos no mundo ali dentro.
De repente, Jiang surgiu dobrando o corredor, com aquele sorriso maroto que sempre anunciava problemas. Ele manteve distância de Maomao, mas não de provocação: queria ver o irmão se contorcer.
— Jinshi! — exclamou teatralmente, aproximando-se com passos largos. — Preciso entender uma coisa... Que gritaria foi aquela na porta do quarto ontem à noite? Eu estava passando para entregar um recado de Basen e... bem, não deu para não ouvir os seus... gritos, apenas o da princesa...
Jinshi parou no lugar, envergonhado, o rosto ardendo, olhou para o chão, sem saber o que responder, enquanto Maomao não conseguia conter um sorriso.
— Eu... — tentou falar, mas as palavras morreram na garganta.
— Ah, claro, claro — Jiang continuou, inclinando-se levemente, em tom de zombaria — Deve ter sido alguma aula de canto improvisada, não é? — riu, jogando um olhar cúmplice para Maomao — Você sempre tão solícito meu irmão.
Maomao cruzou os braços, arqueando a sobrancelha.
— Talvez devesse agradecer por ele estar vivo. — disse, olhando para Jinshi com um sorriso discreto — Acredito que minha cantoria não o tenha deixado tão atordoado como aparenta alegar Alteza.
Jinshi soltou um suspiro resignado, mas um sorriso involuntário surgiu em seu rosto.
Jiang bateu palmas lentamente, em tom de deboche:
— Ah, então era isso! E eu achando que estava ouvindo apenas um desastre doméstico. Que privilégio presenciar o príncipe envergonhado!
Maomao riu baixinho, ainda segurando a mão dele, enquanto Jinshi balançava a cabeça, levemente corado, mas confortável com a presença da esposa, Jiang, satisfeito com a provocação, se afastou, deixando-os sozinhos.
O corredor voltou a silêncio, mas a tensão entre Maomao e Jinshi retornou, silenciosa, carregada de cumplicidade e pequenas provocações que só eles entendiam, como se cada olhar e gesto fosse um jogo íntimo e particular.
[. . .]
O sol da manhã ainda acariciava o jardim da residência imperial no bosque, lançando reflexos dourados sobre o chá fumegante nas mesas baixas, Maomao ajeitou o hanfu amarelo, sentando-se com cuidado diante de Lady Loulan e Suirei, que a aguardavam com sorrisos suaves e olhares curiosos.
— Que bom que pôde aceitar nosso convite, Alteza. — disse Loulan, inclinando-se levemente. — Precisávamos de um momento longe de toda a formalidade do palácio.
— É realmente um alívio — concordou Maomao, aceitando a xícara de chá que Suirei oferecia. — E ainda mais quando podemos falar de assuntos que nos interessam, sem protocolos e sem olhares de julgamento.
Loulan sorriu, observando Maomao com atenção.
— Falando em interesse, queremos saber mais sobre suas pesquisas com ervas, Suirei e eu ficamos fascinadas ao ver como você identifica cada planta, cada efeito. Não é comum encontrar alguém que consiga unir conhecimento científico e prática medicinal com tanta naturalidade.
Maomao baixou os olhos para a xícara, sentindo um leve rubor.
— Ah... é mais curiosidade do que qualquer outra coisa, mas acredito que qualquer habilidade que possamos desenvolver deve ser usada, mesmo pequenas ações podem fazer diferença, especialmente para mulheres que precisam lutar para serem ouvidas.
Suirei assentiu.
— É verdade e você faz isso sem parecer arrogante ou autoritária, consegue fazer com que todos, mesmo os mais céticos, prestem atenção. Isso é raro.
— Talvez seja apenas questão de não deixar que percebam o quanto estamos pensando e planejando por trás de sorrisos e chá — respondeu Maomao, sorrindo discretamente.
Loulan ergueu a sobrancelha, com um sorriso divertido.
— E sobre mulheres na corte? Você realmente acha que podemos ter algum tipo de influência sem ser através de um casamento? Digo isso porque aparentemente Suirei só poderá ser a líder do Clã Shi se casar ou se eu conseguir uma aliança mais influente.
Maomao pensou por um instante, olhando para o jardim florido.
— Acho que depende de como usamos nosso conhecimento e nossas habilidades. A influência verdadeira vem da sagacidade, da paciência e da coragem de agir mesmo quando ninguém espera. Um gesto, uma palavra bem colocada, podem alterar mais do que qualquer decreto oficial.
Suirei sorriu, inclinando-se um pouco mais perto.
— E o seu casamento com o Príncipe da Lua... dizem que abalou a corte de Li, mas, pelo que vejo, não foi apenas um casamento político. A forma como você conduz a relação, mantendo sua inteligência e postura, inspira outras mulheres.
Maomao deu um leve sorriso, lembrando da tensão e provocações veladas que compartilhava com Jinshi, mesmo em público.
— É... interessante, não é? Mesmo sendo uma união estratégica, há espaço para nos conhecermos, para aprendermos juntos. Isso muda tudo.
Loulan riu, dando um gole de chá.
— Interessante? Aposto que quer dizer "provocador".
— Talvez — admitiu Maomao, cruzando as mãos sobre o colo. — Mas também é uma oportunidade. Uma oportunidade de aprender, de testar limites e, quem sabe, até se divertir um pouco no processo.
Suirei observou-a com cuidado.
— Você fala como alguém que realmente sabe o que quer. É admirável e perigoso também, não acha?
— Perigoso? — Maomao arqueou uma sobrancelha, um sorriso malicioso surgindo nos lábios. — Talvez, mas com as pessoas certas ao meu lado, o perigo se torna... interessante.
Loulan riu baixinho, enquanto Suirei balançava a cabeça, impressionada.
— Eu diria que a corte nunca mais será a mesma depois que a senhorita chegou, princesa. Não apenas pelo casamento, mas pela forma como transforma situações, mesmo pequenas, em algo que impacta todos ao redor.
Maomao olhou para as duas, sentindo-se mais segura e conectada.
— Obrigada. É bom ter alguém com quem posso conversar sem que tudo seja observado ou criticado. Momentos assim... fazem diferença.
As três mulheres permaneceram ali, entre goles de chá e risadas suaves, compartilhando experiências, aprendizados e pequenos segredos da corte. Entre ervas, política, medicina e intrigas sutis, Maomao sentiu-se fortalecida, pronta para enfrentar os desafios que certamente viriam, com inteligência, sagacidade e aquele toque de charme que a tornava única.
Chapter 14: Venenos, política e o pato
Notes:
Olá a todos, quero pontuar que escrevi esse capítulo após voltar da faculdade cheia de sono, pfvr reconsiderem se houver qualquer erro ou repetição de textos, estou exausta, mais tarde eu reviso.
Boa leitura a todos, espero que gostem :)))
Chapter Text
Residência Imperial – Clã Shi
O bosque estava tomado pelo canto de insetos e o farfalhar das folhas. Ali, Maomao encontrava um refúgio que o salão principal jamais lhe daria, ajoelhada na terra úmida, com a barra do hanfu já manchada de lama, ela observava as folhas de uma erva medicinal recém-brotada.
— Princesa... — a voz grave de Basen quebrou a concentração dela. — Quantas vezes eu preciso repetir que não deve meter as mãos na terra como uma camponesa?
Maomao ergueu os olhos, a expressão exasperada, o olhar tedioso.
Basen era irritante, sempre com aquele ar sério, como se fosse o próprio Imperador ditando regras a ela. Tudo o que queria era paz, silêncio… e algumas plantas para estudar.
— Você tem noção do estado em que está? — Basen cruzou os braços, encarando-a de cima a baixo. — Lama até os cotovelos e até cobrindo a barra de seu hanfu, isso não é o comportamento de uma princesa.
— Princesa, princesa… — ela bufou, balançando a cabeça. — Se é para viver trancada em meio a sorrisos falsos e venenos escondidos, prefiro me sujar de lama e conhecer novas espécies de plantas e ervas.
— E se essas ervas que você fica cutucando forem venenosas? — ele rebateu, a voz mais dura, mas com aquele fundo de preocupação impossível de esconder — Antídoto nenhum te salvaria de uma dose bem preparada.
— Ah, mas eu sempre tenho algo pronto — Maomao respondeu com ironia, sacudindo o punho fechado, como se guardasse frascos invisíveis. — E mesmo que não tivesse, é mais suportável lidar com raízes e fungos do que com aquele ninho de serpentes enfeitadas que chamam de corte.
— Ninho de serpentes? Logo você que pertence ao clã das maiores. — Basen arqueou uma sobrancelha, rindo de leve. — Isso inclui as filhas do primeiro-ministro do clã Shi?
Maomao estreitou os olhos, a boca se curvando num meio sorriso irônico.
— Não. Ao menos, entre todas, elas parecem mais simpáticas que a média e honestas, se é que isso ainda existe dentro dessas paredes.
— Hm. Interessante… — Basen apoiou o queixo na mão, como se a estudasse. — Então você poupa as Shi, mas chama o restante de serpente? Vai acabar sendo engolida antes mesmo de perceber.
— Quem disse que serpentes não se engolem entre si? — retrucou, seca, ajustando as mangas manchadas de terra como se não fosse nada. — Só espero estar longe quando uma resolver dar o bote errado.
Basen soltou um assobio baixo, divertido.
— A forma como você fala… Se eu não te conhecesse, diria que não passa de arrogância.
— E se me conhece, o que diria? — Maomao devolveu, a voz arrastada, entediada, mas o olhar brilhando com malícia.
Ele inclinou-se para a frente, aproximando o rosto do dela, como se desafiasse:
— Que é puro tédio disfarçado de sabedoria. Você só se diverte quando está cutucando feridas, não é?
Maomao piscou lentamente, um sorriso ladino escapando antes que ela desviasse o olhar.
— Talvez, mas entre cutucar feridas e ser apenas mais uma boneca enfeitada… prefiro ficar com minhas raízes e fungos.
O silêncio entre os dois durou apenas um instante, pesado de implicância e de uma estranha familiaridade.
Basen suspirou fundo, passando a mão pelo rosto como quem desistia de tentar convencê-la.
— Então, resumindo, você foge das suas responsabilidades porque prefere brincar de Apotecária na lama?
— Exatamente, mas eu sou médica Basen, estou fazendo pesquisas que possam me ajudar com meus pacientes futuramente. — Maomao sorriu de canto, maliciosa. — Melhor me esconder no silêncio e aturar você me atormentando, do que enlouquecer cercada de falsos sorrisos e intrigas.
Por um instante, Basen a olhou como quem queria ralhar ainda mais, mas, em vez disso, soltou uma gargalhada curta, sincera, que fez Maomao arregalar os olhos.
— Você não tem jeito, garota. Fugindo de tudo como se fosse uma criança birrenta.
— E você, agindo como se fosse meu irmão mais velho. — ela rebateu, emburrada.
— Talvez porque alguém precise cuidar de você para que você não se mate no meio desse bosque. — Basen murmurou, quase sem perceber que sua voz suavizara — Você acha que está certa em fugir de tudo assim?
Ela finalmente o encarou, um riso breve escapando de seus lábios.
— Claro que sim. Caso contrário, enlouqueceria, deixe Jinshi e Jiang se afundarem nos afazeres políticos. Eu prefiro me afundar na lama.
Basen riu alto, sem se conter.
— Você é impossível, Alteza, se eu fosse seu irmão de verdade, já teria dado uns cascudos em você.
— E se fosse meu irmão de verdade, — ela retrucou sem perder o ritmo — eu já teria enfiado ervas laxantes no seu jantar.
Ambos se encararam por um segundo, até que riram juntos, como duas crianças travessas que sabiam que jamais seriam levadas a sério se alguém os visse naquele momento.
[. . .]
Ainda naquela mesma tarde, ao deixar a sombra cerrada do bosque, Maomao encontrou Suirei caminhando lentamente pelos jardins do palácio. O contraste entre elas não poderia ser mais gritante: Suirei trajava um hanfu azul claro, em um tom apenas um suspiro mais suave que o brilho negro-azulado de seus cabelos. O tecido parecia captar a luz do entardecer, realçando ainda mais seus olhos azuis translúcidos, frios e atentos.
Ao seu lado, Maomao parecia um borrão destoante: o hanfu amarelo que usava ainda guardava manchas teimosas de terra e ervas do bosque, quase uma afronta à delicadeza do ambiente imperial. O amarelo contrastava com o azul intenso de seus olhos e os fios escuros com reflexos esverdeados, tão incomuns entre as damas da corte.
— Ouvi rumores preocupantes, Alteza — murmurou Suirei, a voz baixa mas firme, como se os próprios arbustos pudessem delatá-las. — Há círculos políticos que desejam ver Jiang como sucessor, em vez de Jinshi.
O estômago de Maomao se contraiu, mas sua expressão se manteve inalterada.
— Então não são apenas sussurros ao vento.
— Não. — Suirei suspirou, mas não havia fraqueza em sua postura. — Alguns nobres consideram Jinshi brando demais, vulnerável às influências da concubina-chefe e de seus conselheiros. Dizem que falta nele a rigidez que um trono exige. Já Jiang... — ela fez uma pausa breve, os olhos distantes — ele herdou a eloquência do pai e a presença de nosso avô. Naturalmente, muitos o veem como o candidato perfeito.
Maomao a observou de relance, a forma como Suirei falava dos primos carregava uma estranha combinação de familiaridade e distância: reconhecia suas virtudes e falhas sem afeto excessivo, mas também sem crueldade. Havia empatia em seu tom — talvez pela posição ingrata em que ambos estavam colocados.
— E o que você pensa sobre isso? — Maomao quebrou o silêncio, a voz quase um desafio.
Suirei parou, voltando-se para ela com um olhar límpido, que não hesitou.
— Penso que Jiang jamais trairia Jinshi, ele não é movido por esse tipo de ambição.
Maomao reprimiu o riso que lhe subiu à garganta, deixando escapar apenas um som baixo, abafado.
"Claro que não... mas isso não o impediu de me cortejar, mesmo às vésperas do meu casamento. Lealdade absoluta não é exatamente a marca dele."
Em voz alta, respondeu com neutralidade:
— É bom ouvir sua certeza, mas, para ser franca, não temo tanto o irmão dele... e sim aqueles que o cercam.
Suirei assentiu lentamente.
— Há facções em movimento, Alteza. Grupos que simpatizam com Jiang apenas porque veem nele uma oportunidade de se fortalecer. Nobres antigos que ainda guardam rancor das mudanças do último reinado. Servos menores, dispostos a trocar fidelidade por promessas de ascensão. — seu tom se tornava mais baixo a cada palavra. — É menos sobre Jiang ou Jinshi... e mais sobre quem eles conseguem manipular melhor a sucessão.
Maomao estreitou os olhos, fitando o horizonte dourado pelo sol.
— Então não é apenas um jogo entre dois homens. É um ninho inteiro de serpentes tentando decidir qual delas morderá primeiro.
Os olhos azuis de Suirei cintilaram sob a luz poente, e ela falou como quem não pede, mas ordena:
— Desconfie de todos, Alteza, aqui, cada sorriso pode esconder uma lâmina.
Maomao permaneceu em silêncio, a mente fervilhando. No fundo, sabia que a maior batalha não seria travada com venenos ou ervas... mas com intrigas e palavras sussurradas em banquetes dourados.
[. . .]
Jinshi e Jiang observavam de longe Maomao e Suirei inclinadas uma para a outra, as cabeças quase tocando, a voz baixa demais para que qualquer ouvido indiscreto captasse, aquele tipo de cumplicidade repentina soava estranho para ambos.
Jinshi, por dentro, se revirava.
"Ela deveria estar ao meu lado, não ali conspirando com Suirei… Que tipo de ligação é essa?"
Os olhos estreitaram de leve, não por desconfiança política, mas por ciúme genuíno, Maomao rindo baixinho com outra pessoa era quase uma afronta.
Jiang, ao contrário, analisava friamente: Se Maomao e Suirei se tornarem uma dupla, isso muda as peças no tabuleiro. Significa que qualquer tentativa de manipular a princesa terá de enfrentar a astúcia de duas cabeças, não uma e ele achava incrível a inteligência de Suirei com a frieza e ignorância de Maomao.
Ainda assim, Jiang também sentia uma pontada incômoda, difícil de nomear. Não era exatamente ciúme, mas um desconforto instintivo ao ver como a princesa se isolava das demais para compartilhar segredos apenas com quem escolhia.
Logo, um ministro pigarreou e o salão voltou a se aquietar, retomando o fio das discussões, assuntos de fronteiras, suprimentos e casamentos estratégicos retornaram à mesa.
Jinshi suspirou fundo, tentando se recompor da inquietação, inclinou-se discretamente até Jiang, murmurando num tom quase choroso:
— Estar aqui é uma tortura… Eu só queria estar perto da minha esposa.
Jiang ergueu a sobrancelha, contendo uma risada irônica, inclinou-se também, fingindo compartilhar um segredo fraterno:
— Engraçado… eu também queria estar perto da sua esposa.
O olhar de Jinshi fulminou o irmão, e sem pensar duas vezes, deu-lhe um tapa leve na cabeça, Jiang riu baixo, se endireitando no trono, mas o brilho de provocação em seus olhos não se apagou.
— Idiota. — Jinshi resmungou, quase num sussurro, o rosto um pouco corado. — Fale assim de novo e não respondo por mim.
— Relaxa, irmãozinho. — Jiang retrucou, ainda sorrindo. — Só quis lembrá-lo de que, se você não prestar atenção, outros também podem querer estar perto dela.
Jinshi respirou fundo, como se quisesse controlar a fúria, mas se obrigou a voltar ao tom solene, o peso da sala exigia.
— Pois bem… — murmurou, erguendo a voz para todos. — Sobre as terras da fronteira norte, é evidente que o suprimento está mal administrado.
O salão mergulhou em debate, os nobres alinhando discursos, alguns defendendo reformas tributárias, outros insistindo na manutenção da ordem militar. Jiang intervinha com calma, pontuando sobre alianças diplomáticas, enquanto Jinshi, ainda com o coração apertado, exibia a serenidade de um governante, mesmo que por dentro só desejasse que aquela reunião acabasse logo para correr de volta a Maomao.
E enquanto as palavras iam e vinham entre decretos e cálculos, o eco íntimo do tapa leve e da troca mordaz ainda os prendia.
Um tempo depois Maomao e Suirei caminharam juntas até o quarto reservado as damas de companhia, Maomao estava sentada diante de uma pequena mesa baixa, onde Suirei organizava alguns pergaminhos com listas de convidados e genealogias rabiscadas às pressas. As duas estavam tão concentradas que o silêncio, quebrado apenas pelo leve farfalhar do papel, lembrava mesmo o início de uma partida de go.
— Veja — murmurou Suirei, batendo o dedo sobre um nome. — O clã Yi, dois generais veteranos e um sobrinho que herdou o posto recentemente. Todos foram leais ao Imperador, mas o mais jovem… há rumores de que busca prestígio rápido demais.
— Ambição desenfreada costuma ser um veneno pior que arsênico. — respondeu Maomao, com um meio sorriso enviesado.
Suirei levantou os olhos para ela.
— Você fala como se conhecesse o gosto.
Maomao apenas deu de ombros, divertida, mas logo voltou à seriedade.
— Se somarmos esse clã aos apoiadores silenciosos da ala oeste do palácio, temos uma peça pronta para se mover contra Jinshi, caso a sucessão seja questionada.
— E os apoiadores de Jiang? — perguntou Suirei, cautelosa. — O que você acha deles?
Maomao apoiou o queixo na mão.
— Jiang pode ter seus admiradores, mas… jamais compactuaria com algo desse porte.
Suirei assentiu de imediato.
— Conheço pouco meus primos, mas posso garantir que Jiang daria sua vida para que Jinshi seja feliz e seja o Imperador, Jiang e Jinshi são muito grudados desde crianças, não consigo imaginar Jiang fazendo parte de uma revolta sabe?
A troca de olhares entre elas carregava um acordo silencioso: seguir analisando cada nobre como peças de um tabuleiro. A cada nome, especulavam motivos, alianças ocultas, potenciais traições. Era quase divertido, se não fosse tão perigoso.
[. . .]
Os debates no salão estavam longe de se encerrar, um dos ministros veteranos, o nobre Gao, de voz grave e postura rígida, inclinou-se em direção a Jinshi:
— Vossa Alteza, a política de abastecimento nas fronteiras deve permanecer sob o controle da Coroa. Se deixarmos os governadores locais interferirem, logo estaremos diante de abusos e desvios, a centralização é a garantia da ordem.
Claramente alinhado a Jinshi, Gao representava a ala conservadora que via nele um pilar de estabilidade.
Em contrapartida, o Chefe do Clã Wen, jovem e ambicioso, se voltou a Jiang com reverência marcada demais para ser casual:
— Mas, Príncipe do Sol, a descentralização poderia acelerar o fluxo de recursos, um sistema mais flexível de autonomia regional facilitaria tanto a arrecadação quanto o transporte, o povo local confiaria mais em seus próprios governantes do que em ordens distantes.
Era evidente para todos: o Chefe do Clã Wen via em Jiang uma chance de se projetar.
Outros, como o Conselheiro Yun, preferiram manter o tom neutro:
— Talvez seja prudente, altezas, considerar uma solução mista: supervisão central, mas com margens de flexibilidade nos postos militares. Afinal, o império precisa de coesão, mas também de adaptação.
Ele falava com um sorriso que não revelava nada, o tipo de figura que aguardava o vento mudar para decidir em qual lado se firmaria.
Jinshi, por dentro, ardia de impaciência, ele via os jogos de palavras, mas só conseguia ouvir o riso abafado de Maomao ecoando em sua mente. As mãos estavam cerradas sob a mesa, e em um momento de fraqueza, levantou-se.
— Peço licença.
O salão havia se aquietado, o murmúrio dos nobres cessara como se o ar tivesse sido sugado para fora. Jiang, sentado alguns lugares abaixo, ergueu uma sobrancelha, desconfiado da súbita retirada do irmão, mas não comentou nada — apenas inclinou a cabeça, observando em silêncio, com aquele olhar que parecia pesar e medir cada ausência.
No corredor lateral, onde as lanternas criavam sombras longas contra a madeira, Jinshi encontrou o que procurava: Maomao, ao lado de Basen. A jovem ajeitava a manga do hanfu amarelo manchado, um contraste gritante com seus cabelos e seus olhos claros que refletiam as chamas das lamparinas. Basen, por sua vez, mantinha-se rígido demais, postura ereta de soldado, mas atento demais à proximidade da moça.
A cena fez algo se retorcer no peito de Jinshi.
— Vocês parecem… muito à vontade. — sua voz saiu baixa, envolta em uma suavidade calculada, mas que não escondia o ciúme latejante.
Basen piscou, como se tivesse levado um golpe, e endireitou-se ainda mais, quase engolindo seco para se justificar, se uma coisa ele sabia desde a infância era como Jinshi era ciumento e possessivo com algo que lhe pertencia. Basen o encarou preocupado, mas ainda com um olhar que dizia "Você acha que sou maluco? Você é o príncipe, meu irmão adotivo e pasmém, sou muito bem casado, seu idiota.". Porém, antes que pudesse abrir a boca, Maomao interveio com naturalidade:
— Apenas trocávamos observações, querido — seus lábios se moveram com uma calma irritantemente prática. — Nada que exija sua preocupação.
O coração de Jinshi apertou, aquelas palavras eram simples, objetivas, mas, para ele, soaram como um punhal delicado: ela o descartava, o diminuía, como se fosse um enfeite ansioso demais pelo olhar dela.
Ainda assim, deu um passo à frente, o perfume sutil da roupa manchada de Maomao o alcançou, e seus olhos dourados pousaram nos dela, fixos.
— Não demore a voltar para meus olhos. — a frase escapou em sussurro, um pedido disfarçado de ordem, destinado apenas a ela.
Maomao piscou, surpreendida.
Um rubor discreto tocou sua face, mas antes que respondesse, Jinshi inclinou-se, permitindo que sua testa encostasse brevemente no ombro dela. O gesto foi rápido, mas carregava um peso íntimo, Maomao, sem pensar, ergueu a mão e pousou-a em suas costas, em um abraço sutil — contido, quase imperceptível, mas suficiente para dizer: acalme-se, estou aqui.
Basen desviou o olhar de imediato, como se tivesse sido atingido pela cena, seus punhos cerraram-se ao lado do corpo, mas ele nada disse.
Jinshi endireitou-se, voltando a erguer o véu da postura principesca, a máscara retornava ao rosto, mas seus olhos ainda ardiam quando se voltaram para o soldado.
— Basen. — o nome soou como uma ordem. — Quero que cuide dela como cuidaria da Lady Lishu, proteja minha esposa como se fosse a sua.
A sentença caiu pesada entre eles, intencional, Basen quase se curvou, como se carregasse de repente um fardo que jamais ousaria recusar.
Maomao abriu a boca para retrucar, mas a intensidade no olhar de Jinshi a deteve, ele não lhe deu tempo de resposta: voltou-se com passos firmes, reassumindo o ritmo altivo que o levaria de volta ao salão principal, onde o aguardavam os olhos famintos dos nobres.
As atitudes dele era como se soubesse de algo e observar Maomao o tranquilizava, mas ainda o deixava preocupado e mesmo sabendo que Basen jamais a faltaria com respeito, era inegável que sentia insegurança de Maomao perto de outros homens, ela era bela demais, inteligente demais e extremamente requisitada em reuniões políticas, enquanto ele era apenas o filho que nasceu primeiro e nunca teve outra opção além de ser o futuro Imperador do País de Li.
A jovem ficou imóvel por alguns instantes, sentindo o vazio que ele deixara para trás, o coração, inquieto, batia mais rápido do que gostaria de admitir, respirou fundo, forçando a compostura.
Por fim, virou-se para Basen, que ainda parecia carregar a sombra daquela ordem.
— Preciso trocar de roupas. — disse em tom neutro.
Ele apenas assentiu, oferecendo-se para escoltá-la até seus aposentos, o ar entre eles, porém, estava carregado de uma tensão quase sufocante, criada pela presença e pelo ciúme de Jinshi que permanecia, mesmo em sua ausência
[. . .]
Quando Jinshi retornou ao salão, todos se reacomodaram em silêncio, mas Jiang não perdeu a oportunidade.
O príncipe, apoiando o queixo na mão com languidez teatral, comentou em tom baixo o bastante para soar como confidência, mas alto o suficiente para que todos ouvissem:
— Ora, ora… imaginei que tivesse se ausentado por um assunto de Estado, mas vejo que até mesmo os olhos de Vossa Alteza podem ser sequestrados por uma simples princesa.
Alguns nobres tossiram, encobrindo sorrisos contidos, outros desviaram o olhar, temendo se envolver no veneno daquele comentário.
Jinshi, no entanto, não se abalou, revirou os olhos, retomou seu assento com a serenidade de uma máscara talhada em jade, apenas respondeu, com voz firme, quase doce demais para ser natural:
— Até mesmo um príncipe deve reconhecer quem lhe preserva a vida.
As palavras, carregadas de subtexto, ecoaram pelo salão, Jiang manteve o sorriso, mas seus dedos tamborilaram no braço da cadeira. A tensão se acumulava, e os ministros sabiam que cada gesto era um movimento no tabuleiro.
[. . .]
Maomao já estava em seus aposentos quando deixou escapar um suspiro longo, retirando, camada por camada, o hanfu que parecia pesar mais que o próprio corpo. O tecido amarelo manchado deslizou pelo chão em silêncio, até que restasse apenas uma túnica leve sobre as roupas íntimas, a pele, finalmente livre, respirou aliviada.
Ela havia dispensado as servas outra vez, não suportava olhares curiosos nem mãos alheias a tirarem dela a única coisa que ainda lhe restava: o controle sobre o próprio corpo. Precisava estar sozinha, precisava organizar os pensamentos que se amontoavam, sem pedir licença, em sua mente sempre afiada.
No entanto, junto ao alívio da leveza, veio um incômodo inesperado.
Não físico — mas algo que lhe corroía por dentro, as palavras de Jinshi, o ciúme mal disfarçado no salão, o olhar que parecia querer prendê-la ali, inteira, só para ele.
Ela se aproximou da pequena penteadeira, observando-se no espelho polido de bronze, os olhos azuis, normalmente tão calculistas, traziam agora uma sombra de incerteza. Tocou o reflexo de leve, como se pudesse arrancar dali a resposta que não encontrava dentro de si.
“Por que ele precisa me olhar daquela forma?” — pensou, os dedos roçando a borda fria do espelho. — “Como se eu fosse algo que lhe pertence… quando eu mesma não sei a quem pertenço.”
A lembrança do braço de Jinshi, tenso, quando ela o envolveu discretamente num abraço para acalmá-lo, voltou como um arrepio inesperado pela espinha. Fora um gesto pequeno, quase imperceptível para os demais, mas não para eles. Para ele, um príncipe envolto em camadas de máscaras, que, por um instante, deixara escapar a vulnerabilidade de um homem comum.
Maomao apertou o tecido da túnica contra o peito, como se pudesse conter aquela memória que queimava mais do que deveria. O silêncio do aposento a cercava, mas havia algo nele que não lhe soava certo. Inspirou fundo.
E então percebeu.
O ar não trazia o perfume suave das ervas queimadas para perfumar o ambiente, em vez disso, um cheiro acre, metálico, insinuava-se pelas narinas como ferro mergulhado em óleo. Um aviso.
Seus olhos se estreitaram, o instinto falou mais alto do que qualquer emoção, ela se aproximou da banheira ainda cheia, onde a água do banho fora deixada à sua espera. Não hesitou. Afundou a mão na superfície.
O choque veio de imediato. Uma dor aguda, corrosiva, rasgou-lhe a pele como se a estivesse dissolvendo por dentro. Ela recuou bruscamente, o coração disparado, e observou a mão já vermelha, coberta de bolhas que se formavam em questão de segundos.
O veneno agia rápido.
Maomao arfou, mas não em pânico, o arrepio que antes lhe atravessara o corpo pela lembrança de Jinshi agora se confundia com a dor pulsante que subia pelo braço. Vulnerabilidade e perigo, entrelaçados.
E naquele instante, ela soube: alguém queria silenciá-la..
Inspirou fundo, mordendo os lábios para conter o gemido, mesmo em meio à dor, sua mente corria.
"Isso… não é água comum. Cáustico, forte o suficiente para corroer carne em poucos instantes. Provavelmente algum líquido preparado por alquimistas, feito de minerais queimados ou alúmen concentrado. Não é obra de acaso… e não seria apenas contra mim. Quem compartilhasse o banho… Jinshi também."
Segurando a respiração, enrolou a mão em um pano, escondendo as marcas sob a túnica, ela não poderia fazer alarde, era isso que queriam que ela fizesse. Quem tivesse preparado aquilo não queria apenas eliminá-la discretamente — queria atingir Jinshi, desestabilizar o equilíbrio político do salão.
Endireitou a postura, embora o braço latejasse como se ardesse em brasa, os passos eram firmes, mas havia um leve arrastar, denunciando a dor que subia pelos nervos até o ombro. Ainda assim, caminhava como quem não permitia fraqueza, os olhos, antes curiosos e cheios de um brilho travesso, agora eram lâminas — frias, calculistas, afiadas pelo perigo.
Se ousavam atacá-la daquela forma, então o jogo havia ultrapassado os limites das intrigas sussurradas. Palavras já não bastavam.
O coração batia em disparada, como se tentasse alertá-la de que não havia tempo a perder. Ela não ousou trocar de roupas; a simples ideia de que o tecido pudesse ter sido envenenado fazia sua pele se arrepiar. Saiu como estava: túnica leve mal amarrada sobre as roupas íntimas, pés descalços contra o piso frio que roubava calor do corpo, mas não da urgência.
A cada passo, era como se a morte roçasse sua sombra contra a dela nos corredores silenciosos.
E então, ao dobrar um dos corredores, quase colidiu com uma figura.
Basen.
Ele se deteve, surpreso, e arqueou uma sobrancelha ao encarar aquela visão inesperada: Maomao, desalinhada, o cabelo solto em mechas desordenadas, túnica pendendo aberta nos ombros, pés nus… mas com o olhar de uma fera que não hesitava diante da dor.
— …O que aconteceu com você? — a voz dele soou grave, desconfiada, mas havia também um traço de inquietação.
Maomao ofegava discretamente, tentando conter a dor que latejava no braço queimado. Seus olhos cortaram o ar como lâminas ao se fixarem em Basen.
— Jinshi e Jiang… — perguntou num tom baixo, tenso. — Estão em reunião?
Basen franziu a testa, ainda mais intrigado com a aparência dela.
— Estão. Mas… — seus olhos percorreram a figura desalinhada à sua frente. — Por que diabos você está assim? Você é uma princesa e, está andando pelos corredores, sem calçados, túnica mal presa apenas de roupas íntimas, Oh meu senhor Maomao… o que aconteceu?
Ela se aproximou, firme apesar da dor, e segurou o punho dele com a mão ainda sã.
— Preciso sair daqui. Agora. — seus olhos, frios como vidro estilhaçado, não deixavam espaço para hesitação. — Tire-me daqui, Basen.
O soldado demorou um instante, surpreso com a autoridade na voz dela, mas não contestou. Apenas assentiu, rígido, e a conduziu rapidamente até os estábulos. Montou com agilidade e, sem perder tempo, ajudou Maomao a subir em um cavalo, acomodando-a à sua frente.
— Vou levá-la para a fazenda de minha esposa. — disse em tom baixo, quase como um juramento. — Lá você terá abrigo, comida e roupas limpas.
No galope apressado pela estrada escura, o vento açoitando o rosto dela, Basen arriscou uma pergunta.
— O que está acontecendo?
Maomao respirou fundo, a dor queimando-lhe o braço, mas sua voz saiu firme:
— Tentaram me envenenar. O banho estava encharcado de ácido, se eu tivesse entrado, estaria morta agora. — fitou o horizonte, sem se deixar abalar pelo arrepio que subia pela espinha. — Precisa avisar os príncipes assim que puder, diga para não se banharem nos aposentos e terem cuidado com o que comerem, digam que saiam dali o mais rápido possível. Estão armando contra a vida deles.
O silêncio pesado caiu entre os dois, apenas o som do cavalo rompendo a noite, Basen lançou-lhe um olhar de relance: havia incredulidade, mas também respeito. Pela primeira vez, Maomao parecia mais do que uma princesa excêntrica — era alguém que carregava nas mãos a linha tênue entre a vida e a morte da corte.
[. . .]
A viagem até a fazenda foi mais curta do que Maomao esperava, o coração ainda latejava acelerado, como se pudesse saltar do peito a qualquer instante, mas o galope ritmado do cavalo e o frio da noite ajudaram a manter sua mente presa ao presente. Quando finalmente desceram, Basen tomou a dianteira, passos largos e confiantes, enquanto Maomao o seguia de perto, segurando a túnica com força para que não se abrisse no meio do caminho.
O ar cheirava a terra úmida e feno, misturado com o aroma distante de sopa recém-preparada. Aquele contraste simples com o luxo sufocante da corte era quase um alívio, mas Maomao não conseguia relaxar. Sua pele ainda latejava com a lembrança do veneno, e cada sombra parecia se esticar como uma ameaça.
Foi então que Basen parou diante do portão de madeira e virou o rosto ligeiramente para ela.
— Você tem medo de patos? — perguntou com a seriedade de quem questionava sobre assassinos profissionais.
Maomao piscou, incrédula.
— … Patos?
— Sim.
— Não. — respondeu secamente, franzindo o cenho.
Um leve sorriso despontou no canto da boca dele.
— Então ótimo.
E abriu a porta da casa.
No mesmo instante, o que parecia ser uma criatura monstruosa e emplumada surgiu das sombras: um pato branco enorme, de asas abertas e grasnado indignado, correndo na direção deles como se fosse um guardião da propriedade.
— Kyaaaaa! — o grito escapou da garganta de Maomao antes que conseguisse pensar. Instintivamente, ela saltou para os braços de Basen, agarrando-se a ele como se a própria morte viesse em forma de penas.
— Jofu… — Basen resmungou, mas não conseguiu segurar o riso que sacudiu seus ombros.
Maomao arregalou os olhos, percebendo no mesmo instante que não havia perigo algum, apenas o pato andando em círculos orgulhosos, como se tivesse cumprido sua missão de assustar intrusos.
De dentro da casa, uma risada cristalina ecoou, Lishu, com os cabelos presos de maneira simples e o pequeno Guang aconchegado em seus braços, observava a cena pela porta aberta. Seus olhos cintilaram de diversão.
— Então essa é a princesa que vai dominar o império? — provocou, a voz carregada de humor.
— Silêncio. — Maomao rebateu, a voz grave de irritação, descendo apressada dos braços de Basen e recompondo a túnica com dignidade forçada. As bochechas, no entanto, ardiam de vergonha.
O pato grasnou mais uma vez, orgulhoso, e passou a circular em volta deles como se esperasse reconhecimento por seu ato heroico.
Lishu soltou outra risada, embalando Guang, que batia as mãozinhas gorduchas, animado com o espetáculo.
— Ele sempre faz isso com visitas, considera-se o verdadeiro guardião da fazenda.
Basen passou a mão pelo rosto, tentando conter um novo riso, mas seus olhos brilhavam de divertimento.
— Devia ter avisado que o recepcionista mais perigoso daqui não carrega lâmina… e sim penas.
— Hmph. — Maomao cruzou os braços, tentando ignorar o calor que lhe subia ao rosto. — De todas as coisas para me atacar depois de quase morrer… um pato era a última que eu esperava.
— Não se engane, princesa — Basen inclinou o corpo ligeiramente para a frente, com um tom malicioso. — Esse aí é mais implacável que muito guarda do palácio.
O pato grasnou de novo, como se confirmasse a afirmação.
Lishu gargalhou, balançando a cabeça.
— Entrem logo, antes que ele resolva cobrar pedágio para deixar vocês passarem.
Dentro da casa, o ambiente era acolhedor, com o cheiro de pão recém-assado misturado ao aroma suave de ervas secando em cordões pendurados nas vigas do teto. O contraste com o pânico que Maomao sentira minutos antes era quase absurdo. Ali, parecia um mundo à parte, intocado pela sombra da corte e pelas conspirações que ferviam nos corredores do palácio.
Lishu, aproximou-se com um sorriso gentil, seus traços eram simples, mas havia uma serenidade natural em seus gestos. Ela inclinou-se em reverência profunda.
— É uma honra recebê-la, Vossa Alteza. — sua voz soava cristalina, sincera.
Maomao apertou os lábios, desconfortável com a formalidade, aproximou-se, colocando a mão suavemente sobre o braço de Lishu.
— Não me chame assim. — pediu, quase num sussurro, mas firme. — Apenas... Maomao está bom.
Lishu ergueu o olhar, surpresa, e então sorriu mais amplamente, como quem acabara de ganhar confiança inesperada.
— Maomao, então. — repetiu, testando o nome nos lábios.
Do outro lado da sala, Basen já se curvava para brincar com o filho, o menino gargalhava alto enquanto o pai o levantava no ar como se fosse um cavaleiro em um cavalo imaginário.
— Guang, cuide da mamãe enquanto o papai vai salvar dois cabeças-duras no palácio. — murmurou, beijando o topo da cabeça da criança.
— Papai bobo! — Guang respondeu, fazendo todos rirem.
Basen voltou-se para Lishu, tocando-lhe de leve o ombro.
— Confio em você. — disse em voz baixa carregado de carinho enquanto beijava a testa da esposa. Depois olhou para Maomao. — Descanse bem princesa, agora preciso ser rápido. — e sem mais, saiu apressado.
O silêncio que restou fez Maomao tomar consciência da própria aparência: pés descalços, túnica simples, cabelo desgrenhado pela pressa. Corou, abaixando a cabeça.
— Peço desculpas, Lishu... — disse com um fio de voz. — Por estar assim, inadequadamente vestida... e ainda mais... por ter chegado sozinha, acompanhada apenas do seu marido.
Lishu piscou, surpresa, antes de soltar uma risada suave que se expandiu pela sala, ela balançou a cabeça, agora ajeitando Guang no colo.
— Ora, não diga bobagens. Foi uma urgência. — seus olhos brilharam de compaixão. — E lamento apenas por não tenha roupas dignas de sua posição. Tenho apenas peças simples, aqui na fazenda não uso roupas tão elaboradas diferente da minha casa na Capital.
— Não julgo pelas roupas, mas pelo caráter. — levantou os olhos azuis para Lishu, intensos, sinceros. — E só o fato de me receber nesta condição... quase nua... já mostra sua bondade.
Conduziu Maomao até um pequeno lavabo de madeira, onde havia uma bacia com água morna e toalhas limpas dobradas. Ao lado, repousavam roupas femininas bem cuidadas, de algodão azul-claro.
— Então não se preocupe. — Lishu acrescentou, pousando a roupa sobre uma cadeira — Que sejamos apenas mulheres, Maomao. — respondeu, com doçura. — Nada de títulos, nada de protocolos. Só duas mulheres dividindo uma casa.
No pequeno lavabo, Maomao retirava com delicadeza as roupas rasgadas e sujas que ainda vestia. A madeira rangia sob seus pés descalços, e a água da bacia refletia sua imagem trêmula, os olhos ainda cheios da adrenalina que não havia tido tempo de esvair.
Lishu permanecia a certa distância, respeitosa, mas sem sair de perto, deixara Guang sentado num tapetinho com blocos de madeira para brincar, e agora observava a princesa com um misto de curiosidade e ternura.
— Você parece exausta. — comentou Lishu, em tom baixo, quase confidencial. — Mas, mesmo assim, mantém esse ar... de força.
Maomao sorriu de canto, envergonhada, puxando a toalha para se cobrir enquanto trocava.
— Força? — repetiu, um pouco amarga. — Não sei se é isso... às vezes sinto que só continuo porque não há escolha.
Lishu cruzou os braços, apoiando-se no batente da porta, os olhos serenos.
— Isso já é força, Maomao, continuar, mesmo quando não há escolha.
O silêncio que se seguiu foi preenchido apenas pelo barulho da água enquanto Maomao lavava os braços e o rosto. A sensação da pele limpa parecia arrancar, ainda que minimamente, o peso da noite.
— Peço desculpas por trazer problemas para sua casa. — disse Maomao, ao vestir a túnica azul-clara que Lishu deixara para ela. — Não queria envolver você nem seu filho.
Lishu caminhou até ela, ajudando a ajeitar o cinto de tecido na cintura.
— Não peça desculpas. — murmurou, olhando-a nos olhos. — Minha vida é simples, mas isso não significa que não queira oferecer abrigo.
Maomao parou, observando a delicadeza da outra mulher, era raro sentir-se tratada não como princesa, não como peça em um jogo político, mas como alguém de carne e osso, frágil, com medo.
— Você não sabe... o quanto isso significa. — disse baixinho, a voz embargada.
Lishu sorriu, passando os dedos suavemente pelo ombro dela, num gesto quase fraternal.
— Sei sim. — respondeu com firmeza. — Porque eu também já precisei de abrigo um dia.
Maomao piscou, surpresa.
— Você?
Lishu assentiu, sentando-se perto da bacia, a voz agora carregada de lembranças.
— Antes de Basen, antes de nossa casa ou desta fazenda... houve tempos em que não havia ninguém para me proteger. Aprendi que, quando alguém bate à nossa porta pedindo refúgio, devemos dar o que podemos. Hoje é você, amanhã pode ser outra.
Maomao permaneceu em silêncio por um instante, o coração acelerado não pelo medo, mas por algo diferente — o reconhecimento. A sensação de que, ali, diante dela, havia alguém que compreendia, mesmo sem conhecer os detalhes.
— Lishu... — murmurou, sentando-se ao lado dela, a túnica já ajustada. — Então, a partir de hoje, você não é apenas a esposa de Basen. — um pequeno sorriso surgiu em seus lábios. — Quero que seja uma amiga...
O rosto de Lishu se iluminou de surpresa e alegria genuína, ela segurou a mão de Maomao entre as suas.
— Então somos amigas. — confirmou, num tom quase solene, como se fosse um pacto.
No fundo da sala, Guang bateu duas peças de madeira uma na outra e riu alto, quebrando a solenidade com sua inocência. Ambas riram junto, e pela primeira vez naquela noite, Maomao sentiu-se verdadeiramente acolhida.
Maomao acomodou-se na esteira improvisada da sala principal da fazenda, segurando a tigela fumegante de sopa de legumes e carne. Guang agitava-se nos braços de Lishu, resmungando baixinho, enquanto Jofu bicava distraído o chão, circulando de um lado para outro com passos pesados e barulho das asas ao bater. O pato parecia estar em permanente estado de alerta, mas também como se soubesse que ali ninguém poderia ameaçar Maomao.
— Sabe Maomao, é engraçado a sua visita aqui, porque eu tive muitas oportunidades de ver o Príncipe da Lua, mas o vi poucas vezes. — começou Lishu, com a voz calma, mas carregada de um certo peso de experiência. — Ele está constantemente ligado à família Ma, mas minha convivência direta com ele foi limitada. Quem me trouxe mais perto desse mundo foi Basen, eles cresceram juntos, e ele sempre me falou sobre os príncipes e princesas como se fossem irmãos com muito carinho.
Maomao assentiu, saboreando a sopa devagar, os olhos atentos.
— Entendo. Então, você os conhece mais por Basen do que pessoalmente?
— Exatamente. — respondeu Lishu, sorrindo levemente. — Jinshi sempre foi cercado de carinho, de proteção. Um príncipe, mas também alguém que aprendeu cedo a medir cada gesto, cada palavra. Jiang, por outro lado, sempre foi mais estratégico, observador, como um conselheiro nato ao lado do irmão. É fascinante vê-los, mesmo de longe e ainda mais engraçado de perto.
— Eles realmente possuem uma dinâmica cômica e complexa. — disse Maomao, olhando para Guang que finalmente se acalmara no colo dela, a pequena cabeça encostada em seu peito. — Posso segurá-lo um pouco?
Lishu assentiu, entregando o bebê e, para surpresa da princesa, o pequeno se acomodou de imediato, os olhos se fechando lentamente, relaxando completamente.
— Raro ele fazer isso com alguém que não seja eu ou Basen. — comentou Lishu, olhando com um misto de espanto e admiração. — Você tem jeito com crianças.
Maomao sorriu, acariciando delicadamente o rosto do bebê.
— É estranho… mas sinto uma paz segurando ele.
O silêncio entre elas foi preenchido pelo chiado da sopa e pelo barulho de Jofu, que se aproximava, bicando a borda da esteira, como se quisesse observar tudo de perto.
— E sobre o casamento… você e Basen, — começou Maomao, ainda segurando Guang com cuidado — como se conheceram?
Lishu riu suavemente, lembrando-se.
— Eu morava em um convento, Basen apareceu em uma missão para ajudar as freiras, desde aquele dia… nos apaixonamos. Casei por amor, Maomao, não por obrigação, nem por política, apenas por amor. — seu olhar mudou de animado para preocupado — Não consigo imaginar como se sente, acredito que para você seja difícil amar quando a aliança política fala mais alto que o próprio amor, mas não vai ser difícil de construir o amor ainda mais com Jinshi ao lado.
Maomao olhou para o pequeno bebê nos braços e depois para Lishu, com uma ponta de hesitação na voz.
— Eu… ainda não sei bem o que é isso. Estamos construindo algo compreende? Mas não sei se chamaria de amor ainda.
— É natural — disse Lishu, segurando suavemente a mão de Maomao. — Amar é complexo, Jinshi já te revelou um pouco de seu mundo antes de pedir sua mão?
Maomao sorriu, lembrando-se.
— Uma das poucas vezes que ele falou sobre isso… mencionou que se preparava para pedir uma garota de cabelos verdes e olhos azuis em casamento, mas parecia sempre temer ser rejeitado.
— Ele se importa profundamente com você, lembro-me bem de há 1 ano atrás ainda falar sobre a Princesa do Clã Kan e como estava procurando a melhor oportunidade para pedir em noivado, afinal ela é "assustadora", palavras dele em uma conversa com Basen e Jiang. — respondeu Lishu, com a voz carregada de sinceridade. — E Maomao, mesmo que o amor ainda esteja crescendo em seu coração, ele fará tudo para te proteger e cuidar de você.
Maomao riu baixinho, acariciando o rosto de Guang mais uma vez.
— Eu acredito que sim Lishu, no momento sinto apenas atração por ele… mas o amor… ainda é confuso para mim falar disso.
Lishu inclinou-se levemente, os olhos azuis claros refletindo a luz do fim de tarde que entrava pelas janelas da fazenda.
— Esse amor ainda dará frutos lindos, Maomao, seus filhos serão profundamente amados, Jinshi cresceu rodeado de carinho, e aparentemente você também. — ela pausou, deixando que cada palavra penetrasse na alma da princesa.
O semblante de Maomao se fechou, sombras de lembranças pesando em sua mente.
— Eu cresci cercada do amor dos meus pais e dos meus irmãos… mas não sei se quero filhos. — a voz tremeu por um instante. — Com dezesseis anos, ajudei minha mãe no parto dos meus irmãos gêmeos. Tive que fazer uma incisão na barriga dela… pensei que todos iriam morrer. Foi traumático.
Lishu respirou fundo, aproximando-se e tocando delicadamente a mão de Maomao, ainda pousada sobre a tigela de sopa.
— Cada parto é diferente, cada indivíduo é único. Eu também senti medo até Guang nascer, estava sozinha por assim dizer, só tive o apoio de minha sogra Taomei e de Basen que não saiu do meu lado nem por um instante, mas eu ainda queria o colo da minha mãe. — seus olhos ameaçaram chorar, mas forçou um sorriso voltando a encarar Maomao — O parto é doloroso, sim, mas… é como estar em um campo de batalha. Mesmo sem treinamento, mesmo com medo, lutamos pela nossa vida e pela deles.
Ela aproximou a mão da barriga de Maomao com cuidado, sem pressionar, apenas encostando, transmitindo conforto.
— Um dia, princesa, quando estiver grávida, seu coração sentirá paz. Não haverá dúvidas nem medo. Você amará e protegerá seu filho mais do que a si mesma, então não se preocupe, quando chegar a hora você saberá.
Maomao engoliu em seco, as lágrimas finalmente escapando, descendo lentamente pelo rosto.
— Suas palavras… são tão sinceras.
— Apenas vivi cedo. — respondeu Lishu, com um sorriso caloroso, firme e reconfortante. — Mas, se algum dia precisar, mesmo com todas as servas do palácio, estarei ao seu lado.
A vulnerabilidade de Maomao transbordou naquele instante, wla sentiu-se pequena, protegida, mas também estranhamente aliviada em deixar que alguém visse seu medo e suas inseguranças.
— Então… você fará parte do meu palácio, será uma de minhas damas de companhia sem dúvidas.
Lishu levantou-se, segurando cuidadosamente Guang, que já bocejava e se aconchegava nos braços da mãe novamente.
— Sim, princesa, estarei sempre aqui.
O olhar de Maomao encontrou o do bebê e depois se perdeu em Lishu.
Por alguns segundos, o mundo político, os príncipes, a corte, o trono… tudo parecia distante. Só existiam elas, o calor da sala, o cheiro das ervas que Lishu mantinha sempre frescas, e o barulho constante e cômico de Jofu, que corria por perto, bicando distraído o chão e ocasionalmente batendo as asas, como se fiscalizasse cada gesto da princesa.
Maomao permitiu-se um pequeno sorriso entre as lágrimas, sentiu-se acolhida, compreendida, como se toda a complexidade da vida e do amor pudesse, por alguns instantes, se reduzir à simplicidade daquele momento.
Ela ficou alguns instantes na soleira da porta logo depois que Lishu se despediu para dormir com Guang, observando a movimentação da fazenda. Jofu corria de um lado para outro, batendo as asas e bicando o chão, enquanto o vento trazia o cheiro do bosque. Ela ainda não se sentia pronta para o amor, para a política que cercava seu marido ou para a maternidade… mas a voz de Lishu ecoava em sua mente:
"Você será uma mãe maravilhosa no dia em que se permitir vivenciar a maternidade do modo que seu coração deixar."
E naquele momento, mesmo entre o medo e a insegurança, Maomao sentiu-se, pela primeira vez, verdadeiramente compreendida por alguém.
[. . .]
Os dias que se seguiram transcorriam com uma calma quase irreal, como se o tempo ali tivesse sua própria cadência. Jofu não a deixava um instante sequer em paz — bicava-lhe os pés com insistência, como se cada dedo fosse uma tentação irresistível, roubava pedaços de comida da tigela e depois os mastigava com uma satisfação quase teatral, ou simplesmente sentava-se diante dela, olhos redondos e atentos, impondo uma autoridade silenciosa, como se fosse o verdadeiro guardião daquele pequeno universo.
Maomao, mesmo carregando tensões que não ousava revelar, sentia-se estranhamente segura naquele canto escondido do mundo, caminhava pelo bosque com Guang nos braços, catalogando plantas com um cuidado meticuloso, os dedos percorrendo folhas e pétalas, sentindo a textura e o cheiro da vida pulsando ali. Entre uma anotação e outra, trocava provocações leves e risadas infantis com Guang, e ria como não se lembrava de ter feito há anos, uma risada pura, que parecia dissipar, ainda que por instantes, a sombra das conspirações que rondavam o império.
Jinshi e Jiang estavam em perigo; o murmúrio das intrigas se espalhava como vento frio pelo império, e ela sabia que a ameaça era real. Mas naquele refúgio, Maomao descobria outra face da vida: os pequenos gestos de cuidado, a amizade sincera, a sensação reconfortante de família e uma estranha percepção de que, talvez, ela não estivesse tão sozinha nesse vasto e perigoso mundo
[. . .]
A noite se estendia sobre a fazenda como um véu silencioso, tingindo os campos de azul profundo e cinza, e a lua refletia nos campos úmidos com uma luz prateada quase etérea. Maomao sentia o frio da grama sob os pés descalços e o aroma da terra misturado à brisa suave, cada passo a fazia consciente de si mesma, do momento, do mundo que parecia ter parado.
Então, algo saltou contra sua perna, e ela arfou de surpresa.
— Jofu?! — exclamou, o coração disparando por uma mistura de susto e ternura.
O pato branco estava ali, bicando sua manga com insistência, olhos atentos, como se tivesse finalmente encontrado o lar que procurava. Maomao se abaixou, abraçando-o levemente, sentindo o calor inesperado do pequeno corpo contra o seu.
Do outro lado do jardim, passos firmes quebraram a serenidade, Basen surgiu, os olhos arregalados ao ver o pato aninhado em Maomao.
— Mas… desde quando ele fica assim com alguém? — murmurou, boquiaberto. — Ele nunca se grudou em ninguém!
Maomao sorriu timidamente, sentindo uma pontada de orgulho e surpresa pelo vínculo inesperado, Jofu se acomodava melhor, o peito dele pressionando-se contra o seu corpo de forma quase protetora. Um calor doce subiu pelo peito da princesa, misturando-se ao medo que ainda morava no fundo de sua mente, lembranças da ameaça recente.
— Parece que encontrou alguém à altura dele, Basen — disse, a voz baixa, quase um sussurro que só ela e Jofu compartilhavam. — E, sinceramente… não me importo.
Basen aproximou-se, seu semblante se tornando mais sério quando Maomao perguntou sobre a Residência do Clã Shi.
— E quanto à Residência do Clã Shi? Conseguiu descobrir tudo?
A respiração dela ficou mais pesada, cada palavra trazia de volta a tensão, o perigo que quase a tirou do mundo, mas havia algo mais agora: a necessidade de proteger e ser protegida.
— Sim — disse, firme, embora o coração tremesse. —Maomao… preciso que me ouça. Houve uma tentativa de assassinato, contra Jinshi nesse tempo em que esteve fora, não foi apenas você na tentativa da banheira.
O corpo dela se enrijeceu, cada músculo pronto para reagir, e a seriedade de Basen contrastava com a leveza do momento que acabara de se formar entre Maomao e Jofu.
— Então o perigo ainda não passou?
— Não — respondeu ele, engolindo em seco para não deixar que o medo transbordasse. — Os culpados eram os chefes dos Clãs Gao e Wen, com a ajuda de uma serva. Já foram eliminados, os príncipes possuem o conhecimento do que aconteceu e quero que a princesa saiba que o príncipe Jinshi...
Nesse instante, passos rápidos cortaram o silêncio da noite, Jinshi surgiu, o rosto iluminado pela luz prateada da lua, correndo até Maomao. Quando a envolveu em seus braços, o mundo dela se comprimiu em apenas aquele instante. O medo se dissolveu, o alívio a queimou como fogo suave e cada batida de coração dele transmitiu uma promessa silenciosa de proteção.
— Maomao! — disse ele, a voz embargada, cada palavra carregada de uma mistura de medo, preocupação e ternura que ela nunca tinha ouvido antes.
Ela se apoiou nele, sentindo cada músculo, cada batida do coração dele, cada respiração. Um sentimento profundo e silencioso brotou dentro dela: pertencimento. Não havia apenas alívio; havia intimidade, confiança e uma certeza de que, mesmo depois de tudo, havia alguém que a protegeria sem hesitar.
Jofu, incapaz de ignorar a presença do príncipe, bicou os pés dele com insistência, demonstrando ciúmes e vigilância, Maomao riu, a tensão se dissolvendo completamente.
— Até o Jofu está com ciúmes, — disse, a voz cheia de diversão e ternura. — Parece que você vai ter que competir com ele para me levar embora.
Jinshi soltou uma risada baixa, apertando-a mais contra si, a respiração dele quente contra a sua orelha.
— Pois tudo bem… ninguém vai me afastar de você de novo, nem mesmo um pato. — disse sério, a medida que um sorriso leve surgia em seus lábios — Esses últimos dias foram uma tortura sem você ao meu lado, tive tanto medo de te perder.
— Estou bem Zui, estamos juntos agora. — Maomao sorriu encostando a ponta de seu nariz com o dele.
Enquanto Basen recuava, deixando o casal sozinho, a princesa sentiu o mundo se estreitar àqueles poucos metros de grama e lua. O cheiro da terra, o som da brisa, o peso leve de Jofu e o calor firme de Jinshi formavam um círculo invisível de segurança e afeto.
Ela fechou os olhos por um momento, permitindo-se sentir cada detalhe: a força dele, a proteção silenciosa, o silêncio confortável e o amor contido em cada gesto. O medo ainda existia, mas parecia distante, quase irrelevante diante da sensação de ser cuidada, respeitada e necessária.
Jofu grasnou baixo, pousado firme em sua perna, Maomao riu baixinho, sentindo o coração pulsar em sintonia com Jinshi.
Então Jinshi inclinou-se lentamente, como se cada movimento tivesse sido calculado pelo coração. Maomao sentiu a mão dele na própria face, suave, segura, como se nada pudesse machucá-la ali. Olhos nos olhos, eles se encararam em um instante que parecia eterno, cheio de alívio, medo contido, desejo e carinho profundo.
E, finalmente, Jinshi tocou os lábios dela com os seus, o beijo começou suave, tímido, mas logo se aprofundou, carregado de tudo o que não havia sido dito em palavras: proteção, gratidão, ternura, alívio e uma promessa silenciosa de que, juntos, poderiam enfrentar qualquer sombra do mundo lá fora.
Maomao fechou os olhos, deixando-se levar, sentindo Jofu se acomodar ainda mais em seu colo como se abençoasse aquele momento. O vento parecia sussurrar ao redor, a lua iluminando cada detalhe, e o jardim tornou-se um universo inteiro só deles, onde não existia medo, apenas a certeza do agora e do que sentiam um pelo outro.
Chapter 15: Pequenos Gestos
Notes:
Confesso que foi um dos capítulos mais interessantes que eu já escrevi, eu me senti extremamente feliz escrevendo aff amei cada parte
Capítulo dedicado a Cher, se divirta menina :))))
Boa leitura para todos
Chapter Text
O sol já descia preguiçoso no horizonte, dourando os campos ao redor da fazenda, o ar cheirava a palha seca e terra fresca, e havia um calor leve que anunciava o fim do verão.
Maomao segurava Guang nos braços por um instante, aninhando o bebê contra o peito, como se não quisesse soltar. Os olhinhos sonolentos da criança a fitavam sem compreender a despedida, e isso a fez sorrir de leve, um sorriso raro, íntimo, quase materno.
Lady Lishu, vestia uma roupa simples, porém impecável, a observava com a doçura de sempre, Basen permanecia ao lado, discreto, mas atento, como uma muralha de carne e osso que vigiava cada detalhe.
— Assim que eu me organizar no palácio... — Maomao começou, a voz calma, mas carregada de decisão — pedirei que Basen a leve até lá. Gostaria de oficializá-la como minha dama de companhia, Lady Lishu. Você e o pequeno Guang ficarão comigo por lá e próximos de Basen
Lishu arregalou os olhos, surpresa, um rubor leve subiu-lhe às faces, enquanto Basen erguia as sobrancelhas, claramente pego desprevenido.
— Maomao... — Lishu murmurou, quase sem fôlego, como se não acreditasse na proposta.
Jinshi, que observava tudo um passo atrás, deixou escapar um sorriso contido, mas radiante, como se o coração dele também tivesse se aquecido diante daquela escolha, o olhar dele se pousou em Maomao, orgulhoso, satisfeito.
— É uma excelente decisão — comentou, a voz grave mas serena, os olhos brilhando em direção à esposa. — A melhor forma de manter todos seguros... e próximos.
Maomao assentiu, firme, como se não fosse apenas uma decisão prática, mas também um gesto de confiança e afeto para com Lishu.
Basen, entretanto, limpou a garganta, tentando disfarçar a emoção que lhe percorria o semblante severo.
— E... o pato? Onde ele fica? — perguntou, desviando o olhar, como se fosse algo tolo de se perguntar, mas que no fundo lhe importava.
Jofu, como se entendesse, grasnou alto, erguendo as asas, e se pôs a ciscar furiosamente ao redor dos pés de Maomao.
— Ele irá também. — disse ela, com simplicidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo. — Jofu pode ir ao palácio junto de Lady Lishu e do pequeno Guang, afinal ele também faz parte de sua família.
Ao ouvir isso, o pato bicou a barra da saia de Maomao, satisfeito, Jinshi, com um meio sorriso enviesado, se inclinou e murmurou baixo, apenas para o animal:
— Mas desta vez... eu é que ganhei, e não você. — murmurou Jinshi, os olhos semicerrados num brilho quase infantil, como se saboreasse uma pequena vitória.
Como se entendesse cada palavra, Jofu ergueu o pescoço e, com um grasnado curto e decidido, avançou contra ele. As bicadas foram rápidas, certeiras, obrigando Jinshi a recuar alguns passos, levantando as mangas do traje para se proteger. Ainda assim, o príncipe não conseguia conter o riso baixo que lhe escapava, vibrando no peito como um eco alegre.
Basen, que tentava manter a postura rígida, mas não resistiu e soltou uma risada contida, desviando o olhar como quem teme perder a compostura diante de uma cena tão absurda. Até mesmo Lady Lishu, discreta e sempre cuidadosa, levou a mão aos lábios, tentando disfarçar o riso suave que lhe escapava.
O ar parecia mais leve, tingido de um calor inesperado. Entre o grasnar indignado do pato, os risos abafados e as trocas de olhares cúmplices, o momento ficou gravado como uma despedida singular — íntima e quase familiar.
Foi assim que se separaram naquele dia: com um príncipe recuando diante de um pato teimoso, um guarda surpreso em relaxar a rigidez, uma dama de olhos brilhando de ternura, e Maomao guardando dentro de si a estranha sensação de que, entre risos e bicadas, havia nascido a promessa silenciosa de reencontros inevitáveis no palácio.
[. . .]
A viagem de volta começou ao cair da noite, as lanternas balançavam suavemente no interior da carruagem, lançando reflexos dourados sobre a madeira. Maomao, exausta, adormeceu com a cabeça apoiada no ombro de Jinshi.
Ele permaneceu imóvel, como se temesse despertá-la. Observava-lhe os traços delicados, a respiração lenta que lhe aquecia o ombro, o peso leve mas firme contra si.
Dentro de sua mente, pensamentos ocilavam entre alívio e perplexidade. O "Plano" havia mudado muito mais do que ele previra. Não era apenas sobre proteger Maomao, era sobre deixar-se proteger por ela também. Ela agora se colocava como parceira, decidindo, planejando, acolhendo outras pessoas para formar uma rede de confiança.
E Jinshi, pela primeira vez em anos, sentia que não estava mais sozinho nesse fardo. O coração, antes apertado por incertezas, parecia expandir-se a cada suspiro tranquilo dela.
— Você realmente me desarma, Maomao... — murmurou, quase inaudível, deixando os dedos tocarem de leve os cachos soltos dela.
A carruagem seguiu em frente, firme, como quem retorna ao inevitável.
Quando finalmente chegaram aos portões do palácio, as tochas iluminavam a noite, o ar já era outro, carregado de protocolo, de silêncios perigosos, de máscaras que se erguem no instante em que se pisa naquelas pedras.
Lá estavam elas, esperando, a Imperatriz Ah-duo, com seu semblante suave e educado. E, a poucos passos ao lado, Lady Gyokuyou, radiante em sua postura impecável, mas com olhos que avaliavam cada detalhe com precisão de lâmina.
O contraste entre o calor da viagem e a frieza calculada do palácio fez Jinshi prender o ar por um instante. O vento da estrada ainda parecia preso à sua pele, misturado ao pó do caminho, e ao cruzar os portões o peso sufocante das paredes carregadas de incenso caiu sobre seus ombros. O silêncio dos corredores era quase cortante, feito de olhares invisíveis e da espera constante que o palácio sempre impunha.
Nos braços dele, Maomao permanecia adormecida, a respiração profunda e irregular, como se ainda lutasse com os resquícios da vigília. O corpo dela se moldava ao dele sem resistência, os dedos enfaixados pendendo num gesto frágil. Ela ergueu o queixo por um instante, como se o subconsciente a lembrasse de manter a guarda, mas cedeu ao peso do cansaço. No íntimo, sabia que o jogo de máscaras recomeçaria ali, que cada passo dentro daquele labirinto de intrigas a obrigaria a ser cautelosa, mas, por agora, Maomao não se apoiava no palácio — apoiava-se em Jinshi.
À frente, três figuras femininas aguardavam em meio à penumbra dourada das lanternas. Entre elas, Jin-Ye surgiu primeiro, apressada, quase tropeçando no tecido do hanfu amarelo que vestia às pressas. O traje lhe caía desalinhado, denunciando a correria; o sorriso tímido e envergonhado não era suficiente para disfarçar o rubor em suas bochechas. Os dedos ágeis tentavam domar os fios rebeldes de cabelo, enquanto a outra mão segurava um pequeno buquê de flores, colhidas sem delicadeza, mas oferecidas como desculpa e saudação.
Talvez fosse ironia do destino, pensava Jin-Ye.
Se não tivesse provocado tanto e descartado mestre Lahan sem cerimônia, talvez não estivesse agora naquela situação, com chupões ainda visíveis em sua pele delicada e o cabelo marcado pela noite mal dormida. Entre o embaraço e o orgulho, lá estava ela — esperando o irmão e sua amiga Maomao, consciente de que ambos a enxergariam muito além das flores que segurava.
— Admiro que esteja de pé depois do dia agitado. — comentou Gyokuyou, aproximando-se com graça e um olhar que misturava carinho e reprovação. Com as mãos finas, arrumou o penteado da "filha", mas os olhos revelavam a severidade da mãe que enxerga mais do que se mostra.
Ah-Duo, por sua vez, observava com aquele humor sereno que sempre guardava para os momentos em que não podia intervir.
— Você poderia ter ido se deitar. — disse num tom baixo, quase provocador. — Se fosse recebê-los pela manhã, ninguém estranharia.
Jin-Ye suspirou, resignada, mas sustentou o sorriso como uma armadura.
— Dormir seria um desperdício, quando se trata de Jinshi e Maomao voltando para casa.
Ah-Duo arqueou a sobrancelha, incisiva:
— Estranho... não vi o mesmo entusiasmo quando Jiang retornou. Ele também é seu irmão.
Um rubor vivo tingiu ainda mais o rosto de Jin-Ye, mas a jovem não se encolheu.
— Jiang esgota a paciência que ainda me resta. Já Jinshi... — olhou de relance para o irmão que se aproximava — ah, Jinshi me diverte, porque é ele quem esgota a paciência que Maomao não tem.
As três trocaram risos cúmplices, abafados pelo eco frio do palácio, mas logo se recompuseram quando Jinshi surgiu, imponente e cansado, trazendo Maomao nos braços como se fosse o tesouro mais frágil. O corpo dela, exausto, repousava contra o peito dele, os cabelos verdes desgrenhados espalhando-se em ondas.
— Pobrezinha... — murmurou Gyokuyou, inclinando-se para afastar uma mecha dos cabelos dela com delicadeza.
Ah-Duo, no entanto, estreitou o olhar, a preocupação transbordava em sua voz, embora tentasse mantê-la serena:
— Ela está bem? A mão dela está enfaixada... meu filho, o que aconteceu?
Jinshi parou diante delas, o semblante endurecido, mas os olhos traziam algo mais profundo, quase sombrio. Não poderia mentir. Não queria alarmar, mas também não carregava forças para dourar a realidade.
— Sofremos algumas tentativas de assassinato. — respondeu, a voz baixa, carregada de um frio que não era dele, mas do palácio que o obrigava a sempre medir as palavras.
Ah-Duo levou as mãos à boca num gesto de horror, os olhos varrendo o corpo de Maomao como se buscassem marcas ocultas. Em seguida, voltou-se para o filho, inquieta, verificando cada detalhe como se pudesse encontrar ferimentos escondidos. Gyokuyou, mais contida, caminhou ao redor de Jinshi, em silêncio, os olhos percorrendo-o em busca de qualquer sinal de dor.
— Apenas Maomao foi ferida, mas não de forma grave. — completou Jinshi, suavizando o tom. — Ela precisa apenas de descanso. Foram dias pesados... perigosos demais, amanhã, quando despertar, poderão falar com ela.
O silêncio pesou. Gyokuyou e Ah-Duo se entreolharam, partilhando a mesma angústia muda, o medo que só mães sabem esconder por trás da compostura.
Jinshi então voltou-se para a irmã:
— Jin-Ye, poderia pedir às servas que preparem o Pavilhão da Lua?
A princesa avançou, pousando a mão no braço dele com um gesto firme, porém fraterno, o olhar dela, límpido, quase desarmado, trazia uma verdade desconfortável:
— Isso não será possível, meu irmão. Antes da viagem, Maomao dispensou todas as servas. Ela não confiava em ninguém.
Os olhos de Jin-Ye suavizaram, e sua voz ganhou uma nota quase cúmplice:
— Mas, se serve de consolo... por amor a Maomao, não você, preparei o aposento junto da vovó Suirei. Incensos, roupas limpas, a suíte já espera por vocês. Vá em paz.
Jinshi não conteve um breve riso abafado, arqueando a sobrancelha, piscando para a irmã em agradecimento silencioso.
Seguiram lado a lado pelos corredores, as lanternas projetando sombras longas nas paredes. O som dos passos ecoava sob o silêncio pesado do palácio, mas, entre tudo, o que prendia a atenção dele era o ronco leve de Maomao, aninhada em seus braços. Um som tão simples, tão humano, que por um instante o arrancava de ameaças e conspirações.
— E como foram essas semanas sem Jiang, sem Maomao... e sem mim? — murmurou Jinshi, mais como um desabafo do que uma pergunta.
Jin-Ye suspirou, os lábios curvados num sorriso misterioso, quase provocador:
— Ah... nada demais, Jinshi. Apenas o palácio, escondendo segredos atrás de seus muros frios.
[. . .]
Algumas semanas antes...
O ar dentro do escritório imperial era pesado, impregnado com o cheiro de tinta, papel envelhecido e o silêncio tenso que havia se instalado entre a princesa Jin-Ye e o mestre Lahan. Cinco dias em que a atmosfera do local se transformara de um local de estudo em um campo de batalha silencioso, onde cada olhar, cada palavra não dita, era uma investida calculada.
Jin-Ye percorria as prateleiras altas, seus dedos deslizando com deliberada lentidão sobre as lombadas de couro dos livros. Ela parou diante de um volume pesado, puxando-o para si com um suspiro que soou mais como um desafio.
— "Tratados de Guerra do Período dos Reinos Combatentes"... Que leitura surpreendentemente monótona para uma mente supostamente tão brilhante. — comentou ela, a voz como um mel suave e venenoso. — Não cansa de revisitar os mesmos campos de batalha empoeirados, Mestre Lahan? O mundo é vasto e cheio de mistérios muito mais... cativantes.
Lahan nem sequer ergueu os olhos do mapa que estudava, espalhado sobre a grande mesa de trabalho, sua pena continuou a riscar o pergaminho com traços precisos e inflexíveis.
— Alguns de nós, Alteza, preocupam-se com a estabilidade do império e a arte de preservá-lo. Não temos o luxo de nos perder em fantasias sobre terras distantes e inexistentes. — sua voz era lisa, um lago gelado, mas um músculo pulsava em sua mandíbula.
— Fantasias? — Jin-Ye riu, um som baixo e provocante, ela se aproximou da mesa, a ampla manga de seu hanfu roçando no braço dele, ele parou de escrever. — O que conheço são histórias. O que você estuda são relatos de mortes. Diga-me, qual de nós realmente vive numa fantasia? A que celebra a vida ou a que venera a morte?
Ele finalmente a fitou, seus olhos estreitos por trás das lunetas faiscando de irritação e algo mais, algo mais profundo e contido.
— A vida deste império foi construída sobre essas "mortes", como tão poeticamente chama. A sua segurança, o seu conforto, o seu privilégio de folhear livros de viagens... tudo isso é garantido pela estratégia que você desdenha.
— Talvez. — ela sussurrou, inclinando-se para frente, apoiando as mãos na mesa, de modo que o decote de seu hanfu se abria ligeiramente, oferecendo um vislumbre de sombra e pele e Lahan não desviou o olhar. — Mas e a sua segurança, Mestre Lahan? Quem a garante?
O ar entre eles pareceu ficar eletrizado, ele segurou seu olhar por um momento longo e pesado, até que, com um súbito movimento, pegou outro pergaminho.
— Preciso terminar este relatório para os Conselheiros do Imperador, suas provocações infantis são um impedimento.
A palavra foi dita com dureza, mas soou como uma admissão, Jin-Ye sorriu, uma expressão de felina satisfação, e recuou.
Nos dias que se seguiram, a estratégia dela mudou.
A provocação verbal deu lugar a um silêncio gelado, ela passava por ele nos corredores serpenteantes que ligavam os pavilhões, seu perfume de amêndoa e flor de lótus pairando no ar como um fantasma, sem um palavra, sem um olhar. Nas refeições partilhadas no salão lateral, seus olhos atravessavam-no como se fosse de vidro. A indiferença era uma arma mais afiada que qualquer insulto, e Lahan, mestre de táticas, sentia-se inexplicavelmente desarmado. Sua paciência, famosa na corte, rachava, ele a observava, seu próprio desejo não confessado transformando-se em uma frustração furiosa.
A tensão tornou-se insustentável, um vaso prestes a estilhaçar.
Na décima noite, sob um céu carregado de nuvens que escondiam a lua, ele a encontrou no pequeno pavilhão circular conhecido como O Refúgio do Corvo, escondido atrás de uma cortina de salgueiros-chorões, longe dos olhares dos guardas e dos eunucos. Ela estava encostada na balaustrada de madeira escura, fingindo contemplar os lírios no lago abaixo.
— O que você está fazendo aqui? — a voz de Lahan ecoou áspera na quietude. — Este pavilhão é restrito.
"Um lugar que o imperador reservou para a minha estadia... e, ainda assim, é a filha dele quem aparece diante de mim, caminhando com liberdade onde deveria haver limites. Que ironia, Lahan... A mulher que te arranca a paciência, que parece viver para testar tua sanidade, é a mesma que teu corpo insiste em querer. Como se fosse a última mulher no mundo, a única capaz de despertar em ti essa mistura perigosa de fúria e desejo. Um absurdo... e, mesmo assim, impossível de resistir."
Jin-Ye se virou lentamente, a pouca luz das lanternas refletida no lago suavizava seus traços, mas não conseguia apagar a centelha desafiadora em seus olhos escarlates, a noite envolvia o pavilhão como um véu cúmplice, o silêncio apenas quebrado pelo som distante da água contra as pedras.
— Estou proibida de apreciar a noite? — sua voz saiu baixa, melodiosa, mas impregnada de ironia. — Ou o Mestre teme que eu veja algo que não devo? Quem sabe os segredos militares estejam escondidos entre as folhas desses salgueiros?
Lahan respirou fundo, controlando a impaciência que queimava em sua garganta. Deu um passo à frente, o espaço era pequeno, íntimo, cada movimento dele parecia reduzir o ar entre os dois.
— Pare com isso. — ordenou, a voz firme, ainda que tensa. — Esse jogo... acabou.
Ela arqueou as sobrancelhas, erguendo o queixo em desafio, como uma chama que se recusa a se apagar.
— Que jogo? — sussurrou, seus lábios desenhando um sorriso quase imperceptível. — Eu não estou jogando nada. São vocês, estrategistas, que enxergam jogos em tudo. Até mesmo na simples... presença de uma mulher.
Lahan não pensou. Pegou o braço dela. Não com brutalidade, mas com uma firmeza que a fez prender a respiração, seus dedos ardiam através da seda fina, transmitindo uma energia que nenhum dos dois ousava nomear.
— Você sabe exatamente o que faz. — sua voz era um fio de aço contido. — Cada olhar. Cada palavra com duplo sentido. Cada suspiro calculado. Você me provoca há semanas.
O coração dela acelerou, mas não cedeu; ao contrário, inclinou-se mais para perto, o rosto a um sopro do dele.
— E se eu disser que não é provocação? — murmurou, o hálito quente roçando a pele de seu queixo. — E se eu disser que é apenas... curiosidade?
Ela desviou apenas o suficiente para que sua boca quase tocasse a dele ao pronunciar cada sílaba.
— Como você mesmo disse, gênio, também sei ser insistente... e ignorante, como meus irmãos. Quero conhecer verdadeiramente o novo mestre. Apenas isso, Lahan.
Ele fechou os olhos por um instante, como se tentasse se conter, mas a proximidade, o perfume dela, a ousadia em cada palavra, corroíam as últimas barreiras que havia erguido. Quando abriu os olhos novamente, estavam escuros, turvos de algo mais profundo que raiva.
— Você não sabe o que está pedindo. — murmurou, quase um rosnado, a voz rouca, carregada de tensão.
Jin-Ye sorriu de leve, aquele sorriso que incendiava tudo ao redor.
— Então mostre-me. — sua voz era um desafio doce, perigoso. — Mostre-me o que um estrategista faz quando seu perfeito controle finalmente... ruí.
Foi o último fio de resistência a se romper.
Com um som gutural, ele a puxou para si, e seus lábios se encontraram num beijo áspero e faminto. Não tinha nada da delicadeza cortês da corte, era uma explosão de semanas de tensão reprimida, raiva, desejo e jogo de poder. Suas mãos se enterraram nos seus cabelos violeta, desalojando os delicados grampos, enquanto os braços dele a envolveram, puxando-a contra seu corpo duro, contra a mesa de trabalho desordenada. Um vaso de porcelana caiu e se espatifou no chão com um ruído abafado, irrelevante.
O beijo se aprofundou, tornando-se menos sobre conflito e mais sobre descoberta, a língua dele encontrou a dela, e o sabor era de chá verde e algo inerentemente dele. Jin-Ye se agarrou aos ombros dele, suas unidas cavando no tecido de suas vestes, puxando-o mais para perto, querendo eliminar qualquer vestígio de espaço entre eles. Quando finalmente se separaram para respirar, suas respirações eram ofegantes e irregulares, ecoando no silêncio do pavilhão isolado.
— Então... — ela sussurrou, a respiração ainda irregular, os lábios inchados e vermelhos pelo contato, a voz embriagada por uma vitória trêmula — o gelo realmente... pode derreter.
Lahan a fitava em silêncio, o peito arfando como se tivesse acabado de atravessar uma batalha. Os óculos estavam levemente embaçados, inclinados no nariz, denunciando a quebra de sua impecável composição. Ainda a segurava pelo braço, não com a dureza de antes, mas como se precisasse daquilo para certificar-se de que ela não evaporaria no ar como uma miragem.
"O que foi que eu fiz...? Por que não consegui recuar quando deveria? Uma fraqueza, justo agora. E diante dela... dessa mulher que transforma cada provocação em desejo, cada olhar em um campo de guerra."
— Isto é um erro perigoso — ele murmurou, a voz grave, mas sem a convicção que costumava marcar suas ordens. A mão dele, rebelde contra sua própria razão, subiu lentamente até a face dela, roçando a pele quente e delicada. O polegar percorreu a linha de sua mandíbula, como se quisesse memorizar o contorno. — Não podemos continuar assim, princesa...
O sorriso dela floresceu lento, insolente, como quem saboreia uma vitória conquistada a cada risco.
— Ah... claro que podemos, mestre. — seus olhos brilharam num convite quase cruel. — Todos os melhores mapas levam a territórios perigosos.
Antes que ele pudesse retrucar, ela capturou sua mão em um gesto repentino, trazendo-a contra seus lábios. Um beijo quente e deliberado queimou a palma dele, e Lahan sentiu o mundo ao redor se contrair até aquele ponto de contato.
— E eu cansei de mapas. — continuou ela, a voz baixa, carregada de desafio. — Quero explorar seu território... algo que aparentemente agora me pertence.
Ela deslizou o dedo indicador pela linha firme de seu queixo, como quem marca território em um general que finalmente baixou as armas. A proximidade era devastadora. O cheiro suave da seda dela, o calor de sua pele, a centelha indomável no olhar.
"Território... ela me chama de território. Quando, na verdade, é ela quem me ocupa. Cada pensamento, cada vigília, cada sombra do meu desejo está cercada por Jin-Ye. E ainda assim... não consigo soltá-la."
Ele a puxou para outro beijo, mais lento agora, mais intencional, suas mãos percorreram a curva de sua cintura, as costas, explorando com uma urgência contida. Ele a levou para um canto mais escuro do pavilhão, onde a sombra dos pesados drapeados de brocado os escondia completamente. Ali, contra a parede fria de laca vermelha, seus beijos se tornaram mais ousados, mais íntimos. Suas mãos se aventuraram sob as camadas de seda, encontrando a pele quente de sua cintura, e o gemido abafado que ela deixou escapar foi mais eloquente que qualquer provocação.
Eles sabiam dos riscos. Ela, uma princesa filha do Imperador; ele, um mestre estrategista filho de Lakan chefe do Clã Kan e irmão de Maomao a futura Imperatriz e até então amiga de Jin-Ye. Era uma linha que não deveriam cruzar, mas o toque, o sabor, a tensão que finalmente se rompia era um vício muito mais forte do que a razão.
Os passos da patrulha ecoaram no caminho de pedra lá fora, um som metálico e rítmico que se aproximou e depois se afastou, mergulhando o pavilhão novamente em uma quietude carregada. O ruído, porém, não os separou, foi como se o perigo iminente tivesse agido como um combustível, alimentando a chama que eles mal conseguiam controlar.
Quando o último eco dos passos se perdeu, Lahan não recuou, seu corpo, tenso como a corda de um arco, ainda pressionava o de Jin-Ye contra a parede de laca fria. A respiração ofegante de ambos era o único som no mundo. Na penumbra, seus cabelos negros como ébano se misturavam aos fios violeta dela, uma combinação proibida e hipnótica. Seus olhos azuis, geralmente tão calculistas, estavam turvos, dilatados por um desejo que finalmente superava a lógica.
Jin-Ye não esperou.
A curiosidade e a vontade a consumiam, ela fechou a pequena distância que restava, capturando seus lábios em outro beijo, mas desta vez suas mãos foram mais ousadas. Elas desceram do seu pescoço, sobre os ombros tensos, e começaram a trabalhar os fechos intricados que mantinha suas vestes fechadas.
— Jin-Ye... — ele rosnou contra sua boca, o aviso um sussurro áspero e quebrado. Sua própria mão, no entanto, subiu para envolver a nuca dela, puxando-a mais profundamente para o beijo, enquanto a outra descia para a curva de seu quadril, puxando-a contra a evidência dura de seu desejo. — Isto é... loucura. Você é uma princesa...
— Sou uma mulher. — ela corrigiu, ofegante, conseguindo desfazer o primeiro fecho. Suas vestes se abriram um pouco, revelando a túnica interior de linho simples e a pele quente por baixo. — E você é o homem que eu quero. Esqueça títulos. Esqueça a corte. Por esta noite, existem apenas nós dois aqui, você quer isso tanto quanto eu e ouso dizer que essa é a versão mais sincera que verá de mim.
A racionalidade de Lahan lutava uma batalha perdida. Cada palavra dela era um prego no caixão de sua resistência. Seus olhos vermelhos, como vinho tinto sob a luz fraca, fitavam-no com uma intensidade que o incinerava por dentro. Ele a virou, suavemente mas com firmeza, trocando suas posições, prendendo suas mãos contra a parede acima de sua cabeça. O movimento foi dominador, mas seu toque foi incrivelmente suave.
— Você não sabe no que está se metendo. — sussurrou ele, sua boca percorrendo a linha de sua jugular, sentindo o pulso acelerado martelar contra seus lábios. Seu hálito quente fez ela estremecer, um arrepio percorrendo toda a sua espinha.
— Então me mostre e pare de falar. — ela ordenou, arqueando as costas contra ele, um movimento instintivo e provocante que arrancou um gemido baixo dele.
Ele soltou suas mãos e suas próprias mãos desceram, finalmente, para abrir completamente suas vestes. A seda violeta deslizou de seus ombros como água, formando uma poça aos seus pés. Ele a beijou então, não com a fúria inicial, mas com uma devoção lenta e ardente que a fez sentir-se mais vulnerável e mais poderosa do que nunca. Sua boca desceu de seus lábios para seu pescoço, para a curva de seu ombro, para o topo de seus seios, envoltos apenas no fino linho de suas roupas íntimas.
— Lahan... — ela gemeu seu nome, e o som pareceu eletrificá-lo.
Ele a levou para o chão, para o canto mais escuro, onde os pesados tapetes amorteceram sua queda. As vestes dele juntaram-se às dela, uma confusão de tecidos caros no chão frio. Sua pele, finalmente contra a dele, era uma revelação, ele era mais musculoso do que suas roupas sugeriam, seu corpo uma paisagem de cicatrizes antigas e tensão presente. Ela explorou cada centímetro com as mãos e a boca, tão curiosa e insaciável quanto era com seus mapas, mapeando o território desconhecido dele.
Ele a reverenciou com toques e beijos, cada um mais íntimo que o anterior, quando sua mão finalmente deslizou entre suas pernas, encontrando o calor úmido e a receptividade lá, ela gritou baixinho, enterrando o rosto em seu ombro para abafar o som. Seus olhos vermelhos se fecharam, e ela se entregou à sensação, a essa estranha e maravilhosa alquimia de prazer e dor que ele desencadeava nela.
— Você me pertence agora, tanto quanto eu pertenço a você. — ele sussurrou, uma afirmação rouca e possessiva em seu ouvido, enquanto se posicionava sobre ela. Era uma pergunta e uma ordem ao mesmo tempo.
— Si. — foi tudo que ela conseguiu dizer, envolvendo-o com as pernas, puxando-o para si.
A penetração foi lenta, um preenchimento gradual que fez ambos suspirarem, ele parou, deixando-a se acostumar com a sensação, com a intimidade avassaladora. O rosto dele estava tenso com o esforço de se controlar, seus olhos azuis queimando no escuro, fixos nos dela.
— Você está... bem? — a voz dele, usualmente tão firme, trêmula.
Ela respondeu com um movimento dos quadris, um convite silencioso e ousado que fez seus olhos se revirarem de prazer. Foi o sinal que ele precisava, ele começou a se mover, inicialmente com uma cadência lenta e profunda, mas que rapidamente se transformou em um ritmo mais urgente e faminto. Cada embate era um ponto final em uma frase não dita, cada gemido abafado um segredo compartilhado.
Jin-Ye se abandonou à maré de sensações, a dor inicial deu lugar a um prazer crescente, uma tensão que se acumulava em seu ventre, alimentada pelo som da respiração ofegante dele, pelo cheiro de sua pele suada, pela visão de seus cabelos negros caindo sobre seu rosto, da intensidade quase dolorosa em seus olhos azuis. Ela arranhou suas costas, puxou seus cabelos, gritou seu nome em um sussurro rouco quando a onda de seu próprio clímax a atingiu, violento e total.
Sentindo seu interior se contrair em torno dele, o controle de Lahan finalmente se desintegrou. Com um último empurrão profundo e um gemido abafado no croque de seu pescoço, ele encontrou sua própria liberação, derramando-se dentro dela enquanto tremia.
Por um longo momento, a única coisa que existiu foi o som da respiração pesada deles se misturando no ar frio. O mundo exterior, com suas regras e perigos, não existia. Havia apenas o calor de seus corpos entrelaçados, o cheiro do sexo e da seda, e o silêncio absoluto do pavilhão isolado.
Lahan desabou ao lado dela, mas imediatamente a puxou para seu peito, envolveu-a em seus braços e nas vestes caídas, como se pudesse protegê-la de tudo, até de si mesmo. Ele pressionou os lábios em seus cabelos violeta, agora desalinhados e suados.
— O que nós fizemos... — sua voz era um eco cansado e assustado.
Jin-Ye ergueu o olhar, seus olhos vermelhos encontrando os olhos azuis dele, agora tomados por uma serenidade pós-tempestade e uma centelha de desafio renovado.
— Começamos... — ela corrigiu, suavemente, traçando o lábio levemente inchado dele com a ponta do dedo. — E não há volta, Mestre Lahan, para nenhum de nós.
Nos dias que se seguiram, Jin-Ye parecia não carregar nenhum peso. A lembrança da noite com Lahan, que poderia ter se tornado uma prisão, para ela foi apenas uma chave que abriu um cofre de curiosidade e agora estava vazio. Andava pelos corredores do palácio com sua graça habitual, sorrindo, cumprimentando servas, brincando com crianças, estudando flores raras com suas mães. Se alguém a observasse, jamais diria que ela havia cruzado uma linha perigosa com o mestre estrategista.
Lahan, ao contrário, estava em frangalhos, o homem que se orgulhava de viver em equilíbrio absoluto, de analisar cada detalhe do campo de batalha, agora se via derrotado por uma jovem que passava diante dele com a serenidade de quem não se lembrava sequer de seu nome. Ele a observava de longe, os punhos cerrados, os pensamentos em guerra: Por que ela me ignora? Como ousa agir como se nada tivesse acontecido?
Naquela noite, Jin-Ye usava um hanfu amarelo, bordado em tons de ouro e branco, que refletia a luz das lamparinas como se ela mesma fosse uma centelha viva dentro do palácio. Os cabelos presos em um penteado leve deixavam fios soltos que emolduravam seu rosto, nas mãos, carregava flores recém-colhidas para levar a Gyokuyou e Ah-Duo, cantarolando baixinho como se todo o mundo lhe pertencesse.
Foi então que, em um corredor lateral, uma mão firme a puxou de repente para um canto escuro. O impacto fez algumas pétalas caírem ao chão.
— Mestre Lahan... — ela disse em tom baixo, arqueando uma sobrancelha, como se ele fosse apenas um inconveniente. — Que ousadia é essa?
Ele estava diferente. Os óculos levemente tortos, o olhar ardente e sombrio. Segurava o braço dela com força, mas sem brutalidade, apenas com a urgência de alguém que se recusava a perder o controle.
— Por que está me ignorando? — a voz dele soou áspera, um sussurro entre dentes. — Desde aquela noite... desde que... — ele parou, respirando fundo como se a própria lembrança fosse fogo. — Você age como se nada tivesse acontecido.
Jin-Ye soltou uma risadinha suave, inclinando levemente o rosto.
— E acaso não foi isso, mestre? Nada. Apenas sexo. — ela disse com crueldade doce, como se fosse óbvio. — Não achei que um homem tão calculista fosse confundir desejo com eternidade.
Lahan estreitou os olhos, mais ferido do que gostaria de admitir.
— Não brinque comigo, princesa. Não depois do que fez.
— Brincar? — ela ergueu o queixo, a voz doce, mas cortante. — Eu não devo satisfações a você. Sexo é sexo. Eu tive minha curiosidade satisfeita, e agora sigo em frente. Não é isso que vocês, homens, fazem o tempo todo?
As palavras açoitavam como lâminas, e Lahan sentiu o chão ceder sob sua lógica impecável, avançou um passo, encurralando-a contra a parede. O coração de Jin-Ye acelerou, mas ela manteve o sorriso, quase insolente.
— Você não entende... — ele murmurou, aproximando o rosto, a respiração quente contra sua pele. — Você acha que pode me tratar como um joguete, mas está enganada.
Antes que ela pudesse responder, Lahan capturou seus lábios em um beijo duro, faminto, carregado de frustração e posse. Uma de suas mãos segurava sua cintura com firmeza, a outra erguia-lhe o queixo. Os beijos se tornaram uma sequência, descendo pelo pescoço, deixando marcas quentes, roxas, inconfundíveis. Jin-Ye arqueou as costas, dividida entre o choque e o arrepio que a percorreu.
Ele se afastou por fim, o olhar febril.
— Você jamais me enganaria, Jin-Ye. — sua voz era grave, quase um juramento. — Seus olhos... seus beijos... eles a entregam. Você pode fingir para o mundo inteiro, mas não para mim.
Então a soltou, deixando-a contra a parede, ofegante e com o hanfu amassado, o pescoço marcado por chupões escandalosos. Sem esperar resposta, virou-se e desapareceu pelo corredor como uma sombra.
Jin-Ye, atônita, correu dali agarrando as flores que ainda restavam. Ajustava os cabelos e a roupa às pressas, tentando apagar os vestígios da cena, mas os lábios ainda queimavam. Correu até os portões de Gyokuyou e Ah-Duo, o coração descompassado, tentando compor o sorriso antes de entrar. Ainda assim, as marcas em sua pele denunciariam mais do que ela jamais admitiria.
[. . .]
— Engraçado você dizer isso... logo você e Lingli, as maiores fofoqueiras que eu conheço. — Jinshi comentou num tom irônico, lançando um olhar enviesado para a irmã enquanto fechava a porta atrás de si. — É quase inacreditável que nada de novo tenha acontecido em nossa ausência.
O Pavilhão da Lua estava impecavelmente organizado. Os aromas de baunilha e chá recém-preparado pairavam no ar, embalando a atmosfera aconchegante. Jinshi suspirou, aliviado, e caminhou até a cama, depositando Maomao com cuidado sobre as almofadas. A jovem ainda dormia profundamente, seu rosto sereno contrastando com o cansaço que pesava no corpo dele. Retirou a túnica pesada dos ombros e a deixou sobre o encosto de uma cadeira.
— Você conhece a gente bem demais. — Jin-Ye retrucou com humor, pegando algumas toalhas limpas de uma bandeja e colocando ao alcance do irmão.
Jinshi ergueu uma sobrancelha, aceitando a ajuda.
— Espero que realmente nada tenha acontecido. — murmurou em tom baixo, a expressão ficando mais séria enquanto a fitava. — Não quero ser surpreendido nos próximos dias com algum escândalo que vocês escondam de mim.
Jin-Ye deu uma risada curta, balançando a cabeça como quem não se ofende, apenas se diverte.
— Pode ficar tranquilo, príncipe. — disse, com ênfase zombeteira no título. — Tudo está sob controle. E, de qualquer maneira, se houver algo... pode conversar com a mamãe. Ela sempre sabe de tudo antes de qualquer um.
Jinshi passou a mão pelo próprio pescoço, massageando a tensão acumulada, antes de desviar o olhar da irmã para Maomao, ainda adormecida.
— Acredito que ela terá preocupações de sobra. — murmurou, o tom suavizado pelo carinho em sua voz. — Principalmente com a mão de minha esposa. Maomao vai acabar voltando a ser o centro de todas as atenções, como foi no primeiro dia em que chegou aqui. — ele soltou uma risada baixa, contida. — É bem capaz de Maomao ser mais filha da Imperatriz do que eu, que nasci dela.
O comentário fez Jin-Ye gargalhar abertamente, embora tivesse o cuidado de abafar o som cobrindo os lábios com a mão. Então, aproximou-se do irmão e o abraçou de lado, num gesto de cumplicidade.
— Ora, ela não tem culpa de ser uma versão quase perfeita de como seria uma Imperatriz ideal. — comentou, sorrindo. — É natural que mamãe se preocupe tanto. Ainda mais sabendo que o Mestre Lakan pode ser um problema para quem ousou fazer algo contra ela.
Jinshi suspirou, o cansaço ainda pesando, mas não perdeu a oportunidade de ironizar:
— Garanto que os mini soldados de Maomao seriam mais implacáveis do que qualquer ameaça de Lakan.
— Mini soldados? — Jin-Ye ergueu as sobrancelhas, confusa e curiosa.
O príncipe sorriu de canto, pegando uma pequena caixa de madeira que mantinha sobre a mesa próxima. Abriu-a e revelou um amontoado de pergaminhos amarrados com fitas coloridas.
— Isto. — disse, mostrando o conteúdo como se fosse um tesouro precioso. — Pequenas cartas que Zhìyuan, Fen Fang e até mesmo a pequena Yaling usam para me ameaçar. — A expressão dele oscilou entre indignação fingida e orgulho. — Todos os dias tem uma nova. Enquanto estive na residência do Clã Shi, Basen deve ter me entregado pelo menos umas cinco. E isso que estou jogando baixo na conta.
Jin-Ye levou a mão à boca, lutando para não explodir em risadas e despertar Maomao. Os olhos brilhavam de divertimento enquanto pegava um dos pergaminhos que Jinshi lhe estendia. Desatou o lacinho com cuidado e começou a ler em voz baixa.
O conteúdo era tão desajeitado quanto feroz, cheio de ordens infantis como "não ouse fazer Maomao chorar, ou eu corto seu cabelo enquanto dorme" ou "se tocar nela de novo sem pedir, vou contar para o Imperador".
As risadas de Jin-Ye escaparam, abafadas contra a própria mão, mas ainda assim quase descontroladas.
— Eu não acredito... — conseguiu dizer entre uma gargalhada e outra. — Eles realmente fazem isso?
— Todos os dias. — Jinshi respondeu resignado, embora houvesse orgulho escondido em sua voz. — Aparentemente, meu casamento não foi apenas com Maomao, mas também com um pequeno exército que a idolatra e me odeia na mesma intensidade.
Jin-Ye fechou o pergaminho e, ainda rindo, devolveu-o ao irmão.
— Bem... — comentou com malícia — pelo menos alguém está cuidando da minha irmã como se fosse a maior joia do palácio. Nem você poderia competir com tanto zelo, não é mesmo, príncipe?
Jinshi fingiu se ofender, mas não conseguiu evitar sorrir, o cansaço em seus traços suavizou-se, e por um instante parecia apenas um irmão comum, dividindo risadas com a irmã no meio de um palácio cheio de segredos.
Maomao se remexeu debaixo das cobertas, o tecido macio roçando em sua pele sensível. Um suspiro escapou de seus lábios entreabertos, enquanto o aroma doce de baunilha preenchia o quarto, misturado ao calor reconfortante da vela que derretia lenta sobre a mesa. Os olhos, pesados de sono, se abriram devagar, revelando apenas um vislumbre embaçado da figura de Jinshi, sentado diante da escrivaninha, recolhendo os pergaminhos espalhados que Jin-Ye havia largado ali.
— Hm... — ela resmungou baixinho, a voz embargada pela sonolência.
Aquele pequeno som bastou para atrair a atenção dos dois. Jin-Ye, que ainda estava presente, sorriu ao ver a irmã despertando. Aproximou-se com passos leves, inclinou-se delicadamente sobre ela e disse num sussurro:
— Descanse bem, Maomao.
Sem esperar resposta, a jovem princesa deixou o quarto, fechando a porta atrás de si com um ruído suave.
E então restaram apenas eles dois.
Jinshi guardou o último pergaminho, encaixando-o na caixa, e fechou-a com cuidado cerimonioso. Quando se virou, seus olhos se suavizaram, fixando-se nela com uma ternura silenciosa. Um alívio discreto se refletia em sua expressão como se o simples fato de vê-la acordar fosse suficiente para que seus ombros relaxassem.
— Ainda cansada? — perguntou, a voz baixa, como se tivesse medo de quebrar a calma do momento.
— Um pouco... — murmurou, semicerrando os olhos novamente.
Ele não hesitou. Aproximou-se e passou o braço em torno dela, erguendo-a devagar, firme o bastante para sustentá-la, mas cuidadoso como se segurasse porcelana. Maomao se deixou conduzir, sentindo a força tranquila que vinha dele a envolver, cada passo sendo guiado até o pequeno aposento de banho.
A água já os aguardava, morna, soltando vapor suave que formava uma névoa ao redor das paredes de madeira. O cheiro delicado de ervas pairava no ar, Jinshi ajoelhou-se diante dela, os dedos desatando as camadas de tecido uma a uma. Seus movimentos eram lentos, quase reverentes — não havia impaciência, apenas uma solenidade que fazia Maomao prender a respiração.
Corada, ela desviava o olhar, mas não conseguia evitar a onda de calor que a envolveu quando a água acolheu seu corpo.
— Eu posso... — tentou dizer, envergonhada, mas sua voz morreu na garganta.
— Pode me deixar cuidar de você ao menos uma vez? — ele a interrompeu, sem frieza, mas com firmeza suficiente para não abrir espaço para discussões.
Os gestos dele eram calmos, mas carregavam um peso emocional. Com as mãos, Jinshi a banhou, lavando os ombros, os braços, o pescoço. Cada toque era medido, respeitoso, e ainda assim Maomao podia sentir o quanto aquilo era mais do que um simples ato de zelo — havia devoção em cada deslizar dos dedos, em cada concha d'água derramada sobre sua pele.
Quando terminou, envolveu-a em toalhas macias, carregando-a de volta ao quarto como se fosse algo precioso demais para ser ferido. Vestiu nela uma túnica leve, de tecido claro, ajustando os laços com gestos suaves. Depois, sentou-se atrás dela, penteando seus cabelos úmidos. Os dentes do pente deslizaram devagar, desembaraçando cada nó com cuidado. As mechas verdes, ainda úmidas, caíam soltas pelas costas, espalhando o perfume natural dela pelo ar.
Por fim, ele se posicionou diante dela e tomou sua mão ferida, retirou as bandagens antigas e, com a mesma paciência, passou a mistura fresca sobre os pontos sensíveis. A concentração em seu rosto contrastava com a expressão suavizada de Maomao, que o observava em silêncio, sentindo as pálpebras pesarem novamente.
— Por que... você está sendo tão atencioso? — ela perguntou de repente, a voz quase um sussurro. — Parece tão exausto, Zui. Deveria descansar.
Ele ergueu os olhos para ela, um leve sorriso curvou seus lábios, mas não havia ironia ali, apenas doçura.
— Eu posso descansar depois. — respondeu num tom calmo, mas carregado de convicção. — Mas não posso adiar o cuidado com você. O que me importa é que esteja confortável... e segura.
O rubor subiu ao rosto de Maomao, fazendo-a desviar o olhar, seu coração acelerou sem permissão, como se algo estivesse se agitando dentro dela. Com um gesto impulsivo, quase hesitante, ela se inclinou para frente, encurtando a distância. Seus lábios tocaram os dele num selinho rápido, doce, tímido. Tão breve quanto o bater de asas de um pássaro.
Ela recuou imediatamente, mordendo o lábio, como se tivesse cometido um erro, encolhendo-se sob as cobertas.
Jinshi permaneceu imóvel por alguns instantes, o olhar fixo nela, absorvendo aquele pequeno instante com uma intensidade silenciosa. Finalmente, respirou fundo, recobrando a serenidade habitual. Ajeitou os cobertores sobre ela e, como se nada tivesse acontecido, entregou-lhe uma xícara de chá fumegante.
— Beba um pouco antes de dormir novamente. Vai te aquecer.
Ela pegou a xícara com as duas mãos, sorveu alguns goles pequenos, o vapor subindo para embaçar seus cílios. Depois, se deitou outra vez, os lábios se curvando num meio sorriso que ela tentou esconder.
Ele ficou parado por alguns instantes, observando-a respirar de forma tranquila, antes de se levantar e se retirar para o banho.
A água morna o envolveu como um abraço. Jinshi fechou os olhos, inclinando a cabeça para trás, deixando-se afundar até que apenas o queixo permanecesse acima da superfície. O silêncio só era cortado pelo leve som da água se movendo.
Ali, sozinho, as barreiras que sempre mantinha erguidas começaram a ceder. Ele pensava nela — na fragilidade de seus gestos, na coragem disfarçada em ironia, no sorriso tímido que acabara de arrancar dele um sentimento que não ousava nomear. Havia preocupação, havia ternura... mas havia também algo mais profundo, algo que o fazia sentir como se todo o seu controle pudesse desmoronar diante de um único olhar dela.
Ele respirou fundo, fechando os olhos novamente. Pela primeira vez em muito tempo, permitiu-se apenas sentir.
A água escorria pelas costas de Jinshi, quente o bastante para desfazer a rigidez de seus músculos, mas não para acalmar o turbilhão dentro de sua mente. Ele afundou um pouco mais na banheira, fechando os olhos, permitindo-se um raro instante de vulnerabilidade. O vapor tomava conta do recinto, enevoando o ar assim como seus próprios pensamentos.
"O que foi que você fez comigo, Maomao?" — pensava, o peito apertando. — "Desde o primeiro instante em que te vi, algo em mim se deslocou, como se a ordem do meu mundo tivesse se curvado diante da sua presença. Não era para ser assim. Eu fui moldado para a perfeição, treinado para sorrir, para controlar, para seduzir quando preciso. E, ainda assim, diante de você, todas as minhas máscaras parecem inúteis."
Ele ergueu a mão para a superfície da água, deixando-a escorrer pelos dedos, como se fosse possível segurar aquela sensação de calor, frágil e passageira.
"Você não sabe o quanto me assusta o poder que tem sobre mim. Não é seu olhar analítico, não é sua mente brilhante... é o jeito como me desmonta sem esforço. Um toque seu, uma palavra displicente, e eu já não sou príncipe, não sou irmão, não sou filho da imperatriz. Sou apenas um homem... um homem que deseja estar ao seu lado."
Seu corpo relaxava, mas sua mente permanecia inquieta. Ele recordava o jeito que ela, mesmo sonolenta, lhe dera um selinho tímido, breve, quase inocente — mas para ele, aquilo carregava um peso imensurável.
"Você não faz ideia, Maomao... não imagina o quanto esse gesto singelo me desarma. O quanto me dá forças e, ao mesmo tempo, me deixa vulnerável. Você é a contradição mais perfeita que já conheci: simples e complexa, indiferente e calorosa, dura e delicada. Como pode me fazer sorrir e doer no mesmo instante? Como pode ser o bálsamo e o veneno que corre em minhas veias?"
Ele inclinou a cabeça para trás, deixando a água mergulhar parte de seu rosto, abafando sua respiração por um momento. Ao emergir novamente, respirou fundo, como se buscasse coragem no ar pesado do vapor.
"Eu disse a você que não me importo em cuidar de ti... e é a mais pura verdade. Se for para vê-la bem, confortável, sorrindo... posso abdicar do meu descanso, posso renunciar ao meu cansaço. Eu suportaria dez vezes esse fardo, só para garantir que você nunca mais sofra. Só para ver esse brilho nos seus olhos, mesmo que por um instante. Mas você jamais deve saber o quanto isso me consome... porque se soubesse, talvez fugisse de mim. E eu não suportaria perder você."
Ele apertou os olhos, como se quisesse conter uma emoção que não podia admitir em voz alta.
"Eu deveria ter medo... medo de como você já se tornou indispensável. Mas, em vez disso, sinto um desejo crescente de me prender a você, mesmo que isso seja a ruína daquilo que eu sou. Porque se o preço de te amar for perder o equilíbrio que construí com tanto esforço... então que assim seja. Eu aceito o caos. Eu aceito você, Maomao."
Um silêncio pesado reinava, quebrado apenas pelo leve borbulhar da água. Jinshi apoiou os braços na borda da banheira, curvando-se para frente. O vapor grudava em sua pele, mas era o calor em seu peito que mais lhe queimava.
Ele sorriu sozinho, um sorriso melancólico e íntimo, que ninguém jamais veria.
Jinshi finalmente deixou que o vapor o envolvesse por mais alguns segundos, fechando os olhos e respirando fundo, tentando organizar os sentimentos que ainda borbulhavam em seu peito. Cada recordação do toque de Maomao, do selinho tímido, da confiança silenciosa que ela depositara nele, percorria sua mente como ondas irregulares. Ele sabia que não podia se perder totalmente nesse turbilhão; ainda havia uma princesa à sua frente que precisava de cuidado, e não de confissões precipitadas.
Com um último suspiro, deixou que a banheira ficasse quieta, refletindo apenas o leve tremular da vela do quarto. A água escorreu de seu corpo forte, deslizando pelos músculos tensos que finalmente cediam sob o calor da imersão. Ele secou-se com uma toalha macia, cada movimento calculado para parecer natural, mas evitando qualquer gesto que pudesse revelar a intensidade de seus pensamentos.
Enquanto vestia a túnica limpa e leve, seus dedos tocaram o tecido de forma mecânica, mas a mente ainda vagava entre os momentos recentes com Maomao. Ele recordava a fragilidade dela, o jeito que confiava nele, mesmo exausta, e como aquela confiança despertava nele uma necessidade quase instintiva de protegê-la.
Ao sair da banheira, o corredor estava silencioso. O aroma suave de ervas e baunilha ainda pairava pelo ar, e ele respirou fundo, tentando ancorar-se na postura calma e controlada que sempre mantinha diante dos outros. Cada passo até a cama de Maomao era medido, sem pressa, mas decidido, como se cada movimento fosse uma promessa silenciosa de cuidado.
Ela estava deitada, ainda com o rosto suavemente ruborizado pelo sono, os olhos semicerrados, respirando com um ritmo lento e tranquilo. Jinshi aproximou-se, mantendo a expressão serena, mas a mente ainda rodopiando com pensamentos que não ousaria colocar em palavras.
— Aqui está... — disse baixinho, a voz firme, mas suave, enquanto depositava ao lado dela a toalha que pegara para limpar o rosto de respingos de chá ou do banho anterior. — O chá ainda está quente.
— De novo? — perguntou sonolenta, talvez ranzinza.
— Vai te fazer bem, eu garanto minha gatinha venenosa.
Maomao abriu os olhos um pouco mais, piscando contra a luz da vela, um sorriso sonolento se formando nos lábios. Ele estendeu a xícara fumegante novamente para que ela a segurasse, certificando-se de que estivesse confortável antes de se inclinar para ajeitar novamente o travesseiro sob sua cabeça.
Cada gesto era calculado para parecer natural, mas, por dentro, seu coração ainda vibrava com intensidade. A sensação de vê-la segura, respirando tranquila, era ao mesmo tempo um alívio e uma tortura. Ele queria permanecer ali, com ela, sentir seu cheiro, sua presença, e ao mesmo tempo precisava manter a compostura, esconder o turbilhão que sentia.
— Quer que eu fique aqui até você terminar o chá? — perguntou, controlando a voz para que não tremesse, mantendo o tom firme, quase mecânico.
Maomao assentiu levemente, inclinando-se para receber a bebida, e Jinshi permaneceu ao lado dela, mãos apoiadas discretamente na cama, olhos atentos a cada gesto. Ele respirava fundo, concentrando-se em cada detalhe: a forma como ela inclinava a cabeça, a delicadeza com que segurava a xícara, o leve arrepio nos ombros quando o vapor quente tocava a pele.
Mesmo imerso em pensamentos que poderiam revelar qualquer sentimento contido, ele conseguia manter a aparência de calma, de mestre sereno e atento. Mas, dentro dele, cada instante com Maomao era como se o tempo se dilatasse, e ele estivesse sozinho naquele espaço entre a devoção e a obsessão silenciosa que ela despertava.
Quando ela terminou de beber, Jinshi retirou a xícara com um gesto cuidadoso, colocando-a sobre a mesa de cabeceira, e finalmente pôde se permitir um pequeno suspiro. Ele olhou para ela, ainda sonolenta e frágil, e sentiu a mesma mistura de desejo e ternura que havia sentido desde o primeiro toque, mas agora controlada, canalizada apenas para o cuidado que lhe cabia naquele momento.
Ele sabia que poderia enfrentar qualquer batalha, qualquer intriga, qualquer perigo do palácio. Mas aquela batalha silenciosa, essa necessidade de protegê-la, de mantê-la confortável e segura, era a mais intensa de todas. E ele a enfrentaria sem hesitar, mesmo que cada pensamento, cada lembrança, o consumisse lentamente.
Chapter 16: O amor em suas diversas formas
Notes:
Comecei a escrever de tarde e estou finalizando agora pela madrugada, enlouqueci totalmente, preciso cuidar da minha saúde mental depois dos últimos capítulos
espero que gostem de coração, esse capítulo tem muitas camadas e eu amei escrevê-lo :)))
Chapter Text
O sol já se insinuava pelas frestas das cortinas, derramando filetes dourados sobre o quarto silencioso, Maomao despertou devagar, como se ainda resistisse em se desprender dos sonhos. O calor do corpo ao lado — aquele que lhe dera segurança durante a noite — já não estava mais ali. Instintivamente, sua mão buscou o espaço vazio e encontrou apenas o frio do lençol, uma ausência quase dolorosa.
Demorou alguns segundos até que seus olhos turvos se ajustassem à luz, então os pousou sobre a pequena mesa de madeira próxima à cama. Ali, repousava um bilhete dobrado, simples, mas colocado com cuidado, como se carregasse mais do que meras palavras.
A mão enfaixada de Maomao tremeu levemente ao esticar-se para pegá-lo. A dor da ferida a fez franzir o cenho, mas não foi suficiente para impedir que ela desdobrasse o papel. A caligrafia de Jinshi era impecável, tão ordenada quanto ele próprio:
"Preciso encontrar o imperador. Depois estarei em meu escritório.
Descanse. A viagem foi longa e sua mão ainda está cicatrizando.
Cuide-se. — Jinshi"
Por um instante, o quarto pareceu se encolher ao redor dela, o silêncio tomou o espaço, interrompido apenas pelo som de sua respiração contida. Aquelas palavras, simples na forma, carregavam uma ternura discreta, quase sufocante, Jinshi tinha o dom de protegê-la até quando não estava presente, e isso a deixava inquieta, não sabia se deveria sentir-se grata, ou vulnerável.
Apertou o bilhete contra o peito, como se pudesse absorver dele a mesma firmeza que encontrava no olhar dele. Um suspiro escapou de seus lábios, pesado, cheio de lembranças da noite anterior: o modo como Jinshi tocara sua mão ferida com delicadeza, a paciência em cada gesto, como se ela fosse feita de porcelana fina, e não de carne e ossos acostumados à aspereza do mundo.
Quando finalmente se levantou, seus movimentos tinham a lentidão de quem carrega pensamentos demais. Vestiu-se com calma, ajeitou os cabelos num arranjo simples, e, antes de sair, passou os dedos pela bandagem, lembrando-se do toque dele ao prendê-la com tanto cuidado.
Decidiu então seguir até o Pavilhão de Cristal, Lady Lihua lhe vinha à mente desde o retorno, havia algo não dito, um incômodo silencioso que a perseguia. Talvez fosse apenas pressentimento, mas Maomao confiava em seus instintos, e eles raramente estavam errados.
O corredor que levava ao Pavilhão de Cristal estava imerso em um silêncio pesado, quase sufocante, Maomao caminhava com passos firmes, a mão enfaixada latejando a cada movimento. Aquele mau pressentimento queimava dentro dela.
Ao alcançar a entrada, deparou-se com duas damas de companhia, de braços abertos, bloqueando a passagem. O gesto, frio e calculado, foi como uma pedra atirada contra sua paciência já curta.
— A senhorita não pode entrar — disse a líder, o tom ríspido, quase desafiador. — Lady Lihua não está aceitando visitas, precisa de repouso absoluto, está extremamente fraca.
Maomao ergueu lentamente o rosto, os olhos semicerrados como lâminas, a voz dela, no entanto, veio carregada de gelo e ferro:
— Fraca? — repetiu, cada sílaba gotejando veneno. — Antes de ser uma princesa senhoritas, eu sou a médica dela. Foi para fortalecer o corpo que prescrevi a dieta e entreguei ao príncipe Liang, que suponho que tenha entregado a vocês. Onde está a dificuldade em compreender e seguir o que estava naquele papel?
As damas trocaram olhares nervosos, mas a líder manteve-se firme.
— Lady Lihua não aceita a comida que você preparou, decidimos que seria melhor adaptar.
O coração de Maomao deu um salto a pele do rosto contraiu-se num sorriso que não tinha nada de alegria.
— Adaptar... — sussurrou. — Se é que vocês preparam as refeições que prescrevi a ela, o que exatamente vocês deram a ela?
— Pratos substanciais. Carnes, molhos, alimentos que dão energia. Não apenas mingaus ralos e ervas amargas.
Foi como se o mundo inteiro tivesse parado ao redor dela, o sangue subiu-lhe à cabeça.
— Idiotas! — a explosão reverberou pelos painéis de cristal. — Vocês sequer deram os medicamentos que preparei?!
O silêncio que se seguiu foi resposta suficiente.
Antes que pensasse, Maomao avançou contra a líder, a mão enfaixada estalou contra o rosto dela com violência, uma, duas vezes, até as outras gritarem, tentando contê-la.
— Como se atrevem?! — rugiu, a voz embargada de cólera. — Querem matá-la? Sabem quantos filhos ela já perdeu por descuidos como esse?! Se eu receitei e examinei ela nas últimas vezes antes da viagem, era para que isso não acontecesse.
As damas, acuadas, abriram a boca em desespero, e então veio a confissão que gelou o ar:
— Ela já teve dois sangramentos nas últimas semanas! — gritou uma delas, como se isso fosse justificativa. — Está cada vez mais fraca!
O chão pareceu desaparecer sob os pés de Maomao, por um instante, seu corpo congelou. Depois, a fúria voltou multiplicada.
— Dois sangramentos... — murmurou, trêmula. O olhar se incendiou. — E vocês não me disseram nada, nem uma carta foram capazes de escrever?!
A líder tentou balbuciar alguma defesa, mas foi interrompida por outro tapa.
Foi nesse turbilhão que Jin-Ye surgiu, trazendo um arranjo de flores frescas nos braços, o barulho dos gritos a guiara até ali, mas ao ver o tumulto, deixou as flores caírem. As pétalas espalharam-se pelo chão como sangue derramado.
— O que está acontecendo aqui?! — a princesa exigiu, a voz jovem, mas carregada da autoridade que herdara do sangue imperial.
Maomao girou o rosto para ela, arfando como fera acuada, os olhos faiscando como brasas prestes a consumir tudo, a mão enfaixada latejava, mas a dor só alimentava sua fúria.
— Como sabe, Jin-Ye — começou, a voz embargada de raiva e contenção — eu me tornei a médica particular de Lady Lihua. Mas no tempo em que estive viajando... — respirou fundo, tentando manter o controle, os ombros tremendo de indignação. Segurou a própria mão enfaixada contra o peito, como se fosse a única âncora que a impedia de explodir ainda mais. — Elas ignoraram minhas instruções.
Os olhos de Maomao se estreitaram, a boca contorcendo-se num misto de dor e repulsa.
— Eu não deveria revelar isso à princesa, não antes da hora. Mas já não há escolha — cuspiu, como se cada palavra fosse faca. — Lady Lihua está esperando um bebê. Ela me pediu para cuidar dela em segredo, não quis que ninguém soubesse até que a gravidez avançasse para outro estágio.
As damas se encolheram, algumas tapando a boca em pânico. O choque correu pelo ar como um raio.
Maomao avançou um passo, a voz agora mais aguda, quebrando em indignação:
— No entanto, estas inúteis não seguiram minhas restrições! Nem sequer deram o remédio que preparei antes da viagem! — apontou para as mulheres com o dedo trêmulo de fúria. — E agora Lady Lihua está piorando porque esconderam que ela teve sangramentos. Duas vezes!
O silêncio que se seguiu foi cortado pelo som abafado de Jin-Ye inspirando com força. O rosto da princesa empalideceu, como se todo o sangue tivesse se esvaído. As flores que ainda segurava caíram de suas mãos, espalhando-se pelo chão de mármore como gotas de uma vida esmagada.
— Sangramentos? — a voz dela saiu fraca, trêmula, quase infantil. — Duas vezes?
Maomao assentiu com brutalidade, sem rodeios.
— Se continuar assim, se mais uma vez for negligenciada, não restará nem ela, nem a criança. — As palavras saíram secas, sem piedade, como lâmina contra carne.
Os olhos de Jin-Ye se encheram de lágrimas instantaneamente. Sua garganta apertou, e o choro veio em soluços descontrolados. Mas, no meio da dor, a fúria também a tomou. Com um grito que pareceu rasgar sua juventude em pedaços, a princesa atirou-se contra a dama mais próxima, o som de sua mão estalando na pele ecoando como trovão dentro do pavilhão.
— VOCÊS QUASE MATARAM A MINHA MÃE! — gritou, a voz embargada e aguda, como a de uma criança desesperada e uma soberana em fúria ao mesmo tempo. — Maomao é a médica dela! Se ela manda, vocês obedecem!
As servas recuaram, algumas tropeçando nos próprios pés, enquanto Jin-Ye golpeava com punhos pequenos, mas cheios de desespero, os olhos vermelhos de lágrimas.
— Não é a imperatriz Ah-Duo quem me criou na outra metade de minha vida, não é ela que secava minhas lágrimas, porque estava ocupada demais! — Jin-Ye soluçava entre tapas e gritos. — Foi Lady Lihua! Foi ela! Ela é minha mãe! E vocês ousaram colocá-la em risco?!
Maomao, ainda tomada pela fúria, virou-se contra a líder das criadas e voltou a esbofeteá-la.
— Se Lady Lihua perder este bebê, o sangue dela e da criança estará nas suas mãos! — rugiu.
O caos se espalhou: damas chorando, outras tentando se defender, a voz de Jin-Ye cortando como uma lâmina no meio do tumulto.
[. . .]
12 anos antes...
Pavilhão da Lua — Palácio Imperial
O Pavilhão de Cristal estava mergulhado em uma quietude suave naquela tarde, o sol, já baixo, atravessava os painéis translúcidos e tingia o interior com reflexos dourados, como se cada canto fosse pintado por pinceladas de luz. Lady Lihua estava sentada junto à janela, penteando lentamente os longos cabelos azul-escuro que lhe desciam como uma cascata de seda pelas costas. Seus olhos de mel, sempre serenos, pareciam guardar o peso de muitas memórias e, ao mesmo tempo, a doçura de um refúgio.
Foi então que passos apressados ecoaram pelo corredor, a porta abriu-se sem cerimônia, e a pequena princesa Jin-Ye entrou, os cabelos roxos desgrenhados, os olhos vermelhos — não apenas por natureza, mas pelo choro recente.
— Lady Lihua... — a voz de criança saiu embargada, quase um soluço.
Sem hesitar, a consorte abriu os braços e a menina correu até ela, atirando-se em seu colo.
— O que aconteceu, meu bem? — perguntou Lihua, suavizando o tom enquanto passava os dedos delicados pelo rosto infantil, enxugando as lágrimas que deslizavam.
Jin-Ye soluçou, escondendo o rosto contra o colo macio da consorte.
— Meus irmãos não gostam de mim... — murmurou, com a voz abafada. — Sempre brincam sem me chamar. Dizem que eu sou estranha... que eu não sou igual a eles...
As lágrimas voltaram a cair, molhando o tecido claro das vestes de Lihua.
A consorte suspirou suavemente, sentindo aquele choro pequeno pesar em seu peito de uma forma que ela mesma não sabia explicar. Com um gesto firme, porém cheio de ternura, levantou o queixo da menina, obrigando-a a encará-la.
— Eles não entendem quem você é, Jin-Ye. — sorriu, acariciando as madeixas roxas com os dedos finos. — Mas eu entendo, você é especial, tem uma força que eles não têm e não precisa que ninguém a aceite para ser importante, além do mais você tem Lingli para brincar, não é?
Jin-Ye fungou, tentando conter os soluços.
— Mas dói... dói quando eles me deixam sozinha...
Lady Lihua apertou-a contra o peito, envolvendo-a com os braços num abraço caloroso, balançando-a suavemente como se fosse ainda menor. Seus olhos de mel se perderam na paisagem além da janela, o brilho dourado refletindo nas lágrimas que ameaçavam cair dela também.
"Jin-Ye nasceu do ventre da Imperatriz Ah-Duo, minha amiga", pensou em silêncio, permitindo-se um suspiro longo. "Mas acabou que Jin-Ye se tornou minha filha sem mesmo que eu percebesse o quanto eu precisava desse amor infantil."
A cada soluço que estremecia o corpo da menina, Lady Lihua a apertava mais contra si, como se quisesse colar os pedaços partidos de sua dor e Jin-Ye, entre fungadas e suspiros, foi se acalmando, enterrando o rosto contra o colo acolhedor, como quem encontra finalmente um lugar de pertencimento.
— Sempre que tiver problemas, pode vir até mim. — murmurou Lihua, beijando-lhe a testa. — Eu estarei aqui, sempre.
A menina ergueu os olhos vermelhos e marejados, buscando confirmação.
— Sempre?
— Sempre. — respondeu, com um sorriso leve, quase melancólico.
E assim foi. Desde aquele dia, todos os medos, todas as dores, todas as pequenas tragédias da infância de Jin-Ye encontraram refúgio nos braços de Lady Lihua. Não importava se era uma disputa entre irmãos ou o peso invisível de ser a princesa mais velha e uma possível moeda de troca. Para Jin-Ye, não havia dúvida: sua verdadeira mãe vivia ali, no Pavilhão de Cristal, com cabelos azul-escuro que brilhavam como a noite e olhos cor de mel que a enxergavam como ninguém mais enxergava.
[. . .]
O corredor próximo ao Pavilhão de Cristal tremia com os gritos, Lahan, que vinha na frente, correu de imediato, surpreso com a cena que se descortinava diante dele, Jin-Ye, descontrolada, lançava-se sobre as damas de companhia de Lady Lihua como fera em fúria, os punhos se erguendo, os pés tentando acertar qualquer pedaço de tecido ou pele que alcançasse.
Ao lado dela, Maomao não estava diferente, os olhos azuis cintilavam em puro ódio, os cabelos desalinhados caíam pelo rosto, e o corpo miúdo chutava o ar como se não houvesse limite para sua fúria. As duas vociferavam insultos, a cada palavra cuspida como uma sentença.
— Irresponsáveis! SUAS VADIAS. — gritou Maomao, tentando se soltar.
— Como ousam maltratar minha mãe desse modo?! — Jin-Ye berrava, as lágrimas se confundindo com a raiva.
Lahan avançou rápido, segurando a princesa com esforço, erguendo-a nos braços como se contivesse um vendaval vivo, mas Jin-Ye, aos vinte e dois anos, não facilitava: esperneava, arranhava, tentava escapar de qualquer jeito.
— Alteza, acalme-se! — Lahan rogava, os dentes cerrados pela dificuldade.
Jiang, por sua vez, envolveu Maomao pelos ombros, tentando imobilizá-la, mas a mulher se debatia como se tivesse forças sobre-humanas.
— Pare, Maomao! Você vai se machucar! — disse, mas a princesa não parecia ouvir, o corpo arqueando, as pernas chutando o ar em direção às damas, indiferente ao braço firme que a continha.
O alvoroço não passou despercebido, logo, passos apressados ecoaram pelo corredor de pedra. O grupo se abriu quase em reverência forçada: o Imperador, com o semblante severo, aproximava-se em companhia da Imperatriz Ah-duo, um pouco atrás vinha o príncipe Jinshi ao lado de Lady Gyokuyou e da princesa Lingli, que olhava com olhos arregalados a confusão.
— O que significa toda essa insolência?! — a voz do imperador soou como trovão, firme, fazendo alguns guardas próximos gelarem no lugar.
Mas, para espanto geral, nem mesmo sua presença pareceu refrear Jin-Ye e Maomao, ainda presas nos braços de Lahan e Jiang, elas continuavam a chutar e xingar as damas, cuspindo impropérios como se estivessem cegas para a autoridade que ali chegara. A princesa chegou a esticar o corpo inteiro, como se fosse se arremessar, mesmo distante, contra as mulheres ajoelhadas.
O imperador ergueu a mão, o tom subindo numa ordem que não admitia réplica:
— BASTA!
O silêncio caiu abrupto, quebrado apenas pelo som de respiração ofegante das duas enfurecidas.
Jin-Ye, ainda nas mãos de Lahan, chorava, mas os olhos vermelhos estavam fixos nas damas de companhia como se as queimasse com o olhar. Maomao, por sua vez, arfava como fera enjaulada, mas foi a primeira a se desvencilhar, empurrando Jiang com força para frente, livre enfim.
O imperador a encarou, o olhar duro.
— Expliquem-se. AGORA.
Maomao respirou fundo, a voz ainda trêmula, mas firme, cuspindo a verdade como lâmina:
— Lady Lihua está esperando um bebê. Ela me pediu segredo até que a gestação avançasse... mas as damas ignoraram todas as minhas ordens, esconderam dois sangramentos que ela sofreu e ainda se recusaram a dar o remédio que deixei.
Um murmúrio percorreu o corredor, Gyokuyou levou a mão aos lábios, Lingli se encolheu ao lado da mãe, e até o semblante do imperador endureceu ainda mais, como se uma tempestade se acumulasse dentro de seu peito.
Ah-duo, por sua vez, fechou os olhos por um instante, a dor estampada no rosto, antes de repousar a mão delicada sobre o braço do filho Jinshi — que apenas cerrou os punhos com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.
O imperador voltou-se para os guardas:
— Arrastem-nas para fora do pavilhão. Agora!
Dois soldados surgiram de cada lado e, sem gentileza alguma, seguraram as damas, que gritavam e se debatiam, como se ainda tivessem direito de resistir.
— Açoitem-nas diante da corte, para que aprendam que a insolência contra meu sangue não será tolerada! — a sentença foi como trovão.
O impacto foi imediato, as mulheres, que observavam de longe, recuaram apavoradas, as servas caíram de joelhos, o rosto colado ao chão.
Lahan ainda segurava Jin-Ye, mas a jovem princesa, ofegante, abriu os olhos arregalados, quase incrédula com a cena. Jiang afrouxou o aperto sobre Maomao quando sentiu o corpo dela amolecer, o fogo da raiva dando lugar a uma espécie de assombro silencioso.
As damas, arrastadas pelos guardas, gritavam que eram inocentes, que tudo não passava de difamação, mas o imperador, imóvel, respondeu com frieza gélida:
— A inocência não se prova com insultos e violência. Prova-se com lealdade e esta, vocês não têm.
Ah-duo pousou a mão no braço dele, como quem tenta apaziguar, mas o olhar severo do imperador dizia claramente: a decisão estava tomada.
As costas das damas ecoariam sob os chicotes, e a corte inteira jamais esqueceria a lição.
O imperador, ainda com a respiração firme e a expressão carregada de autoridade, ergueu a mão, interrompendo os guardas que se preparavam para levar as damas sob custódia. A fúria ainda queimava em seus olhos, mas havia outra prioridade, mais urgente e delicada.
— Maomao. — a voz era firme, mas agora carregava comando e confiança. — Me acompanhe até o quarto de Lady Lihua, por favor.
Maomao, ainda ofegante, assentiu com rapidez, o corpo tenso, mas obediente, ao lado dela, Jin-Ye apertava os braços de Lahan, os olhos ainda vermelhos de raiva e lágrimas, mas agora grudados na mãe que precisava de cuidados. Ah-duo se aproximou, observando cada gesto com preocupação silenciosa.
— Jin-Ye ficará com você. — disse o imperador, quase num sussurro firme, como se a própria presença de Maomao fosse suficiente para acalmar a tempestade que era a jovem princesa.
O corredor até o quarto de Lady Lihua parecia interminável, cada passo ecoava no chão de mármore, e o silêncio pesado se alternava com os respiros ainda ofegantes de Maomao e Jin-Ye.
Quando a porta do quarto se abriu, a visão de Lady Lihua repousando na cama, apoiada em travesseiros de seda e acompanhada por Suiren, fez a tensão dos últimos minutos se multiplicar. A consorte tinha a pele pálida, os lábios quase sem cor, e os olhos de mel estavam semicerrados, mas atentos, seguindo cada movimento que a entrava no quarto.
— Lady Lihua... — Maomao começou, a voz firme, mas agora mais suave, tentando controlar a própria fúria para não alarmar a gestante. — Tudo ficará bem. Vim acompanhada hoje...
Jin-Ye, ainda nos braços de Lahan, não conseguia tirar os olhos da mãe, um soluço escapou, e Lahan segurou-a com mais firmeza, tentando transmitir segurança. Ah-duo aproximou-se, pousando a mão sobre o ombro de Maomao:
— Confio em você. Ela está em boas mãos, não deixe que nada de ruim aconteça com ela e o bebê, eu não suportaria perdê-la Maomao. — Ah-duo pediu segurando nas mãos da princesa como se fosse uma súplica.
Suiren, mãe de Ah-duo, observava em silêncio, os olhos carregados de preocupação. Embora conhecida por sua compostura, era impossível não notar a tensão que percorria cada linha de seu rosto.
Maomao avançou até a cama, colocando-se ao lado de Lady Lihua, que a olhou com uma mescla de cansaço e gratidão. Ela, ainda com a mão enfaixada latejando, verificou rapidamente o pulso, o semblante se tornando mais sério.
— Lady Lihua, precisamos avaliar como você se encontra. — disse, enquanto ajustava cuidadosamente os travesseiros, preparando-se para examinar a gestante sem causar nenhum desconforto.
Jin-Ye, enfim, ficou próxima dos braços de sua mãe Ah-duo, que a envolveu com cuidado, e um silêncio quase sagrado tomou o quarto, como se todos estivessem segurando a respiração diante da frágil paz que precisava ser restaurada.
— Obrigada por cuidar dela... — murmurou Ah-duo, baixinho, olhando Maomao com uma mistura de respeito e preocupação.
Maomao respirou fundo, sentindo o peso de tudo que tinha acontecido minutos antes, mas agora a prioridade era clara: proteger Lady Lihua e seu bebê, custe o que custar.
— Vou pedir apenas que no momento do exame, eu fique a sós com Lady Lihua, para poupar do constrangimento. — Maomao pediu enquanto prendi os cabelos num coque desajeitado.
O imperador assentiu, firme, mas com a voz mais contida do que antes.
— Como desejar, Maomao. Apenas faça o que for necessário para protegê-la e ao bebê.
Ah-duo, ao lado, passou a mão sobre o ombro da filha Jin-Ye, tentando transmitir calma.
— Jin-Ye, venha comigo por enquanto. — a princesa olhou para a mãe, relutante, mas se deixou conduzir, o braço enlaçando o de Ah-duo enquanto desviava o olhar de Maomao e da cama de Lady Lihua.
Suiren, silenciosa e atenta, permaneceu discretamente junto à porta, observando o ambiente com olhos que transmitiam cuidado e vigilância. A presença dela era quase protetora, mas respeitosa — sabia que naquele momento Maomao precisava de espaço.
Maomao prendeu os cabelos num coque improvisado, os dedos ágeis ajustando os fios rebeldes, respirando fundo para organizar o próprio nervosismo. O pulso latejava levemente sob a bandagem, mas ela não deixava transparecer qualquer hesitação.
— Vamos começar, Lady Lihua. — Sua voz saiu firme, mas suave, quase sussurrada, como quem fala com alguém que precisa sentir segurança acima de tudo. — Eu cuidarei de tudo. Apenas tente relaxar.
Lady Lihua ergueu os olhos de mel, cansados mas confiantes, e acenou levemente, permitindo que Maomao se aproximasse. Maomao sentiu a responsabilidade pesar ainda mais sobre os ombros, mas, ao mesmo tempo, houve uma clareza inesperada: nada mais importava além daquele momento, além de proteger a vida frágil que crescia no ventre da consorte.
O quarto, antes turbulento com gritos e fúria, agora parecia um santuário silencioso. Cada respiração, cada toque, cada olhar compartilhado entre Maomao e Lady Lihua carregava a intensidade de tudo que estava em jogo. Jin-Ye, Ah-duo e o imperador aguardavam do lado de fora, como se cada segundo contado ali dentro pudesse determinar o destino de todos.
Maomao inspirou fundo, ajeitando a bandagem na mão, sentindo a dor latejar, mas ignorando-a. Agora não havia espaço para raiva, não havia espaço para medo — apenas para o cuidado absoluto, preciso, e intransigente.
— Vamos começar. — repetiu, decidida, enquanto colocava a mão com delicadeza sobre o ventre de Lady Lihua, iniciando o exame que poderia salvar mãe e bebê.
Maomao ajustou a posição de Lady Lihua na cama, certificando-se de que os travesseiros a sustentassem confortavelmente. Cada gesto era medido, preciso, como se o toque pudesse transmitir segurança. A respiração da consorte ainda era leve, mas um leve tremor das mãos denunciava o nervosismo.
— Sinta-se à vontade para me dizer se algo dói, Lady Lihua. — Maomao disse, a voz baixa, firme, mas envolta em suavidade. — Vou começar com um exame simples, só para avaliar como está tudo até agora.
Lady Lihua assentiu, o olhar de mel fixo nos olhos azuis da médica, e murmurou:
— Eu confio em você... Mas estou... um pouco assustada.
Maomao apertou delicadamente a mão da consorte, sem quebrar a postura profissional, mas transmitindo empatia.
— Isso é normal. Não se preocupe, estou aqui para proteger você e o bebê. Não vou deixar que nada aconteça.
Ela colocou a mão com cuidado sobre o ventre, sentindo a temperatura da pele e buscando qualquer sinal de hematomas ou irregularidade, o toque era leve, firme e experiente, mas cada músculo de Maomao permanecia tenso, como se cada instante carregasse um peso vital.
— Os sangramentos das últimas semanas foram bem intensos e me causaram muita dor... — Lady Lihua murmurou, a voz quase um sussurro. — Eu tentei não preocupar ninguém... mas... estava difícil.
Maomao respirou fundo, segurando a própria mão enfaixada, o peso da raiva e da preocupação ainda latejava, mas agora precisava ser canalizado em cuidado absoluto.
— Você fez bem em me contar agora. — disse ela, mantendo a calma, mas firme. — Vamos avaliar tudo com atenção. Preciso que fique relaxada, mesmo que seja difícil.
Lady Lihua fechou os olhos, permitindo que a boticária começasse a avaliação detalhada. Maomao inclinou-se levemente, sentindo o pulso delicado da consorte, aferindo pressão e batimentos. A cada toque, tentava equilibrar precisão médica e tato humano, porque sabia que a tensão emocional também afetava o bebê.
— Está sentindo alguma dor agora? — perguntou, observando a respiração irregular de Lady Lihua.
— Um pouco... na região inferior... — admitiu a consorte, apertando os travesseiros com força. — Mas é suportável...
Maomao assentiu, os olhos verdes percorrendo cada detalhe do corpo da paciente.
— Você está reagindo bem, apesar dos sangramentos. Preciso que continue respirando devagar, assim.
Um silêncio pesado se estabeleceu no quarto, apenas quebrado pelo som da respiração sincronizada das duas mulheres. Cada toque de Maomao era meticuloso: ela avaliava a tensão abdominal, a posição do bebê, qualquer sinal de inflamação ou risco de novo sangramento.
— O bebê está estável... — Maomao disse finalmente, com a voz mais firme, mas carregada de alívio contido. — Mas precisamos manter repouso absoluto e a medicação correta, as damas de companhia não podem mais interferir.
Lady Lihua abriu os olhos de mel, um fio de alívio se misturando ao cansaço.
— Obrigada, Maomao... Eu... confio em você de todo coração.
Maomao inclinou-se, ajeitando os cabelos azul-escuro de Lihua com cuidado, como se aquele gesto pudesse transmitir ainda mais segurança.
— E eu farei tudo para que você fique bem. O bebê também. Não se preocupe, Lady Lihua.
A consorte sorriu levemente, um sorriso que misturava gratidão e fragilidade, antes de fechar os olhos novamente para descansar, confiante pela primeira vez em semanas.
Maomao, por sua vez, recostou-se levemente, respirando fundo, permitindo-se um instante de alívio, mas o olhar permaneceu vigilante, determinado. Cada segundo dali em diante seria dedicado a proteger a vida frágil que se desenvolvia, mesmo sabendo que a ameaça das damas de companhia ainda pairava fora do quarto.
— Agora, Lady Lihua, vamos ajustar sua dieta e os medicamentos. — disse Maomao, a voz firme, profissional, mas cheia de cuidado. — Nada mais será feito sem meu consentimento. Eu estarei ao seu lado, sempre.
A consorte suspirou, fechando os olhos e relaxando nos travesseiros.
— Obrigada... de verdade.
Maomao apertou delicadamente a mão enfaixada contra o próprio peito, sentindo a responsabilidade e o peso de proteger aquelas duas vidas — a de Lady Lihua e a do bebê — como se fossem partes de si mesma.
[. . .]
O quarto do Pavilhão de Cristal respirava uma calma frágil quando Maomao finalmente se afastou, permitindo que Lady Lihua descansasse um pouco na companhia do Imperador, da Imperatriz e da princesa Jin-Ye que chorava sem parar observando a mãe na cama. Ela ajeitou a bandagem na mão, respirou fundo e saiu, encontrando o corredor já ocupado por figuras preocupadas e familiares.
Jinshi foi o primeiro a se aproximar, passos firmes, expressão ainda carregada da tensão que havia deixado o pátio minutos antes. Jiang e Lahan vinham logo atrás, atentos, como se a qualquer movimento inesperado pudessem agir.
— Como ela está? — perguntou Jinshi, os olhos fixos na boticária.
— Tudo bem. — Maomao respondeu, firme, mas com leve sorriso. — Ela ainda está irritada com toda a situação que aconteceu, mas fisicamente está estável. O bebê também.
Jinshi soltou um suspiro de alívio, aproximando-se de Maomao com passos cuidadosos, e a envolveu num abraço firme, terno, como se pudesse transmitir segurança apenas com a presença. Maomao suspirou, apoiando-se nele, e um sorriso pequeno mas sincero surgiu em seu rosto cansado.
No mesmo instante, um pequeno vulto correu pelo corredor: Liang, surgia entre os pés de todos, com olhos grandes e curiosos. Antes que alguém pudesse reagir, o garoto abraçou Maomao com força, subindo um pouco nas pontas dos pés para alcançar os ombros dela.
— Maomao! — exclamou ele, com a inocência misturada a admiração. — Eu vi tudo! Você e Jin-Ye foram incríveis!
Maomao, surpresa, retribuiu o abraço, meio sem jeito, mas sorrindo.
— Liang... você viu mesmo?
— Sim! — respondeu ele, os olhos vermelhos de excitação. — Eu também não gosto das damas de companhia da mamãe! E você... você é realmente uma princesa corajosa!
A boticária arqueou as sobrancelhas, um sorriso contido surgindo nos lábios.
— Princesa corajosa, é? — disse, com leve tom de brincadeira, enquanto acariciava a cabeça pequena do garoto. — E você tem certeza que não está exagerando?
— Não! — insistiu Liang, com firmeza de criança. — Eu tenho orgulho de ter uma irmã como você na família agora!
Maomao sentiu o abraço firme do pequeno Liang e não conseguiu evitar um sorriso envergonhado, os ombros se curvando levemente sob a força do garoto. Seus olhos percorreram rapidamente Jinshi, que apenas a observava com um sorriso tranquilo, e depois Jiang, cujo semblante sério parecia suavizado pelo momento inesperado.
— Você vai esmagar assim princesa, Liang! — brincou Jiang, tentando aliviar a pressão do abraço, mas o garoto apenas riu, apertando-a ainda mais.
Lahan, parado um pouco mais distante, não conteve a risada baixa, quase abafada. Observava a irmã gêmea sendo literalmente "disputada" por metade do palácio, e a cena lhe parecia surreal. Ele nunca havia imaginado que, um dia, Maomao fosse entrar tão intimamente na rotina da família e que crianças, imperador, consortes e aliados a envolvessem de tal maneira.
— Bem... parece que agora terei que dividir minha irmã gêmea com todo o palácio. — murmurou Lahan, mais para si mesmo do que para os outros, enquanto observava a bagunça afetiva que se formava ali.
Maomao soltou uma risadinha tímida, ainda corada, enquanto soltava o pequeno Liang com cuidado, Jinshi estendeu a mão para ela, segurando-a brevemente, e ela respondeu com um aperto suave, silencioso, mas carregado de confiança e afeto.
— Vamos garantir que Lady Lihua descanse bem agora. — disse Maomao, retomando o tom sério, mas com um brilho de leveza nos olhos. — Depois, podemos reorganizar o Pavilhão e resolver tudo o que for preciso.
Liang, ainda olhando para ela com admiração, assentiu energicamente, como se entendesse a importância de cada palavra. Maomao respirou fundo, sentindo, pela primeira vez naquele dia conturbado, que, apesar de todo o caos, havia um pouco de ordem, calor humano e laços que valiam qualquer esforço.
Lahan continuou observando, sorrindo consigo mesmo, enquanto Jiang apenas cruzou os braços, satisfeitos por ver Maomao integrada à família, mesmo que isso significasse dividir atenção, cuidado e, às vezes, um pouco de paciência.
Aquele instante, breve e carregado de ternura, parecia prometer que, mesmo nos dias mais turbulentos, haveria espaço para coragem, afeto e proteção mútua..
Jinshi, vendo a cena, sorriu suavemente, passando a mão pelos cabelos de Liang antes de olhar novamente para Maomao com um misto de respeito e gratidão.
Maomao respirou fundo, sentindo o peso de toda a tensão do dia se misturar com uma sensação inesperada de acolhimento. A admiração do pequeno Liang, o reconhecimento de Jinshi e a tranquilidade de Lady Lihua formavam um refúgio emocional, ainda que breve, depois da tempestade que haviam enfrentado.
Lahan e Jiang trocaram olhares, satisfeitos, enquanto observavam Maomao se curvar levemente para acenar para o garoto. No corredor, a luz do final da tarde iluminava o grupo, como se um instante de paz tivesse finalmente se instalado depois do caos do dia.
Liang soltou Maomao, correndo para os braços de Jiang, mas olhou para ela mais uma vez, com os olhos brilhando de admiração.
— Obrigado, Maomao... de verdade!
Maomao sorriu, sentindo uma sensação de pertencimento que ia muito além da própria coragem. Pela primeira vez naquele dia, respirou sem a tensão apertando o peito — sabia que Lady Lihua estava segura, a família reunida e, de algum modo, o caos se transformara em laços mais fortes entre todos.
[. . .]
A luz suave da tarde penetrava pelas janelas do Pavilhão da Lua, envolvendo Maomao em tons dourados e quentes. Ela permanecia sentada na poltrona, a mão enfaixada apoiada cuidadosamente, organizando alguns registros do dia, mas a tensão ainda era visível em cada linha de seu corpo.
Ah-duo aproximou-se com passos silenciosos, porém firmes. Ao parar diante dela, não havia apenas autoridade imperial no olhar da imperatriz — havia um cuidado genuíno, uma atenção maternal que parecia atravessar o espaço entre elas, suave, quase palpável.
— Maomao... — começou Ah-duo, com a voz baixa, quase suave. — Posso perceber, mesmo quando você está acompanhada, que há algo de solitário em você.
Maomao ergueu os olhos, surpresa e tocada, mas permaneceu em silêncio, Ah-duo continuou, aproximando-se um pouco mais e sentando-se em uma poltrona próxima:
— Se algum dia sentir que precisa de alguém, alguém de confiança para conversar ou apenas para apoiá-la, saiba que pode recorrer a mim ou a Lady Gyokuyou. — a imperatriz suspirou levemente, os olhos fixos nos de Maomao, revelando sinceridade e ternura. — Saiba que existe pessoas que se preocupam com você, que proteja você, mesmo que de maneiras diferentes aqui dentro desse palácio.
O peito de Maomao apertou. Um calor inesperado subiu-lhe à garganta, e a sensação de acolhimento quase a fez soltar as lágrimas que havia contido durante todo o dia.
Ah-duo inclinou-se ainda mais, aproximando-se dela com cuidado e um gesto de ternura.
— Você cuidou de Lady Lihua... da minha amiga, da mulher que sempre considerei irmã. — disse, com voz carregada de emoção. — E eu sou grata a você por isso, Maomao. Por proteger não apenas a saúde dela, mas também o bebê. Eu vejo em você uma força, uma coragem... e quero que saiba que você é tão minha filha quanto de seus pais.
Maomao sentiu os olhos marejarem, engolindo a emoção que ameaçava escapar.
— Sinto-me... tão grata por suas palavras, Majestade... — murmurou, a voz embargada. — Sinto tanta falta dos meus pais, dos meus irmãos menores... Tudo parece tão diferente agora...
Ah-duo respirou fundo, a expressão suavizando-se, e colocou uma das mãos delicadamente no ombro de Maomao.
— Compreendo como se sente, me senti assim também quando casei com Yang. — sorriu envergonhada tampando os lábios sutilmente — Às vezes eu me sinto decepcionada por ter dado mais atenção a Jinshi por ser o herdeiro do trono e não ter estado tão presente na vida de Jiang e de Jin-Ye, devido às minhas ocupações reais ao lado de Yang. Sei que, de certa forma, não fui a mãe ideal. — fez uma pausa, olhando Maomao com intensidade serena. — Mas mesmo que eu esteja longe de ser como FengXian, que criou tão bem você, Lahan e os outros pequeninos, saiba que pode me chamar sempre que precisar. Também serei como sua mãe aqui no palácio.
Sem aviso, Ah-duo abriu os braços, envolvendo Maomao em um abraço firme, mas cheio de ternura e cuidado, Maomao se permitiu relaxar na presença daquela figura materna inesperada, sentindo o peso da solidão se dissolver por um instante.
— Você é corajosa, Maomao... mas até os mais corajosos precisam de alguém em quem se apoiar. Não se esqueça disso.
No silêncio que se seguiu, apenas a luz do entardecer preenchia o Pavilhão da Lua, envolvendo ambas em uma sensação profunda de cuidado, proteção e pertencimento. Maomao percebeu, pela primeira vez naquele dia conturbado, que não estava sozinha, que havia figuras maternas ali para guiá-la, e que, de algum modo, o palácio começava a se tornar um verdadeiro lar.
[. . .]
O sol da manhã filtrava-se pelas cortinas leves, espalhando raios dourados pelo quarto e tingindo os móveis de um brilho suave. O aroma das flores do jardim que chegava pela janela aberta misturava-se com o perfume de lençóis recém-trocados. Maomao permanecia deitada na cama, os cabelos esverdeados levemente despenteados caindo sobre o travesseiro, os lençóis ainda amassados pelo sono profundo e pelo cansaço que se arrastava desde o dia anterior. A mão enfaixada repousava sobre o peito, o corpo ainda carregando a fadiga de horas intensas de tensão e preocupação.
O som leve de passos interrompeu o silêncio do quarto, e Maomao sentiu o coração acelerar antes mesmo de abrir os olhos, Jinshi entrou, silencioso, quase flutuando pelo cômodo, mas sua presença era suficiente para preencher o espaço com segurança e calor. Ao sentir seu perfume familiar, Maomao relaxou, um sorriso tímido se formando nos lábios.
Ele se inclinou, aproximando o rosto dela, e começou a encher seu rosto de beijos rápidos e carinhosos, cada toque carregado de afeto e proteção, como se pudesse transferir toda a segurança que carregava para ela em instantes.
— Bom dia, minha princesa. — murmurou, a voz rouca pelo sono interrompido e pelo cansaço das conferências da noite anterior, mas cheia de suavidade.
Maomao ergueu-se ligeiramente, ainda envolta pelos lençóis, e respondeu, a voz embargada pelo sono e pela ternura do momento:
— Bom dia, Jinshi... — disse, desviando o olhar por um instante antes de encontrá-lo de novo. — Você chegou tarde ontem. Mal tivemos tempo de conversar.
Ele suspirou, encostando a testa na dela por um instante, os olhos brilhando de cuidado e preocupação.
— Eu sei... Sinto muito, mas hoje vamos aproveitar a manhã juntos, mesmo que seja só um pouco.
Um riso suave escapou de Maomao, misturando o cansaço à felicidade inesperada de ser cuidada.
— Ainda estou exausta... — murmurou, aninhando-se mais nos lençóis que a abraçavam com aconchego. — Mas ver você aqui já me anima.
Jinshi se afastou apenas o suficiente para sorrir, incentivando-a a permanecer deitada e confortável. Com passos silenciosos, foi até a cozinha e retornou alguns minutos depois, trazendo uma bandeja delicadamente organizada. Sobre ela, uma pequena xícara de chá fumegante soltava um aroma leve de jasmim, frutas frescas cortadas em pedaços perfeitos brilhavam sob a luz da manhã, e uma fatia de pão levemente tostada completava a composição simples, mas cuidadosa.
— Você precisa comer um pouco mais hoje. — disse, depositando a bandeja sobre a cama com delicadeza, evitando qualquer desconforto para Maomao. — Quero que seu dia comece bem. Não pode passar o dia sem energia, minha princesa.
Maomao olhou para ele, os olhos brilhando com ternura e uma pontada de emoção contida.
— Você sempre sabe como cuidar de mim... — disse, a voz quase um sussurro. — Eu... me sinto realmente sortuda.
Ele se aproximou novamente, sentando-se ao lado da cama, segurando sua mão enfaixada com cuidado, os dedos tocando com firmeza, mas sem machucar, transmitindo segurança e proximidade.
— Eu não poderia deixar você sozinha... depois de tudo que aconteceu ontem. Você merece cuidado, carinho... e um pouco de paz, pelo menos por enquanto.
Maomao inclinou-se ligeiramente, apoiando a cabeça no ombro dele, sentindo-se protegida, enquanto o aroma do chá e das frutas misturava-se com a calmaria da manhã. Por alguns instantes, o mundo lá fora desapareceu, e só restava a sensação de aconchego, segurança e afeto silencioso.
— Obrigada, Jinshi... — murmurou ela, fechando os olhos por um instante. — Por estar aqui, por tudo.
Ele sorriu suavemente, depositando um beijo firme e terno na testa dela, os lábios transmitindo mais cuidado do que qualquer palavra.
— Sempre, minha princesa, sempre estarei aqui.
O quarto permanecia banhado pela luz do amanhecer, o silêncio agora repleto de cumplicidade e proteção. Maomao sentiu, pela primeira vez em muito tempo, que poderia enfrentar qualquer desafio, sabendo que não estava sozinha e que havia alguém que a cuidava com todo o coração.
Maomao permaneceu quieta por alguns instantes, apenas sentindo o calor do corpo dele junto ao seu. A respiração de Jinshi era calma, profunda, mas cada vez que ela se aproximava mais, notava um leve tremor que denunciava tudo o que ele tentava esconder atrás da postura impecável.
Ela ergueu o rosto, encarando-o de perto, os olhos semicerrados ainda pela sonolência.
— Você parece cansado, Jinshi. — disse em voz baixa, quase um sussurro. — Dormiu mal?
Ele desviou o olhar por um instante, mas logo voltou a fitá-la, com aquele sorriso contido que usava quando não queria que ela percebesse demais.
— Se dormi mal, foi apenas porque fiquei tempo demais observando você. — respondeu, com honestidade simples, que a deixou sem palavras por alguns segundos.
Maomao enrubesceu, virando o rosto de leve, escondendo-se contra o peito dele.
— Você é impossível...
— Ou apenas sincero. — Jinshi inclinou-se, roçando os lábios contra o topo da cabeça dela, um gesto silencioso de devoção.
O ambiente estava tão tranquilo que até o som suave das cortinas movidas pela brisa parecia se misturar ao compasso de seus corações.
Ela suspirou fundo. — Sabe, eu não estou acostumada com isso. — murmurou, ainda aninhada nele. — Esse sentimento de... calma. Sempre foi tudo corrido, cheio de tarefas, de preocupações. Agora... — ela hesitou, como se temesse se entregar demais. — Agora eu só quero ficar aqui.
Jinshi fechou os olhos, absorvendo cada palavra como se fosse uma promessa.
— Então fique. — disse baixinho. — O mundo pode esperar um pouco mais.
Por alguns minutos, eles permaneceram assim: ela respirando contra o peito dele, ele segurando-a como se o simples ato fosse o bastante para sustentar o universo inteiro.
Até que Maomao, num impulso, ergueu o rosto novamente, encontrando o dele tão próximo que não havia mais espaço para barreiras.
— Jinshi... — chamou, sem saber exatamente o que queria dizer.
Ele não perguntou, apenas se inclinou e a beijou, suave a princípio, como quem pede permissão, e depois mais profundo, como quem já não tem dúvidas de onde pertence.
Quando se afastaram, os dois estavam sorrindo, cúmplices, como se aquele instante fosse um segredo só deles.
— Se continuar assim... — murmurou ela, ainda corada — não vou conseguir levantar da cama hoje.
Jinshi riu baixo, beijando-lhe novamente a ponta do nariz.
— Que assim seja, hoje, você não precisa ir a lugar nenhum.
— Jinshi... — murmurou Maomao, ainda deitada junto a ele, o olhar atento como se planejasse tudo ali, entre os lençóis. — Preciso que você informe a Basen. Peça que ele vá com alguns soldados até a fazenda Ma. Quero que tragam Lady Lishu logo... oficialmente para o palácio. Quero que ela seja minha dama de companhia. — Os olhos dela brilharam com firmeza, embora a voz estivesse suave.
Jinshi arqueou as sobrancelhas, surpreso, mas logo sorriu com ternura.
— Se é isso que deseja, assim será. — Seus dedos percorreram de leve a mão dela enfaixada, como se reforçasse a promessa. — Mas me diga... o pato realmente precisa vir junto?
Maomao soltou um risinho baixo, semicerrando os olhos.
— Sim. Não vou deixá-lo para trás, ele faz parte da família Ma, quer goste ou não.
Ele suspirou fundo, mas não conseguiu esconder o sorriso enviesado.
— Um dia ainda vou dar um jeito de assar aquele pato, nem que depois compre um cachorro para Basen, só para compensar.
Maomao bateu de leve no peito dele com a mão livre, fingindo estar ofendida.
— Nem pense nisso, Jinshi.
Ele riu baixinho, puxando-a mais para perto. Seus olhos, no entanto, ganharam um tom sério.
— As caravanas de Li já começaram a chegar, o comércio está florescendo... especiarias, tecidos raros, até mesmo livros. Se quiser, pode ir até a feira. Jiang e Jin-Ye poderiam acompanhá-la.
Maomao se remexeu, acomodando-se melhor na cama, o observando como se medisse a proposta.
— Talvez seja uma boa ideia... Preciso distrair a cabeça, se chegarem novos livros de medicina, não posso deixar passar.
Jinshi sorriu ao ouvi-la, os lábios se curvando num carinho silencioso, ele se inclinou devagar, roçando seus lábios nos dela com uma delicadeza que fez o mundo ao redor desaparecer. Um beijo lento, quase reverente, como se cada movimento fosse apenas para sentir e memorizar a suavidade dela contra si.
Quando se afastou, sem romper o contato visual, estendeu a mão até a mesinha ao lado da cama. Pegou um pequeno saquinho de moedas, o som metálico tilintando suavemente.
— Use o quanto quiser. — disse ele, depositando o saquinho sobre a palma dela. — Compre o que tiver vontade... livros, tecidos, ervas. O que desejar, Maomao.
Ela o fitou em silêncio por um instante, sentindo o peso não apenas das moedas, mas da confiança e da entrega que havia naquele gesto.
[. . .]
O Pavilhão da Lua estava mergulhado em um silêncio acolhedor, quebrado apenas pelo canto suave de alguns pássaros nos jardins e pelo farfalhar das cortinas de linho que se moviam ao sabor da brisa. O ar trazia um frescor leve, misturado ao perfume doce das flores que haviam sido regadas naquela manhã. Sobre a mesa baixa, repousavam os livros recém-adquiridos nas caravanas e alguns tecidos macios dobrados com perfeição, ainda exalando aquele aroma de tinta e seda novos.
Maomao estava sentada no tatame, os pés descalços encolhidos sob a saia simples. Passava a ponta dos dedos pelo tecido azul-esverdeado que escolhera, com um ar pensativo, quase sonhador. A luz dourada do sol atravessava as frestas da janela, pintando reflexos suaves sobre sua pele clara, enquanto o contraste do cabelo escuro destacava ainda mais a serenidade de seus traços.
Jin-Ye, sempre à sua sombra, mantinha-se próximo, de pé, com a postura impecável, as mãos repousavam cruzadas dentro das mangas do robe, os olhos atentos acompanhando cada gesto dela, como se estivesse diante de algo precioso demais para desviar o olhar.
— Jin-Ye... — a voz de Maomao rompeu o silêncio com suavidade, quase como um pensamento dito em voz alta. Ela não ergueu imediatamente os olhos, mantendo-os no tecido entre as mãos. — O que você acha que Zui gostaria de me ver usando com mais frequência?
A pergunta fez o criado erguer ligeiramente as sobrancelhas, tomado por uma discreta surpresa. Logo, porém, seus lábios se curvaram em um sorriso contido, quase cúmplice.
— Provavelmente... — disse após uma breve pausa, ponderando cada palavra como quem mede o peso de uma confidência. — Ele com certeza gostaria de vê-la enfeitada com joias.
Maomao finalmente ergueu o olhar em sua direção, os olhos azuis faiscando de curiosidade.
— Joias?
— Sim. — Jin-Ye inclinou-se levemente, o tom firme, mas delicado, como quem revela um segredo guardado. — Meu irmão ama a simplicidade com que você se apresenta no dia a dia. Isso o fascina, porque mostra quem realmente é, mas, nas ocasiões em que precisa se arrumar, ele se encanta ainda mais. Eu diria que, no fundo, meu irmão apreciaria vê-la adornada com joias... mesmo que jamais lhe diga diretamente.
Houve um silêncio breve, Maomao desviou o olhar, enrolando distraidamente um fio solto do tecido em torno do dedo. O rubor que surgiu em suas bochechas era quase imperceptível, mas Jin-Ye não deixou de notá-lo.
— Entendo... — murmurou, num tom baixo, quase íntimo. Depois, ergueu os olhos de novo, desta vez com uma ponta de humor travesso cintilando em sua expressão. — Então... se você o induzisse a me comprar joias, para que eu as usasse em ocasiões especiais... você acha que ele cederia?
O sorriso de Jin-Ye se ampliou um pouco mais, mas sem perder a compostura, ela se curvou levemente, como se prestasse respeito a uma ordem velada.
— Se essa for a sua vontade, Maomao, farei o possível para que tais pensamentos floresçam na mente dele.
A jovem não conteve uma risadinha abafada, cobrindo a boca com a mão, havia um encanto inusitado na ideia: ela, que nunca dera valor a adornos, agora se divertia com a possibilidade de provocar Jinshi com algo tão mundano.
O tempo correu lento, como se o Pavilhão guardasse aquele instante só para os dois, os livros permaneciam imóveis na mesa, os tecidos brilhavam sob a luz do sol, e Jin-Ye mantinha-se ereto, discreto e atento — guardião silencioso daquela mulher que, mesmo em suas palavras mais simples, tinha o poder de alterar o destino do coração de seu senhor.
[. . .]
O escritório de Jinshi estava mergulhado em um silêncio solene, quebrado apenas pelo som das folhas sendo viradas e pelo roçar dos pincéis contra o papel. O ar ali era mais denso do que no pavilhão — carregava o cheiro de tinta fresca, madeira polida e um leve toque de chá amargo que esfriava sobre a mesa. À frente, a Imperatriz Ah-duo, impecavelmente sentada, mantinha a postura ereta enquanto observava atentamente os relatórios que Jinshi lhe mostrava. Seus olhos, sempre analíticos, cintilavam com uma frieza calma, a mesma que utilizava para pesar palavras e avaliar intenções nos corredores do poder.
— Os conselheiros da ala leste parecem insistir em pressionar o tribunal para que sejam revistos os impostos das caravanas... — murmurou ela, deslizando os dedos finos pelo pergaminho aberto. — Creio que é mais um pretexto para inflar os cofres particulares.
Jinshi suspirou baixo, apoiando o queixo sobre a mão enquanto anotava algo. A concentração em seu rosto o deixava ainda mais imponente; era fácil esquecer, naquele momento, que aquele homem, tão hábil no cálculo político, era o mesmo que à noite se deitava ao lado de Maomao com um suspiro cansado e um carinho escondido nos gestos.
Foi nesse instante que Jin-Ye entrou no aposento, a porta de madeira deslizou suavemente, e a presença dela foi anunciada pelo ranger discreto do tatame sob seus passos. Com a serenidade que lhe era característica, ela fez uma leve reverência.
— Perdoem a interrupção. — a voz baixa, respeitosa, atraiu o olhar dos dois. — Acabo de regressar das caravanas, e... trouxe algumas observações.
Jinshi ergueu os olhos, fixando a irmã com uma expressão séria, mas sem hostilidade.
— Observações? — indagou, já esperando algo prático.
Jin-Ye, porém, manteve a postura calma e prosseguiu com um tom mais suave:
— Durante a manhã, acompanhei Maomao à feira, notei que ela se deteve mais do que o habitual diante das joias... parecia tentada, ainda que tentasse disfarçar. — ela fez uma pausa sutil, deixando que o peso das palavras fosse absorvido. — Seria interessante, talvez, que você mesmo a presenteasse.
O efeito foi imediato. Jinshi, que até então segurava o pincel entre os dedos, deixou-o repousar sobre a mesa, largando a papelada. Sua atenção, antes cativa dos relatórios, agora se voltava inteiramente ao irmão. Havia uma chama curiosa e, ao mesmo tempo, desconfiada em seus olhos dourados.
— Joias? — repetiu, como se a palavra fosse estranha em sua boca.
"Ela detesta joias. Sempre deixou isso claro, como se o brilho das pedras fosse um incômodo inútil. Ainda assim, confesso que gosto da ideia de vê-la adornada, carregando um detalhe que chame atenção para si — embora ela mesma pareça fazer de tudo para passar despercebida. É estranho... conheço Maomao o suficiente para saber que, se parou diante de uma barraca, não foi por vaidade. Provavelmente havia algum ingrediente escondido, algum pó raro ou essência medicinal guardada ao lado das joias, e Jin-Ye apenas interpretou mal. Mas parte de mim... parte de mim gostaria que, só por um instante, ela desejasse algo pelo simples capricho de desejar. Gostaria de ser capaz de presenteá-la não por necessidade, mas para arrancar dela um olhar diferente, um sorriso raro que não nasce da ironia ou da obrigação.", Jinshi pensou distraído tamborilando os dedos sobre a mesa.
Ah-duo, até então em silêncio, permitiu-se um sorriso pequeno, quase cúmplice.
— É uma ótima forma de presentear sua esposa — disse ela, erguendo o olhar para o filho. — Além disso, demonstra cuidado. Você não pode esperar que Maomao se encante apenas com relatórios assinados e noites de trabalho acumuladas, não é?
Jinshi arqueou a sobrancelha, um tanto incrédulo diante da intervenção da mãe.
— Está sugerindo que eu vá à feira comprar joias?
— Sim. — Ah-duo respondeu sem hesitar, o tom firme, mas com a leveza de quem sabia exatamente onde cutucar. — Se quiser companhia, eu mesma posso acompanhá-lo. Estou livre de meus afazeres agora.
O silêncio pairou por um instante, Jinshi desviou o olhar para Jin-Ye, que permanecia impassível, embora houvesse no fundo de seus olhos um lampejo de divertimento contido. A mais jovem franziu o cenho, encarando-o com seriedade.
— Também posso ir — acrescentou Jin-Ye, sua voz calma, porém incisiva. — Depois você pode retornar ao trabalho. Pelo menos arrancaria um sorriso de Maomao.
O ambiente ficou suspenso entre a resistência de Jinshi e a determinação silenciosa da mãe e da irmã. Era raro vê-lo encurralado em questões tão triviais, mas não havia como negar que o pensamento de ver Maomao sorrir o desarmava.
Ah-duo inclinou-se um pouco, os olhos cintilando com uma ironia maternal:
— Vamos, filho. Um presente pode significar mais do que mil palavras.
Por fim, Jinshi soltou um suspiro pesado, vencido pela dupla conspiração.
— Está bem... — murmurou, a contragosto, mas já se levantando. — Iremos à feira.
A satisfação silenciosa no olhar de Ah-duo e o leve inclinar de cabeça de Jin-Ye foram a confirmação de que haviam conseguido o improvável: arrancar Jinshi de seus papéis para algo que não envolvia política ou estratégia, mas apenas o coração.
O caminho até a feira estava tomado pelos sons característicos das caravanas: o tilintar de metais, o chamado dos mercadores exaltando seus produtos, o aroma de especiarias e tecidos recém-tintos que se misturava no ar. Jinshi caminhava entre Ah-duo e Jin-Ye, mantendo a postura imponente de sempre, embora o brilho discreto nos olhos traísse o incômodo por estar fora de seu escritório.
— Se ao menos eu pudesse resolver os assuntos de estado tão facilmente como comprar um presente... — murmurou ele, baixinho, como se falasse consigo.
Ah-duo riu suavemente, pousando a mão de leve sobre o braço do filho.
— E é justamente por isso que você deve aproveitar o momento, Jinshi, presentear sua esposa é mais do que um gesto, é uma forma de mostrar atenção.
Jin-Ye, caminhando logo atrás, acrescentou:
— E se a senhora Maomao sorri, todo o palácio respira em paz.
Eles chegaram a uma das tendas mais luxuosas, onde bandejas de madeira exibiam fileiras de joias finas vindas do país de Li. O mercador fez uma reverência imediata, ansioso para mostrar sua coleção a alguém de tão alta importância.
Jinshi se aproximou das bandejas, e pela primeira vez pareceu realmente perdido.
Diante dele havia colares trabalhados em ouro com pequenos pingentes de jade, tiaras delicadas cravejadas de pedras vermelhas, brincos em formatos de flores e pássaros, pulseiras para o tornozelo que tilintavam levemente, e até correntes finas feitas para serem usadas no quadril, realçando movimentos sutis.
Ele suspirou, passando os dedos por uma peça e depois por outra, sem conseguir se decidir.
— Qual delas Maomao gostaria...? — murmurou, mais para si mesmo do que para os outros.
Ah-duo cruzou os braços, observando com um sorriso divertido.
— Se não sabe escolher, escolha todas. Ela saberá quando e como usá-las.
Jin-Ye sorriu de canto, inclinando-se discretamente para o ouvido do irmão:
— Não há erro em exagerar um pouco quando se trata dela.
No fim, Jinshi começou a separar sem hesitar: uma tiara dourada adornada com pequenas flores de jade, um conjunto de colares finos com pedras claras, pulseiras para os punhos e para os pés, brincos pendentes que refletiam a luz do sol, e até mesmo um delicado enfeite para o quadril com pequenas correntinhas prateadas. O mercador, visivelmente exultante, embrulhava peça por peça em caixas de seda.
Quando terminou, Jinshi ergueu o olhar, ainda um pouco atordoado pelo volume da compra.
— Talvez eu tenha exagerado... — comentou, embora a expressão séria não escondesse o leve rubor nas orelhas.
Ah-duo riu baixinho, orgulhosa.
— Não, meu filho. Apenas garantiu que Maomao nunca esqueça o quanto é preciosa.
Jin-Ye assentiu, satisfeita por ver o irmão finalmente ceder à ideia.
— E verá que, mesmo usando apenas uma peça, Maomao conseguirá brilhar mais do que qualquer outra dama.
Com as caixas nas mãos dos servos, Jinshi respirou fundo, já imaginando a expressão de surpresa — e talvez embaraço — no rosto da esposa quando recebesse tantas joias.
— Que ao menos ela sorria com isso — murmurou ele, retomando o passo pelo mercado.
[. . .]
O Pavilhão da Lua permanecia em silêncio absoluto, exceto pelo suave sussurrar do vento que entrava pelas janelas abertas e agitava levemente as cortinas de seda. O perfume fresco das flores recém-regadas misturava-se à fragrância doce do óleo de incenso queimando nas lanternas de bronze, criando um clima acolhedor e quase mágico.
Jin-Ye entrou com passos delicados, mantendo a postura régia e elegante, enquanto dois servos carregavam pilhas de caixas adornadas com fitas e selos dourados, cada uma exalando o aroma de madeira e de novidades recém-chegadas das caravanas. Ao notar Maomao na soleira, ainda com os cabelos um pouco despenteados e os olhos semicerrados pelo sono, Jin-Ye deixou escapar um sorriso cúmplice, quase maternal.
— Trouxe algumas coisas que acho que vão te interessar. — disse a princesa, com um tom baixo, quase conspiratório, permitindo que a expectativa flutuasse entre elas.
Maomao ergueu levemente as sobrancelhas, surpresa, um brilho curioso surgindo em seu olhar.
— Oh... então ele realmente comprou?
Jin-Ye inclinou a cabeça, o cabelo escuro caindo em mechas suaves sobre o ombro, e deu um sorriso divertido.
— Comprou mais do que deveria... confesso que perdi a conta.
Quando as caixas foram abertas, o brilho das joias refletiu nas lanternas de óleo, projetando pequenos feixes de luz coloridos nas paredes e no tatame de madeira polida. Maomao ficou imóvel por alguns segundos, absorvendo o esplendor diante de si: colares delicados com pingentes de safiras e rubis, tiaras cravejadas de pedras cintilantes, braceletes que tilintavam suavemente a cada movimento e até enfeites finos para o quadril, com correntes leves e graciosas.
Ela suspirou, um misto de encantamento e descrença, a mão percorrendo com reverência cada peça, como se fossem objetos de outro mundo.
— Ele enlouqueceu... tudo isso só para mim?
— Parece que sim. — respondeu Jin-Ye, cruzando os braços e observando a irmã com um sorriso satisfeito. Com um gesto, dispensou os servos, que se retiraram em silêncio, deixando o pavilhão somente com a dupla.
Maomao voltou-se para Jin-Ye, os olhos cintilando com um brilho travesso.
— Pode guardar um segredo? — sua voz era baixa, quase sussurrada, carregada de cumplicidade.
— Segredo? — Jin-Ye ergueu uma sobrancelha, intrigada, inclinando a cabeça enquanto observava a expressão da irmã.
— Sim. — Maomao sorriu, mordendo levemente o lábio inferior. — Mas antes disso, vou precisar da sua ajuda... quero tomar banho demorado, passar alguns óleos essenciais pelo corpo e preciso que trance meu cabelo adicionando alguns adornos.
O olhar de Maomao era quase desafiador, carregado de algo que Jin-Ye não conseguia decifrar completamente. A princesa arregalou os olhos, surpresa, mas logo seu sorriso se alargou, divertido e cúmplice.
— Está tramando algo, não está?
— Talvez... — Maomao riu baixinho, o som leve enchendo o espaço entre elas. — Estou inspirada. Quero usar as joias ainda esta noite.
Enquanto Jin-Ye preparava a água morna perfumada, soltando vapor levemente adocicado, e ajudava Maomao a se despir com cuidado, cada gesto era carregado de intimidade silenciosa. O vapor envolvendo os corpos criava uma atmosfera quase etérea, e Maomao fechou os olhos, entregando-se à sensação da pele sendo massageada suavemente com os óleos aromáticos, a fragrância de jasmim e rosa envolvendo cada movimento.
— Vai usar para jantar? — Jin-Ye arriscou, começando a separar os fios de cabelo da irmã para a trança, deslizando o pente com movimentos delicados e precisos.
— Não exatamente... — a voz de Maomao saiu baixa, sedutora sem esforço. — Quero usar de forma especial. Se é que entende, no lugar de jantar... Ser a janta.
Jin-Ye parou por um instante, encarando o reflexo de Maomao no espelho de bronze polido à frente, cada detalhe da irmã refletido com perfeição: a pele levemente rosada pelo vapor do banho, os olhos semicerrados e o cabelo úmido caindo em ondas suaves sobre os ombros. Um sorriso de malícia e diversão curvou seus lábios.
— Oh... então é isso.
— Isso o quê? — Maomao fingiu inocência, embora o rubor em suas bochechas fosse impossível de ocultar.
— Vai usar apenas as joias, não é? — Jin-Ye concluiu, apertando de leve a trança, segurando o riso que ameaçava escapar.
Maomao inclinou-se levemente para frente, os olhos semicerrados e um sorriso tímido, mas ousado, escapando de seus lábios.
— Talvez uma túnica leve... mas apenas as joias.
Jin-Ye não conteve a risada, cobrindo os lábios com a mão.
— Céus, irmã, se ele sobreviver a isso, será um milagre.
Maomao riu também, deixando a cabeça pender suavemente para trás, confiando totalmente o penteado às mãos habilidosas da princesa.
— Não quero que ele sobreviva ileso... apenas quero que nunca esqueça.
— Então, — Jin-Ye disse, com tom provocativo, trançando os fios com cuidado e firmeza — já posso avisar que ele provavelmente não conseguirá trabalhar amanhã.
Ambas caíram numa gargalhada abafada, cúmplices, o som ecoando suavemente pelo pavilhão e se misturando à luz dourada do entardecer, antecipando a noite que estava prestes a transformar não apenas o coração de Jinshi, mas toda a atmosfera do Pavilhão da Lua.
O vapor ainda se erguia em suaves ondas da banheira de bronze, enchendo o Pavilhão da Lua com uma névoa perfumada de jasmim e rosas. Maomao encostava-se na lateral, os olhos semicerrados e a respiração suave, enquanto Jin-Ye se inclinava por cima, penteando cada mecha molhada com cuidado, deslizando os dedos sobre os fios úmidos.
— Sinta o óleo. — disse Jin-Ye, deslizando as mãos pelo ombro de Maomao, espalhando a essência quente e perfumada. — Ele vai nutrir sua pele e te deixar com um brilho delicado.
Maomao suspirou baixo, sentindo o toque da irmã em cada músculo tenso do corpo, os dedos habilidosos massageando as costas, ombros e braços, desatando nós invisíveis acumulados nos dias de viagem e tensão. Cada toque parecia cuidadoso demais para ser apenas rotina; havia uma atenção que fazia Maomao se sentir vulnerável e protegida ao mesmo tempo.
— Jin-Ye... — murmurou, a voz rouca e suave — obrigada.
— Não agradeça ainda — brincou a princesa, sorrindo por cima do ombro, enquanto deslizou as mãos até as coxas, com movimentos leves e ritmados, evitando qualquer constrangimento, mas oferecendo conforto e delicadeza. — Você precisa ficar completamente relaxada.
Maomao deixou o corpo ceder à água morna, fechando os olhos, sentindo o calor da banheira e o perfume do óleo. A sensação de ser cuidada assim era quase intoxicante, e por um instante o mundo inteiro pareceu se reduzir ao calor, à água e à presença de Jin-Ye.
Quando a água esfriou levemente, Jin-Ye segurou delicadamente o braço de Maomao, ajudando-a a sair da banheira. Toalhas macias a envolveram, e Maomao sentiu o toque seco e quente contrastando com a pele úmida. Cada passo até o espelho de bronze do quarto era guiado com paciência, e Jin-Ye começou a trançar o cabelo úmido, criando padrões complexos que depois serviriam de base para as joias.
— Agora... vamos ver quais adornos combinam com você — disse Jin-Ye, abrindo a primeira caixa e revelando uma tiara de ouro delicadamente cravejada com safiras.
Maomao tocou a peça com cuidado, deslizando os dedos sobre as pedras frias e polidas, sentindo o peso delicado sobre a palma. Depois colocou a tiara suavemente sobre a cabeça, ajeitando os fios trançados para que se encaixassem perfeitamente. O reflexo no espelho mostrou-lhe uma imagem quase irreal: ela simples, mas transformada, cada joia destacando a delicadeza de seus traços e o contorno elegante do rosto.
— E este colar? — perguntou Jin-Ye, entregando um pingente de rubi que parecia brilhar com luz própria.
Maomao inclinou a cabeça, observando o reflexo e sentindo uma excitação curiosa ao imaginar Jinshi vendo-a assim: cada detalhe calculado, cada pedra posicionada, uma mistura de inocência e provocação. Ela colocou o colar com cuidado, ajustando-o sobre o peito e sentindo a leve pressão das correntes de ouro contra a pele macia.
— Acho que vou usar também essas pulseiras — murmurou Maomao, deslizando delicadamente cada peça nos pulsos, observando a forma como tilintavam levemente a cada gesto. — E talvez... essas para os pés.
Jin-Ye riu baixinho, observando a irmã se transformar lentamente em uma visão que mesclava autoridade e sedução sutil, cada escolha das joias feita com atenção e um toque de travessura.
— Você sabe que ele vai notar tudo, não é? — disse Jin-Ye, ajeitando uma última trança.
Maomao sorriu, desviando os olhos do espelho e encarando a princesa. — Quero que ele note. Mas... quero que seja um efeito que dure. Cada detalhe, cada movimento, cada olhar dele... — parou, mordendo o lábio inferior, sentindo um rubor subir lentamente. — Quero que nunca esqueça.
Jin-Ye se aproximou, ajeitando os fios soltos e certificando-se de que cada adorno estivesse no lugar perfeito. — Então, minha querida irmã, prepare-se para uma noite em que ele não conseguirá pensar em outra coisa.
Maomao suspirou, o corpo ainda levemente úmido, a pele perfumada e o coração acelerado, refletindo no espelho cada detalhe das joias, cada gesto que Jin-Ye havia feito, e a expectativa deliciosa de ver Jinshi reagir. O silêncio do Pavilhão da Lua parecia abraçá-las, quase sagrado, enquanto a tarde avançava e a noite prometia transformar aquela preparação em um jogo de sedução e cumplicidade que permaneceria na memória de ambos para sempre.
[. . .]
A luz do entardecer filtrada pelas finas ripas de bambu pintava o quarto com tons âmbar e dourado. O ar, pesado e quente, carregava o aroma doce e embriagador de ylang-ylang e sândalo, uma nuvem de incenso que parecia emanar da própria figura que aguardava no centro do aposento.
Maomao permanecia de pé, uma silhueta esculpida em luz e perfume. A túnica branca havia sido dispensada. Agora, sua nudez era realçada apenas pelo frio toque do ouro e pelo brilho profundo das pedras preciosas. Seu cabelo, uma cascata de esmeralda vibrante, estava trançado com precisão, formando uma coroa intrincada da qual as madeixas escapavam em ondas espessas e sedosas, descendo como uma cachoeira verde até a curva de sua cintura nua.
Na testa, a tiara de ouro cravejada de safiras cintilava. Vários colares de ouro e jade repousavam pesadamente sobre seu colo, alguns tão largos que o frio metal roçava os seios, contornando-os sem escondê-los, realçando sua forma para qualquer olhar que se atrevesse a buscá-los. O strophion de ouro e pérolas tilintava suavemente em seus quadris, um som sutil que marcava sua respiração calma. Braceletes pesados adornavam seus pulsos e tornozelos, e anéis fechados gravados com ideogramas adornavam seus dedos. Os grandes brincos de ouro alongavam-lhe delicadamente o lóbulo das orelhas. Os óleos essenciais com os quais se ungira faziam sua pele brilhar suavemente, destacando cada curva sob a luz do lampião.
Seus olhos, afiados e inteligentes, estavam fixos na porta, semi-cerrados, um fio de antecipação tensionava o espaço entre seus suspiros.
O som de passos leves no corredor exterior fez suas pálpebras se erguerem, a porta de correr deslizou com um som suave, revelando a figura alta e elegante de Jinshi. Ele parou no limiar, seus olhos violeta, sempre tão penetrantes, por uma fração de segundo antes de se tornarem pesados, escuros de desejo instantâneo. Seu olhar percorreu Maomao da cabeça aos pés, devagar, como um conhecedor apreciando uma obra-prima inestimável.
Um longo silêncio pairou, carregado apenas pelo aroma doce no ar e pelo tilintar quase imperceptível das pérolas em seus quadris quando ela se ajustou levemente.
— Minha gatinha venenosa... — sua voz, usualmente meliflua e controlada, saiu mais grave, um sussurro áspero. — Parece que meus aposentos foram abençoados por uma deusa da floresta. Ou será uma fada feiticeira, tentando me enfeitiçar com seus encantos?
Um sorriso lento e deliberado cruzou os lábios de Maomao, seus dedos adornados com anéis percorreram o colar mais pesado que repousava entre seus seios.
— Apenas sua esposa, meu marido — ela respondeu, sua voz um tom mais baixo e sedoso do que o habitual. — Aguardando para... avaliar a precisão de suas joias. Jin-Ye garantiu que o ouro não irritaria a pele. Requer uma inspeção minuciosa.
Jinshi adentrou o quarto, fechando a porta atrás de si. Seus passos eram silenciosos, predatórios.
— E as pedras? — ele perguntou, aproximando-se, seu olhar estava fixo no movimento de seus dedos sobre o metal. — As safiras... realmente combinam com o fogo que vejo em seus olhos esta noite?
— Ainda não decidi. — sussurrou ela, seu queixo erguido, desafiando-o mesmo nessa posição de aparente submissão. — Talvez precise de uma luz mais próxima para avaliar seu verdadeiro valor.
Ele estava perto o suficiente agora para que o calor de seu corpo perturbasse o ar perfumado ao seu redor. Seu dedo, longo e aristocrático, estendeu-se para não tocar sua pele, mas a corrente de ouro que repousava sobre ela, seguindo seu contorno.
— E o perfume? — ele murmurou, inclinando-se, seu hálito quente roçando seu ombro. — É uma nova mistura, não é? Uma tentativa flagrante de ofuscar meus sentidos, minha princesa?
— É apenas óleo de sândalo e ylang-ylang — ela respirou, seus olhos fechando-se momentaneamente ao sentir o calor dele tão perto. — Se ofusca seus sentidos, a falha não é da fragrância, mas da fraqueza de quem a inala.
Um som baixo, entre um riso e um grunhido, escapou de Jinshi.
— Insolente até quando se veste... ou se despe... apenas para mim.
Finalmente, sua mão abandonou o colar e encontrou a curva de sua cintura, acima do cinto de pérolas. A pele untada de óleo era incrivelmente suave sob seus dedos.
— Então me mostre — ele ordenou, sua voz uma vibração sensual perto de seu ouvido. — Me mostre onde exatamente esta joia... todas estas joias... precisam ser ajustadas. Farei da inspeção minha única prioridade esta noite.
O tilintar suave do cinto de pérolas ecoou novamente no quarto silencioso quando Maomao se moveu para fechar a ínfima distância entre eles, seu corpo adornado encontrando o brocado luxuoso de suas vestes.
— Comece onde desejar, meu marido — ela sussurrou, seus lábios perto de seu pescoço. — A inspeção será longa e... meticulosa.
A resposta de Jinshi foi um som rouco, animal, suas mãos, que um instante antes haviam sido tão delicadas, agarraram suas tranças verde-esmeralda, não com brutalidade, mas com uma posse feroz. Os alfinetes de cabelo de jade caíram na cama com um ruído abafado enquanto ele desfazia a complexa obra de arte, liberando a cascata de cabelo verde que cheirava a jasmim e óleos raros. Ele enterrou o rosto naquela massa sedosa, inalando profundamente antes de puxar sua cabeça para trás, expondo a linha graciosa de sua garganta para sua boca.
Seus lábios não foram suaves. Eles traçaram um caminho urgente e molhado de sua orelha até o ombro, enquanto suas mãos desciam, encontrando os pesados colares de ouro. Com um gesto impaciente, ele desfez o primeiro fecho, deixando o metal frio escorregar pela pele quente e oleosa de Maomao até cair no chão com um baque surdo. Ele não estava interessado em delicadeza. Cada joia removida era um véu rasgado, uma barreira derrubada entre ele e a mulher por trás do adorno.
A mão dele encontrou sua garganta novamente, não para machucar, mas para sentir o pulso acelerado que martelava contra sua palma enquanto sua boca capturava a dela em um beijo devorador. Era um beijo de posse, de fome adiada por muito tempo, e Maomao correspondeu com igual ferocidade, suas unhas cravando-se no brocado de seus ombros, rasgando o tecido fino em sua urgência.
Ele a guiou para baixo, para os luxuosos cobertores de seda espalhados no chão, seu corpo seguindo o dela. A luz da lamparina dourava seus corpos entrelaçados, projetando sombras dançantes nas paredes de bambu. A inspeção tornou-se uma exploração selvagem. Sua boca percorreu cada centímetro de pele que havia sido exibida e escondida pelas joias — a curva dos seios, a suave planície de seu estômago, o interior de suas coxas. Cada gemido abafado que escapava de Maomao era uma vitória, um sinal de que seu feitiço estava funcionando.
Em um movimento fluido, surpreendente em sua força, Maomao rolou sobre ele, invertendo suas posições. Seu cabelo desfeito, uma cortina de ébano verde, caiu ao redor de seus rostos, criando um mundo privado de perfume e calor. Ela estava no controle agora, seus quadris encontrando os dele com uma cadência ancestral que ela conduzia, seus seios balançando levemente, a tiara de safiras ainda cintilando em sua testa como um testemunho de sua natureza dupla—deusa e mulher.
Jinshi a observava, fascinado, suas mãos agarrando seus quadris, guiando-a, desafiando-a. A dinâmica de poder entre eles oscilava como uma maré — ele a dominava com uma leve palmada em sua curva, com um gemido alto e um arquejar de surpresa, e então ela o subjugava com o movimento deliberado de seus quadris, levando-o à beira do êxtase apenas para diminuir o ritmo, mantendo-o cativo em seu prazer.
Ele a surpreendeu novamente, rolando com ela em seus braços, mudando de posição com uma agilidade que a deixou sem fôlego. O mundo girou e ela se viu de bruços, seu rosto enterrado na seda perfumada, suas costas arqueadas contra o peso dele. Seus gemidos eram agora abafados pelo tecido, cada investida mais profunda e urgente que a anterior.
A dança tornou-se uma tempestade — uma fusão de suor, perfume e respiração ofegante. O prazer cresceu, colidindo-se como uma serpente prestes a atacar, insuportável e inevitável. O êxtase não veio como uma onda suave, mas como um raio, um rompante simultâneo e violento que os atingiu com força total, arrancando gritos abafados e arquejos roucos de seus corpos. Era silencioso, visível apenas no tremor de seus membros e na contração de seus músculos sob a pele oleosa.
O silêncio que se seguiu foi pesado, quebrado apenas pela respiração ofegante e acelerada. As joias espalhadas pelo chão reluziam fracamente à luz da lamparina, testemunhas mudas do ritual selvagem e íntimo que havia acabado de se desenrolar. Jinshi desabou ao lado de Maomao, seu braço envolvendo sua cintura puxando-a contra seu suado corpo. Sem uma palavra, ele encontrou sua boca em um beijo lento e cansado, um selo de posse e rendição final. A inspeção estava completa e aprovada sem qualquer dúvida.
A pele oleosa deles se colava, criando uma nova camada de intimidade no ar quieto, sem uma palavra, ele encontrou a boca de Maomao em um beijo lento e cansado, um selo de posse e rendição final.
Mas o desejo, como um rio subterrâneo, logo encontrou seu curso novamente, o beijo, inicialmente suave, aprofundou-se. O cansaço foi substituído por uma nova onda de urgência, mais contida, mas não menos intensa. A mão de Jinshi, que repousava em sua cintura, começou a traçar círculos lentos, descendo pela curva de seu quadril, sobre a pele levemente sensível onde uma marca rosada começava a se formar.
Ele rolou sobre ela novamente com o peso familiar e bem-vindo ancorando-a no presente, seus olhos violeta, agora escuros como a noite, fixaram-se nos dela enquanto suas mãos percorriam seu corpo como se a estivesse redescobrindo. Cada toque era mais deliberado agora, menos frenético, mas carregado de uma intenção que fazia seu estômago se contrair de antecipação.
— Ainda não inspecionei tudo, gatinha. — ele sussurrou, sua voz um roçar áspero contra seus lábios. Sua mão deslizou entre suas pernas, encontrando o núcleo úmido e sensível de seu prazer.
Maomao arfou, seu corpo arqueando involuntariamente sob o toque hábil. Seus dedos se enterraram em seus ombros, não para empurrá-lo, mas para se agarrar.
— Negligência.. imperdoável, meu príncipe. — ela conseguiu dizer entre respirações curtas.
Um sorriso sombrio tocou seus lábios, seus dedos começaram um movimento lento e circular, uma pressão rítmica e exata que fez seus olhos se fecharem e um gemido baixo escapar de sua garganta. Ele a observava, estudando cada microexpressão em seu rosto- a pequena ruga de concentração entre suas sobrancelhas, o modo como ela mordia o lábio inferior, a suave contração de seus músculos abdominais.
Ele diminuiu o ritmo, quase parando, apenas para aumentar a pressão.
— Jinsh i.. — seu nome saiu como um suspiro, um misto de súplica e repreensão.
— Diga-me - ele ordenou suavemente, seus dedos não cedendo. — Diga-me o que você deseja.
Ela abriu os olhos, e o fogo azul que ele viu lá quase o fez perder o controle totalmente. Com uma força que surpreendeu a ambos, ela o empurrou rolando para ficar por cima mais uma vez. Ela se ajoelhou sobre ele, seu cabelo desalinhado formando uma cortina ao redor de seu rosto corado.
— Eu desejo — ela disse, sua voz tremula mas cheia de uma nova determinação. — conduzir esta inspeção.
Antes que ele pudesse responder, ela se moveu para baixo, seu corpo deslizando pelo dele em uma carícia lenta e deliberada. Sua boca encontrou — peito dele, sua língua traçando um dos sulcos deixados por suas unhas momentos antes. Ele gemeu, suas mãos agarrando seus cabelos. Ela continuou descendo, beijando, lambendo, mordiscando levemente a pele quente de seu abdômen, cada movimento um teste, uma provocação.
Quando ela finalmente o tomou na boca, foi com uma lentidão agonizante que fez todo o seu corpo tensionar. Suas mãos se fecharam nos lençóis de seda, os nós dos dedos brancos. Ela o observava de baixo de seus cílios, estudando suas reações com a mesma intensidade analítica que usava em seu laboratório, aprendendo o que o fazia perder o fôlego, o que fazia seus músculos se contorcerem.
— Maomao....para... — ele ofegou, mas seus quadris traíram-no, movendo-se em um pequeno e involuntário impulso.
Ela não parou. Pelo contrário, aprofundou seu ritmo, uma mão firmemente enrolada em sua base, enquanto a outra acariciava suavemente seus sacos. O som abafado de seu prazer, os gemidos roucos que ela arrancava dele, eram intoxicantes. Ela sentiu o tremor em suas coxas, a tensão crescente em seu corpo, e sabia que ele estava perto.
Com um último e profundo movimento, ela o liberou, subindo rapidamente para montá-lo. Ela o guiou para dentro dela num único movimento fluído, afundando até o fim. Ambos gritaram, ela com a sensação de preenchimento completo, ele com a súbita e avassaladora onda de prazer.
Seus quadris começaram a se mover, ela no controle, definindo um ritmo profundo e rolante que os levou aos céus mais uma vez. Desta vez, a subida foi mais lenta, cada movimento uma espiral ascendente de sensação. Seus corpos se encontraram em perfeita sintonia, a linguagem do prazer substituindo todas as outras. O êxtase os atingiu de forma mais suave desta vez, uma onda quente e expansiva que os envolveu, deixando-os trêmulos e unidos, flutuando em um mar de sensações compartilhadas, até que a última centelha se dissipou e eles desceram, juntos, de volta à terra.
Maomao se aninhava contra Jinshi, sentindo o calor do corpo dele envolver cada centímetro do seu, enquanto os dedos se entrelaçavam de forma automática, como se aquele gesto pudesse fixar ali a intensidade da noite que haviam compartilhado.
Maomao, deitada com a cabeça sobre o peito dele, sentia o coração pulsar em ritmo próprio, acelerado, como se ainda não conseguisse acreditar no que acontecera.
"Ele… ele está aqui. Depois de tudo, depois de cada batalha, de cada preocupação, ele está aqui comigo, inteiro e presente". Cada toque leve de Jinshi nos seus cabelos, cada gesto de cuidado, parecia gravar na pele dela uma memória que jamais seria apagada. "E eu não preciso fingir nada. Não preciso esconder minhas falhas, meu medo… ele me aceita inteira. E isso… isso me deixa viva de um jeito que eu não sabia ser possível."
Enquanto isso, Jinshi a observava com os olhos semicerrados, sentindo um aperto no peito que ele não tinha nome. "Ela… essa mulher que me tira do sério mais vezes do que consigo contar, que desafia minha paciência e ainda assim invade meus pensamentos como ninguém jamais conseguiu… Ela é minha, de uma forma que não é possessiva, mas completa." Cada suspiro dela, cada pequeno movimento, fazia com que ele se questionasse sobre como havia vivido tanto tempo sem sentir isso. "E se alguém ousasse machucá-la, eu não hesitaria. Não existiria plano, nem protocolo, nem perigo que me segurasse. Eu a protegeria até o fim. Sempre."
Maomao levantou o rosto, encarando-o por um instante. Um meio sorriso tímido surgia nos lábios dela, enquanto a mão repousava sobre o peito dele, sentindo os batimentos fortes.
— Eu… me sinto tão estranhamente segura com você, Jinshi… — murmurou, hesitante. — Como se nada pudesse me atingir enquanto estou assim.
Jinshi inclinou a cabeça, depositando um beijo suave na testa dela, depois na ponta do nariz, como se quisesse marcar cada parte que lhe parecia preciosa.
— Eu também me sinto… diferente, Maomao. Não apenas por tê-la aqui, mas porque você me completa de uma forma que ninguém mais jamais poderia. É mais que atração… é cuidado, é confiança, é querer que você esteja bem mesmo quando eu não consigo estar.
Maomao fechou os olhos, respirando fundo, absorvendo cada palavra, cada gesto, cada silêncio que falava mais do que qualquer diálogo. "Ele me quer, mas não só isso… ele me vê. Vê além das minhas máscaras, das minhas falhas, dos meus medos… e ainda assim fica. Ele fica por mim."
Jinshi a segurou mais firme, os dedos deslizando com cuidado pelas costas dela, sentindo a pele quente, os músculos relaxando."Eu deveria estar cansado. A viagem, as intrigas, as responsabilidades… mas nada disso importa. Nada se compara a isso, a ela. Eu poderia passar uma vida inteira assim, só cuidando dela, só sentindo a proximidade dela, e ainda assim pareceria pouco."
Maomao ergueu lentamente a cabeça, encostando a testa na dele, e sussurrou:
— Então… podemos continuar assim? Não apenas agora, mas… sempre?
Jinshi fechou os olhos, absorvendo a pergunta, e em seguida respirou fundo, com uma serenidade que parecia carregar séculos de promessa.
— Sim, Maomao. Sempre. Não importa o que aconteça. Cada momento contigo… cada gesto, cada suspiro… eu quero isso, para sempre.
Ela se acomodou novamente sobre ele, entrelaçando os braços ao redor de seu pescoço, o corpo relaxado, os pensamentos leves, mas o coração carregado de uma felicidade inédita. "Sempre… sempre comigo. Ele disse."
Jinshi, por sua vez, repousou a cabeça ao lado da dela, sentindo o calor que ainda emanava, o aroma do cabelo dela, o ritmo das respirações combinando.
O silêncio voltou, agora pleno, preenchido pelo calor do corpo do outro, pelo sussurro da brisa, pelo perfume sutil do incenso, e por uma sensação que nenhum deles queria quebrar: o absoluto conforto de finalmente estar onde pertenciam — juntos, vulneráveis, seguros, e completamente rendidos um ao outro.
Chapter 17: Medos e Desejos
Notes:
Até o momento foi um dos capítulos mais emocionais e mais sensíveis que eu já escrevi.
Estava na faculdade quando escrevi parte dele e agora finalizo pela madrugada,
futuramente pretendo deixá-lo ainda mais emocionante, embora da forma que está já é
o suficiente para me deixar emotiva,Bom, espero que gostem, boa leitura :)))))
Chapter Text
Dois meses depois
O tempo no palácio parecia ter adquirido um ritmo próprio desde o anúncio do casamento, seguido da cerimônia de noivado e do banquete oferecido pelo Clã Shi. Para Maomao, aqueles dois meses se escoaram como água entre os dedos, intensos, mas paradoxalmente mais tranquilos do que imaginava. Ainda havia compromissos formais, reuniões intermináveis, aparições públicas como Princesa da Lua ao lado do marido, mas dentro desse turbilhão ela encontrou uma espécie de equilíbrio que jamais havia sentido antes.
A clínica seguia em pleno funcionamento, cada vez mais requisitada.
Servas de diferentes pavilhões, eunucos curiosos e até mesmo concubinas a procuravam, algumas em busca de medicamentos simples, outras implorando por afrodisíacos ou por atendimentos sigilosos que não poderiam ser revelados em voz alta. Maomao, entre divertimento e ironia, sentia-se mais viva ali, com frascos, aromas e diagnósticos, do que nos salões pomposos do palácio. Gostava da contradição: ser chamada de "doutora" a ponto de muitos esquecerem que, antes de tudo, era uma princesa. Essa confusão a encantava, como se sua identidade verdadeira só pudesse ser preservada entre receitas, anotações e pacientes.
O reencontro com Lady Lishu foi outra alegria inesperada, agora instalada no palácio, trazia consigo o pequeno Guang e o inseparável Jofu, a presença dela como dama de companhia para Maomao era como preencher um vazio silencioso — afinal, ter Lishu por perto era como relembrar um pedaço da vida que ficava fora dos muros palacianos. Nos momentos em que Maomao se dedicava à clínica e Jinshi com as reuniões e afazeres políticos, Lishu assumia a pequena tarefa de ficar com o filho no Pavilhão da Lua, sempre sob a escolta atenta de Basen. Esse, por sua vez, aproveitava cada fresta de tempo livre para se aproximar da esposa e do filho, mesmo que o dever militar o chamasse constantemente para longe.
Mas o que realmente fazia o palácio inteiro perder a compostura era Jofu, o pato, ele estava decidido em adotar Maomao como sua família, se tornou o guardião mais barulhento e ciumento que se poderia imaginar. Grasnava alto diante de qualquer intruso e, para o horror da etiqueta, chegou a avançar contra Jinshi em mais de uma ocasião na presença do Imperador e da Imperatriz. A visão de Jofu correndo atrás do Príncipe da Lua — asas abertas, bicando o ar — era tão absurda que Maomao não conseguia conter o riso, mesmo quando deveria se manter rígida e digna. Rir até perder o fôlego diante da careta contida de Jinshi era, para ela, um prazer secreto no dia a dia.
Com a indicação de Lishu, Maomao contratou uma segunda dama de companhia: Chue, esposa de Baryou, o irmão mais velho de Basen, se Lishu era conhecida por ser delicada e tímida, Chue era como uma explosão de energia. Ela era poliglota, sempre falante, esbanjava sorrisos e respondia às necessidades da princesa antes mesmo de serem expressas. Sua presença, embora recente, já havia mudado a rotina do Pavilhão da Lua. Entre Chue e Lishu se formou uma dinâmica curiosa, como pequenas implicâncias diárias, ajuda mútua, risadas abafadas pelos corredores. Eram tão diferentes que, aos olhos de Maomao, elas quase se completavam.
O contraste se estendia até nas roupas: enquanto Lishu mantinha a suavidade das cores claras, sempre em tons perolados ou rosados, Chue ousava em alaranjados e vermelhos vivos usando como base as cores do Pavilhão da Lua. Um verdadeiro desafio à rigidez protocolar, para Maomao, isso era um detalhe irrelevante — quase divertido, mas Suiren, implacável guardiã das tradições, já a advertira com severidade, puxando-lhe a orelha em uma cena nada digna para uma princesa recém-casada.
Ainda assim, Maomao pouco se importava.
Ao final, o mais importante era que suas damas de companhia se sentissem bem, fossem quem eram, afinal, naquele palácio em que tantos viviam mascarados, a autenticidade delas era um sopro de ar fresco.
[. . .]
O entardecer daquele dia dourava os corredores do palácio interno, tingindo as colunas de carmim e as telhas verdes do Pavilhão da Lua com reflexos quentes, Jinshi caminhava com a compostura impecável de sempre, túnica alinhada, cada passo medido como se fosse parte de uma coreografia silenciosa. O ar trazia o perfume leve das flores do pátio, e ele respirava fundo, preparando-se para mais uma visita que — assim desejava — deveria ser tranquila.
Mas, assim que cruzou o portão, a serenidade que carregava ruiu como vidro.
Um grasnado estridente quebrou o silêncio, Jofu, o pato branco, disparou como uma flecha viva em sua direção, asas semiabertas, grasnando com a fúria de um general que defendia território sagrado.
Jinshi recuou um passo, desviando-se com reflexos rápidos.
— Outra vez... — murmurou, a voz carregada de resignação.
Jofu, no entanto, não desistia, bicava o ar, as patas batendo contra o chão de pedra como tambores de guerra. Era quase possível sentir o ódio ancestral que aquele animal nutria por ele.
— Jofu! — a voz de Maomao ecoou da varanda, carregada de riso contido. — Se continuar incomodando Zui, vai dormir fora do quarto esta noite.
O pato parou, virou a cabeça, encarou-a com aqueles olhos redondos e frios como contas de jade, grasnou, baixo e ofendido, antes de dar meia-volta, arrastando-se com má vontade para a beira do lago artificial.
Jinshi ajeitou a manga da túnica com a calma de quem se recusava a admitir derrota diante de... um pato.
— Uma verdadeira afronta à minha dignidade. — murmurou, baixo demais para Maomao ouvir.
Mas não teve tempo de recuperar a compostura.
Um barulho alegre de passos descalços ecoou pelo pátio, Guang, com apenas um ano, avançava cambaleante, os bracinhos abertos como asas. Atrás dele corria, sua tia, Chue, agitando um lenço vermelho como se fosse um estandarte.
— Mais rápido, pequeno guerreiro! — Chue gritava, o riso claro preenchendo o ar.
O menino gargalhava em resposta, tropeçando, mas insistindo em seguir, batendo as palminhas no ar como quem celebrava uma vitória.
— Cuidado, cuidado! CHUE ELE É PEQUENININHO — Lishu surgiu apressada, o bordado ainda preso às mãos, correndo desajeitada atrás dos dois como qualquer mãe preocupada faria. A saia clara se enroscava em seus tornozelos, quase a fazendo tombar.
Jinshi parou, estático.
O sorriso polido que guardava para Maomao congelou no rosto, a cena diante dele parecia mais uma rebelião doméstica do que qualquer coisa digna de um pavilhão imperial.
Guang tropeçou e caiu sentado no chão, o silêncio durou apenas um segundo — até que o menino explodiu em gargalhadas, batendo palmas como se fosse a coisa mais divertida do mundo. Chue, triunfante, fez uma reverência exagerada, como se aquilo tivesse sido ensaiado.
Maomao, sentada na varanda com uma taça de chá quente entre os dedos, observava tudo com calma preguiçosa, seus olhos brilhavam com uma ternura diferente, uma nostalgia que não escapou a Jinshi.
— Você está se divertindo, não está? — ele disse, a voz baixa, aproximando-se dela enquanto tentava ignorar o caos em volta.
Ela não negou.
— Hm. — sorveu um gole do chá, ocultando o riso atrás da borda da taça. — É barulhento, mas me lembra de casa. — respirou profundamente sorrindo levemente para o marido — Posso afirmar que meus irmãos eram bem piores, ainda não sei como não deixamos nossos pais com cabelo branco antes do tempo.
O olhar dela, suave e sereno em meio à bagunça, fez algo dentro dele vacilar.
Ele nunca teve um lar barulhento, mesmo cercado pelos irmãos, nunca soubera o que era esse calor desordenado. O palácio era feito de protocolos, de silêncio polido, mas naquele momento no Pavilhão da Lua, havia vida demais e isso o encantava profundamente.
— Caótico eu diria... — Jinshi suspirou, finalmente sentando-se ao lado dela, a expressão de impotência suavizada pelo sorriso que escapava apesar de si. — Mas se é o mundo que você criou, Maomao... então vou aprender a me acostumar.
"Embora eu ainda vá mandar a vovó Suiren cozinhar aquele pato em algum momento, nem que para isso eu tenha que subornar o Liang e o pequeno Zhìyuan.", pensou segurando a mão de Maomao com carinho fuzilando Jofu com o olhar ao longe.
Como se protestasse, Jofu grasnou alto ao fundo, Chue e Guang explodiram em risos, correndo novamente, e Lishu quase tropeçou de novo tentando contê-los.
Jinshi por um momento respirou fundo. Talvez... talvez ele pudesse mostrar que também sabia lidar com tudo aquilo. Com um gesto determinado, caminhou alguns passos para frente, inclinando-se enquanto estendia os braços para pegar Guang. O menino, animado com a novidade, jogou-se para frente, só que Jinshi não calculou bem o peso. Cambaleou dois passos para trás, quase derrubando o menino, que, achando tudo parte da brincadeira, riu ainda mais.
— Zui! — Maomao quase se engasgou com o chá de tanto rir, batendo com a mão na mesa antes de se levantar, divertida com a cena. — Você parece que nunca segurou uma criança na vida!
Jinshi, sentado de forma ereta como se estivesse diante do imperador em pessoa, segurava Guang com uma rigidez quase cômica. O bebê se aninhava no colo dele, balançando as perninhas gorduchas, enquanto Jinshi mantinha as mãos posicionadas como se tivesse recebido uma relíquia sagrada.
— Eu já segurei! — ele protestou, as orelhas corando até a ponta. O rubor se espalhava pelas faces, denunciando o desconforto. — Só... não tão pequenos.
Guang, indiferente à insegurança do “tio”, emitiu uma gargalhada curta, como se zombasse da seriedade de Jinshi.
— Devo recordar, — interrompeu Lishu, segurando o riso — que o príncipe quase derrubou Guang quando nos visitou no pós-parto.
As palavras fizeram todas olharem de imediato para Jinshi, ele piscou lentamente, o orgulho ferido.
— Nem me lembre... — murmurou, a voz carregada de embaraço. — Ainda tenho pesadelos com isso.
A lembrança do bebê deslizando por seus braços como um sabonete molhado lhe dava arrepios até hoje.
— Ah, mas Basen também tem, — retrucou Chue, sempre direta, mordendo o lábio para não rir. — Ele não confia em Vossa Alteza sozinho com o bebê, nem eu confiaria.
Um silêncio denso caiu por um segundo. Todas as damas arregalaram os olhos, e até Maomao conteve a respiração. Jinshi virou-se lentamente para Chue, o olhar violeta faiscando como uma espada desembainhada.
Antes que pudesse rebater, Guang decidiu intervir à sua própria maneira: com a naturalidade de um imperador em miniatura, agarrou um punhado da túnica impecavelmente alinhada de Jinshi e enfiou metade na boca, salpicando-a de baba quente e pegajosa.
Jinshi congelou, os músculos do rosto se contraíram, o olhar fixo no pano ensopado.
— Maomao... — ele chamou, a voz baixa, dramática, quase uma súplica. — Ele está... babando na minha roupa.
O pavilhão inteiro explodiu em risadas, Maomao inclusive, que já se apoiava na mesa para não cair de tanto rir. Guang, satisfeito com a própria façanha, deu mais um gritinho alegre, como se coroasse sua pequena vitória sobre o altivo príncipe.
O eco dos passos pareceu selar o rastro de vida que antes vibrava no Pavilhão da Lua, o silêncio que se seguiu não era apenas ausência de som — era pesado, quase palpável, como se pudesse ser apanhado entre os dedos. A luz suave da tarde atravessava as cortinas de seda, tingindo o chão de sombras douradas, e o aroma adocicado do chá já frio se misturava com a lembrança de risos que ainda pareciam vibrar nas paredes.
Maomao permanecia imóvel, a taça presa entre os dedos finos, o calor havia se dissipado há muito, mas ela não conseguia decidir se largava ou levava à boca. A pequena marca de um sorriso ainda curvava seus lábios, mas seus olhos vagavam distantes, perdidos em um espaço onde só ela podia alcançar.
O riso de Jinshi ainda soava em sua mente — a forma desajeitada com que ele tentara segurar Guang, o terror mal disfarçado ao ver a baba escorrendo por sua túnica imaculada, era ridículo, mas havia sido tão humano. Tão real. Por um instante, ele não era o Príncipe da Lua, o herdeiro do trono, nem o belo e inalcançável senhor que tantas mulheres idealizavam. Era apenas um homem, atrapalhado, exposto, ridiculamente vulnerável diante de um bebê que mal conseguia segurar o próprio pescoço.
A lembrança aquecia o peito dela, mas também o apertava, porque, quando o riso cessou e as vozes se foram, sobrara apenas o silêncio e nele, vinham os pensamentos que ela tanto evitava.
Maomao respirou fundo, pousando enfim a taça sobre a mesa, o som leve da porcelana contra a madeira ecoou alto demais na quietude. Sua mão, agora livre, deslizou devagar sobre o tampo, como se buscasse algum resquício do calor que antes preenchia a varanda.
Ela se recostou, apoiando o queixo sobre a mão, os olhos semicerrados e, naquele vazio, percebeu o quanto a vida era feita desses contrastes cruéis: a gargalhada que arranca lágrimas dos olhos e, logo depois, o peso silencioso que cai sobre os ombros quando tudo se aquieta.
E talvez fosse exatamente isso que a assustava mais do que venenos ou intrigas palacianas, a constatação de que o silêncio, inevitavelmente, sempre voltava.
Maomao sentou-se diante da mesa baixa, as mãos envolvendo a tigela de chá que já esfriava, o calor que subia em espirais era frágil demais para aquecer o vazio que se instalava no peito. Era nesse silêncio que memórias antigas vinham: o cheiro da sopa com pedaços de peixe em casa, os irmãos pequenos disputando disputando para escolher o maior pedaço de pão, os choros infantis sem motivo, passos apressados arranhando o chão gasto. Tudo aquilo era barulhento, exaustivo, mas vivo e por mais belo que fosse o pavilhão, tudo parecia contido demais.
Jinshi por outro lado ainda segurava o peso invisível da presença de Guang em seus braços, como se a lembrança do menino tivesse ficado ali, impregnada em sua pele.
Ele acomodou-se ao lado de Maomao, mas não a tocou, seus olhos, geralmente tão firmes, vagavam pelo espaço vazio, como se buscassem algo inalcançável.
— Ele é… incrível, não? — sua voz soou baixa, quase temerosa, como se confessasse um segredo.
Maomao, ainda com a taça de chá nas mãos, ergueu os olhos para ele. O tom sereno escondia algo mais denso por trás.
— Bebês costumam ser… — ela fez uma pausa, procurando a palavra —… intensos.
Jinshi deixou escapar um sorriso breve, mas logo desviou o olhar, dentro dele, pensamentos se atropelavam. "Como seria ter um filho nosso? Um pequeno ser com os olhos de minha esposa, ou talvez o brilho frio de sua própria linhagem? Uma criança correndo pelos corredores, trazendo vida onde antes habitava o silêncio? Eu seria um bom pai para essa criança assim como Gaoshun foi para mim durante tanto tempo?", o coração dele se aqueceu com a imagem, mas logo o peso da realidade o puxou de volta.
Ele sabia. Maomao nunca havia escondido seus receios, sua falta de vontade em se ver presa em papéis definidos. Forçá-la seria o mesmo que traí-la.
— Eu... — Jinshi hesitou, a voz embargada. — Quando Guang agarrou minha túnica… pensei em como seria… — ele parou, fechando os olhos. — Mas não é algo que se controla não é? Imaginar...
Maomao não respondeu de imediato. Seus dedos roçaram a borda da taça, os olhos perdidos no fundo do chá como se buscassem respostas ali, por um instante, ela se permitiu imaginar: "Um filho pequeno, talvez com o sorriso fácil de Zui seria fantástico, os olhos atentos, a mesma persistência irritante. Uma criaturinha de carne e osso que seria metade meu e metade dele, parece algo tão perto e ao mesmo tempo tão distante...". A ideia a tocou de forma inesperada, um calor suave no peito.
Mas a lembrança veio como uma sombra.
[. . .]
8 anos antes
Residência do Clã Kan
O ar dentro do quarto era espesso, pesado e quente, carregado com um odor metálico e doce que Maomao, mesmo inexperiente, reconheceu com um frio na espinha: era o cheiro da vida tentando vir à tona, e da morte espreitando ao lado. A chuva batia forte contra as ripas de madeira da janela, um tamborilar frenético que ecoava o desespero que pulsava em seu próprio peito. FengXian, normalmente tão etérea e graciosa como uma garça, estava irreconhecível. Seu rosto, pálido como a lua cheia, estava contraído de uma agonia tão profunda que parecia rasgar a própria essência dela. Seus longos cabelos verdes, tão semelhantes aos de Maomao, estavam encharcados de suor e colados à pele, um emaranhado de algas em um mar de tormento.
— Mãe! — a voz de Maomao saiu um frágil sussurro, trêmulo, seus dedos, de unhas curtas e limpas, tremiam incontrolavelmente enquanto ela pressionava uma compressa fria na testa de FengXian. — Aguente firme, por favor, Lahan foi buscar o tio Luomen, ele virá, eu acredito nisso, temos tempo...
Os olhos vermelhos de FengXian, normalmente tão vívidos e cheios de luz, estavam vidrados, focados em algo além do teto deste quarto abafado, um grito gutural, primal, escapou de seus lábios, um som que não era mais humano, mas sim o uivo de uma fera sendo partida ao meio. Maomao estremeceu, o som ecoando em seu próprio trauma, na memória nítida de quando ela própria, uma menina de dezesseis anos com o mundo nos ombros, assistira a vida escorrer entre seus dedos impotentes.
— Não vai dar tempo... — sussurrou FengXian, a voz um fio de ar rouco entre dois gemidos. — O bebê… está preso. Sinto… sinto que está me rasgando por dentro, eu não vou aguentar esperar Maomao.
Maomao engoliu seco.
Ela sabia, o trabalho de parto estava parado há horas. A força de FengXian se esvaía a cada contração fracassada. O rosto de Luomen, seu tio e mestre, surgiu em sua mente, suas lições calmamente sábias agora soando como um eco distante e inútil. Ela lembrava dos textos, dos diagramas, dos procedimentos de último recurso. Uma cesariana. Uma incisão no ventre, a ideia fez seu estômago embrulhar de puro terror.
— Não, mãe. Não. Eu… eu posso…
— Você deve. — os olhos vermelhos de FengXian focaram nela, por um breve instante, com uma clareza aterradora. — Faça o que deve ser feito, entre mim e os bebês, salve os bebês Moamao.
O choro de Lahan ao sair disparado na chuva ainda ecoava nos ouvidos de Maomao, a ausência do pai, era um peso a mais, uma solidão imensa. Ela estava sozinha. Completamente sozinha naquele momento.
Com mãos que teimavam em tremer, Maomao pegou uma pequena bolsa de couro, ela triturou um punhado de folhas secas de máfēi com um pilão, suas mãos movendo-se por pura memória muscular. Misturou-o com um pouco de água, formando uma pasta grossa e de cheiro amargo.
— Isto vai ajudar com a dor, mãe. — ela mentiu, a voz falhando. Ajudaria, mas não o suficiente, nunca o suficiente para o que ela teria que fazer.
E Maomao tinha o conhecimento que a mãe poderia morrer no processo e ela jamais se perdoaria se aquilo acontecesse.
Ela aplicou a pasta no abdômen distendido e pálido de FengXian, rezando para que a precária anestesia fizesse algum efeito. A faca cirúrgica de seu tio, que ela segurou, parecia pesar uma tonelada, o aço frio contra sua pele era uma acusação.
— Eu estou com você, mãe. — ela sussurrou, mais para si mesma do que para FengXian, que agora respirava ofegante, os olhos fechados, preparando-se para o inevitável.
O primeiro corte foi o mais difícil. A lâmina afiada encontrou a pele, e um grito abafado e agonizante escapou dos lábios de FengXian, Maomao sentiu lágrimas quentes queimarem seus olhos azuis, obscurecendo sua visão. Ela as enxugou com força no ombro, incapaz de parar. Cada milímetro que a lâmina avançava era uma tortura, ela podia sentir a vida de sua mãe pulsando sob a faca, um fio tênue que ela própria estava cortando.
— Perdoe-me, mãe, perdoe-me. — ela soluçava em meio as lágrimas, operando quase às cegas, guiada pelo tato e pelo conhecimento teórico que de repente parecia tão insuficiente.
O cheiro de sangue tornou-se avassalador, enchendo o quarto, impregnando suas roupas, seus pulmões. Era o cheiro do seu fracasso, do seu pecado até que, finalmente, após uma eternidade de angústia, sua mão, ensanguentada e trêmula, encontrou algo. Algo pequeno, molhado e quente.
Ela puxou com um cuidado infinito, e um pequeno corpo, frágil e enrugado, veio à luz, choramingando baixo. Uma menina, Maomao a colocou de lado, envolvendo-a rapidamente em um pano limpo, seu coração batendo descompassado, mas o ventre de FengXian ainda se movia.
Com um novo surto de pavor e esperança, Maomao mergulhou a mão novamente na quente umidade e lá estava, o outro bebê, um menino. Ele veio mais facilmente, e seu choro foi mais forte, mais vigoroso.
Dois bebês. Mai um par de gêmeos para a família Kan.
— Mãe… — a voz de Maomao estava completamente arranhada. — São dois. Um menino e uma menina.
FengXian não respondeu, seu corpo estava imóvel, seu rosto estava de um branco cadavérico. O pulso, quando Maomao tocou o pescoço dela, era fraco, tão fraco quanto o bater das asas de uma borboleta.
— Não! — o grito de Maomao foi de desespero puro.
O trauma latejou vivo, mais vivo do que nunca. Ela havia conseguido salvar os bebês, mas à custa de quê?
Com dedos ágeis, movidos pelo pânico, ela começou a suturar, suas mãos agora firmes num último e desesperado apelo à razão. Ponto após ponto, ela costurou a ferida que ela mesma havia feito, rezando para cada um deles ser um ponto a mais na frágil tapeçaria da vida de sua mãe.
O quarto ficou em silêncio, exceto pelo choro fraco dos dois pequenos corpos frágeis arrancados à custa de lágrimas, suor e dor, e pelo som ofegante da respiração de Maomao, misturada com soluços de terror e exaustão. Ela caiu de joelhos ao lado da cama, segurando a mão fria de FengXian, observando o quase imperceptível movimento de seu peito, cada suspiro uma vitória contra a morte que ainda pairva, abafada, naquele quarto.
[. . .]
— Não é uma questão de querer… — murmurou, a voz embargada, quase quebrando. — Eu… eu já vi o que pode acontecer, vi minha mãe… vi o preço que pode ser pago. — engoliu em seco, as mãos apertando a taça com força, como se aquele gesto pudesse mantê-la firme. — E eu não sei se consigo… se algum dia vou conseguir olhar para isso sem medo.
Jinshi ficou imóvel por um instante, a lembrança dela era uma sombra que nem o brilho do chá de jasmim conseguiria apagar. Seu peito doía, o instinto o empurrava a abraçá-la, a prometer que a protegeria de tudo,mas ele sabia que promessas não bastavam. Palavras não eram um escudo contra fantasmas antigos.
— Maomao… — a voz dele saiu baixa, carregada de ternura contida. Sua mão avançou alguns centímetros pela mesa, parando no ar, entre hesitação e desejo. — Eu talvez nunca te peça isso. Só quero que saiba… qualquer escolha sua, eu vou estar aqui, a sua liberdade e sua felicidade são mais importantes que meus caprichos.
Os olhos dela marejaram, mas não cederam às lágrimas. Inspirou fundo, tentando manter o coração sob controle. A ideia de filhos a rondava como uma miragem distante — tentadora em sua suavidade, mas logo engolida pelo peso das memórias. Ela se permitiu apenas um instante de fraqueza, um sussurro que mais parecia uma ferida aberta:
— Como sua esposa… eu não tenho escolha, Zui..getsu. — a voz dela falhou. — Você é o futuro Imperador, e se não vier de mim esses filhos… virá de outra, talvez de uma concubina e essa mulher será a Imperatriz por te dar um herdeiro. E se isso acontecer… eu não poderei mais estar ao seu lado, ao menos não como consorte. — as mãos de Maomao pousaram delicadamente sobre o rosto de Jinshi acariciando com uma certa culpa dentro de si.
"Talvez, algum dia, eu ainda te dê filhos Zui… mas não hoje, não agora, eu ainda não consigo.."
Ela era perfeita como princesa, perfeita como esposa e como futura Imperatriz, mas seu único medo e defeito era justamente o que todos ansiavam que ela tivesse, herdeiros.
As palavras pairaram entre eles como lâminas, Jinshi sentiu o sangue ferver nas veias, não de raiva dela, mas da realidade que ela evocava. O trono, os ministros, o peso da linhagem… correntes invisíveis que o puxavam em direções contrárias ao que o coração desejava.
Ele a olhou demoradamente, lutando contra o impulso de negar o óbvio, de dizer que jamais permitiria tal destino. Por dentro, sua mente fervia em pensamentos não ditos: "Eu a quero comigo, só você. Não me importa se o império exige herdeiros, não me importa se os anciãos murmuram sobre dinastias… você é meu mundo, mas se eu disser isso em voz alta, estarei mentindo? Posso mesmo prometer algo que não sei se serei capaz de cumprir?"
Respirando fundo, Jinshi deixou sua mão finalmente pousar sobre a dela, apertando com firmeza, seu olhar era grave, intenso, quase suplicante:
— Maomao… você não é substituível. Para mim, nunca será e se o império quiser me impor outra realidade, que imponha… mas meu coração, minha vida, são seus.
Jinshi fechou os olhos, aceitando a dor e a esperança que se misturavam dentro dele, o desejo de ser pai queimava em seu coração, mas maior que isso era a certeza de que não poderia perder Maomao para um medo que ela ainda carregava.
Maomao ainda tinha os olhos baixos, perdida em lembranças que insistiam em voltar, Jinshi se aproximou um pouco mais e, sem pedir licença, a puxou para os braços dele.
O gesto foi firme, mas cheio de cuidado, ela resistiu apenas por um instante, até sentir o calor do peito dele e o compasso ritmado da respiração.
— Está tudo bem — murmurou, passando uma das mãos suavemente pelos cabelos dela. — Nós temos tempo, Maomao, não precisamos pensar em nada disso agora.
Ela piscou, como se o peso dentro dela começasse a se desfazer lentamente.
— Tempo…? — repetiu, quase em dúvida.
Jinshi inclinou-se para olhar nos olhos dela, um sorriso breve suavizando a expressão cansada.
— Sim. Já está de bom tamanho lidar com as travessuras de Liang pelo palácio. — Uma ponta de riso escapou de sua voz. — E agora, ainda temos o pequeno Guang no Pavilhão para preencher cada canto com barulho e movimento.
Os lábios de Maomao se curvaram em um sorriso tímido, quase imperceptível, mas sincero, a imagem de Liang correndo pelos corredores e de Lishu tentando acompanhar Guang arrancou dela um suspiro leve, como se, por um instante, conseguisse respirar sem dor.
— Você sempre dá um jeito de tornar tudo suportável… — murmurou, deixando a testa encostar no ombro dele.
Jinshi a envolveu mais forte, fechando os olhos por um momento, como se quisesse protegê-la de tudo.
— Porque não quero que carregue nada sozinha. — a voz dele saiu baixa, mas firme.
Por alguns instantes, Maomao permaneceu rígida dentro do abraço, como se seu corpo não soubesse ao certo como responder. Estava acostumada a suportar o peso do mundo sozinha, a resolver as coisas de modo prático, racional, sempre com os olhos voltados para a próxima tarefa, mas ali, envolta pelo calor de Jinshi, havia uma pausa inesperada.
O cheiro discreto das vestes dele, a textura suave do tecido sob seus dedos hesitantes, a firmeza dos braços que a mantinham junto ao peito — tudo conspirava contra suas defesas habituais. Aos poucos, seus ombros foram cedendo, relaxando até que se moldassem ao corpo dele, como se afinal tivesse encontrado um lugar onde pudesse descansar.
— Não estou acostumada com isso… — murmurou, a voz abafada contra o ombro dele.
Jinshi arqueou um sorriso sereno, sem deixá-la escapar.
— Com o quê?
— Com alguém… segurando firme, sem esperar nada em troca. — havia um traço de incredulidade em sua confissão.
Ele afastou levemente o rosto dela, apenas o suficiente para que seus olhos se encontrassem.
— Então acostume-se. — a frase saiu suave, mas carregada de decisão, como uma promessa.
O coração de Maomao se apertou com a intensidade daquele olhar, uma parte dela queria fugir, como sempre fazia quando algo parecia grande demais para suportar, mas outra, mais silenciosa e teimosa, desejava ficar. E foi essa que venceu quando ela suspirou, rendendo-se ao conforto que raramente permitia a si mesma.
Com um gesto tímido, Maomao ergueu as mãos e segurou o tecido da túnica de Jinshi, como se temesse que ele pudesse desaparecer. O peso das memórias dolorosas ainda estava ali, mas, pela primeira vez em muito tempo, parecia menos sufocante.
— Talvez… eu consiga. — as palavras foram quase inaudíveis, mas Jinshi as ouviu como se fossem a coisa mais preciosa que já lhe fora dita.
Ele pousou os lábios sobre a testa dela em um beijo leve, demorado, sem pressa.
— Você só precisa estar comigo. O resto… deixamos para amanhã.
O palácio lá fora seguia em movimento: os passos apressados de servos, as vozes distantes ecoando pelos corredores, a vida que não parava, mas, dentro daquele abraço, Maomao encontrou um raro instante de quietude.
Fechou os olhos, deixando-se finalmente ser amparada, enquanto Jinshi a mantinha próxima, como se ambos soubessem — sem precisar dizer — que aquele momento era só deles.
[. . .]
O salão do palácio era amplo, com colunas vermelhas ornamentadas e painéis de madeira gravados com dragões e nuvens douradas. As lanternas pendiam do teto alto, lançando reflexos quentes sobre as tapeçarias e o piso encerado, enquanto o cheiro de incenso flutuava suavemente pelo ar. Nobres e conselheiros se reuniam em torno de mesas dispostas em formato U, cada um com rolos de documentos, selos e tinteiros de bronze.
Maomao entrou no salão com passos firmes, cada movimento medido e elegante, como se cada gesto fosse uma extensão de sua presença. O tecido da túnica cerimonial verde-água escorregava sobre seu corpo, pesado com o bordado de fios dourados que desenhavam flores de lótus em delicados arabescos. Por um instante, ela se sentiu estranhamente infantil, desejando o vermelho vibrante que tanto amava, mas Chue havia insistido, oferecendo um colar com uma pedra de rubi cravejada ao meio que, ao ser ajustado, suavizou qualquer desconforto com o verde.
O cabelo, preso em um penteado intrincado digno da realeza, exibia fios soltos que emolduravam o rosto com graça sutil. Um pequeno broche de jade, frio ao toque, segurava a nuca e acrescentava autoridade ao porte da princesa. Cada passo parecia cuidadosamente coreografado, mas seus olhos azuis percorriam o salão com atenção afiada, captando detalhes que a maioria sequer notaria: a posição dos nobres, a tensão contida em mãos inquietas, o brilho de certas joias à luz das lanternas, as expressões que revelavam desejos, ansiedades ou disfarces.
Havia, porém, uma nuance de humanidade na postura rígida de Maomao, a ponta de um sorriso contido, o leve franzir da sobrancelha, a ponta dos dedos que brincava discretamente com a borda da túnica enquanto ela caminhava. Não era apenas uma entrada cerimonial; era uma avaliação silenciosa, uma leitura do ambiente que dizia mais do que qualquer palavra.
Ela sentiu o peso da atenção sobre si, mas também uma estranha leveza, como se o ritual e a pompa do salão fossem apenas uma moldura para sua própria observação e controle. A cada passo, a princesa combinava firmeza e graça, impondo-se não apenas pela vestimenta ou pelos adornos, mas pela inteligência que os olhos azuis denunciavam — atentos, críticos, sempre analisando, sempre presentes.
Maomao fez um gesto delicado, convidando Jin-Ye para se aproximar, a princesa caminhou ao lado dela, com passos medidos, vestindo uma túnica púrpura de seda leve, bordada em fios prateados que captavam a luz das lanternas, cintilando com cada movimento. As tranças ornamentais de Jin-Ye, adornadas com pequenas contas de jade, balançavam discretamente, e seus olhos vermelhos refletiam uma mistura de entusiasmo e concentração. Cada detalhe do salão parecia fascinar a jovem princesa, mas sua postura meticulosa transmitia autoridade silenciosa, como se cada gesto fosse calculado para não passar despercebido.
— Senhor meu marido, — sorriu docemente observando Jinshi — príncipe Jiang. — Maomao inclinou-se levemente, mantendo a serenidade que lhe era natural.
Jinshi avançou com passos suaves, ajeitando a túnica azul-escura com bordados dourados, ao lado dele, Jiang fez uma leve reverência antes de se posicionar, seu semblante sereno transmitindo equilíbrio. A atmosfera formal do salão parecia aquietar-se diante da presença confiante do trio, irradiando uma confiança calma que contrastava com a tensão visível entre os nobres.
— A presença das senhoritas será de grande ajuda. — a voz firme e clara de Jiang soou pelo salão, equilibrando autoridade e cordialidade. — O ponto de vista da princesa Maomao é especialmente importante, dado o impacto das medidas propostas nas áreas administrativas do império.
Os primeiros minutos transcorreram com Maomao assumindo a palavra, analisando meticulosamente os argumentos sobre tributação e distribuição de recursos. Ela gesticulava com delicadeza, mas com firmeza, apontando mapas e tabelas das vilas fronteiriças, destacando as implicações de cada proposta.
— Nobres presentes, — disse Maomao, inclinando levemente o corpo sobre a mesa baixa, os olhos azuis percorrendo cada um deles — a uniformidade de tarifas pode parecer justa na teoria, mas ignora as diferenças logísticas entre regiões. Um imposto único pode sufocar vilas menos favorecidas, enquanto regiões centrais absorvem sem impacto significativo, é imperativo equilibrar justiça com sustentabilidade.
Jin-Ye acompanhava ao lado, acrescentando, com a mesma seriedade:
— Podemos considerar um sistema progressivo, que leve em conta a capacidade produtiva de cada vila, aplicando reduções temporárias em regiões fronteiriças em épocas de escassez. Isso protegeria o comércio local sem comprometer os cofres do império.
Um nobre mais velho franziu a testa, a voz cheia de desdém:
— E como pretendem, senhoritas, que pequenos impostos façam frente às despesas da manutenção militar? A guerra exige recursos, e não podemos negligenciar isso.
Maomao respondeu com firmeza, mas com suavidade:
— Compreendo a preocupação, mas a eficiência do exército depende da estabilidade das vilas e do bem-estar de seus habitantes. Uma população faminta ou sobrecarregada com impostos não produz, não comercializa e não sustenta o império. Devemos garantir que a arrecadação não comprometa a própria base que sustenta nossas forças.
Jinshi, percebendo a complexidade da situação, acrescentou calmamente:
— Minha esposa tem razão. Uma abordagem rígida pode parecer vantajosa no papel, mas na prática cria brechas e instabilidade, a proteção das fronteiras não se limita às armas; envolve também a prosperidade das vilas e o apoio popular.
— E um sistema gradual, revisado periodicamente, permite ajustes sem causar revoltas ou colapsos econômicos. Isso mantém tanto o exército quanto os cidadãos em equilíbrio. — Jiang completou apoiando.
O debate continuou, Maomao e Jin-Ye alternando argumentos, complementando-se, mostrando mentes analíticas e atentas, que não apenas questionavam, mas apresentavam soluções plausíveis. Os nobres, embora ainda céticos em alguns momentos, não podiam ignorar a clareza e a lógica nas exposições das duas princesas, e até começaram a anotar recomendações e ajustes sugeridos.
A cada intervenção, Jinshi observava, admirando a inteligência e a postura de Maomao, reconhecendo a paciência e a meticulosidade de Jin-Ye. Havia algo hipnotizante na forma como ambas lidavam com a autoridade e com a pressão do salão, unindo diplomacia, estratégia e precisão em cada palavra.
— Precisamos de um mecanismo de auditoria nas vilas fronteiriças — sugeriu Jin-Ye, apontando um detalhe nos mapas. — Apenas assim poderemos assegurar que os ajustes sejam aplicados corretamente, e evitará que o sistema seja explorado.
Maomao assentiu, sorrindo levemente:
— E não apenas isso, mas podemos propor uma equipe conjunta, liderada por representantes locais e supervisores imperiais, garantindo equilíbrio entre autonomia e responsabilidade central.
— Excelente — Jinshi concluiu, o tom de aprovação firme. — Essa é uma visão que minha esposa e minha irmã percebem e pontuam que sustentam o império e acredito que possa ser o melhor caminho que podemos seguir nesse momento.
O salão, antes tomado por murmúrios e tensão, agora respirava um silêncio respeitoso, os argumentos haviam sido apresentados, contestados e aprimorados, e as duas princesas, lado a lado, mostravam que mesmo no contexto formal e cerimonioso, sua inteligência e coragem eram forças de peso no governo do reino.
Mas, lentamente, uma estranha sonolência começou a envolver Maomao, os minutos de concentração e a tensão silenciosa da sala pareciam pesar sobre suas pálpebras. Ela piscava com mais frequência, tentando manter o foco, mas o calor do salão e o perfume das lanternas acalmavam seu corpo. A posição do corpo, imóvel em sinal de atenção, começou a fazer com que o peso do sono fosse quase irresistível.
— Como... podemos ajustar... a alíquota sobre os transportes... sem prejudicar as vilas...? — murmurou Maomao, a frase se desfazendo em um bocejo contido. Seus olhos se fecharam por um instante, a cabeça inclinando-se suavemente.
Jin-Ye, que estava ao lado, tentou manter a atenção, mas a sonolência também a envolveu, ela, normalmente meticulosa e alerta, sentiu a mente pesar, os cílios caindo lentamente sobre os olhos vermelhos. A sala inteira parecia girar suavemente, enquanto ela respirava fundo, tentando se manter presente, mas as discussões, o calor e a formalidade pareciam envolver ambas em um manto invisível de cansaço.
— Princesa Maomao, princesa Jin-Ye? — um dos nobres interveio, franzindo a testa ao notar as duas inclinar-se suavemente sobre as mesas, adormecendo. — Altezas, isto é... inaceitável!
Outros cochicharam, indignados, e alguns membros da assembleia começaram a questionar o príncipe Jinshi, exigindo explicações pelo ultraje, acusando a Princesa da Lua e a irmã dos príncipes de desrespeito.
Jinshi permaneceu calmo, erguendo a mão para silenciar os murmúrios.
— Elas estão presentes e atentas, embora, evidentemente, a manhã longa e os compromissos pesem sobre ambas, mas elas se posicionaram ativamente no início dessa reunião. — disse, mantendo o tom firme. — A contribuição de minha esposa continua sendo vital, e minha irmã mesmo que cansada, mostra comprometimento com a comitiva.
Jiang completou, concordando com o irmão:
— O respeito que temos por elas não se mede apenas pela vigilância constante, elas têm todo o direito de se encontrar cansadas, mas suas presenças são indispensáveis, e é justamente isso que lhes conferimos.
Os nobres se entreolharam, hesitando, mas a postura serena e autoritária dos dois príncipes fez com que a indignação fosse contida.
Enquanto isso, Maomao sonhava acordada por breves momentos, imaginando pequenos pés correndo pelos corredores do palácio, risadas suaves ecoando pelas colunas. Ela piscava lentamente, sentindo o peso de uma novidade em seu corpo, sem compreender ainda o motivo de sua fadiga repentina — uma sonolência sutil, constante, que lhe lembrava momentos de tranquilidade junto a Jinshi.
Jin-Ye, ao lado dela, permitiu-se alguns pensamentos similares, imaginando uma versão mais familiar do palácio, com mais liberdade e correria suave. Havia algo reconfortante naquele devaneio, mesmo que suas sobrancelhas franzidas indicassem o esforço em manter a postura.
Jinshi, percebendo a exaustão das duas, segurou a mão de Maomao discretamente, ela ergueu levemente os olhos azuis, encontrando o olhar de Jinshi, e sorriu, um gesto contido mas cheio de gratidão. A sonolência ainda a dominava, mas naquele instante, entre segurança e dever, havia também a percepção de que, com ele, poderia suportar qualquer cansaço, qualquer julgamento — e ainda assim se sentir completa.
[. . .]
Jiang bateu levemente com o bastão sobre a mesa de reunião, sinalizando o encerramento, as discussões sobre tarifas e ajustes comerciais haviam sido concluídas, os nobres pareciam satisfeitos — ainda que alguns franzissem a testa em relação à sonolência das princesas. Jinshi, sempre firme, conduziu a sessão com palavras medidas, reafirmando que os acordos eram válidos e que a presença de Maomao e Jin-Ye, mesmo breve, tinha sido essencial para registrar a posição do Palácio.
— Com isso, considero a reunião encerrada. — declarou Jinshi, com a voz firme, mas o olhar voltado discretamente para as duas mulheres que mal conseguiam manter-se despertas. — Agradeço a colaboração de todos e a atenção dispensada à Princesa Maomao e à Princesa Jin-Ye.
Alguns nobres ainda trocavam olhares de insatisfação, murmurando sobre a aparente falta de zelo, mas Jiang interveio com firmeza, defendendo as irmãs:
— Elas estão aqui por mérito próprio e acompanharam todas as decisões pertinentes, a sonolência é resultado de esforços recentes, mas não diminui a importância de sua presença.
Jinshi assentiu, erguendo ligeiramente a mão em sinal de concordância.
— Exatamente, a presença das princesas é significativa, mesmo que breve, devemos respeitar sua dedicação.
Com a reunião oficialmente encerrada, Jinshi e Jiang se aproximaram das duas, prontos para escoltá-las, Maomao, ainda levemente dispersa, caminhava apoiando-se de leve no braço do marido, os olhos azuis semicerrados, o rosto corado pelo cansaço acumulado. Ela respirava com cuidado, tentando manter a postura cerimonial dos trajes, mas cada passo parecia exigir esforço.
— Consegue caminhar sozinha, minha gatinha venenosa? — perguntou Jinshi, a voz baixa, quase sussurrante, como se temesse acordar o delicado equilíbrio da esposa.
— Acho que sim... — murmurou ela, piscando lentamente, mas se inclinando um pouco para encostar a cabeça no ombro dele, como se buscasse apoio.
Enquanto isso, Jin-Ye segurava firme o braço de Jiang, os olhos violetas semicerrados, a postura ainda tensa apesar da sonolência evidente. Cada passo parecia exigir concentração, como se estivesse tentando manter a elegância e o autocontrole em meio ao cansaço que a invadia.
— Você parece tão cansada ultimamente, Jie Jie — comentou Jiang, com delicadeza, guiando-a pelos corredores do palácio.
Jin-Ye suspirou, mas manteve o semblante sério, quase meticuloso, inclinando-se para apoiar a cabeça levemente no braço do irmão.
— Apenas... tentando absorver cada detalhe, ainda não me acostumei com tanta responsabilidade de uma vez.
Jinshi observava Maomao, atento a cada pequeno gesto: os dedos entrelaçando-se discretamente aos dele, a forma como se encostava de leve ao seu corpo, a respiração tranquila apesar da dispersão. Um sorriso suave se formou em seus lábios, um misto de ternura e proteção silenciosa. Ele não mencionou nada sobre a sonolência, não pressionou, apenas permaneceu ao lado dela, guiando-a com cuidado pelos corredores silenciosos agora, o palácio interno parecia mais acolhedor com o corpo de Maomao encostado ao seu.
— Devemos descansar um pouco quando chegarmos ao pavilhão — murmurou ele, a voz baixa, firme, mas suave. — Não precisa se preocupar com nada.
Ela inclinou a cabeça para encostar-se mais nele, os lábios curvando-se em um sorriso tímido, ainda parcialmente absorvida pelo cansaço.
— Obrigada... Zui, por tudo.
A carruagem do palácio avançava lentamente pelos jardins banhados pelo sol da tarde, o ranger suave das rodas sobre a pedra polida quase hipnotizante. Maomao, ainda exausta da longa reunião, apoiava-se levemente em Jinshi, sentindo o calor do corpo dele e a firmeza do braço que a sustentava. Cada passo nos corredores de madeira polida parecia mais fácil com ele ali, ao seu lado, seu toque um lembrete silencioso de segurança e presença constante.
Quando finalmente chegaram ao Pavilhão da Lua, Maomao suspirou, permitindo que todo o peso do cansaço e da tensão escapasse. Seus ombros se soltaram, e ela se deixou escorregar sobre o sofá, o olhar semicerrado, rendida à sensação de estar finalmente segura. Jinshi inclinou-se suavemente, ajustando parte das vestes cerimoniais que a prendiam, cobrindo-a com sua própria túnica azul-escura. Com delicadeza, ele apoiou a cabeça dela sobre suas pernas, arrumando-a de forma que ficasse confortável, cada movimento repleto de atenção silenciosa.
— Pode descansar. — a voz dele era baixa, quase um sussurro, carregada de cuidado.
Seus dedos deslizaram pelos fios verdes soltos da cabeça de Maomao, realizando um cafuné lento e reconfortante. O toque era delicado, mas firme, transmitindo mais do que palavras poderiam: proteção, afeto e uma segurança que parecia envolver cada centímetro do corpo dela. Lentamente, Maomao fechou os olhos, rendendo-se ao calor do corpo dele, ao ritmo tranquilo da respiração de Jinshi, e à sensação de que ali, naquele espaço silencioso, poderia simplesmente ser. Ela aninhou-se ainda mais contra ele, como se o abraço fosse um lugar que sempre pertenceu.
O silêncio do pavilhão, carregado de intimidade e calor, foi suavemente interrompido por passos apressados. Lishu e Chue entraram, suas expressões marcadas pela preocupação, mas suavizadas ao verem Maomao relaxada nos braços de Jinshi.
— Senhora Maomao! — Lishu começou, a voz carregada de tensão, mas interrompeu-se ao perceber que a princesa estava em segurança. — Está… tudo bem, Alteza? Precisam de algo?
Jinshi ergueu o olhar, lançando-lhes um sorriso calmo, cheio de confiança.
— Não há motivo para alarme, ela apenas precisa descansar — disse, a voz firme, mas suave. — Está segura.
Chue respirou fundo, aproximando-se para verificar discretamente, os olhos cheios de ternura enquanto observava a esposa do príncipe. Jinshi continuava a acariciar os cabelos de Maomao, os dedos deslizando lentamente, cada movimento transmitindo cuidado e paciência. O ar parecia mais leve agora, a tensão da reunião e do dia lentamente se dissolvendo.
— Vou buscar a correspondência que chegou esta manhã — disse Chue, recuando com delicadeza. Logo retornou com uma carta lacrada com selo de cera, cuidadosamente passada a Jinshi.
Ele abriu o envelope, os olhos percorrendo cada linha da caligrafia com atenção silenciosa, enquanto Maomao permanecia encostada nele, respirando suavemente, o semblante relaxado.
A carta era do Clã Kan, escrita por FengXian
Ao Príncipe da Lua, Jinshi,
Saudações.
Espero que esta mensagem o encontre em boa saúde e tranquilidade. Sinto falta da minha filha, tanto quanto os pequenos Zhìyuan, Fen Fang e Yaling, mais do que as palavras podem expressar, e por isso venho informar que, ainda nesta tarde, farei uma visita a ela, acompanhada pelos membros mais jovens de nossa família.
Desejo que este encontro seja leve, sereno, e cheio de afeto, para que possamos compartilhar não apenas momentos de convívio, mas também o calor do coração que há tanto tempo não sentimos juntos. Após tanto tempo sem ver minha menina, espero que este reencontro seja um presente que aqueça seu espírito e traga conforto, em vez de qualquer peso.
Agradeço de antemão pela atenção e cuidado em preparar o ambiente para que possamos estar todos seguros e confortáveis. Que este seja um momento de proximidade, carinho e renovação dos laços que nos unem.
Com todo o meu amor e estima,
Lady Kan FengXian.
Jinshi manteve a carta fechada por um instante, refletindo, antes de guardar cuidadosamente no bolso interno de seu robe. O toque dos cabelos de Maomao contra sua mão, o leve calor do corpo dela sobre o sofá, e o silêncio tranquilo do pavilhão criavam um contraste quase poético com as responsabilidades e compromissos do dia.
— A família de minha esposa, virão hoje ao Pavilhão da Lua, — murmurou, ainda acariciando a cabeça de Maomao.
Jinshi permaneceu deitado ao lado de Maomao, os dedos ainda acariciando suavemente os fios verdes dela enquanto falava com Lishu e Chue, que observavam com atenção cada gesto, prontas para seguir suas instruções.
— Hoje ficarei no escritório ao lado do Pavilhão durante a tarde — começou ele, a voz calma e firme, mas carregada de autoridade natural. — Preciso adiantar algumas papeladas, mas assim que houver um intervalo, quero almoçar com o Sr. e a Sra. Kan, os pequenos e… com Maomao.
Maomao, ainda semiadormecida, mexeu levemente a cabeça sobre o braço dele, um pequeno sorriso surgindo nos lábios. Jinshi percebeu, mas não se desviou do assunto.
— Quero que deixem tudo pronto e confortável — continuou, os olhos atentos à reação das damas. — Organizem o pavilhão de modo que possamos aproveitar a tarde sem precisar nos preocupar com nada. Quero que Maomao possa se concentrar apenas em receber a família dela, e que as crianças tenham espaço seguro para brincar sem causar preocupação.
Chue assentiu rapidamente, os olhos brilhando com entusiasmo.
— Sim, senhor. Vamos garantir que tudo esteja impecável.
Lishu, mais séria, cruzou as mãos sobre o colo e acrescentou:
— Não se preocupe, Alteza, nada escapará do nosso cuidado.
Jinshi inclinou-se levemente para encostar a testa na de Maomao, deixando escapar um suspiro baixo e contente, quase um murmúrio de afeto:
— Então está decidido, aproveitem o dia, cuidem de tudo, e não deixem que nada atrapalhe o nosso reencontro depois de tanto tempo.
Maomao murmurou algo quase inaudível, um “hm”, enquanto se aconchegava mais ao lado dele, sentindo o calor e a segurança do corpo de Jinshi, confiante de que, por aquela tarde, nada mais importaria além da alegria de rever sua família.
As damas de companhia acenaram, já planejando mentalmente cada ajuste e cada cuidado para que o reencontro entre Maomao e a família, após dois meses separados, fosse perfeito.
[. . .]
O sol da tarde banhava o jardim do Pavilhão da Lua com uma luz dourada que dançava sobre as folhas das árvores e os canteiros de ervas, Maomao, agora recomposta e sem os trajes cerimoniais, vestia um hanfu vermelho vivo, o tecido leve balançando suavemente com a brisa. O contraste do verde das ervas com o vermelho do hanfu criava um efeito quase pictórico, cada movimento seu lembrando a graça natural de uma guerreira.
Ela colhia cuidadosamente algumas folhas aromáticas, depositando-as numa cesta de vime próxima, quando um som súbito de passos firmes na grama chamou sua atenção.
— Oh! — exclamou, quase derrubando uma folha, virou-se rapidamente, surpresa ao encontrar Yao Jun parado diante dela. — Você… você mal aparece nos eventos ou nos corredores do palácio! — disse, franzindo a testa, embora seu sorriso fosse inevitável.
Yao Jun, com os cabelos castanho-rosados refletindo a luz do sol e os olhos verdes atentos, sorriu, levemente encabulado, "Acredito que os genes do Imperador nem se quer se esforçaram para disputar com os genes de Lady Gyokuyou, Yao Jun é sua versão masculina completa.", Maomao imaginou analisando o jovem de cima abaixo ainda surpresa.
— Ando ocupado, treinando e viajando com o exército imperial — respondeu, um pouco defensivo. — Quero fazer parte da guarda, não ser apenas um príncipe, mas confesso… lutar com espadas não está sendo tão fácil quanto imaginei.
Maomao riu suavemente, guardando as ervas na cesta e levantando-se, o hanfu vermelho esvoaçando ao redor das pernas.
— Espere um momento. — disse, virando-se para pegar dois bastões de madeira cuidadosamente preparados. — Vamos ver se consigo ajudá-lo com isso.
Ela entregou um dos bastões a Yao Jun e assumiu uma postura firme, os pés levemente afastados, a cintura flexionada. A luz do sol refletia nos tecidos, destacando cada linha do hanfu vermelho que se ajustava aos movimentos da cintura e dos ombros, lembrando força e elegância ao mesmo tempo.
Yao Jun, segurando o bastão, levantou as sobrancelhas, surpreso.
— Você não é uma princesa convencional, não é? — comentou, a voz carregando uma mistura de admiração e incredulidade.
Maomao sorriu, inclinando levemente a cabeça, os fios verdes caindo sobre os ombros:
— Eu cresci ouvindo que era a primogênita do Clã Kan. Eu sou uma princesa, sim, mas isso não impediu meu pai de me ensinar luta corporal e como manejar espadas, — Maomao o encarou séria — Yao Jun, eu sou uma princesa… mas não indefesa.
A provocação suave nos lábios dela fez Yao Jun erguer o bastão com mais firmeza, ele avançou, tentando um golpe rápido, mas Maomao desviou com agilidade, o tecido vermelho do hanfu girando junto do movimento. Cada passo dela era calculado, firme, mas gracioso, os punhos segurando o bastão com a destreza de alguém que crescera praticando combate desde jovem.
— Impressionante… — murmurou Yao Jun, desviando-se novamente, desta vez tentando atacar pela lateral.
Maomao riu, respondendo com um giro e um bloqueio impecável, mantendo a distância ideal enquanto estudava os movimentos dele.
— Ainda falta prática, Yao Jun! Concentre-se nos passos, não apenas na força do golpe e pare de tagarelar.
O choque dos bastões ecoava pelo jardim, cada impacto reverberando pelo ar perfumado de ervas. Yao Jun avançava com determinação, mas Maomao, com a paciência de quem conhecia cada nuance do combate, desviava e ripostava, guiando os movimentos dele com comentários suaves e precisos:
— Mais firme nos braços, olhos sempre no centro da ação… assim!
Ele suspirava, exausto mas animado, enquanto ela se movia com a leveza de um felino, o hanfu vermelho destacando cada gesto, cada inclinação e cada golpe defensivo que transformava a luta numa dança elegante.
— Você realmente não é como eu imaginava uma princesa… — admitiu ele, quase sorrindo em meio ao esforço.
— E você realmente não é como os príncipes que costumava ver por aí, tipo seus irmãos, dois príncipes mimadinhos. — respondeu Maomao, com um brilho provocador nos olhos azuis, desviando um golpe e dando um passo para trás, preparando-se para uma nova investida.
— Acredito que o Liang é o único que se salva no nosso meio princesa. — comentou Yao Jun passando a mão por entre os cabelos.
— Minha irmã caçula discorda totalmente. — riu — Mas concordo que ele é um bom menino mesmo, diferente de vocês mais velhos.
Yao Jun deu um soquinho leve no ombro de Maomao recebendo um abraço lateral e um tapa nas costas da Princesa da Lua.
O treino chegou ao fim, Maomao recuou alguns passos, respirando com calma, o hanfu vermelho levemente amassado pelos movimentos intensos da luta. Yao Jun, ainda segurando o bastão, respirava pesadamente, o suor escorrendo pelo rosto e pelo pescoço, mas havia um sorriso largo iluminando seus traços juvenis.
— Você realmente não perdoa… mas aprendi muito! — disse Yao Jun, limpando a testa suada com a manga, ainda ofegante.
Maomao se aproximou com passos firmes, mas suaves, colocando as mãos nos ombros dele e guiando a respiração.
— Devagar, Yao Jun. Inspire… expire… assim. — ela deslizou os dedos sobre os ombros dele, firme e cuidadosa, certificando-se de que cada músculo relaxasse. — Ótimo e você se saiu muito bem.
Ele sorriu, ainda ofegante, o brilho castanho-rosado dos olhos refletindo uma mistura de orgulho e fascínio.
— Treinar com você é… diferente de qualquer outra lição que já tive, agradeço pela oportunidade de praticar contigo. Jinshi sabe do seu talento oculto? — perguntou, um riso contido na voz.
— Por que ele deveria saber? — respondeu Maomao, arqueando uma sobrancelha com um sorriso zombeteiro. — Algumas coisas não precisam ser ditas para serem vistas. E mesmo que você dissesse que eu te ensinei algo, ninguém acreditaria que uma princesa saberia manejar espadas.
— Você é realmente muito astuta, princesa.
— Para sobreviver ao palácio, preciso ser Alteza — replicou ela, piscando para ele, divertida.
Enquanto Yao Jun recuperava o fôlego, Maomao desviou o olhar e seu coração aqueceu ao notar uma cena igualmente encantadora: o pequeno príncipe Liang corria pelos canteiros de ervas, acompanhado de Zhìyuǎn, Fen Fang e Yaling. Eles se empurravam, riam alto, tropeçavam e se levantavam novamente, a energia infantil espalhando vida pelo jardim.
Maomao sorriu, sentindo uma pontada de nostalgia percorrer-lhe o peito. As lembranças de sua própria infância surgiam vívidas, misturadas ao calor do presente. A parte boa de sua infância eram as incontáveis vezes em que ela e Lahan corriam e brigavam no enorme quintal da residência do clã, rindo e gritando até ficarem exaustos. Agora, observar aqueles pequenos vultos à sua frente despertava uma sensação agridoce — a inocência, a alegria desmedida, e aquela energia caótica que, de alguma forma, preenchia seu coração de forma completa.
— Vocês por aqui! Venham cá. — chamou Maomao, estendendo a mão, o sorriso irradiando ao mesmo tempo ternura e autoridade natural, um equilíbrio que só ela possuía.
Os quatro pequenos correram em disparada, gargalhando, como se o mundo se resumisse àquele momento. Cada um se lançou nela de maneira única, derrubando-a suavemente sobre a grama, embalando-a com a alegria crua da infância. Yaling agarrou suas pernas com força, Fen Fang enrolou-se ao redor de seu braço como se fosse parte dela, Zhìyuǎn tentou subir em seu colo, enquanto Liang a puxava pelo ombro, rindo descontroladamente.
— Eita! — Maomao exclamou, rindo alto, sentindo-se completamente tomada pelo abraço coletivo. — Calma, calma, Ervas Daninhas! — seu riso se misturava aos deles, criando uma harmonia deliciosa de sons, passos e pequenas quedas.
Yao Jun, observando a cena com um sorriso divertido, levantou o bastão em um gesto de despedida.
— Preciso ir, princesa, continuarei meus treinos em outro momento.
— Até mais, Yao Jun! Boa sorte. — respondeu Maomao, acenando, ainda cercada pelas crianças, que agora pareciam turbilhões de energia e alegria.
Mas o silêncio não durou muito, um grasnado estridente cortou o ar: Jofu, o pato, corria em disparada pelo jardim, bicando o chão e grasnando como um pequeno general furioso, determinado a impor sua ordem.
— Jofu! — Maomao gritou, rindo, tentando afastá-lo com uma mão enquanto ainda segurava Fen Fang enrolado em seu braço. — Pare com isso agora!
Nesse instante, Lady Lishu surgiu correndo, segurando Guang nos braços, ofegante, com Chue logo atrás, também apressada pelo jardim. Ambas mostravam preocupação e atenção imediata, conferindo se Maomao estava ilesa após o abraço coletivo das crianças.
— Está tudo bem, princesa Maomao? — Lishu perguntou, os olhos atentos percorrendo cada detalhe, ainda segurando Guang com cuidado.
— Estou perfeitamente — respondeu Maomao, levantando-se lentamente, ajeitando o hanfu vermelho que se amassara durante a queda, o rosto ainda rosado pelo riso e pelo calor do esforço. — Apenas cercada de muita energia, como sempre.
Chue sorriu, entregando um lenço a Maomao para que limpasse o suor do rosto, enquanto Lishu acomodava Guang junto a si novamente, como se nada mais importasse além da segurança dele.
— Mas… e Jofu? — comentou Lishu, apontando para o pato que agora se afastava, ainda grasnando baixinho, quase em protesto.
Maomao riu, sentindo o coração aquecer com aquela pequena confusão organizada.
— Ele só quer atenção, nada de mais, mas agora… todos nós estamos bem, e isso é o que importa. — e, por um instante, ela fechou os olhos, respirando fundo, deixando a alegria pura das crianças.
As crianças finalmente se acalmaram, espalhando-se pelo jardim para pequenas travessuras e corridas. O barulho das risadas, o farfalhar das roupas, os pequenos passos e os embates energéticos criavam uma melodia única, quase sagrada.
Chue se aproximou com passos firmes, segurando gentilmente o braço de Maomao.
— Princesa, deixe-me ajudá-la a se recompor. — com cuidado, ergueu Maomao do chão, ajeitando o hanfu vermelho que agora estava um pouco amassado pelos movimentos da queda.
Maomao suspirou, apoiando-se por um instante, ainda sorrindo do caos do jardim.
— Obrigada, Chue. Sempre pronta para me salvar, não é?
— Sempre — respondeu a dama de companhia, com um pequeno sorriso cúmplice. — Mas precisamos nos apressar um pouco. Lady Kan e o Mestre Lakan estão próximos do pavilhão, sua mãe apenas parou para conversar com Lady Gyokuyou, então ainda há tempo.
Maomao assentiu, ajeitando os cabelos com delicadeza enquanto se recompunha, seus olhos então se voltaram para os pequenos que corriam ao redor: Zhìyuǎn, Yaling e Fen Fang, que pareciam ter encontrado uma nova fonte de energia após a luta com Yao Jun.
— Maomao — gritaram eles quase em uníssono, correndo para ela. — Estávamos com tanta saudade! E… você está diferente! Menos ríspida, mais doce e meiga!
Maomao riu, agachando-se para ficar na altura deles, os olhos azuis brilhando.
— Diferente? Não… eu continuo igual, do mesmo jeito de sempre.
— Mas… você engordou! — interrompeu Yaling, a mais pequena, com os olhos grandes e sinceros. — Está bem gordinha!
Maomao deixou escapar uma risadinha, sentindo um calor misto de vergonha e ternura, e balançou a cabeça.
— Engordei nada… apenas… talvez tenha crescido um pouco mais em outros sentidos.
Nesse momento, a princesa Jin-Ye surgiu no jardim, observando a pequena confusão com os olhos vermelhos atentos. O cabelo violeta dela reluzia à luz do sol, e sua expressão séria misturava-se a uma curiosidade divertida.
— O que está acontecendo aqui? Vocês planejaram uma festa e não me chamaram? — perguntou, a voz firme, mas com um brilho divertido nos cantos da boca.
Os pequenos não demoraram a migrar toda a atenção para ela, esquecendo por um instante Maomao, e se espalharam para abraçá-la e receber atenção. Jin-Ye, por sua vez, se agachou, envolvendo Yaling, Fen Fang e Zhìyuǎn com braços delicados, fazendo cócegas e rindo com eles.
Maomao observava a cena, rindo baixinho, quando Liang, sentindo-se um pouco excluído, correu e se agarrou em seu braço, abraçando-a com força e meiguice.
— Princesa, não esqueça de mim, porque Jin-Ye parece me ignorar.
— Ah, meu pequeno ciumento… — Maomao murmurou, rindo, acariciando os cabelos escuros do menino. — Não poderia te esquecer nem que quisesse. — ela riu beijando sua cabeça — E ela não está te ignorando.
Ela olhou para Jin-Ye, que agora parecia encantada com a bagunça organizada das crianças, e sentiu um calor doce no peito. Mesmo em meio à confusão e ao caos alegre do jardim, havia uma sensação de lar, de família, que a deixava segura e feliz.
— Está vendo, Jin-Ye? — disse Maomao, com os olhos brilhando e um sorriso travesso. — Mesmo eu dizendo que não mudei, acho que… no fundo, não sou tão diferente assim com eles.
Jin-Ye apenas sorriu, se levantando e observando o pequeno exército de crianças que cercava Maomao, o olhar vermelho suavizando-se num brilho quase maternal.
— Talvez você seja mesmo assim… doce, mas sabe se manter firme quando precisa — comentou Jin-Ye, num tom mais leve, admirando a irmã de coração.
Maomao olhou para os pequenos, depois para Jin-Ye, e sentiu novamente aquela mistura delicada de exaustão e ternura que só momentos assim poderiam trazer. Pequenos risos, abraços apertados, correria pelo jardim e ela, bem no centro, se sentindo finalmente em casa.
[. . .]
Maomao adentrou o Pavilhão da Lua, enquanto Jin-Ye brincava com as crianças, assim Maomao permitiu-se confiar nas mãos experientes de Chue que desabotoava cuidadosamente o hanfu vermelho que ainda vestia, recolhendo o tecido com precisão para não amassar os bordados delicados de lótus dourados. Cada gesto era silencioso, mas cheio de atenção, como se aquele cuidado transmitisse respeito e carinho ao mesmo tempo.
Lady Lishu ergueu o hanfu azul-claro, segurando as mangas e ajustando o tecido sobre os ombros de Maomao. O contraste da cor suave com os cabelos verdes da princesa realçava ainda mais sua postura elegante e natural, o que fez Maomao revirar os olhos, era como Lahan costumava dizer "Faça chuva, faça sol, Maomao sempre irá detestar azul e roxo, o que ironicamente é a cor dos olhos dela e do marido."
— Inspire fundo — instruiu Chue, passando as mãos para ajustar a cintura e amarrar o cinto de seda com delicadeza. — Isso, assim.
Maomao sentiu o toque firme e seguro das duas, cada movimento calculado, mas ao mesmo tempo cheio de ternura, permitindo que ela se concentrasse apenas em respirar e relaxar.
— Está perfeito — disse Lishu, ajustando os últimos fios do penteado, colocando o broche de jade de volta na nuca de Maomao. — Cada detalhe está no lugar.
Maomao ergueu os braços lentamente, verificando o caimento do novo hanfu, o tecido azul-claro parecia flutuar suavemente em torno dela, leve, elegante e confortável. Um sorriso suave se formou em seus lábios.
— Obrigada — murmurou, a voz carregada de alívio e gratidão. — Sinto-me… renovada.
Chue deu um leve aceno, sorrindo. — Sempre que precisar, Alteza.
Maomao olhou para as duas, sentindo-se segura e apoiada, como se cada gesto tivesse dissipado a tensão que carregava desde a manhã. Com um último suspiro, ela endireitou os ombros e caminhou ao lado de Chue e Lishu, o hanfu azul-claro ondulando suavemente a cada passo, pronta para receber a visita de sua mãe com elegância e confiança.
Logo que Maomao saiu da varanda, avistou seus pais ao longe, por um instante, sentiu o peito disparar e as pernas se moverem quase sozinhas. Como uma criança reencontrando um porto seguro, correu alguns passos, o coração acelerado, os olhos brilhando com antecipação.
Quando chegou diante deles, o semblante de FengXian suavizou imediatamente, os ombros relaxando e os lábios se curvando num sorriso cheio de ternura.
— Maomao! — exclamou a mãe, abrindo os braços com uma mistura de alívio e alegria contida.
Maomao não hesitou. Largou qualquer formalidade que restasse, e se atirou no abraço da mãe. O calor do corpo dela, o perfume inconfundível, o contato firme e protetor — tudo se misturava em uma sensação avassaladora de conforto e pertencimento. Meses de distância pareciam evaporar em um único instante.
FengXian apertou-a com força, respirando fundo, sentindo cada respiração da filha como se quisesse absorver todo o tempo perdido, Maomao, por sua vez, deixou que as lágrimas viessem, silenciosas, deslizando pelo rosto enquanto se acomodava entre os braços da mãe, sentindo-se segura e, finalmente, em casa.
— Minha menina… — murmurou FengXian, a voz embargada, acariciando os cabelos de Maomao, dedos passando delicadamente entre os fios verdes. — Senti tanto a sua falta.
— Eu também… eu senti, mãe… — Maomao respondeu, entrecortada pelo choro, a voz quase um sussurro. — Tanto… — e suspirou, apoiando a testa no ombro da mãe, absorvendo cada detalhe do abraço.
Ao lado, Lakan se aproximava, os olhos marejados, erguendo uma das mãos para repousar sobre o ombro da filha, silencioso, mas transmitindo um carinho firme e protetor.
— Estamos todos aqui agora — disse ele, a voz baixa, cheia de significado. — Você está tão linda minha filha....
Ela sentiu um calor intenso se espalhar pelo peito, misturando alívio, amor e uma felicidade simples, mas profunda. Por alguns instantes, fechou os olhos, permitindo-se viver apenas aquele momento: o reencontro, a família reunida, o abraço que curava a distância e a saudade de meses.
Ela olhou para Jin-Ye, que estava ao lado, discretamente elegante, os cabelos violetas reluzindo à luz do entardecer.
— Jin-Ye, venha almoçar conosco — disse Maomao, sorrindo, o tom leve mas firme. — Quero que se junte à nossa família por hoje.
Jin-Ye, surpresa e animada, inclinou-se com a costumeira reverência. — Será uma honra, Maomao. — disse, sentindo o calor e a leveza do momento.
Pouco depois, Jinshi chegou, suas passadas firmes, o olhar atento, mas o semblante suavizado pelo sorriso da esposa. Ele se inclinou brevemente, cumprimentando os pais dela com deferência antes de se acomodar ao lado de Maomao, que segurou discretamente sua mão sob a mesa.
Enquanto os passos se aproximavam, Jin-Ye observava com atenção Lakan acompanhando FengXian. Ele caminhava com aquela serenidade tranquila que sempre a impressionara, os olhos atentos a cada gesto dela. Quando FengXian se inclinou para recolher um objeto que havia caído, Lakan estendeu a mão com delicadeza, segurando-a com firmeza, mas sem pressa, deixando escapar um sorriso terno que parecia iluminar o rosto dela.
— Aqui, deixe-me ajudá-la querida. — disse ele, a voz calma, quase suave, e FengXian respondeu com um pequeno riso, os ombros relaxando de imediato.
Lakan ajustava suavemente o manto; quando se sentava, oferecia o assento mais confortável; quando conversava, mantinha um olhar atento, fazendo perguntas que demonstravam interesse genuíno.
Jin-Ye não pôde deixar de comparar mentalmente com Lahan. Ele, sempre impetuoso, provocativo e capaz de tirá-la da paciência em segundos e, ainda assim, às vezes ela se pegava imaginando o que seria estar ao lado dele em silêncio, apenas dividindo o tempo, compartilhando momentos que pareciam pequenos, mas inesperadamente significativos.
"Quem eu quero enganar?" — pensou, virando ligeiramente o rosto para disfarçar o rubor que subia. — "Eu acho que amo esse homem… talvez eu nunca vá admitir isso a ele, principalmente depois daquela noite."
Ela respirou fundo, reprimindo o pensamento, tentando se convencer de que Lahan não era importante o suficiente para gastar seu tempo, mas a lembrança de cada gesto dele, de cada provocação que a fazia rir ou ficar irritada, permanecia viva na mente. Era um contraste estranho: Lakan despertava admiração e respeito, cuidado silencioso e segurança; Lahan despertava inquietação, desejo e um turbilhão de emoções que ela ainda não sabia nomear completamente.
Jin-Ye desviou o olhar, observando o modo como Lakan ajudava FengXian a ajeitar o cabelo, a abaixar-se para recolher uma fruta caída, e não pôde evitar um suspiro contido. Ela se surpreendeu com a admiração silenciosa que sentiu, mas rapidamente a substituiu por uma reprimenda interna, tentando organizar os pensamentos confusos que surgiam.
— Não posso… não devo. — murmurou para si mesma, baixinho. — Ele não é importante o suficiente…
E, ainda assim, no fundo, uma pontada de reconhecimento atravessava seu peito, uma verdade que se recusava a admitir, o coração de Jin-Ye, teimoso e relutante, sabia que Lahan, ocupava um lugar secreto, indiscutível e real. Desde aquela noite que tudo mudou entre eles, cada olhar furtivo, cada conversa sussurrada nos corredores vazios, cada toque proibido, cada beijo trocado em pontos escondidos do palácio interno, permanecia gravado em sua memória, impossível de apagar.
Ela se pegava revivendo pequenos gestos: o modo como ele ajeitava o manto dela, o toque rápido nos dedos, os risos abafados quando se encontravam sem testemunhas. Cada detalhe se acumulava, tornando cada encontro mais intenso e perigoso, Jin-Ye estava perdida, envolvida em um caminho sem retorno, presa entre o desejo e a razão, entre o dever de princesa e o magnetismo impossível de Lahan.
Ele, estrategista nato, compreendia o mundo ao seu redor como se fosse um tabuleiro de xadrez, cada movimento calculado; ela, princesa, sabia que qualquer deslize poderia ser fatal para sua reputação, para a segurança de todos ao seu redor. E, mesmo assim, nada disso impedia o coração de acelerar, nada disso apagava o fio de atração que os unia.
O segredo deles era uma corda tênue entre prazer e perigo.
A cada encontro escondido, a cada sorriso trocado às sombras, Jin-Ye se forçava a mentir para si mesma, tentando acreditar que poderia controlar aquilo, que poderia reprimir sentimentos que insistiam em florescer, mas, quanto mais tentava, mais percebia que aquela negação só aprofundava o turbilhão dentro dela.
[. . .]
O almoço foi leve, entre risadas suaves e pequenas trocas de olhares cúmplices, Maomao compartilhava detalhes da rotina do palácio, o andamento da clínica, e até os pequenos caprichos de Jofu, que de tempos em tempos grasnava de forma inconveniente, arrancando risadas de todos. Jinshi acrescentava informações sobre a organização da comitiva, demonstrando cuidado e atenção ao que Maomao relatava.
— Vejo que está mantendo tudo sob controle. — disse FengXian, com um meio sorriso, enquanto observava o marido.
— Sim, mas sempre com Maomao ao meu lado .— respondeu Jinshi, apertando discretamente a mão dela, um gesto que ela sentiu como uma âncora.
Após o almoço, Jinshi se despediu brevemente, mencionando que precisava retornar ao escritório para organizar a papelada, Mestre Lakan se ofereceu para acompanhá-lo, mencionando que depois poderia verificar Lahan.
No pavilhão, ficou apenas a presença feminina: FengXian, Maomao, Jin-Ye, Lady Lishu e Chue. A atmosfera se tornou mais íntima e leve, entre conversas sobre os pequenos, o crescimento das crianças e pequenas histórias do palácio. Maomao sentiu-se tranquila, cercada por cuidado e carinho, mas também confiante em sua posição e em sua liberdade de ser ela mesma.
Enquanto as mulheres conversavam, Maomao notava pequenos gestos: Jin-Ye ajeitando discretamente as mangas do hanfu de Maomao, Lady Lishu observando com atenção os menores detalhes do jardim, e Chue mantendo a energia animada da tarde. Cada detalhe parecia reforçar a sensação de lar, de pertencimento, e uma paz suave se estabelecia no Pavilhão da Lua.
FengXian por outro lado, olhava atentamente para Maomao, o semblante de uma mãe perspicaz carregado de preocupação e carinho.
— Como está se sentindo na vida de casada, minha filha? — perguntou FengXian, a voz firme, mas suavizada por um calor maternal. Os olhos dela percorriam cada detalhe: o jeito como Maomao se movia, a postura delicada, o leve arredondar dos ombros que indicava tanto cansaço quanto serenidade. — Vejo que… ganhou um pouco de peso. Está… mais gordinha. É notável, mostra que está feliz.
Maomao sentiu o calor subir às faces, corando intensamente, desviando o olhar para os dedos entrelaçados sobre o colo, um pequeno sorriso surgiu, tímido, quase contido, enquanto ela balançava a cabeça:
— Não, mãe… não acho que esteja engordando — disse, a voz carregada de leveza, mas com sinceridade. — A vida de casada tem exigido muito de mim, mas acredito que estou conseguindo… fazer Jinshi feliz. Ele também tem feito tudo o possível para que eu me sinta acolhida, segura e… verdadeiramente feliz.
FengXian sorriu, a expressão suavizando-se, refletindo tanto orgulho quanto ternura. Aproximou-se, tocando de leve o braço da filha, gesto que transmitia cuidado sem invadir o espaço.
— É bom ouvir isso, Maomao, o casamento não é apenas união de corpos, mas de vidas, de vontades e de pequenos gestos. Vejo que você aprendeu isso bem. — disse, com um brilho nos olhos que misturava emoção e aprovação.
Maomao ergueu os olhos, encontrando o olhar da mãe, e sentiu uma onda de calor no peito, uma mistura de alívio, ternura e amor que atravessava qualquer distância ou formalidade. Por um instante, todas as preocupações da vida de casada pareceram leves, quase insignificantes diante da segurança daquele laço inquebrável entre mãe e filha.
FengXian franziu a testa, sorrindo de leve, maternal e teimosa ao mesmo tempo.
— Vamos ver… Mas diga-me a verdade, você tem se deitado com Jinshi? — perguntou com naturalidade, como quem falava de algo óbvio e necessário.
Maomao ficou completamente sem palavras, o rosto queimando em timidez, a situação foi rapidamente percebida por Chue, que soltou uma risada baixa, comentando com malícia:
— Vocês dois parecem coelhos quando estão sozinhos, até usou a camisola que eu comprei de presente.
Maomao imediatamente repreendeu Chue com um dedo levantado e um suspiro constrangido:
— Chue! Eu disse para não comentar da camisola!
O riso de todas explodiu em uníssono pelo pavilhão, e mesmo Lishu teve que se inclinar com Guang nos braços, acalmando-o enquanto ele emitia um piado de confusão. FengXian observava cada reação, mantendo a serenidade.
FengXian permaneceu em silêncio por um longo momento, seus olhos vermelhos — agora carregados de uma sagacidade maternal aguçada pela experiência — percorrendo cada linha do corpo da filha com uma intensidade quase clínica. O "Hm…" que escapou de seus lábios não era de julgamento, mas de confirmação silenciosa de uma suspeita.
— Maomao — ela começou, sua voz era um fio de seda, firme mas incrivelmente suave. — Eu estou perguntando isso, não para constrangê-la. Já falamos de coisas bem piores, já compartilhamos dores e segredos que a maioria das mães e filhas nem sonham. — disse com seriedade bebendo o restante de seu chá na porcelana — Digo isso porque eu reconheço o corpo de uma mulher grávida. E eu sei como é… já passei por três gestações, duas delas sendo de gêmeos. Meus olhos e minhas mãos aprenderam a ler os sinais antes mesmo do coração confirmar.
Maomao permaneceu em silêncio, seus olhos azuis fixos num ponto distante do tapete de bambu, como se ali encontrasse uma resposta para a aceleração desenfreada de seu coração. Jin-Ye, ao seu lado, também não disse uma palavra, mas seu olhar astuto transitava entre a senhora e a jovem, refletindo uma curiosidade mordaz misturada com uma apreensão genuína.
FengXian inclinou-se levemente para frente, e com uma delicadeza que contrastava com a firmeza de sua ordem, pediu:
— Lishu e Chue, poderiam ajudar Maomao a retirar o hanfu? Preciso examiná-la adequadamente. As roupas escondem a verdade que o corpo não pode negar.
— Mãe! — o protesto de Maomao saiu como um suspiro tímido, quase infantil. Um rubor intenso subiu de seu pescoço, queimando suas bochechas pálidas. — Não… não é necessário.
— É necessário sim minha pequena. — respondeu FengXian, sua voz mantendo a suavidade, mas sem espaço para debate. Um sorriso gentil, cheio de uma compreensão infinita, tocou seus lábios. — Se nem você, que é médica, suspeitou ou se permitiu aceitar… ao menos, como sua mãe, posso e devo identificá-la. Deixe-me cuidar de você, como você cuidou de mim.
Sob o comando silencioso de FengXian, Chue e Lishu movimentaram-se com eficiência solene. Seus movimentos eram cuidadosos, quase reverentes, enquanto desfaziam os laços e botões do hanfu de Maomao. Camada após camada de seda e algodão foi sendo removida, até que a pele clara e delicada da jovem ficou exposta à luz suave do pavilhão, Maomao cruzou os braços instintivamente sobre o peito, um tremor leve percorrendo seu corpo.
FengXian aproximou-se. Seus olhos, agora livres da barreira das roupas, realizaram um scan minucioso. Eles não eram mais apenas os olhos de uma mãe, mas os de uma veterana que havia travado batalhas épicas dentro de seu próprio ventre.
— Vê? — sussurrou FengXian, mais para si mesma do que para os outros. Sua mão, fina e de dedos longos, estendeu-se sem tocar inicialmente. — A aréola… um tom mais escuro, mais vivo. Os seios… não estão apenas inchados, minha filha. Estão mais pesados, mais sensíveis, preparando-se para um propósito sublime.
Seu olhar desceu então, traçando uma linha invisível do esterno até o umbigo. A barriga de Maomao, sempre tão plana e firme, agora apresentava uma suave, mas inegável, convexidade. Um arredondamento sutil, um volume baixo e compacto que não era de gordura, mas de vida contida.
— E aqui… — FengXian finalmente colocou a mão na barriga da filha.
O toque foi quente, seco e incrivelmente gentil, suas palmas, conhecedoras de cada contração, de cada estiramento, de cada milagre, pressionaram levemente os flancos de Maomao.
— Não é inchaço de má digestão, Maomao. É firme. É… vida — ela declarou, sua voz carregada de uma emoção contida. Suas mãos apalparam com uma precisão cirúrgica, medindo, avaliando. — O útero já está se elevando. Dois meses… talvez um pouco mais, o ganho de peso é sutil, mas está todo aqui, concentrado no ventre, nutrindo o novo broto.
Maomao estremeceu sob o toque, não por desconforto, mas pela verdade irrefutável que aquelas mãos experientes estavam transmitindo. Ela finalmente baixou a guarda, seus olhos se encontrando com os da mãe, e uma lágrima teimosa escapou, rolando pela sua face.
— Realmente tenho enjoando de algumas frutas e incensos… — confessou ela, sua voz tão baixa que foi quase engolida pelo silêncio do quarto. Sua própria mão, trêmula, cobriu a de FengXian sobre sua barriga, como se buscando confirmar a realidade através do contato. — E sinto dores frequentes nos seios… uma dor surda, que lateja… como a senhora disse, mas achava que pudesse ser estresse.
FengXian não sorriu triunfante, seu olhar transbordava de uma preocupação profunda e de um amor tão vasto que parecia capaz de envolver não apenas a filha, mas a nova vida que nela crescia.
Jin-Ye permaneceu em silêncio, seu olhar fixo em Maomao, mas sua mente fervilhava de pensamentos e sentimentos. Ela começou a notar as próprias mudanças sutis — cansaço excessivo, sensibilidade diferente — e o corpo respondendo de maneiras que ela ainda não compreendia completamente.
“E se… eu também estiver?” pensou, o coração acelerando. “Eu estou aprendendo a gostar de Lahan, e agora… um bebê? Como isso vai mudar tudo? Como vou carregar outra vida sendo que ainda tento compreender os meus próprios sentimentos? E se eu não conseguir?”
Maomao, sentindo a intensidade do momento, caiu de joelhos no chão, a mão pousando suavemente sobre a barriga, os olhos semicerrados, refletindo medo, expectativa e amor.
— Maomao! — exclamou Chue rapidamente, correndo para ajudá-la a se levantar e cobrir-se. — Fique calma, você está bem?
Lishu aproximou-se também, ainda segurando Guang, trazendo conforto com sua presença silenciosa. Maomao suspirou, aceitando a ajuda, o toque das mãos amigas e confiáveis lembrando-a de que não precisava enfrentar nada sozinha.
Maomao ainda estava parcialmente coberta, segurando a própria barriga, e FengXian permanecia ao lado dela, como uma presença firme e protetora. Lishu e Chue, mantinham-se discretas, aguardando instruções, e até mesmo Maomao sentiu que a atenção do ambiente se concentrava em algo que transcendia palavras.
Jin-Ye permanecia em um canto próximo, os olhos fixos em Maomao, mas a mente fervilhava em pensamentos próprios. A sensação estranha que vinha sentindo nos últimos dias, o cansaço repentino, os lapsos de tontura, tudo começava a fazer sentido em um nó de emoções e receios. Seu coração batia acelerado, dividido entre a excitação e o medo do inesperado.
“E se… não for apenas cansaço?” pensou. Cada pequeno sintoma que antes ignorava agora ganhava significado, e uma onda de responsabilidade e ansiedade começou a crescer dentro dela.
Ela engoliu em seco, tentando afastar a ansiedade com um ar sério, mas a mão de Maomao, ainda segurando a barriga, tocou brevemente a dela. Jin-Ye sentiu um calor inesperado subir pelo corpo, misto de solidariedade, medo e uma estranha ternura que só aquelas horas silenciosas poderiam proporcionar.
FengXian, percebendo a tensão nos olhares das duas jovens, se inclinou levemente em direção a Maomao, sua voz firme mas suave:
— Minha querida, eu não sei o que passa na sua cabecinha e nem como possa se sentir agora. — sua voz era serena e doce — Compreendo que o ocorrido com os gêmeos tenha sido traumatizante para você, assim como foi para mim, mas irei apoiá-la independente da decisão que você tome, não contestarei nada, é a sua vida e do bebê que está em jogo e só você sabe como prosseguir com isso
Maomao olhou para a mãe, o coração apertado pela confiança silenciosa que recebia, FengXian continuou, agora voltando-se para Jin-Ye também, a voz carregada de sinceridade:
— Mas qualquer decisão que fizer, acredito que seja bom conversar com Jinshi, se não quiser prosseguir com a gravidez, você sabe como intervir, mas se quiser continuar… saiba que terá uma grande rede de apoio. Minha filha, você será feliz imensamente. Como sua mãe, estarei ao seu lado sempre que precisar.
Jin-Ye sentiu uma onda de calor e emoção atravessar o peito, os olhos se enchendo de lágrimas que ela mal conseguia conter. As palavras de FengXian não eram apenas conselhos — eram a confirmação de que não estava sozinha, e ressoavam como algo que Lihua, se estivesse ciente, também teria dito. Um misto de alívio e medo se confundia com o desejo de proteção e aceitação, e por um instante, Jin-Ye deixou escapar um soluço silencioso, cobrindo o rosto com as mãos.
— Isso deve ficar entre nós… ninguém mais precisa saber agora.
Jin-Ye respirou fundo, enxugando as lágrimas, tentando recompor a postura, o coração ainda batia descompassado, mas havia uma calma diferente, um alívio velado por finalmente ter alguém que entendia sem julgamentos. O pavilhão parecia acolher cada respiração, cada pensamento, e mesmo sem palavras, as três sabiam que aquele momento seria lembrado como um porto seguro — uma promessa silenciosa de apoio, proteção e afeto que se estenderia para além de qualquer medo ou incerteza.
E, sem que pudessem imaginar, ambas as princesas carregavam vidas preciosas dentro de seus ventres. Para Jin-Ye, cada batida do coração do bebê era ao mesmo tempo um alívio e um peso insuportável: temia por sua própria vida e pela da criança. Concebido antes de um matrimônio, o bebê seria considerado bastardo, e a dor de carregar a desonra da família parecia esmagadora, um segredo que podia destruir tudo que conhecia.
Maomao, por outro lado, sentia o mundo girar de forma diferente, como lidaria consigo mesma? Uma gravidez não planejada, um futuro ainda indefinido, e a sensação de não estar preparada pesavam em seu coração. Cada movimento do corpo lembrava-a de que algo maior do que ela crescia dentro dela, e a responsabilidade parecia quase tangível, sufocante.
Duas princesas, dois ventres reais que guardavam medos e desejos, e um único problema que mudara suas vidas de cabeça para baixo. Cada passo adiante exigia coragem, e cada momento de silêncio carregava o peso de decisões que ainda teriam que enfrentar.
Chapter 18: A Exaustão de ser Mulher
Notes:
Confesso que escrevi capítulo ouvindo Labour da Paloma Smith
Acredito que estamos em uma fase sensível, ao qual estou me esforçando para escrever com a delicadeza que se deve ser escrita. Tenho usado meus intervalos na faculdade para escrever alguns trechos e em boa parte deles eu me encontro chorando com um peso no coração.
Queria que aqui fosse tipo um twitter para eu mostrar a folha que fiz de rascunho na faculdade.
Enfim, boa leitura espero que goste, responderei os comentários assim que eu tiver tempo, bjos :))))
Chapter Text
FengXian sempre soube que a maternidade jamais tinha sido uma opção para Maomao, ela sabia como a filha fugia disso, e agora em sua frente FengXian observava Maomao ainda tremia em pânico, os olhos arregalados, incapaz de digerir que agora abrigava dentro de si o tão sonhado herdeiro do Príncipe da Lua.
Não havia cobranças explícitas. Ninguém pressionava a princesa para gerar um descendente tão cedo, mas era o esperado. Mais cedo ou mais tarde, as línguas afiadas diriam que, se não engravidasse, seria incapaz de dar filhos ao príncipe e como deveria ser substituída. Entretanto para Maomao, tudo era muito mais cruel: a vida dela parecia reduzir-se àquele momento. Nem mesmo os tecidos finos que Chue e Lady Lishu lhe colocaram depois, nem o conforto oferecido, conseguiam esconder a expressão de negação que teimava em permanecer em seu rosto.
Com a mão trêmula sobre o ventre ainda plano, ela fixava o olhar no vazio.
— Um bebê real... — murmurava como quem pronuncia uma sentença.
Dentro dela, agora, crescia uma metade sua e uma metade de Jinshi, parte da linhagem imperial. Era uma revelação pesada demais, o pensamento vinha em ondas, esmagador, e antes que conseguisse organizar uma única ideia, as lágrimas voltavam a escorrer. Maomao estendeu os braços em busca do colo materno, estava tão frágil, de uma forma que ela não se reconhecia e que não se permitia ser há anos.
Em outro tempo, talvez fosse motivo de felicidade, mas agora lhe parecia uma maldição, um castigo disfarçado de bênção, algo que a perseguiria por muito tempo, Maomao não sabia se teria forças para levar adiante uma gravidez que nem ao menos planejou ou desejou, não se como se fosse faltar amor ao bebê, mas pronta, era uma coisa que ela talvez nunca estaria.
Do lado de fora, Jin-Ye mantinha distância, preferiu deixá-la com FengXian e com as damas de companhia, ela sabia que a princesa precisava refletir sozinha, recolher-se dentro do próprio turbilhão, assim como ela mesma também precisava de um momento consigo mesma.
"Grávida... dois meses sem as regras... Achei que fosse apenas estresse, mas as palavras de Lady Kan não me saem da cabeça. Tenho os mesmos sintomas que Maomao... Não há como negar... Estou perdida, totalmente perdida."
A jovem passou a mão pelo pescoço, sentindo a pele fria ao mesmo tempo em que caminhava apressada para fora do Pavilhão da Lua, o vento desmanchava pouco a pouco o coque, espalhando os fios violetas em cascata atrás de si, como uma cortina cintilante. A princesa, conhecida por sua coragem e pureza, de repente parecia encolher: tão pequena quanto uma formiga, tão frágil quanto a uma criança.
"O que vou fazer? Se descobrirem, serei a desonra da família, a escória da linhagem, era para ser apenas uma aventura sem compromisso... Eu me preveni, cuidei de cada detalhe, e mesmo assim... ele está crescendo dentro de mim. Onde estava minha razão quando deixei Lahan dominar meus pensamentos? Quando permiti que ele se tornasse um objeto do meu desejo?"
Cada passo soava como um peso extra sobre os ombros, dentro dela, o segredo pulsava com força, um segredo que poderia arruinar tudo.
Sua mão deslizou instintivamente até o ventre ainda imperceptível, a palma permaneceu ali, apertando de leve, como se buscasse sentir algo que confirmasse ou negasse o inevitável, sua mente, no entanto, se enchia de imagens que não queria revisitar.
Lembrava-se do jardim, o riso fácil de Lahan quando ela se irritava com suas provocações, as implicâncias bobas transformando as tardes em pequenos duelos. O modo como ele a chamava de "orgulhosa" e ria quando ela fingia não se importar e como, de repente, aquele riso tinha se tornado o som mais viciante do mundo.
— Eu não podia... não devia... — murmurou entre soluços.
Agora, cada lembrança que antes a fazia sorrir feria como lâmina, não bastava ter permitido que sentimentos crescessem por ele — algo que já seria sua desgraça, se apaixonar por alguém que não era nem cogitado para um possível noivado — agora para piorar, carregava dentro de si a prova viva desse desejo proibido.
"E se para ele tudo não passou de uma aventura? Assim como foi para mim, uma distração sem importância?" — pensou, sentindo o coração se despedaçar. — "Talvez, não tenha sido apenas uma simples aventura para mim, como eu imaginei ou como eu quis me enganar. Se eu contar... ele pode simplesmente me abandonar. Então não será apenas a minha dor, será também a rejeição do meu filho... a pior de todas as dores."
As lágrimas se avolumaram, turvando sua visão, a cada passo, o chão parecia se desfazer, como se ela caminhasse em meio ao caos de sua própria mente.
Jin-Ye pressionou a barriga com mais força, como se pudesse, de alguma forma, controlar o que acontecia dentro dela, mas o gesto só trouxe mais desespero.
O vento da tarde espalhava o perfume das flores do jardim, lembrando-a de quando caminhava ao lado de Lahan entre os canteiros, discutindo sobre coisas triviais, enquanto os olhos dele sempre tinham aquele brilho de quem escondia mais do que dizia. O contraste era cruel, do riso leve de outrora, restava apenas a lembrança dolorosa.
E pela primeira vez, Jin-Ye não conseguiu sustentar a postura orgulhosa que sempre cultivara. Parou no meio do caminho, deixou os ombros caírem e chorou, perdida, sem forças para decidir o que seria dela dali em diante.
Jin-Ye tropeçou nos próprios pés quando chegou ao pátio que dava para os jardins do palácio, o sol da tarde se iluminava sobre as flores abertas, tingindo de dourado as pétalas coloridas. Ela parou ali, ofegante, as lágrimas já marcando a pele delicada, a mão voltou a pousar sobre o ventre, o toque hesitante, incerto.
E então, como se a mente quisesse torturá-la, a lembrança veio.
[. . .]
1 mês antes...
Palácio Interno
Era também uma tarde clara, quase igual àquela, Lahan caminhava ao seu lado, os passos largos e descontraídos contrastando com a postura sempre ereta dela. Ele tinha pegado uma flor caída do chão e, rindo, a colocou nos cabelos dela sem pedir permissão.
— Vai estragar meu penteado. — Jin-Ye resmungou, erguendo as sobrancelhas em indignação.
— Vai deixar ainda mais perfeito. — ele retrucou com aquele sorriso travesso que parecia sempre querer vencê-la. — Não sabia que a princesa também tinha medo de uma simples flor.
Por um momento ela tentou afastá-lo com palavras frias, mas riu, contra a própria vontade, quando ele começou a andar em círculos, exagerando o gesto, fingindo ser um cavalheiro recitando versos sobre sua beleza.
— Lahan, pare com isso! — disse, rindo apesar de si mesma.
— Só pararei quando admitir que gosta da minha companhia.
Ela se virou, séria, pronta para cortar a brincadeira, mas encontrou os olhos dele — olhos azuis, intensos, brilhando com algo que ia além da provocação. Foi nesse instante que percebeu que talvez não fosse apenas um jogo, um passatempo conveniente para ambos. E foi nesse instante também que o medo começou a nascer.
[. . .]
A lembrança se quebrou de repente, como vidro estilhaçado, deixando apenas o eco vazio de algo que não podia mais ser tocado, o sorriso de Lahan, tão vívido um instante antes em sua mente, dissolveu-se no ar pesado da tarde. O jardim real mergulhou em um silêncio ensurdecedor, um silêncio que parecia zombar da sua solidão.
Jin-Ye piscou várias vezes, como se pudesse afastar as lágrimas apenas pela força da vontade, mas elas escorriam mesmo assim, quentes e rebeldes, denunciando a dor que nenhuma coroa ou postura de princesa poderia esconder. O peito arfava em movimentos descompassados, como se cada respiração fosse uma batalha perdida.
Os joelhos cederam, encontrando a terra úmida entre as flores, o perfume adocicado das pétalas misturava-se ao gosto salgado de suas lágrimas, tornando tudo mais sufocante. Os dedos, antes acostumados ao toque delicado de seda e adornos, cravaram-se no solo frio, como se buscassem uma âncora para não ser levada pela correnteza de angústia.
E ela chorou. Chorou como não ousava diante de ninguém, as lágrimas desciam em torrentes, carregando consigo não apenas o peso da culpa, mas também o frágil fio de certeza que ainda sustentava sua vida. Cada soluço era um corte invisível, cada lágrima, um segredo exposto apenas para a noite.
Tentou recompor-se, mas a respiração falhava, irregular, como se algo esmagasse seu peito de dentro para fora. O coração batia acelerado, não pelo amor que um dia a incendiara, mas pelo medo do futuro que agora crescia em silêncio dentro dela.
Ali, ajoelhada entre flores que pareciam observá-la em quieta compaixão, Jin-Ye compreendeu o quanto estava só e o quanto o segredo que guardava poderia ser tanto sua salvação quanto sua ruína.
Do outro lado do caminho de pedras, Lady Gyokuyou e Lingli, traziam o frescor da juventude em igual medida — os olhos verdes que reluziam como jade sob a luz da tarde, cabelos rosados que lembravam flores de pessegueiro. Caminhavam lado a lado, mas pararam imediatamente ao reconhecer a cena diante delas.
— Jin-Ye? — a voz de Lingli soou primeiro, embargada pelo susto, cortando o silêncio do jardim como uma lâmina.
Gyokuyou não hesitou um segundo sequer.
Os passos dela ecoaram pelo caminho de pedras, rápidos e decididos, ao alcançar a princesa caída entre as flores, abaixou-se sem cerimônia. Suas mãos delicadas, mas firmes, pousaram nos ombros de Jin-Ye, sacudindo-a de leve, como se quisesse devolvê-la ao mundo. O olhar de Gyokuyou carregava a ternura aflita de uma mãe diante do filhote ferido — era assim que ela via aquela cena: um coração jovem esmagado pelo peso do próprio segredo.
— Você está pálida… o que houve? — perguntou, a voz carregada de preocupação.
Jin-Ye ergueu o rosto devagar, como quem luta contra uma correnteza invisível, tentou compor a máscara calma que aprendera a usar desde a infância, mas os olhos vermelhos, inchados pelas lágrimas, traíam qualquer esforço. Quando abriu a boca, a voz saiu trêmula, quase um sussurro quebrado:
— É apenas… um mal-estar. Nada grave.
— Nada grave? — Lingli aproximou-se em passos apressados, ajoelhando-se ao lado oposto, o tom vibrando de incredulidade. — Está em lágrimas, caída no chão, e quer que acreditemos nisso?
Gyokuyou lançou-lhe um olhar breve e firme, pedindo silêncio sem precisar de palavras, depois voltou-se inteiramente para Jin-Ye, envolvendo-a com um gesto cuidadoso.
— Venha comigo. — disse, a voz suave mas carregada de autoridade. — Vamos levá-la ao Pavilhão de Jade. Lá você poderá descansar, e as damas de companhia cuidarão de você.
Jin-Ye abriu os lábios para protestar, mas nenhum som saiu, a garganta parecia fechada, esmagada pela emoção que ainda ardia em seu peito. Sentiu-se então amparada — de um lado, o calor suave de Lingli sustentando-lhe o braço esquerdo; do outro, a firmeza de Gyokuyou, guiando seus passos frágeis.
E assim, as duas a ergueram, protegendo-a do olhar indiferente da tarde, cada passo era lento, mas seguro, afastando-a do peso sufocante do jardim. O perfume das flores, que momentos antes lhe parecera um veneno doce, foi ficando para trás.
[. . .]
O caminho até o Pavilhão de Jade foi como atravessar um abismo invisível, a cada passo, Jin-Ye sentia as pernas fraquejarem, sustentadas apenas pelo calor das mãos de Lingli e Gyokuyou. Quando finalmente cruzaram as portas altas de madeira entalhada, Gyokuyou ergueu a voz, firme, sem espaço para hesitação:
— Preparem a sala de repouso imediatamente. Toalhas frescas, chá de ervas. Chamem um médico e avisem à Imperatriz Ah-duo… sua filha precisa dela agora.
As servas se curvaram e partiram em disparada, as saias de seda roçando pelo chão como asas em pleno voo. O ar dentro do pavilhão era perfumado por pétalas de lótus queimando em pequenos incensários, mas, para Jin-Ye, até o aroma lhe parecia pesado, sufocante e enjoativo.
Lingli a ajudou a se deitar sobre um divã de veludo claro, o contraste de sua pele pálida contra o tecido ressaltava ainda mais a fragilidade que ela tentava disfarçar. Sentou-se ao lado dela, prendendo sua mão entre as suas, como se quisesse impedir que a irmã se perdesse em algum lugar distante.
— Estamos aqui, Jie Jie, você sabe que não precisa carregar tudo sozinha. — murmurou, a voz baixa, como se temesse que o silêncio ao redor fosse se despedaçar.
Jin-Ye fechou os olhos virando-se para o lado, o peito arfava num ritmo irregular, a respiração curta, como se cada suspiro fosse uma batalha contra o peso invisível que a esmagava. Mais uma lágrima escorreu, lenta, até sumir no tecido da almofada, palavras lhe vinham à boca, mas morriam antes de se tornarem som. Dentro dela, tudo era medo — medo do julgamento, medo do futuro, medo de si mesma.
O aposento mergulhara num silêncio denso, quase sufocante, o único som era o farfalhar das cortinas de seda, agitadas pela brisa que começava a soprar com o entardecer, as sombras se alongavam pelas paredes, pintando arabescos trêmulos no chão polido. Gyokuyou permanecia ereta, como uma sentinela feita de carne e devoção, os olhos atentos, carregados por uma preocupação que não ousava verbalizar.
Então, os passos ecoaram. Firmes. Pesados. Cada um ressoava como o rufar de tambores que precedem uma sentença, o coração de Jin-Ye apertou no peito, e até Lingli sentiu a respiração suspender-se. As servas correram para abrir as portas, curvando-se tão profundamente que suas testas quase roçaram o chão.
A Imperatriz Ah-duo entrou, a soberana que fazia cortes inteiros silenciarem com um único olhar. Seu manto de seda escura, bordado em fios dourados, parecia carregar o peso de toda a dinastia, o porte ereto, a imponência natural, a aura de autoridade — tudo nela lembrava a mulher que jamais vacilava.
Mas, naquele instante, ao cruzar os olhos com a filha, essa imagem se quebrou.
Jin-Ye estava recostada no divã, os cabelos violetas soltos em desalinho, os olhos vermelhos pelo choro ainda marejando. Era uma visão de fragilidade tão rara que partiu ao meio a couraça de aço da Imperatriz, os lábios dela tremeram, imperceptíveis para qualquer outro olhar, mas Lingli e Gyokuyou perceberam — testemunhas silenciosas de um momento íntimo que poucos acreditariam possível.
— Jin-Ye… — o nome escapou em um sussurro quase suplicante, carregado de dor, a mesma voz que tantas vezes calara ministros e generais agora vacilava diante da própria filha.
O salão inteiro pareceu prender a respiração, Gyokuyou inclinou levemente a cabeça, em respeito, e Lingli baixou os olhos, cedendo espaço àquele encontro.
A Imperatriz deu alguns passos, o som de suas sandálias ecoando no piso de mármore como trovões contidos. Então, sem hesitar, ajoelhou-se ao lado do divã, um gesto que ninguém ousaria imaginar da soberana. Ajoelhar-se era abrir mão da posição, era admitir que o sangue que ligava mãe e filha era mais forte do que a coroa sobre sua cabeça.
A mão de Ah-duo, fria de nervos, pousou no rosto trêmulo de Jin-Ye, o toque foi suave, quase temeroso, como se tivesse medo de que a filha pudesse se desfazer em pó diante de seus olhos.
— O que fizeram com você, minha filha? — a pergunta saiu grave, mas o timbre estava rachado, ferido.
Jin-Ye tentou sustentar o olhar, mas o peso da culpa e do segredo a sufocava, quis falar, gritar a verdade, confessar o caos que ardia em seu ventre e em sua alma, mas apenas lágrimas desceram em silêncio, traindo-a.
Ah-duo apertou-lhe a mão, firme, como se quisesse arrancá-la do abismo. E, por um momento, não havia Imperatriz no aposento, mas sim, uma mãe, quebrada pela dor de ver sua filha despedaçada.
O impulso de confessar a verdade latejou em seu peito, como se a alma implorasse por alívio, no entanto as palavras se enroscaram na garganta e apenas um sussurro escapou, frágil, carregado de desespero:
— O que houve, minha menina? — sussurrou, os olhos violetas marejando ao ver os da filha tão vermelhos e cansados. — Diga-me, por favor.
— Mãe… eu… eu não sei se consigo… Mas não se preocupe, é apenas um mal estar. — conseguiu dizer, a voz trêmula, quase inaudível.
Ah-duo segurou-lhe a mão com força, como quem segura uma corda prestes a se partir, seus olhos escuros, acostumados a nunca fraquejar, estavam marejados.
— Então não precisa dizer nada agora. Apenas respire, a mamãe está aqui.
Ah-duo não acreditou, e Jin-Ye sabia disso, a Imperatriz estudou-lhe o rosto como se pudesse decifrar cada segredo, cada sombra oculta, mas, em vez de pressioná-la, apenas a envolveu em um abraço.
— Você não precisa fingir força diante de mim. — o tom materno contrastava com toda a imagem de soberania que costumava carregar no trono.
O corpo de Jin-Ye se entregou àquele abraço, mas dentro dela o caos só aumentava. "Se eu contar... se ela souber, toda a casa, todo o império, vai saber também. E se Lahan me rejeitar? Se virar as costas, serei só mais uma vergonha para minha mãe. Uma mancha no nome da Imperatriz."
As lágrimas voltaram com mais força, molhando a seda do traje imperial de Ah-duo, a angústia latejava, a verdade presa em sua garganta como um nó impossível de desfazer.
Ao lado, Gyokuyou observava em silêncio, o semblante preocupado, ela própria sentia o coração apertado ao ver a filha Lingli tão aflita apoiando a irmã, que dor maior poderia haver do que ver uma filha chorar e não poder alcançar a raiz do sofrimento dela?
Ah-duo se inclinou sobre o divã, a seda do manto deslizando como água escura, e deixou a ponta dos dedos afundar nos fios violetas, desgrenhados e úmidos de lágrimas. Seus movimentos eram lentos, como quem tenta domar uma tempestade apenas com o toque, o olhar severo da Imperatriz suavizou-se, e, por um instante, não havia trono, não havia coroa, não havia corte — apenas uma mãe e sua filha.
— Seja o que for, saiba que você não está sozinha. — A voz de Ah-duo soou baixa, mas carregada da força que sustentava impérios. — Você é minha filha, e eu estarei sempre com você.
As palavras caíram como bálsamo, mas também como punhal. Jin-Ye fechou os olhos com força, buscando refúgio no calor dos braços da mãe. Permitiu-se afundar naquele abraço, onde a seda cheirava a lótus e a presença era firme como pedra. No entanto, dentro dela, o grito era ensurdecedor. Um clamor que não ousava se tornar som: “Se soubesse, mãe… se soubesse a verdade, ainda estaria aqui, me segurando assim?”
Seu ventre parecia pesar mais naquele instante, como se o segredo tivesse ganhado corpo. Cada batida do coração trazia consigo a lembrança de Lahan, do desejo proibido, da culpa que se enraizava como erva daninha.
Gyokuyou, que observava em silêncio, aproximou-se, a figura delicada, envolta em tons claros, inclinou-se e pousou um beijo suave no topo da cabeça de Jin-Ye. O gesto, simples e materno, arrancou-lhe um suspiro trêmulo.
— Jin-Ye, — disse com ternura, o sorriso pequeno, mas sincero, iluminando o rosto — você é muito amada, mais do que consegue imaginar.
A princesa abriu os olhos marejados, encontrando o olhar cálido da consorte.
— Você tem três mães que te amam profundamente, Lihua pode não estar presente agora, mas sei que diria o mesmo que Ah-duo e eu. — Gyokuyou entrelaçou os dedos aos de Jin-Ye, envolvendo-os com calor. — Você é nossa menininha, sempre será, assim como Lingli, nossas únicas meninas.
As palavras ecoaram como uma prece, arrancando novas lágrimas dos olhos da princesa.
— Não importa a dimensão do problema que você enfrente. — Gyokuyou prosseguiu, firme, sem desviar o olhar. — Estamos aqui para ser abrigo, mas também para te chamar à atenção, se for preciso, porque te amamos e porque queremos o seu bem, assim como o de todos os nossos filhos.
Ela então apertou suavemente as mãos da princesa, selando aquela promessa invisível.
— Quando estiver pronta para falar, lembre-se: você tem três mães com quem pode contar.
O silêncio que se seguiu foi carregado de emoção, Jin-Ye não conseguiu responder, a garganta queimava, a verdade latejava em sua mente, mas a coragem não vinha. Apenas chorou, quieta, escondendo-se no peito de Ah-duo, enquanto a sensação de estar amparada e, ao mesmo tempo, aprisionada pelo próprio segredo, se tornava insuportavelmente contraditória.
O corpo da princesa tremia como uma folha ao vento, e Ah-duo, ainda ajoelhada, a embalava contra o peito com uma delicadeza que contrastava com a figura da soberana temida por todos. Não era apenas a carne que ela tentava proteger, mas também a alma dilacerada da filha, como se pudesse envolvê-la com os braços e blindá-la do mundo inteiro.
Os dedos da Imperatriz deslizavam pelos cabelos violetas, desgrenhados e úmidos, repetindo o gesto em silêncio, como se, na cadência daquela carícia, pudesse devolver estabilidade a um coração em ruínas.
Foi então que os olhos verdes de Gyokuyou encontraram os de Ah-duo.
Nenhuma palavra foi dita — e não havia necessidade, o olhar longo, firme e discreto que se sustentou entre elas carregava perguntas não ditas, presságios silenciosos e uma angústia compartilhada, Ah-duo desviou por fim, mas não antes de permitir que um relance de incerteza atravessasse sua máscara. Ela também sabia. Talvez não a verdade nua e crua, mas sabia que o sofrimento da filha nascia de algo mais profundo do que um mero mal-estar.
Lingli, de canto, percebeu a tensão invisível que pairava como véu sobre o aposento. Seu coração acelerou, e por um instante, ela quis romper o silêncio com perguntas, porém, quando ergueu os olhos para a mãe, viu que a compostura permanecia firme, ainda que um brilho inquieto tremeluzisse em suas pupilas.
Ah-duo respirou fundo, voltando o olhar para Jin-Ye, e acariciou o rosto da filha com a palma da mão. Sua voz, quando surgiu, era calma, mas carregada de uma gravidade que ia além das palavras:
— Descanse aqui, minha filha, nada mais importa agora além do seu bem-estar.
Gyokuyou e Lingli se entreolharam novamente, compreendendo a mensagem oculta naquele tom sereno. Não era apenas uma ordem de repouso, era a voz de uma mãe que enxergava além do corpo febril, além das lágrimas visíveis, uma mãe que intuía que a ferida era da alma, e que não se curaria com chá de ervas ou toalhas frescas.
As damas de companhia entraram em fila, trazendo jarros de porcelana, panos de linho úmidos e o aroma delicado de folhas recém-infusadas. Colocaram tudo sobre uma mesa lateral e recuaram, discretas, como aves treinadas a nunca perturbar a quietude da realeza.
Gyokuyou, então, inclinou-se para a filha mais velha e pousou a mão em seu ombro, a voz saiu baixa, quase um sopro, feita apenas para ela:
— Não pressione sua irmã. Deixe-a no canto dela, Jin-Ye precisa de tempo para digerir o que quer que esteja atormentando sua mente.
Lingli assentiu, engolindo em seco, sentindo os olhos arderem com lágrimas contidas, havia algo de doloroso em ver a irmã assim, tão vulnerável, e ao mesmo tempo intocável em sua muralha de silêncio.
Ah-duo ergueu o olhar uma última vez em direção a ambas.
Não disse nada — não precisava, o peso de sua autoridade e de sua dor falou sozinho. Ali, naquela troca de olhares contida, nasceu um pacto silencioso: todas sabiam que havia algo mais profundo, algo não revelado, mas nenhuma ousaria forçar o muro que Jin-Ye havia erguido ao redor de si.
[. . .]
O pátio do Pavilhão de Jade estava quase deserto, apenas o som das fontes quebrava o silêncio, misturando-se ao farfalhar das flores de lótus balançadas pelo vento. As duas mulheres pararam diante de uma pérgola coberta por glicínias, que desciam como véus lilases.
Ah-duo ajeitou a manga de seda, embora o gesto fosse apenas para disfarçar a inquietação, Gyokuyou, mais perspicaz do que deixava transparecer, a observava com atenção.
— Há algo que está a consumindo por dentro. — disse Gyokuyou, firme, mas com compaixão. — O olhar de Jin-Ye não é de quem está apenas cansada. É o mesmo olhar que eu vi em Lingli quando ela tentou esconder de mim seus receios diante da corte, só que, em Jin-Ye, há um peso maior.
Ah-duo mordeu discretamente o lábio inferior, como se estivesse tentando organizar o turbilhão de pensamentos.
— Temo que não seja apenas preocupação com o palácio ou as intrigas de sempre, conheço minha filha... e sei quando algo toca sua alma de um modo mais profundo, embora Lihua com certeza a conheça muito melhor.
Gyokuyou inclinou o corpo levemente para frente, como quem compartilha um segredo.
— Você reparou como ela se isola? Como evita cruzar olhares por muito tempo? Até mesmo hoje, antes de dormir, ela parecia querer fugir de algo.
A imperatriz suspirou, a voz embargada:
— Reparar, eu reparei, mas preferi acreditar que era apenas sensibilidade... um coração jovem se protegendo do que não compreende. — ela ergueu o olhar para Gyokuyou, e seus olhos violetas brilhavam marejados. — Agora vejo que fui ingênua.
Gyokuyou a encarou, suavizando o tom:
— Não é ingênua, Ah-duo. Você foi mãe e nós mães muitas vezes escolhemos acreditar no melhor, porque a verdade pode ser dura demais.
Ah-duo sorriu com amargura, concordando.
— Talvez, mas sinto que Jin-Ye carrega um segredo que teme compartilhar, e isso me fere mais do que qualquer palavra da corte.
Por um momento, ambas ficaram em silêncio, até que Gyokuyou arriscou uma pergunta:
— E se esse segredo envolver o coração dela? Algo que não ousaria dizer por medo de ser julgada?
A imperatriz estremeceu, o coração bateu mais rápido, como se as palavras de Gyokuyou tivessem tocado justamente no ponto que ela temia.
— Você também sentiu isso? — murmurou, quase em um sussurro
Gyokuyou assentiu.
— Senti. — Seus olhos verdes se estreitaram em compaixão. — Há uma mudança na aura de Jin-Ye, algo que a amadureceu de forma brusca... mas que também a fragilizou.
Ah-duo ergueu a mão até o peito, como se quisesse conter o aperto que a sufocava.
— Ela sempre foi meu maior orgulho, Gyokuyou, minha filha, tão firme, tão generosa... E agora, vê-la assim, perdida... — a voz falhou. — Sinto medo, medo de que eu não consiga alcançá-la, de que esse fardo que ela carrega a quebre por dentro antes que encontre meu colo.
Gyokuyou então se aproximou, tocando de leve o ombro da amiga.
— Você é a Imperatriz, Ah-duo, mas para ela, antes de tudo, é mãe. Não importa o que esconda, Jin-Ye sabe disso no fundo. O dia em que não suportar mais sozinha, ela virá até uma de nós e quando esse dia chegar, não haverá corte ou protocolo que impeça o nosso abraço de curá-la.
Ah-duo, porém, não respondeu de imediato, os olhos violetas se perderam novamente no horizonte, no cair do sol que tingia o céu em tons ardentes. Dentro dela, havia uma certeza incômoda: o segredo da filha não tardaria a vir à tona — e quando viesse, mudaria não apenas a vida de Jin-Ye, mas também a dela, como mãe e como Imperatriz.
[. . .]
O Pavilhão da Lua parecia envolto em um silêncio pesado, quebrado apenas pelos soluços abafados de Maomao, ela se encolhia nos braços da mãe, sentindo o próprio corpo tremer, e cada respiração parecia um esforço sobre-humano. O toque suave de FengXian nos cabelos da filha, o calor das mãos nos ombros, nada conseguia arrancá-la do estado de desolação que a consumia.
Maomao pressionava a barriga com a palma da mão, como se tentar conter ali o que crescia dentro de si pudesse de algum modo tornar tudo mais suportável, mas não ajudava. Nada ajudava. O pensamento de carregar um herdeiro do Príncipe da Lua esmagava-a com uma força que ia além do físico.
"Eu não queria isso... nunca quis, não estou pronta. Não... não..." — cada palavra martelava em sua mente, repetida em um eco desesperado.
Ela levantou os olhos vermelhos para FengXian por um instante, buscando consolo, compreensão, qualquer sinal de que poderia haver uma saída que não a esmagasse por completo, mas o olhar da mãe, embora cheio de ternura, era firme, transmitindo a gravidade da situação: não havia como fugir do que acontecia.
— Eu não sei se consigo... — murmurou, a voz embargada, quase desaparecendo no ar. — Não sei se devo continuar... mas também... não sei se consigo interromper... — sua mente girava sem direção, um turbilhão de emoções conflitantes que a deixava aérea, distante do próprio corpo.
FengXian apertou a filha contra si, sentindo a respiração irregular e os soluços que escapavam entre as palavras.
— Não precisa decidir nada agora, minha filha... — disse, com a voz quebrada de preocupação. — Só precisa respirar, estar aqui, comigo.
Maomao se encolheu ainda mais, enterrando o rosto no ombro da mãe, os pensamentos se atropelavam, cada um mais cruel que o outro. O medo de não estar à altura, a sensação de estar presa a algo que não pediu, a culpa silenciosa de se sentir incapaz... E, no fundo, a culpa ainda maior de não saber como amar ou proteger aquilo que crescia dentro dela.
"E se eu não conseguir? Se falhar? Se eu morrer apenas por ter esse bebê? O que seria de um filho sem a mãe?"
Ela se sentia flutuar, perdida entre mundos: entre o que era esperado dela como princesa e o que seu coração desesperado desejava — a liberdade de fugir, de desaparecer, de não ter que carregar aquele fardo. Mas havia também uma parte dela que não podia sequer tocar o pensamento de acabar com a vida que carregava, um nó de medo e instinto a prendia, deixando-a aérea, suspensa entre o desespero e a aceitação impossível.
FengXian acariciou o cabelo da filha com mais firmeza, pressionando os ombros contra si, tentando transmitir força silenciosa.
— Eu sei que dói... e que você está assustada... — sussurrou, a voz suave e firme ao mesmo tempo. — Mas eu estou aqui, você não está sozinha, Maomao. Nunca estará.
Maomao apenas chorava, deixando as lágrimas escorrerem livremente, sentindo o corpo pesado, mas o coração ainda mais. Entre o medo e a incerteza, entre a culpa e a responsabilidade, ela permaneceu assim, nos braços da mãe, perdida, aérea, desolada, com a certeza de que nada jamais seria como antes.
O aperto da mão de FengXian nos ombros da filha a puxou de volta, ainda que apenas parcialmente, Maomao respirou fundo, deixando que o calor da mãe invadisse o frio do pânico, misturando medo e consolo de forma estranha e confusa.
— Eu sinto medo... mas não posso simplesmente... — murmurou, a voz quase um sussurro, perdida no espaço entre o desespero e a consciência de que algo dentro dela precisava existir para além do medo.
FengXian inclinou-se, beijando o topo da cabeça da filha, segurando-a com firmeza maternal.
— Não importa o que aconteça, Maomao, nós vamos atravessar isso juntas. Você não está sozinha. — e, em seu silêncio, transmitia mais segurança do que qualquer palavra poderia expressar.
FengXian suspirou baixinho, permanecendo imóvel por alguns instantes, apenas sentindo o corpo da filha tremer nos braços. Depois, cuidadosamente, ajustou a cama para que Maomao ficasse mais confortável, apoiando o corpo cansado e a barriga delicadamente. Cada gesto era lento, quase ritualístico, como se qualquer movimento brusco pudesse quebrar o frágil equilíbrio da filha.
Pegou uma pequena taça de porcelana com água fresca que estava sobre a mesa próxima e inclinou-a suavemente para os lábios de Maomao.
— Beba um pouco, querida... — disse, com a voz macia, cheia de paciência. — Não precisa falar nada, só respire.
Maomao aceitou a água com mãos trêmulas, engolindo devagar, ainda olhando para o vazio, FengXian observava cada gesto, cada respiração, cada lágrima que caía silenciosa, não havia pressa, não havia julgamento. Apenas sua presença e sua preocupação com o estado mental da filha.
FengXian a fitava como se o tempo tivesse parado, como se diante de si não estivesse mais a jovem princesa altiva e cheia de vida, mas a mesma menina que um dia correu para seus braços com os joelhos ralados e lágrimas nos olhos. A lembrança queimava em seu peito, misturando-se à dor presente.
"Me culpo todos os dias por ter permitido que Maomao fizesse aquele parto…" — o pensamento se arrastava como uma sombra antiga em sua mente. — "Ela era apenas uma menina assustada, e hoje carrega no corpo e na alma cicatrizes que ninguém além dela pode entender. Nunca a vi tão desolada, tão quebrada como agora. Minha pequena…"
Os dedos de FengXian deslizaram com cuidado pelos fios esverdeados da filha, afastando-os de seu rosto pálido e úmido de lágrimas. A carícia era delicada, quase reverente, como se temesse que qualquer gesto brusco pudesse Maomao se partir de vez.
"Meu primeiro bebê… sofrendo, enquanto carrega o seu próprio bebê. Como posso protegê-la dessa dor que não sei curar?"
Seus olhos marejados refletiam um amor silencioso, aquele que não pedia nada em troca, que apenas se oferecia como abrigo. Inclinou-se um pouco mais, encostando a testa na dela, como se pudesse transmitir, pelo calor do gesto, toda a força que lhe faltava.
"Independente do que escolher… estarei ao seu lado. Sempre. Para ser suporte, para ser chão. Ela nunca deixará de ser minha pequena e eterna princesinha."
E enquanto acariciava-lhe o rosto, ajeitando cada mecha caída com o mesmo cuidado de outrora, FengXian permitiu-se chorar em silêncio, não de fraqueza, mas de amor. Um amor que resistiria até ao peso dos segredos que a filha carregava.
Por outro lado, Maomao deixava sua mente vagar, imagens do futuro surgiam e desapareciam, às vezes assustadoras, às vezes tênues e bonitas. O bebê que crescia dentro dela, o rosto de Jinshi, a vida no palácio, e o que esperavam dela, tudo se misturava num turbilhão que ela não conseguia ordenar.
FengXian passou a mão suavemente pelas costas da filha, desenhando círculos lentos com a ponta dos dedos, tentando transmitir segurança sem precisar dizer nada.
— Está tudo bem sentir medo, Maomao — sussurrou, inclinando-se para beijar novamente o topo da cabeça da princesa. — Não precisa ser forte o tempo todo.
Maomao soluçou baixinho, mas aos poucos o aperto nos ombros da mãe e o calor do abraço começaram a criar uma ponte entre o desespero e uma sensação mínima de alívio. Ela ainda estava aérea, perdida em pensamentos que giravam sem fim, mas por um instante, o mundo parecia suportável.
O sol começava a descer mais baixo no horizonte, tingindo o céu de tons alaranjados e violetas. Maomao, ainda com os olhos vermelhos de tanto chorar, dirigiu-se à porta do Pavilhão da Lua, FengXian e seu pai, junto dos irmãos, aguardavam na porta.
FengXian a abraçou uma última vez, firme, tentando transmitir força mesmo diante do coração apertado.
— Lembre-se, minha filha... — disse, a voz embargada — você não está sozinha e nunca estará minha flor.
Maomao apenas assentiu, incapaz de pronunciar sequer uma palavra, as lágrimas voltaram a escorrer, mas agora sem soluços, deslizando silenciosas enquanto sua testa repousava no ombro da mãe. Havia um alívio quase infantil naquele contato, como se, por um instante, pudesse se esconder no colo materno e esquecer a tempestade que carregava por dentro.
O pai aproximou-se devagar, como quem teme quebrar algo frágil demais, seus dedos fortes e calejados deslizaram pelos fios dos cabelos da filha, o gesto protetor e contido denunciando a ternura que ele raramente deixava escapar. Quando a envolveu em seus braços, o fez com a delicadeza de quem segura porcelana, medindo cada movimento.
Maomao ergueu os olhos por um breve instante e encontrou Lakan.
Sorriu com leveza, um sorriso frágil, quase inexistente, mas suficiente para que ele cedesse, a lágrima que escorreu pela face dele foi como um reflexo do que ela mesma sentia: dor pela distância, saudade, e ao mesmo tempo a necessidade de permanecer firme. Lakan ainda tentava sustentar sua postura, ocultando a fraqueza diante da filha, mas o brilho em seus olhos o traía.
Os irmãos mantinham-se próximos, respeitando aquele espaço sagrado entre os pais e a primogênita. Ainda assim, seus olhares estavam carregados de preocupação, para eles, era estranho — doloroso até — enxergar a irmã mais velha desprovida da segurança e da confiança que sempre a definiram. Agora, diante deles, estava apenas uma jovem desolada, sufocada por medos e dúvidas que ninguém poderia dissipar em seu lugar.
Zhìyuan, o mais novo, não resistiu, atirou-se nos braços da irmã, abraçando-a com tanta força que parecia impossível separá-lo, Maomao sentiu o calor do corpo dele contra o seu e, por um instante, quase acreditou que poderia se recompor. Talvez porque, entre todos, aquele abraço fosse o mais genuíno, o mais puro — carregava a inocência de quem não buscava respostas, apenas queria estar ali.
Logo depois, Fen Fang e Yaling aproximaram-se, suas pequenas mãos frias tocando as bochechas da irmã. Sem dizer nada, cobriram-na de beijos curtos e inocentes, como faziam na infância, o riso breve que escapou de Maomao, entre lágrimas, foi suave, mas real.
Naquele instante, ela soube: mais do que qualquer coisa, o que mais lhe dilacerava era a saudade de casa, o carinho dos irmãos, simples e espontâneo, era o que mais faltava em seus dias distantes.
— Vamos... — murmurou Maomao, finalmente se afastando, apoiando-se nas damas de companhia que a acompanhavam. Chue segurava suavemente sua mão, enquanto Lady Lishu mantinha os olhos atentos, preocupados, mas mantendo a compostura.
Ao cruzar novamente as portas do Pavilhão da Lua, Maomao sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, o silêncio ali era denso, pesado, como se as próprias paredes guardassem segredos que ela já não conseguia carregar sozinha. Cada passo ecoava discreto sobre o piso polido, mas em seus ouvidos soava como um peso esmagador.
Avançou até o quarto quase em transe, o corpo cansado protestando a cada movimento, a gravidez, embora ainda recente, já parecia dobrar o fardo em seus ombros — não apenas físico, mas também emocional. O ventre pesava como se carregasse não só uma vida, mas também o peso do erro, do medo, da vergonha.
Ao alcançar a cama, Maomao se deixou cair sobre o colchão com a suavidade de quem teme quebrar o próprio corpo. Endireitou-se um pouco, apoiando a cabeça contra os travesseiros, e instintivamente suas mãos pousaram sobre a barriga, como se buscassem ali algum tipo de consolo ou resposta.
Chue aproximou-se devagar, mantendo distância respeitosa, mas com o olhar atento.
— Princesa... se precisar conversar... ou apenas ficar em silêncio, estamos aqui — disse, a voz baixa e cuidadosa.
Lady Lishu permaneceu ao lado, observando cada movimento de Maomao, como quem tentava decifrar se a princesa conseguiria atravessar aquele momento sem se despedaçar por completo.
— Não precisa se envergonhar por chorar... — completou, os olhos verdes e atentos acompanhando cada soluço da jovem.
Maomao inclinou-se sobre a cama, abraçando os joelhos, sentindo-se pequena e vulnerável, ela permanecia ali, chorando baixinho, suspensa entre o medo e a aceitação impossível, enquanto Chue e Lishu observavam em silêncio, compartilhando sua preocupação sem jamais invadir o espaço da princesa. O Pavilhão da Lua parecia envolvê-la, silencioso, guardando o desespero, o cansaço e a confusão de Maomao, como se o tempo tivesse parado só para ela.
[. . .]
Maomao permaneceu sentada na cama, por longos minutos, os ombros ainda curvados e a respiração irregular, mas aos poucos os soluços foram diminuindo. Chue aproximou-se com delicadeza, sentando-se ao lado da princesa e apoiando a mão sobre o braço dela, transmitindo presença silenciosa e firme.
— Princesa... vamos respirar juntas, só por um instante — disse Chue suavemente, inclinando-se para que Maomao pudesse sentir a segurança do gesto.
Maomao fechou os olhos, tentando imitar o ritmo da respiração da dama de companhia, sentindo o nó no peito amolecer um pouco. Ainda havia angústia, mas a presença constante e tranquila de Chue começava a dar-lhe um fio de equilíbrio.
Lady Lishu entrou logo em seguida, segurando Guang no colo, o bebê de um ano, curioso e alerta, olhou para Maomao com olhos brilhantes, como se percebesse o estado da princesa, mas sem medo. Lishu aproximou-se devagar, sentando-se a poucos passos, oferecendo ao mesmo tempo o filho e um pouco de calor humano.
— Olhe, princesa... ele quer lhe dar um sorriso. — disse Lishu, inclinando o bebê levemente em direção a Maomao.
Maomao ergueu os olhos, e a visão de Guang a fez estremecer.
Havia algo quase dolorosamente bonito na cena: a inocência da criança, a confiança com que se apoiava na mãe, e o simples gesto de querer compartilhar alegria. Por um instante, a angústia deu lugar a uma pontada de ternura.
Ela estendeu a mão trêmula, tocando os dedinhos pequenos de Guang com delicadeza, quase sem acreditar que podia sentir algo tão simples e puro em meio ao turbilhão que carregava. O toque despertou um calor interno, e por alguns segundos, Maomao conseguiu se concentrar na vida que crescia ali diante dela, em vez da vida que crescia dentro dela.
Chue sorriu levemente, vendo o efeito positivo, e falou baixinho:
— Pequenos passos, princesa, você não precisa resolver tudo agora. Só aceitar esses momentos.
Lishu assentiu, apoiando Guang de forma que ele pudesse tocar de leve a mão de Maomao, incentivando o contato sem forçar.
— Sim... e também há pequenas tarefas diárias que você precisará aceitar aos poucos, mas não vamos apressar nada. Estamos aqui para ajudá-la, a cada passo.
Maomao respirou fundo, ainda angustiada, mas sentindo um fio de coragem se estender dentro de si. O bebê no colo de Lishu, a presença de Chue ao lado, e o acolhimento silencioso da rotina que começaria a se formar no Pavilhão da Lua criaram um espaço seguro.
Ela se inclinou, sorrindo timidamente para Guang, enquanto uma lágrima ainda escorria, mas agora misturada a uma sensação tênue de esperança.
— Eu... posso tentar. — murmurou, a voz ainda frágil, mas firme o suficiente para indicar que, apesar do medo, estava disposta a começar.
Chue apertou suavemente sua mão, e Lishu apoiou o bebê contra a princesa de maneira a criar um laço silencioso entre todos eles. Pequeno, delicado, mas significativo: um primeiro passo para que Maomao aceitasse, pouco a pouco, os cuidados que precisaria começar a assumir e o peso de sua própria gestação.
O Pavilhão da Lua, antes pesado e silencioso, parecia agora se tornar um refúgio delicado, onde a dor, a confusão e a angústia de Maomao encontravam espaço para serem acolhidas, enquanto pequenas rotinas e gestos de afeto começavam a reconstruir a conexão dela com o mundo ao redor.
O corredor do Pavilhão da Lua estava silencioso quando Jinshi retornou de seu longo dia no escritório imperial. Reuniões com o Imperador, estratégias delineadas com Lahan e com o príncipe Jiang — cada detalhe exigira atenção e controle absoluto. Ainda assim, nada preparava o príncipe para a cena que o aguardava em seu aposento.
Maomao estava sentada na cama, os ombros curvados, os olhos vermelhos de tanto chorar, mas havia algo diferente em sua postura, algo mais contido, quase forçado. A implicância e ironia que usualmente o recebiam — os comentários cortantes, os olhares desafiadores — não estavam ali.
Ele parou na soleira da porta, notando a diferença, tentando entender o que acontecia.
— Maomao... — sua voz saiu calma, mas carregada de atenção, quase desconfiada. — Você... está diferente.
A princesa ergueu os olhos, tentando controlar o tremor na voz:
— Não é nada demais, só estou sentindo falta da minha família... só isso. Eles ficaram pouco tempo aqui hoje.
Jinshi arqueou uma sobrancelha, observando cada nuance no comportamento dela, havia algo mais, ele podia sentir, mas não conseguia decifrar. Tentou buscar respostas nos olhares das damas de companhia. Lishu e Chue, percebendo a tensão no corredor, trocaram um breve olhar com ele antes de se retirarem silenciosamente, deixando o casal sozinho.
O silêncio que se seguiu era quase palpável, Jinshi cruzou os braços, apoiando-se levemente contra o batente da porta, observando Maomao em silêncio. Havia a mulher que conhecia, mas agora encoberta por uma fragilidade que não esperava encontrar.
— Tem certeza que é apenas isso? — perguntou, mais cauteloso, escolhendo cuidadosamente cada palavra. — Não quero que finja para mim.
Maomao respirou fundo, tentando recuperar a compostura, um lampejo de teimosia ainda persistia, mas havia também a sinceridade que escapava de seus olhos violetas.
— Estou... — pausou, a voz embargada — estou bem, é apenas saudades, sabe como sou apegada com mamãe.
Jinshi estudou a expressão dela por um instante, notando os sinais sutis: os olhos que evitavam contato direto, as mãos apoiadas na barriga como se procurassem segurança, a postura que oscilava entre resistência e vulnerabilidade. Algo acontecia ali que ele não compreendia totalmente, mas que estava evidente para quem observasse com atenção.
O príncipe deu alguns passos para dentro do aposento, aproximando-se lentamente, sem pressa.
— Maomao... se há algo que eu precise saber, você pode me contar. — a voz baixa e firme parecia envolver a sala, trazendo ao mesmo tempo autoridade e cuidado.
A princesa desviou o olhar, mordendo levemente o lábio, tentando manter a fachada, mesmo com o peso dentro do peito.
— Não há nada que precise se incomodar Zui...
Jinshi permaneceu em silêncio, percebendo que ela ainda guardava algo, mas respeitando o momento. O ambiente ficou carregado de uma tensão silenciosa, entre o que não era dito e o que podia ser sentido, ele não sabia se deveria pressionar, mas também não podia ignorar a mudança que sentia na esposa.
Enquanto Maomao se encolhia levemente na cama, tentando equilibrar o turbilhão de emoções, Jinshi permaneceu ali, em posição firme, observando, aguardando, sentindo que algo significativo estava prestes a se revelar, mesmo que ainda não pudesse compreender.
Jinshi permaneceu parado, a mão apoiada levemente no batente da porta, estudando cada gesto de Maomao. A princesa, ainda sentada na cama, mantinha o olhar baixo, mas havia algo diferente: o peso nos ombros, a fragilidade na voz, a hesitação em responder — tudo indicava que algo a perturbava profundamente.
— Maomao... — disse ele, a voz firme, mas sem pressão — você pode me dizer se algo está errado. Eu... percebo quando você está tentando esconder algo.
A princesa ergueu os olhos por um instante, encontrando o olhar do marido, e desviou rapidamente. Um leve tremor passou por seus lábios antes que conseguisse esboçar um sorriso contido.
— Já lhe disse, é apenas saudades.
Ele percebeu a tentativa de disfarce, mas não quis pressionar.
— Sinto que há mais do que isso... — murmurou, quase para si mesmo. — Mas não vou forçar você a falar. Só... quero que saiba que estou aqui, se precisar.
Maomao baixou novamente os olhos, tentando engolir o nó na garganta, sentindo a presença firme de Jinshi preencher a sala sem palavras. Por mais que quisesse desabar, ainda precisava manter uma fachada, ainda precisava guardar o que sentia só para si.
— Eu... só... — começou ela, a voz frágil, mas se interrompeu, engolindo o que estava prestes a dizer. Em vez disso, respirou fundo, fechando os olhos por um instante. — Sinto falta deles... e isso me deixa um pouco abalada.
Jinshi apenas assentiu, percebendo que ela ainda precisava de espaço e tempo.
— Então vamos fazer com que se sinta melhor aqui, pelo menos por enquanto, não precisa ficar assim meu bem.
A princesa olhou para ele mais uma vez, os olhos marejados, e esboçou um pequeno sorriso contido. Por um instante, a tensão entre eles parecia aliviar, mesmo que apenas parcialmente. Ela ainda carregava seus medos e sentimentos ocultos, mas o simples fato de Jinshi permanecer ali, atento e silencioso, permitia que seu coração respirasse, ainda que apenas um pouco.
Jinshi aproveitou o instante para suavizar ainda mais o clima.
— O Imperador organizou um jantar para os próximos dias. — disse, baixando o tom, mais sério agora, mas ainda cuidadoso — quer reunir todos os filhos e consortes para terem um tempo juntos. Acho que seria bom para você... para se distrair um pouco.
Ela permaneceu em silêncio, os olhos ainda voltados para o próprio colo, e Jinshi continuou, tentando não pressionar, mas guiando a conversa para algo mais leve:
— E se você se sentir à vontade, pode levar Lahan também. Ele ajudaria a deixar o ambiente mais descontraído...
Maomao levantou lentamente o olhar, uma pontada de dúvida e hesitação ainda presente, mas a ideia de um evento social, algo mais cotidiano e distante do turbilhão que carregava, trouxe uma sensação inesperada de alívio.
— Talvez... eu possa... — murmurou, a voz baixa, quase como se testasse a própria possibilidade de estar presente.
Jinshi sorriu, percebendo o pequeno avanço.
— Isso é tudo que peço, princesa. Apenas tente e se não conseguir... não vou obrigar nada. — seu tom misturava firmeza e cuidado, e por um instante, a sala pareceu menos pesada, o silêncio menos sufocante.
Maomao respirou fundo, sentindo que aquele pequeno fio de normalidade, Jinshi apoiou-se na beirada da cama, observando Maomao ajeitar os travesseiros agora concentrada, na tentativa de ter o controle da situação novamente.
— Você sempre arruma tudo tão... meticulosamente — comentou, com um tom de leve provocação. — Parece que cada travesseiro tem uma posição exata, e se um estiver fora do lugar... o mundo entra em colapso?
Maomao ergueu os olhos, um pequeno sorriso surgindo nos lábios.
— Não é nada disso. Apenas gosto de ordem... de alguma forma, me ajuda a organizar meus pensamentos.
— Ah, então a confusão da mente exige uma perfeição no quarto, é isso? — ele perguntou, cruzando os braços e apoiando o queixo nas mãos. — Interessante... eu achava que seu caos interior se traduzia em... caos literal.
Ela riu baixinho, abanando a cabeça.
— Talvez seja uma defesa... ou uma superstição boba. Nunca se sabe, não é?
Jinshi sorriu, inclinando-se levemente para frente.
— Sabe... eu sempre achei curioso como você consegue manter tudo tão impecável. Até nos momentos mais complicados, você tem um jeito de deixar tudo parecer... tranquilo.
Maomao desviou o olhar, os dedos entrelaçando-se nervosamente.
— Eu tento... Mas nem sempre consigo, nem sempre me sinto tranquila de verdade.
— E mesmo assim... você tenta. — Jinshi disse, quase em sussurro, como se a própria afirmação fosse um gesto de cuidado. — Isso já é suficiente para mim.
Ela suspirou, olhando para ele, e por um instante, deixou de lado o peso do dia.
— Você realmente sabe como tornar tudo mais... leve. — murmurou, quase para si mesma.
— É meu talento secreto. — ele brincou, com um leve sorriso. — Mas você também tem seus talentos, sabia? Mesmo que raramente os reconheça.
Maomao levantou um pouco a cabeça, surpresa, mas ainda cautelosa.
— E quais seriam esses talentos? — perguntou, um fio de curiosidade na voz.
— Hm... a sua paciência é impressionante. A forma como observa, percebe, mesmo quando ninguém mais percebe. E... talvez a habilidade de manter a calma quando tudo parece desmoronar. — ele respondeu, encarando-a nos olhos.
Ela sorriu timidamente, sentindo o peso no peito diminuir um pouco.
— Nunca pensei nisso como um talento... mas... obrigada, querido.
Ele apenas assentiu, permitindo que o silêncio confortável se instalasse. Nenhuma pressão, nenhuma exigência — apenas a presença mútua, a conversa leve e pequenas provocações que faziam o mundo parecer menos pesado, mesmo que só por alguns minutos.
O quarto agora estava mergulhado em penumbra, apenas a luz das lanternas filtrava-se pelas cortinas, pintando as paredes com sombras que dançavam ao sabor da brisa noturna. Jinshi desatava lentamente o laço da túnica, pronto para se retirar em direção ao banho preparado pelas criadas. Seus gestos eram firmes, mas havia uma rigidez discreta nos ombros — ele próprio carregava as marcas silenciosas dos últimos dias.
Antes que desaparecesse atrás do biombo, uma voz suave, quase implorante, o alcançou:
— Jinshi...
Ele parou de imediato. Voltou-se, e o olhar encontrou Maomao sentada na cama, os cabelos desgrenhados moldavam-lhe o rosto ainda úmido de lágrimas, a palidez de sua pele contrastava com o azul vívido dos olhos, que naquele momento transbordavam uma vulnerabilidade que ela raramente permitia revelar.
— Fique comigo... por favor. — estendeu a mão em sua direção, os dedos trêmulos. — Não quero estar sozinha agora.
Jinshi respirou fundo, sentindo o peito apertar, aquela súplica simples, quase infantil, partia-lhe a alma. Soltou a túnica de vez, sem se importar com o banho ou com qualquer formalidade. Caminhou até a cama e sentou-se à beira, inclinando-se para aceitar a mão dela, a forma como Maomao o puxou para perto não era desesperada, mas carregava o peso de uma confiança rara, preciosa.
Ela se recostou devagar, até encontrar abrigo no peito dele, o corpo pequeno e frágil aninhado contra o seu parecia se ajustar a um espaço que já lhe pertencia por direito. O coração acelerado dela aos poucos encontrou ritmo nas batidas estáveis do dele, como se buscasse refúgio na constância que ele representava.
Enquanto os dedos dele afagavam-lhe os cabelos, Maomao fechou os olhos — e então a mente voltou, implacável, ao peso em seu ventre. A gravidez. A vida que crescia dentro dela sem que tivesse desejado. O medo latejante do parto, do sangue, das dores que tantas vezes vira destruir outras mulheres, o trauma ainda pulsava, vivo, gravado em sua memória.
E, no entanto... havia algo diferente ali. O calor do abraço de Jinshi, a firmeza de seus braços, o compasso seguro de seu coração contra o ouvido dela. Pela primeira vez desde que descobrira a gravidez, Maomao se permitiu pensar que talvez não estivesse tão sozinha quanto imaginava. Talvez, apenas talvez, o fardo não fosse inteiramente dela.
As lágrimas voltaram a se formar, silenciosas, mas não de puro desespero — era um choro confuso, misto de medo e de um início tímido de esperança.
Jinshi baixou os olhos para contemplar o rosto dela e compreendeu a profundidade daquele gesto: Maomao, tão desconfiada e fria diante do mundo, entregava-lhe sua fragilidade como quem entrega o coração.
Inclinou-se e pousou um beijo suave em sua testa, um gesto pequeno, mas carregado de ternura, como se gravasse nele uma promessa invisível.
— Estou aqui — sussurrou, a voz baixa, mas firme.
O calor daquela frase dissolveu a última barreira que ainda resistia em Maomao, ela suspirou, um som leve, quase aliviado, e deixou-se afundar nos braços dele. Pela primeira vez em horas, as lágrimas não voltaram, adormeceu envolta pelo coração que batia firme contra seu ouvido, protegida pelo único lugar do mundo onde se sentia segura.
Jinshi, imóvel, permaneceu a guardá-la, não ousou fechar os olhos. Observava cada traço sereno no rosto dela, como se velar seus sonhos fosse sua missão mais sagrada. E, naquele silêncio profundo, descobriu que não precisava de palavras ou de títulos: apenas estar ali, inteiro, já era a maior prova de amor que podia oferecer.
E assim, sob o abrigo do Pavilhão da Lua, o mundo pareceu se calar por um instante para que a princesa, enfim pudesse descansar nos braços do homem que amava.
[. . .]
O Pavilhão de Cristal despertava suavemente com a luz do amanhecer, filtrando-se pelas cortinas de seda e refletindo nos delicados vitrais que lançavam prismas coloridos pelo chão polido. Maomao, trajando um robe leve de linho claro, movimentava-se com precisão silenciosa entre os frascos de ervas e utensílios médicos. Havia algo de ritualístico em cada gesto seu: cada consulta, cada observação, carregava a seriedade de quem tinha responsabilidade não apenas com a vida alheia, mas também com a própria consciência.
Lady Lihua repousava em um divã confortável, o cabelo preto azulado caindo como uma cascata sobre os ombros. Seu ventre arredondado, agora de seis meses, era o foco de atenção de Maomao, que manteve o olhar firme, mas gentil.
— Lihua, — começou Maomao, inclinando-se levemente — você está tomando os medicamentos corretamente? Tem repousado como recomendei? Houve algum sangramento novo, ou algum desconforto que precise me contar? — Maomao sorriu envergonhada notando como tinha feito diversas perguntas sem pausas para a concubina Lihua, mas a mesma pareceu não se importar com a agilidade da princesa.
Lihua sorriu, uma expressão tranquila iluminando seu rosto.
— Estou bem, Maomao. — respondeu, a voz suave, mas firme. — As novas damas de companhia têm me auxiliado com tudo, e sigo à risca suas instruções. Sinto-me até um pouco mais forte hoje, mais disposta para as pequenas caminhadas que você autorizou.
Maomao assentiu, os lábios comprimidos, refletindo por um instante, observou o corpo da paciente, ainda gracioso apesar da gestação avançada, e percebeu o contraste com a própria situação. Ela ainda carregava apenas dois meses de gravidez, mas o peso da incerteza e do medo tornava cada gesto mais cuidadoso, cada movimento mais hesitante.
— Fico feliz em ouvir isso. — disse Maomao finalmente, com um tom de voz suave, mas firme, como se equilibrasse autoridade e carinho. — Então você está liberada para participar de eventos, para pequenas caminhadas pelo jardim... Mas nada de esforços excessivos, nem levantar peso. Ouviu?
— Claro, sem problemas. — respondeu Lihua com um sorriso tímido, mas confiante. — Prometo não me exceder.
Maomao inclinou-se para ajustar levemente o xale sobre os ombros da paciente, os dedos trêmulos apenas pelo pensamento que cruzava sua mente: “Como será que eu vou conseguir chegar até o sexto mês? Me sinto tão estranha pensando nisso."
Ela respirou fundo, tentando separar o profissional do pessoal. Cuidar de Lihua trazia-lhe segurança, a sensação de que podia exercer controle sobre a vida de outra pessoa, ao mesmo tempo que refletia sobre a própria fragilidade.
— Lihua, — continuou Maomao, voltando a atenção para a paciente — se sentir qualquer cansaço, tontura ou dor inesperada, me avise imediatamente. Não há problema em pedir ajuda. A gestação é um equilíbrio delicado.
— Entendi, Maomao. — disse Lihua, a mão repousando sobre o ventre protuberante. — E obrigada, é confortante ter alguém que nos entende de verdade.
Maomao sentiu um aperto no peito, olhando para aquele ventre que ainda parecia mais distante do que o dela própria. Por um instante, fechou os olhos, imaginando sua própria criança, ainda pequena, mas presente, crescendo dentro dela, e sentiu uma onda de medo misturada a esperança.
— É um cuidado mútuo. — disse Maomao, num murmúrio quase para si mesma. — Enquanto eu cuido de você, também aprendo a cuidar de mim sem perceber...
O sol da manhã já iluminava o pavilhão por completo, refletindo nos vitrais e criando pequenas manchas de luz colorida sobre o divã. Maomao respirou fundo, ajustou alguns frascos sobre a mesa de consultas e, ao olhar novamente para Lihua, sentiu-se determinada. Havia ainda muito que aprender, muito que suportar, mas sabia que, aos poucos, conseguiria lidar com a própria gestação, assim como ajudava a guiar a outra.
— Então, vamos manter esse ritmo. — disse Maomao, a voz firme e tranquila. — Caminhadas leves, repouso adequado e observação contínua. Prometo acompanhá-la em cada passo.
Lihua assentiu, satisfeita, e Maomao sentiu um pequeno conforto em seu próprio coração: cuidar de outra vida, mesmo com seus próprios medos, ajudava-a a aceitar que, em breve, ela precisaria cuidar da própria criança, enfrentando a gestação com coragem que ainda buscava dentro de si.
[. . .]
Depois de um dia exaustivo atendendo Lady Lihua, Maomao deixou a clínica com passos lentos, quase mecânicos. Ainda teve tempo de receber alguns eunucos e revisar pequenas prescrições, mas seu olhar pesado denunciava que a mente já havia se esgotado. Cada gesto, cada palavra, parecia exigir dela um esforço sobre-humano, e ela sabia que o corpo ainda carregava o peso de uma gestação recente, frágil e incerta.
Ao retornar para o Pavilhão da Lua, Maomao sentiu o alívio imediato do silêncio que o lugar oferecia. Lady Lishu aguardava discretamente, aplicando óleo corporal nos braços e pernas da princesa, enquanto Chue penteava com delicadeza os fios verdes de seus cabelos, permitindo que ela se desprendesse por alguns minutos da tensão que a consumia. As mãos experientes das damas eram o único contato firme com a realidade, um lembrete de que, ainda que o mundo inteiro parecesse desmoronar, alguém estava ali para sustentar-lhe o peso.
Maomao deixou que os olhos vagassem pelo quarto, pequenos detalhes saltavam à mente — o divã imaculado, o brilho dos vitrais, e, no canto, o pequeno Guang brincando com seu brinquedo de madeira. O garoto era a prova viva de que a vida podia florescer naquele espaço, e a imagem dele a fez estremecer. Logo ali, pensou Maomao, poderia estar seu próprio bebê, correndo e rindo, mas aquela visão parecia distante, quase inatingível, um medo profundo a corroía por dentro, como uma corrente invisível que apertava o peito a cada respiração.
O peso da gestação era mais que físico; era o medo daquilo que ela própria conhecia muito bem. Por mais que a maternidade fosse celebrada como algo mágico, Maomao sabia que a realidade era cruel. Mulheres não sobreviviam ao parto com facilidade; apenas as mais fortes, ou as mais sortudas, chegavam ao fim do nono mês sãs e inteiras e, naquele momento, com apenas dois meses de gravidez, cada batida de seu coração parecia lembrar-lhe da fragilidade que sentia.
Quando o banho terminou, Lady Lishu e Chue ajudaram-na a vestir um hanfu branco simples, coberto por uma túnica azul, os cabelos trançados e os olhos fundos denunciando a exaustão. Havia algo em sua postura, em cada movimento delicado, que revelava quão perto ela estava de um colapso mental. Assim que as damas se retiraram, Maomao deixou-se cair na cama, encolhendo-se, a mão pousada sobre a barriga.
O pensamento sombrio veio com força: talvez a vida fosse mais fácil se ela retirasse o bebê, ninguém precisava saber, nem mesmo Jinshi. Um aborto parecia a solução mais prática naquele instante, uma forma de cuidar da própria saúde, de preservar a sanidade em meio ao caos do palácio e à solidão da própria gestação. Ela havia preparado os remédios, conhecia bem as plantas ao redor do palácio, muitas com efeitos abortivos. Seria simples ingerir o medicamento e esperar o sangramento, podendo alegar que suas “regras” haviam chegado mais cedo naquele mês.
Maomao fechou os olhos, sentindo o peito apertar com a ideia, cada pensamento sobre aquele futuro interrompido lhe arrancava um pedaço da alma e, ainda assim, havia uma parte dela que queria apenas permanecer ali, quieta, protegida.
— Vossa Alteza. — a voz de Chue cortou o silêncio, fazendo Maomao despertar de seus pensamentos sombrios — A princesa Jin-Ye veio lhe visitar, a senhora autoriza que eu a deixe entrar em seus aposentos?
Maomao assentiu com a cabeça, enxugando as lágrimas que haviam descido silenciosas. Assim que Jin-Ye entrou, seus braços se abriram automaticamente. A amiga aproximou-se sem hesitar, envolvendo-a em um abraço firme e acolhedor, por um instante, Maomao permitiu-se ser apenas humana, sentindo o conforto que apenas alguém que compreendia sua alma poderia oferecer.
Jin-Ye acariciava seus cabelos, tentando transmitir força e segurança, mesmo que seu próprio coração estivesse inquieto. Ela sentia o peso da gestação própria, a angústia de carregar um segredo, mas naquele momento, todas as suas emoções foram postas de lado. Tudo que importava era Maomao. Ela precisava ser a ponte que sustentasse a amiga, ser o porto seguro em meio à tempestade que se abatia sobre a princesa.
Maomao permaneceu ali, entrelaçada à amiga, sentindo o coração apertar, mas também um fio tênue de alívio. Pela primeira vez, naquele dia que se arrastara em exaustão e medos, ela permitiu-se sentir que não estava completamente sozinha. Que, talvez, mesmo com o peso da gravidez, o mundo pudesse esperar alguns minutos enquanto ela se aninhava nos braços de quem a compreendia sem precisar de palavras.
E, enquanto os instantes passavam, a princesa fechou os olhos, deixando-se levar pelo conforto silencioso, consciente de que, por trás do medo e da dor, ainda existia a esperança tênue de que não precisaria enfrentar tudo sozinha.
Maomao estava sentada sobre as almofadas bordadas, as mãos entrelaçadas sobre o colo, os cabelos verdes soltos caindo como ondas ao redor do rosto pálido. Ao seu lado, Jin-Ye a envolvia num abraço firme, como se pudesse sustentar aquele peso invisível que consumia a amiga desde o dia anterior.
— Desde que soube da gravidez, minha mente não descansa, eu conheço demais o que vem depois. Vi mulheres gritarem até perder a voz, vi corpos frágeis despedaçados pelo esforço de trazer vida. Eu nunca temi a morte, Jin-Ye... mas temo o parto.
Jin-Ye apertou as mãos dela, sentindo o frio nos dedos da amiga, o coração batia forte em seu peito, mas a voz saiu firme:
— Você não precisa ter vergonha desse medo, ele é real e é seu, só você sabe o que viu e passou.
Os olhos azuis de Maomao se ergueram, carregados de um desespero que raramente deixava transparecer. Ela respirou fundo, e o que disse a seguir caiu entre elas como uma lâmina invisível:
— Não é apenas medo. É terror. Ontem mesmo, na clínica... preparei as ervas de novo, as mesmas que tantas vezes ofereci a outras mulheres, em segredo. Estão guardadas em caixas de cerâmica, que Lishu e Chue trouxeram para mim. Algumas doses... e tudo desaparece.
Jin-Ye conteve o impulso de estremecer, por um instante, apertou mais forte as mãos da amiga, como se tentasse impedir que ela se agarrasse àquela saída definitiva.
— Você já tomou a decisão?
Maomao fechou os olhos. Uma lágrima discreta escorreu, quase contra a vontade.
— Não... e isso me atormenta ainda mais. Parte de mim deseja o alívio imediato, silenciar esse peso antes que cresça. Mas outra parte... — ela levou a mão ao ventre, ainda tão discreto, com dedos trêmulos — se pergunta se eu teria forças para suportar a perda de algp que provoquei.
O silêncio encheu o quarto, cortado apenas pelo balançar das cortinas ao vento. Jin-Ye inclinou-se mais perto, o tom de voz baixo, como um segredo partilhado apenas entre irmãs:
— Força você tem, Maomao, mas não é errado não querer lutar essa batalha, o erro seria obrigar-se a algo que o coração rejeita.
Um riso amargo escapou dos lábios de Maomao.
— Meu coração sempre foi frio. Todos dizem isso, mas hoje... ele parece uma prisão. Não sei se fujo ou se permaneço nele.
Jin-Ye passou a mão delicadamente pelos cabelos verdes da amiga, a voz embargada mas firme:
— Frio? Não. Você carrega mais vida e dor em si do que muitos suportariam. A coragem de olhar para essa escolha já prova isso. Não existe covardia no que pensa, só a verdade.
Maomao a encarou, os olhos marejados e vulneráveis como nunca estiveram diante de ninguém.
— E se Jinshi descobrir o que fiz? Me preocupa isso também, porque essa criaturinha tem uma metade dele também.
O olhar de Jin-Ye escureceu, uma sombra de algo que ela mesma conhecia.
— Homens não conhecem as sombras que habitam um ventre, eles não carregam esse peso, não sangram por ele. Se o segredo for sua proteção, ele não precisa saber.
Maomao respirou fundo, tremendo, e a olhou como se buscasse uma verdade que ela mesma não conseguia alcançar.
— Você fala como se soubesse... como se sentisse na própria pele, o que estou passando. — comentou arqueando a sobrancelha desconfiada.
Por um instante, o coração de Jin-Ye vacilou. O instinto a fez levar a mão ao próprio ventre, mas logo recuou, escondendo o gesto em um sorriso triste.
— Talvez eu saiba mais do que você imagina, mas esta noite... não sou eu que importa. É você que importa nesse momento, Maomao. Sua dor, sua escolha, sua vida.
E foi nesse momento que Maomao, pela primeira vez, permitiu-se desabar, deitou a cabeça sobre o ombro da amiga e chorou em silêncio, as lágrimas caindo sem resistência.
Jin-Ye a abraçou forte, apertando-a contra o peito como se quisesse protegê-la do mundo inteiro. Seus olhos vermelhos brilharam na penumbra, marejados, enquanto sussurrava com convicção:
— Nunca vou deixar você sozinha.
Ali estavam duas mulheres unidas não apenas por laços de sangue e alianças, mas pelo peso de segredos que o mundo jamais compreenderia, duas princesas com um único segredo em comum e isso que mais dilacerava o coração de Jin-Ye, saber tudo significa também perder tudo.
Assim que Maomao adormeceu, o corpo dela cedeu contra o de Jin-Ye, os cabelos verdes espalhando-se pelas almofadas como um manto delicado. A respiração irregular da irmã se transformava em um ritmo mais tranquilo, embora ainda houvesse tensão em cada suspiro.
Jin-Ye permaneceu imóvel, mantendo o braço em torno dela como uma muralha silenciosa,o coração, porém, não parava de pulsar descompassado.
"Se ela soubesse..." — pensou, encarando o teto, onde as sombras da cortina dançavam à luz da lua.
Ela levou a mão ao próprio ventre, de forma quase instintiva, o gesto era pequeno, escondido na penumbra, mas carregava um peso imenso.
"O filho de Lahan...".
O nome ecoou em sua mente como uma lâmina, Lahan, o irmão de Maomao.
O homem que não deveria ter cruzado seu destino daquela forma, o amante proibido que havia incendiado sua vida de princesa enclausurada. Ela sabia o que diziam sobre mulheres como ela — desonra, mancha, pecado. Se fosse revelado, não seria apenas sua vida destruída, mas também a do próprio Lahan e ainda sim ele conseguiria se reerguer, diferente dela, apenas por ser quem era, uma mulher.
Os dedos de Jin-Ye apertaram o ventre de forma quase dolorosa, era impossível não sentir a ironia cruel: ali estava ela, consolando Maomao por uma gravidez indesejada, enquanto escondia a sua com todas as forças.
— Perdoe-me, irmãzinha... — murmurou, a voz embargada, mesmo sabendo que Maomao não ouviria.
Maomao dormia em seus braços, vulnerável, confiando plenamente nela. Confiando sem imaginar que Jin-Ye carregava um segredo capaz de abalar tudo entre elas.
"Eu não posso contar. Não agora. Não a você, que já sangra em silêncio pela sua própria escolha. Não a você, que teme ser destruída pelo parto, o meu medo é outro, mas tão cruel quanto o seu."
Uma lágrima solitária escorreu dos olhos vermelhos de Jin-Ye, deslizando até a curva de seu rosto. Ela não a enxugou, deixou que caísse, silenciosa, como tantas outras noites.
Abraçou Maomao com mais força, como se pudesse, naquele gesto, carregar também a dor da amiga, mas no fundo sabia: eram duas mulheres dividindo a mesma solidão, cada uma com um segredo que o mundo jamais compreenderia.
[. . .]
As lanternas de seda balançavam suavemente no Pavilhão da Lua, espalhando um brilho cálido pelo quarto. O ar estava impregnado pelo aroma suave de chá e incenso de ameixa, Lady Lishu e Chue conversavam em voz baixa perto da mesa, ajustando tigelas de porcelana e pequenas travessas, mas sem quebrar a serenidade do ambiente.
No centro das almofadas, Jin-Ye permanecia sentada, os cabelos violetas soltos como uma cascata, e nos braços repousava Maomao. A princesa de cabelos verdes dormia profundamente, o rosto relaxado após tanto tempo de tensão, e Jin-Ye passava os dedos delicadamente pelas mechas dela, como quem ninava um segredo precioso.
Foi nesse instante que a porta de madeira deslizou suavemente. Jinshi entrou acompanhado de Jiang. O príncipe vestia túnica escura bordada em dourado, a postura ereta e imponente suavizada por um leve sorriso ao ver a cena diante de si.
— Sempre soube que minha irmã tinha talento para acalmar até as feras mais indomáveis... — Jinshi comentou em tom baixo, o olhar pousando em Maomao com uma mistura de ternura e surpresa. — Quem diria que minha própria esposa cairia rendida ao colo dela.
Jin-Ye ergueu os olhos, um sorriso discreto despontando em seus lábios, mas sem mover-se para não acordar Maomao.
— Não é talento, irmão. É apenas o coração pedindo descanso, — suspirou fundo — ela precisava de colo, e eu... de silêncio.
Jiang, que vinha logo atrás, riu levemente, quebrando a formalidade.
— Faz bem ver o Pavilhão tão tranquilo, quase me esqueço que estamos sempre cercados de relatórios, audiências e disputas. Aqui parece outro mundo.
Lady Lishu inclinou-se em respeito, mas sua voz saiu suave:
— A senhora Maomao parecia exausta, alteza, as noites têm sido longas.
— Longas para todos nós. — Jinshi completou, cruzando os braços e se aproximando um pouco mais, embora não ousasse interromper o repouso da esposa.
Jin-Ye desviou o olhar para os dois irmãos, e algo em sua expressão suavizou-se ainda mais.
— Amanhã teremos o jantar com o papai. — Sua voz tinha um timbre quase nostálgico. — Já faz tanto tempo que não nos reunimos em torno de uma mesa sem papéis ou conselheiros atrapalhando.
Jinshi assentiu, um suspiro escapando-lhe discretamente.
— Será estranho, confesso, falar de banalidades, rir sem precisar pesar cada palavra. Talvez seja disso que mais precisamos.
Jiang se deixou cair em uma das almofadas próximas, o semblante leve.
— Eu, pelo menos, pretendo aproveitar. Se o imperador estiver de bom humor, talvez até escutemos histórias antigas em vez de novos deveres e teremos muito vinho para beber.
Jin-Ye sorriu, seus dedos ainda deslizando nos fios de Maomao.
— Histórias antigas... lembro-me das vezes em que nos sentávamos juntos, sem distinção de títulos, apenas irmãos diante do pai. Éramos crianças correndo pelos corredores, e não peças em um tabuleiro.
Jinshi a fitou em silêncio por um momento, e depois deixou que um sorriso raro surgisse em seu rosto.
— Talvez, por uma noite, possamos recuperar um pouco disso.
O ambiente encheu-se de uma calma diferente, Lady Lishu e Chue serviram discretamente o vinho de arroz e pequenas iguarias, o riso leve de Jiang, o olhar sereno de Jin-Ye, a respiração tranquila de Maomao adormecida — tudo se misturava numa harmonia rara, frágil como a luz da lua, mas preciosa por existir.
Chapter 19: Jantar Imperial
Notes:
Escrevi esse capítulo com toda a minha criatividade e ausência paterna/materna que existem dentro de mim
Caprichei para que todos chorem e sintam na pele o que cada personagem sentiu.Boa leitura, espero que gostem, estarei atenta nos comentários de vocês :))))
Chapter Text
Se havia algo capaz de iluminar o semblante do Imperador Yang mais do que a própria presença da Imperatriz Ah-duo, era o simples ato de reunir sua família, a sala cheia de vozes, risadas discretas das concubinas de alto escalão e o burburinho alegre de seus filhos era a única imagem que conseguia apagar, ainda que por instantes, o peso sufocante das responsabilidades imperiais. Naqueles momentos, quase conseguia acreditar que ainda era apenas um homem comum — marido e pai — e não o soberano de um império em declínio.
Mas a realidade sempre vinha cobrar seu preço, desde que tinha ascendido ao trono, cada minuto junto das crianças se tornava uma batalha perdida contra o tempo e contra os protocolos que lhe moldavam a rotina. Estar ao lado de Ah-duo era seu único consolo, mas mesmo com ela ao lado, havia uma ferida que jamais cicatrizava: os anos de infância roubados de seus filhos. Quantas primeiras palavras, primeiras decepções e primeiras quedas não lhe foram negados pela coroa? Yang sentia como se tivesse deixado escapar a essência mais pura da paternidade, e a culpa o corroía silenciosamente.
A morte de seu pai — o antigo Imperador, cuja crueldade ainda manchava a memória do palácio — deveria ter simbolizado um renascimento para o País de Li, mas a herança recebida era um campo minado. Ao assumir o trono, deparou-se com um reino combalido, onde a fome corroía regiões inteiras e as disputas políticas se multiplicavam como ervas daninhas. A cada conselho, a cada decreto, Yang se via cercado de inimigos invisíveis, e mesmo em noites insones, não encontrava soluções rápidas para estancar o caos. Era como se estivesse carregando o mundo nos ombros, e este lhe esmagava pouco a pouco.
Por isso, quando surgiu a possibilidade de Zuigetsu unir-se à família de Lakan, o Clã Kan, pedindo a mão da filha primogênita, Yang sentiu por um breve instante a sensação de alívio, uma peça do complicado jogo político parecia finalmente se mover a seu favor. A ideia de ver um problema de tamanha gravidade ser resolvido num arranjo matrimonial parecia quase uma dádiva dos céus.
Ainda assim, a lembrança vívida da reação de Lakan permanecia gravada em sua mente, os gritos, as ameaças, o olhar flamejante de um pai disposto a sacrificar tudo pela honra da filha, Yang não apenas compreendia aquela fúria — ele a reverenciava. Porque se alguém ousasse sequer insinuar desonra contra suas pequenas Jin-Ye e Lingli, ele não hesitaria em manchar as próprias mãos de sangue. Ser pai era diferente de ser Imperador. Um pai não media protocolos, não pensava em alianças, não se detinha diante da razão de Estado, um pai lutava, urrava, quebrava o mundo em pedaços se fosse preciso.
Yang nunca foi como seu pai, e orgulhava-se disso, jamais permitiria que uma menina fosse arrancada de sua infância para servir de concubina, jamais seria capaz de tocar alguém que não tivesse idade e consciência para escolher. A mera ideia lhe causava nojo, e nesse ponto reconhecia em Lakan um espelho — ambos homens endurecidos por responsabilidades distintas, mas que encontravam no amor das filhas sua verdadeira humanidade.
E, no íntimo, Yang se perguntava: até onde estaria disposto a ir por Jin-Ye e Lingli? Sabia a resposta, e ela o assombrava. Porque, assim como Lakan, ele também cometeria loucuras.
[. . .]
7 anos atrás...
Palácio Imperial
As portas de bronze do Sala do Trono se escancararam com violência, batendo contra as paredes com um estrondo que fez até os guardas estremecerem, o som ecoou como trovão, quebrando de forma brutal a serenidade que dominava o lugar. O perfume de sândalo queimava espesso no ar, mas foi engolido pela presença de um homem que era pura tempestade.
Lakan, o general de Li, avançava pelo piso de jade com passos furiosos, cada batida de sua bota soava como um golpe de tambor de guerra. Sua capa escura arrastava-se atrás de si como a sombra de um exército inteiro, o rosto rígido, os olhos inflamados, mostravam não a postura de um súdito, mas de um pai que se sentia traído e que já não reconhecia limites.
— MAJESTADE! — sua voz explodiu no salão, grave, tomada pelo desespero e pela ira. — EXIJO RESPOSTAS E EXIJO AGORA.
O Imperador, sentado em seu trono ornamentado de ouro e dragões, ergueu lentamente os olhos, sua expressão era calma, quase solene, mas dentro dele corria a consciência de que enfrentava não apenas um homem, mas um general capaz de mover exércitos, Lakan era um verdadeiro e renomado estrategista.
— Explique-se, mestre Lakan, qual o motivo de tanta euforia? — disse o Imperador, a voz grave, mas contida.
Lakan avançou mais alguns passos, o peito arfando, as veias latejando no pescoço, ele ergueu o braço, o dedo indicador quase apontando no rosto do Imperador, tremendo de pura fúria.
— COMO OUSA?! — gritou ainda mais irritado — Como ousam permitir que o nome da minha filha seja pronunciado neste palácio como se fosse mercadoria de feira?!
A voz dele ressoou entre as colunas, ecoando como aço contra pedra, os guardas trocaram olhares tensos, mas não ousaram interromper.
O Imperador inspirou fundo, cada palavra deveria ser escolhida com cuidado.
— O nome de Lady Kan, foi ofertado diante da corte, o homem que fez a proposta intitulou-se de seu irmão, afirmando que seria uma honra para sua família...
— Honra?! — o grito de Lakan quase partiu o teto. Ele bateu o punho fechado contra o peito com força, como se quisesse impedir o coração de explodir. — ISSO É O QUE SE CHAMA DE HONRA YANG?! Entregar a inocência de uma menina como tributo?! Maomao tem quatorze anos! QUATORZE ANOS! NEM COMPLETOU QUINZE AINDA! ELA É UMA CRIANÇA! UMA CRIANÇA!
Ele deu outro passo à frente, as palavras cuspidas como fogo.
— Querem me convencer de que aprisioná-la entre estas paredes, jogá-la no meio de víboras desse palácio, é uma honra? Querem me convencer de que colocá-la num harém repleto de concubinas venenosas é proteção?! ISSO NÃO É UMA HONRA YANG! É UMA DESGRAÇA!
Seus gritos reverberaram pelo salão, e até os guardas, treinados a suportar guerra, sentiram a espinha gelar.
Lakan ergueu o braço novamente, apontando direto para o trono.
— Minha filha não é uma moeda de troca, não é concubina! Não é carne para satisfazer um velho! Se você aceitar essa afronta, se ousar permitir que esse insulto se concretize, eu juro pelos céus, pelos mortos que já comandei em batalha, que derrubo este império com minhas próprias mãos!
O salão ficou suspenso no silêncio, o Imperador fechou os olhos por um instante, como quem absorvia a fúria antes de responder. Ao abri-los, sua voz veio firme, grave, mas com um peso de cansaço ancestral.
— Lakan, suas palavras o aproximam da rebelião e acredito que não seria uma boa forma de manter a paz no reino.
— Que seja rebelião! — rugiu o general, cuspindo cada sílaba com a força de um homem que já não temia nada. — Prefiro ser lembrado como traidor do que como pai que entregou a filha ao covil das serpentes! SE ENCONSTAREM NELA, EU TRAREI A GUERRA ATÉ SEUS PORTÕES, E ESTE TRONO CAIRÁ EM RUÍNAS.
O eco do grito ainda reverberava quando o silêncio tomou o salão, sufocante, pesado como ferro. O Imperador deixou escapar um longo suspiro, sua expressão solene e grave.
— Isso não é um lembrete Yang, é uma ameaça.
— Acalme-se, general, não haverá concubinato. Sua filha não está cogitada para tamanho posto, dou-lhe minha palavra como Imperador.
A respiração de Lakan estava descompassada, o peito arfando, o corpo inteiro vibrando de raiva e dor, seus olhos marejavam, mas não havia fraqueza neles - apenas a fúria indomável de um pai.
Ele ergueu o queixo, sem se curvar.
— Então que suas palavras se gravem nas pedras deste trono, Yang, porque se algum dia forem quebradas... eu virei cobrá-las com sangue.
E, sem esperar permissão, girou nos calcanhares e partiu, deixando para trás o rastro de sua fúria — e um salão tão silencioso que parecia ter sido esvaziado de ar.
O perfume de sândalo agora parecia sufocante, incapaz de encobrir a sensação de ameaça que Lakan deixava para trás.
Ao lado do trono dourado, a Imperatriz Ah-duo mantinha a postura ereta, mas seus dedos, escondidos sob as longas mangas de seda violeta, eles ainda tremiam levemente. Seus olhos da mesma cor — profundos, cintilantes como ametistas sob luz — estavam fixos na saída por onde o general desaparecera, havia algo de primitivo naquele rugido, algo que ainda vibrava dentro de seu peito.
A seu lado, os gêmeos observavam em silêncio, Jinshi, com os reflexos violáceos caindo com perfeição nos ombros, encarava o chão, o semblante grave, quase adulto demais para seus dezesseis anos. Jiang, por outro lado, cerrava os punhos, o contraste entre os dois era evidente: os olhos vermelhos de Jiang ardiam como brasas, refletindo indignação, enquanto os de Jinshi eram poços profundos de cálculo silencioso.
— Mãe... — Jiang quebrou o silêncio, a voz grave demais para a idade, carregada de fúria juvenil. — Esse homem ousou ameaçar o Imperador! Na frente de todos! Como se fosse mais que um súdito... eu deveria ter me levantado, eu deveria ter mandado os guardas arrastarem-no!
Ah-duo pousou a mão delicada sobre o braço do filho, controlando a própria voz para soar firme, embora por dentro o coração lhe martelasse.
— Não, Jiang. Você não deve agir com ímpeto, um leão ferido não se doma com correntes, mas com cautela e estratégia.
Jinshi levantou os olhos, e por um instante, a semelhança com a mãe era assustadora, a mesma calma aparente, a mesma profundidade.
— Ele falou de sua filha... — disse, num tom baixo, quase um sussurro, mas que cortou como lâmina no silêncio. — Não eram apenas ameaças vazias, era apenas um pai preocupado.
Ah-duo o observou longamente, o coração se contraiu.
Aqueles dois - tão jovens, tão diferentes — estavam crescendo rápido demais, moldados pelo peso do trono.
— Devo-vos lembrar, — disse ela, em voz baixa, mas carregada de gravidade — que mesmo a fúria de um pai pode se tornar veneno contra o império, Lakan não é um homem qualquer, ele carrega exércitos atrás de si e a coroa teme o que ele possa fazer se encostarem em um de seus filhos, principalmente na Lady Kan.
Jiang desviou o olhar, os punhos ainda cerrados, os olhos vermelhos faiscando.
— Não importa quantos exércitos, mãe, se ele ousar tocar em nosso pai, eu o enfrentarei.
Ah-duo suspirou, os dedos se fechando suavemente sobre os do filho, tentando conter a chama que ardia nele.
— Não fale de guerra, meu filho. Guerra não é sobre coragem e bravura, mas de sangue inocente derramado por conta de velhos que não se entendem e fazem com que jovens que não têm nada haver com a guerra se matem, em prol de beneficiarem o lado mais forte.
Jinshi, ao contrário, mantinha-se sereno, mas em seu olhar violeta havia algo inquietante, algo que lembrava o próprio Imperador em seus momentos mais sombrios.
— E ainda sim, às vezes o sangue é inevitável. — disse, olhando para o irmão.
Ah-duo recuou o olhar, seu coração apertado.
O eco dos gritos de Lakan ainda vibrava em seus ouvidos, mas agora o que a assombrava eram os próprios filhos: um ardendo em chamas de cólera, o outro mergulhando no frio silêncio da estratégia.
Ela os puxou levemente para mais perto de si, como se pudesse protegê-los não apenas do rugido de um general, mas do destino que o trono inevitavelmente lhes cobraria.
O Imperador por outro lado permaneceu imóvel em seu trono, mas por dentro algo se remexia — não era apenas o peso da ameaça, era o peso da verdade que vinha embutida nela.
Ele conhecia homens que ruíam em meio à ira, que vociferavam para esconder o vazio do coração, mas o que via em Lakan não era fraqueza: era a dor crua, o desespero de um pai que defenderia a filha com as próprias garras. E, em silêncio, Yang admitia que faria o mesmo.
Sua mente correu até os rostos de Jin-Ye e Lingli.
Tão jovens ainda, tão cheias de vida, gargalhadas que ecoavam pelos jardins quando corriam atrás das lanternas. As duas tinham a mesma idade que a filha de Lakan e só de imaginar que alguém ousaria pronunciá-las como moeda de troca, como concubinas antes mesmo da juventude florescer... o sangue lhe gelava.
Yang apertou com força os braços do trono.
Jamais. Nunca permitiria que um corpo infantil fosse reduzido a objeto, a prazer de velhos decadentes. A própria ideia era repugnante, um veneno contra sua moral.
Ele não era como seu pai — aquele homem sem limites, que via o harém como um cofre de poder e exibicionismo. Não. Yang havia jurado consigo mesmo que jamais repetiria os pecados daquele reinado.
E por isso entendia Lakan. A cada rugido do general, a cada palavra cuspida como uma lâmina, Yang se via diante do próprio reflexo, um reflexo de si mesmo como pai. Se alguém ousasse sequer sugerir que Jin-Ye ou Linglin fossem entregues ao palácio como brinquedos de poder... sim, ele também quebraria o mundo.
Yang ergueu o olhar para o teto dourado do Sala do Trono, permitindo-se um pensamento que jamais confessaria a ninguém:
— Talvez, Lakan... em outra vida, fôssemos irmãos na mesma dor.
[. . .]
Yang ainda ouvia em sua mente o eco da voz de Lakan, vibrante, quase selvagem, ressoando pelos salões do palácio. A fúria de um pai que, ao menos, tivera o privilégio de ver cada passo dos filhos, de os acompanhar de perto, de moldar-lhes o caráter e de estar presente nas pequenas alegrias do cotidiano. Esse era o abismo que separava Lakan dele. Enquanto Lakan presenciara risos, quedas, Yang foi forçado a assistir de longe, com o coração em carne viva, Gaoshun e Taomei assumirem o papel que sempre quis para si: o de criar seus filhos.
Ele e Ah-duo, juntos, sacrificaram o que havia de mais precioso - o contato diário com as crianças. E, embora os filhos nunca tivessem passado fome ou privação de afeto, cresciam sob outras asas, e não sob as suas, era essa a ferida que jamais se fechava.
A dor estampava-se, clara como um reflexo na água, no rosto da Imperatriz, Ah-duo sofria em silêncio quando percebia Jin-Ye buscando mais aconchego em Lihua do que em seus braços. Seu peito se apertava sempre que via Jinshi correr em lágrimas para os braços de Taomei ou de Gaoshun, como se a segurança estivesse neles, e não nela. Cada vez que isso acontecia, um pedaço dela se rompia. Yang, por sua vez, suportava o peso de ver a família se dispersar em laços que, embora sinceros, nunca deveriam ter substituído os deles.
Era verdade que Jinshi, por ser o príncipe herdeiro, tivera mais convivência com o pai e a mãe do que os irmãos. O dever o aproximava, obrigava-o a estar presente nos corredores oficiais e nos ritos da corte, mas essa presença era forçada pelo título, não pelo cotidiano íntimo. Não havia naturalidade em primeira instância ali, apenas obrigação e formalidade.
E, no entanto, a maior das ironias da vida era que, entre todos os filhos, aquele que mais próximo lhes era... não nascera de Ah-duo, Jiang, o menino que muitos olhavam de soslaio, cuja origem era uma ferida aberta que Yang jamais poderia revelar em voz alta. O segredo queimava em sua garganta: Jiang era, na verdade, seu irmão, fruto de uma violência, de um abuso covarde que manchara sua família. Uma criança rejeitada desde o ventre, recebida pela Imperatriz Viúva como uma lembrança indesejada, um peso a ser carregado sem afeto.
Mas para Yang e Ah-duo, Jiang nunca foi uma mancha, na realidade ele era um presente inesperado.
Ah-duo o acolhera nos braços desde o primeiro instante, embalando-o como se fosse seu, derramando sobre ele um amor tão imenso que não havia espaço para distinções. A forma como o menino se agarrava a ela, buscando-lhe o colo, a segurança, era a prova viva de que laços de sangue não determinam laços de coração. Para ela, Jiang era filho e ponto.
Yang, por sua vez, encontrava no garoto uma ternura que não conhecia em nenhum dos outros, Jiang não se aproximava por título, não buscava atenção por dever ou por status. Ele simplesmente amava, estava sempre ali, grudado nos dois, irradiando uma lealdade e uma doçura que nem o tempo, nem a corte, nem os segredos poderiam corromper.
E, nos silêncios da noite, Yang se pegava recordando as poucas vezes que observou Ah-duo dormir com Jiang e Jinshi aninhados ao peito, ele se perguntava se não era justamente aquela criança rejeitada quem, de fato, sustentava os pedaços quebrados daquela família junto ao pequeno herdeiro do trono.
[. . .]
A noite do jantar imperial se anunciava com lanternas acesas, corredores silenciosos e o murmúrio distante dos preparativos nos salões do palácio. Para Maomao, porém, cada detalhe parecia perder o brilho, e o costumeiro fascínio pelo ritual e pela pompa da corte se dissolvia diante do turbilhão que carregava em seu peito.
Ela permanecia sentada diante do espelho de bronze no Pavilhão da Lua, o reflexo mostrando olhos fundos, sombreados de cansaço, e a pele pálida contrastando com os fios verdes que caíam desgrenhados sobre os ombros. As mãos, inquietas, pousavam sobre o colo, cruzando-se sobre a barriga como se buscassem proteger o pequeno segredo que pulsava silencioso dentro dela.
O aroma delicado de flores secas, de óleos corporais e perfumes sutis que as damas de companhia espalhavam pelo quarto não conseguia suavizar o peso que a princesa sentia. Cada respiração vinha carregada de tensão, como se o ar fosse denso demais para passar pelos pulmões.
À sua frente, sobre a mesinha de jade, estavam os abortivos preparados com precisão, guardados como uma possibilidade de alívio, Maomao os encarava, perguntando-se, em silêncio, por que ainda não havia recorrido a eles. Seria tão mais fácil lidar com aquilo, tão mais simples enfrentar a situação sem que o coração se apertasse a cada instante, sem que cada movimento lhe lembrasse da responsabilidade e do medo.
As damas de companhia, Lishu e Chue, tentavam distraí-la, ajustando o hanfu de tons azulados e brancos que Maomao não costumava escolher. Era uma cor que odiava, mas que agora, curiosamente, parecia refletir seu estado: calma superficial, frio que escondia turbulência, mas nada conseguia arrancar da princesa mais do que um sorriso contido, uma máscara mínima de cortesia que escondia a angústia por trás do olhar.
O pedido de convidar Lahan para acompanhá-la naquela noite revelava, por si só, sua necessidade de algum apoio, de uma presença conhecida que pudesse lhe trazer estabilidade, mesmo que ao lado do marido, Jinshi, ela se sentisse deslocada.
Enquanto os minutos passavam, Maomao sentia o coração disparar a cada movimento no quarto, a ansiedade crescendo como maré alta. Sua respiração era um esforço consciente para não demonstrar desânimo, cada olhar para o próprio reflexo lembrava-a de que estava à beira de um precipício emocional. Ela precisava estar ali, apresentar-se com dignidade, mas o corpo e a mente conspiravam contra a farsa.
— A senhora deveria usar rubis para o jantar, trariam sorte e vitalidade. — arriscou Lishu, mas Maomao apenas balançou a cabeça em negativa. O vermelho, cor da paixão e da vida, parecia um fardo pesado demais. O rubro era esperança, era fogo e naquele instante, nada disso se refletia em seu coração.
Preferiu o jade apagado e o prata, cores que pareciam se encaixar em seu humor sombrio.
No silêncio entre os passos suaves das damas, Maomao sussurrou para si mesma, quase inaudível:
— Por que ainda não fiz...? Seria mais prático..
O eco da própria voz parecia pesado, carregado de culpa, medo e incerteza. Ela fechou os olhos por um instante, as mãos apertando levemente o tecido do hanfu, sentindo a fragilidade que jamais admitiria diante de qualquer outra pessoa.
Chue começou a trançar seus cabelos longos, prendendo-os em um coque alto, deixando algumas mechas soltas que emolduravam seu rosto abatido. O gesto era cuidadoso, quase reverente, mas Maomao não reagia. Apenas deixou-se ser moldada, como uma boneca de porcelana que alguém vestia para exibição.
Quando a última camada do hanfu foi ajeitada sobre seus ombros, Maomao levantou-se. No espelho, a imagem que retornava era a de uma princesa impecável: azul profundo e prata, a sobriedade de uma lua fria que refletia luz sem calor, mas por dentro, ela sentia-se quebrada, como vidro prestes a rachar.
Jinshi aguardava à entrada do aposento, seu olhar se iluminou ao vê-la, e um sorriso suave se desenhou em seus lábios. Ele não via a palidez, não percebia o peso nos ombros, ou talvez percebesse mas escolhesse admirar o que ela ainda carregava de belo. Para ele, Maomao estava radiante, ainda que envolta em cores frias.
Ele a observou atentamente, como se pudesse enxergar através da frieza que Maomao tentava sustentar.
— Maomao... — começou, com a voz baixa, quase reverente, — você está deslumbrante.
Ela desviou o olhar, os dedos apertando levemente a túnica sobre a barriga.
— Obrigada marido... — disse, a voz trêmula, cheia de tensão contida.
— Mas... azul? — murmurou ele, franzindo o cenho, aproximando-se dela, a mão pousando sobre o ombro. — Você sempre disse que não gostava dessa cor, que parecia fria demais para você... e ainda assim... mesmo assim está maravilhosa.
Maomao sentiu o coração apertar, um calor misturado a medo e vulnerabilidade percorrendo o corpo.
— Apenas um hanfu que Lady Lishu escolheu... — murmurou, fechando os olhos por um instante. Suas palavras carregavam a tentativa de manter a calma, mas a ansiedade da gravidez e do segredo pesava sobre ela como um manto silencioso.
— E ainda assim... — continuou Jinshi, inclinando-se mais próximo, os dedos tocando seu braço com delicadeza — você continua a mulher mais fascinante que já vi. Estranho ou não, não consigo desviar o olhar.
O coração de Maomao disparou.
Por um instante, a dor e a tensão deram lugar a um lampejo de conforto, mas logo o medo retornou: a gestação, o risco, o que poderia acontecer. Ela apenas assentiu, permitindo que ele a admirasse, o toque firme dele transmitindo uma segurança que parecia quase impossível de sentir naquele momento.
Nesse instante, a porta se abriu. Lahan entrou, elegante e com um sorriso discreto, mas a compreensão silenciosa nos olhos denunciava que ele sabia que algo pairava no ar.
— Então minha irmã favorita, está pronta? — perguntou, ligeiramente curvado em respeito.
Maomao respirou fundo, sentindo um frio misturado à ansiedade percorrer a espinha.
— Sim... estou pronta. Obrigada, por vir hoje Lahan. — disse com firmeza, embora cada palavra carregasse o peso de sua preocupação.
Jinshi colocou o braço em torno dela, guiando-a pelos corredores do palácio. Seus passos eram pesados não apenas pelo avanço da gestação, mas pela consciência do segredo que carregava. O olhar das damas, cada detalhe da decoração refletia na mente de Maomao como lembretes silenciosos do risco e da fragilidade que sentia.
Ao chegarem ao salão imperial, a riqueza do espaço a fez prender a respiração. Lanternas vermelhas e douradas pendiam do teto, refletindo-se em porcelanas e vasos, enquanto o aroma do incenso se misturava aos perfumes da corte, o murmúrio contido das princesas e consortes a deixava ainda mais consciente de si mesma, do segredo que guardava e do medo que o mundo não podia conhecer.
Lahan ofereceu o braço à irmã, firme e seguro, uma âncora para que ela não se perdesse nas próprias emoções. Jinshi permanecia ao lado dela, o toque firme transmitindo calor e proteção, lembrando-a de que, apesar do medo, ela não estava sozinha.
Ela se acomodou entre os dois homens, Jinshi à sua direita, Lahan à esquerda. O calor do corpo de Jinshi transmitia segurança; a presença de Lahan era um lembrete silencioso de segredos que apenas ela e ele compartilhavam. O gesto de colocar-se entre eles era quase simbólico: no meio do carinho e da proteção, mas também cercada pelo risco e pelo medo.
Antes que pudesse se acalmar completamente, a porta se abriu novamente, e a princesa Jin-Ye entrou, elegante, mas visivelmente tensa. Os olhos escarlates dela encontraram os de Lahan por um instante antes que ele se afastasse ligeiramente, indicando que ela poderia sentar-se ao lado dele. Jin-Ye assentiu, sentindo um nó se formar no estômago, sabendo que não poderia escolher onde se acomodar.
— Todos parecem tão sérios esta noite... — murmurou Maomao, encostando levemente a cabeça no ombro de Jinshi, sentindo o calor dele contrastar com a frieza do azul que vestia — espero que possamos ter alguns momentos de paz.
— Contanto que eu esteja ao seu lado, nada poderá abalar você. — respondeu ele, a voz baixa, cheia de ternura.
Jiang acomodou-se discretamente ao lado de Jinshi, seu olhar atento observando cada gesto do irmão Gyokuyou e Lihua sentaram-se lado a lado, trocando um olhar rápido, cúmplice. Entre Ah-duo e Lihua, o pequeno Liang ocupou seu lugar, olhando curioso para as taças e pratos à frente, balançando levemente as mãos. Lingli e Yao Jun posicionaram-se próximos ao pai, suas expressões refletindo mistura de formalidade e curiosidade infantil.
Maomao sentou-se erguida, mas a mão pousada sobre a barriga traía sua ansiedade. As damas de companhia haviam ajustado cada detalhe de seu traje, mas nada podia aliviar a tensão apertada em seu peito. O azul do hanfu refletia sua melancolia e o peso que sentia; a joia de jade parecia quase pulsar em sincronia com seu coração acelerado.
Jin-Ye, ao se acomodar ao lado de Lahan, sentiu a tensão dobrar-se dentro de si. Observar Maomao entre os dois homens a deixava vulnerável, lembrando-a de sua própria situação: o segredo de carregar o filho de Lahan e a impossibilidade de dividir isso com ninguém. Ela sorriu levemente, tentando disfarçar a preocupação, mas o aperto no peito era inevitável.
As lanternas vermelhas e douradas lançavam reflexos suaves sobre a longa mesa de madeira, mas para Maomao, todo aquele brilho parecia quase agressivo. O aroma forte do incenso, cuidadosamente escolhido para acalmar os convidados, só aumentava a náusea que pressionava seu estômago.
Ela segurou a xícara de chá amargo com as duas mãos, respirando fundo antes de levar o líquido aos lábios, o sabor era forte, quase medicinal, mas fazia o coração bater um pouco mais devagar, acalmando os nervos que insistiam em traí-la. A respiração era medida, cada movimento controlado; a princesa não podia demonstrar fraqueza diante de Jinshi ou de qualquer outro membro da corte.
Ao lado, Jin-Ye tentava manter a compostura, mas a mão pousada sobre a barriga denunciava seu próprio desconforto. O olhar vermelho e cansado desviava-se constantemente do ambiente, fixando-se nas sombras projetadas pelas lanternas. Em momentos quase imperceptíveis, ela se levantava discretamente, caminhando para o lado da mesa, onde um pequeno espaço reservado permitia que vomitasse sem chamar atenção. Cada retorno era acompanhado de um suspiro silencioso, um esforço consciente para recompor-se diante de todos.
Jin-Ye se acomodou ao lado de Lahan, sentindo o estômago embrulhar a cada novo sopro do incenso queimando nas lanternas. Tentou fixar o olhar nos talheres à sua frente, mas o corpo inteiro denunciava a fraqueza que ela se esforçava para esconder.
— Você não está bem. — disse Lahan, inclinando-se discretamente, a voz baixa e carregada de preocupação genuína. — Parece que vai desmaiar.
— Estou bem... é só o cheiro... o incenso... — murmurou Jin-Ye, a voz trêmula apesar da tentativa de parecer firme. Cada palavra era um esforço consciente para não revelar o segredo que a consumia.
Ele franziu levemente a testa, seu olhar tornando-se intenso, quase dolorido de preocupação.
— Não está bem — repetiu, um pouco mais firme, mas ainda baixo o suficiente para que ninguém mais ouvisse. — Eu consigo ver quando você está escondendo algo e... isso me preocupa profundamente.
Ela desviou o olhar, sentindo um aperto no peito, esse gesto dele parecia atravessar as barreiras que ela ergueu, aproximando-o demais daquilo que queria manter escondido.
— Só... estou cansada, é tudo... — disse, tentando sorrir, mas sem conseguir enganar os olhos atentos de Lahan.
Ele inclinou-se ainda mais próximo, a mão quase tocando o braço dela, hesitando.
— Cansada ou nervosa? — a voz dele era baixa, carregada de cuidado, mas também de frustração silenciosa. — Sei quando alguém está escondendo a verdade, Jin-Ye. Quero ajudar, mas não sei como se você não fala nada.
O coração dela disparou.
E por um instante, a tentação de confiar nele foi esmagadora, mas o medo do que poderia acontecer se revelasse tudo era maior.
— Não há nada para se preocupar... — disse ela, quase num sussurro, inclinando-se para longe apenas o suficiente para criar distância segura.
Lahan suspirou, os olhos escuros fixos nela, refletindo a mistura de frustração e angústia.
— Não gosto de vê-la assim. — ele inclinou a cabeça, observando cada detalhe do rosto dela, o cansaço, a palidez, o modo como ela segurava a mão sobre o estômago. — Gostaria de poder tirar esse peso de você, princesa, se pudesse, faria isso agora mesmo.
Ela sentiu o peito apertar, um nó de culpa e desejo de alívio.
— Eu... eu sei que você... — começou, mas engoliu as palavras, consciente demais do olhar atento dele. Um segredo tão pesado precisava permanecer intacto, por enquanto. — Só... estou tentando aguentar.
Ele desviou os olhos por um instante, quase como se lutasse contra algo dentro de si, e então retomou, suavizando a voz.
— Eu vou ficar aqui, princesa, mesmo que você não diga nada, mesmo que não saiba o que fazer comigo, eu... não vou a lugar algum.
Jin-Ye respirou fundo, absorvendo a intensidade do cuidado dele, e por um instante fechou os olhos, permitindo-se sentir o calor silencioso daquele apoio. O estômago ainda revirava, a náusea não passava, mas havia algo nos olhos de Lahan que a acalmava, algo que lembrava que, mesmo sozinha com seus medos e segredos, não precisava enfrentar tudo sem companhia, mesmo ele sendo o pai do bebê que esperava e insistia em manter-se calada por mera segurança de sua cabeça sobre o corpo.
— Obrigada... por se importar comigo. — sussurrou, quase inaudível, e inclinou a cabeça discretamente, tentando controlar a respiração e a vontade de ceder à fraqueza.
— Sempre irei me importar se for sobre você, principalmente se for sobre sua saúde. — respondeu Lahan, com firmeza e ternura, e, por um instante, tudo o que existia era aquele silêncio carregado de cuidado, preocupação e emoções não ditas, enquanto o palácio continuava seu ritual de formalidade ao redor deles.
O incenso queimando no salão aumentava a própria náusea de Maomao, e ela inclinou-se levemente sobre a xícara, fechando os olhos por um instante. O chá amargo ajudava, mas a sensação de instabilidade e fragilidade permanecia, como uma corrente silenciosa que atravessava seu corpo e sua mente.
Jinshi, ao notar o leve desconforto dela, inclinou-se discretamente.
— Está bem, querida? — murmurou, a voz baixa, suave, tentando não chamar atenção.
Maomao respirou fundo, permitindo que a mão dele repousasse sobre a sua brevemente, transmitindo conforto.
— Apenas... o cheiro do incenso... é forte... mas vou ficar bem - disse, tomando outro gole do chá, os olhos ainda fixos na superfície escura do líquido.
Jin-Ye estava, pálida, mas forçando um sorriso que não alcançava os olhos. Maomao lançou-lhe um olhar rápido, silencioso, uma comunicação tácita entre elas, nenhuma palavra era necessária para reconhecer que ambas compartilhavam medos, enjôos e a vulnerabilidade de carregar vidas tão precocemente, sob o peso da formalidade e expectativa do palácio.
O ambiente, tão grandioso e brilhante, parecia quase hostil naquele momento. Maomao tentou se concentrar no calor que sentia no toque de Jinshi, no perfume discreto dele, na firmeza silenciosa de Lahan à sua esquerda. Pequenos pontos de segurança que permitiam respirar, mesmo que o mundo continuasse pesado e exigente.
— Se quiser, posso pedir mais chá amargo para você até que chegue o banquete. — disse Jinshi, percebendo a mão de Maomao sobre a barriga, a tensão em seu corpo.
Ela assentiu levemente, a voz ainda fraca:
— Obrigada querido, mas não é necessário. — sorriu tensa pousando a mão sobre a testa encarando a mesa de madeira.
Agora era a vez do Imperador se pronunciar, ele sorria alegre de pé observando a família.
— Fico genuinamente feliz em ver todos reunidos aqui. — Yang falou, com a voz carregada de serenidade e orgulho, observando cada gesto de seus filhos com olhos que pareciam reviver a infância deles. - Isso aquece meu coração.
Yang sentiu um aperto suave no peito. Era curioso e irônico perceber como a família evoluíra, aquelas crianças que um dia correram pelo palácio agora ocupavam lugares de responsabilidade e prestígio, e, ainda assim, carregavam a essência de suas infâncias. Maomao e Lahan, recém-integrados à família, agora faziam parte dessa história, e isso o fazia refletir sobre a imprevisibilidade da vida. Como aquilo era possível? Os filhos de Lakan agora ocupando espaço entre sangue e linhagem, e, no fundo, Yang sentia uma pontada de orgulho e aceitação.
Ah-duo, a Imperatriz, mantinha seu sorriso sereno, mas os olhos brilhavam com intensidade. Sabia que, mesmo em meio à harmonia do jantar, havia assuntos que precisavam ser tratados, conversas delicadas, necessárias, que exigiam presença e coragem.
— Sei que este jantar de hoje foi reservado para um momento de lazer e paz, — começou Ah-duo, a voz suave, mas carregada de firmeza — mas acredito que Jiang tem se esquivado da aliança que firmamos com o Clã Shi.
Jiang revirou os olhos, um misto de frustração e incredulidade. Sua mãe parecia ler cada passo de sua vida, cada artifício que ele usava para escapar do inevitável. Casamento, naquela família, era quase sinônimo de prisão. Exceto para Linglin, porque nenhum dos outros filhos do Imperador desejavam se casar, e Jinshi só aceitara se casar com a condição de que seria com a Princesa do Clã Kan, caso contrário ele mesmo se mataria e deixaria a responsabilidade para o irmão gêmeo.
"Que sorte nascer na família imperial, ele disseram." — pensou Jiang, sarcástico consigo mesmo — "Ainda estou procurando essa sorte. Tudo o que vejo são responsabilidades, regras, pressões... cada detalhe planejado sem pedir minha opinião."
— Eu não vou me casar, mãe, muito menos com Lady Loulan! — resmungou, cruzando os braços como uma criança mimada — É mais fácil arranjarmos um marido para Jin-Ye; ela é a primeira filha mulher e deve casar logo.
Gyokuyou soltou uma gargalhada abafada, segurando a mão de Lihua, Jiang parecia nunca ter mudado — nem o gênio forte, nem a franqueza quase infantil em falar o que pensava. Tudo nele era intenso, intrigante e desafiador.
Do outro lado da mesa, Jin-Ye tremia levemente. A palavra "casamento" pendia sobre ela como uma nuvem escura. A possibilidade de se casar naquele momento significava riscos que poderiam custar sua vida. Ela segurava, em segredo, pílulas preparadas por Maomao — uma precaução silenciosa — e ainda assim, nenhuma das duas havia tido coragem de usá-las. A jovem buscava alternativas para sobreviver, mas o tempo não parecia ser um bom aliado.
— Meu filho é inteligentíssimo. — Ah-duo continuou, com aquele sorriso calculado que só mães de família imperial conseguem exibir — Lady Shenmei e a irmã de seu pai foram casadas com o Primeiro Ministro; Lady Loulan não possui parentesco direto conosco. Se sua preocupação for Suirei, não se preocupe, sua prima ficaria feliz com a união e está auxiliando seu pai com toda a papelada do casamento. Mas agira diante de meus olhos vejo um príncipe teimoso, tentando atrasar o inevitável.
Jiang ergueu o dedo, abriu a boca... e nada saiu. Apenas a frustração profunda que o dominava desde criança, Ah-duo e Gyokuyou riram suavemente, como se a inevitabilidade da vida fosse uma peça de teatro.
— Sua mãe está certa, Jiang. — o Imperador falou, firme, mas com um calor nos olhos — Só posso permitir que Jin-Ye se case quando os dois príncipes estiverem devidamente casados. Assim terei tempo e paciência para preparar os casamentos de suas irmãs. Compreende?
Jiang suspirou, derrotado. Casamento político nunca parecia justo, nunca parecia oferecer amor verdadeiro - nem mesmo aproximava do que via entre seus pais.
— Compreendo, pai. — disse, resignado — Mas um casamento político raramente funciona. Amor genuíno é raro, e não busco ser infeliz no casamento só para agradar ao povo... Isso não é vida.
Lady Lihua finalmente interveio, com a serenidade e autoridade de quem conhece o peso das palavras.
— Jiang, desde que nasceu, suas escolhas sempre foram limitadas, é um fato destinado a qualquer bebê real. Um filho homem é filho do reino; uma filha mulher, filha dos pais. — sua voz era suave, mas firme, cheia de empatia e razão. — Ainda sim, você tem mais direitos do que qualquer uma das mulheres presentes nessa família terão um dia. Você pode se apaixonar, e exigir se casar com quem desejar. Suas irmãs, porém não possuem esse mesmo luxo. — Lihua disse com franqueza e precisão necessária para calar Jiang e o fazer repensar um pouco — E lembre-se: nem toda aliança política é fadada ao fracasso, seu irmão é um exemplo claro de Aliança Política que deu certo.
Jinshi e Maomao observavam em silêncio, absorvendo cada palavra, sentindo a gravidade e delicadeza do momento.
— Mas eles são uma exceção, Zuigetsu amava Maomao desde os 14 anos. Ameaçou até se matar se não a tivesse. E olha só... estão casados e felizes. Isso é raro, eles tiveram sorte mãe. — Jiang falou, a voz carregada de ceticismo, mas também de um leve vislumbre de esperança.
Maomao, apesar do enjoo causado pelo incenso, riu com sinceridade. A cena de seu marido dramatizando amor era cômica, mesmo carregada de emoção.
— Você está certo, Jiang. — disse, serenando a voz, carregada de sinceridade — Aceitar que uma aliança política seja necessária nem sempre é fácil. Eu tive sorte de esperar para me casar até agora aos 22 anos, meus pais me proporcionaram conforto e liberdade. Rejeitei inúmeros pretendentes por vontade própria, sabendo que não haveria grandes consequências, um luxo que talvez suas irmãs não tenham, pois um simples "não" de uma princesa imperial, pode sim trazer discórdias para o palácio.
Ela desviou o olhar para Jinshi, que a observava com o amor silencioso, contido, mas profundo.
— Não casei por causa de título que eu poderia receber ou status, mas porque Zui, me enxergou, eu fui vista além do título de Princesa do Clã Kan, ele me viu. Nunca imaginei que poderia ser feliz casada, mas aprendi a deixar o amor florescer lentamente, construindo ele dia após dia.
O peso das palavras de Maomao pairou sobre a mesa, um ensinamento silencioso, carregado de emoção e verdade. Jinshi segurou suas mãos, aproximando-se, e beijou-as com delicadeza.
— Você consegue me surpreender cada vez mais, gatinha venenosa. — sussurrou, próximo ao ouvido dela.
Maomao corou, os olhos azuis brilhando com intensidade, e voltou a encarar a mesa, consciente do amor que sentia, do conforto e do receio que ele trazia simultaneamente.
— Não se ache tanto, Zui. — brincou, observando os servos movimentando-se pelo salão — Não posso deixar que seu ego cresça.
— Não é isso que você acha quando está gemendo pelo meu nome em quatro paredes. — respondeu ele, rápido, beijando a bochecha dela, arrancando um rubor intenso, quase fazendo-a querer se esconder sob a mesa de vergonha.
Os servos começaram a entrar silenciosamente no salão, carregando bandejas cuidadosamente decoradas, cada prato exalando aromas que misturavam especiarias raras e ingredientes frescos. O movimento era preciso, quase coreografado; cada gesto transmitia respeito, mas também o peso de responsabilidade que recaía sobre a família. Ah-duo observava tudo com olhos atentos, certificando-se de que nada escaparia de seu controle, enquanto Yang permanecia sério, como sempre, o semblante firme e inabalável.
Maomao, sentada ao lado de Jinshi, observava cada movimento com atenção meticulosa, mas uma pontada de desconforto percorreu seu estômago. O cheiro intenso do incenso, a mistura de aromas dos pratos e a tensão no ar provocavam náuseas que ela lutava para controlar. Ainda assim, manteve-se firme, mantendo o sorriso suave, enquanto Jinshi lhe passava discretamente a mão por baixo da mesa, um gesto silencioso de conforto e cumplicidade. Havia uma intimidade silenciosa entre eles, uma conexão que não precisava de palavras: o toque era suficiente para transmitir segurança e apoio mútuo.
— Todos os pratos foram preparados e provados, não possuem nenhum tipo de veneno. — anunciou um dos servos, a voz neutra, quase formal.
Por precaução, Maomao inclinou-se discretamente para Jinshi:
— Quero provar a sua comida primeiro. — sussurrou, a voz carregada de cuidado.
Jinshi apenas assentiu, um leve sorriso nos lábios, e permitiu que ela verificasse o prato dele. Após provar, Maomao relaxou um pouco; não havia sinal de veneno, ela respirou fundo e começou a se servir, finalmente sentindo-se segura para comer.
Mas, enquanto mastigava cuidadosamente, algo a alertou: uma sensação estranha percorreu seu corpo, um calor súbito e um sabor metálico que não deveria estar ali. Seus olhos se arregalaram e ela engoliu com dificuldade, a tensão subindo como uma onda inesperada. Observou um dos servos mais jovens do outro lado do salão, que agora tremia e tinha a pele levemente pálida, os olhos arregalados, claramente reagindo a alguma substância desconhecida.
— Lahan! — Maomao puxou discretamente o braço do irmão, o corpo já começando a sentir os efeitos — Preciso de ajuda.
Lahan reagiu imediatamente, seu rosto tenso, mas suas mãos firmes enquanto buscava o frasco preparado para emergências. Ele a conduziu discretamente a uma salinha reservada, longe dos olhos de todos, ajudando-a ingerir o antídoto, enquanto auxiliava ela a vomitar o que estava intoxicando seu corpo.
— Maomao... você está melhor? — perguntou Lahan, a voz carregada de preocupação, segurando-a firmemente pelos ombros.
Ela respirou pesadamente, as mãos trêmulas segurando o braço do irmão em meio as lágrimas que agora desciam teimosas.
— Tenho medo... — sussurrou, os olhos azuis brilhando com as lágrimas. — Eu... estou grávida meu irmão..
Lahan ficou imóvel por um instante, o choque estampado em cada linha de seu rosto. Ele engoliu em seco, tentando processar a revelação, mas a primeira preocupação era imediata e prática: proteger o bebê.
— Não deve acontecer nada com ele, Maomao. — disse finalmente, a voz firme, mas ainda carregada de incredulidade — O antídoto foi tomado a tempo. Está tudo bem agora, o bebê está seguro, pode ficar tranquila.
Maomao sentiu uma onda de alívio misturada com medo percorrer todo o corpo. Segurou Lahan com força, respirando com dificuldade, envolvendo o irmão um abraço demorado, mas consciente da proteção que ele lhe oferecia. O coração batia acelerado, não apenas pelo envenenamento, mas pelo peso de carregar uma nova vida no ventre, pelo medo de fracassar, de perder tudo. E ainda assim, havia gratidão — por estar viva, por ter o antídoto a tempo, por ter alguém ao seu lado que não a deixaria sucumbir ao medo.
Enquanto o antídoto começava a fazer efeito, a intensidade da cena diminuiu, mas o silêncio da salinha era pesado. A batida de coração lembrava Maomao de que a vida era frágil, e que, mesmo no conforto da família e da proteção do irmão, perigos podiam surgir de qualquer lugar. E ainda assim, havia amor, havia proteção, havia esperança — uma mistura delicada e poderosa que ela sabia que precisaria cultivar a cada momento dali em diante.
Maomao sentia um turbilhão de emoções que parecia impossível de organizar. Alívio e terror se misturavam dentro dela como correntes violentas em um rio. Por um lado, sabia que estava viva, que o antídoto havia funcionado e que o bebê, ainda tão pequeno e indefeso, estava a salvo — mas isso não diminuía o medo que a dominava.
Ela nunca se sentira tão vulnerável.
A ideia de perder aquela vida que crescia dentro dela era uma dor que parecia dilacerar o peito antes mesmo de qualquer perda real acontecer. E, ao mesmo tempo, a euforia de perceber que a criança sobrevivera, que ainda havia esperança, era quase avassaladora. O coração disparado dificultava que Maomao raciocinasse direito; cada respiração vinha carregada de um alívio intenso e, ao mesmo tempo, de um medo paralisante.
Por um instante, sentiu a própria mortalidade como nunca antes, talvez ali, naquele momento de fraqueza e fragilidade, ela realmente compreendesse o que significava ser mãe. Mesmo com apenas um serzinho no ventre, com a vida ainda tão incerta e delicada, Maomao percebeu que não havia garantias. A proteção que podia oferecer àquele pequeno ser era limitada; qualquer deslize, qualquer erro, poderia custar a vida que ainda não podia ver.
Ela fechou os olhos, segurando firme o braço de Lahan, tentando ancorar-se. As lágrimas ameaçavam escapar, e ela se permitiu senti-las, não como fraqueza, mas como reconhecimento da magnitude daquilo que carregava. O medo e a euforia se entrelaçavam, formando um sentimento quase físico, que lhe dizia que, dali em diante, sua vida jamais seria a mesma. Ali, naquele instante, Maomao se tornou consciente do peso, da responsabilidade e da intensidade de ser mãe — e, paradoxalmente, isso a enchia de força, mesmo enquanto o terror ainda a consumia.
Ela abriu os olhos, encontrando o rosto preocupado de Lahan, e sorriu tremulamente. Aquele sorriso carregava medo, amor e determinação, uma promessa silenciosa de proteger aquele pequeno ser, custasse o que custasse.
[. . .]
O silêncio se espalhou pelo salão como uma onda súbita quando Maomao apareceu, o hanfu azulado, antes impecável, agora estava manchado de sangue, e cada passo trêmulo que dava fazia os olhos de todos se arregalarem. Os pratos ainda sobre a mesa tremiam levemente, os servos se entreolhando, apreensivos, como se temessem se aproximar.
— Maomao! — exclamou Ah-duo, levantando-se de imediato, a voz misturando choque e pânico.
— O que aconteceu? — Yang completou, cada músculo tenso, o olhar fixo na filha adotiva, incapaz de se mover.
Jiang permaneceu imóvel, os punhos cerrados, incapaz de falar, o peso da responsabilidade real esmagando-o. Jin-Ye sentiu um frio percorrer-lhe a espinha, os olhos arregalados, enquanto o sangue manchava a borda do hanfu da amiga. Gyokuyou soltou um grito abafado, aproximando-se instintivamente, mas mantendo-se à distância respeitosa.
Maomao mal conseguia respirar.
A dor pulsava dentro dela, como se cada batida do coração empurrasse contra a vida dentro de seu ventre. Respirou fundo, tentando não desmoronar diante de todos, mas a urgência falou mais alto que qualquer etiqueta ou protocolo.
— Jinshi... — murmurou, a voz quase inaudível, tremendo — Preciso que... que deixem apenas Jin-Ye e Lahan comigo. No quarto... eu não... não quero que você esteja por perto agora.
Jinshi arregalou os olhos, paralisado por um segundo, o coração apertando com a intensidade do pedido, mas, vendo a determinação nos olhos violetas de Maomao e o sofrimento silencioso em seu corpo, assentiu rapidamente.
— Como quiser, meu bem... — engoliu em seco, controlando a voz — Eu confio em você.
Maomao apoiou-se no braço de Lahan, cada passo em direção ao Pavilhão da Lua um esforço tremendo, com Jin-Ye ao lado, oferecendo equilíbrio e apoio silencioso. Cada olhar do salão seguia o trio em silêncio, o medo estampado em cada expressão. Ah-duo segurava o rosto em ambas as mãos, incapaz de se mover; Yang tinha os punhos cerrados, mas os olhos inchados de preocupação; Jiang e Linglin respiravam pesadamente, sentindo o peso do que poderia acontecer; todos os servos olhavam com ansiedade, cientes da gravidade do momento.
No caminho, cada passo de Maomao fazia a dor percorrer seu corpo como lâminas afiadas. Ela se curvava levemente, colocando a mão sobre a barriga, sentindo os golpes silenciosos da perda iminente, o sangue em seu hanfu manchava o chão como lembrança brutal de que cada segundo contava.
Ao chegarem ao quarto, ela se deixou cair sobre a cama, respirando com dificuldade, a cabeça baixa, o corpo contorcendo-se com cada onda de dor.
— Fiquem comigo... — pediu, a voz trêmula — Apenas vocês dois. Não quero ninguém mais agora.
Jin-Ye aproximou-se imediatamente, segurando seus ombros e oferecendo apoio firme, enquanto Lahan se inclinava ao lado, segurando sua mão com força. O silêncio do quarto era pesado, mas carregado de cuidado. Nenhum murmúrio desnecessário, apenas presença silenciosa e atenção total.
Maomao chorava, soluçando entre a dor física e o desespero emocional.
— Eu... eu perdi o bebê... — sussurrou, desesperada, a voz quebrando — Eu tenho certeza que o perdi...
Jin-Ye envolveu-a em um abraço apertado, sentindo a fragilidade da amiga, enquanto Lahan pressionava suas mãos sobre as dela, transmitindo firmeza e proteção. O tempo parecia suspenso, cada segundo uma eternidade até que o médico finalmente chegasse.
Maomao se aninhou no colo da amiga, chorando com desespero, cada lágrima um misto de alívio por ainda estar viva e terror pela perda iminente. Lahan permanecia ao lado, firme, controlando a ansiedade e segurando-a com cuidado, como se pudesse, sozinho, proteger o mundo dentro do ventre que Maomao acabara de perder.
[. . .]
O silêncio do quarto foi finalmente quebrado pelo som de passos apressados nos corredores do Pavilhão da Lua. O médico chegou, a expressão grave, mas controlada. Ao entrar, a presença dele trouxe uma mistura de alívio e ansiedade para Maomao, que ainda se curvava sobre o colo de Jin-Ye, respirando com dificuldade.
— Onde está a paciente? — perguntou rapidamente, avaliando com os olhos o estado da jovem, notando as manchas de sangue no hanfu e o corpo ainda trêmulo.
Lahan, firme, deu um passo à frente:
— Aqui, senhor, ela acabou de sofrer uma reação ao veneno, mas já tomou o antídoto. — sua voz carregava autoridade, mas também preocupação.
O médico aproximou-se, analisando cada detalhe com precisão clínica.
— Excelente. Primeiramente, vamos estabilizá-la, limpar os ferimentos e garantir que não haja complicações adicionais.
Maomao engoliu em seco, as lágrimas ainda rolando, e se apertou contra Jin-Ye.
— Por favor... só vocês dois... — murmurou, a voz trêmula. — Preciso de vocês agora.
Jin-Ye segurou firme seu ombro, e Lahan continuou ao lado, a mão apertando a dela em apoio silencioso. O médico começou rapidamente o trabalho: limpou cuidadosamente o hanfu e as áreas manchadas, aplicando remédios para conter a hemorragia e aliviar a dor. Cada movimento era meticuloso, mas inevitavelmente doloroso, fazendo Maomao estremecer e gemer baixinho.
Foi nesse momento que Jinshi entrou no quarto, a respiração curta, o olhar correndo sobre a cena com pânico contido.
— O que aconteceu? — perguntou, a voz tensa, dirigindo-se imediatamente ao médico.
Maomao, ainda deitada e exausta, levantou apenas os olhos, falando com dificuldade:
— Jinshi... confie no médico... não quero que fique aqui agora. — a determinação em seu olhar fez o príncipe hesitar, mas ele permaneceu parado, tentando controlar a ansiedade.
O médico se inclinou para ele, mantendo a voz calma, mas firme:
— Sua esposa teve uma breve hemorragia devido ao veneno, mas recebeu o antídoto a tempo. — ele fez uma pausa, avaliando o semblante tenso de Jinshi — Ela vai se recuperar completamente em alguns dias.
O rosto de Jinshi relaxou ligeiramente, o alívio misturado com culpa e preocupação estampado na expressão. Ele assentiu, sem conseguir falar, apenas observando Maomao, o coração apertado.
Quando o médico finalmente ficou sozinho com Maomao, Lahan e Jin-Ye, mudou o foco para o cuidado direto da jovem. Com mãos firmes, porém delicadas, começou a limpar o corpo de Maomao e aplicar os medicamentos necessários para conter a hemorragia, explicando cada movimento silenciosamente.
— Precisamos ter certeza de que o útero está limpo e que não há riscos adicionais. — disse o médico, com a voz controlada, mas carregada de seriedade. — Preciso que respire fundo e mantenha-se firme.
Maomao apertou os olhos, sentindo a dor percorrer seu corpo, mas confiando em Lahan e Jin-Ye. O médico trabalhou com precisão, e foi impossível para todos não perceberem o momento delicado em que ele avaliava o que restava do bebê.
— Infelizmente... — começou, a voz firme, mas gentil — Vossa Alteza, sinto muito... o bebê não sobreviveu.
As palavras caíram pesadas no quarto.
Maomao gemeu baixinho, o corpo estremecendo, lágrimas escorrendo silenciosas. Lahan segurou suas mãos com força, transmitindo força e proteção, enquanto Jin-Ye envolvia-a com cuidado, oferecendo um colo seguro para que ela pudesse chorar e soltar a dor que parecia esmagar seu peito.
Maomao contorceu-se, soluçando de alívio e terror misturados, cada respiração uma lembrança do que perdera e do que ainda tinha: a própria vida. Guardando a dor para si, mas deixando escapar cada emoção no abraço da amiga, ela murmurava entre lágrimas:
— Eu perdi... perdi o bebê...
O silêncio do quarto se encheu de cuidado e presença. Lahan continuava firme ao lado, as mãos quentes segurando-a, os olhos fixos, determinados a não deixar que ela desmoronasse completamente. Jin-Ye permanecia próxima, o corpo oferecendo suporte e calor, absorvendo a dor da amiga, compartilhando o peso emocional daquele momento.
O médico finalizou a medicação, garantindo que Maomao estivesse estabilizada, e deixou claro que precisava de repouso absoluto. O quarto ficou envolto em um silêncio pesado, carregado de pesar, mas também de amor e proteção - um momento em que a fragilidade e a força de Maomao coexistiam de forma dolorosa, mas necessária.
Jin-Ye ficou parada, imóvel, quase sem respirar, enquanto observava Maomao se contorcendo de dor sobre o colo de Lahan. Cada soluço da amiga atravessava seu peito como lâminas afiadas, e um aperto intenso de impotência tomou conta dela. Era como se a dor de Maomao fosse uma extensão da própria, cada espasmo, cada lágrima, reverberando dentro de Jin-Ye de maneira quase insuportável.
Ela sentiu algo profundo e doloroso se firmar dentro de si: nunca, de jeito nenhum, poderia abortar. Não importava quão complicada a situação se tornasse; a perspectiva de perder uma vida que carregasse dentro de si era impensável. A dor de Maomao se cristalizava em sua mente como um alerta silencioso, uma verdade que não precisava de palavras. A amiga sofria em cada fibra do corpo, e Jin-Ye sabia que jamais seria capaz de suportar algo parecido.
Enquanto observava, percebeu Lahan ao lado, calmo e firme, segurando as mãos de Maomao, ajudando-a a respirar, e coordenando com cuidado as damas de companhia para trocarem a jovem, ainda ensanguentada e abalada, em lençóis limpos. Cada gesto dele era meticuloso, quase protetor, transmitindo uma força silenciosa e segura que contrastava com a fragilidade de Maomao. Jin-Ye sentiu uma pontada de alívio e, ao mesmo tempo, um peso enorme sobre o próprio coração, percebendo o quanto a amiga dependia daquele cuidado para não se perder completamente.
O corpo de Jin-Ye tremia, mas ela se forçou a se afastar levemente, tentando dar espaço, enquanto caminhava para fora do quarto. A visão do corredor parecia desfocada, a mente em choque, e cada passo era pesado, como se carregasse junto a dor e o desespero de Maomao.
Quando alcançou a sala, seus olhos se fixaram em Jinshi sentado no divã, a postura tensa, o olhar ansioso e preocupado, os dedos entrelaçados, traçando linhas invisíveis no tecido do assento. Ele nem tinha percebido a chegada de Jin-Ye ainda; seu foco estava completamente voltado para a ausência de Maomao, como se pudesse sentir o peso do que havia acontecido apenas pelo silêncio que agora pairava na casa.
Jin-Ye parou, os pensamentos ainda girando, o choque da cena do quarto ainda queimando em sua mente.
Ela respirou fundo, tentando processar tudo ao mesmo tempo: a perda da criança, a força de Maomao ao suportar a dor, o cuidado silencioso de Lahan, e a preocupação genuína de Jinshi, que ainda não sabia a extensão do sofrimento. O coração de Jin-Ye se apertou, e ela percebeu, com clareza cruel, que aqueles momentos não seriam facilmente esquecidos.
— Jinshi... — disse ela com suavidade, tentando quebrar o gelo pesado que o cercava. — Eu sei que você está preocupado, mas ela já está melhor agora e fora de perigo.
Ele ergueu os olhos, a respiração irregular, o peito subindo e descendo rapidamente, e murmurou quase sem controle:
— Eu... eu nunca levei um susto assim na vida. Ela... — parou, engolindo a emoção, a voz falhando. — Eu pensei que poderia perdê-la.
Jin-Ye se aproximou, colocando uma mão leve em seu ombro, transmitindo calma e firmeza.
— Também tive esse medo quando ela pediu que eu ficasse ao lado dela com Lahan. — suspirou pesado — Você pode ir até ela agora, Jinshi, mas escute bem... — fez uma pausa, olhando-o nos olhos, firme — não faça perguntas, apenas fique ao lado dela. Sua presença já será suficiente.
Ele engoliu em seco, os olhos arregalados, absorvendo cada palavra, o alívio e a apreensão se misturando em seu peito.
— Apenas... estar lá... — repetiu, quase como se estivesse aprendendo a respirar novamente.
— Exatamente. — Jin-Ye sorriu levemente, mas com a gravidade de quem sabia que aquele momento exigia cuidado máximo. — Apenas isso, ela precisa de você, não de perguntas.
Jinshi assentiu, respirando fundo para acalmar o próprio desespero, e a seguia em direção ao quarto. Lahan, que havia ajudado Maomao com firmeza e delicadeza, saiu discretamente, deixando-os a sós. Ele parou ao lado de Jin-Ye, observando Jinshi entrar, e comentou em um tom baixo, quase confidencial:
— Eu... não suportaria a ideia de perder um filho, mesmo que ainda esteja longe de ter um, só de observar a minha irmã nesse estado, me fez por um momento pensar se a minha esposa agiria como a Maomao, em ocultar algo tão importante do marido. — disse, os olhos fixos na porta do quarto, refletindo uma dor silenciosa.
Jin-Ye assentiu, compreendendo o peso de suas palavras.
— Nem eu... É capaz que ela decida esconder pelas próprias razões internas, acredito que se sua esposa fizesse isso, ela teria bons motivos assim como Maomao. — respondeu, olhando de relance para o irmão, sabendo que ele não podia imaginar ainda o turbilhão que Maomao estava enfrentando. — Mas agora ele precisa apenas estar presente, Lahan. Não há nada que possamos fazer além de ampará-la.
Enquanto isso, dentro do quarto, Jinshi entrou devagar, os olhos imediatamente encontrando Maomao, ainda abatida, pálida, mas viva. A presença silenciosa dele ao lado da esposa parecia preencher o espaço com proteção e cuidado, como se o simples fato de estar ali pudesse reduzir, ainda que pouco, a intensidade da dor que ela carregava.
Maomao, ao sentir o peso de sua presença, fechou os olhos levemente, sentindo-se mais segura, mesmo entre lágrimas e soluços. Ela não precisava dizer nada; ele não precisava falar. O silêncio compartilhado transformou-se em um abraço silencioso da alma, onde cada respiração dele transmitia apoio, amor e promessa de proteção.
Lahan, ao lado de Jin-Ye, apenas observava, a expressão grave, consciente de que aquele momento definiria a força e a vulnerabilidade que cada um deles carregaria dali em diante. O cuidado, a presença e a empatia eram agora o que sustentava Maomao, e, silenciosamente, todos ali compreendiam que, por mais que a dor fosse intensa, não estavam sozinhos.
Jinshi permaneceu próximo à cama, os ombros tensos, o olhar fixo nela, mas sem tocar a mão de Maomao. Havia uma distância tênue entre eles, não física, mas carregada de cautela, como se ambos temessem se expor demais.
— Você... — começou ele, a voz baixa e hesitante, — não precisa falar nada, mas... só quero que saiba que estou aqui.
Maomao desviou o olhar, o peito apertado.
— Eu sei... — disse finalmente, com a voz quase sussurrada. — Mas... estar aqui... olhando para você, me faz sentir que talvez eu devesse conseguir lidar sozinha. Que talvez... não devesse depender tanto.
Ele franziu levemente a testa, confuso e preocupado.
— Mas você não precisa, tentar ser forte o tempo todo. — ele respirou fundo, tentando encontrar as palavras certas. — Não precisa provar nada para mim. Não precisa fingir força. Só... só permita que eu esteja aqui. Não quero resolver nada, nem consertar nada, só... ficar ao seu lado.
Ela desviou o olhar novamente, mordendo o lábio, pensativa.
— Eu sei que você quer ajudar... mas às vezes tenho medo de me apoiar demais em você. Medo de que, se algo acontecer, você não consiga lidar também. — um silêncio pairou entre eles, pesado e denso. — E se eu fizer você sofrer...?
Jinshi baixou o olhar, sentindo o peso de suas próprias emoções.
— Maomao... eu... não posso prometer que não vou sofrer em te ver em um estado como esse, mas posso prometer que não vou me afastar. Não vou fugir do que sentimos... nem mesmo do que dói. — ele respirou fundo, tentando organizar a confusão que sentia. — Estar aqui é suficiente, mesmo se não houver palavras. Mesmo se não houver solução.
Ela finalmente o encarou, os olhos ainda carregados de dúvida, mas mais firmes.
— Talvez seja isso... talvez eu precise aceitar que não posso controlar tudo. Que nem tudo precisa ser consertado... só precisa ser sentido. E você estar aqui... faz isso mais fácil. — um pequeno suspiro escapou, carregado de alívio e vulnerabilidade.
Ele assentiu, sem sorrir, mas com os olhos cheios de intensidade.
— Então ficaremos assim. — disse, firme, mas sem pressão. — Sem palavras, sem promessas impossíveis. Apenas... aqui.
Maomao relaxou ligeiramente, sentindo o peso da presença dele, que não exigia nada dela além de ser, simplesmente, ela mesma. Por um instante, ambos permaneceram em silêncio, compartilhando o espaço sem pressa, como se apenas o fato de estarem ali fosse suficiente para enfrentar qualquer dor que o mundo pudesse lançar sobre eles.
Chapter 20: Vozes no silêncio
Notes:
Escrevi na faculdade e terminei de revisar agora, 00h48
Espero que gostem, acredito que cada personagem precisa desse momento e dessas revelações no capítulo.
Boa leitura, estarei acompanhando os comentários de vocês :)))
Chapter Text
Os corredores do palácio já não tinham o mesmo rumor do dia anterior.
O envenenamento da cPrincesa da Lua corria em sussurros, como veneno diluído na boca de cada servo. Havia medo, mas também especulações: quem ousaria atentar contra a princesa? Quem teria tanto a ganhar com sua queda?
Jin-Ye, em sua ala, refletia em silêncio, o olhar caía sobre as próprias mãos, pousadas sobre o colo, e a mente vagueava para além das paredes de jade. O episódio de Maomao a havia marcado mais do que gostaria de admitir, em meio ao choque, um pensamento retornava com força: Lahan. O irmão que correu desesperado, que segurou Maomao quando o veneno roubava-lhe as forças, ele a ajudou sem hesitar.
"Se ele é assim com Maomao, como seria com nosso filho?" — pensou, inconscientemente levando a mão ao ventre ainda liso. Um arrepio a percorreu. Se tivesse coragem de falar… se pudesse revelar o que escondia… talvez encontrasse nele um apoio maior do que imaginava, mas o medo a acorrentava, e a certeza ainda lhe escapava.
Enquanto Jin-Ye se via perdida por entre seus pensamentos, Maomao repousava em sua cama no Pavilhão da Lua, o rosto pálido, mas o olhar firme. As lágrimas já não corriam livres, mas estavam ali, contidas, escondidas sob a máscara de compostura que ela sempre vestira. Mesmo frágil, não abandonava sua essência.
— Jinshi… — chamou, a voz baixa, mas firme. Ele imediatamente se aproximou, ajoelhando-se ao lado da cama, como se a cada palavra dela fosse um chamado maior que qualquer ordem imperial.
— Diga, meu amor...
Ela respirou fundo, desviando o olhar por um instante, antes de encará-lo novamente.
— Sei que pode soar que não sei viver longe dos cuidados de meus pais, mas poderia chamar minha mãe? Eu preciso dela comigo nesse momento...
O pedido soava íntimo, quase desesperado, Jinshi, no entanto, não questionou, apenas inclinou a cabeça.
— Escreverei uma carta agora mesmo a Lady Kan. — Jinshi sorriu fraco beijando as mãos da esposa com carinho — Se é isso que tanto deseja, é isso que terá.
A luz suave da lamparina filtrava-se pelas cortinas de seda azulada, do escritório, lançando um brilho pálido sobre a mesa de madeira. O silêncio era apenas cortado pelo som ritmado do pincel roçando contra o papel, Jinshi estava sentado diante da mesa baixa, o corpo ainda rígido de preocupação, escrevendo com a caligrafia firme que aprendera desde a infância.
"Venho através dessa carta cumprir um pedido de minha esposa, num momento Maomao solicita sua presença com urgência ao palácio. Ela passou por uma grave situação de envenenamento, encontra-se debilitada por conta da hemorragia interna, mas já está fora de perigo.
Ela súplica pelo seu colo e seu carinho, mesmo que tenha a atenção de minhas mães, irmãs e de suas damas de companhia, creio que nenhuma delas conseguirá substituir o seu lugar no coração de Maomao, ela precisa da senhora nesse momento delicado.
Não é um pedido da princesa, mas de uma filha.
Atenciosamente, Ka Zuigetsu."
As mãos de Jinshi tremeram levemente ao assinar. Nunca havia escrito algo tão íntimo para alguém fora da corte, mas sabia que era necessário. Selou o envelope com cera vermelha com o símbolo da família imperial, entregando-o a um mensageiro com a ordem de partir imediatamente.
Quando voltou para o quarto, encontrou Maomao recostada entre almofadas, os olhos semicerrados, ainda cansados, ao vê-lo, ergueu um sorriso frágil.
— Já escreveu? — murmurou, a voz quase se perdendo.
— Sim. — ele se ajoelhou ao lado da cama, mostrando-lhe o selo. — Acredito que sua mãe virá logo. Eu prometo.
Maomao baixou os olhos, as lágrimas ameaçando romper a máscara de serenidade.
— Eu não queria demonstrar tanta fraqueza… mas eu… só queria sentir o colo dela, sabe?
Claro que ele entendia, ninguém seria capaz de substituir o colo de uma mãe, por mais que tivesse todo conforto e atenção do mundo, uma verdadeira mãe jamais seria substituída e o amor que Maomao nutria pela mãe era um vínculo que jamais seria quebrado.
Jinshi estendeu a mão, acariciando-lhe os cabelos desalinhados.
— Não é fraqueza, Maomao. Até as flores mais fortes se inclinam ao vento. — seus olhos estavam analisando cada detalhe da esposa — Você sempre cuidou de todos desde que chegou ao palácio… agora é hora de você deixar que nós cuidemos de você.
Ela não respondeu, apenas fechou os olhos, permitindo-se apoiar contra o ombro dele.
Logo, Chue entrou discretamente trazendo uma tigela de mingau fumegante, ao lado dela, Lady Lishu, sempre doce, carregava toalhas mornas e perfumes suaves com o pequeno Guang dormindo amarrado por alguns panos em suas costas.
— Alteza, a refeição está pronta. — disse Chue, curvando-se. — Se conseguir comer um pouco, ganhará forças.
Jinshi pegou a tigela, sentando-se na beira da cama, ele mesmo levou a colher até os lábios da esposa.
— Só um pouco, minha gatinha venenosa… — murmurou, o tom mais doce que ousava em público. — Preciso que fique forte.
Maomao deixou escapar um suspiro, mas abriu os lábios, aceitando o mingau. As mãos de Jinshi tremiam, mas ele manteve a postura firme, como se cada colher fosse um pacto silencioso de cuidado.
Lady Lishu aproximou-se, sorrindo levemente.
— Se desejar, Alteza, posso preparar o banho para a princesa. Água morna, flores relaxantes… ajudará o corpo a se recuperar mais rapidamente.
— Obrigada, Lady Lishu. — respondeu Jinshi com formalidade, mas os olhos ainda presos em Maomao. — Podem o preparar por gentileza.
E assim foi: enquanto Chue e Lishu a auxiliavam com delicadeza, Jinshi permaneceu próximo, atento a cada gesto, como se não conseguisse soltar o fio que o mantinha ligado à esposa.
[. . .]
Na manhã seguinte, o silêncio do Pavilhão foi rompido pelo séquito feminino. A Imperatriz Ah-duo, entrou à frente com a imponência de quem carregava não apenas a coroa, mas o coração da família. Ao lado, Lady Lihua, serena e maternal, com os olhos marejados de ternura, Lady Gyokuyou, sempre efusiva, trazia um buquê de flores frescas, tentando colorir a atmosfera, enquanto, a princesa Lingli, tímida surgia por trás, mas determinada a estar presente.
Todas se aproximaram da cama, em reverência à jovem que, mesmo debilitada, era agora um elo vital da família imperial.
— Viemos fazer um pouco de companhia, minha filha. — disse Ah-duo, pousando a mão sobre a dela. — O palácio pode ser cruel, mas jamais permitiria que enfrentasse isso sozinha.
Maomao respirou fundo, a emoção lhe embargando a voz.
— Majestade… senhoras… não sei se mereço tanto zelo, mas agradeço humildemente por terem tirado um tempo do seu dia para me visitar. — Maomao sorriu conversando com dificuldade.
— Merece sim. — retrucou Lihua, firme. — Você é esposa de nosso menino, logo nossa filha também e isso te torna parte de nós.
Gyokuyou se inclinou, acariciando levemente a mão dela.
— Não ouse duvidar, Maomao, seu sorriso e seu jeitinho intrigante trouxe vida a esta corte… e nós queremos vê-lo novamente.
Lingli, hesitante por um instante, permitiu que a suavidade de sua voz se espalhasse pelo quarto:
— Se precisar… pode me chamar a qualquer hora. Às vezes, ter alguém para conversar é o melhor remédio.
O olhar de Maomao se encheu de um brilho contido, quase infantil, como se a simples promessa carregasse consigo um bálsamo invisível. Ela se recostou na cama, sentindo o peso do palácio, das intrigas e das dores cotidianas, mas, ao mesmo tempo, a presença de Lingli e das outras mulheres ao seu lado criava um círculo invisível de cuidado e proteção. Era como se, por alguns instantes, o mundo lá fora não existisse — existia apenas aquele espaço íntimo, compartilhado, seguro.
O perfume suave das flores que Lingli trazia consigo misturava-se com o ar quente do quarto, tornando cada respiração um lembrete silencioso de que nem toda solidão precisava ser enfrentada sozinha. Maomao fechou os olhos, sentindo a mão amiga sobre o braço, firme, mas delicada, como se dissesse: “Você não precisa carregar tudo sozinha.”
Do outro lado do quarto, Jinshi observava em silêncio, uma ponta de emoção comprimida no peito. Pela primeira vez, ele compreendia algo que antes passara despercebido: o amor de sua esposa não pertencia apenas a ele. Havia uma rede de afeto que a sustentava — laços femininos discretos, mas indestrutíveis, que a fortaleciam nos momentos em que ele, sozinho, não conseguiria. Era um amor compartilhado, invisível e silencioso, e, de algum modo, a contemplação dessa verdade fez seu coração se apertar, misto de respeito e reverência.
Ele não disse nada, não era necessário. Olhar, sentir e compreender já bastava.
[. . .]
O vento frio da tarde sussurrava pelo Pavilhão da Lua, fazendo as cortinas dançarem suavemente, como se compartilhassem do mesmo nervosismo que pairava no ar, FengXian atravessou os portões com passos firmes, mas os olhos denunciavam o turbilhão interno: dor, preocupação e lágrimas que ameaçavam escapar a qualquer instante. Jinshi a aguardava no corredor, a postura impecável, a cabeça levemente abaixada em respeito. Protocolos sugeriam que fosse ela a curvar-se diante do príncipe, mas ele a via com uma reverência silenciosa que ia além de qualquer regra: era respeito genuíno, que atravessava títulos e tradições.
— Ela está no quarto… — a voz de Jinshi falhou por um instante, carregada de emoção contida. — Creio que sua companhia a tranquilizará mais do que a minha. Fique à vontade, Lady Kan.
FengXian apenas tocou o ombro do filho em um gesto breve, quase imperceptível, e seguiu pelo corredor com passos decididos, mas a quietude de sua expressão escondia o coração que batia acelerado. Não falou nada, seus movimentos dela pareciam carregar peso, cada respiração era medida. Ao atravessar o limiar do quarto, a porta se fechou atrás dela com um leve clique, e Jinshi permaneceu imóvel, como se o silêncio do espaço contivesse mais do que a ausência de som: continha expectativa, preocupação e reverência.
No quarto, Maomao estava deitada, o corpo parcialmente encolhido, o olhar perdido no vazio, mas, ao perceber a mãe, algo dentro dela se rompeu. Um fio invisível que mantinha as emoções contidas se partiu, e as lágrimas escorreram livremente, sem aviso, sem pudor.
— Mamãe… — a voz saiu trêmula, quase sussurrada, fina e frágil, carregada de toda a dor acumulada.
FengXian correu até ela, sem pressa, mas com determinação, e deitou-se ao lado da filha, envolveu Maomao com os braços como fazia quando ela era pequena, após pesadelos que pareciam mais reais do que a própria noite. O cheiro familiar, a textura macia dos cabelos desgrenhados, a suavidade da pele ainda quente do choro — tudo se tornou um ponto de ancoragem para Maomao, um lembrete de que, mesmo nos dias mais escuros, havia alguém que a seguraria.
— Shhh… estou aqui… — murmurou FengXian, a voz baixa e firme ao mesmo tempo, acariciando delicadamente os cabelos da filha. — Está tudo bem, minha menina.
Maomao se encolheu mais, buscando a proximidade, sentindo o calor e a segurança que apenas a mãe podia oferecer. Lá fora, o vento continuava a dançar com as cortinas, mas dentro do quarto havia apenas silêncio, respirações entrelaçadas e o suave bater de corações que se reconectavam, lentamente curando pequenas fissuras da alma.
Maomao chorava convulsivamente, os soluços rasgando o silêncio do quarto como pequenos gritos contidos que precisavam escapar. Cada lágrima que caía parecia carregar junto toda a culpa e o medo que ela tentava esconder.
— Eu não queria… não queria ter o bebê… — a confissão saiu como um sussurro trêmulo, quase sufocado. — Mas… mas não assim… não preparada… não dessa forma.
FengXian apertou-a mais contra o peito, envolvendo-a em um abraço firme e protetor, como se pudesse absorver cada pedaço da dor da filha. Sentiu a vibração da aflição de Maomao atravessando o corpo dela, cada soluço era um eco no seu próprio coração.
— Oh, minha menina… — FengXian murmurou, a voz embargada. — Ninguém nunca está preparada para uma perda assim, Maomao. Mas nada disso faz de você menos digna… menos amada. Cada vida que sentimos, mesmo que breve, deixa uma marca. E eu vou carregar essa dor junto com você. Sempre.
Maomao apertou os braços em torno da mãe, escondendo o rosto na curva do pescoço, e soltou mais um soluço. O cheiro familiar de FengXian, a textura macia de seu cabelo e o calor do corpo junto ao seu deram-lhe a sensação de voltar no tempo, aos dias em que ela era apenas uma menina pequena, protegida de todos os perigos do mundo.
— Mamãe… — sussurrou Maomao, quase inaudível, a voz trêmula. — Eu me sinto tão… tão fraca…
— Não é fraqueza, minha filha. — respondeu FengXian, acariciando os cabelos desgrenhados da menina. — Você é apenas humana. É natural sentir tudo isso e sentir esse caos dentro de si mesma, não te torna fraca. Te torna real.
Maomao levantou os olhos, ainda marejados, e encontrou o olhar firme e ternamente compreensivo da mãe. Um pequeno sorriso tremulou nos lábios de FengXian, tentando iluminar a escuridão do coração da filha.
— Você vai me perdoar por isso? — perguntou Maomao, com a voz baixa, quase engolida pelos soluços. — Por não estar pronta… por não conseguir segurar esse bebê…
FengXian segurou o rosto da filha com delicadeza, limpando as lágrimas com a ponta dos dedos.
— Oh, minha menina… nunca há nada que precise ser perdoado. Não há culpa onde há amor, e você sempre amou. Sempre, só se negou acreditar na sua capacidade de amar esse serzinho. — sua voz era firme, mas carregada de uma ternura que parecia envolver o quarto inteiro. — Cada lágrima sua não é fraqueza, é prova de que seu coração é grande demais para não sentir, se você o perdeu é porque realmente não era o momento de você ser mãe e não tem nada de errado nisso.
Maomao se encolheu ainda mais, permitindo-se o luxo de ser apenas filha, apenas a menina frágil naquele abraço seguro. E por alguns instantes, o mundo lá fora desapareceu. Não havia intrigas, não havia expectativas do palácio, nem julgamentos, havia apenas o calor do colo da mãe, o ritmo das respirações entrelaçadas e a sensação de que, mesmo em meio à dor mais profunda, ela não estava sozinha.
— Obrigada, mamãe… — sussurrou Maomao, quase inaudível. — Por não me deixar sozinha…
— Nunca te deixarei, minha pequena. — respondeu FengXian, beijando a testa da filha. — Nunca enquanto eu estiver aqui, você nunca estará sozinha, sempre irei correr para socorrer você meu amor.
[. . .]
Do lado de fora, Jinshi caminhava apressado pelos corredores do palácio, o peito apertado e a respiração irregular. Cada soluço de Maomao parecia atravessar paredes, ecoando em seu coração e arrancando-lhe pedaços de força que ele nem sabia que tinha. Ele não suportava ouvir sua dor — não assim, não sozinha, não sem ele.
Sem pensar, correu até o Pavilhão de Cristal, cada passo carregado de desespero, até encontrar Ah-duo e Lihua esperando-o em um salão reservado, suas expressões preocupadas antecipando o que ele mal tinha coragem de enfrentar. Ao vê-las, algo que não podia conter mais se rompeu dentro dele. Caiu de joelhos, os ombros tremendo, e o mundo pareceu se reduzir àquele espaço seguro e acolhedor, onde podia, finalmente, ser frágil.
— Eu não consigo… não consigo suportar vê-la assim… — a voz saiu entrecortada, sufocada, carregada de toda a impotência e medo que se acumulava há horas.
Lihua passou a mão pelos cabelos do filho, acariciando com uma ternura silenciosa, como se quisesse arrancar dele toda a dor que lhe pesava.
— Você está tentando ser forte sozinho, meu filho. — murmurou ela, suave, mas firme. — E não precisa, Maomao ficará bem, só precisa de espaço... Já você precisa também cuidar de si mesmo e não apenas dela.
Jinshi forçou as palavras, limpando as lágrimas com a parte de trás da mão, mas a garganta apertada não permitia que conseguisse controlar a vulnerabilidade que vazava de cada gesto.
— É estranho… — disse, engolindo seco, os olhos marejados e fixos no chão de mármore. — O veneno… o efeito não parecia comum, Maomao está acostumada com tantos venenos, mas… a forma como sangrou… como ficou… não parecia reação. Parecia… parecia…
Ele engoliu em seco, incapaz de terminar a frase, ele não queria terminar, não tinha como aquilo ser real.
Ah-duo inspirou fundo, os olhos marejados com lembranças que pesavam como pedras em seu peito.
— Eu sei bem como reconhecer. — disse, grave, com a dor contida em cada sílaba, uma dor que apenas quem já passou por perda profunda conhecia. — O corpo de uma mulher… quando rejeita um bebê. — os olhos de Ah-duo se encontraram com os de Lihua com certo pesar — E ali parecia que ela não havia conseguido manter uma gestação.
Os olhos de Jinshi se arregalaram, a respiração travada, enquanto cada palavra penetrava nele como lâminas delicadas, mas afiadas.
— Mas… Maomao me diria… — balbuciou, agarrando-se desesperadamente a uma esperança tênue que parecia escorregar pelos dedos. — Ela me contaria… se fosse assim…
Lihua inclinou-se, olhando-o com uma ternura dolorosa, firme e maternal ao mesmo tempo.
— Vocês conversavam sobre isso? — perguntou. — Ela sentia que podia dividir esse tipo de peso com você? Se não… então não é estranho que tenha guardado para si, confiando apenas em Jin-Ye e no irmão para isso.
As palavras perfuraram Jinshi, atingindo o núcleo de sua culpa e arrependimento.
Memórias surgiram com intensidade esmagadora: risadas abafadas durante tardes silenciosas, noites em que ela se encolhia junto a ele sem falar, o silêncio carregado de algo que ele não compreendia. Cada gesto agora tinha um significado que ele finalmente via, doloroso e belo ao mesmo tempo.
O chão parecia desaparecer sob seus pés. Sem forças, ele se deixou cair totalmente de joelhos diante das duas mulheres, vulnerável e despido de qualquer orgulho.
— Mãe, nós conversamos sobre isso diversas vezes, desde o momento em que nos casamos. — Jinshi dizia com sinceridade agarrado a barra de suas saias — Não consumamos o casamento na primeira noite, demorou semanas até que Maomao e eu tivéssemos a certeza de concretizar o ato, eu nunca coloquei expectativas ou a forcei a ter um herdeiro. — sua cabeça girava desnorteado — Ela… ela carregou essa dor sozinha… para não me ferir. — a voz saiu num sussurro trêmulo, os ombros sacudindo com cada soluço. — Meu Deus… ela perdeu nosso filho em silêncio… porque acreditou que eu não suportaria… Mas ela que não aguentou carregar isso sozinha.
Ah-duo e Lihua o envolveram em um abraço firme, sustentando-o enquanto as lágrimas finalmente caíam sem controle, quentes e amargas, lavando a dor que ele tentava segurar há horas, o soluço parecia arrancar um pouco da culpa que o esmagava.
No calor daquele abraço, Jinshi percebeu algo que antes não queria admitir: amor não era apenas proteção ou força. Era também fragilidade, entrega, sofrimento compartilhado. E o amor de Maomao por ele, era tão profundo e silencioso, vinha carregado de sacrifício, coragem e dor. Pela primeira vez, ele se permitiu sentir, inteiramente, a vulnerabilidade de ser humano — e de ser amado.
Os minutos passaram, silenciosos, mas cada respiração compartilhada, cada toque nos ombros de Jinshi, foi um lembrete de que ele não precisava enfrentar aquilo sozinho. Ali, no colo de mães que o amavam, ele podia, finalmente, ser só Jinshi — um homem quebrado, sentindo cada pedaço da dor de quem amava, mas também aprendendo a carregar o amor de volta, ainda que com o coração em pedaços.
[. . .]
Os dias avançaram como um rio pesado, lento, onde o tempo parecia suspenso, FengXian permanecia junto da filha, não permitindo que uma única serva se aproximasse sem sua supervisão. Alimentava Maomao com caldos leves, massageava-lhe as têmporas quando a dor a dominava, e cantarolava baixinho antigas canções que um dia embalaram sua infância.
Maomao, ainda frágil, aceitava esse cuidado em silêncio, às vezes chorava baixinho no ombro da mãe, mas em outras noites apenas ficava olhando o vazio, os dedos trêmulos apoiados sobre o ventre agora vazio.
FengXian percebia: não era apenas o corpo que estava ferido. Era a alma da filha que sangrava em silêncio.
Na manhã do quarto dia, ao sair do quarto da filha, FengXian encontrou Jinshi esperando na sala, o olhar fixo na xícara de porcelana. Ele se ergueu imediatamente, respeitoso, mas não conseguiu esconder a exaustão em seus olhos.
— Como ela está? — Jinshi perguntou, a voz grave e quase contida, mas carregada de uma tensão que denunciava a ansiedade que apertava seu peito.
FengXian permaneceu em silêncio por alguns segundos, estudando-o com um olhar firme, mas acolhedor, como se pudesse sentir cada preocupação dele sem precisar de palavras. Depois, com a calma de quem mede cada frase, respondeu:
— Ela está viva, Alteza. E, por agora, isso é o que mais importa.
Ele assentiu, mas o peso da preocupação ainda o consumia, FengXian deu um passo adiante, aproximando-se, e o gesto foi tão natural, tão cheio de cuidado, que dissipou um pouco da tensão que apertava os ombros de Jinshi.
— Diga-me uma coisa… — ela começou, a voz baixa e suave, quase como se estivesse sussurrando para que apenas ele ouvisse — o quanto você realmente conhece a mulher que chama de esposa?
O olhar dela não tinha julgamento, apenas uma sinceridade que penetrava fundo. Jinshi engoliu seco, o maxilar tenso.
— Eu sei que ela é forte demais para mostrar fraqueza e muito teimosa com isso também. — disse ele, a voz carregada de uma mistura de orgulho e dor. — Que esconde suas dores para não pesar sobre os outros. Que carrega fardos sozinha… mas… não consigo arrancar dela aquilo que não quer dividir, apenas a deixo divagar em sua mente até que queira compartilhar comigo seus sentimentos.
FengXian deu um passo ainda mais próximo, envolvendo-o em um abraço quase instintivo, o calor dela, o contato firme e seguro, foi um alívio inesperado. Ele sentiu as mãos de FengXian pousarem sobre seus ombros, segurando-o, mas sem apertar demais.
— Você a conhece mais do que imagina, Jinshi. — disse ela, a voz firme, mas suave, carregada de compreensão. — E sabe… a força dela não é só proteção. É também vulnerabilidade disfarçada, se você não aprender a olhar além do que ela mostra, pode acabar sozinho diante de dores que ela não permite compartilhar.
Ele fechou os olhos por um instante, absorvendo cada palavra, sentindo o calor do abraço e a sinceridade no tom dela. Um aperto suave nas costas, um gesto quase maternal, mas também de respeito e parceria.
— Eu não quero que ela sofra sozinha… — murmurou ele, quase como uma confissão, sentindo pela primeira vez que poderia se permitir ser frágil diante dela.
FengXian sorriu levemente, apenas com os olhos, e deu um passo atrás, ainda tocando o braço dele, permitindo que Jinshi respirasse, mas sem quebrar o vínculo silencioso que se formaou entre eles.
— Então aprenda a vê-la de verdade, Jinshi. — disse ela, calma, mas firme. — Não apenas a esposa que se apresenta ao mundo… mas a mulher inteira, com todas as sombras e luzes que carrega. Se fizer isso, não estará sozinho, nem ela.
O príncipe permaneceu em silêncio, mas, por dentro, sentiu algo se aquietar — o peso do medo, da impotência, diminuindo com a sensação de que não precisava carregar tudo sozinho.
[. . .]
Na corte, as intrigas floresciam como ervas venenosas, o envenenamento da princesa ainda era assunto nas reuniões internas. Alguns ministros murmuravam que se tratava de um atentado contra o próprio imperador, outros que era um recado velado às famílias rivais.
Mas, nos bastidores, corria um sussurro mais sombrio: que o alvo nunca fora a Princesa da Lua, mas a Princesa de Cristal — Jin-Ye.
Um dos eunucos confidenciou a outro, nos corredores:
— Estranho, não acha? O veneno da princesa causou delírio, febre, a senhora do Pavilhão da Lua sangrou como se o corpo rejeitasse algo muito mais profundo…
— Se alguém ousou atingir a consorte do príncipe herdeiro… — respondeu o outro, baixando ainda mais o tom — …então não estamos diante apenas de rivalidade política. Estamos diante de um aviso.
Na corte, enquanto isso, nomes começaram a circular em segredo: rivais de longa data, famílias caídas em desgraça, até mesmo vozes dentro do harém que viam Maomao como ameaça ao equilíbrio delicado do poder.
[. . .]
FengXian permanecia sentada na varanda, observando os jardins a luz do luar, quando Lahan se aproximou, o rapaz tinha olheiras profundas, mas havia firmeza em seus olhos.
— Está exausta, não fica nesse estado desde o nascimento dos pequenos — disse ele, olhando para a mãe. — A senhora deveria descansar.
— Mães descansam quando os filhos descansam. — FengXian respondeu, serena. — E eu ainda tenho três acordados, afinal Jinshi é pior que criança rondando Maomao com aquele pato barulhento nos braços.
Lahan sorriu de leve, mas o sorriso não se sustentou, ele se sentou ao lado dela, os cotovelos apoiados nos joelhos, o olhar perdido.
— Eu nunca imaginei… — murmurou. — Que Maomao passaria por isso, saber que ela estava grávida e não disse nada… foi como levar um golpe. Eu fiquei… sem chão quando a vi vomitando o veneno.
FengXian pousou a mão sobre o braço do filho, num gesto silencioso de apoio.
— Vocês sempre foram parecidos nesse aspecto. — disse, olhando para ele com doçura. — Guardam demais para si, como se o mundo fosse pesado demais para dividir.
Lahan abaixou os olhos, respirando fundo. Depois, hesitou antes de prosseguir:
— Se não fosse por Jin-Ye… não sei como teria lidado. Ela esteve ao lado da minha irmã em cada instante, ao meu lado também. Não como alguém obrigado, mas como… alguém que queria estar ali.
A voz dele suavizou, ganhando uma tonalidade diferente, FengXian percebeu o brilho no olhar do filho ao pronunciar o nome de Jin-Ye.
— A princesa Jin-Ye? — perguntou baixinho, arqueando uma sobrancelha. — Você fala dela com uma ternura que eu não percebi antes.
Lahan ficou em silêncio por alguns segundos, depois, sorriu de lado, um tanto envergonhado.
— Não sei quando começou, mãe, mas, ao vê-la tão firme… tão leal à Maomao, mesmo diante de tudo… eu pensei que, se um dia tivesse uma família, talvez fosse com alguém como ela, Jin-Ye é dedicada, se interessa por mapas sabia? Ela amaria as viagens que já fiz com papai. — Lahan dizia tudo com extremo entusiasmo e um sorriso bobo nos lábios.
FengXian suspirou, sem deixar de fitá-lo.
— Talvez o destino esteja sendo mais generoso com você e a princesa, do que possa imaginar, meu filho. — disse, enigmática.
O burburinho na varanda foi interrompido apenas pelo som de passos compassados. Dois guardas se aproximavam, ladeando a figura esguia da princesa Jin-Ye, ela vinha coberta por um hanfu acinzentado, feito de tecidos grossos, o cabelo violeta preso de maneira impecável, mas o semblante revelava fadiga e preocupação.
— Lady Kan. — disse a princesa, inclinando-se respeitosamente. — Mestre Lahan.
Os dois se levantaram, retribuindo a reverência.
— Alteza. — respondeu FengXian.
Jin-Ye se aproximou alguns passos, os olhos fixos na entrada da casa.
— Como ela está? — perguntou, a voz firme, mas tingida de ansiedade.
FengXian respirou fundo antes de responder:
— Dormindo. O Príncipe da Lua não desgrudou dela, estão deitados provavelmente, ele é como Lakan uma devoção intensa e extrema, atencioso e meticuloso. — o olhar de FengXian suavizou um pouco. — Por ora, é o descanso que a mantém viva.
Jin-Ye fechou os olhos por um instante, como se agradecesse em silêncio, os guardas mantiveram-se à distância, mas o ar na varanda ficou pesado, repleto de significados não ditos.
FengXian observou discretamente o modo como a princesa buscava força para manter-se ereta, para carregar o peso da situação sem se abalar. A mãe sorriu, pequena e amarga: reconhecia nos olhos da jovem o mesmo fardo que sua filha carregava.
O vento noturno agitava suavemente os tecidos do hanfu de Jin-Ye, fazendo com que as mangas longas oscilassem no compasso da respiração pesada da princesa. Lahan, ao vê-la ali, ajeitou-se desconfortável, como se o simples fato de encará-la fosse algo íntimo demais.
FengXian, que nada perdia, deixou escapar um sorriso discreto.
— Alteza, sente-se conosco. — disse ela, gesticulando para o banco de madeira na varanda. — A noite está longa e todos aqui compartilham da mesma preocupação.
Jin-Ye hesitou, mas aceitou o convite, acomodando-se ao lado deles, o silêncio se estendeu por alguns segundos, denso, como se todos buscassem palavras que não soassem frágeis diante da gravidade da situação.
— Ver Maomao assim… — murmurou a princesa, baixando o olhar. — É uma dor que eu não consigo descrever. Ela é tão forte, e mesmo assim… agora parece tão frágil.
Lahan engoliu em seco, os olhos se suavizando.
— Minha irmã sempre foi forte. Forte até demais. — disse, a voz grave. — Mas até mesmo os mais fortes quebram, se não tiverem com quem dividir o peso.
As palavras carregavam mais do que apenas a preocupação por Maomao, Jin-Ye percebeu e o encarou de soslaio, como se tivesse lido algo escondido no timbre dele.
FengXian observava, silenciosa, mas atenta a cada detalhe: o modo como Jin-Ye demorava os olhos em Lahan, a forma como ele se erguia um pouco mais quando ela falava, como se buscasse corresponder à presença dela.
— Vossa Alteza… — FengXian interveio de forma suave, inclinando o corpo para frente. — Permita-me a franqueza de uma mãe.
Jin-Ye a olhou, surpresa.
— Há algo no modo como fala de minha filha, e no modo como olha para meu filho, que me parece… pessoal. — ela arqueou levemente as sobrancelhas. — Diga-me, é apenas o dever de princesa que a traz até aqui?
A pergunta pairou como uma lâmina suspensa, Jin-Ye apertou as mãos sobre o colo, nervosa. Lahan virou-se para a mãe, surpreso, mas não disse nada.
— Eu… — começou Jin-Ye, a voz quase inaudível. Respirou fundo e tentou novamente. — Não é apenas o dever, eu não saberia dizer quando começou… mas, ao lado de Maomao, e ao lado de Lahan… eu não me sinto apenas uma peça da corte. Eu me sinto… humana.
O silêncio que seguiu foi pesado e revelador.
Lahan piscou algumas vezes, atônito, FengXian, porém, apenas sorriu com ternura, pousando a mão sobre a da princesa.
O olhar de FengXian oscilava entre o filho e a princesa, cada vez mais convicta de que havia algo não dito entre eles.
Ela suspirou, ajeitando melhor as mangas do hanfu, e falou suavemente:
— Alteza… — a voz tinha um tom mais materno do que protocolar. — Quero lhe agradecer.
Jin-Ye franziu o cenho, surpresa.
— Agradecer?
— Sim. — FengXian sorriu de leve. — Quando tudo aconteceu, qualquer outra pessoa teria se afastado, alegando choque, ou corrido para buscar abrigo junto da família, mas você ficou. Ao lado dos meus filhos, sendo suporte. Isso… não é pouca coisa.
Jin-Ye apertou as mãos no colo, um rubor discreto subindo-lhe ao rosto.
— Eu não poderia abandoná-la, Maomao… é uma irmã para mim. E quanto a Lahan… — ela hesitou, desviando os olhos. — Ele parecia precisar tanto de alguém quanto eu mesma.
Lahan ergueu os olhos, surpreso pela franqueza da princesa, FengXian, no entanto, apenas sorriu com uma serenidade que fazia ambos se sentirem expostos e acolhidos ao mesmo tempo.
— Vocês dois… — murmurou a mãe, sacudindo a cabeça. — É estranho ver como a dor pode unir corações, mesmo em silêncio.
Ela se recostou contra a madeira da varanda, olhando para a lua, seu semblante ficou mais nostálgico.
— Sabe… — começou, como quem abre um baú antigo. — Quando Maomao era criança, ela tinha esse mesmo olhar que carrega agora. Forte por fora, mas por dentro… uma menina tão assustada quanto qualquer outra.
Lahan sorriu com melancolia.
— Eu me lembro, ela sempre queria parecer mais corajosa que eu.
FengXian soltou uma risada baixa.
— E você acreditava nela. — depois, olhou para Jin-Ye, os olhos marejados por lembranças. — Houve uma vez em que ela ficou doente, com febre alta. Tão pequena, os cabelos grudados no rosto, o corpo tremendo, ela chorava baixinho, mas toda vez que eu entrava no quarto, sorria, tentando me enganar. Eu sabia que estava apavorada, mas ela era orgulhosa demais para admitir.
Jin-Ye sentiu um aperto no coração, a cena se misturando ao que vira recentemente: Maomao no leito, debilitada, tentando ainda assim erguer o queixo e mostrar firmeza.
— Ela continua igual. — a princesa murmurou, a voz embargada. — Continua querendo carregar o mundo sozinha.
— Sim. — FengXian respondeu, emocionada. — E é por isso que fico grata por vocês estarem aqui. Porque sei que, dessa vez, ela não está sozinha.
Lahan abaixou a cabeça, absorvendo o peso daquelas palavras, Jin-Ye respirou fundo, criando coragem para dizer o que lhe fervia no peito:
— Se eu pudesse escolher, daria a ela metade da minha força, metade da minha coragem. Mas, como não posso, darei minha presença. — olhou discretamente para Lahan. — A ela… e a quem mais precisar.
Houve uma pausa carregada de significados, o ar parecia mais denso, pesado com cada respiração contida. FengXian inclinou-se levemente para frente, os olhos da cor rubi fixos na princesa, profundos e incisivos, como se atravessassem sua alma e lessem cada segredo guardado.
— E você, Jin-Ye… quem lhe dá essa presença? — a pergunta era simples na forma, mas cortava fundo, carregada de expectativa e verdade.
A princesa engoliu em seco, sentindo o peso do olhar de FengXian.
Por um instante, a voz lhe faltou, mas ela não desviou o olhar, havia algo em FengXian que exigia honestidade, que desarmava qualquer máscara.
— Talvez eu ainda nem tenha encontrado, senhora. — respondeu, a voz firme, mas tingida de vulnerabilidade, uma mistura de respeito e admiração que não podia ser escondida.
FengXian sorriu, enigmática, quase como se tivesse lido mais do que qualquer palavra poderia revelar. Havia conhecimento ali, experiência e uma ponta de provocação sutil, mas não cruel, apenas uma lembrança silenciosa de que o mundo era maior do que os corações jovens conseguiam abarcar.
Ela então voltou-se para o filho, que permanecia rígido, os ombros tensos, as mãos apertadas, sem saber exatamente como reagir à presença intensa da mãe e ao silêncio carregado de verdades não ditas.
— Lahan, meu filho… cuide bem dela. — disse FengXian, a voz firme, mas envolta em suavidade, como se cada sílaba fosse uma ordem disfarçada de conselho materno. — Nem sempre o destino é cruel. Às vezes, ele nos oferece mais do que ousamos pedir.
As palavras ecoaram na varanda como uma brisa carregada de significado, Lahan sentiu o peito apertar, uma mistura de responsabilidade, esperança e um medo silencioso de falhar. Olhou para Jin-Ye, percebendo não apenas a jovem diante dele, mas toda a complexidade da vida que agora carregava em suas mãos.
A noite, até então pesada, suavizou por um instante, Jin-Ye baixou os olhos, o coração batendo acelerado. Lahan se remexeu, dividido entre o dever e o desejo, mas silenciosamente grato pela confiança da mãe.
[. . .]
O vento soprou mais frio pela varanda, balançando as lanternas suspensas. FengXian, Lahan e Jin-Ye ainda estavam mergulhados naquela quietude que só surge depois de revelações profundas. As palavras da mãe ecoavam no peito dos dois jovens, e por um instante parecia que o mundo podia parar ali.
Mas passos apressados quebraram o silêncio. Um servo do palácio dobrou o corredor, curvando-se às pressas diante deles. O suor na testa denunciava a urgência.
— Perdão por interromper, Senhora FengXian, Alteza, Jovem Mestre Lahan. — a voz saiu trêmula. — Trago notícias do Palácio Imperial.
FengXian endireitou a postura, o coração acelerando.
— O que houve?
O servo respirou fundo, tentando recuperar o fôlego.
— O Imperador convocou reunião imediata com os conselheiros mais próximos. Há suspeitas… de que o envenenamento da Princesa da Lua não tenha sido coincidência.
A expressão de Jin-Ye endureceu, os dedos se crispando no tecido grosso do hanfu, Lahan se inclinou para frente, a preocupação estampada no rosto.
— E minha mãe? — perguntou, a voz firme. — A Imperatriz Ah-duo?
O servo baixou a cabeça, em respeito.
— Sua Majestade, a Imperatriz também foi chamada, enviou-me para avisar que pode haver mudanças nas rotinas de guarda e visitas até que tudo se esclareça.
Um silêncio pesado se instalou. FengXian apertou as mãos sobre o colo, mantendo a calma exterior, mas por dentro sentia-se como se o chão tivesse se aberto.
— Então o palácio já está em alerta. — murmurou ela, encarando o filho e a princesa. — O que significa que os olhos e ouvidos da corte estarão sobre todos nós.
Jin-Ye ergueu o rosto, o brilho da lua refletindo em seus olhos determinados.
— Não importa, o importante é que Maomao esteja segura. — então se voltou ao servo. — Diga à Imperatriz que acataremos qualquer ordem.
O servo assentiu, recuando lentamente, antes de sumir no corredor com passos apressados.
FengXian suspirou fundo, olhando para os dois jovens à sua frente.
— Aproveitem esses instantes de calma enquanto podem. — sua voz tinha um peso profético. — Talvez, seja o último momento que tenham de paz antes da chegada do caos por esse Palácio.
A princesa trocou um olhar breve com Lahan, e naquele instante, sob o luar, havia a promessa silenciosa de que nenhum deles voltaria a ser o mesmo depois daquela noite.
[. . .]
O Salão Imperial estava mergulhado em uma penumbra solene, iluminado apenas pelas tochas presas às colunas e pela chama trêmula de grandes candelabros de bronze. O Imperador já estava em seu assento elevado, a expressão dura, os olhos semicerrados como lâminas prestes a cortar. Ao lado, em posição de destaque, encontrava-se a Imperatriz Ah-duo, envolta em um manto escarlate bordado com fênix douradas.
Os ministros e conselheiros foram se perfilando em silêncio, todos de cabeça baixa, como se qualquer respiração mais forte pudesse ser interpretada como culpa.
— Chamamos esta reunião — iniciou o Imperador, com voz grave que ecoou pelo salão — porque a harmonia do palácio foi violada. A princesa da Lua sofreu um colapso suspeito. — o olhar dele varreu o salão como fogo. — Não aceitarei que a intriga corra solta sob meu teto.
Ah-duo inclinou-se levemente para frente, seus olhos estreitos e implacáveis.
— Não foi mera coincidência. Quem ousou atentar contra a vida da princesa conseguiu por vias indiretas, não foi por acaso. — sua voz estava impregnada de experiência amarga, lembrança dos inúmeros filhos que perdera. — Este veneno não foi comum.
Um dos médicos imperiais, ajoelhado mais adiante, engoliu seco antes de falar:
— Majestades, após examinarmos os sintomas, acreditamos que o composto utilizado não era um veneno letal imediato, mas um preparado de ação lenta, capaz de provocar fraqueza extrema, febre… e no caso de uma mulher em estado vulnerável, hemorragias.
O silêncio que se seguiu foi sufocante, o Imperador tamborilou os dedos na mesa de jade, e sua voz cortou o ar:
— Então quem entre nós teria acesso a substâncias tão específicas?
Os olhares se cruzaram, carregados de suspeitas. Foi o Ministro Zhing, sempre rápido em apontar, quem quebrou a tensão:
— É sabido que alguns aposentos das concubinas ainda mantêm criadas vindas de famílias rivais, Lady Lihua e Lady Gyokuyou mantêm harmonia, mas outras… — ele deixou a frase suspensa, deixando que cada mente completasse.
Ah-duo lançou-lhe um olhar gélido.
— Cuidado com suas palavras, Ministro Zhing, acusar sem provas pode custar sua língua.
Outro conselheiro, mais velho, pigarreou:
— Não seria improvável que alguma das facções ligadas à antiga linha sucessória tentasse desestabilizar o trono. Atacar a princesae consorte do Príncipe da Lua seria… um recado.
O Imperador se ergueu lentamente, a sombra da coroa projetando-se imensa contra a parede dourada.
— Seja quem for, deseja dividir esta corte. — ele fechou o punho. — E não descansarei até que os culpados sejam desmascarados.
Ah-duo respirou fundo, erguendo o rosto. Sua mente, porém, já não estava apenas no salão, recordava o olhar de Maomao ao ser amparada, a fraqueza que lhe lembrava de suas próprias perdas. Havia ali uma dor que não poderia ser ignorada.
Ela voltou-se para o Imperador.
— Permita-me liderar as investigações no interior dos pavilhões femininos. Eu conheço suas sombras melhor do que qualquer homem sentado aqui.
O Imperador hesitou apenas por um instante, antes de assentir.
— Então que seja. —
A ordem estava dada, e com ela, a guerra silenciosa dentro do palácio acabava de começar.
[. . .]
Ah-duo adentrou silenciosa o Pavilhão da Lua, os passos suaves abafados pelos tapetes de seda. O ambiente ainda carregava o cheiro de incenso e ervas medicinais, e a luz das lanternas dançava sobre as paredes, refletindo nos olhos de Jinshi, que permanecia ao lado da cama, a expressão tensa.
— Jinshi. — a voz da mãe cortou a atmosfera densa, firme e ao mesmo tempo carregada de preocupação. — Precisamos conversar.
Ele se ergueu ligeiramente, o coração acelerado, sentindo o peso do olhar materno.
— Claro, mãe.
Ah-duo aproximou-se, pousando uma mão no ombro do filho.
— Não foi apenas um simples incidente, — Ah-duo começou, a voz medida, carregada de autoridade, mas também de uma ponta de apreensão — nem mesmo um efeito comum de veneno. — Pausou por um instante, permitindo que a gravidade de suas palavras se assentasse no ar. — Maomao pode ter sido o alvo direto.
Jinshi engoliu em seco, sentindo a mandíbula se apertar involuntariamente. Um frio percorreu-lhe a espinha, e cada músculo do corpo se contraiu em alerta.
— Direto? — murmurou, a voz falhando por um instante. — Mas… quem teria motivo para…?
Ah-duo franziu levemente o cenho, os olhos sombrios de preocupação refletindo a intensidade da situação.
— É cedo para acusar qualquer um. — suspirou, a mão pousando sobre a própria testa, num gesto que misturava cansaço e reflexão. — Mas devemos considerar todas as possibilidades. Ninguém atenta contra a segurança da família real sem intenção clara e se isso foi um ataque planejado, precisaremos ser meticulosos. Cada detalhe, cada gesto, cada pista poderá fazer diferença.
O silêncio se espalhou pelo salão como uma sombra densa, pesada, carregada de tensão, Jinshi apertou os punhos, as articulações rangendo levemente, os olhos vermelhos de preocupação fixos no chão, tentando organizar pensamentos que se recusavam a se acalmar.
— Eu não vou permitir que algo aconteça a ela, mãe. — disse, a voz firme, mas com um tremor sutil que denunciava o medo que ele não podia mostrar.
Ah-duo inclinou-se, aproximando-se, e pousou uma mão delicada, mas firme, sobre o rosto do filho. O toque, raro e cheio de suavidade, transmitiu uma força silenciosa, uma lembrança de que ele não precisava enfrentar tudo sozinho.
— E você não permitirá, sei disso. — disse ela, os olhos refletindo confiança e preocupação ao mesmo tempo. — Mas cuidado, Jinshi… nem todos os perigos vêm de onde esperamos. Às vezes, o inimigo se esconde sob máscaras familiares e nem toda ameaça é visível a olho nu.
Ele assentiu, absorvendo cada palavra, sentindo o peso da responsabilidade real recair sobre os ombros largos. Era mais do que proteger Maomao; era antecipar, perceber, sentir os movimentos invisíveis do mundo ao redor dela.
— Eu vou encontrá-lo antes que ele encontre a chance… — murmurou, quase para si mesmo, a determinação se misturando à vulnerabilidade que apenas a mãe parecia notar.
Ah-duo apenas acariciou-lhe levemente a face, num gesto silencioso de confiança e encorajamento, e recuou um passo. Os olhos dela permaneciam fixos nele, transmitindo mais do que palavras poderiam conter: amor, preocupação, e a certeza de que, apesar de tudo, ele não estava sozinho.
O ar entre eles permaneceu carregado, mas agora havia também uma corrente de força compartilhada. Jinshi sentiu o coração pesado, mas firme; sabia que a batalha seria longa, mas que havia braços, conselhos e cuidado suficientes para não deixá-lo sucumbir antes do que deveria.
[. . .]
Alguns minutos depois, Jin-Ye foi escoltada por Lahan e os dois guardas até o Pavilhão de Jade, a noite estava fria, e o vento fazia os tecidos de seu hanfu mais pesado balançarem, Lahan caminhava ao lado dela, tentando quebrar o gelo.
— Alteza, pelo menos diga que esta noite está agradável. — ele sorriu, tentando soar leve, mas havia uma ansiedade evidente.
Jin-Ye manteve o olhar fixo à frente, em silêncio absoluto, ignorando deliberadamente a provocação.
— Hum… bem, você poderia pelo menos me responder se o chá servido mais cedo estava do seu agrado. — insistiu Lahan, aproximando-se ligeiramente.
Ela continuou em silêncio, a postura rígida, os olhos revelando cansaço e uma irritação contida.
— Alteza, eu sei que está preocupada com Maomao, mas… — ele engoliu seco, a voz baixando, quase um sussurro — podemos falar um pouco. Eu… — hesitou, encarando-a nos olhos — eu gostaria de ver você sorrir, mesmo em meio a tudo isso.
Jin-Ye finalmente desviou o olhar, mas não respondeu, Lahan percebeu cada micro-reação, cada trejeito, e sorriu por dentro.
— Tudo bem… eu não vou forçar. — disse ele, mais calmo, tentando equilibrar a frustração com a paciência. — Mas saiba que não vou me afastar, não enquanto você precisar de alguém ao seu lado.
Ela apenas assentiu levemente, como se aquele reconhecimento silencioso já fosse suficiente.
Enquanto continuavam a caminhada pelo pátio iluminado pela lua, Lahan se manteve próximo, atento a cada gesto da princesa, determinado a conquistá-la aos poucos, mesmo que o tempo e as circunstâncias exigissem cautela.
O Pavilhão de Jade surgiu à frente, sua silhueta imponente recortada contra o céu noturno, Jin-Ye respirou fundo, tentando compor-se, e Lahan, percebendo a tensão, manteve-se ao lado, pronto para apoiá-la, mesmo que só em silêncio.
O Pavilhão de Jade se erguia imponente à frente, a luz da lua refletindo suavemente nas janelas de madeira entalhada, Jin-Ye respirou fundo, sentindo o peso do momento pesar sobre seus ombros. Cada passo ecoava silencioso sobre o chão de pedra, mas dentro dela, um turbilhão de emoções se agitava — preocupação, medo, um toque de culpa por não poder aliviar a dor de Maomao, e, inesperadamente, a consciência de Lahan ali ao seu lado.
Ela notou o cuidado dele em manter-se próximo, mas não sufocante, a atenção dele era delicada, quase intuitiva, e por um instante, Jin-Ye se permitiu observar como ele ajustava o passo para não tropeçar sobre os guardas, como a mão permanecia solta, mas presente, como se dissesse: “Estou aqui, mesmo que você não queira falar comigo.”
No entanto, sua mente lutava contra a própria vulnerabilidade. Cada gesto de Lahan, por menor que fosse, despertava nela uma mistura de conforto e conflito. Ela admirava sua paciência e determinação, mas resistia a ceder, temerosa de se deixar depender de alguém enquanto Maomao precisava dela mais do que nunca.
— Alteza, estamos quase chegando. — Lahan murmurou, a voz baixa, respeitando o silêncio que ela impunha.
Jin-Ye apenas assentiu, mas não pôde evitar que os olhos traíssem uma ponta de ansiedade, pensou em Maomao, imaginando sua amiga ali, fragilizada, tentando manter a postura enquanto seu corpo e seu coração sofriam. A princesa sentiu uma pontada de culpa: a cada passo, sentia-se impotente, incapaz de proteger verdadeiramente a irmã de criação, a amiga que se tornara quase como uma irmã de sangue.
Ao chegar à entrada do Pavilhão, Jin-Ye respirou fundo, e Lahan, percebendo sua hesitação, segurou discretamente seu braço. Não como uma imposição, mas como um ancorar silencioso.
— Não precisa ter pressa. — disse ele suavemente, aproximando-se do seu ouvido. — Eu estou aqui, Alteza.
Ela sentiu um arrepio percorrer a espinha, uma mistura de nervosismo e estranha segurança. Por um momento, queria se soltar e simplesmente confiar nele, mas afastou o pensamento, lembrando-se do que precisava ser feito: estar presente para Maomao, sem distrações, sem permitir que suas próprias emoções interferissem.
— Obrigada… — murmurou, baixando os olhos e apertando levemente a mão dele, um gesto pequeno, mas carregado de significado.
Lahan sorriu, silencioso, entendendo a delicadeza do momento.
Ele não insistiu, apenas manteve-se ao lado, guardando o espaço dela, consciente de que a confiança se ganharia aos poucos.
Jin-Ye então avançou até a porta do pavilhão, respirando fundo mais uma vez, a madeira fria sob os dedos era um lembrete da realidade: Maomao estava ali dentro, vulnerável, e ela precisava ser firme, presente e compreensiva.
Enquanto Lahan permanecia próximo, observando cada gesto, a princesa sentiu o vínculo silencioso entre eles se fortalecer. Ele não era apenas um acompanhante; era um apoio, uma âncora em meio à tempestade que a vida da corte havia trazido. E, apesar da resistência que ainda lhe restava, Jin-Ye percebeu que uma parte de seu coração já havia cedido, apenas um pouco, à presença dele.
Ela empurrou a porta, entrando finalmente no pavilhão, pronta para enfrentar o que fosse necessário, mas mantendo consigo o estranho conforto que Lahan, sem palavras, oferecia.
Jin-Ye permaneceu sozinha no pátio do pavilhão, a brisa noturna envolvendo seu hanfu pesado, como se quisesse acalmar a inquietação dentro dela. A lua se refletia suavemente nos contornos de seu rosto, iluminando a expressão séria e pensativa.
A lembrança de Maomao ainda queimava em sua mente — a fragilidade da amiga, as lágrimas contidas, o silêncio pesado de quem perdeu algo precioso. Um arrepio percorreu a coluna de Jin-Ye enquanto ela passava a mão com cuidado sobre a própria barriga, sentindo o bebê se mexer levemente. O toque despertou um turbilhão de emoções: medo, responsabilidade e uma estranha ternura.
"Não posso permitir que isso aconteça comigo… com meu bebê", murmurou para si mesma, quase inaudível. "Preciso ter forças. Preciso proteger você, mesmo que isso signifique carregar todo o peso sozinha."
O pensamento em Lahan surgiu automaticamente, trazendo uma mistura de conforto e conflito. Ele estava lá, sempre próximo, sempre atento, mas ela ainda precisava manter distância emocional para preservar a segurança do bebê. Cada gesto dele, cada palavra suave, fazia seu coração acelerar, mas Jin-Ye lutava contra o impulso de se apoiar demais.
Ela respirou fundo, fechando os olhos e mantendo a mão sobre a barriga. Sentiu a vida que carregava como um vínculo silencioso, uma promessa de proteção e coragem. “Quando eu estiver pronta… quando tiver certeza de que você está seguro… vou falar com Lahan. Ele precisa saber, mas até lá… vou aprender a ser forte por nós dois.”
O vento frio percorreu seu rosto, mas Jin-Ye permaneceu firme, os ombros eretos, a respiração controlada. Por mais assustador que fosse o mundo fora daquele pátio, ela sentiu, pela primeira vez, uma determinação concreta pulsando dentro dela, uma promessa silenciosa de cuidado, coragem e paciência, até que chegasse a hora certa.
[. . .]
O dia amanheceu cinzento, como se o céu partilhasse da mesma melancolia que o coração de Jinshi. O quarto estava em penumbra, as cortinas pesadas filtrando a luz suave que entrava. Maomao repousava sentada junto à janela, a postura ereta mas abatida, os olhos voltados para o jardim sem realmente enxergá-lo.
Jinshi a observava em silêncio.
O peso da verdade lhe corroía o peito — ele sabia. Sabia da vida que não vingara, da esperança que se desfez antes mesmo de florescer. E o que mais doía era o silêncio dela, o modo como Maomao carregava a dor sozinha, sem lhe pedir apoio, como se quisesse poupá-lo, mas para Jinshi, aquilo era um punhal silencioso.
Ele se aproximou devagar, sentando-se atrás dela sem dizer palavra, seus dedos delicadamente alcançaram os cabelos de Maomao, ainda soltos do descanso da noite. Começou a penteá-los com calma, desfazendo cada nó com paciência, como se aquele gesto fosse também uma forma de aliviar os nós dentro dela.
Maomao fechou os olhos, sentindo a cadência serena dos movimentos, ficaram assim por alguns instantes, até que ela murmurou, quase num sussurro:
— Você não precisa fazer isso.
— Preciso, sim. — respondeu Jinshi com voz baixa, firme, mas carregada de ternura. — Preciso estar aqui… mesmo que seja apenas para isso.
Ela suspirou, inclinando levemente a cabeça contra o toque.
— Você merece alguém mais forte. — disse, sem coragem de encará-lo. — Alguém que não te faça… carregar dores que não são suas, pode ter uma concubina se quiser, minha presença só te trás dor de cabeça e problemas. — Maomao desabafou segurando as lágrimas, era notável que estava mais sensível que o normal desde a perda do bebê.
Ele parou por um segundo, os dedos ainda entrelaçados nos fios dela, e então se inclinou, encostando a testa em seus ombros.
— Não diga isso. Suas dores são minhas também, Maomao, não porque você me obriga, mas porque eu escolhi. Porque eu quero estar contigo em tudo e eu não vou ter concubina nenhuma, sou feliz apenas com você meu amor, apenas isso.
O silêncio voltou a se instalar, denso, mas menos pesado. Maomao fechou os olhos e encostou-se de leve em seu peito.
— É difícil para mim… dividir as coisas. — admitiu, quase num fio de voz. — Eu tento proteger você, mas acabo me afastando.
Jinshi deslizou os dedos pelos cabelos dela mais uma vez, pacientemente.
— Não precisa me proteger. — respondeu suavemente. — Apenas… deixe-me ficar, mesmo que você não fale nada, mesmo que apenas queira o silêncio. Eu não vou a lugar algum.
Maomao respirou fundo. Aquelas palavras atravessavam as muralhas que ela sempre erguera em volta de si.
— Então… fique. — sussurrou, cedendo pela primeira vez.
Jinshi a envolveu em seus braços, firme e cuidadoso, como quem ergue um porto seguro para que ela pudesse descansar sem medo. Depositou um beijo demorado no topo da cabeça dela e permaneceu ali, apenas segurando-a.
E Maomao, pela primeira vez desde a perda, respirou mais fundo, nos braços dele, não havia necessidade de palavras: ela sabia que poderia chorar, se quisesse. Mas, por ora, apenas o calor silencioso de Jinshi já bastava para mantê-la inteira.
[. . .]
O quarto permanecia silencioso, apenas o som dos galhos balançando do lado de fora preenchia o espaço, Jinshi ainda a mantinha nos braços, o calor de seu peito servindo de abrigo para Maomao. Por um instante, ela pensou em se calar para sempre, engolir aquela dor como sempre fazia. Mas o peso estava esmagando-a, e, naquele momento, a coragem veio junto da vulnerabilidade.
Lentamente, Maomao ergueu a mão e tocou o rosto de Jinshi, seus dedos tremeram ao deslizar pela linha de sua mandíbula, e quando ele levantou os olhos para ela, encontrou um olhar turvo, úmido, cheio de algo que Maomao raramente deixava transparecer: medo.
— Zui… — a voz dela falhou. Respirou fundo, e as lágrimas começaram a correr. — Eu… eu estava grávida...
Ele a fitou, imóvel.
Não havia choque em seus olhos, apenas a confirmação silenciosa de algo que já sabia, mas Maomao continuou, como se estivesse se despedaçando a cada palavra:
— Eu não queria essa criança… eu não estava pronta. Eu não conseguia imaginar… esse filho. — os soluços apertavam sua garganta, a voz soava partida. — Mas eu nunca pensei que… mesmo tomando o antídoto… que ainda assim eu poderia perdê-lo dessa forma.
Ela levou as mãos ao rosto, mas logo se refugiou outra vez contra o peito dele, chorando descontroladamente. O corpo tremia, os soluços eram intensos, e pela primeira vez em muito tempo, Maomao não conteve nada.
— Me perdoa… — a voz dela saiu sufocada, quebrada. — Me perdoa, Zuigetsu, eu não queria… eu não queria esconder… mas eu estava desesperada… e não sabia como lidar…
Foi a primeira vez que ela pediu desculpas a alguém e pediu tantas vezes, entre soluços, que parecia não conseguir parar.
Jinshi a segurou com mais força, envolvendo-a como se pudesse sustentá-la inteira em seus braços. Seu queixo pousou sobre os cabelos dela, e ele deixou que as lágrimas dela encharcassem seu manto.
— Eu já sabia. — murmurou, a voz firme, mas suave, como um bálsamo.
Ela ergueu os olhos marejados para ele, surpresa, mas ele sorriu com dor, acariciando suas bochechas com os polegares.
— Você não precisa se culpar por nada do que aconteceu, Maomao. — o olhar dele era sério, sereno, cheio de amor. — O que me entristece não é a perda em si, mas o fato de que eu não pude compartilhar a felicidade de descobrir junto com você… que seríamos pais.
Ela chorou ainda mais, e ele a apertou contra si, como se pudesse absorver o peso da dor dela.
— Eu discordo de você esconder algo assim de mim, é verdade… — confessou, com sinceridade dolorosa. — Mas jamais, jamais vou te culpar por isso. Você é a mulher que eu escolhi para a minha vida, a única a quem quero proteger. Só te peço uma coisa, Maomao: se um dia algo assim acontecer de novo, se qualquer coisa grande pesar no seu coração… por favor, me conte. Não carregue sozinha, somos casados e confidentes, não é justo que eu veja o seu corpo nu, mas você não me deixe ver o que aflinge a sua alma.
Ela soluçou, tocando novamente o rosto dele, os dedos trêmulos como se não acreditasse ser real a aceitação dele.
— Eu tenho medo… de te machucar.
Ele beijou sua testa com intensidade, os olhos fechados.
— O que me machuca é você acreditar que precisa enfrentar tudo sozinha.
Maomao se desfez em lágrimas mais uma vez, e Jinshi apenas a abraçou, forte, constante, como se fosse o único lugar do mundo em que ela poderia desabar sem medo.
[. . .]
Nos dias que se seguiram, o Pavilhão da Lua tornou-se um refúgio silencioso, as sombras dos corredores eram mais longas, e os sons da corte chegavam abafados, distantes, como se o mundo tivesse desacelerado em respeito à dor que repousava ali dentro.
Maomao passava a maior parte do tempo deitada, exausta não só no corpo, mas também na alma. A cada noite, quando os soluços reapareciam, Jinshi estava lá, ele já não saía de perto dela. Afastara compromissos, delegara funções — nada era mais importante do que ser o porto onde ela pudesse se ancorar.
Certa manhã, ele se sentou atrás dela, com as pernas servindo de encosto, e começou a desembaraçar os cabelos longos, pacientemente, fio por fio, o pente corria devagar, como se cada movimento fosse uma promessa silenciosa.
— Você não precisa estar tão presente… — murmurou Maomao, a voz baixa, como se sentisse vergonha. — Eu não sou uma boa esposa, só te trago preocupações.
Jinshi parou o movimento, inclinando-se para perto da orelha dela.
— Não me tire o direito de cuidar de você. — Sua voz era firme, mas suave. — Eu não quero a perfeição. Quero você, Maomao, com suas feridas, suas fraquezas, até seus silêncios.
Ela respirou fundo, fechando os olhos, aquela sinceridade feria e confortava ao mesmo tempo. Pela primeira vez, deixou-se relaxar contra o corpo dele, sentindo o coração de Jinshi batendo constante, sólido.
À tarde, quando o sol se inclinava e dourava as cortinas, Jinshi trouxe uma tigela de caldo preparado pelas damas de companhia, segurou a colher e insistiu em alimentá-la, mesmo quando ela protestou, corando.
— Eu consigo sozinha…
— Eu sei que consegue. — Ele sorriu, mas manteve o gesto. — Mas hoje, deixe que eu faça.
E ela cedeu, permitindo que ele a alimentasse, cada colher dada com paciência e carinho.
Para Maomao, era estranho ser cuidada assim — acostumada a ser sempre quem observava, calculava, oferecia suporte, agora era ela quem recebia.
À noite, quando o sono não vinha, ela murmurou em meio à escuridão:
— Ainda dói, não o corpo… mas aqui. — levou a mão ao peito.
Jinshi a puxou para junto de si, envolvendo-a firme.
— Eu sei. — sua voz era baixa, carregada de dor contida. — E vai doer por um tempo, mas não vou deixar você enfrentar isso sozinha.
Os olhos dela se encheram de lágrimas, mas dessa vez não eram só de tristeza. Havia algo novo ali: a sensação de ser vista, compreendida, aceita.
Naqueles dias, sem grandes palavras, sem promessas impossíveis, Maomao começou a perceber que, mesmo em meio à tragédia, havia um espaço onde ela podia existir sem máscaras. E esse espaço era nos braços de Jinshi.
[. . .]
Os dias tinham corrido lentos, como se o tempo no Pavilhão da Lua tivesse se estendido apenas para preservar Maomao em um casulo de silêncio e cuidado. Quando a tarde caiu e o sol tingia de dourado as beiradas do jardim, FengXian entrou no quarto da filha, trazendo consigo a serenidade firme de quem carregava muitas cicatrizes, mas nunca deixara de ser mãe.
Maomao estava recostada em almofadas, os cabelos trançados por Jinshi mais cedo, a pele ainda pálida, mas os olhos menos perdidos. Ao ver a mãe se aproximar, tentou erguer-se um pouco, mas FengXian a conteve com um gesto suave, sentando-se na beira da cama.
— Não precisa se forçar, filha. — sua voz saiu baixa, quase um sussurro.
Maomao respirou fundo, mordendo o lábio. Sabia que a mãe partiria em breve, e parte dela não queria vê-la ir, a presença de FengXian tinha sido como um bálsamo, mesmo quando não havia palavras.
— Eu… — a voz falhou, e Maomao desviou os olhos, como se a confissão fosse pesada demais — eu não sei como agradecer por ter vindo.
FengXian acariciou o rosto dela, os dedos firmes, mas ternos.
— Eu viria quantas vezes fosse preciso, você pode tentar se esconder do mundo, Maomao, mas nunca poderá se esconder de mim. Eu a conheço desde antes de respirar.
Aquelas palavras romperam uma barreira, as lágrimas que Maomao vinha segurando se acumularam de novo, e ela apertou a mão da mãe.
— Ainda dói… não só pelo que perdi. — A voz dela saiu embargada. — Mas porque percebi que eu queria decidir sozinha, e no fim, não tive escolha. Eu não queria o bebê… mas também não queria perdê-lo e isso ainda me destrói.
FengXian inclinou-se, abraçando-a como se Maomao tivesse voltado a ser apenas uma menina nos braços dela.
— Isso não a torna menos humana, nem menos mãe. — murmurou, embalando a filha. — Você aprendeu, da forma mais cruel, o que significa carregar uma vida. É uma dor que nunca se esquece… mas você não precisa carregá-la sozinha.
O choro de Maomao foi abafado contra o ombro da mãe. Soluçava, sem máscaras, sem contenção. Pela primeira vez em dias, permitiu-se fraquejar sem medo.
FengXian, por sua vez, fechou os olhos, sentindo o coração apertado, reconhecia na filha a força e a fragilidade que antes também habitara nela mesma.
Depois de longos minutos, quando o choro se acalmou, Maomao sussurrou, exausta:
— Eu tenho medo… de perder mais uma vez.
FengXian beijou-lhe a testa.
— O medo vai sempre existir, mas o amor, esse vale cada risco e quando chegar a hora, você não estará sozinha, Jinshi sempre irá te amparar, assim como todos desta família.
Maomao apertou ainda mais a mão da mãe antes da mesma sair do quarto, como se aquele fosse um último ancoradouro antes da despedida.
Jinshi se aproximou em silêncio de FengXian no momento em que cruzou os corredores da casa, estava exausto, as noites em claro ainda estampadas sob seus olhos, mas a postura ereta, como sempre, o denunciava como príncipe. Ao chegar perto, inclinou-se levemente, em respeito.
— Agradeço por ter vindo, Lady Kan. — Sua voz saiu baixa, contida. — Sei que sua presença deu forças à Maomao em momentos em que nem eu consegui alcançá-la.
FengXian voltou-se para ele, os olhos profundos como se sondassem sua alma.
— Agradecer não é suficiente, príncipe. — disse firme. — Minha filha quase morreu em seus braços e você não percebeu o peso que ela carregava até ser tarde demais.
As palavras atingiram Jinshi em cheio, mas ele não desviou o olhar.
— Eu sabia… — admitiu, respirando fundo. — Mas não quis pressioná-la, Maomao sempre escolheu o silêncio para se proteger, e eu temi que, ao forçá-la, a ferisse ainda mais.
FengXian se aproximou, encarando-o tão de perto que ele pôde sentir a força daquela presença materna.
— Então aprenda, Jinshi: amar a minha filha não significa poupá-la de si mesma. — sua voz agora tremia, carregada de dor antiga. — Significa dividir o peso, mesmo quando ela tenta esconder. Se quiser ser seu porto seguro, não se contente em observar. Entre na tempestade junto dela.
Jinshi fechou os punhos ao lado do corpo, absorvendo cada palavra. Sua respiração vacilou, mas o olhar manteve-se firme.
— Eu falhei… — murmurou, como se fosse uma confissão. — Mas não voltarei a falhar. Prometo a senhora, Lady Kan, que Maomao nunca mais enfrentará nada sozinha, mesmo que me rejeite, estarei ao lado dela.
O silêncio que se seguiu foi pesado, FengXian o analisou por mais um momento, e então, suavizou o semblante, tocou brevemente o ombro dele — gesto raro, carregado de aceitação.
— Então talvez você esteja pronto. — disse em voz baixa. — Porque minha filha não precisa de um príncipe. Precisa de um homem que suporte a dor dela sem hesitar.
Nesse instante, Maomao apareceu na soleira da porta, ainda frágil, mas erguida em sua dignidade silenciosa. Os olhos marejados, mas atentos, observaram mãe e marido frente a frente.
FengXian caminhou até ela, segurando-lhe o rosto com as duas mãos, e beijou-lhe a testa demoradamente.
— Seja forte, minha menina. — sussurrou. — Eu voltarei sempre que precisar de mim.
Então, partiu acompanhada pelos guardas.
Maomao observou a silhueta da mãe se afastar até sumir, e, ao voltar-se, encontrou Jinshi que a envolveu em um abraço aconchegante, quase a arrastando para dentro do quarto para que voltassem a ficar deitados em silêncio apenas curtindo a companhia um do outro.
Chapter 21: Pequenas Alianças
Notes:
Confesso que escrever essa fanfic está me deixando exausta, mesmo sendo divertida, ela é muito complexa e com muitos personagens para aparecer e desenvolver, peço desculpas se demorar a postar, estou elaborando alguns enredos.
Acho que a minha dinâmica favorita depois de Jinmao é a Loulan e o Jiang, achei que daria errado, mas eles
realmente tem uma química surpreendente aqui, logo ela que pra mim é a maior sapa shoes (esse trocadilho só funciona em português mesmo)Boa leitura a todos, eu estarei respondendo os comentários assim que eu tiver um tempinho, eu prometo :)))
Chapter Text
4 semanas depois...
O outono tingia o céu com tons dourados e nublados, e o vento frio serpenteava pelas alamedas do palácio, fazendo as folhas caírem com suavidade. Os passos de Jin-Ye ecoavam pelo corredor, ritmados e firmes, embora o peso de algo que ela ainda não conseguia lidar estivesse visivelmente presente.
Ela caminhava envolta em camadas densas de hanfu, mais do que o clima exigia, sua silhueta ainda jovem, mas agora com algo a mais que ela não poderia mais esconder — a gravidez.
Jin-Ye já sabia, mas fazia questão de esconder.
A princesa andava com passos rápidos, cabeça erguida, ignorando os olhares atentos dos guardas que a acompanhavam. Seus cabelos estavam presos com elegância, mas o semblante fechado e distante indicava uma luta silenciosa que ela travava consigo mesma.
Nos dias anteriores, ela havia evitado Lahan, sempre com um sorriso distante ou um gesto frio, ele, no entanto, não era alguém fácil de ser enganado. O corpo de Jin-Ye havia mudado, e ele começava a perceber sinais sutis, mas claros, o pequeno inchaço nos seios e no ventre, os momentos de náusea e cansaço excessivo que ela disfarçava como fadiga comum. Ele desconfiava.
O olhar de Lahan era atento enquanto ela se afastava, mas ele se manteve em silêncio, como se sua mente estivesse ligando os pontos. Ele já tinha visto aqueles sinais em outras mulheres, já havia estudado o corpo feminino de perto, e isso o fez concluir que algo estava acontecendo ali. Não importava o quanto ela tentasse esconder, ele sabia.
Após dias de observação, Lahan não aguentou mais, o impulso de confrontá-la estava se tornando cada vez mais forte, e ele finalmente a seguiu até um pequeno quartinho nos fundos do palácio, longe dos olhares curiosos. O local estava silencioso, só existiam os dois ali — sem guardas, sem interrupções.
Jin-Ye, ao perceber que ele a seguira até ali, se virou rapidamente, a expressão ainda impassível, mas havia um leve tremor na sua postura.
— O que quer de mim, Lahan? — sua voz foi firme, mas havia um leve toque de nervosismo que ela não conseguiu esconder. Ela ainda tentava manter a fachada de controle, como se nada de extraordinário estivesse acontecendo.
Lahan a encarou com uma intensidade que ela reconhecia, mas desta vez não havia sorriso, ele se aproximou lentamente fechando a porta atrás de si, o silêncio entre eles pesado como um manto.
— Você realmente acha que pode esconder isso de mim, princesa? — sua voz estava baixa, mas carregada de uma ameaça velada. — Todos os sinais estão lá. Sua barriga está maior, os enjoos constantes, a fadiga... E o que me irrita, Jin-Ye, é o fato de você estar tentando me enganar, logo a mim princesa.
Ela deu um passo para trás, os olhos ainda tentando manter a compostura, mas a surpresa em seu olhar se misturava com o receio.
— Não sei do que está falando. — disse com firmeza, mas a mentira era tão óbvia quanto o medo estampado em seu rosto.
Lahan permaneceu parado, seu olhar não se desviando, ele já sabia o suficiente, mas agora precisava que ela fosse honesta. Ele não estava mais disposto a tolerar aquele jogo, "É tão difícil assim ser sincera? Qual é? Eu já vi ela inteira nua mais de uma vez e ainda ela fica com esse papinho torto.", o olhar dele era sério, enquanto analisava mentalmente cada detalhe da princesa.
— Você quer realmente me enganar? — sua voz se suavizou, mas o tom grave não mudou. Ele deu um passo à frente, se aproximando ainda mais dela — Vamos ver, então.
Jin-Ye não teve tempo de reagir.
Lahan estendeu a mão com firmeza, tocando sua barriga por cima das camadas pesadas de tecido. Ele pressionou levemente, mas com precisão, como se estivesse examinando o corpo dela com um olhar clínico.
— Não tem como esconder. — ele a encarou, a intensidade nos olhos mostrando que ele estava completamente ciente da situação. — Você está grávida, princesa. Isso não é algo que você possa negar, não a mim, esse filho é tão meu quanto seu.
O toque em sua barriga, ainda que por cima das camadas de tecido, fez o coração de Jin-Ye acelerar. Ela tentou se afastar, mas Lahan não a deixou, ele a manteve ali, com um olhar fixo no dela.
— O que quer de mim, Lahan? — ela repetiu, agora mais suave, seus lábios tremendo levemente. O orgulho dela ainda estava lá, mas a vulnerabilidade começava a transparecer. Ela estava à beira de ceder, mas a luta interna ainda a impedia de admitir.
Lahan a olhou com mais intensidade, agora com um sorriso sutil nos lábios.
— Quero que admita que é nosso filho que cresce em seu ventre, para de me enganar garota, sou filho de um estrategista, aprendi a analisar as pessoas nas entrelinhas. — ele disse com uma mistura de provocação e seriedade. — Eu já percebi o suficiente, não me subestime.
Ela fechou os olhos, e uma onda de emoções conflitantes tomou conta de seu corpo. Havia algo mais ali, algo que ela não sabia como lidar. Um medo, talvez. Ou um desejo escondido que ela tinha tentado ignorar, mas que estava agora à flor da pele.
Jin-Ye se afastou lentamente, colocando as mãos sobre o ventre, ainda coberto pelas camadas pesadas de tecido.
— Eu estou decidida a manter o bebê. — sua voz agora mais firme, como se a decisão fosse uma tentativa de se agarrar a alguma coisa que fizesse sentido em meio ao caos. — Mas não estou pronta para te dizer o que isso significa para mim. Eu não estou pronta para ser rejeitada por você. Porque agora, eu não apenas carrego uma vida que tem o seu sangue, mas... eu também tenho sentimentos por você, Lahan. E eu tenho medo de que isso tudo não seja o suficiente para me fazer bem, ou para fazer você me aceitar.
A declaração a deixou exausta. Ela se sentou em uma cadeira perto de uma mesa de madeira, tentando acalmar os próprios pensamentos, o corpo pesado pela carga emocional. O silêncio que se seguiu entre eles foi quase sufocante.
Lahan não deu espaço para mais desculpas. Ele a observou em silêncio por um momento, absorvendo as palavras dela, mas o que mais o atingia era a maneira como ela tentava esconder sua fragilidade. Algo dentro dele se mexeu. Era uma reação que ele não esperava, mas que não podia mais ignorar.
— Eu sei que não está pronta, Jin-Ye. — disse ele, agora com a voz mais suave. — Mas isso não muda o que já está acontecendo. Você não precisa enfrentar isso sozinha, não mais, sei que você tinha sonhos de viajar e conhecer o mundo, a chegada dessa criança com certeza atrapalhou o percurso das coisas.
Jin-Ye olhou para ele, sua expressão misturando confusão e algo mais, algo que ela não sabia identificar.
— Mas, isso não é o fim, um filho é uma benção princesa, ainda mais o fruto de um amor bonito, talvez caótico e construído de forma inesperada, jamais rejeitaria os seus sentimentos Jin-Ye, sabendo que sinto o mesmo por você. — Lahan disse de joelhos, tocando na barriga de Jin-Ye — Podemos viajar juntos antes do nascimento do bebê, posso te mostrar cada lugar desse vasto mundo. — sorriu — Ou após o nascimento dele se assim preferir.
Ela sentiu uma pressão no peito, e pela primeira vez, um alívio tímido e sutil.
Lahan se levantou dando um passo atrás, ainda olhando-a de forma intransigente, mas com um leve tom de preocupação.
— Eu estarei aqui, se você permitir, mas espero que, quando o momento certo chegar, você me permita ajudar a cuidar disso, você não o fez sozinha... Quero poder participar de cada passo de sua gravidez, não quero perder mais nada Jin-Ye.
Ela não respondeu de imediato, mas a expressão de Lahan não era mais de confronto, mas de um tipo de aceitação silenciosa. Ele sabia que o caminho seria longo, mas estava disposto a percorrê-lo.
— Eu não estou pronta para isso, Lahan. — sua voz tremia ligeiramente, mas o olhar dela continuava forte — Não estou pronta para ser uma princesa grávida, solteira e... cheia de sentimentos que você provavelmente não quer.
Ele a observava, sem entender o que ela queria dizer com "sentimentos", a confusão se misturava à compreensão que ele começava a adquirir.
— Você não está pronta para o quê? — perguntou ele, se aproximando um pouco mais, o tom mais suave agora, mas a frustração em seus olhos ainda evidente. — Não está pronta para ser mãe ou não está pronta para me ter ao seu lado?
Jin-Ye deu um passo para trás, como se as palavras dele tivessem a alcançado de forma dolorosa. Ela olhou para o chão, sentindo-se dividida, o peso da gravidez parecia maior a cada palavra que ele dizia. Ela queria gritar, mas não conseguia. Queria se esconder, mas sabia que não poderia por muito tempo.
Lahan a observou por um momento, processando o silêncio entre eles, mas também sentindo algo apertar em seu peito. Ele sempre soubera que havia algo mais em sua relação, algo que ia além de sua posição como nobre e princesa, mas aquilo... aquilo era mais do que ele esperava, ele a amava e acabara de dizer como a amava, porém para uma princesa e gestante, digerir tal declaração era complexo, ela querendo manter a racionalidade, quando dentro de si o coração gritava querendo mais dos toques e atenção daquele maldito estrategista.
Ele deu um passo em sua direção, olhando com seriedade, mas também com uma leveza que ela não conseguia identificar.
— Jin-Ye, eu não posso prometer que será uma trajetória fácil. Sei que, como princesa, você tem um papel que exige sacrifícios e também sei que a gravidez pode ser difícil, e que o mundo vai tentar nos destruir por isso, mas o que você tem que entender é que não vou te rejeitar. Não importa o que aconteça, o que me importa agora, é você e o bebê.
Ele fez uma pausa, seu olhar fixo nela, como se quisesse transmitir mais do que palavras podiam expressar.
— Eu nunca vou te abandonar, mesmo que não saiba como lidar com isso agora, mas, por favor, quando o momento certo chegar, me deixe estar ao seu lado. Não seja como Maomao, que sofreu em silêncio, eu estou aqui, Jin-Ye, não há necessidade de esconder isso de mim.
As palavras dele finalmente fizeram com que ela olhasse nos olhos dele novamente. Havia um alívio ali, mas também uma dor ainda latente. Jin-Ye sentia o peso do que ele dizia, e pela primeira vez em dias, sentiu que talvez não estivesse completamente sozinha.
Ela suspirou, o coração batendo mais rápido, mas agora havia algo novo, algo que ela não estava esperando: esperança. Ela não estava sozinha, e talvez, ao contar a ele, o fardo ficasse mais leve.
— Eu iria te contar, Lahan. — Ela finalmente disse, sua voz mais suave, mas ainda com um tom de dor. — Eu só... não sabia como.
Ele não respondeu de imediato, mas ao vê-la naquela posição, soubera que talvez não precisasse de palavras, apenas estar ali, ao lado dela, era o suficiente.
E, mesmo com os desafios à frente, com a tempestade política e as pressões do palácio, Lahan fez uma promessa silenciosa para si mesmo. Ele cuidaria dela, não importava o que acontecesse.
Ambos estavam em silêncio, mas o peso do que havia sido dito e, principalmente, o que ainda não havia sido dito pairava no ar.
Jin-Ye ainda não conseguia tirar os olhos de Lahan, havia algo diferente nele, algo mais seguro, mais determinado. Era como se ele tivesse aberto uma porta, e agora a visibilidade de suas intenções estavam clarsa — e ela não sabia como lidar com isso. Parte dela queria seguir em frente com esse novo entendimento, enquanto outra parte ainda se sentia assustada e vulnerável. Ela sabia o que sentia por ele, mas e ele? Agora que a verdade estava exposta, o que ele pensava disso?
Lahan, por sua vez, observava-a com uma intensidade que ela não conseguia mais ignorar, ele estava com a mente focada em algo mais profundo do que as palavras. Quando ele a tocara, quando havia falado com ela sobre a gravidez, ele já sabia que não havia mais como voltar atrás.
E quando ele a olhou, ele viu mais do que uma princesa, mais do que uma mulher forte e orgulhosa. Ele viu alguém que também estava carregando suas próprias inseguranças, seus próprios medos, talvez mais do que ele imaginava.
Ele se aproximou dela lentamente, sua presença pesada e suave ao mesmo tempo, e se sentou ao lado dela. Não fez mais perguntas, não pediu mais respostas. Tudo o que ele queria era estar ali, com ela, para o que fosse necessário.
Jin-Ye o observou por um momento, ainda sem palavras, mas com o coração mais pesado do que antes, ela havia feito uma escolha ao decidir manter a gravidez. Era uma escolha que viria com suas próprias consequências, mas ela sabia que seria forte o suficiente para enfrentá-las.
Mas o que ela ainda não estava certa era sobre Lahan.
Ela havia dito a ele o que sentia, e agora ele sabia da sua vulnerabilidade, ela não estava mais escondendo o que estava acontecendo. Porém, ainda havia o medo de ser abandonada por ele quando a pressão familiar e protocolar viesse, de ser vista como fraca. Uma princesa, com todos os deveres e a honra da família, não deveria carregar tanto medo dentro de si, mas ali estava ela, se entregando a ele de uma forma que nunca imaginou.
Lahan quebrou o silêncio, com um tom suave, mas também profundamente sério.
— Eu não vou te deixar sozinha, Jin-Ye, não importa o que o mundo ou o palácio esperem de você. Você não vai passar por nada disso sozinha. — reafirmou mais uma vez segurando as mãos da princesa.
Jin-Ye engoliu em seco. O peso das palavras dele a atingiu, e, pela primeira vez em dias, ela permitiu que uma lágrima rolasse pelo seu rosto, ela tentou se esconder, mas não havia como evitar a dor. A dor da responsabilidade, da escolha, do medo de não ser suficiente para a criança que estava carregando.
Lahan a viu, e sua mão foi automaticamente até o braço dela, tocando com suavidade.
— Eu sei que você tem medo. — ele disse, a voz baixa, agora mais suave — Mas, você não tem que ser perfeita e eu prometo que não vou te deixar carregar esse peso sem ajuda.
Jin-Ye olhou para ele, ainda sem palavras. Ela sentia que o que ele dizia era verdade, mas havia uma parte dela que ainda estava assustada, que não sabia como reagir a tudo aquilo. Como aceitar o apoio sem sentir que estava perdendo o controle sobre sua própria vida, sobre a decisão que havia tomado?
Ela não sabia, mas talvez o medo fosse a única coisa que ela precisava confrontar agora.
— Eu não sei como lidar com tudo isso, Lahan. — a confissão saiu baixa, mas com uma sinceridade que ela raramente mostrava. — Eu... não queria ter que depender de ninguém, muito menos de você. Não sou assim, mas... eu sei que não posso continuar essa história por conta própria por mais tempo e isso me assusta.
Lahan permaneceu em silêncio por um momento, seus olhos fixos nela, absorvendo suas palavras. Ele não respondeu imediatamente, mas havia algo em seu olhar que tranquilizou Jin-Ye, embora ela não soubesse o que exatamente fosse.
Ele a observou por mais alguns instantes, e então, sua mão foi até o cabelo dela, afastando uma mecha que caía sobre seu rosto, ele tocou sua bochecha suavemente, um gesto simples, mas cheio de cuidado.
— Não tem problema em se deixar ser cuidada, Jin-Ye. — A voz dele era quase um sussurro, mas o peso da sinceridade estava presente. — Eu não quero que você se sinta sozinha, nem com medo de me perder. Não preciso de perfeição, só preciso de você, com tudo o que é você.
Ela sentiu a intensidade do que ele dizia, e o peso das palavras dela, do medo, começou a desaparecer, ainda que aos poucos. Algo em seu coração se aquecia, e isso a fazia querer confiar nele, de uma forma que ela não havia feito com ninguém. Não naquele nível.
— Eu... vou tentar, Lahan. — Ela sussurrou, a voz embargada. — Eu vou tentar confiar em você.
Ele não respondeu, mas a puxou gentilmente para mais perto de si, até que ela se acomodasse em seu ombro, Jin-Ye, sem pensar, fechou os olhos, permitindo que ele a segurasse, sentindo o peso das palavras que ele havia dito. Algo estava mudando dentro dela, algo que ela não podia mais ignorar.
O ar no pequeno quartinho estava denso e quente, carregado com a tensão entre Jin-Ye e Lahan, o silêncio que havia seguido a troca de palavras entre eles agora se tornava pesado, mais palpável do que qualquer um dos dois imaginara. A proximidade de Lahan parecia incendiar a sala, e a princesa sentia a pressão em seu peito aumentar a cada segundo que passava.
Seus corpos estavam quase colados agora, e os olhos de Jin-Ye brilharam com uma intensidade que ela não sabia que possuía. O medo de ser vulnerável diante dele, de mostrar sua fragilidade, ainda estava ali, mas, em algum lugar dentro de si, ela se sentia segura o suficiente para se entregar àquilo. Algo nela sabia que não havia mais volta, que as palavras ditas e os gestos compartilhados entre os dois haviam dado início a algo que nem mesmo ela poderia mais controlar.
Lahan a encarava com os olhos intensos e a respiração controlada, mas algo em sua postura dizia que ele também estava à beira de se perder. Ele se aproximou-se dela com uma suavidade quase desesperada. Jin-Ye, que sentia sua pele arrepiar a cada movimento dele, não conseguiu mais resistir. Com uma mão, ela tocou seu rosto, e com a outra, ela puxou o uniforme dele, forçando-o a se aproximar ainda mais, sem hesitação.
A pele dela se arrepiou à medida que ele tocava seu corpo com a mesma urgência silenciosa. Lahan não precisava de palavras para entender o que ela queria. Ele ajudou a retirar o hanfu dela com um movimento fluido, seus dedos ágeis, mas delicados, desabotoando cada parte do vestido de forma quase reverente. Ele sabia que aquilo era mais do que um simples desejo físico; havia uma profunda conexão entre eles, algo que parecia transcender a urgência do momento.
Jin-Ye o olhou por um instante antes de se aproximar dele com uma força que surpreendeu até a si mesma. Ela retirou sua própria roupa, movendo-se com a confiança de quem havia finalmente feito as pazes com o medo que sentia. Ela estava entregue não apenas ao desejo, mas também ao alívio, ao desejo de sentir algo além das pressões que carregava há tanto tempo.
As mãos de Lahan eram cuidadosas, mas firmes enquanto ele desabotoava sua própria túnica, seus olhos fixos nela o tempo todo, como se quisesse memorizar cada segundo. Não havia pressa, mas a urgência dos corpos falava por si. Quando finalmente ela tocou seu peito, puxando-o para mais perto, ele sentiu o calor da pele dela se misturar ao seu, e o sentimento de se perder naquele toque se tornou inevitável.
Jin-Ye, por sua vez, não queria mais esconder nada, os sentimentos que tinha por Lahan, embora complicados, agora pareciam ser mais genuínos do que qualquer outra coisa que ela havia sentido antes. Ela queria ser dele naquele momento, mais do que qualquer coisa. Sua mão deslizou pela camisa dele, tocando o peito nu com um carinho feroz, enquanto seus lábios se encontravam novamente, dessa vez de maneira mais intensa.
Eles se entregaram ao beijo com uma paixão crescente, como se ambos soubessem que aquele era o único refúgio em meio à dor e ao caos que os cercava. Lahan, por mais que tivesse sido cuidadoso até aquele momento, agora não conseguia mais se controlar. Ele a puxou para si com força, a boca dele explorando a dela como se estivesse buscando algo mais, algo além daquelas paredes.
O beijo entre eles continuava, mas agora, em meio ao calor dos corpos se encontrando, havia algo mais – uma promessa silenciosa, um entendimento profundo de que aquilo, aquele momento, era deles. Jin-Ye, agora mais relaxada nos braços de Lahan, deixou-se levar pelas ondas de emoções conflitantes. O medo de se perder no que sentia foi lentamente substituído por uma confiança crescente em quem estava ao seu lado. Ela sabia que, ao menos naquele momento, poderia se entregar a ele, sem mais dúvidas, sem mais questionamentos.
E, à medida que os corpos se encontravam de maneira mais íntima, as palavras de Lahan voltaram à mente dela: "Eu não vou te deixar sozinha." Era isso o que ela sentia naquele momento – não mais sozinha, não mais carregando o peso de sua decisão sozinha. Ele estava ali, com ela, e isso parecia, pela primeira vez, certo.
[. . .]
O silêncio no pequeno quartinho do palácio foi quebrado por um grito súbito de Jin-Ye, tão alto e desesperado que ecoou pelos corredores de pedra.
— AH! — ela exclamou, apertando firme os tecidos da cama, as mãos trêmulas tentando se agarrar a qualquer ponto de estabilidade.
Lahan, ao contrário, parecia se divertir com o desespero que ela demonstrava, seus ombros estremeceram quando uma risada baixa escapou de seus lábios. O olhar escuro e travesso brilhava diante da reação dela, como se estivesse diante de um segredo que só ele sabia desvendar.
Ele inclinou-se sem pressa, roçando o nariz contra a pele exposta do pescoço de Jin-Ye antes de depositar ali um beijo demorado, firme, quase possessivo. O toque quente a fez arfar, e por um instante a concentração dela se desfez em pequenos tremores que percorriam todo o corpo.
— Você está mesmo tentando se controlar, não está? — ele sussurrou com malícia, a voz carregada de doçura e provocação. — Mas acho que está bem mais sensível do que eu imaginava, princesa.
Jin-Ye apertou os olhos, mordendo o lábio inferior com força.
Não queria ceder tão facilmente, não queria se render àquele sorriso insolente que ele exibia a cada reação dela, mas seu corpo a traía — cada arrepio, cada suspiro engasgado, cada estremecimento.
A cada palavra dele, os lábios traçavam um caminho lento pelo pescoço dela, deixando pequenas marcas de calor, beijos curtos que a incendiavam por dentro. Os dedos de Lahan apertaram a cintura dela com firmeza, puxando-a para mais perto, como se quisesse moldar o corpo dela ao seu.
— Não precisa lutar tanto... — ele murmurou, a boca tão próxima da orelha dela que o sopro de sua voz fez Jin-Ye estremecer. Uma risada abafada escapou de seus lábios, carregada de triunfo. — Eu gosto de ver você assim.
Ela respirou fundo, tentando recuperar alguma dignidade, mas quando virou o rosto para confrontá-lo, encontrou os olhos de Lahan fixos nos dela, escuros e intensos. Por um segundo, não havia brincadeira naquele olhar — apenas um desejo silencioso, profundo, que fez o coração dela disparar ainda mais.
— Você é insuportável... — Jin-Ye murmurou, a voz embargada pela mistura de irritação e vergonha.
O sorriso dele se alargou, e sem lhe dar tempo de pensar, Lahan aproximou ainda mais o rosto, deixando seus lábios a um sopro de distância dos dela.
— Talvez. — ele provocou, com um brilho quase perigoso no olhar. — Mas você não consegue se afastar, consegue?
Mas antes que Jin-Ye pudesse reagir, a voz conhecida de Jiang ecoou pelo corredor.
— Jin-Ye! Você está bem aí dentro? — ele gritou, batendo na porta com força. — Ouvi um grito...
O coração dela disparou, a adrenalina tomando conta, num pulo, Jin-Ye se endireitou, os olhos ainda arregalados, as mãos tremendo ao tentar ajeitar os cabelos desgrenhados. Sua mente corria em busca de uma desculpa rápida, qualquer coisa que não revelasse o quanto estava vulnerável naquele instante.
Lahan, por sua vez, reclinou-se de leve para trás, observando-a com um sorriso debochado, o riso baixo e contido vibrava em seu peito, como se aquela interrupção fosse apenas mais uma oportunidade de provocar.
Ela engoliu em seco, respirou fundo e gritou de volta, a voz embargada pela vergonha e pelo medo de ser pega em um momento tão íntimo:
— Jiang! — tentou soar firme. — Está tudo bem! Foi só um susto! Um... rato!
Do lado de fora, o silêncio se seguiu por um instante, depois, o som da voz preocupada de Jiang veio abafado pela porta.
— Um rato? De novo? Quer que eu chame alguém para verificar?
Jin-Ye arregalou os olhos ainda mais, virando-se para Lahan como se ele fosse parte da solução — mas ele apenas a encarava com aquele olhar preguiçoso e divertido, balançando a cabeça em negativa. Com um movimento súbito, inclinou-se até quase encostar os lábios no ouvido dela.
— Um rato? — sussurrou, malicioso, com a respiração quente roçando a pele dela. — É esse o nome que você dá quando grita por minha causa?
O rosto de Jin-Ye ardeu de vergonha, ela ergueu a mão para empurrá-lo, mas ele segurou seus dedos no ar com facilidade, rindo baixinho.
— Jiang! — ela respondeu rápido, tentando ignorar a provocação. — Não precisa! Eu mesma vou dar um jeito! Pode ficar tranquilo!
Jiang, que estava de pé do outro lado da porta, parecia cético, ele parou por um momento e então perguntou, levantando uma sobrancelha:
— Você tem certeza, Jin-Ye? Se precisar de ajuda para... tirar o rato, posso entrar.
Jin-Ye ficou um instante em silêncio, seu rosto queimando de vergonha, ela estava tentando controlar a respiração, enquanto Lahan a beijava ainda mais intensamente, como se a situação fosse a coisa mais natural do mundo. Ela sabia que tinha que sair daquela situação, mas o sorriso travesso de Lahan a impedia de raciocinar claramente.
Finalmente, ela gritou, desesperada para afastá-lo e afastar também qualquer possibilidade de Jiang entrar.
— NÃO! Eu... EU CONSIGO!
Jiang, ainda na porta, ficou um pouco desconfiado, mas não insistiu. Ele trocou um olhar com Lingli, que estava ao seu lado, tentando segurar a risada, mas não conseguiu evitar uma leve gargalhada.
— Está tudo bem, Jin-Ye. Só fiquei preocupado. — Ele disse, sem realmente acreditar nela, mas aceitando a explicação. — Se precisar, me avise. Vou ficar por aqui perto.
Mais alguns segundos de hesitação se passaram até que o som dos passos de Jiang e Lingli foram se afastando pelo corredor.
O silêncio voltou a preencher o quarto, denso, apenas cortado pela respiração acelerada de Jin-Ye, Lahan a soltou lentamente, mas não recuou, pelo contrário, inclinou-se ainda mais, encurralando-a contra a cama.
— Um rato, princesa? — ele repetiu, o sorriso brincando nos cantos da boca. — Vai ter que se esforçar mais se quiser esconder a verdade.
Jin-Ye bufou, tentando disfarçar o rubor intenso que subia às bochechas.
— Você... você é impossível. — murmurou, desviando o olhar.
Lahan ergueu o queixo dela com dois dedos, obrigando-a a encará-lo, o brilho travesso em seus olhos havia se tornado algo mais intenso, algo que fez o estômago dela se revirar em expectativa.
— Eu já te disse... — ele murmurou baixo, quase como uma promessa. — Eu gosto de ver você assim.
Ela então olhou para Lahan, que ainda parecia divertir-se com a situação, mas estava começando a se vestir, dando espaço para ela recuperar um pouco da compostura.
Jin-Ye tocou o rosto de Lahan, seus olhos tentando reter um olhar de culpa e frustração, mas, ao mesmo tempo, ela sabia que não poderia continuar mentindo para ele. Ela não estava mais pronta para jogar tudo para debaixo do tapete, como sempre fizera.
— Você vai me fazer morrer de vergonha... — ela murmurou, tentando dar um sorriso constrangido.
Lahan, com um sorriso travesso, a puxou para perto, dando um beijo rápido em sua testa.
— Mas você me ama de qualquer jeito. — ele disse, rindo baixinho — Agora, vamos sair antes que seu irmão ache que estamos escondendo mais ratos por aqui.
Quando Lahan e Jin-Ye saíram do quarto, a última coisa que esperavam era encontrar Jiang encostado em uma árvore próxima, com os braços cruzados e um olhar desconfiado, ele estava observando com atenção, os olhos fixos na irmã e no cunhado, aparentemente se perguntando o que exatamente havia acontecido ali dentro. — e infelizmente ele já sabia a resposta, usava o mesmo quarto para seu divertimento noturno com as servas.
Jin-Ye, com o rosto ainda corado, ajustou seu hanfu e tentou caminhar o mais naturalmente possível, embora o olhar de Jiang fosse implacável, Lahan, com seu usual sorriso irônico, deu um breve aceno para o irmão de Jin-Ye, como se estivesse se divertindo com a situação.
Jiang não comentou nada, mas o olhar atento dele, misturado com um leve sorriso, indicava que ele sabia muito mais do que Jin-Ye gostaria. Ele só balançou a cabeça e seguiu em frente, com Linglin ao seu lado, rindo baixinho.
Linglin, com a risada contida, sussurrou para Jiang:
— Acho que tem um novo "rato" no palácio, não é?
Jiang, com um suspiro resignado, apenas deu de ombros, sem responder.
Enquanto isso, Jin-Ye e Lahan continuaram pelo corredor, ambos em um silêncio confortável, mas com os pensamentos ainda intensos. Ela sabia que seu irmão provavelmente desconfiava de tudo o que havia acontecido, mas, por algum motivo, não se importava tanto quanto antes. Afinal, ela sabia que, ao lado de Lahan, talvez a vergonha e o medo começassem a se dissipar com o tempo.
Jiang e Linglin ainda estavam a poucos metros observando a cena, que seguiam pelo corredor, quando Linglin não conseguiu mais se segurar e estourou em risadas baixas.
— Você viu aquilo? — ela disse, com a voz cheia de diversão. — Jin-Ye estava mais vermelha do que um tomate!
Jiang franziu a testa, tentando manter o semblante sério, mas por dentro ele também estava se divertindo, embora de forma mais contida.
— E ela pensa que me engana. — ele suspirou, olhando para sua irmã com uma expressão de quem não estava nada feliz com a situação. — Ela está agindo como se eu fosse um idiota.
Linglin soltou mais uma risada, dessa vez mais alta, e sacudiu a cabeça.
— Não é isso, Jiang. — ela respondeu, ainda rindo. — É só que a sua irmãzinha já é crescida, igual o senhor.
Jiang estava prestes a responder quando Lingli olhou para o relógio e então começou a andar apressada.
— Mas, falando sério... — ela disse, com um tom mais sério, mas ainda com um sorriso travesso. — Não esqueça que a mamãe Ah-duo queria ver você urgentemente, a Lady Loulan chegou ao palácio e eles vão com certeza vão discutir sobre o matrimônio.
Jiang parou de repente, com o semblante irritado. Ele odiava esses encontros de "negócios", o casamento com Lady Loulan, claro, era algo que ele tentava evitar a todo custo.
— Eu sei... eu sei. — Jiang resmungou, passando uma mão pela testa. — Eu não tenho nenhuma escolha, né? Não posso muito bem fugir disso...
Linglin riu ainda mais, divertindo-se com a frustração do irmão.
— Pois é... e nem adianta fazer cara feia, irmão, não tem como escapar de um casamento arranjado quando você é o segundo na linha de sucessão. — ela provocou, com um sorriso travesso.
Jiang bufou, olhando para o chão, ele realmente não estava animado com a ideia de se casar com Lady Loulan, especialmente depois de tudo o que acontecera recentemente. Ele queria mais liberdade, mas sabia que a responsabilidade que carregava como irmão do príncipe herdeiro não lhe dava muitas opções.
— Não é justo, Lingli. — ele murmurou, mais para si mesmo do que para ela. — Por que todos têm que tomar decisões por mim? Não posso nem ao menos escolher quem vou amar.
Lingli não respondeu imediatamente, mas sua expressão suavizou um pouco ao perceber a frustração genuína no rosto do irmão. Ela sabia o quanto ele odiava esse tipo de pressão, mas também entendia que ele não tinha escolha.
— Se você fosse mulher por um dia se matava. — ela respondeu, com uma suavidade rara. — Mas você tem que fazer isso, vai passar logo... e, quem sabe, você até se surpreenda. Às vezes o que parece ruim no começo acaba sendo... o que você precisava.
Jiang a olhou por um momento, e então suspirou, aceitando o fato de que nada mudaria por enquanto.
— Talvez você tenha razão. — Ele disse, finalmente cedendo. — Mas ainda assim... Lady Loulan? De todos os outros...
Linglin deu um tapinha no ombro dele e começou a andar em direção à sala onde a reunião estava acontecendo.
— Vamos lá, irmão. — Ela sorriu com simpatia, tentando aliviar a tensão no ar. — O melhor a fazer agora é ir até a mamãe e lidar com isso. Não podemos ficar aqui o dia todo, ou ela vem nos caçar.
Eles seguiram até o grande salão onde a reunião com Lady Loulan estava prestes a começar, mas antes que entrassem, uma figura familiar apareceu ao fundo, Maomao, ainda com a saúde fragilizada devido ao envenenamento, caminhava com certa dificuldade ao lado de Jinshi. Ela usava um hanfu lilás mais simples, mas sua postura ainda era forte e digna, como se tentasse esconder qualquer sinal de fragilidade.
Ao vê-la, Jiang parou imediatamente, seu olhar imediatamente se suavizando, ele não podia deixar de se preocupar com a irmã, ainda mais após o que acontecera. Maomao, embora visivelmente pálida e exausta, estava fazendo um esforço claro para parecer forte, como se não quisesse ser vista como vulnerável diante dos outros.
Linglin reparou no olhar de Jiang e sorriu suavemente.
— Ela parece um pouco melhor, não parece? — ela perguntou, com um toque de preocupação, mas tentando aliviar a atmosfera.
Jiang apenas assentiu, sem palavras, enquanto observava a irmã se aproximar, quando Maomao viu Jiang, ela parou e sorriu fracamente, acenando com a mão, mas seu sorriso não alcançou totalmente seus olhos.
Jinshi estava ao lado dela, preocupado, mas com uma expressão calma, ele fez uma ligeira reverência ao irmão, mantendo um semblante de respeito.
— Maomao, você está bem? — Jiang não pôde evitar perguntar, sua voz suave, mas com a carga de preocupação evidente.
Maomao deu um suspiro e assentiu, tentando não mostrar o quanto ainda se sentia fraca.
— Estou... estou melhor. Obrigada, Jiang. — ela disse, tentando manter a compostura, mas sua voz ainda estava um pouco tremida. — Mas acredito que você não. — brincou mostrando a língua ao irmão.
Jinshi olhou para Jiang, com um pequeno sorriso forçado.
— Ela está se recuperando, mas o veneno a deixou em um estado muito frágil, estamos fazendo o que podemos. — Jinshi explicou, como se quisesse diminuir qualquer preocupação.
Jiang apenas assentiu, mas seus olhos ainda estavam fixos em Maomao, ela parecia tão forte, mas ao mesmo tempo tão fragilizada.
O salão estava iluminado por lanternas de seda, com as cortinas carmesim suavemente agitadas pelo vento de outono. No centro, o Imperador se encontrava em posição de autoridade, ao lado da Imperatriz Ah-Duo, cuja postura serena escondia uma mente sempre atenta.
À frente deles, o Primeiro Ministro Shi, de cabelos grisalhos cuidadosamente presos em um coque alto, mantinha o ar grave de quem estava habituado a ditar os rumos da política. Ao seu lado, estavam as filhas: Princesa Suirei, elegante e discreta, o cabelo azulado dava o contraste perfeito com o hanfu perolado com bordados em prata, e Lady Loulan, que destoava pela aura vibrante — cabelos em tom arroxeado, olhos verdes que brilhavam como pedras preciosas.
Jiang se encontrava diante do trono, trajado em uniforme cerimonial, os cabelos pretos soltos caindo sobre os ombros, os olhos rubros fixos no chão, ele mantinha a compostura, mas a cada menção de casamento, o maxilar dele se contraía, arrancando discretos risinhos de alguém que o observava de longe.
Sentados em um canto reservado, Jinshi e Maomao assistiam, ele, com a compostura de sempre, sério e elegante; ela, tentando conter o riso ao observar os trejeitos de Jiang diante das falas do Imperador.
— O matrimônio entre o príncipe herdeiro e Lady Loulan fortalecerá a união de nossas famílias e consolidará a paz entre as províncias. — declarou o Imperador, a voz ressoando pelo salão.
O Primeiro Ministro Shi inclinou a cabeça, satisfeito:
— Seria uma honra ver minha filha mais nova unida à linhagem imperial. Assim como já é uma honra ter Suirei fazendo parte dela.
Maomao mordeu o lábio, mas não resistiu e inclinou-se para perto de Jinshi.
— Olhe para ele... parece que vai explodir a qualquer instante. — sussurrou, a voz mal contendo a risada.
Jinshi olhou para a esposa com ternura, mas manteve o tom sério.
— Maomao... contenha-se.
Era raro vê-la tão descontraída, rindo abertamente em meio a uma reunião política. Sabia que aquele casamento arranjado, a presença da Imperatriz Ah-duo, do próprio Imperador e ainda do primeiro-ministro do clã Shi exigiam compostura — mas também era a primeira vez em dias que Maomao se permitia participar, rir e brincar diante de todos. Ele não queria repreendê-la de verdade, apenas lembrá-la de que estavam diante de olhos que não perdoavam deslizes.
Ela ergueu a sobrancelha, travessa, os lábios arqueados em deboche suave.
— E perder a chance de ver a cara dele agora? Nem pensar.
O olhar dela se desviou para Jiang, sentado um pouco afastado, que fazia esforço para manter a compostura, embora cada traço em seu rosto denunciasse um tédio mortal. Quanto mais ele se esforçava para não reagir, mais engraçado Maomao achava.
Jinshi suspirou, a ponta dos dedos tocando de leve o dorso da mão dela sob a mesa, em advertência silenciosa, mas no fundo, não conseguia evitar: também sentia vontade de rir. A ternura com que a encarava deixava claro — por mais que tentasse manter a máscara, Maomao sempre quebrava as barreiras dele com aquela espontaneidade irritante e irresistível.
O disfarce de Maomao caiu quando Jiang suspirou pesadamente, quase revirando os olhos ao ouvir "Aliança sólida" pela terceira vez. Ela soltou uma risadinha baixa, e até Jinshi não conseguiu segurar um leve sorriso.
Do outro lado, Lady Loulan se manteve impecável, as mãos delicadas repousando no colo, escutando atentamente cada palavra. Seus olhos verdes, porém, não deixavam de espiar de relance o príncipe — aquele jovem de postura rebelde e olhar ardente que parecia querer estar em qualquer lugar, menos ali.
Após longas deliberações, o Imperador concluiu com firmeza:
— A aliança será firmada no próximo ciclo da lua. Jiang, prepare-se. — ele voltou o olhar para a jovem de cabelos arroxeados, cujo semblante permanecia sereno e calculado — Lady Loulan, a corte lhe dará todo o suporte necessário.
Um silêncio denso caiu sobre o salão, Jiang se ergueu e se curvou diante do trono, o tom respeitoso contrastando com o amargor que queimava em seus olhos. Quem o conhecia o suficiente, sabia — aquele olhar era veneno engarrafado, prestes a transbordar.
Ao lado, Lady Loulan também se levantou, o porte impecável, seu vestido em tons profundos de púrpura reluzia sob a luz das lanternas douradas, e seus olhos verdes, cintilantes, não se desviaram de Jiang nem por um segundo. Não havia submissão em sua postura, mas algo que se assemelhava a um desafio silencioso.
Maomao, que até então se esforçava para não rir, mordeu o lábio quando os olhos de Jiang se estreitaram, tensos. Ela virou-se discretamente para Jinshi, e cochichou com um sorriso travesso:
— Ele parece uma raposa presa numa armadilha e não vai conseguir sair.
Jinshi a repreendeu com um olhar sério, mas apertou de leve a mão dela sob a mesa, tentando abafar o próprio riso.
A Imperatriz Ah-duo, com sua expressão majestosa, fez um gesto de encerramento, o peso da decisão já estava firmado. Os ministros, eunucos e concubinas levantaram-se lentamente, cada um carregando no semblante a consciência de que um passo importante para o império havia sido dado — mas talvez não tão pacífico quanto desejado.
[. . .]
Jardim Imperial
A formalidade havia se desfeito, e o silêncio do jardim contrastava com a agitação do salão. Jiang estava sozinho, apoiado em uma árvore, respirando fundo como se buscasse escapar da pressão que se acumulava.
— Não parece muito feliz com a decisão, Alteza. — a voz suave de Lady Loulan o fez erguer o olhar.
Ela caminhava com elegância, a luz da lua refletindo nos cabelos roxos, enquanto os olhos brilhavam com uma mistura de curiosidade e firmeza.
Jiang arqueou uma sobrancelha.
— Feliz? — ele riu sem humor. — Digamos que esse casamento não é exatamente o que eu desejava.
Loulan parou diante dele, estudando-o com calma.
— Acredito que nenhum de nós desejava essa união. — disse, sem ironia, apenas constatando.
O olhar rubro de Jiang encontrou o dela, e por um instante não havia príncipe nem filha de ministro, apenas dois jovens encarando o peso de seus papéis.
— Você não parece surpresa. — ele comentou.
Ela sorriu de leve, um sorriso que carregava mais maturidade do que a idade deixaria supor.
— Não estou, quando você cresce no meio de nobres, é tratado com normalidade crescer sabendo que um dia seria moeda de troca. A diferença é... — ela inclinou levemente a cabeça, fixando-o com intensidade. — ...que eu prefiro saber com quem estou lidando.
Jiang a encarou, surpreso com a franqueza.
O jardim imperial estava calmo, o vento de outono brincando com as folhas amareladas, lanternas balançando suavemente e o cheiro de flores misturado à terra úmida. Jiang e Loulan caminhavam lado a lado pelos caminhos de pedra, cada um mantendo seu espaço, mas a tensão entre eles era palpável.
— E já sabe? — Jiang disse desviando o olhar, sentindo o coração apertar.
A mulher diante dele não era como as damas da corte: havia algo de desarmante na confiança com que ela se portava, como se já conhecesse todas as fraquezas dele.
— Ainda não, — respondeu ela, a voz firme, tentando se impor. — mas os sinais que Vossa Alteza dá lembram uma criança mimada quando não tem seus pedidos atendidos.
Jiang soltou uma risada baixa, sarcástica, e balançou a cabeça:
— Sério? Uma criança mimada? Que descrição tão exagerada... — respirou fundo, tentando não perder a paciência. — Cuidado com suas palavras, Lady Loulan... — disse ele, a voz grave, mas carregada de irritação. — Em menos de um mês você estará... presa a mim.
Ela sorriu outra vez, desta vez com divertimento puro, sem qualquer malícia, apenas gozando com a situação.
— Presa a você? — repetiu, inclinando a cabeça, fingindo surpresa. — Que pena… mas sinto muito, príncipe. Não sou eu que estou presa, mas sim você preso comigo. E isso… ah, isso deve ser muito mais desconfortável, não acha?
Jiang fechou os punhos por baixo das mangas, sentindo a irritação subir. Cada palavra dela era um lembrete do quão pouco ele queria aquela aliança.
— Lady Loulan… — murmurou, tentando manter a compostura. — Não há nada divertido nisso. Casar-me com você não é algo que eu deseje, e mesmo que eu sendo obrigado… não significa que tenha que sorrir com isso.
Loulan deu de ombros, como se a opinião dele pouco importasse, e soltou uma risada leve, caminhando alguns passos à frente.
— Eu só estou me divertindo com você, príncipe Jiang. — disse, o tom leve, quase brincalhão. — Ver a cara de alguém que detesta tanto uma obrigação é, francamente, mais interessante que qualquer outra coisa neste palácio.
Ele cerrou os dentes, mas não pôde deixar de notar o contraste entre a frieza da aliança e a naturalidade com que ela ria. Por dentro, ele se sentia aprisionado, mas não podia admitir que, mesmo com toda a irritação, aquele contraste o prendia de um jeito estranho.
— Pois saiba, Lady Loulan — retrucou, tentando soar firme — que eu não me divertirei com nada que envolva este casamento e não há risada que mude isso.
— Ah, mas podemos ver isso como um jogo. — Loulan disse, novamente sorrindo, os olhos verdes faiscando com um brilho de triunfo divertido — Se preferir, podemos fazer um acordo.
Jiang arqueou a sobrancelha, a curiosidade mexendo com ele apesar da irritação, fez um gesto com a mão, incitando-a a continuar, embora a rigidez em sua postura deixasse claro que não confiava totalmente na audácia dela.
— Esse casamento não interessa a nenhuma das partes, é um fato — começou Loulan, a voz calma e persuasiva — mas não necessariamente precisamos consumá-lo.
Jiang franziu o cenho, surpreso, ela realmente ousava falar como se pudesse ditar os termos de um casamento arranjado pelo próprio imperador.
— Sou uma mulher que preza pela liberdade — prosseguiu Loulan, caminhando alguns passos à frente, gesticulando com delicadeza — e, pelo histórico do príncipe, a libertinagem parece combinar mais com seu perfil. Assim, poderia manter suas relações como desejar, desde que eu possa caminhar além dos portões do palácio e cuidar da minha coleção de insetos.
Jiang quase engasgou com a última parte, franzindo o nariz e cruzando os braços, incrédulo.
— Coleção de… insetos? — murmurou, a voz carregada de desaprovação.
— Sim! — Loulan explodiu numa risada suave, divertida com a careta dele — Parece bobo, mas é o que me mantém entretida e independente.
Ela deu um passo mais próximo, olhando para ele de um jeito tão sério quanto ousado:
— Assim, claro, ainda temos o dever como marido e esposa de gerar filhos. Podemos ter dois ou três, se preferir. Mas o resto da vida? — sorriu com malícia contida — Imagino que devemos manter uma relação de amizade e respeito mútuo… sem cobranças, sem obrigações desnecessárias. Consumar o casamento apenas na hora de cumprir nosso dever de perpetuar alinhagem da família. Essa é a minha oferta, Alteza.
Jiang a encarou, sem conseguir desviar o olhar, por dentro, seu cérebro corria tentando processar o absurdo e a audácia de Loulan. Não conseguia decidir se queria rir, se indignar ou se simplesmente se afastar dali. Ela falava com a confiança de quem não tem medo de ninguém, e ainda assim, ele se sentia desconcertado.
— E você espera… que eu aceite isso? — ele perguntou, a voz baixa, grave, mas com um traço de incredulidade. — Que eu concorde com suas condições e apenas… siga o seu ritmo?
— Exatamente. — Loulan respondeu, inclinando a cabeça, o sorriso se mantendo, mas agora mais sério. — Não estou propondo nada impossível, apenas estou sendo honesta. É o melhor que podemos fazer, considerando que nenhum de nós quer esse casamento de verdade.
Jiang mordeu o lábio, olhando para o chão de pedra do jardim.
Ele sentia o peso da obrigação real, a responsabilidade de cumprir a aliança, mas também não podia negar que Loulan tinha inteligência e… coragem. Ela não apenas ria dele; ela o testava, desafiava cada fibra de sua rigidez, cada princípio que ele tinha.
— E se eu recusar? — ele perguntou, finalmente erguendo os olhos, encarando-a com seriedade. — O Imperador não ficará satisfeito, e não há como escapar da obrigação…
— Então teremos que lidar com isso depois, não é? — Loulan deu de ombros, divertida, como se o futuro de toda a corte pouco importasse frente ao prazer de ver Jiang desconcertado — Até lá, príncipe, aproveite para se acostumar com a ideia de ter alguém que não se dobra às regras da corte.
Jiang respirou fundo, sentindo o coração apertar e o sangue esquentar nas veias, por mais que quisesse fugir da situação, estava claro que Loulan não era como as outras damas. Ela não seria uma esposa submissa ou complacente; ela teria voz, atitude e um jeito que deixaria qualquer um em alerta. E, de algum modo, isso o irritava e intrigava ao mesmo tempo.
— Muito bem, Lady Loulan — murmurou, finalmente, a voz firme, mas carregada de tensão — vamos ver como será conviver com uma mulher tão… irreverente, mas saiba que não espere facilidades de mim.
Loulan sorriu, satisfeita, e se inclinou ligeiramente em uma reverência quase brincalhona:
— Nem eu espero, príncipe. Isso tornaria tudo muito sem graça.
Eles continuaram a caminhar pelo jardim, os passos silenciosos sobre as pedras, cada um envolto em seus próprios pensamentos, mas a tensão entre eles parecia mais viva do que nunca.
Ela podia rir, implicar e brincar, mas ele sabia que não conseguiria se livrar do destino que o aguardava — e isso o deixava com a garganta seca, o coração apertado e um desejo silencioso de encontrar uma saída, mesmo sabendo que não existia.
O vento balançou as folhas, e o silêncio caiu entre eles novamente, carregado de tensão, humor contido e frustração mútua, deixando claro que o jardim, apesar de belo, se tornara palco de uma batalha silenciosa entre dois espíritos teimosos.
[. . .]
O som distante da reunião ainda ecoava nos corredores do palácio quando Maomao e Jinshi se afastaram para um dos jardins internos, longe dos olhares atentos da corte. As lanternas espalhadas pelas alamedas davam uma luz cálida, refletindo nos olhos dela, e a brisa suave carregava o perfume das flores tardias de outono.
Maomao respirou fundo, apoiando-se levemente no braço de Jinshi. Ele a observava com cuidado, percebendo a tensão que ainda se escondia por trás do sorriso leve que ela tentava manter.
— Você estava… incrível na reunião. — Jinshi começou, a voz baixa, quase um sussurro — Mesmo rindo de Jiang, você conseguiu manter a compostura e não se deixar levar completamente.
Maomao desviou o olhar, um sorriso leve brincando nos lábios, mas seus olhos denunciavam cansaço.
— Ah, ele merecia — respondeu ela, brincando com um fio solto do vestido, mas a voz carregava um traço de exaustão — Eu não podia deixar que aquela cara de aborrecimento de Jiang ficasse sem uma lembrança divertida.
Jinshi deu um pequeno riso, aproximando-se mais dela, a mão tocando delicadamente seus cabelos para ajeitar uma mecha que caíra sobre o rosto dela.
— Mesmo assim, você deveria ter descansado um pouco antes. — disse ele, quase repreensivo, mas com um sorriso suave. — Não quero que se desgaste demais, nem que carregue todos os problemas sozinha.
Maomao inclinou a cabeça, encostando-se ao peito dele, o toque era reconfortante, e ela se permitiu relaxar naquele instante, sentindo a segurança que sempre encontrava nos braços dele.
— Eu sei que você se preocupa — disse ela, a voz baixa, carregada de ternura — e eu agradeço por isso, mas às vezes, sinto que se eu me apoiar completamente em você, estou tirando um pouco da liberdade que me faz sentir capaz… entende?
— Entendo, — Jinshi respondeu, segurando as mãos dela com firmeza, entrelaçando os dedos — mas liberdade não significa carregar tudo sozinha. Eu posso ser seu apoio sem sufocar você, Maomao. Só quero estar ao seu lado.
Ela suspirou, fechando os olhos por um instante, sentindo o calor dele envolvendo-a, um silêncio confortável pairou entre eles, preenchido apenas pelo som do vento e do jardim.
— Obrigada… — disse Maomao, finalmente olhando para ele, os olhos brilhando com gratidão e um toque de vulnerabilidade. — Por me dar espaço e ainda assim estar aqui. Por ser… meu porto seguro.
Jinshi inclinou a cabeça, depositando um beijo suave na testa dela.
— Sempre, Maomao. Sempre serei.
Ela sorriu levemente, se aconchegando mais a ele, permitindo-se um raro momento de paz no meio de toda a tensão política.
Maomao caminhava ao lado de Jinshi, apoiando-se discretamente em seu braço, sentindo a segurança que só a presença dele conseguia oferecer. A brisa suave do outono trazia consigo o aroma distante das flores do jardim, e cada passo parecia carregar o peso e o alívio dos últimos dias.
— Confesso… — começou Maomao, a voz baixa e hesitante, quase temendo o eco de suas próprias palavras — que nunca imaginei que passar por tudo isso seria tão difícil… tão doloroso.
Jinshi permaneceu silencioso, apenas apertando levemente o braço dela em resposta, incentivando-a a continuar, sem pressa, sem julgamentos.
— Perder… — ela engoliu a seco, desviando o olhar, a ponta dos dedos enroscando-se na manga do hanfu — foi… mais doloroso do que pensei que seria,mas também me fez perceber o quanto desejo ter filhos de alguma forma… — pausou, respirando fundo — que ainda podemos planejar...
Ele olhou para ela, atento a cada nuance da expressão dela, cada pequena hesitação, cada brilho de determinação que surgia por entre a vulnerabilidade.
— O que você quer dizer, Maomao? — perguntou, a voz firme, mas carregada de ternura.
Ela respirou fundo, encarando-o nos olhos, sentindo o calor do peito dele ao lado do seu.
— Quero dizer que, mesmo com tudo, mesmo com o medo que senti… eu quero que tentemos novamente. Agora que estou me recuperando, agora que pude perceber o quanto você esteve ao meu lado, eu… eu quero que voltemos a tentar ter um filho.
Jinshi sentiu o coração acelerar, o peito apertando de uma forma que misturava alegria e receio. Ele a olhou nos olhos, tentando compreender a coragem que ela acabara de lhe mostrar, cada palavra dela era um fio delicado entre esperança e vulnerabilidade, e ele sentiu o peso de ser o porto seguro que ela precisava.
— Maomao… — começou, a voz firme, mas carregada de emoção — suas palavras… me deixam tão feliz… mas ao mesmo tempo… — ele respirou fundo, segurando sua mão com força, como se quisesse transmitir que não a deixaria jamais — tenho medo. Medo de que algo aconteça novamente, de que você sofra…
Ela apertou a mão dele, sentindo cada batida do coração dele, a intensidade da preocupação dele atravessando o toque. Um sorriso frágil se formou em seus lábios, e ela se inclinou para depositar um selinho suave nos dele, antes de cobrir seu rosto com a outra mão, como se quisesse proteger a própria vulnerabilidade.
— Eu estarei preparada para isso, Jinshi — disse, a voz firme, mas com um leve tremor de emoção — e quero que saiba que também quero que você esteja ao meu lado. Não apenas como marido, mas como meu abrigo.
Jinshi suspirou profundamente, sentindo uma onda de ternura misturada à ansiedade, ele fechou os olhos por um instante, absorvendo o peso e a beleza daquele momento, antes de voltar a encará-la com intensidade. Lentamente, inclinou-se e depositou um beijo suave na testa dela mais uma vez, um gesto cheio de cuidado e amor.
— Então vamos fazer isso juntos, Maomao, sem pressa, sem cobranças e com cuidado. — disse ele, mantendo o toque firme na mão dela. — Eu prometo estar ao seu lado em cada passo e se alguma coisa tentar te ferir, mesmo que seja mínima, você terá em mim seu porto seguro. Sempre.
Ela deixou-se recostar levemente no peito dele, sentindo o calor e a segurança que só a presença dele podia oferecer.
— Obrigada, Jinshi… — murmurou ela, o corpo relaxando contra o dele, o coração ainda batendo acelerado. — Por me entender, por me proteger… e por me amar, mesmo quando eu ainda tento ser forte demais.
Ele sorriu, acariciando delicadamente os cabelos dela, sentindo uma mistura de alegria, alívio e uma ponta de medo que nunca desapareceria totalmente.
— Não precisa agradecer, Maomao… É meu dever, meu prazer e minha honra — respondeu ele, a voz firme, mas suave. — E não importa o que aconteça, seja o que for, nós faremos isso juntos. Eu prometo.
Ela sorriu timidamente, sentindo-se leve por finalmente ter compartilhado seu desejo, por um momento, o trauma e a dor pareciam recuar, substituídos por esperança e confiança.
Enquanto chegavam aos aposentos, ele ajudou-a a se acomodar no divã, cobrindo-lhe suavemente com uma manta e observando cada gesto dela com atenção e cuidado, Maomao, recostada contra os travesseiros, deixou-se relaxar, sentindo-se segura, como se cada preocupação pudesse ser partilhada com ele dali em diante.
O silêncio entre os dois não era pesado; pelo contrário, era um espaço de intimidade, de compreensão mútua, onde palavras não eram necessárias, mas os sentimentos falavam alto. E, pela primeira vez desde o incidente, Maomao sentiu que podia olhar para o futuro sem medo, sabendo que Jinshi estava ao seu lado, pronto para ser o porto seguro que ela tanto precisava.
[. . .]
Nos dias seguintes, pequenas rotinas começaram a criar um conforto silencioso entre eles: Jinshi ajudando Maomao a preparar o banho, cobrindo-a com toalhas macias e garantindo que não se machucasse; Maomao oferecendo pequenos sorrisos de gratidão, ou passando o braço ao redor do pescoço dele durante o jantar, apenas para sentir a presença dele.
À noite, eles conversavam sobre a futura gravidez, sobre como cuidariam da criança e das alegrias simples de criar uma vida juntos. Maomao, embora ainda carregasse o trauma da perda, se permitia sonhar em voz alta, e cada vez que ele a ouvia, Jinshi sentia uma mistura de ansiedade e felicidade, desejando protegê-la de tudo e todos.
— Você vai ver, Maomao — disse ele uma noite, enquanto se sentavam juntos perto da lareira — essa próxima vez será diferente. Eu estarei aqui a cada segundo, e nada poderá nos separar.
— Eu sei — respondeu ela, segurando a mão dele com força e depositando um selinho em seus lábios. — E mesmo que tenha medo, agora sinto que estou um pouco mais segura com essa decisão.
Nos momentos de intimidade, não havia pressa nem exigência, eles se permitiam apenas estar juntos, rir das pequenas bobagens do dia, trocar carícias e reforçar o vínculo que, apesar da dor recente, havia se tornado mais profundo e sólido do que nunca. A tensão política, os medos e as responsabilidades do palácio pareciam evaporar nesses instantes, deixando apenas o calor de duas pessoas aprendendo a ser fortes juntas.
— Você sabe — disse Jinshii, enquanto observavam as estrelas pela fresta da janela — se continuar me olhando desse jeito, vou acabar me apaixonando de novo por você.
— E se eu disser que já estou completamente perdido por você? — respondeu Maomao, apertando suavemente a mão dele.
Havia cuidado nas pequenas coisas: ele lembrava-se de preparar comidas que fortalecessem seu corpo, ela se permitia aceitar massagens nos ombros e pés quando a fadiga batia, e juntos riam das pequenas trapalhadas do dia a dia, como quando Maomao tentava cozinhar e queimava ligeiramente o chá ou quando Jinshi derrubava a fruta da bandeja.
À noite, deitados lado a lado, Maomao confidenciava seus medos em voz baixa, e Jinshi a escutava com atenção, passando os dedos pelos cabelos dela, segurando suas mãos e murmurando palavras de segurança e encorajamento
E assim, dia após dia, eles começaram a reconstruir o futuro, passo a passo, com amor, cuidado e paciência, preparando-se para a próxima tentativa de trazer uma nova vida ao mundo — não apenas como filhos da realeza, mas como o reflexo de um vínculo inquebrantável, forjado na dor, na confiança e no afeto mais profundo.
Chapter 22: Propostas
Notes:
Quero esclarecer algumas coisas com meu sumiço por aqui, eu comento mais no meu tiktok (@luemcenaa) quando farei atualizações, mas sei que nem todos me acompanham por lá, então aqui vai.
Quem acompanha a fanfic desde o inicio sabe que faço faculdade, eu tinha mais tempo pelo dia porque ficava livre e conseguia escrever mais de 3 a 4 capítulos na semana sem perder a qualidade, mas agora eu trabalho em tempo integral em uma escolinha e como cuido de crianças, a atenção é maior e pela noite eu estudo.
Então acabei que escolhi postar os capítulos por aqui dia de sexta e sábado, tendo 1 ou 2 capítulos publicados na semana, conforme eu tiver tempo nos intervalos para escrever.
EU LI OS COMENTÁRIOS DE TODOS OK? Só não consegui responder com calma ainda, mas farei isso amanhã sem falta, bom com isso espero que gostem do capítulo.
Boa leitura a todos :)))))
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
As investigações sobre o caso de envenenamento da Princesa da Lua pareciam andar em círculos, nenhum dos homens enviados pelo Imperador — dos mais experientes ao mais ardiloso — havia obtido êxito. Cada pista desaparecia como fumaça. As ervas encontradas nos aposentos eram falsas, os indícios de veneno se contradiziam e os servos envolvidos, misteriosamente, “sumiam” antes de serem interrogados.
Quando, enfim, a notícia chegou a Lakan de que sua filha havia sido não apenas uma, mas repetidas vezes alvo de tentativas de assassinato, o homem quase explodiu os portões do palácio imperial. Servos juraram que o som de sua fúria ecoou pelo distrito como se fosse um trovão em noite de verão.
— Eu vou arrancar a cabeça desse Imperador! — bradou, vermelho de raiva, já dando passos largos.
Foi então que três vozinhas se ergueram contra ele, pequenas muralhas de calma diante da tempestade.
Fen Fang, sério para a idade, ergueu o queixo, imitando a postura adulta:
— Pai! Se o senhor for assim, quem vai fazer guerra é o senhor mesmo!
Lakan parou por um instante, surpreso, mas ainda bufando.
Zhìyuǎn, franzindo a testa, completou com o jeito pragmático que herdara do pai:
— A Maomao precisa do senhor aqui, não preso, se o senhor for bravo demais lá dentro, vai sumir também… e aí quem fica com ela? Ou melhor com a gente e a mamãe?
O homem engoliu em seco, o olhar vacilando, era estranho ouvir isso de uma boca tão pequena.
Yaling, a menorzinha, cruzou os bracinhos e falou com um brilho esperto nos olhos:
— Então mande presentes! Muitos! Assim ela não esquece que tem um pai grandão aqui fora. — sorriu travessa segurando uma boneca de pano desmembrada que lembrava o Príncipe da Lua.
Fen Fang olhou para a irmã, meio desconfiada:
— Presentes não resolvem tudo, Yaling.
— Mas ajudam! — insistiu a menina. — Mande flores, livros bonitos, tecidos… qualquer coisa que faça ela sorrir. Assim ela lembra que tem pra onde voltar.
Zhìyuǎn assentiu, com um ar mais pensativo:
— É… pelo menos assim ela vai saber que não está sozinha, embora o Lahan esteja lá, mas ele e nada é igual nada.
Uma explosão de risadas infantis ecoaram pelo pequeno gabinete de Lakan, o homem olhou para os três filhos sorrindo, a fúria que antes queimava dentro dele, já não existia, mas a visão dos filhos — tão pequenos e, ainda assim, tentando segurá-lo no chão — fez com que a respiração se tornasse mais lenta.
— Vocês… falam como se fossem adultos. — murmurou, quase resmungando.
Yaling deu dois passinhos para frente e puxou a manga da roupa dele:
— Não precisa ser Imperador, papai, só precisa ser nosso pai e o pai da Maomao.
O silêncio caiu. O trovão dentro dele não sumira, mas havia se transformado em um peso mais controlado, Lakan inspirou fundo, os punhos ainda cerrados, mas sem a mesma fúria, agora ria da forma como Yaling falava.
— Pois bem. — disse enfim, a voz grave. — Se não posso invadir o palácio, então ela vai sentir minha presença mesmo assim. Eu vou mandar tudo o que for preciso… e que esses covardes saibam que Maomao tem a força do meu sangue por trás dela.
As crianças se entreolharam, comemorando a pequena vitória, finalmente eles tinham conseguido acalmar a fera, em dias.
[. . .]
Lakan caminhava de um lado a outro, os passos duros ecoando pelo gabinete. A fúria ainda queimava em seus olhos, mas agora vinha misturada a uma determinação fria. Ele não podia atravessar os portões do palácio sem acender uma guerra, mas não ficaria de braços cruzados.
Sobre a mesa de madeira, rolos de seda, caixas laqueadas e pequenas joias repousavam, aguardando decisão.
— Nada disso é suficiente. — murmurou ele, passando a mão pelos tecidos. — Ela não precisa de luxo, precisa sentir que eu estou perto.
Fen Fang, sentada bem ereta numa cadeira, tentou falar como um adulta, embora os pés nem alcançassem o chão:
— Então manda algo que ela usava quando era pequena. Ela vai lembrar da nossa casa… do senhor.
— Uma lembrança. — repetiu Lakan, pensativo, olhando para o filho com aprovação.
Zhìyuǎn, mais prático, apontou para uma das caixas de madeira:
— E também algo útil. Ela gosta de mexer em frascos e folhas… dá um kit com frascos bonitos, ou livros, assim ela usa, e não fica só enfeite.
— Útil… sim. — Lakan murmurou de novo, agora analisando as opções.
Yaling, que até então rodopiava pelo salão com uma fita de seda azul nas mãos, interrompeu a dança e subiu na beira da mesa para falar, como se fosse a mais sábia do grupo:
— Eu quero escolher também! Manda coisas cheirosas, flores, perfumes… assim ela vai lembrar que o senhor é o pai mais cheiroso e mais grandão do mundo.
Fen Fang suspirou, coçando a testa como se tivesse cem anos de paciência:
— Pai não é cheiroso, Yaling.
— É sim! — ela retrucou, teimosa. — Pelo menos pra mim.
Lakan, pela primeira vez em dias, deixou escapar uma risada curta, abafada, que soou mais como um trovão distante.
— Muito bem. — disse, pousando a mão pesada no ombro dos filhos. — Um presente de lembrança, um de utilidade e um de coração. Ela terá os três. — ele sabia que era mentira, mandaria muito mais presentes a sua primogênita e ela ainda diria que era um exagero, mas o amor de um pai, não era capaz de ser medido.
As crianças sorriram, orgulhosas e Lakan, enquanto escolhia cada detalhe com rigor de uma estratégia sendo montada percebeu que, por mais ferozes que fossem as batalhas do mundo, era naquele pequeno conselho de crianças que ele encontrava sua vitória mais preciosa.
Ele era feliz apenas sendo o pai daqueles pequenos e eles eram felizes por terem Lakan como pai, assim como para Maomao que teve o privilégio de ter sido mimada e quase estragada pelo estrategista.
[. . .]
E assim foi feito. Dia após dia, carrinhos repletos de caixas chegavam ao Pavilhão da Lua. Livros raros de farmacopeia e medicina, tecidos tingidos das cores mais incomuns, perfumes feitos de essências do deserto, até mesmo receitas escritas à mão. Maomao suspirava a cada entrega, semicerrando os olhos.
— É um exagero absoluto… — murmurava, apertando os lábios. — Mas também… é típico dele.
E no fundo do coração, compreendia: era a forma torta de Lakan de abraçá-la à distância.
"Para minha querida e amada princesinha...
Não há uma noite em que não pense em você, e em quantas vezes sua teimosia já me fez perder o sono. E, mesmo assim, é dessa mesma teimosia que sinto tanta falta e tanto orgulho.
Dizem-me que o palácio é feito de ouro, mas tudo o que vejo é uma armadilha disfarçada de glória. Se precisar voltar para casa, volte. As portas estarão sempre abertas, e não será vergonha nenhuma. Você é minha filha, não uma peça para exibição do trono, quero lhe ver bem e saudável, nada além disso.
Tenho tentado me ocupar com assuntos políticos e jogando partidas de Go com sua mãe, mas a verdade é que o vazio de sua ausência dói mais do que qualquer veneno já testado. Fen Fang e Yaling tentam me manter firmes e, Zhìyuǎn… bom, esse pequeno demônio encontra formas criativas de me distrair, mas nada substitui você ou Lahan.
Ainda lembro quando eram apenas vocês dois correndo pelo quintal aprontando e agora, me vejo distante de vocês e com três pequenos que choram tanto de saudade dos irmãos quanto sua mãe e eu.
Sei que você dirá que exagero e estará certa, mas lembre-se: exagerar é uma das minhas virtudes quando se trata de você.
Com saudades que queimam mais do que pólvora,
Seu pai, Lakan."
Maomao estava sentada no pavilhão, os olhos semicerrados ao encarar a pilha de caixas acumuladas. O ar estava impregnado do cheiro de perfumes exóticos, misturados com a poeira dos livros que chegavam sem descanso. Um suspiro escapou de seus lábios quando retirou mais uma carta do envelope, reconhecendo a caligrafia inconfundível de seu pai.
Ela passou os olhos pela escrita longa, cada linha repleta de declarações e exageros sentimentais que só Lakan conseguia colocar em palavras. O coração dela, teimoso, bateu mais rápido — mesmo que Maomao fingisse indiferença.
— "Se precisar voltar para casa, volte. As portas estarão sempre abertas..." — murmurou em voz baixa, mordendo o canto do lábio.
O papel tremia levemente entre seus dedos, não de medo, mas de algo mais profundo: saudade. Aquele tipo de saudade que ela não admitiria nem sob tortura.
— Parece que o Mestre Lakan tem um talento especial para o drama. — comentou uma voz suave e irritantemente próxima.
Maomao quase engasgou ao lembrar que Jinshi estava sentado ao seu lado, observando cada reação dela como se fosse algum tipo de entretenimento particular.
Ela fechou a carta com um estalo seco.
— Não pedi sua opinião.
— E, mesmo assim, sempre a ofereço. — Jinshi sorriu, apoiando o queixo na mão, olhando-a de soslaio. — Mas confesso, fico até… com inveja. Queria que alguém me escrevesse cartas assim.
— Pois peça para o Imperador. — retrucou Maomao, seca. — Ele adora bajulações.
Antes que Jinshi respondesse, Maomao pegou as outras duas cartas menores. A primeira estava endereçada a ela. Ao abrir, reconheceu o garrancho infantil de Zhìyuǎn. Um sorriso involuntário se desenhou em seu rosto ao ler sobre o “jardim secreto” e a confissão meio envergonhada do irmão.
"Irmãzona Maomao
Papai está um chato, fala de você o tempo todo e anda de cara feia. Fen Fang e Yaling vivem tentando acalmar ele, mas só você consegue de verdade.
Eu mandei aquela boneca para o tal Jinshi só para ele entender que eu não brinco quando se trata de você. (Espero que você tenha rido. Se não, vou ficar bravo.)
Volta logo pra casa, mesmo que seja só por uns dias. Eu ainda não terminei o desenho do nosso jardim secreto, e quero que você veja antes de ficar feio demais.
Com saudade, mas sem chorar (ainda),
Zhìyuǎn."
— Está sorrindo. — Jinshi inclinou-se, curioso. — Isso é raro. Quem teve esse feito extraordinário?
Maomao dobrou rapidamente a carta, escondendo-a no colo.
— Não é da sua conta.
Mas o disfarce não durou muito. Ela pegou a segunda carta e, ao notar para quem era endereçada, sentiu um frio subir pela espinha. Seus olhos se estreitaram.
— Essa… é para você.
Ela estendeu o envelope. Jinshi arqueou uma sobrancelha e, divertido, aceitou. Quando começou a ler, sua expressão foi se transformando: primeiro surpresa, depois incredulidade e, por fim… um riso nervoso.
"Para Jinshi, continua sendo estranho te chamar Príncipe da Lua quando você é meu irmão por falta de opção, Maomao não soube escolher bem o marido na hora, mas ainda vou salvá-la.
Soube que você prende a minha irmã dentro dessa prisão dourada que você chama de casa, pois saiba que na primeira oportunidade eu vou trazer Maomao de volta pra casa e você vai ficar sozinho pra sempre.
Ainda assim, se algum dia fizer Maomao chorar, lembre-se da boneca que enviei. Ela pode estar sem braços agora… mas da próxima vez, quem sabe?
Não pense que só porque é bonito ou vive em um palácio dourado pode me enganar. Eu enxergo atrás das roupas caras.
Trate bem minha irmã, ou vai descobrir o que uma criança pode inventar quando está zangada.
Assinado,
Kan Zhìyuǎn (o irmão que vigia até quando você dorme)."
— "Se algum dia fizer Maomao chorar, lembre-se da boneca que enviei..." — Jinshi repetiu em voz alta, a cada palavra mais baixo. — Essa… essa criança me ameaça com brinquedos mutilados?!
Maomao tapou a boca com a mão para conter a risada, mas não conseguiu evitar o brilho divertido nos olhos.
— Ele é direto. Eu avisei que meu irmãozinho é mais perigoso do que parece.
Jinshi colocou a carta sobre a mesa com uma solenidade quase cômica.
— Seu irmão de… quantos anos mesmo?
— Oito. — respondeu Maomao, fingindo desinteresse.
Jinshi inclinou-se ainda mais perto, como se a proximidade fosse capaz de resolver o enigma.
— Pois saiba, sua família é a primeira a me mandar ameaças oficiais. Nunca fui tão… intimidado.
— Considere isso uma honra. — Maomao deu de ombros, mas a risada contida escapava pela ponta dos lábios.
Jinshi, no entanto, não se deu por vencido. Com um brilho malicioso nos olhos, inclinou-se até que Maomao pudesse sentir o calor de sua respiração.
— Então… se eu quiser cortejar sua afeição, antes preciso continuar tentando conquistar o coração do pequeno Zhìyuǎn?
Maomao congelou, corando levemente, mas retrucou no mesmo tom seco:
— Antes de conquistar meu irmão, deveria aprender a sobreviver às bonecas dele.
Jinshi caiu na gargalhada.
Maomao tentava se recompor da gargalhada de Jinshi, mas ele parecia saborear cada reação dela como se fosse uma vitória pessoal. O brilho maroto nos olhos dele anunciava perigo.
— Você está rindo demais para quem costuma me tratar como um incômodo. — ele comentou, inclinando-se de leve.
— Eu não estou rindo de você. — respondeu Maomao, tentando manter a seriedade, mas o canto dos lábios a traía.
— Não? — Jinshi arqueou uma sobrancelha. — Então vou ter que garantir que esse sorriso seja só meu.
Antes que ela pudesse protestar, ele a empurrou suavemente para o divã. Maomao arfou de surpresa quando o corpo dele se inclinou sobre o dela, bloqueando qualquer chance de fuga.
— Zui! — sibilou, empurrando o peito dele. — O que pensa que está fazendo?!
— Apenas aplicando um método de investigação. — respondeu com fingida seriedade, antes de encostar os lábios na bochecha dela. — Preciso verificar se sua risada tem algum antídoto escondido.
Maomao mordeu a língua para não gargalhar, mas falhou assim que ele deslizou os beijos pelo maxilar até o canto dos lábios.
— Você é ridículo! — disse, rindo alto apesar da tentativa de repreensão.
— Ridículo, mas irresistível. — retrucou ele, roubando finalmente um beijo.
Ela ainda tentou revidar com mais um empurrão, mas sua própria risada a desarmava. Entre uma gargalhada e outra, os protestos se transformavam em suspiros curtos. Quando percebeu, já estava retribuindo os beijos com a mesma intensidade, os dedos se agarrando ao tecido da roupa dele.
Jinshi afastou os lábios por um instante, apenas para observá-la. O sorriso desarmado de Maomao, os olhos semicerrados, o rubor nas bochechas — tudo isso parecia arrancar dele uma reverência silenciosa, como se fosse a visão mais preciosa que já tivera.
— Está sorrindo para mim… apaixonada. — provocou em sussurro, o tom baixo e brincalhão, mas com algo mais sério escondido.
Maomao arqueou as sobrancelhas, tentando recuperar a compostura.
— Estou sorrindo porque você parece um idiota.
— Então vou continuar sendo seu idiota. — murmurou ele, antes de voltar a cobri-la de beijos, agora mais lentos, mais intensos.
Maomao riu mais uma vez, mas seu riso foi cedendo a um silêncio quente. Entre provocações e beijos roubados, a tensão que antes se escondia atrás das cartas e ameaças infantis se transformou em algo que só os dois entendiam — íntimo, secreto, apaixonado.
O silêncio carregado entre Maomao e Jinshi parecia se estender, apenas entrecortado pelas risadinhas abafadas e os beijos roubados. Ela já não sabia se o empurrava ou se o puxava mais para perto.
— Zui… — murmurou, meio sem fôlego, com o rosto corado.
Ele apenas sorriu satisfeito e baixou o rosto novamente, prestes a beijá-la de novo, quando um som leve de passos apressados ecoou pelo corredor.
— Vossa Alteza…
A voz ansiosa de Lady Lishu ressoou do lado de fora, e em seguida a cortina foi afastada com firmeza.
Maomao arregalou os olhos, empurrando Jinshi com toda a força que conseguiu. Ele, pego de surpresa, desequilibrou-se e quase caiu do divã, apoiando-se com a mão para não despencar de vez.
Lishu congelou na porta, segurando um rolo de pergaminho, os olhos arregalados como duas luas.
— Eu… eu não queria… interromper.
"Mas interrompeu e agora? Se eu interrompo você e Basen, ele me engole vivo.", Jinshi pensou enquanto ajeitava-se rapidamente, mas o cabelo desalinhado e o rubor na pele o denunciavam. Maomao, por sua vez, tentou desesperadamente alisar as próprias roupas, como se isso pudesse apagar o flagrante.
— Q-Qual o recado, Lady Lishu? — disparou Maomao, a voz alguns tons mais aguda do que o normal.
Lishu piscou várias vezes, as bochechas coradas até as orelhas.
— O… o Imperador pede a presença imediata do Príncipe da Lua. Há notícias… urgentes.
Jinshi pigarreou, recompondo a postura com a elegância ensaiada de sempre — embora o sorriso maroto no canto da boca o entregasse.
— Claro, Lady Lishu, estarei lá em instantes.
Maomao cruzou os braços, ainda vermelha, tentando não encarar ninguém.
Lishu, sentindo o clima, recuou apressada, murmurando:
— Com licença, com licença… eu não vi nada!
Quando a cortina voltou a fechar, Jinshi deixou escapar uma gargalhada baixa.
— Parece que fomos pegos em flagrante, minha querida.
— “Minha querida” uma ova! — Maomao resmungou, ainda escondendo o rosto nas mãos. — Se essa história se espalhar, vai ser culpa sua.
— Pois que espalhe. — ele retrucou, rindo, inclinando-se outra vez para sussurrar ao ouvido dela. — Assim todos saberão que Maomao não apenas sorri para mim… mas também me beija apaixonadamente.
Ela ergueu a cabeça para retrucar, mas a resposta saiu apenas em forma de mais uma risada — nervosa, irritada e, no fundo, feliz.
Jinshi ainda se inclinava sobre Maomao, rindo baixinho como se a interrupção tivesse sido apenas mais um detalhe divertido da noite. Ela, por outro lado, estava vermelha até a ponta das orelhas, os braços cruzados num esforço inútil para se recompor.
— Vai parar de rir ou devo envenenar seu chá? — Maomao resmungou, semicerrando os olhos.
— Não posso evitar. — Jinshi respondeu, com o tom melódico que usava quando queria provocá-la. — Você, sempre tão controlada, sendo pega de surpresa… é uma visão inesquecível.
— Tsc… insolente. — ela rebateu, embora o sorriso escondido no canto da boca a entregasse.
Ele aproximou o rosto, roubando-lhe mais um beijo rápido, só para vê-la bufar de indignação.
— Preciso ir. — suspirou, finalmente levantando-se. — O Imperador não gosta de esperar, mas não se preocupe, terminaremos essa “investigação” depois.
Maomao pegou uma almofada e atirou contra ele, que desviou rindo e saiu com toda a elegância do príncipe que era.
Assim que a cortina se fechou atrás dele, o silêncio voltou — só que dessa vez acompanhado de passos cautelosos. Lady Lishu voltou a espiar, o rosto ainda vermelho como uma romã madura.
— Perdão, senhorita Maomao, eu realmente não quis…
— Já disse que não precisa se explicar. — Maomao cortou rápido, enfiando o rosto nas mãos.
Lishu entrou devagar, mordendo o lábio inferior para conter um riso nervoso.
— Mas… não pude deixar de notar que o Príncipe estava… bastante carinhoso.
— Ele estava me atrapalhando! — rebateu Maomao, tentando soar firme.
— Ah, claro. — Lishu acenou, sem disfarçar o tom divertido. — Então foi por isso que a senhorita ria tanto enquanto ele a beijava.
Maomao ergueu a cabeça, olhos faiscando.
— Lady Lishu!
Antes que a dama pudesse se defender, Chue entrou com uma bandeja de chá recém-preparado. Ao perceber o clima no ar, arqueou uma sobrancelha e pousou a bandeja sobre a mesa, cruzando os braços.
— Eu só fui buscar água fervida e, quando volto, o salão já está cheio de suspiros e constrangimento?
— Não havia suspiros! — Maomao disparou, ofendida. — Era apenas… barulho!
Chue trocou um olhar cúmplice com Lishu e então riu abertamente.
— Pois, para mim, parecia muito mais agradável que “barulho”.
As duas damas se entreolharam, sorrindo, enquanto Maomao afundava o rosto entre as mãos, dividida entre irritação e vergonha.
No fundo, porém, mesmo tentando disfarçar, um sorriso teimoso insistia em se formar nos lábios dela.
Enquanto isso, Maomao tentava colocar ordem no caos. Pilhas de caixas enviadas por Lakan estavam empilhadas até o teto. Livros raros, frascos de perfume, tecidos finos. Lady Lishu e Chue revezavam-se entre abrir pacotes e rir discretamente das reações da jovem.
— Seu pai a trata como se fosse a própria Imperatriz.— comentou Chue, segurando um frasco de vidro transparente. — Veja só, até elixires raros!
— É um exagero. — Maomao resmungou, examinando o conteúdo. — Metade disso vai acabar em meu laboratório de testes.
Lishu puxou um tecido cor de jade, encantada.
— Mas não deixa de ser… doce.
Maomao bufou, mas seus olhos suavizaram, o cheiro do papel e da tinta das cartas, os desenhos dos irmãos, a boneca mutilada de Zhìyuǎn… tudo trazia um calor estranho ao coração.
— Talvez seja o jeito dele de me vigiar. — murmurou baixinho.
As damas sorriram em silêncio, mas não resistiram a trocar olhares cúmplices.
Foi então que Maomao suspirou fundo, tentando disfarçar o rubor que voltava às bochechas.
— Vocês duas não têm mais nada para fazer além de espiar minha vida?
Chue ergueu as sobrancelhas com um sorriso malicioso.
— Não quando está tão… interessante.
E Lishu, rindo baixinho, completou:
— Afinal, Maomao, não é todo dia que vemos alguém sorrindo enquanto lê cartas do pai… e enquanto recebe beijos do marido.
Maomao jogou uma almofada nas duas, que escaparam gargalhando
[. . .]
O salão principal estava mais silencioso do que o habitual, apenas os estandartes vermelhos tremulando nas correntes de ar que entravam pelas janelas altas. O imperador se acomodou em seu assento elevado, o olhar severo, mas com aquele brilho escondido que só aparecia quando se tratava da família.
— Zuigetsu e Jiang, meus meninos. — chamou, a voz firme ecoando pelo salão. — Tenho uma missão que não confiarei a mais ninguém.
Os dois irmãos se curvaram em respeito, Jinshi, impecável como sempre, expressão composta. Jiang, por outro lado, com um meio sorriso que denunciava sua impaciência pela formalidade.
— Vocês dois viajarão para a Capital Ocidental. — anunciou o imperador. — Haverá negociações com o Governante local. É tempo de reforçar alianças, e nada melhor do que enviar meus filhos para mostrar essa união, ficarão na Capital Ocidental até a próxima lua.
Jinshi assentiu de imediato, controlado, mas Jiang foi o primeiro a abrir a boca:
— Um mês fora de casa? — arqueou a sobrancelha, lançando um olhar divertido para o irmão. — Vai ser engraçado ver o senhor “impecável” desmoronar sem a esposa. Aposto que não dura uma semana sem a Maomao.
A testa de Jinshi se contraiu, ele respirou fundo, tentando manter a postura, mas retrucou, seco:
— Diferente de você, Jiang, eu sei me adaptar em qualquer ambiente.
— Ah, claro — Jiang cruzou os braços, debochado. — Adaptação? Você fica perdido se o chá vem numa xícara diferente. Imagine negociar com governantes do Ocidente sem Maomao ao lado para traduzir suas expressões e lhe manter calmo.
O Imperador mal conseguiu conter a gargalhada ao ver os dois começando a trocar farpas. O salão, que antes carregava a solenidade do dever imperial, agora parecia a sala de estar de muitos anos atrás.
— Vocês não mudaram nada. — disse ele, com um riso profundo. — Quando eram pequenos, brigavam até pelo mesmo brinquedo.
Jinshi corou levemente, irritado, mas Jiang aproveitou a deixa:
— E era sempre eu que ganhava, não é?
— Só porque Jin-Ye e Lingli se metiam para te proteger. — retrucou Jinshi, estreitando os olhos. — Elas tinham pena de você.
O Imperador gargalhou mais alto ainda, batendo a mão no braço da cadeira.
— Verdade! — recordou. — As meninas sempre corriam para separá-los, como se fossem generais tentando apartar dois exércitos. Jin-Ye, puxando Jinshi pelo colarinho, e Lingli agarrada nas costas de Jiang.
A lembrança aqueceu o ambiente, e por um momento os príncipes não eram mais os representantes de toda uma dinastia, mas apenas filhos diante do pai, ainda com os mesmos traços da infância em suas provocações.
O Imperador, então, voltou ao tom sério, embora o sorriso permanecesse em seus lábios.
— Briguem o quanto quiserem no caminho, mas lembrem-se: na Capital Ocidental vocês não são apenas irmãos. São a imagem do trono, não falhem.
Jinshi se recompôs, dando um aceno formal, Jiang, por sua vez, apenas sorriu de canto, ainda saboreando a vitória de ter deixado o irmão sem jeito diante do pai.
O entardecer deixava o corredor do palácio banhado por um dourado suave, refletindo nos mosaicos do chão. Jinshi caminhava em passos firmes na direção do Pavilhão da Lua, o refúgio onde Maomao o esperava, Jiang, naturalmente, não perdeu a oportunidade de acompanhá-lo, as mãos para trás, com aquele ar descontraído que irritava o irmão.
— Um mês, Jinshi — Jiang resmungou, sacudindo a cabeça. — Um mês inteiro na Capital Ocidental. Se fosse eu no seu lugar, já teria arrancado os cabelos.
— É porque você não tem disciplina suficiente — retrucou Jinshi, sem nem virar o rosto.
— Disciplina? — Jiang bufou. — Disciplina é o que vou precisar se ficarem me empurrando a Lady Loulan o tempo todo. Um mês e eu terei que casar com ela apenas para manter a paz do reino.
Jinshi finalmente olhou para o irmão, arqueando a sobrancelha com ironia.
— Cômico ouvir você se queixar disso, Lady Loulan é linda, carismática, educada... qualquer outro homem agradeceria ao destino por um casamento assim.
Jiang revirou os olhos dramaticamente.
— Sim, sim, tudo isso. Linda, carismática e educada... exatamente como uma estátua bem polida. — ele suspirou, exagerando. — Prefiro alguém com mais... tempero.
— Temperamento explosivo, você quer dizer. — Jinshi ajeitou a manga da túnica, o tom quase sarcástico. — Admito, ela não é como a Maomao.
Ao ouvir o nome, Jiang estreitou os olhos, divertido.
— Ah, então admite que gosta justamente disso nela, aquela mulher não tem medo de te olhar torto, nem mesmo quando você veste suas roupas mais ridiculamente perfeitas.
Jinshi corou discretamente, mas manteve o porte.
— É apenas... diferente — respondeu, quase seco.
— Diferente? — Jiang riu alto. — “Diferente” é a forma mais polida que você encontrou para dizer que está completamente domado.
O mais velho suspirou, fingindo não ouvir, mas Jiang cutucava mais:
— Sério, irmão, se você sobreviver esse mês sem a Maomao, eu bebo até veneno. Aposto que vai escrever cartas todos os dias.
Jinshi manteve o rosto sério, mas a ponta dos lábios traiu um quase sorriso.
— Isso não é da sua conta.
— Não é, mas vai ser divertido observar. — Jiang replicou, rindo, enquanto chegavam à entrada do pavilhão. — Quando você voltar, provavelmente ela terá transformado seu precioso Pavilhão da Lua num armazém de ervas e gatos vadios.
Jinshi parou por um instante diante da porta, lançando ao irmão um olhar frio, mas a leveza no ar denunciava que, apesar das provocações, aquele era o jeito deles de permanecer próximos.
— Boa sorte com Lady Loulan, Jiang. — disse, antes de entrar. — Vai precisar mais do que disciplina.
Jiang apenas acenou com desdém fingido, mas os olhos brilharam de divertimento.
O portão deslizante do Pavilhão da Lua rangeu suavemente quando Jinshi entrou. O aroma familiar de ervas, frascos e flores secas o recebeu, junto ao som leve de Maomao organizando livros e pequenos frascos sobre a mesa.
— Voltou mais cedo do que eu esperava. — ela comentou, sem se virar, mas os olhos traíam uma curiosidade que tentava disfarçar.
— Tive que falar com o Imperador sobre algumas… alianças. — disse ele, aproximando-se lentamente. Um sorriso maroto brincava nos lábios. — E descobri que daqui a alguns dias precisarei viajar… para a Capital Ocidental.
Maomao congelou por um instante, mantendo o rosto neutro, respirando fundo.
— Viajar? — perguntou, casual, fingindo despreocupação. — Que conveniente.
Jinshi arqueou a sobrancelha, divertido.
— Sim, e ficar fora, por… um mês inteiro.
Ela piscou, tentando parecer indiferente, mas o aperto no estômago denunciava o quanto odiava a ideia.
— Um mês? — repetiu, a voz baixa, como se dissesse para si mesma. — Hm… que bom para você.
— “Bom para mim”? — Jinshi zombou, aproximando-se, inclinando-se ligeiramente. — E você, minha querida? Parece não se importar em me ver partir.
Maomao ergueu uma sobrancelha, cruzando os braços.
— Claro que não. Um mês sem o Príncipe da Lua? Que trauma horrível. — disse de forma exageradamente seca, mas por dentro seu coração protestava.
Jinshi sorriu, baixando a voz perto do ouvido dela.
— Traumas à parte, ainda terei o prazer de enviar cartas diárias. Aposto que vai sentir falta.
Ela bufou, fingindo impaciência.
— Cartas? Ridículo. Prefiro que use esse tempo para trabalhar e não me encher de cartas melosas.
Ele aproveitou o momento para empurrá-la suavemente em direção ao divã, rindo do esforço dela para manter a postura. Maomao caiu de costas, e ele ficou por cima, braços apoiados de cada lado, com o rosto perto do dela.
— Imagine um mês… — murmurou ele, provocativo. — Quem sobreviveria sem beijos diários, sem provocações, sem o seu sorriso irritante?
Maomao bufou, tentando empurrá-lo, mas sem força suficiente.
— Você é impossível — resmungou, o riso escapando involuntariamente.
— Impossível de resistir. — Jinshi inclinou-se, roubando um beijo rápido nos lábios dela, e outro na bochecha, percorrendo o maxilar.
Ela o empurrou novamente, rindo e bufando ao mesmo tempo.
— Se você me deixar sozinha por um mês, prometo que vou cortar todos os seus laços com a corte!
— Ah, claro. — disse ele, sorrindo, provocando. — E eu voltarei exatamente para ver se cumpriu a promessa.
Maomao tentou disfarçar o rubor, o coração acelerado. Por fora, fingia irritação e indiferença; por dentro, odiava a ideia de ficar um mês sem ele.
— Você é ridículo — disse, rindo sem conseguir evitar, inclinando-se para retribuir os beijos.
O pavilhão ecoava com risadas, suspiros e pequenos protestos, enquanto o relógio silencioso do tempo parecia acelerar, lembrando a ambos que, dali a dois dias, o mundo externo esperava, mas agora eles ainda tinham aquele instante só para si.
Maomao suspirou, deixando escapar o ar que segurava desde que ele mencionara a viagem. Por um instante, a bravura e a ironia desapareceram, substituídas por algo mais genuíno.
— Zui… — murmurou, a voz baixa, quase falhando. — Eu… eu vou sentir sua falta.
Ele parou por um momento, o olhar encontrando o dela, percebendo a sinceridade e a vulnerabilidade que ela raramente deixava transparecer.
— Maomao… — disse ele, suavizando o tom, a mão alcançando o rosto dela. — Sera apenas um mês… vamos passar por isso juntos, mas… — sua voz baixou ainda mais, como se compartilhasse um segredo íntimo — quero que saiba que vou sentir sua falta tanto quanto você sentirá a minha.
Ela fechou os olhos, rendendo-se ao momento, e o puxou para si. O corpo de Jinshi encaixou-se ao dela com naturalidade, braços firmes envolvendo-a, como se quisesse protegê-la de qualquer distância que viesse a existir.
— Não quero que vá… — murmurou Maomao, enterrando o rosto no peito dele, a voz embargada. — Dois dias, um mês… não importa… eu não quero.
Jinshi a abraçou ainda mais forte, murmurando palavras baixas no cabelo dela, sentindo cada batida do coração dela contra o seu.
— Eu sei… eu sei, minha querida, mas vamos passar por isso, e quando eu voltar, prometo que cada dia de ausência será recompensado.
Ela respirou fundo, permitindo-se ficar nos braços dele, o peito subindo e descendo lentamente, sentindo segurança e calor. Pela primeira vez naquele dia, deixou de lado toda a implicância e provocação, apenas permanecendo ali, vulnerável, permitindo que o carinho dele fosse suficiente para aquecer seu coração inquieto.
Ele a envolveu com mais firmeza, como se quisesse protegê-la do mundo inteiro. Os dedos dele percorreram a linha suave de suas costas até repousarem na nuca, atraindo-a para mais perto, o silêncio entre eles não era vazio; era carregado de ternura, de tudo o que não precisavam dizer.
Maomao ergueu o rosto devagar, encontrando o olhar dele tão próximo que sentiu o coração tropeçar no próprio ritmo, os olhos se prenderam num elo silencioso, como se ambos se reconhecessem inteiros naquele instante. O toque dos lábios veio natural, doce no início, depois profundo, denso, como se quisessem gravar na pele a lembrança de estarem juntos.
O beijo se alongou até que o ar se tornasse urgente, e ainda assim nenhum dos dois quis se afastar por completo. Ela deixou a testa colada à dele, respirando ofegante, mas com um sorriso pequeno nos lábios.
— Não precisa prometer nada — murmurou baixinho. — Só… fica comigo agora.
E ele ficou. Ali, naquele abraço apertado, com o gosto do beijo ainda pairando no ar, o mundo inteiro poderia esperar, todos poderiam esperar por ao menos uma noite, afinal ali abraçado com a mulher de sua vida nada mais importava além do amor que tinham um pelo outro.
[. . .]
O sol da manhã seguinte atravessava as cortinas do Pavilhão da Lua, espalhando raios fracos de luz sobre a cama bagunçada. Cobertores amontoados, travesseiros fora do lugar e, espalhadas pelo chão, algumas roupas íntimas que haviam ficado pelo caminho da noite anterior.
Jinshi estava encostado na cabeceira, apoiado nos cotovelos, os olhos brilhando de divertimento ao observar a bagunça — e, principalmente, a expressão de Maomao ainda sonolenta.
— Bom dia, minha gatinha venenosa. — murmurou, com um sorriso maroto. — Espero que o travesseiro não tenha sido cruel com você.
Maomao gemeu baixinho, enfiando o rosto no travesseiro, tentando esconder o rubor que surgia instantaneamente.
— Bom dia… — murmurou, meio dormindo, meio irritada. — Você não acha que já é cedo demais para essas provocações?
Jinshi riu, levantando-se com agilidade e envolvendo-a nos braços antes que pudesse se afastar.
— Ora, já que estamos acordados, que tal começarmos o dia de uma forma… mais interessante?
Antes que Maomao pudesse reagir, ele a carregou — ainda nua, com os cabelos úmidos da noite anterior colados nos ombros — em direção à banheira já preparada, a água fumegante exalando um aroma suave de flores e ervas.
— Zui! — ela riu, cobrindo o rosto com as mãos. — Você está me enlouquecendo!
— Só tornando o início do dia mais divertido. — respondeu ele, sorrindo enquanto cuidadosamente a depositava na água. Ela não conseguia parar de rir, os olhos brilhando de diversão e um leve constrangimento.
Enquanto a água tocava a pele dela, Jinshi sentou-se em frente dela dentro da banheira, molhando-a levemente com pequenas mãos habilidosas, provocando risadas e sussurros de protesto.
— Sabe que não vai escapar de todos os meus beijos. — ele murmurou, aproximando-se para depositar um na testa dela, depois na bochecha, finalmente nos lábios.
Maomao se arqueou, tentando resistir, mas cada beijo era seguido de risadinhas, sussurros e pequenos empurrões.
— Seu idiota… — resmungou, mas a voz traía o quanto gostava da atenção dele.
O tempo parecia desacelerar enquanto conversavam sobre detalhes banais: os planos do dia, pequenas reclamações sobre a corte, lembranças engraçadas de Jiang e das irmãs. Entre um beijo e outro, Maomao sentia a presença dele tão próxima, calorosa e segura, que era impossível não se perder naquele momento.
— Preciso ir. — Jinshi disse por fim, embora sem pressa, ajudando-a a sair da água. — Tenho algumas reuniões no escritório do Imperador antes da viagem.
Maomao bufou, já enrolada em uma toalha, mas ainda segurando o braço dele com força.
— Você vai embora cedo, seu maldito… — disse, quase murmurando.
— Mas volto para o jantar. — garantiu ele, roubando mais um beijo rápido.
Ela suspirou, mordendo o lábio, e balançou a cabeça. Por fora, fingia impaciência; por dentro, o coração apertado já sentia falta dele.
— Idiota. — murmurou, sorrindo mesmo assim, enquanto ele se afastava, deixando o pavilhão com passos firmes e elegantes rumo ao escritório do Imperador, a lembrança de beijos e risadas ainda pairando no ar.
[. . .]
O aroma das ervas ainda pairava pelo Pavilhão da Lua quando Maomao se sentou, permitindo que Lady Lishu e Chue a ajudassem a vestir o hanfu verde, o tecido caindo suavemente sobre os ombros e contornos, o cinto sendo ajustado com delicadeza.
— Pronto, senhora. — disse Chue, ajeitando o tecido ao redor do braço de Maomao. — Você está perfeita.
Maomao sorriu, virando-se para Lady Lishu, que ainda carregava algumas cestas de flores recém-organizadas.
— Já que vocês duas ficaram ocupadas organizando o Pavilhão da Lua, posso cuidar do pequeno Guang por um tempo. — ofereceu, apontando para o bebê que dormia em um bercinho próximo. — Vou ficar no jardim colhendo ervas; assim, Lady Lishu, você não precisa se preocupar a cada instante se ele está bem.
Lady Lishu hesitou por um momento, olhando o bebê de um ano com aquela mistura de amor e preocupação.
— A senhora tem certeza? — perguntou, mordendo levemente o lábio.
— Absoluta. — Maomao respondeu com um sorriso caloroso. — Ele vai adorar.
— Então vá em frente. — Lishu entregou o pequeno com cuidado. — Mas não esqueça de cuidar bem dele, hein!
O bebê Guang, ao sentir os braços de Maomao, abriu um sorriso largo, batendo palminhas e soltando pequenos risinhos.
— Ô, pequeno travesso! — disse Maomao, pegando-o no colo com delicadeza. — Vamos lá, vou te mostrar os jardins, cheio de cheiros interessantes e folhas para explorar.
O pequeno riu ainda mais alto, empurrando as mãos no ar, e Maomao riu junto, ajustando-o confortavelmente no colo.
Elas saíram do Pavilhão da Lua, atravessando os corredores silenciosos que levavam aos outros jardins do palácio. O sol da manhã iluminava delicadamente os mosaicos no chão, e o canto distante de pássaros misturava-se ao riso do bebê.
— Olha só, Guang — disse Maomao, apontando para uma pequena macieira. — Aqui podemos pegar folhas para chás, flores para perfume… ou — ela olhou para o bebê que acompanhava seu dedo concentrado.
O bebê bateu palminhas novamente, como se aprovasse a ideia, e Maomao sorriu, sentindo uma ternura tranquila. Pela primeira vez desde que Jinshi mencionara a viagem, ela conseguiu respirar fundo e se concentrar em algo além da saudade que já começava a sentir.
O jardim estava cheio de aromas de ervas e flores recém-colhidas quando Maomao caminhava pelo pequeno caminho de pedras, o bebê Guang nos braços, rindo a cada nova descoberta: uma folha que caía, uma flor que se inclinava ao vento.
— Olha só, pequeno. — dizia ela, inclinando-se para mostrar uma manjerona, enquanto ele batia palminhas animadamente. — Até cheiros diferentes você consegue perceber!
Em sua diversão, Maomao nem percebeu que seus sapatos e o hem do hanfu verde estavam salpicados de terra, folhas e pequenos respingos de lama da rega matinal. O bebê também já tinha uma mão suja, deixando pequenas marcas em seu peito e braços.
— Princesa…? — chamou uma voz firme à distância.
Maomao ergueu a cabeça e viu Mestre Gaoshun, aproximando-se com passos contidos e postura rígida. O olhar dele percorreu rapidamente a cena: a princesa com o hanfu sujo, o neto batendo palminhas alegre, pequenas folhas presas aos cabelos da jovem.
— Suas vestes, princesa… — começou Gaoshun, a voz firme e controlada, mantendo o protocolo. — Este estado… é inaceitável… — engoliu em seco, percebendo que cada palavra parecia cair em uma muralha de indiferença de Maomao.
Ela sorriu, sem se preocupar, e com um gesto de mão leve, indicou que ele podia se aproximar, ignorando totalmente sua fala.
— Gaoshun, venha, seu neto quer brincar com você. — disse Maomao, piscando para ele. — Não se preocupe com a sujeira.
Gaoshun hesitou, ainda rígido, mas o sorriso do neto Guang e o brilho nos olhos de Maomao foram convincentes demais. Com cuidado, ele se aproximou, mantendo postura firme, e estendeu as mãos para pegar o bebê.
— Muito bem… vamos ver se ele continua rindo quando eu… — murmurou Gaoshun, ainda tentando conter o sorriso.
— Consegue, ele confia em você. — disse Maomao, soltando o bebê nos braços do avô. O pequeno Guang soltou uma risada alta, balançando os braços e se contorcendo de alegria, encantado pelo jogo.
— Ele… ele está bem forte. — disse Gaoshun, surpreso, tentando se equilibrar enquanto o neto ria, batendo palminhas e apertando levemente os dedos do avô.
Maomao se afastou alguns passos, sentando-se num pequeno banco de pedra, o hanfu ainda sujo, mas sem se importar. Ela observava a interação com um sorriso tranquilo, para Maomao ver Guang feliz era infinitamente mais importante do que a opinião de qualquer servo ou membro da família imperial.
— Viu, Gaoshun? — disse Maomao, divertida. — Ele não morde, pode brincar com seu netinho em paz.
Gaoshun suspirou, ainda firme, mas permitindo-se finalmente relaxar, enquanto Guang ria sem parar, agarrando os dedos do avô e chutando as pernas. Maomao, observando a cena, sentiu uma paz que contrastava com a ansiedade pela iminente viagem de Jinshi.
[. . .]
Maomao caminhava com passos firmes, mas serenos, o hanfu verde ainda levemente marcado pela manhã de brincadeiras com Guang. Ao seu lado, Gaoshun segurava o neto no colo, mantendo a postura rígida e a expressão séria que sempre lhe era característica, mas permitindo-se, por entre o protocolo, alguns sorrisos discretos diante do riso contagiante do menino.
— A princesa está solicitando uma reunião com o Imperador e o conselho, sozinha? — Gaoshun perguntou, ainda surpreso com a audácia da jovem.
Maomao manteve o olhar adiante, mas os dedos já mexiam nos pequenos sacos de ervas presas à bolsa de tecido pendurada no ombro.
— Sim — respondeu com a voz firme, mas concentrada. — Preciso conversar pessoalmente com ele e com a Imperatriz Ah-duo, não é algo que possa adiar.
Gaoshun suspirou, ajustando o peso do neto no colo, que agitava os bracinhos, rindo de pequenos insetos que passavam voando.
— Claro, Alteza. Apenas achei… surpreendente. Irei providenciar tudo, pedirei para Basen acompanhá-la assim que houver uma resposta.
— Agradeço imensamente, Mestre Gaoshun. — Maomao respondeu com um leve aceno, o olhar voltado para a clínica que surgia à frente, com suas paredes de madeira simples e janelas parcialmente abertas.
Enquanto caminhavam pelos corredores de pedra que levavam à clínica, o ambiente mudava suavemente: o aroma do jardim deixava espaço para o cheiro mais intenso de remédios e raízes secas, e Maomao já começava a analisar mentalmente quais preparações precisaria fazer para os pacientes do dia.
— Ainda me surpreende que ele seja o médico aqui. — disse ela baixinho, quase para si mesma, lembrando do charlatão que, apesar de limitado e medroso, ainda oferecia ajuda em casos emergenciais e fornecia comida em troca de atendimento.
Gaoshun olhou para ela, levantando levemente uma sobrancelha, mas não comentou. Concentrou-se em manter Guang seguro, embora não deixasse de observar a postura segura e decidida de Maomao, que, mesmo jovem, carregava uma autoridade natural que o fazia confiar nela.
— Mestre Gaoshun — disse Maomao, quebrando o silêncio — sei que é pedir muito uma reunião com o Imperador, mas preciso mesmo ir pessoalmente. Compreende?
— Sim, Alteza — respondeu ele, com um leve aceno. — Apenas… confesso que é um tanto inusitado.
Maomao sorriu de canto, a tensão da responsabilidade suavizada pela presença do avô e do neto, Guang, por sua vez, ria no colo de Gaoshun, batendo palminhas, encantando os dois adultos. A princesa inclinou a cabeça para olhar o bebê, e não pôde evitar um sorriso mais leve e natural.
— Parece que seu neto aprova esta decisão. — comentou, e Gaoshun, mantendo o semblante sério, apenas bufou, como se o riso do menino fosse uma confusão com o protocolo.
Eles continuaram a caminhada, cruzando pequenos corredores internos que levavam aos jardins adjacentes e à clínica, o som das risadas de Guang misturando-se aos passos firmes de Maomao e à respiração controlada de Gaoshun. A mistura de seriedade e leveza, entre protocolos e pequenas travessuras do neto, deixava a manhã tranquila, mas carregada de pequenas tensões e expectativas que só Maomao parecia compreender por completo.
Ao chegarem à clínica, Maomao respirou fundo, sentindo o cheiro característico de ervas moídas e da madeira envelhecida, pronto para receber pacientes. Ela segurou a alça da bolsa de tecido, ajeitando o hanfu que já mostrava pequenas marcas da manhã, e lançou um olhar cúmplice a Gaoshun:
— Preparado para mais um dia caótico, Mestre Gaoshun?
Ele apenas suspirou, mas não pôde evitar o leve sorriso. — Sempre, Alteza. Sempre.
Pequenos potes e frascos estavam espalhados sobre a bancada de madeira, e ela mexia com habilidade em cada mistura, triturando raízes e folhas com movimentos precisos.
No colo, Guang ria e balançava os bracinhos, batendo palminhas a cada gesto da princesa, encantado com os sons que as ferramentas de Maomao faziam ao mexer nas ervas.
— Viu só, pequeno? — dizia Maomao, sorrindo, enquanto ele tentava tocar os frascos coloridos. — Cada frasco guarda um medicamento diferente.
Gaoshun, que segurava o neto há pouco, observava a cena com uma mistura de orgulho e leve preocupação.
— Alteza, estarei em meus afazeres. Se precisarem de mim, estarei por perto — disse ele, ajeitando a postura e dando um último sorriso contido antes de se retirar.
— Obrigada, Mestre Gaoshun. Vá com cuidado — respondeu Maomao, acenando.
Quando o silêncio retomou a clínica, Maomao percebeu uma presença perto da porta: a princesa Jin-Ye, com passos leves e olhar cauteloso, quase como se não quisesse ser notada. Maomao sorriu levemente ao reconhecê-la.
— Jin-Ye! — disse, pegando Guang no colo e aproximando-se da amiga. — Que surpresa, entre um pouco.
Jin-Ye deu um pequeno salto de susto, o rosto corando.
— Maomao… eu… eu não esperava te ver aqui… estava… estava a caminho de… conversar com os eunucos e.. — gaguejou, olhando para os lados, tentando disfarçar.
Maomao riu baixinho, balançando o bebê no colo, distraída com o pequeno.
— Não se preocupe, estou ocupada com a clínica. Pode ficar aqui, se quiser. — disse, aproximando-se o suficiente para que Jin-Ye pudesse observar mais de perto.
Jin-Ye, ainda envergonhada, assentiu, e Maomao estendeu Guang para que a amiga pudesse segurá-lo.
— Aqui, segura o pequeno. — disse Maomao, sorrindo maliciosamente. — Ele é pesado?
Jin-Ye pegou o bebê com cuidado, os braços tensos, olhando fixamente para ele como se fosse um objeto precioso e frágil ao mesmo tempo.
— Você nunca segurou um bebê na vida, não é? — provocou Maomao, com um sorriso divertido.
— Eu… eu apenas não tenho prática. — respondeu Jin-Ye, a voz baixa e os dedos trêmulos, tentando apoiar o neto corretamente — Não segurei Liang quando pequeno, porque era tão minúsculo que preferimos deixar ele criar certa resistência até que pudesse sair do Pavilhão de Cristal.
Maomao riu, observando a princesa brincar com Guang, admirando com a cena.
— Não se preocupe, ele é mais divertido do que parece. Apenas relaxe um pouco. — disse, observando Jin-Ye finalmente começar a sorrir, ainda tensa, mas encantada com o bebê.
O riso do pequeno Guang se misturava à leve brisa que entrava pelas janelas da clínica, criando um momento de paz e alegria que contrastava com as tensões do palácio, e Maomao não pôde evitar sentir que, mesmo com responsabilidades e viagens à vista, aqueles instantes eram preciosos.
Guang, no colo de Jin-Ye, ria alto, estalando os dedinhos e chutando as pernas de forma desajeitada, encantado com a atenção das duas princesas. Maomao sentou-se no chão de pedra da clínica, cruzando as pernas, e observava, divertida, a amiga tentando manter a postura perfeita enquanto segurava o bebê com cuidado quase exagerado.
— Ele é impossível de segurar direito, não é? — disse Maomao, piscando. — Sempre se mexe, bate palminhas, dá coices… — acrescentou, balançando Guang levemente.
— É… — murmurou Jin-Ye, mordendo o lábio, o corpo ainda rígido. — Mas… é divertido.
Maomao sorriu, sentindo um calor tranquilo no peito.
— Sabe, Jin-Ye… cuidar do pequeno Guang se tornou meio que meu passatempo favorito. — ela fez uma pausa, olhando para as mãos delicadas da amiga segurando o bebê. — Ainda tenho receio de engravidar, o que é normal, visto os últimos eventos, mas… agora, com Jinshi, sinto que posso enfrentar esse medo. É… reconfortante, e fico feliz por poder cuidar de um bebê assim, me faz sentir útil e… viva.
Jin-Ye desviou o olhar para o bebê em seu colo e, discretamente, levou a mão ao próprio ventre, tocando a barriga como se não quisesse que ninguém percebesse. Seus olhos ficaram um pouco marejados, refletindo pensamentos e sonhos futuros.
— Um dia… — murmurou ela baixinho, quase para si mesma — eu também terei um bebê assim.
Maomao percebeu o gesto, mas sorriu apenas suavemente, não querendo interromper os pensamentos da amiga. Ela continuou a brincar com Guang, ajudando a girar os bracinhos dele, cantarolando sons suaves, enquanto Jin-Ye olhava, refletindo sobre a maternidade e o quanto ela ansiava por aquele momento, imaginando os meses que se seguiriam até que pudesse segurar seu próprio filho da mesma forma.
— Ele gosta de você, — disse Maomao, finalmente quebrando o silêncio — olha como ele ri só de você balançar os bracinhos dele.
Jin-Ye soltou um risinho tímido, finalmente relaxando os ombros e permitindo que o bebê se mexesse livremente.
— Ele é adorável… — disse, os olhos brilhando de ternura. — Sabe, eu… não imaginei que segurar um bebê pudesse ser tão… emocionante.
Maomao inclinou-se, batendo levemente na mão da amiga.
— Viu? É só questão de prática e olha, você vai ser uma ótima mãe. Guang aqui está apenas dando uma pequena prévia do que esperar.
O riso do bebê, misturado à brisa suave que entrava pela janela aberta da clínica, criou um ambiente leve e íntimo, onde os medos, ansiedades e responsabilidades do palácio pareciam distantes. Por um instante, só existiam as duas princesas e o pequeno Guang, e Maomao percebeu que aquela simples tarde, cheia de travessuras e risos, a fortalecia de dentro para fora.
Enquanto observava Jin-Ye segurando o bebê, Maomao sentiu uma pontada de ternura pela amiga — uma compreensão silenciosa de que ambas estavam descobrindo, à sua maneira, a beleza e a responsabilidade de cuidar de uma vida pequena, e como isso transformava suas próprias esperanças, receios e sonhos.
Guang, por sua vez, riu novamente, dando um chute feliz e desajeitado, e ambas as princesas caíram na gargalhada, sentindo-se mais leves, conectadas e preparadas para os desafios que o dia ainda reservava.
Ele agora se apoiava nos braços de Jin-Ye, chutando levemente as perninhas e balbuciando sons quase como palavras, enquanto Maomao sentava-se próxima, observando cada gesto do bebê com olhos atentos e ternos. O riso pequeno dele preenchia a clínica com uma leveza quase mágica.
— Ele é tão… puro — murmurou Jin-Ye, finalmente soltando um suspiro profundo. — Não se preocupa com nada, não teme nada… — ela olhou para Maomao, quase tímida. — Como você consegue ser tão calma com ele?
Maomao deu um pequeno sorriso, ajeitando um mechinho de cabelo que caíra sobre os olhos.
— Não sou tão calma quanto parece — disse baixinho, quase confidencialmente. — Mas… cuidar de Guang me dá uma sensação de controle, sabe? Mesmo quando tudo ao redor parece confuso ou perigoso, ele é tão frágil e dependente… e ao mesmo tempo me faz sentir capaz.
Jin-Ye olhou para ela, absorvendo cada palavra.
— Eu entendo — disse, com a voz quase rouca. — Às vezes me sinto tão perdida… e ele… — apontou para o bebê — ele me lembra que há algo que realmente posso proteger, algo que não posso deixar escapar.
Maomao inclinou-se um pouco, apoiando a mão no chão e tocando delicadamente o ombro da amiga.
— Jin-Ye, você será uma mãe incrível, sério. — rla sorriu, mas havia sinceridade profunda em seus olhos. — E não é só por cuidar de um bebê… é pelo coração que você coloca em tudo. É isso que importa.
Jin-Ye desviou o olhar, corando levemente.
— Às vezes tenho medo… de não saber fazer o que é certo. De me perder em expectativas, na corte, nas obrigações… — ela suspirou, observando a mão minúscula de Guang que se agarrava aos seus dedos. — E agora, vendo você assim, tranquila, mas ao mesmo tempo tão forte, fico pensando que talvez… talvez eu também consiga.
Maomao riu baixo, mas com uma ternura que fazia o coração da amiga aquecer.
— O segredo é não se cobrar tanto. — disse, balançando o bebê levemente. — Você aprende com o tempo, com pequenas vitórias… e, principalmente, com os momentos que realmente importam. Como este aqui.
Jin-Ye olhou para Maomao, sentindo-se segura o suficiente para desabafar um pouco mais.
— Você tem sorte de estar com Jinshi — murmurou, quase para si mesma. — ele te dá força, mesmo quando você acha que não tem. Eu… — pausou, mordendo o lábio — ainda estou descobrindo quem serei quando tiver meu próprio filho.
Maomao sorriu, passando a mão delicadamente pelo cabelo da amiga.
— E você será maravilhosa. — Sua voz ficou suave, quase um sussurro. — Não existe forma certa ou errada, apenas o que você sente e isso é mais do que suficiente.
Guang, como se entendesse a conversa silenciosa entre as duas, soltou uma risadinha e tentou esticar os bracinhos para Maomao. Ela riu, pegando o pequeno e segurando-o com cuidado.
— Viu? Ele sabe quando precisamos de um pouco de alegria — disse Maomao, olhando para Jin-Ye com um brilho nos olhos. — Ele nos lembra que, mesmo nos dias de dúvida, a vida sempre nos dá pequenas certezas.
Jin-Ye sorriu timidamente, finalmente relaxando os ombros, e por alguns instantes ficaram ali, apenas observando o bebê brincar, compartilhando uma cumplicidade silenciosa que não precisava de palavras. O riso de Guang se misturava ao som das ervas sendo mexidas na bancada e à brisa que entrava pela janela da clínica, criando um momento de ternura que nenhuma das duas esqueceria tão cedo.
Maomao ajeitou Guang sobre o colo, embalando-o suavemente enquanto ele se distraía tentando alcançar um fio solto da manga dela. Jin-Ye observava em silêncio, o olhar perdido ora no bebê, ora no horizonte, como se quisesse esconder algo.
Maomao, por sua vez, nunca foi de ignorar sinais. Seus olhos curiosos a varreram dos pés à cabeça — o excesso de tecidos sobrepostos, o leve suor na testa apesar do clima ameno do outono.
— Ouvi dizer que a princesa está planejando viajar com as caravanas. — comentou de súbito, quebrando o silêncio, a voz mansa mas cheia de intenção. — Lady Lihua deixou escapar quando fui fazer os últimos exames de rotina nela.
Jin-Ye sobressaltou-se, os dedos apertando nervosos as dobras do hanfu.
— Viagem? — repetiu, rindo de forma curta, forçada. — Não… não poderia.
Maomao arqueou uma sobrancelha, lembrando-se da própria juventude.
— É uma pena. A viagem para o Exterior foi uma das minhas melhores memórias. Fui com meus pais e Lahan… lembro dos cheiros de especiarias, das cores dos mercados. Você iria gostar, tenho certeza.
Jin-Ye balançou a cabeça em negativa, o sorriso delicado se apagando rápido.
— Não… Não posso ir. Tenho me sentido um pouco doente, nada grave, mas… Eles já decidiram mandar o meu irmão, Yao Jun nas caravanas. Ele irá como parte da guarda real, ao lado de Jinshi e Jiang.
Maomao ajeitou Guang no colo, que agora brincava com os próprios pés, e suspirou.
— Entendo, mas se não está bem… quer que eu faça alguns exames?
A reação foi imediata. Jin-Ye arregalou os olhos, erguendo as mãos em recusa quase desesperada. — Não! Não precisa. É apenas… um mal-estar passageiro. Logo estarei melhor.
Maomao a encarou longamente, desconfiada, mas não insistiu. Apenas inclinou a cabeça, com aquele olhar clínico que parecia atravessar qualquer disfarce.
— Talvez o problema seja essa quantidade absurda de tecidos. — seu tom ganhou leveza, quase zombeteiro. — Estamos no outono, Princesa, não no meio do inverno. Se continuar escondida em tantas camadas, acabará desmaiando de calor.
Jin-Ye forçou uma risada, ajeitando nervosa o tecido sobre a barriga.
— Talvez… — murmurou, desviando os olhos.
Maomao sorriu de canto, não convencida, mas também não disposta a pressionar. Segurou Guang mais firme, aproveitando a distração do bebê que agora tentava puxar uma mecha solta de seu cabelo.
— Pois bem, cuide-se, mas se o mal-estar persistir, não hesite em me chamar. Prometo não ser tão cruel nos exames quanto pareço.
Jin-Ye apenas assentiu, mas por dentro seu coração batia descompassado, consciente de que Maomao estava perigosamente perto de descobrir seu segredo.
O pequeno Guang resmungou baixinho, puxando a gola da roupa de Maomao para a boca, e ela aproveitou para ajeitá-lo contra o ombro. O gesto foi natural, quase instintivo, como se tivesse sido feito milhares de vezes, mas seu olhar… seu olhar estava longe, fixo na jovem princesa diante dela.
Não era apenas o excesso de tecidos, Maomao reparava em coisas que outros jamais notariam: o jeito como Jin-Ye caminhava com mais cautela, como se calculasse cada passo; a maneira sutil com que apoiava os dedos no ventre sempre que se distraía; até mesmo a leve mudança na respiração quando ficava tempo demais em pé. Eram sinais pequenos, sutis, mas para ela gritantes.
Poderia ser…?
Ela estreitou os olhos, o cérebro trabalhando rápido como quando misturava ervas para um antídoto. Sintomas, possibilidades, probabilidades… tudo se alinhava em sua mente de forma incômoda.
Mas logo afastou os pensamentos com um suspiro discreto, quase repreendendo a si mesma. "Não, isso é impossível."
Jin-Ye era cuidadosa demais, orgulhosa demais. Não colocaria a própria posição em risco. Não se arriscaria a tanto sem estar casada, sem alguém para protegê-la de um escândalo. Não era apenas o nome dela que estava em jogo, mas o peso da linhagem imperial.
E além do mais… quem ousaria?
A hipótese parecia absurda.
E ainda assim… Maomao não conseguia ignorar o jeito como os olhos da princesa brilhavam em certos momentos, não de febre ou cansaço, mas de algo mais. Algo secreto.
Jin-Ye, talvez percebendo o olhar que a dissecava como um bisturi invisível, corou levemente e desviou o rosto. Fingiu se concentrar no bebê, que batia as mãozinhas no ar, tentando agarrar uma mecha do cabelo da princesa.
Com um sorriso tímido, quase forçado, ela ofereceu o dedo para Guang, que o agarrou com força surpreendente.
— Ele é… forte — murmurou, a voz baixa, como se tivesse medo de ser ouvida além daquele espaço. — E cheio de energia.
Maomao arqueou as sobrancelhas, um meio sorriso despontando em seus lábios.
— Forte… e insistente. — ela balançou o bebê devagar, fazendo-o soltar uma risada estridente.
Jin-Ye riu baixinho, o som delicado escapando como uma nota inesperada, mas ainda assim, evitou encarar a amiga. Os olhos permaneceram fixos em Guang, e os dedos dela tremeram quase imperceptivelmente enquanto acariciavam os cabelos macios do bebê.
— Nunca… nunca segurei um bebê antes. — confessou, quase em sussurro, como se aquilo fosse uma falha inaceitável para alguém de sua posição. — Não sabia que poderiam ser… tão leves e pesados ao mesmo tempo.
Maomao inclinou a cabeça, estudando-a com atenção.
— Leves nos braços… mas pesados no coração — completou, como se falasse para si mesma.
O silêncio que seguiu foi preenchido apenas pelas risadinhas de Guang.
E foi nesse silêncio que Maomao percebeu, o olhar de Jin-Ye havia mudado. Ela segurava o bebê com rigidez tensa, mas seus olhos… seus olhos estavam suaves, marejados de algo que era ternura e receio ao mesmo tempo. E, por um instante, quase imperceptível, ela deixou o olhar deslizar para a própria barriga.
Foi rápido, um reflexo inconsciente, mas Maomao viu.
Seu coração deu um pequeno salto.
E depois, tão rápido quanto veio, ela mesma tentou apagar o pensamento. "Não. Não pode ser. A princesa não se arriscaria tanto.", ela continuava dizendo repetidas vezes dentro da própria mente.
Maomao sorriu, desta vez de forma mais calma, tentando mascarar suas próprias conclusões enquanto ajeitava Guang de novo.
— Está vendo? Não é tão difícil. — Fez um gesto em direção a Jin-Ye, encorajando-a a segurar o bebê de forma mais natural. — Apenas… deixe que ele confie no seu abraço. O resto vem sozinho.
Jin-Ye assentiu em silêncio, apertando Guang contra o peito com delicadeza, mas os olhos dela… os olhos traíam segredos que ainda não tinham nome.
[. . .]
A tarde caía suave quando Basen surgiu na porta da pequena clínica, trazendo Jofu sob o braço como se fosse um troféu. O pato grasnou, agitado, mas logo se acalmou ao sentir o cheiro familiar de ervas no ambiente. Dentro, Maomao moía remédios com movimentos ritmados, enquanto o pequeno Guang estava sentado num banquinho baixo, mastigando distraidamente pedacinhos de maçã cortada em uma tigela de porcelana.
Basen franziu o cenho ao ver a cena.
— O que meu filho está fazendo aqui e não com a mãe dele? — perguntou, num tom sério, mas que escondia a curiosidade genuína.
Sem levantar a cabeça, Maomao respondeu com naturalidade:
— Lady Lishu e Chue estão ocupadas organizando o Pavilhão da Lua e eu disse que cuidaria de Guang por algumas horas. — ela levantou o olhar, o provocando — Parece que ele não se incomodo
Guang, como para provar a fala de Maomao, estendeu a mãozinha para mais uma fatia de maçã que ela ofereceu, ignorando completamente a presença do pai.
Maomao riu baixinho, apoiando o pilão de lado.
— Veja só, Basen. Primeiro eu conquisto o coração de Jofu, e agora parece que roubei também o seu filho. — seus olhos brilharam com uma provocação travessa, enquanto Basen estendia os braços para o filho vir em sua direção, mas o pequeno negava rindo. — Parece que seu filho não quer ir no seu colo, Basen.
Basen bufou, cruzando os braços, mas era impossível esconder o desconforto misturado com um resquício de ciúmes.
— Hmph. Esse pato só está vivo por minha causa, não por sua. — rebateu, apontando o dedo para Jofu, que grasnou em resposta como se concordasse com Maomao. — E Guang… — ele tentou pegar o menino, que se virou de imediato para Maomao, abraçando a saia dela como se buscasse refúgio.
Maomao soltou uma gargalhada clara, inclinando-se para afagar os cabelos do pequeno.
— Ele já decidiu, Basen. O coração de Guang é meu.
Basen suspirou fundo, derrotado, embora um sorriso quase imperceptível tenha se formado no canto da boca.
— Esse é o pior destino para um pai: ser superado por você, logo você.
Maomao ergueu a sobrancelha, com um ar zombeteiro.
— Talvez não em tudo. Ainda sou apenas uma simples médica, estrategista e Princesa Imperial que cuida de remédios… não um Imperador. — brincou tentando irritá-lo.
Ele desviou o olhar, como se não quisesse ceder terreno naquele jogo de provocações, mas logo estendeu a mão para o filho.
— Vamos, Guang, o Imperador e a Imperatriz aguardam sua presença Alteza.
Mesmo relutante, o pequeno acabou se deixando levar, ainda olhando por cima do ombro para Maomao, como se não quisesse se despedir tão cedo.
Maomao abanou a mão, sorrindo.
— Seu pai não vai admitir, mas morre de inveja que eu seja mais legal do que ele.
Basen pigarreou, apertando o menino nos braços, tentando disfarçar o leve rubor nas orelhas.
O corredor que levava ao salão imperial estava silencioso, exceto pelo som dos passos firmes de Basen e pelo tilintar discreto dos sinos presos aos sapatos de Maomao. Guang caminhava ao lado deles, de mãos dadas com Basen, o olhar curioso seguindo cada detalhe das tapeçarias e vasos do palácio. Jofu, ainda em seus braços, grasnou ocasionalmente, como se aprovasse o movimento da comitiva.
— Sabe… — Basen começou, a voz baixa, olhando de soslaio para Maomao enquanto caminhavam — fico feliz que a minha esposa trabalhe para a senhora, Alteza e que meu filho tenha gostado tanto de vossa companhia.
Maomao riu, balançando a cabeça, e deu um leve tapa nas costas de Basen, com afeto travesso.
— Ah, então está tudo bem se Guang gostar de mim mais que de você, não é?
— Hmph. — ele bufou, fingindo indignação, mas não conseguiu conter o sorriso. — Talvez seja apenas natural. Ele vê alguém gentil, paciente… — e pontuou com um gesto dramático — e a senhora, Alteza, é isso.
— Gentil? — Maomao arqueou uma sobrancelha, divertida. — Acho que você quis dizer que sou paciente porque ele não me dá escolha.
— Exatamente. — Basen cruzou os braços, mantendo o semblante sério por segundos, mas falhando ao segurar o riso. — Mas, falando sério, acho apropriado que troque de roupa antes de encontrar o Imperador e a Imperatriz.
Maomao olhou para si mesma e depois para Basen, a risada escapando antes que pudesse ser contida. O hanfu ainda estava manchado de terra, respingos aqui e ali de sua aventura matinal pelo jardim.
— Ah, não me importo. — disse, dando de ombros. — Vou me trocar depois e tomar banho. Por enquanto, que vejam a princesa suja de terra.
— Alteza… — Basen estreitou os olhos, tentando manter a seriedade, mas falhando miseravelmente — não que a sujeira lhe tire o brilho, mas há limites para a compostura diante do Imperador.
Maomao riu novamente, inclinando-se para ajeitar Guang que se empoleirava na ponta do degrau, curioso com os tapetes vermelhos que conduziam ao salão.
— Pois muito bem, Basen, vou ouvir seu conselho — disse, sorrindo de forma quase conspiratória — mas por enquanto, vamos mostrar que a princesa imperial também sabe brincar no jardim.
Ele suspirou, resignado, mas o brilho de diversão nos olhos denunciava que gostava da companhia dela, caminhar com Maomao, provocativa e direta, era ao mesmo tempo desafiador e… agradável.
Enquanto avançavam, Basen murmurou:
— Ah, e cuidado com Jofu, ele já está me encarando como se eu fosse um intruso em território conquistado.
Maomao deu uma risada suave e, em tom zombeteiro, respondeu:
— Parece que tanto você quanto seu pato precisam aprender a compartilhar, Basen.
Guang bateu palminhas em aprovação, e até Jofu grasnou, como se confirmasse cada palavra.
E, entre risos contidos e provocações sutis, seguiram pelo corredor até o salão imperial, com Maomao à frente, confiante e charmosa, e Basen ao lado, um misto de guarda, amigo e irmão de criação, mantendo a ordem — e, que silenciosamente, admirava a princesa com todo o respeito que sua posição permitia.
[. . .]
O salão imperial estava repleto de tapeçarias vermelhas e douradas, o brilho das lanternas refletindo nas colunas de madeira entalhada. Basen permaneceu discretamente ao lado de Maomao, mantendo Guang e Jofu sob vigilância, enquanto a princesa avançava com passos firmes, mas cheios de graça, em direção ao trono onde o Imperador e a Imperatriz Ah-duo aguardavam.
O Imperador inclinou-se levemente, com um brilho de curiosidade nos olhos.
— Gaoshun me disse que uma de minhas filhas desejava uma breve reunião comigo e com a Imperatriz — comentou, com a voz firme, mas acolhedora.
Maomao se inclinou levemente, mantendo a postura impecável e caminhando um pouco mais perto do trono.
— Majestade, — disse com voz calma, mas decidida — acredito que não seja algo fácil de se resolver, mas gostaria de propor algo que poderia ajudar as mulheres aqui dentro do palácio.
O Imperador assentiu, gesticulando para que ela prosseguisse.
— Prossiga, por favor.
Maomao passou a mão pelo hanfu esverdeado, ajustando as mangas e tentando manter a seriedade.
— Sei que Vossa Majestade me deu permissão para exercer minha função como médica no palácio, porque foi uma das minhas exigências ao me casar com o Príncipe da Lua — disse, gesticulando levemente com as mãos. — Mas percebo que, por ser a única médica mulher, a demanda entre as concubinas tem sido enorme. Muitas solicitam minhas visitas e exames. Graças à Imperatriz Viúva, temos algumas áreas reservadas aos médicos para exercerem suas funções, mas acredito que podemos aprimorar isso.
O Imperador inclinou a cabeça, atento.
— E o que a princesa sugere?
— Minha ideia, Majestade, é criar uma espécie de programa preparatório para mulheres se tornarem auxiliares médicas. — continuou Maomao, os olhos firmes nos do Imperador, a voz transmitindo segurança. — As que se destacarem, eu mesma me responsabilizaria por treiná-las. Afinal, Majestade, ainda sou apenas uma princesa consorte. Em algum momento, com a posição de Jinshi, minha tendência será ascender como Imperatriz. Nesse ponto, deixarei de exercer minha função médica diretamente. Com auxiliares bem treinadas, será mais fácil lidar com as demandas mais íntimas do mundo feminino. Eu ensinaria a elas tudo o que sei, desde a preparação de medicamentos até técnicas cirúrgicas básicas.
A Imperatriz Ah-duo colocou delicadamente a mão sobre o ombro do marido, e o Imperador passou a mão pela barba, pensativo.
O Imperador permaneceu alguns segundos em silêncio, os olhos observando Maomao atentamente, enquanto os ministros se mantinham recuados, atentos, mas discretos. Então, ergueu uma das mãos, como quem sela um acordo e reconhece o mérito.
— Muito bem, minha filha. — disse com firmeza, mas também com orgulho. — Sua proposta demonstra não apenas perspicácia, mas preocupação genuína pelo bem-estar das mulheres do palácio. Tenho certeza de que a Imperatriz compartilha de minha opinião. Conte com meu apoio total.
Maomao inclinou-se respeitosamente, um leve sorriso curvando seus lábios.
— Agradeço, Majestade. — disse, sentindo o peso e a responsabilidade da confiança depositada nela. — Prometo que farei o melhor para que o palácio esteja bem assistido.
A Imperatriz Ah-duo então deu um passo à frente, a expressão suave, calorosa.
— Minha querida Maomao, — disse, a voz quase sussurrada, mantendo a discrição entre os presentes — vejo que você pensa como uma verdadeira líder. Não apenas nos cuidados médicos, mas também na forma como se importa com as pessoas ao seu redor.
Maomao curvou-se levemente, os olhos brilhando de emoção contida.
— Vossa Majestade é muito generosa. Aprendo muito apenas observando como administra o palácio e como cuida de todos.
A Imperatriz sorriu, aproximando-se um pouco mais, com a mão suavemente pousando sobre o ombro de Maomao.
— Você tem uma luz própria, Maomao. — Disse num tom quase confidencial, íntimo. — E não pense que seu talento para a medicina ou sua dedicação passarão despercebidos. Há uma sabedoria em sua juventude que poucos alcançam.
Maomao inclinou a cabeça, emocionada, mas mantendo a compostura.
— Obrigada, Majestade, suas palavras significam muito para mim. É um privilégio servir sob sua orientação.
Por um instante, o salão pareceu mais silencioso, mais leve, apesar da solenidade. Maomao e a Imperatriz trocaram um olhar de cumplicidade, uma conexão silenciosa que dizia mais do que palavras formais poderiam expressar.
— E lembre-se — continuou Ah-duo, num tom quase maternal —, não carregue todo o peso sozinha. Confie nas pessoas ao seu redor, e não tenha medo de pedir ajuda. O palácio é grande, mas você não precisa enfrentá-lo sozinha.
Maomao sorriu, sentindo-se verdadeiramente apoiada.
— Prometo, Vossa Majestade. — disse, a voz firme, mas cheia de sinceridade. — Sinto-me mais confiante sabendo que posso contar com seu apoio.
O Imperador, observando de seu trono, sorriu levemente, satisfeito ao perceber a proximidade e respeito mútuo entre a filha adotiva e a Imperatriz.
Basen, que observava silencioso ao lado, não pôde deixar de soltar um pequeno suspiro de orgulho. Guang, distraído com uma maçã que segurava, parecia não notar a solenidade, mas Jofu grasnou, como se aprovasse a firmeza e a visão de Maomao.
No salão, a luz dourada iluminava a princesa imperial, destacando sua postura elegante e confiante — uma filha do imperador com a determinação de quem sabia exatamente o que queria e como alcançar seus objetivos.
Ao final da reunião, Maomao se curvou respeitosamente para o Imperador e a Imperatriz, agradecendo pelo tempo e pelo apoio. Basen, como sempre atento, aproximou-se ao lado dela, segurando Guang pelo braço e carregando Jofu.
— Alteza, podemos nos retirar? — perguntou Basen, com o tom formal que sempre usava, mas com o leve brilho divertido nos olhos.
— Claro, Basen, — respondeu Maomao, sorrindo suavemente — vamos.
Caminharam pelos corredores amplos do palácio, Guang explorando cada detalhe com os olhinhos curiosos, batendo palmas e rindo. Jofu grasnou em protesto por não estar no colo da princesa, mas parecia resignado. Basen murmurou para Maomao:
— Parece que ele prefere você a mim agora.
Maomao deu uma risada leve.
— E que bom para mim — respondeu com um olhar travesso. — Já conquistei Jofu, agora só falta conquistar você de vez.
Ao chegarem ao Pavilhão da Lua, Maomao suspirou, sentindo o ar fresco e familiar. Chue e Lady Lishu apareceram imediatamente, sorrindo ao ver a princesa retornar.
— Alteza! — exclamou Lishu, aliviada e feliz. — Que bom que voltou bem!
Maomao sorriu calorosamente.
— É bom estar de volta, minhas queridas. — ela abaixou-se para entregar Guang, ainda nos braços, à mãe dele. — Aqui está o pequeno príncipe.
Chue ajudou Maomao a retirar o hanfu, conduzindo-a com cuidado em direção à banheira já preparada na suíte. O vapor subia lentamente, misturando-se ao aroma suave de ervas e flores que Chue havia adicionado à água.
Maomao deslizou lentamente para dentro da banheira, sentindo a água quente envolver seu corpo e relaxar cada músculo cansado. Por alguns instantes, ficou ali, silenciosa, contemplando a superfície ondulante e o calor que se espalhava por todo o corpo.
Então, a porta se abriu suavemente. Jinshi entrou, o olhar imediato voltado para a esposa, os músculos tensos relaxando apenas ao vê-la segura e tranquila na água. Com movimentos lentos, tirou a roupa e entrou na banheira, a água se mexendo com sua presença, aproximando-se de Maomao com delicadeza, mas com a intensidade que só ele sabia transmitir.
Maomao ergueu os olhos para ele, um sorriso surgindo mesmo no meio do cansaço, enquanto sentia o calor do corpo de Jinshi contra o seu.
— Você parece tão nervoso com a história da viagem. — disse ela, a voz suave, mas o coração acelerado.
— É complicado não sentir saudades quando se tem uma esposa assim me esperando em casa. — respondeu ele, aproximando o rosto do dela e depositando um beijo terno, seguido de outro, enquanto Maomao, relutante por alguns instantes, acabou sorrindo apaixonada e retribuindo, deixando de lado qualquer formalidade ou implicância.
A água quente envolvia ambos, e o aroma suave das ervas preenchia a suíte, criando uma bolha de intimidade só deles. Jinshi apoiou-se contra a borda da banheira, observando Maomao com aquele olhar intenso que sempre a fazia corar.
— Conversei com seus pais hoje. — disse ele, a voz baixa, mas firme — Fen Fang, Zhìyuǎn e Yaling vão ficar no palácio enquanto eu estiver fora. Eles farão companhia a você, para que não fique sozinha durante esses dias.
Maomao sorriu, um sorriso tímido, mas sincero.
— Eles vão mesmo ficar comigo? — perguntou, sentindo uma pontada de alegria e alívio.
— Sim. — respondeu Jinshi, aproximando-se mais — Não poderia deixar você sozinha, mesmo que eu precise viajar.
O coração de Maomao acelerou, e num impulso, ela se apoiou sobre ele, ficando por cima, sentindo o calor do corpo dele misturar-se ao seu. Sem pensar muito, começou a enchê-lo de beijos, demorados, intensos, quase brincando com a paciência de Jinshi. Cada beijo era acompanhado de pequenas risadas contidas, como se fossem cúmplices de uma travessura só deles.
Jinshi riu baixinho entre um beijo e outro, os braços envolvendo Maomao com força, segurando-a próxima.
— Você não tem ideia de como isso é… — começou, a voz rouca —… difícil de suportar.
— Difícil? — interrompeu Maomao, provocando-o com um sorriso travesso — Você adora.
Ele sorriu, sem conseguir conter o charme e a atração que sentia. Com cuidado, respondeu aos beijos dela, demoradamente, com intensidade, como se quisesse que cada segundo durasse mais do que o tempo permitia.
— Talvez eu adore demais, mas é justamente por isso que não poderia deixá-la sozinha. Nem por um instante.
Maomao, ainda por cima dele, soltou um suspiro contente, acariciando o rosto dele entre os beijos, o corpo relaxando por completo contra o dele.
— Então… você vai ter que me aguentar mesmo a distância. — disse, o sorriso se tornando provocativo.
— Um mês. — confirmou Jinshi, sorrindo também, a voz carregada de ternura e desejo — E durante esse tempo, vou sentir falta de cada minuto que não passar ao seu lado.
A água se agitava suavemente com seus movimentos, mas nenhum dos dois parecia se importar. Risos, beijos demorados e palavras sussurradas preenchiam a suíte, transformando aquele momento em uma bolha de intimidade que só eles compartilhavam, entre amor, desejo e aquela leve provocação que sempre os fazia perder a noção do tempo.
Notes:
Acredito que esse seja um dos penúltimos capítulos leves realmente aqui nessa fanfic.
Então aconselho prepararem o coração, agradeço a Cher que fica me ouvindo falar as ideias e mudar todo o rumo da fic.
Aliás, vocês gostam de fanfic longa ou curta? Porque essa aqui era pra ser curta e agora está quase se tornando uma novel de tão extensa.
Comentem aqui que eu respondo (demoro, mas eu respondo, eu juro :)))))
Chapter 23: Lições e Reflexões
Notes:
Em minha defesa foi uma semana caótica, o AO3 estava em manutenção, voltou e eu fiquei utilizando o tempo que me sobrou na semana para descansar a mente e estudar para as provas.
Esse capítulo é um dos mais fofos e engraçados sabe? você meio que vê o ponto de vista de todos os personagens e se vê incluído no meio deles, é interessante, principalmente a dinâmica Jinmao e Lanye, pra mim eles são muito supremacy 🛐🛐🛐
espero que gostem e boa leitura a todos, estarei lendo e respondendo seus comentários :)))
um bjo bjo
Chapter Text
Maomao caminhava com calma, observando as árvores balançando levemente com os ventos do outono, enquanto segurava um rolo de pergaminho nas mãos — a lista das candidatas que haviam prestado o teste para auxiliares médicas.
Havia sido um processo rigoroso, dividido em etapas de leitura, escrita, identificação de ervas, perguntas práticas sobre sintomas comuns e até mesmo a simulação de pequenas suturas em panos grossos. Ela mesma havia elaborado cada parte, com a ajuda de médicos veteranos que, de início, a olharam de soslaio, mas acabaram reconhecendo sua capacidade.
Agora, os nomes das aprovadas estavam ali, enrolados no pergaminho, Maomao soltou um suspiro discreto. Entre as selecionadas, duas jovens se destacaram mais que as outras: Yao, de semblante atento e mãos firmes, e En'en, dama de companhia pessoal da própria Yao, que havia pedido para acompanhar sua senhora quase como sombra. Curiosamente, ambas haviam passado nos testes com notas razoáveis, embora de naturezas muito distintas: Yao pela disciplina, En'en pela paciência em tarefas repetitivas.
No salão reservado, as duas estavam à espera, Yao mantinha-se ereta, com a postura de quem levava tudo a sério, enquanto En'en, mais retraída, observava cada detalhe das tapeçarias e móveis, como se buscasse distração para disfarçar o nervosismo.
— Parabéns por terem passado na primeira seleção. — disse Maomao, entrando no recinto. sua voz era calma, mas firme — Não pensem, no entanto, que isso significa que se tornaram auxiliares médicas de imediato. É apenas o começo.
Yao inclinou a cabeça em sinal de respeito.
— Estamos dispostas a aprender, Vossa Alteza.
En’en hesitou, mas fez uma mesura tímida.
— Eu… só espero não atrapalhar.
Maomao arqueou uma sobrancelha, sem suavizar a expressão.
— Não espero perfeição de vocês, eu espero dedicação. Se não se adaptarem ao ritmo, não terão lugar neste treinamento. — ela pausou, o olhar percorrendo ambas — Trabalharão em setores que lidam com o corpo feminino, com questões que outros médicos homens não compreendem com tanta clareza. Isso exige discrição, coragem e, acima de tudo, mente firme diante da dor alheia.
O silêncio que se seguiu foi cortado apenas pelo som de passos no corredor, uma criada entrou com uma bandeja de chá, e Maomao aproveitou para sentar-se diante das jovens.
— Vocês terão lições práticas e teóricas. Começaremos pelo básico: identificação de ervas e preparo de remédios simples. Depois, técnicas de assepsia, cuidados com febre, sangramentos e partos. — um leve sorriso atravessou seu rosto. — Se passarem por tudo isso, então confiarei em vocês para algo maior.
Yao parecia absorver cada palavra, como quem grava em pedra, já En'en, com as mãos nervosas no colo, respirava fundo para não parecer perdida.
Maomao fechou o pergaminho com firmeza.
— Este é o primeiro passo para algo que pode mudar o palácio, mas lembrem-se: se falharem, não será apenas um erro pessoal. Colocarão vidas em risco.
O peso das palavras pairou no ar, mas, ainda assim, as duas assentiram com seriedade.
Do lado de fora, o vento continuava a soprar, levando consigo o prenúncio de uma nova era silenciosa, onde mulheres começavam a ocupar um espaço que até então lhes era negado.
[. . .]
O pátio medicinal havia sido preparado para as aulas iniciais. Sobre as mesas de madeira, potes de barro e pequenas caixas de bambu guardavam folhas secas, raízes e sementes cuidadosamente separadas. O cheiro forte de ervas — algumas amargas, outras adocicadas — impregnava o ar fresco da manhã.
Maomao ergueu a manga do quimono, prendendo-a ao braço para não atrapalhar os movimentos.
— Vamos começar pelo básico. — ela abriu um dos potes, revelando uma raiz ressecada e escura. — Esta é huang qin. Usem o nariz e depois a ponta dos dedos. Preciso que consigam identificar pelo cheiro e pela textura, não apenas pela aparência.
Yao inclinou-se, inalando profundamente, depois passou os dedos pela raiz, a expressão concentrada.
— Tem aroma terroso, quase amargo, a superfície é áspera, quebradiça.
Maomao assentiu com um leve movimento de queixo.
— Correto.
En'en hesitou, aproximou-se devagar e cheirou a raiz com cautela, torceu levemente o nariz, franzindo a testa.
— Cheira… desagradável. Não consigo descrever bem.
— É exatamente por isso que treinará mais vezes — respondeu Maomao, seca, mas sem dureza excessiva — Se não conseguir distinguir os aromas, poderá errar uma preparação. E um erro desses pode custar vidas.
Ela então retirou uma segunda erva, de folhas finas e verdes.
— Esta é usada para aliviar febres altas, quero que ambas preparem uma infusão. Observem bem as medidas.
Yao imediatamente começou a cortar com firmeza, como se tivesse treinado antes. Já En'en tremia levemente ao segurar a pequena faca, mas fazia esforço para acompanhar. Maomao observava em silêncio, anotando mentalmente cada reação.
Quando a água começou a soltar vapor, Maomao aproximou-se e pegou as tigelas. Experimentou uma gota de cada com a ponta da língua.
— Yao, bom equilíbrio. Só precisa controlar a temperatura da água, ficou forte demais. — seus olhos se voltaram para En'en — Você errou na proporção. Está fraca, quase inútil.
O rosto da dama de companhia corou de vergonha, mas ela fez uma reverência.
— Entendi. Farei novamente.
— Fará quantas vezes forem necessárias até acertar. — disse Maomao, firme — Aqui, não importa se são damas de companhia ou senhoras nobres. Todas começarão do zero.
O sol já se erguia alto quando Maomao deu por encerrada a primeira sessão, as mãos de Yao estavam levemente manchadas de verde, enquanto En'en, cansada, limpava discretamente o suor da testa.
— Amanhã começaremos com técnicas de assepsia e curativos. Quero que estudem o material que deixei. — a voz de Maomao suavizou um pouco no final — Vocês não precisam ser perfeitas agora. Precisam apenas persistir.
As duas assentiram, e Maomao, recolhendo as ervas, sentiu uma pequena fagulha de esperança. Não seria fácil, mas estava lançada a semente do que poderia se tornar uma verdadeira escola de médicas auxiliares dentro do palácio.
Seus passos eram firmes, mas o corpo pedia repouso, o cheiro de ervas ainda impregnava seus dedos, e a mente girava em torno das reações de Yao e En’en durante a primeira aula.
Quando retornou de volta para seus aposentos, encontrou Jinshi à mesa baixa, revisando rolos de documentos. A luz suave das lanternas iluminava seu perfil, realçando o olhar concentrado que, ao notar a chegada dela, imediatamente se suavizou.
— Está exausta. — disse ele, fechando o pergaminho diante de si.
Maomao soltou um suspiro, sentando-se sem cerimônia ao seu lado.
— Não poderia esperar menos. Ensinar é diferente de praticar. É como tentar plantar uma árvore: exige paciência para ver o primeiro broto. — comentou com a voz pesada — Meu tio Luomen foi muito paciente para me ensinar a arte da medicina, mas eu não tenho a mesma aptidão para ensinar, visto minha impaciência.
Jinshi a observou com atenção, um meio sorriso nos lábios.
— Você é impaciente, porque espera que tudo saia perfeito, mas nem sempre isso irá acontecer e é normal, é bom para que você aprenda a controlar seus instintos. — riu analisando o rosto da esposa — Mas e os brotos de hoje… têm futuro?
Maomao apoiou o queixo na palma da mão, os olhos semicerrados.
— Yao é promissora, é disciplinada, rápida em aprender, mas rígida demais, como se tivesse medo de errar. Isso pode ser tanto virtude quanto fraqueza.
Ela fez uma pausa antes de prosseguir:
— En'en… é um caso diferente. Hesitante, insegura, mas percebi nela uma qualidade rara: a paciência. Se não desistir, pode ser mais útil do que aparenta.
Jinshi estendeu a mão, tocando de leve os dedos manchados de erva dela.
— E você, minha médica teimosa, está assumindo uma tarefa maior do que imagina. Está moldando não apenas auxiliares, mas um futuro em que as mulheres terão voz dentro destes muros e isso é além de lindo, muitíssimo importante para o futuro da dinastia.
Maomao desviou o olhar, sentindo o coração acelerar discretamente.
— Não estou pensando em algo tão grandioso assim. Apenas em aliviar a sobrecarga e garantir que as concubinas não fiquem sem atendimento.
— Hum. — Jinshi aproximou-se um pouco mais, sua voz baixa, quase um sussurro. — Mas é justamente nas intenções simples que as mudanças começam.
O silêncio entre os dois se prolongou, suave, quebrado apenas pelo crepitar distante das tochas no corredor. Maomao, cansada, deixou-se encostar no ombro dele, permitindo-se aquele instante de quietude.
— Espero não estar exigindo demais delas. — murmurou, a voz já arrastada pelo cansaço.
Jinshi inclinou levemente a cabeça sobre os cabelos dela.
— Você nunca exige além do necessário. Só desperta o que já existe adormecido.
Ela fechou os olhos, deixando-se envolver pelo calor discreto do toque dele. Pela primeira vez naquele dia, Maomao sentiu-se leve.
O silêncio confortável permaneceu por alguns instantes, até que Jinshi ajeitou a postura, como se lembrasse de algo.
— Acredito que amanhã partirei para a Capital Ocidental. — disse num tom calmo, mas firme. — Jiang e Yao Jun já estão organizando os últimos detalhes da viagem.
Maomao abriu os olhos devagar, ainda apoiada no ombro dele.
— Já? Achei que teria mais tempo.
— Não exatamente. — ele riu baixo, quase como quem tenta quebrar a seriedade — Quando se é herdeiro do trono e está prestes a governar um império, o tempo parece escorrer mais rápido.
Ela endireitou-se um pouco, fitando-o com aquela expressão séria que raramente se suavizava.
— Não gosto dessa ideia. É longe demais… e perigoso.
O sorriso dele se alargou, divertido.
— Ora, ora. Está me dizendo que gostaria que eu ficasse?
Maomao desviou o olhar imediatamente, sentindo o rosto aquecer.
— Não coloque palavras na minha boca. Só estou considerando o trabalho que ficará acumulado em sua ausência.
— Claro… trabalho. — Jinshi aproximou-se mais, inclinando-se de modo que seus olhos buscassem os dela. — Mas ainda assim, a pequena médica preferiria que eu não partisse.
Ela suspirou, fingindo impaciência, embora soubesse que não enganava ninguém.
— Apenas acho que você se expõe demais.
— Hm. — Jinshi apoiou o cotovelo na mesa, o rosto sustentado pela mão, olhando-a de forma quase provocadora — Se não fosse pelo império, eu ficaria.
Maomao estreitou os olhos.
— Está se divertindo às minhas custas.
— É impossível não me divertir com você. — ele deu uma risada baixa, a voz carregada de ironia suave — Mesmo quando tenta negar, é transparente.
Ela empurrou levemente o ombro dele, mas sem força real.
— Transparentes são suas provocações baratas.
Jinshi fingiu um ar ofendido, embora o brilho divertido nos olhos o denunciasse.
— Então devo acreditar que não sentiria falta alguma de mim?
Maomao hesitou por um instante. Sua voz, quando saiu, era baixa, quase resignada.
— Eu já me acostumei com a sua presença… é só isso.
O silêncio que se seguiu foi preenchido por um riso contido dele. Jinshi inclinou-se até quase encostar a testa na dela.
— Se isso não é uma confissão, então não sei mais o que é.
Ela o fitou, semicerrando os olhos, mas não recuou.
— Se quiser acreditar nisso, é problema seu.
Jinshi manteve o sorriso, deixando escapar um suspiro satisfeito, e voltou a acomodar-se, puxando-a para mais perto.
— Então, até o dia de amanhã, deixarei que se acostume ainda mais.
E Maomao, apesar de revirar os olhos, não protestou quando ele envolveu seus dedos manchados de ervas entre os dele, aquecendo-os como se fosse um gesto natural, sem a necessidade de mais palavras.
Maomao franziu o cenho, tentando disfarçar o cansaço que transbordava em cada traço de seu rosto, Jinshi sorriu inclinando a cabeça, como se não conseguisse segurar a risada ao ver a esposa daquele jeito, parecendo uma criança emburrada após um longo dia de aulas de etiqueta.
— Espere aqui.
Ela ergueu uma sobrancelha, desconfiada.
— Vai aonde?
Um meio sorriso atravessou os lábios dele.
— Preparar algo que sei que vai gostar.
Antes que pudesse questioná-lo, Jinshi já havia desaparecido pela porta lateral. Maomao suspirou, massageando a têmpora. "O que aquele homem estava tramando agora?"
Pouco tempo depois, ele retornou trazendo uma bandeja. Sobre ela, uma pequena chaleira de porcelana soltava vapor e duas xícaras delicadas. O cheiro forte e amargo se espalhou pelo quarto, Maomao endireitou-se imediatamente, surpresa.
— Chá amargo? — perguntou, piscando os olhos — Você mesmo fez?
Jinshi serviu a bebida com calma, os movimentos precisos, quase cerimoniais.
— Achei que já tivesse notado que observo cada detalhe seu. — colocou a xícara diante dela, o olhar brincando com o dela. — Até mesmo esse gosto que a maioria detesta.
Maomao segurou a xícara, aproximando-a dos lábios, o aroma lhe trouxe um conforto imediato, como se lavasse a fadiga do dia. Tomou um gole e arqueou uma sobrancelha.
— Não está ruim… para alguém que não cresceu cercado de remédios e panelas de decocção.
— "Não está ruim"? — Jinshi fingiu indignação, rindo em seguida — Esse é o máximo de elogio que consigo arrancar?
Ela disfarçou um sorriso, escondendo-se atrás da borda da xícara.
— Talvez.
Depois de beber, ele a conduziu até a suíte, sem esperar permissão, começou a soltar as amarras da roupa dela, gesto tão natural que Maomao só resmungou um protesto fraco.
— Sei me despir sozinha.
— Sei que sabe. — o sorriso dele se alargou. — Mas não vou perder a chance de ajudar.
A água morna envolveu Maomao quando entrou na banheira de madeira. O calor relaxou os músculos tensos, e ela quase suspirou em alívio. Jinshi ajoelhou-se atrás dela, pegando um pano macio e deslizando pelos ombros dela com delicadeza.
Quando seus dedos roçaram as costas dela, Maomao estremeceu de repente, se encolhendo.
— Ei! — virou-se para fitá-lo, ruborizada. — Eu… tenho cócegas.
O brilho nos olhos dele se acendeu imediatamente, divertido.
— Ah… então essa é a fraqueza guardada a sete chaves que Zhìyuǎn comentou certa vez? — provocou-a com um sorriso maroto no rosto.
— Não ouse, Jinshi. — ela estreitou os olhos em ameaça.
Ele tocou de leve outra vez, rápido, e Maomao soltou uma risada inesperada. Tentou escapar, mas ele a segurou com facilidade.
— Pare! — protestou entre risos, tentando empurrá-lo.
Jinshi ria baixo, o som profundo ressoando no ouvido dela.
— Sua risada… é ainda melhor do que imaginei.
Ele obedeceu, soltando-a. Em seguida, passou os braços em torno dela, apoiando o queixo em seu ombro molhado, o calor do corpo dele a fez relaxar.
— Não imaginei que fosse tão leve assim. — murmurou contra o pescoço dela — Devia permitir que essa parte sua aparecesse mais vezes.
Maomao desviou o olhar, a pele quente. Mas não respondeu.
Depois de ajudá-la a terminar o banho, Jinshi a levou de volta aos aposentos. Sentaram-se sobre a cama, e ele pegou o pente de madeira. Com movimentos lentos, começou a deslizar pelas mechas ainda úmidas e pesadas, os reflexos esverdeados cintilando sob a luz das lanternas.
— Sempre gostei da cor do seu cabelo. — disse suavemente, a voz quase um sussurro. — São únicos.
— São esquisitos. — resmungou, semicerrando os olhos.
— Não. — ele inclinou-se, depositando um beijo leve no alto da cabeça dela. — São fascinantes, assim como a dona deles.
Maomao mordeu o lábio, sem coragem de retrucar, o gesto dele era tão natural, tão caloroso, que desarmava qualquer resposta.
Pouco depois, Jinshi puxou-a para mais perto, deitando-se com ela, os lábios se encontraram num beijo tranquilo, sem pressa, como se selassem a noite. Não havia urgência — apenas a gentileza de quem não precisava provar nada.
Ela suspirou contra ele, e quando se separaram, acomodou-se sobre o peito dele. Sentiu o coração dele sob sua orelha, o ritmo constante a embalando.
— Vai acabar me deixando mimada, se continuar assim — murmurou, já tomada pelo sono.
Jinshi acariciou os fios verdes ainda úmidos, os olhos semicerrados num sorriso satisfeito.
— Se for por você, não me importo.
Maomao não respondeu, o sono a venceu rápido, deixando-a entregue em seus braços, respirando suavemente. Jinshi permaneceu acordado por mais algum tempo, apenas ouvindo aquele som, gravando em silêncio o instante como um tesouro particular, inalcançável para qualquer outro olhar.
[. . .]
A manhã avançava lentamente, com a luz suave do sol atravessando as cortinas de seda, Maomao foi a primeira a despertar. O corpo ainda pesado pelo sono e pelo calor tranquilo que a envolvia, percebeu logo o peso firme do braço de Jinshi repousado sobre sua cintura.
Ela não se moveu de imediato, ficou ali, imóvel, deixando-se mergulhar na estranheza daquele instante. Não era comum ter a chance de observá-lo assim, completamente vulnerável. Jinshi raramente se permitia repousar sem a máscara da postura impecável — e agora, com os cabelos soltos caindo pela lateral do rosto e a respiração calma e profunda, parecia outra pessoa.
Maomao virou-se devagar, apoiando o queixo no dorso da mão, encarando-o como se tentasse decifrar um segredo. O traço delicado de seus cílios longos, o leve franzir da sobrancelha até mesmo no sono, a curva definida da boca que tantas vezes falava com ironia e encanto. Ele não parecia o homem inalcançável que todos reverenciavam. Naquele instante, parecia apenas um jovem exausto, alguém que, contra todas as probabilidades, havia se enredado na vida dela.
Seu peito subia e descia em um ritmo estável, e ela o seguiu com os olhos, distraída, quase hipnotizada. Pensou no quanto odiava admitir que seu coração se acalmava quando estava assim, envolta naquele calor. "Odiei." A palavra ecoava, mas sem força. Porque, no fundo, havia uma parte dela que desejava mais manhãs como essa.
Estendeu a mão, hesitante, os dedos pairando sobre a mecha rebelde de cabelo que caía sobre a testa dele, tocou de leve, afastando-a, e surpreendeu-se ao sentir o quão suave era ao toque. Retirou a mão rápido, como se tivesse cometido um crime, mordendo o lábio inferior.
"Ridículo", pensou, reprimindo um riso silencioso. "Olhar para ele é como se fosse algum tipo de pintura rara..."
Mas continuou ali, fitando-o com uma intensidade que jamais confessaria em voz alta.
E então percebeu: naquele sono tranquilo, Jinshi parecia quase humano demais e isso, paradoxalmente, a deixava inquieta — porque quanto mais humano ele se mostrava, mais difícil era manter a barreira que ela mesma erguera entre eles.
Ela suspirou baixo, tentando se convencer de que deveria levantar, talvez preparar alguma infusão para si mesma, ocupar as mãos com qualquer coisa, mas não moveu um músculo. Ficou ali, presa entre a curiosidade e a estranha ternura que brotava em seu peito, como se quisesse gravar aquela imagem em sua memória.
No fundo, sabia que aquele momento era raro — um pedaço secreto da vida de Jinshi que apenas ela conhecia.
O movimento quase imperceptível do corpo de Jinshi sob seu toque fez Maomao prender a respiração. Ele suspirou fundo, os lábios se entreabrindo, e demorou alguns segundos antes de abrir os olhos lentamente. O brilho dourado das íris ainda estava turvo de sono, mas a primeira coisa que viu foi o rosto dela, tão próximo, observando-o como se fosse um segredo proibido.
— Hm… — ele murmurou, a voz baixa e rouca, carregada de preguiça — Está me espionando, Maomao?
Ela desviou o olhar de imediato, corando de leve.
— Não seja idiota. Só acordei antes de você.
Jinshi sorriu, preguiçoso, esticando-se ligeiramente antes de apertar o braço que ainda segurava a cintura dela, trazendo-a para mais perto.
— Isso é raro… você, parada ao meu lado, sem resmungar por chá. — ele roçou o nariz contra a têmpora dela, com um gesto quase infantil.
— Eu poderia levantar e preparar meu próprio chá. — respondeu, tentando soar indiferente, embora permanecesse imóvel no abraço dele.
— Não, não… — ele a interrompeu, os dedos deslizando pelas costas dela, num toque lento demais para ser inocente. — Fique, é agradável acordar assim.
Maomao sentiu um arrepio quando os dedos dele encontraram um ponto sensível em sua pele. Moveu-se, inquieta, mas ele apenas riu baixinho, notando a reação.
— Tem cócegas até de manhã cedo?
— Pare com isso, Jinshi. — ela resmungou, tentando empurrá-lo, mas a força dele era tranquila e firme, mantendo-a cativa contra o peito.
— Não até você admitir… — ele inclinou o rosto, roçando os lábios contra os dela em um beijo breve, quase preguiçoso, mas cheio de intenção. — …que gostaria que eu ficasse mais tempo aqui, só nós dois.
Ela mordeu a própria boca, como se fosse negar, mas acabou suspirando contra os lábios dele, rendida.
— Talvez… um pouco.
O sorriso dele se alargou, satisfeito, e então não houve mais palavras. Apenas o calor crescente que os envolveu, a maneira como os beijos se tornaram mais longos, mais profundos, e as mãos deslizaram em carícias lentas que logo perderam qualquer vestígio de inocência.
A manhã se estendia além das cortinas fechadas, mas, para eles, o tempo parecia suspenso. Os risos baixos dela abafados contra o pescoço dele eme meio aos gemidos quase altos, o som da respiração cada vez mais entrecortada, os movimentos que se tornaram íntimos demais para serem descritos, as mãos de Jinshi passeando pelos seios de Maomao, os chupões que a mesma trilhava pelo corpo do marido.
[. . .]
O quarto estava mergulhado em uma aura quente e intensa, quebrado apenas pela respiração ainda descompassada dos dois. A claridade suave da manhã se insinuava pelas frestas da cortina, pintando a cama em tons dourados. Maomao estava deitada de lado, os cabelos desalinhados caindo sobre o peito nu de Jinshi, o ouvido encostado contra o compasso tranquilo de sua respiração.
Por alguns instantes, deixou-se ficar ali, rendida ao conforto, mas, como sempre, a mente inquieta começou a trabalhar. Tentou se mover devagar, afastando-se da firmeza dos braços que a seguravam.
— Aonde pensa que vai? — a voz rouca de Jinshi soou sonolenta, mas carregada de divertimento.
— Tomar um banho… talvez procurar meu chá. — murmurou, sem olhar para ele, tentando puxar a coberta para cobrir o corpo e se erguer.
O braço dele apertou sua cintura, firme.
— Não. — e havia uma ponta de riso na voz. — Ainda não terminei de observar como fica bonita assim… desarrumada.
Maomao corou, tentando se desvencilhar.
— Pare de dizer bobagens. Já se passaram horas, e eu preciso levantar.
Ele a puxou de volta, de modo que o corpo dela tombou contra o dele outra vez. O sorriso nos lábios de Jinshi era de pura provocação.
— Se tentar fugir agora, vou ter que segurá-la até a noite.
— Você é insuportável… — ela resmungou, mas o rubor em suas bochechas a entregava.
Ele inclinou o rosto, mordiscando de leve a ponta da orelha dela, o que a fez estremecer.
— Insuportável? — sussurrou, divertido. — Ontem à noite e agora de manhã, não parecia que pensava isso.
— Ka Zuigetsu! — Maomao o empurrou, mas sem força real.
Ele riu baixo, satisfeito, e então a soltou apenas o suficiente para que ela se sentasse, ainda com o corpo coberto pelo lençol. Os olhos violetas a percorriam com uma calma possessiva, e quando ela finalmente se levantou da cama, apressada e embaraçada, ele murmurou:
— Não importa para onde fuja, Maomao. Sempre vou querer puxá-la de volta para mim.
Ela bufou, fingindo ignorá-lo, mas o coração batia acelerado demais para que conseguisse manter a expressão indiferente. E enquanto procurava as roupas pelo quarto, sabia que Jinshi a observava em silêncio, sorrindo como se tivesse acabado de vencer uma batalha.
Jinshi permaneceu recostado nos travesseiros, o braço dobrado atrás da cabeça, observando Maomao recolher as roupas espalhadas pelo quarto. O lençol ainda escorregava pelo corpo dela, revelando mais do que escondia, e ele precisou conter um riso baixo diante da pressa desajeitada com que ela tentava se cobrir.
A cada passo, a cada gesto impaciente, parecia que ela tentava apagar os vestígios da noite e da manhã que haviam compartilhado. Mas, para ele, esses traços eram impossíveis de apagar.
"Ela não percebe…" pensou, os olhos violáceos semicerrados, seguindo a linha suave das costas dela. "O quanto me prende mesmo quando tenta escapar."
Era raro vê-la tão vulnerável. Maomao, com sua língua afiada e a mente sempre ocupada com ervas, venenos e mil cálculos, agora parecia apenas… humana. Uma mulher que corava, que fugia de seus olhares, mas que, minutos antes, havia se rendido de corpo e alma nos braços dele.
Jinshi sorriu, um sorriso lento, íntimo, que ele nunca permitiria a outros verem. Havia algo viciante em provocar essa mulher, em testar os limites da paciência dela só para arrancar um suspiro impaciente, um olhar atravessado, ou um momento de entrega que ninguém mais jamais teria.
"Em breve terei de partir para a Capital Ocidental…", lembrou, e o sorriso diminuiu. A simples ideia de deixá-la aqui, sozinha, enquanto ele lidava com intrigas políticas e militares, era amarga. Mas, por outro lado, havia nela uma força que sempre o surpreendia. A forma como se dedicava a treinar Yao e En'en, como carregava responsabilidades que não precisaria assumir, como jamais abaixava a cabeça diante dele — mesmo sendo imperador agora.
Ele riu baixinho, fechando os olhos por um instante, gravando aquela imagem em sua memória: Maomao, os cabelos esverdeados caindo em desalinho sobre os ombros, bufando em frustração enquanto vestia as camadas de roupa.
"Mesmo tentando fugir… continua voltando para mim."
O pensamento ecoou em sua mente com a serenidade de uma certeza inabalável. E, pela primeira vez naquela manhã, Jinshi deixou-se relaxar de novo contra os travesseiros, satisfeito em saber que, onde quer que fosse, haveria sempre um ponto fixo ao qual retornar.
[. . .]
A brisa suave agitava os estandartes com o emblema imperial, que ondulavam como se também acompanhassem a respiração contida daqueles que aguardavam no portão principal. Guardas alinhados em postura firme, eunucos atentos, damas de companhia discretas — todos compunham a cena formal de despedida da comitiva que partiria rumo à Capital Ocidental.
No meio daquela ordem cerimoniosa, havia uma ruptura: Maomao, abraçada a Jinshi, como se os braços pudessem atrasar o inevitável. Seu rosto, como sempre, era um ensaio de frieza, os lábios firmes e o queixo erguido. Mas os olhos… aqueles olhos úmidos entregavam uma verdade que ela tentava esconder.
Jinshi inclinou-se até quase roçar a pele dela, o sussurro escapando baixo, íntimo:
— Você finge muito mal… — disse, sorrindo de canto. — Consigo sentir seu coração bater daqui.
Ela tentou se afastar, erguendo o queixo em desafio.
— Está enganado.
Ele arqueou as sobrancelhas, e antes que ela pudesse argumentar, roubou-lhe um selinho rápido, atrevido, no meio de todos. O gesto foi como uma pedra lançada em um lago: o impacto se espalhou em ondas de surpresa.
Lady Lishu corou até as orelhas, quase tropeçando nos próprios pés. Lady Gyokuyou ergueu o leque diante do rosto, os ombros tremendo ao conter a risada. Lingli e Jin-Ye gargalharam sem pudor, enquanto até a Imperatriz Ah-duo deixou escapar um sorriso breve, raro, mas carregado de condescendência.
— Idiota! — Maomao sussurrou, furiosa, dando-lhe um tapa leve no ombro. O rubor intenso em seu rosto, porém, negava toda a severidade da palavra.
Jinshi apenas riu, satisfeito, o olhar faiscando com aquela vitória silenciosa. Ainda segurava a mão dela quando Jiang se aproximou, os olhos semicerrados de cansaço e sarcasmo.
— Pobre de mim… — murmurou ele, bufando. — Terei de aguentar Jinshi suspirando feito um viúvo pelos próximos trinta dias.
Maomao não conteve uma risada abafada, cobrindo a boca com a manga larga da roupa. Jinshi, no entanto, apontou o dedo para Jiang, afiado como uma flecha lançada com precisão:
— Ah, mas ao menos eu volto para os braços de minha esposa, que me ama. Você, Jiang… depois de um mês, será obrigado a se casar. — Jinshi provocou rindo.
O semblante de Jiang fechou-se num instante, e o pátio inteiro explodiu em gargalhadas. Lady Lihua levou a mão ao peito, rindo de forma mais contida; Lingli quase dobrou o corpo, rindo abertamente. Até Maomao não resistiu — entre lágrimas contidas e risos sinceros, deixou-se tombar contra o ombro do marido, escondendo parte do rosto.
— Insuportável… — Jiang resmungou, virando o rosto de lado, mas sem conseguir esconder o rubor leve em suas orelhas.
O momento se quebrou apenas quando um vulto correu pelo pátio. Yao Jun, vibrante de energia, lançou-se nos braços da mãe. Lady Gyokuyou o recebeu com força, abraçando-o como se quisesse guardá-lo para si. As mãos trêmulas ajeitaram as roupas do rapaz, e a voz, doce, soou entremeada de emoção.
— Seja obediente, Jun.
— Eu serei mãe, não precisa me tratar como criança. — respondeu ele com seriedade, antes de escapar de seus braços e correr na direção dos irmãos que já aguardavam ansiosos para a partida.
Um a um, os jovens atravessaram os portões do palácio. Seus passos ecoaram firmes contra o pátio de pedra, misturando-se às risadas que ainda flutuavam no ar, como para suavizar o peso da despedida.
Maomao permaneceu no portão, imóvel por alguns instantes. Ainda segurava a mão de Jinshi, os dedos entrelaçados como se fossem correntes invisíveis. Quando enfim soltou, a ausência queimou-lhe a pele, e ela apenas observou enquanto ele se afastava com a comitiva.
No fundo do peito, havia um aperto incômodo, mas também um calor suave. Porque antes daquela despedida pública, antes dos olhares curiosos e risadas ao redor, eles tinham compartilhado um instante só deles — íntimo, silencioso, gravado na pele e na memória. Um segredo que a acompanharia durante cada dia de espera.
[. . .]
Após a partida do Príncipe da Lua com a comitiva imperial rumo à Capital Ocidental, o Pavilhão de Cristal ganhou um ar de refúgio silencioso. As longas cortinas de seda balançavam suavemente com o vento da tarde, e os reflexos coloridos dos vitrais pintavam o chão de tons dourados e azulados. Lady Lihua, sentindo-se solitária nos últimos dias, convidara as princesas para se reunir com ela naquele espaço que parecia suspenso no tempo.
Maomao, agora não apenas como médica, mas também como princesa, estava sempre ao lado de Lihua. A condição lhe dava autoridade e deveres ainda mais pesados: cuidar da saúde da concubina enquanto lidava com a própria dor íntima de não poder dar herdeiros a Jinshi. Essa ferida silenciosa pesava em seu coração, mas ela nunca deixava transparecer diante das outras mulheres do palácio.
Lady Lihua estava no sexto mês de gestação, e sua barriga já se destacava de forma graciosa sob as camadas de tecidos claros. A gravidez era delicada, exigindo repouso constante, e cada pequeno desconforto era observado com atenção pela princesa-médica. Maomao registrava mentalmente cada mudança — a coloração da pele, a respiração, a pressão em seus pulsos frágeis.
— Está confortável, Lady Lihua? — perguntou Maomao, ajustando as almofadas atrás das costas dela com gestos firmes, mas cuidadosos.
— Sim… melhor assim — respondeu Lihua, sorrindo de forma suave, embora seus olhos denunciassem o cansaço.
As princesas Jin-Ye e Lingli estavam sentadas próximas, uma de frente para a outra, seus vestidos de seda se espalhando como flores abertas sobre as almofadas. Conversavam em sussurros e risadinhas, mas seus olhos curiosos não desgrudavam da figura serena de Lady Lihua.
Jin-Ye, em especial, mantinha o olhar fixo no ventre arredondado da concubina. Havia nele um fascínio silencioso, quase reverente, como se estivesse diante de um mistério que despertava tanto ternura quanto ansiedade. A cada vez que Lihua levava a mão à barriga, acariciando-a com aquele gesto instintivo de proteção, Jin-Ye sentia o coração apertar de forma estranha.
Ela era, em tudo, a cópia viva de Jinshi. A delicadeza dos traços, a postura naturalmente ereta, até o brilho do olhar carregava o mesmo reflexo do irmão mais velho que todos veneravam. Por isso mesmo, sentia ainda mais o peso da comparação — e da expectativa. Enquanto observava Lihua, imaginava como seria o nascimento daquele bebê: menino ou menina, ainda era um mistério, mas de uma coisa ela tinha certeza… a criança cresceria cercada de atenção e teria companhia desde cedo. E, no íntimo, Jin-Ye se permitia sonhar que, quando o tempo chegasse, aquele pequeno seria amigo do seu bebê. Tio e sobrinho, ligados por laços de sangue e destino, crescendo lado a lado. Essa imagem lhe trazia um conforto inesperado, como se oferecesse um refúgio contra as sombras que a assombravam.
Mas esse consolo não apagava a inquietação que latejava dentro dela. O segredo da própria gravidez era um peso que carregava em silêncio. Ninguém sabia — nem os pais, nem o irmão. O simples pensamento de revelar a verdade lhe gelava as mãos, como se o ar faltasse sempre que cogitava as palavras. O contraste do que via diante de si tornava tudo ainda mais doloroso: o bebê de Lady Lihua era celebrado em olhares e cuidados, cada gesto da concubina cercado de atenção e carinho. O seu, por outro lado, era uma verdade escondida, um medo enraizado no fundo do coração, aguardando o momento em que ela teria coragem de romper o silêncio.
Lingli, despreocupada, fazia perguntas animadas a Lihua, e a concubina respondia com paciência, rindo baixinho. Jin-Ye sorriu junto, mas seu sorriso tinha algo de ensaiado, de contido. No fundo, havia uma batalha silenciosa entre o desejo de partilhar sua alegria e o temor das consequências. Seus dedos apertaram o tecido fino do vestido no colo, como se buscassem firmeza, enquanto os olhos voltavam, inevitavelmente, para o ventre de Lihua — símbolo de esperança para o palácio e, ao mesmo tempo, espelho de tudo o que ela própria guardava em segredo.
— Lady Lihua, já consegue sentir os chutes?
Lihua riu baixinho, levando a mão ao ventre.
— Sim… às vezes à noite. É como se ele ou ela não quisesse me deixar dormir.
A resposta arrancou risadinhas das princesas, e até Maomao permitiu-se um pequeno sorriso, embora o seu olhar permanecesse atento e clínico.
Ela sabia melhor do que ninguém o quanto aquele nascimento mudaria a dinâmica do palácio. O bebê de Lihua seria motivo de celebração, uma nova chama de esperança para a linhagem, principalmente porque, até então, ela mesma — a consorte do príncipe herdeiro — não conseguira lhe dar um filho. Esse pensamento a atravessava como uma lâmina silenciosa, mesmo assim, Maomao mantinha a postura ereta, a expressão serena, como se apenas o papel de médica importasse naquele instante.
O pavilhão enchia-se de uma atmosfera de expectativa. As princesas trocavam confidências em voz baixa, Lihua acariciava a barriga em gestos delicados, e Maomao, firme em seu lugar, observava e cuidava. Do lado de fora, o jardim florescia, e as cigarras começavam seu canto vespertino.
Era um quadro quase perfeito de serenidade feminina dentro das paredes do palácio: quatro mulheres unidas por laços diferentes — sangue, dever, amizade e destino — mas todas ligadas por aquele mesmo ventre que carregava a promessa de mudança.
O ambiente tinha um ar descontraído — risos suaves, comentários sobre tecidos novos e pequenos detalhes da vida no palácio.
De repente, passos apressados soaram no corredor. Chue surgiu, ofegante, mas sorridente, e atrás dela três pequenas figuras se esgueiravam pela porta.
— Vossa Alteza. — anunciou a dama de companhia com a voz animada. — Trouxe visitas muito especiais.
Antes mesmo que Maomao pudesse reagir, Zhìyuǎn, Fen Fang e a pequena Yaling avançaram correndo pelo salão gritando.
— Irmãaaaa! — exclamaram em uníssono.
Zhìyuǎn, o mais entusiasmado, foi o primeiro a se jogar em seus braços. Fen Fang logo o seguiu, quase derrubando Maomao no chão de tanto aperto. Yaling, porém, vinha em passos menores, o olhar tímido mas carregado de expectativa.
Maomao abriu um sorriso largo, quase infantil, e os envolveu em um abraço que parecia capaz de juntar todos os anos perdidos entre eles. Os olhos marejaram, mas a risada escapou de seus lábios como música.
— Meus pequenos… — murmurou, apertando-os com carinho. — Como vocês estão lindos... que saudades.
Lady Lihua não conteve a emoção, ela levou ambas as mãos ao rosto, sorrindo de uma maneira tão sincera que parecia iluminar o pavilhão inteiro.
— Que cena mais adorável! — exclamou, quase chorando de alegria.
Ao fundo, Liang — que observava tudo de canto, sempre com aquele ar fechado e um tanto orgulhoso — bufou, cruzando os braços. Mas logo não resistiu. Aproximou-se um pouco, mantendo o tom sério, e chamou os irmãos de Maomao com um leve aceno da cabeça.
— Ei, vamos brincar lá fora. — disse, sem emoção na voz, mas com um brilho escondido nos olhos.
Zhìyuǎn e Fen Fang dispararam em direção a ele como se fosse a melhor proposta do mundo, esquecendo-se por um instante de que ainda estavam grudados em Maomao.
— Liang! Espera a gente! — gritaram, correndo em disparada.
Somente Yaling permaneceu. Ela abraçou a irmã mais velha com firmeza, escondendo o rostinho nos ombros de Maomao, como se não tivesse nenhuma intenção de largá-la.
— Você vai ficar comigo, não é? — perguntou baixinho, a voz carregada de inocência.
Maomao a ergueu no colo, beijando-lhe os cabelos macios. Sentiu o coração aquecer de uma forma diferente, um afeto puro que lhe atravessava a alma.
— Sempre, minha estrelinha. — respondeu, com ternura na voz.
Jin-Ye, que observava a cena com um sorriso contido, inclinou-se para Lady Lihua.
— Parece que o palácio ganhou um novo sol hoje — comentou suavemente.
Lady Lihua assentiu, ainda sorridente.
— E todos nós precisamos desse calor.
Enquanto isso, Maomao, com Yaling nos braços, continuava a conversar com as princesas e Lady Lihua, dividida entre a formalidade e o instinto de irmã mais velha que finalmente podia florescer dentro dos muros do palácio.
[. . .]
O chá já estava servido, e o ambiente tinha se aquietado após a explosão de alegria com a chegada dos irmãos de Maomao. Agora, Yaling permanecia firme no colo da irmã, com os bracinhos enlaçados ao redor de seu pescoço, como se quisesse grudar ali para sempre.
Lady Lihua observava a cena com ternura e um brilho divertido nos olhos. Jin-Ye, mais contida, passava o dedo delicadamente pela borda de sua xícara, enquanto Lingli acomodava-se ao lado, ajeitando a seda leve do hanfu.
Foi Maomao quem quebrou o silêncio, sua voz carregada de calma, mas também de firmeza:
— Eles vão ficar comigo até Jinshi voltar. — ela disse, alisando distraidamente os cabelos escuros de Yaling, que já cochilava em seu ombro. — Assim não me sinto sozinha… e eles também terão algo de novo para viver dentro do palácio.
Lady Lihua inclinou-se para frente, sorridente.
— O que para nós é apenas rotina, para eles deve parecer um mundo de sonhos.
— Sonhos perigosos, às vezes. — comentou Jin-Ye num tom mais baixo, mas não menos sério.
Maomao a olhou por um instante, compreendendo a nuance escondida nas palavras da amiga. Sorriu de leve, porém, sem deixar o humor escapar:
— É… mas eu vou protegê-los, nem que precise carregar todos no meu colo como faço com essa pequenina. — disse, beijando a testa de Yaling.
Lingli, que até então permanecia em silêncio, deixou escapar uma risadinha.
— Se continuar assim, princesa, vai acabar ficando conhecida como "A mãe da nação."
— E não seria mentira. — completou Lady Lihua com humor, soltando uma risada que deixou suas bochechas coradas.
Maomao arqueou uma sobrancelha, e a veia brincalhona dela aflorou.
— Quem sabe quando Jinshi voltar… Meus pais já tenham providenciado mais irmãos para mim? — disse com ironia, apertando Yaling de leve contra si.
As três mulheres se entreolharam e riram, a ideia soava tão absurda quanto engraçada. Jin-Ye, porém, quase engasgou com o chá, batendo a mão de leve contra os lábios.
— Maomao! — repreendeu em tom fingidamente indignado, mas a ponta das orelhas já estavam vermelhas. — Não se fala assim…!
Lady Lihua não conseguia conter as gargalhadas, inclinando-se para frente como se precisasse se segurar. Lingli abanava as mãos, tentando conter o riso, mas logo desistiu.
Maomao piscou para Jin-Ye, travessa:
— O quê? Não é impossível… vocês sabem como eles são.
Jin-Ye desviou o olhar, tentando manter a compostura, mas o rubor em seu rosto entregava a mente vagando em outros pensamentos.
O salão ecoava agora com risos, o tipo de riso que aliviava o peso das responsabilidades que cada uma carregava. E Yaling, mesmo sonolenta, abriu os olhinhos por um instante e sorriu, como se tivesse entendido que o mundo naquele momento era leve e feliz.
As risadas demoraram a se acalmar, mas Lingli ainda estava com as bochechas coradas de tanto rir. Yaling, no colo de Maomao, dava palminhas sonolentas como se quisesse acompanhar a conversa.
Foi então que Lingli se recostou na almofada, arqueou uma sobrancelha maliciosa e disse:
— Só fico imaginando a cara do Jinshi quando voltar e encontrar o Pavilhão da Lua cheio dessas crianças correndo pra todo lado… — fez uma pausa dramática, estreitando os olhos. — Aposto que vai começar a encomendar alguns bebês reais só pra não ficar atrás.
O silêncio durou apenas um segundo antes de Maomao soltar uma gargalhada alta, que tentou conter cobrindo a boca com as mãos. O riso lhe sacudia os ombros e até fez Yaling resmungar, incomodada por perder o colo estável.
— Lingli! — Maomao arfou, ainda rindo. — Não fale um absurdo desses…
— Absurdo? — Lingli retrucou, fingindo inocência. — Eu só disse a verdade. Você sabe como ele é competitivo.
Lady Lihua arregalou os olhos, mas começou a rir também, tapando a boca com o leque. Jin-Ye, envergonhada, desviou o olhar, mas não conseguiu esconder o pequeno sorriso que lhe escapou.
Maomao abanava a mão no ar, ainda rindo.
— Vocês não prestam… Se Jinshi ouvir uma coisa dessas, vai achar que foi ideia minha!
— E não seria? — provocou Lingli, inclinando-se para frente com o olhar malicioso.
Maomao corou até as orelhas, mas continuava rindo, sem conseguir manter a pose séria
Lingli, satisfeita por ter arrancado aquela gargalhada genuína de Maomao, balançava o leque diante do rosto como se tivesse acabado de lançar a maior verdade do século.
— Veja só, Maomao… — disse, dramática. — Quando o meu irmão retornar e encontrar este pavilhão cheio de crianças correndo, com certeza irá encomendar alguns herdeiros. Imagino até a fila de parteiras e amas-de-leite entrando e saindo dos portões!
Maomao se inclinou para frente, segurando a barriga de tanto rir. Seu rosto já estava corado de tanto esforço para conter as gargalhadas, mas não conseguia.
Lady Lihua, que assistia à cena com seu habitual sorriso sereno, decidiu intervir.
— Ora, não é uma má ideia, Lingli. — falou com doçura venenosa. — Eu, por exemplo, adoraria ver pequenos Jinshi correndo por aí com o mesmo brilho nos olhos. Quem sabe um com o temperamento… digamos, peculiar da Maomao? — sua voz se arrastou no final, carregada de malícia.
— Ah, céus! — Lingli suspirou teatralmente. — A corte não estaria preparada para crianças que misturem aquele rosto divino com a língua afiada dela. Seriam perigosíssimos!
Maomao arregalou os olhos, tentando protestar, mas foi nesse momento que Jin-Ye, até então calado e distraído com as crianças de fato brincando no pavilhão, resolveu entrar na onda:
— Não sei não. Acho que seria ótimo para equilibrar as coisas. — disse com um meio sorriso. — Imaginem: um bebê com os cabelos violetas de Jinshi e o olhar perscrutador da Maomao. Já nasceriam capazes de desmontar segredos de Estado antes mesmo de aprenderem a falar.
— Ou talvez aprenderiam a falar cedo demais. — retrucou Lihua, segurando o riso. — E usariam as primeiras palavras para apontar erros de protocolo e falhas no palácio.
As três mulheres riram juntas, enquanto Maomao escondia o rosto atrás das mangas, mais vermelha do que nunca.
— Vocês são impossíveis… — murmurou, abafando outro riso. — Se ele ouvisse metade disso, ia se trancar no gabinete só para evitar encontros "acidentais".
Lingli ergueu uma sobrancelha, divertida:
— Ah, minha querida, se ele ouvir… vai é se animar com a ideia.
O pavilhão inteiro estourou em risos de novo, deixando Maomao ainda mais sem graça — mas no fundo, sem conseguir evitar a sensação calorosa que crescia no peito.
[. . .]
O jardim estava iluminado pelo sol suave da tarde, as flores recém-cuidadas balançavam na brisa — e a tranquilidade não durou nem cinco minutos.
Zhìyuǎn corria em círculos, inventando regras próprias para um “jogo de guerra” que só ele parecia entender. Fen Fang, a pequena guerreira em potencial, já estava irritada com a intromissão do príncipe Liang. O menino, com seu jeito orgulhoso, não cedia um passo.
— Eu sou o comandante! — Liang bateu no peito, com o ar sério e autoritário — Eu mando em todos vocês aqui.
— Você não manda em mim! — Fen Fang rebateu, erguendo o queixo. — Esse é o meu jardim, então eu decido as regras!
— Não, é o jardim do palácio! — Liang estreitou os olhos, provocando. — E eu sou príncipe. Logo, é meu!
Zhìyuǎn, do lado, vibrava como se assistisse a uma luta de gladiadores.
— Isso, irmã, não deixa barato! — incentivava, batendo palmas. — Acaba com ele, Fen Fang! Mostra quem manda!
E então, sem mais delongas, Fen Fang lançou-se sobre Liang com um grito de guerra. Os dois rolaram pelo chão de terra batida, braços e pernas se debatendo, cabelos desgrenhados, e em poucos segundos já estavam com as mãos no pescoço um do outro.
— Eu vou acabar com você! — Fen Fang berrava, tentando imobilizar o príncipe.
— Hahaha! Nunca vai conseguir! — Liang ria, mesmo sendo prensado no chão, e se esforçava para virar a posição.
Gaoshun, que os observava de perto, entrou em pânico.
— Aaaah, não, não, não! — correu até eles, tentando separá-los. — Jovem senhor! Senhora Fen Fang! Por favor, parem com isso! — sua voz saiu mais alta do que gostaria, mas os dois pequenos ignoraram solenemente seus apelos.
O barulho foi tanto que do Pavilhão de Cristal as portas se abriram num estrondo, Maomao apareceu primeiro, com Yaling no colo, seguida de Jin-Ye, Lady Lihua e Lingli.
Yaling, que ainda não entendia bem a gravidade da situação, vibrou como a torcida mais entusiasmada:
— Isso, irmã! Acaba com ele! Acaba com a raça dele!
Lady Lihua arregalou os olhos e encarou a menina como se tivesse acabado de ouvir a coisa mais absurda do século.
— O quê…?
Enquanto isso, Maomao tentava conter o riso, balançando Yaling no colo para disfarçar.
— Hm… eu diria que isso… — ela pigarreou, quase rindo de novo — …é claramente culpa do Lahan.
— Só pode ser! — Lingli completou, rindo às gargalhadas, batendo o leque contra a perna.
"Claro que as travessuras seriam ensinadas por Lahan, é difícil imaginar Maomao incentivando os irmãos a fazer isso, visto a sua forma de portar-se nos lugares e a sutileza em seus gestos.", Jin-Ye pensou coçando a nuca, sem saber se corria para ajudar Gaoshun ou se aproveitava a cena digna de comédia.
Gaoshun, por sua vez, suava frio tentando arrancar os dois pequenos um do pescoço do outro, enquanto eles rolavam pelo chão como dois filhotes brigando por território.
Apesar da força e da postura impecável de Gaoshun experiente, parecia completamente perdido diante da selvageria infantil. Fen Fang tinha o olhar faiscando de fúria, agarrada ao colarinho de Liang, enquanto ele, mesmo sufocado, ria com a cara toda vermelha.
— Eu… vou… ganhar! — Liang arfava entre risadas, sem dar sinal algum de querer se render.
— Nunca! — Fen Fang rosnavou, apertando ainda mais.
Zhìyuǎn, sentado ao lado, batia palmas como quem assistia a uma peça de teatro.
— Mais forte, irmã! Ele tá ficando roxo, isso é bom sinal!
— Roxo não é bom sinal! — Gaoshun quase gritou, finalmente conseguindo enfiar o braço entre os dois para separá-los. O suor escorria pela testa dele, e as veias no pescoço saltavam de esforço. — Por todos os céus, vocês não cansam?!
Lady Lihua, prestes a desmaiar de tanto horror, abanava-se freneticamente.
— Essas pestes em forma de criança… vão me matar de susto ainda. — a concubina disse pousando a mão sobre a barriga respirando profundamente voltando a manter calma.
Lingli, debruçada sobre o braço da cadeira, gargalhava sem o menor pudor.
— Ah, mas que espetáculo! Eu daria qualquer coisa para Zuigetsu estar aqui presenciando isso! Ele perderia a compostura em um segundo.
Maomao arqueou a sobrancelha, ainda segurando Yaling no colo. A pequena puxava a manga do vestido dela, implorando para descer e se juntar à confusão.
— Hoje não, pequena fera. — Maomao murmurou, com aquela calma cínica que só ela tinha. — Já temos caos suficiente para uma tarde.
— Mas eu quero! — Yaling inflou as bochechas, debatendo-se. — Eles tão se divertindo sem mim!
Maomao suspirou, fingindo pesar:
— Diversão? Chama isso de diversão? Eu chamaria de tentativa de assassinato em miniatura.
Finalmente, Gaoshun conseguiu erguer os dois briguentos do chão, um em cada braço, como se fossem sacos de arroz. Fen Fang ainda esperneava e Liang tentava mordê-la no ar.
— Eu desisto. — o guarda murmurou, com voz grave, resignado. — Precisamos que o Príncipe da Lua de volta… urgentemente.
— Ora, ora. — Maomao estreitou os olhos, um sorriso travesso surgindo nos lábios. — Quer dizer que o grande Gaoshun não consegue lidar sozinho com três crianças?
Ele lançou a ela um olhar fulminante, mas a princesa apenas deu de ombros, como quem dizia “não é problema meu”.
Enquanto a algazarra continuava, Lady Lihua, desesperada, virou-se para as damas de companhia.
— Preparem o banho de flores calmantes! Agora! Se não, esses pequenos bárbaros vão destruir todo o salão antes do pôr do sol!
E Yaling, rindo com a inocência cruel de criança, gritou ainda mais alto:
— Isso! Mais briga! Mais briga!
[. . .]
Gaoshun saiu do salão com passos pesados, os ombros arqueados como se carregasse o peso de uma derrota vergonhosa. Sob cada braço, ele segurava uma criança contorcendo-se, — Fen Fang de um lado, Liang do outro — como se fossem dois pequenos criminosos pegos em flagrante. O semblante sério do guarda contrastava com o ridículo da situação; era a imagem viva de um guerreiro veterano forçado a lidar com batalhas que não treinara para enfrentar.
Enquanto caminhava, não conseguiu evitar que memórias antigas viessem à tona. Recordou-se de quando seus próprios filhos — Maamei, Baryou e Basen — eram pequenos. Eles brincavam, sim, mas havia ordem, respeito e até certa disciplina nas travessuras. Já aqueles três pequenos diante dele, a aliança entre o sangue imperial e sangue da família Kan, pareciam conjurar o caos sempre que se encontravam. Era como se o destino tivesse decidido misturar pólvora com fogo.
Atrás dele, Zhìyuǎn vinha saltitando de satisfação, os punhos erguidos como se fosse o orgulhoso treinador que havia acabado de guiar sua equipe à vitória. O sorriso travesso estampado em seu rosto só reforçava a sensação de que, para ele, a briga não passara de um espetáculo divertido.
À direita, Lady Lihua se abanava com tanta pressa e força que parecia prestes a levantar voo, cada movimento do leque denunciando sua indignação e exasperação diante da confusão. Ao mesmo tempo, Lingli caminhava ao lado, quase dobrada de tanto rir. Para ela, toda a cena tinha sido uma comédia digna do melhor teatro, e a gargalhada cristalina que soltava ecoava pelo corredor como um sino alegre, em contraste direto com o ar sisudo de Gaoshun.
Maomao, porém com todo o falatório das crianças, parecia indiferente à gritaria e aos olhares reprovadores.
— Vamos, vamos, hora do banho calmante. — disse ela em tom preguiçoso, mas firme, passando Yaling para o colo de Lady Lishu.
Lady Lishu, sempre gentil, fez um sorriso sereno, mas havia uma sombra de preocupação em seus olhos.
— Eles estão com energia demais hoje… temo que nem flores calmantes sejam suficientes.
Chue, que já estava de mangas arregaçadas, deu uma risadinha curta.
— Ah, se for preciso, a gente joga baldes inteiros de infusão por cima deles.
A princesa Jin-Ye, que viera junto quase arrastada, parecia a mais exausta de todos. O rosto delicado estava coberto por finas gotas de suor, e as muitas camadas de tecido do hanfu só pioravam seu desconforto. Ainda assim, ela respirou fundo e disse em voz baixa:
— Se Maomao precisar de ajuda… eu… eu farei o possível.
— Claro que vai ajudar. — Maomao respondeu sem rodeios, empurrando um balde de madeira na direção dela. — Ninguém escapa do caos quando os pequenos estão envolvidos.
No pátio reservado aos banhos, o vapor já subia das bacias fumegantes. Pétalas de lótus e crisântemos boiavam sobre a água quente, exalando um aroma adocicado. O ambiente estava pronto para a calmaria. Mas era óbvio que calmaria não fazia parte do vocabulário das crianças.
Assim que Fen Fang avistou a tina, cruzou os braços, cerrando os dentes:
— Não vou entrar aí! Isso é coisa de bebê!
— Ah, claro… — Zhìyuǎn zombou, já puxando o cinto para largar o robe. — Então deixa que eu entro primeiro, vou ocupar todo o espaço e você vai ficar de fora.
— Nem pense! — Fen Fang avançou como um raio, empurrando o irmão com tanta força que os dois quase caíram juntos dentro da água.
A onda de água voou tão alto que molhou Lady Lishu da cabeça aos pés. Ela piscou, molhada como um pardal em dia de chuva, mas manteve o sorriso sereno.
— Está tudo bem… está tudo bem… — murmurou, como se convencesse a si mesma.
Chue, por outro lado, gargalhou.
— Bem que eu disse, devíamos ter trazido baldes extras!
Yaling, empoleirada no colo de Maomao, batia palminhas animada.
— Minha vez! Minha vez! — e antes que alguém conseguisse impedir, se jogou na tina com a coragem de um guerreiro indo para a batalha.
— Yaling! — Jin-Ye tentou segurar, mas sua manga larga prendeu na borda da tina. O tecido pesado escorregou, puxando-a para frente. Em questão de segundos, a princesa se desequilibrou e caiu de joelhos na água rasa, respingando para todos os lados.
O silêncio durou dois segundos. Depois, todos explodiram em gargalhadas — menos Jin-Ye, que estava vermelha como uma romã madura.
— Eu… eu estou bem… — ela sussurrou, tentando ajeitar as camadas de roupa encharcadas que colavam ao corpo.
Maomao, imperturbável, estendeu a mão e puxou a princesa de volta para cima, avaliando a cena como quem observa uma experiência dar errado no laboratório.
— Hm. Resultado esperado. — ela comentou seca. — Três crianças agitadas, duas damas de companhia cansadas, e agora uma princesa ensopada.
Fen Fang, enfiada até o queixo na água, riu em triunfo.
— Melhor banho de todos!
Zhìyuǎn cutucou a irmã com o pé, provocando mais ondas.
— Isso porque você ainda não viu o que vou fazer agora.
E o caos recomeçou, com gritos, risadas e pétalas voando pelo ar como confete de guerra.
Quando finalmente as ondas de risadas, respingos e protestos se acalmaram, o aroma das flores começou a fazer efeito. O vapor doce e pesado pairava no ar, envolvendo os pequenos como um cobertor invisível. Fen Fang bocejou em meio a um resmungo, Zhìyuǎn esfregava os olhos disfarçadamente, e até Yaling, que ainda agitava as mãozinhas na água, começou a pestanejar.
— Pronto. — Maomao declarou, erguendo-se e batendo as mãos como se tivesse terminado um trabalho árduo — Hora de embrulhar esses monstrinhos.
Lady Lishu, mesmo molhada, estendeu toalhas grossas e perfumadas, ajudando a erguer Yaling da tina, a menina se debateu de leve, tentando escapar.
— Não quero sair! Quero nadar mais!
— Nadou o suficiente. — Maomao respondeu, enrolando-a como um rolinho de arroz e depositando-a no colo de Chue, que ria com a cena. — Mais cinco minutos e você ia virar peixe.
Fen Fang saiu bufando, os cabelos colados no rosto. Assim que Lady Lishu a envolveu na toalha, a menina começou a reclamar:
— Ele me chutou debaixo d’água! Eu senti, eu sei!
— Não chutei nada! — Zhìyuǎn retrucou, já sendo arrastado por Maomao para fora da tina. — Foi a corrente da água!
— Corrente, é? — Fen Fang tentou se soltar da toalha, mas Lishu a segurou firme, rindo baixinho. — Então vou te dar um chute de verdade depois!
— Tenta! — Zhìyuǎn mostrou a língua, mas um bocejo traiçoeiro o interrompeu.
Enquanto isso, a princesa Jin-Ye, ainda meio envergonhada pelo banho forçado, ajudava a segurar as toalhas secas. As mangas ainda pingavam, mas ela mantinha a postura. Com a voz suave, falou:
— Devem descansar… o perfume das flores já está acalmando a mente deles. — sorriu docemente — Pelo menos Liang permaneceu na suíte do Pavilhão de Cristal, se estivesse aqui o caos seria pior.
— Bota caos nisso. — Maomao confirmou rindo.
Chue, com Yaling enrolada no colo, riu.
— "Descansar", a princesa diz… mas, essa daqui ainda tá tentando escapar como um pintinho vivo.
E realmente, Yaling mexia as perninhas, murmurando:
— Mais banho… mais briga…
— Mais nada. — Maomao lhe deu um peteleco suave na testa. — Agora é dormir ou eu mesma coloco você para descansar com ervas soníferas.
Os olhos de Yaling se arregalaram, mas logo piscavam devagar, vencidos pelo cansaço.
Pouco a pouco, os três foram se aninhando nas toalhas, as bochechas coradas, os cabelos ainda úmidos e rebeldes. Fen Fang resmungava em meio ao sono, Zhìyuǎn insistia que não estava com sono "Eu só estou descansando os olhos", e Yaling chupava o dedo, já quase entregue ao torpor.
Gaoshun apareceu de volta, seco e com a armadura em ordem, e parou diante do grupo. Seus olhos percorreram o cenário: damas exaustas, princesa com as roupas pesadas ainda úmidas, e as três crianças finalmente contidas. Ele soltou um longo suspiro de alívio.
— Por todos os céus… nunca mais vou reclamar dos príncipes adultos.
— E pensar que tudo isso foi só um banho. — Maomao comentou com ironia, observando os três encolhidos em toalhas, resmungando como filhotes mal-humorados.
— Um banho de guerra. — Chue corrigiu, rindo.
Lady Lishu suspirou, ajeitando Fen Fang no colo como se fosse um tesouro.
— Mas veja só… estão lindos quando dormem.
Maomao ergueu as sobrancelhas, olhando para os três amontoados.
— Lindos, talvez. Inofensivos, nunca.
E assim, o pátio se encheu de silêncio, quebrado apenas pelo som ritmado da respiração infantil — um breve momento de paz, antes que a próxima tempestade de energia surgisse.
[. . .]
As rodas das carroças rangiam contra a estrada, o som misturando-se ao trote ritmado dos cavalos. Dentro da carruagem principal, o balanço suave dava à conversa um ar íntimo, embora carregado de provocações.
Jinshi, recostado no assento com a elegância de sempre, mexia distraidamente em uma fita de seda, os cabelos violetas soltos caindo sobre os ombros, os olhos roxos semicerrados. Jiang, ao lado, mantinha os braços cruzados, a postura ereta, os olhos vermelhos fixos na estrada que se via pela janela lateral.
Entre eles, sentado com energia quase irrequieta, Yao Jun parecia incapaz de ficar quieto. Os cabelos castanhos com reflexos rosados reluziam sob a luz que entrava pela fresta, e os olhos verdes brilhavam com impaciência juvenil.
— Um mês inteiro de viagem… — resmungou Jun, batendo o pé no assoalho da carruagem. — Se fosse parte do exército, poderia estar montado a cavalo, não preso aqui como uma criança.
Jiang arqueou uma sobrancelha, sem mover muito mais que isso.
— O exército não é um passeio a cavalo, garoto. Lá fora, você teria bolhas nas mãos, dor nos músculos e noites sem sono.
— Prefiro isso a ficar entediado. — rebateu Jun de imediato, inclinando-se para frente, cheio de fervor. — Eu quero lutar! Servir ao Império!
Jinshi, que até então parecia distraído, sorriu de canto, um brilho malicioso nos olhos roxos.
— Oh… tão ansioso para provar que já é um homem, não?
Jun corou levemente, mas não recuou.
— Tenho 19 anos! Não sou mais um menino.
— E, no entanto, ainda reclama como um. — Jiang retrucou seco, o que arrancou uma risada baixa de Jinshi.
— Irmão, não seja tão cruel. — disse Jinshi, fingindo seriedade, mas claramente se divertindo. — Lembra-se de como éramos aos dezenove? Eu, por exemplo, já era admirado por todas as damas do palácio.
— Admirado? — Jiang bufou, virando-se para ele com um olhar afiado. — Mais parecia uma coruja exótica numa gaiola dourada.
— Tsc… inveja não lhe cai bem. — provocou Jinshi, ajeitando os fios violetas com graça exagerada.
Jun não conteve uma gargalhada, olhando de um para o outro como quem assiste a uma disputa entre gladiadores.
— Vocês dois são exatamente iguais e, ainda assim, brigam como se fossem opostos.
— Iguais? — Jiang e Jinshi disseram ao mesmo tempo, mas em tons completamente diferentes: um, indignado; o outro, divertido.
Jun sorriu mais largo.
— Talvez eu devesse me espelhar em vocês dois, se conseguir metade da habilidade militar de Jiang e metade da lábia de Jinshi, o exército vai me aceitar de olhos fechados.
Jinshi inclinou-se para frente, estreitando os olhos roxos com interesse.
— Lábia, hmm? Então você admite que o charme também é uma arma.
— Uma arma inútil no campo de batalha — Jiang cortou, seco.
— Não subestime o poder das palavras, irmão. — Jinshi retrucou, pousando a mão sobre o ombro de Yao Jun em gesto teatral. — Com elas, você conquista aliados, sem precisar erguer a espada.
Jun arregalou os olhos, absorvendo cada palavra. Jiang apenas suspirou fundo, desviando o olhar para fora da janela, como se a paisagem árida fosse menos cansativa que o irmão falastrão.
— Se esse garoto aprender contigo, Jinshi, vai acabar morto antes de chegar a vinte anos.
— Ou talvez se torne um herói lembrado por gerações — rebateu Jinshi, sorrindo com confiança perigosa.
Jun, entre eles, mal conseguia disfarçar a empolgação. O coração batia acelerado: estava exatamente onde queria estar, mesmo que fosse alvo das provocações dos gêmeos.
O balanço da carruagem fazia o silêncio se arrastar, até que Yao Jun resolveu falar:
— Sabe, eu ainda não me acostumei com a ideia de ver Jinshi casado. — ele olhou para o mais velho com um sorriso divertido. — Sempre achei que ninguém conseguiria acompanhá-lo.
Jinshi ergueu uma sobrancelha, os olhos roxos semicerrados em curiosidade.
— E o que quer dizer com isso?
— Que você é exigente demais. — Yao Jun riu, apoiando os braços atrás da cabeça. — E ainda assim parece… satisfeito.
Jiang bufou, cruzando os braços.
— Falar em casamento já me dá dor de cabeça. Só de imaginar, parece um pesadelo.
O mais novo arregalou os olhos, rindo.
— Então realmente é como dizem: entre vocês dois, só Jinshi parece feliz com a ideia de dividir a vida com alguém.
Jinshi não se ofendeu. Pelo contrário, a boca se curvou num sorriso leve.
— Talvez seja porque encontrei alguém que eu possa desafiar e que me desafio de volta, não tenho culpa se casei com meu primeiro amor. — Jinshi zombou recebendo um tapa de Jiang.
Jiang rolou os olhos, entediado.
— Patético.
— Realista. — Jinshi manteve o tom calmo, quase provocador. — Ambições, títulos, tudo isso é instável. Ter alguém que me enfrente todos os dias é o que me mantém firme.
O silêncio pairou por um instante, até Yao Jun soltar uma risada curta.
— Eu juro que nunca pensei ouvir isso de Jinshi.
Jiang virou o rosto para a janela da carruagem, os olhos vermelhos fixos no horizonte.
— Não vejo graça em correntes, por mais douradas que pareçam.
— Não são correntes. — Jinshi respondeu sem pressa, acomodando-se melhor no assento. — Mas você não entenderia, Jiang.
Yao Jun acompanhava a troca com olhos arregalados, tentando não se meter, mas acabando por rir outra vez.
— No fundo, acho que só o Jinshi teria coragem de falar desse jeito. Se fosse comigo, eu estaria comemorando.
— Ainda é jovem. — Jiang cortou, seco. — Vai descobrir sozinho se casamento é motivo de celebração ou de lamento.
— Para mim, tem sido celebração todas as noites. — Jinshi rebateu, simples, sem se abalar.
Yao Jun abriu um sorriso maior, balançando a cabeça em incredulidade.
— Inacreditável… Jinshi, o mais impecável dos dois, é justamente quem fala de casamento com orgulho e com uma malícia extravagante.
Jiang não respondeu. Apenas manteve o olhar fixo lá fora, mas a rigidez em seus ombros denunciava que o assunto havia incomodado. Jinshi percebeu, mas não disse nada — apenas deixou escapar um pequeno sorriso antes de fechar os olhos por um instante, como se saboreasse a tranquilidade rara daquele momento.
O balanço da carruagem continuava ritmado, mas Jiang mantinha os braços cruzados e o maxilar rígido. As palavras de Jinshi ainda ecoavam em sua mente — celebração, firmeza, companhia. Para ele, tudo aquilo parecia teatro.
— Você realmente acredita nisso? — Jiang quebrou o silêncio, a voz baixa, quase um rosnado. — Que casamento pode ser algo mais do que um acordo conveniente?
Jinshi abriu os olhos devagar, fitando o irmão com calma.
— Eu não acredito. Eu sei, porque justamente Maomao e eu passamos de um acordo para um casamento construído com amor, lágrimas e suor.
A resposta curta o irritou ainda mais. Jiang desviou o olhar, fixando-se no cenário pela janela, as colinas passando sob a luz do sol. Tudo nele gritava resistência. Ele lembrava bem da forma como era constantemente cobrado, moldado desde pequeno para corresponder a expectativas que não havia escolhido. Agora, ainda por cima, falavam de casamento como se fosse uma benção, quando para ele não passava de mais um grilhão.
Celebrar correntes… só o Jinshi mesmo.
Yao Jun, percebendo o peso no ar, pigarreou nervoso.
— Bem… cada um enxerga o casamento de um jeito, não é?
— Não. — Jiang cortou de imediato. — Casamento é uma imposição. É amarrar-se a alguém porque convém, não porque se deseja.
Jinshi inclinou a cabeça, observando-o com um leve sorriso.
— E mesmo assim, algum dia, você será obrigado a se casar.
— E esse será o meu inferno particular. — Jiang retrucou, seco, mas a voz traiu uma ponta de frustração.
Yao Jun ficou sem jeito, passando a mão pelo cabelo rosado, mas não conteve o comentário:
— Eu já disse… parece mesmo que só o senhor Jinshi gosta dessa história de matrimônio.
Jiang reprimiu um suspiro, como se quisesse encerrar o assunto, ainda assim, dentro dele, a irritação se misturava a uma sensação incômoda de inadequação. Não era apenas o casamento. Era a ideia de abrir espaço para alguém, de ceder controle. A imagem de si mesmo preso em juras e responsabilidades lhe causava repulsa.
Jinshi, por outro lado, parecia confortável, até satisfeito, em falar sobre Maomao — e isso o incomodava mais do que queria admitir. Ver o irmão aceitar tão bem aquilo que ele rejeitava com tanto fervor o fazia sentir-se estranho, deslocado.
Ele fechou os punhos sobre os joelhos, mantendo o olhar fixo na paisagem, sem mais acrescentar. Era melhor silenciar do que permitir que Jinshi lesse mais do que devia em suas expressões.
O silêncio voltou a se instalar, mas dentro de Jiang havia um turbilhão. Ele mantinha a postura rígida, os braços cruzados, tentando parecer indiferente. No entanto, cada palavra de Jinshi pesava como ferro em brasa.
"Celebrar um casamento… rir ao lado da mulher… dividir a cama, a rotina, os dias…"
Era como se Jinshi descrevesse um paraíso ao qual Jiang não queria — ou não conseguia — ter acesso.
Ele não conseguia imaginar-se naquela posição. O simples pensamento de acordar e ter alguém ao lado todos os dias o sufocava. Uma presença constante, olhos sempre atentos, expectativa de carinho, de conversas, de entrega. Para ele, tudo aquilo soava como uma armadilha.
"Eu não quero depender de ninguém. Não quero alguém dependendo de mim. O peso seria insuportável."
Desde criança, vivera sob regras que não escolhera, carregando títulos, responsabilidades, olhares julgadores. A ideia de ainda ter de carregar uma esposa, talvez filhos, lhe causava uma náusea discreta.
"Jinshi se contenta com isso. Ou talvez ele seja diferente de mim… mais moldável, mais disposto a acreditar em ilusões."
Ele cerrou os punhos sobre os joelhos. Uma fagulha de inveja amarga lhe atravessou o peito — não pelo amor em si, mas pela liberdade com que Jinshi falava dele. Liberdade de acreditar.
Jiang sabia que, quando chegasse sua vez, não teria escolha. Seria casado por conveniência, provavelmente por alianças políticas. Teria de olhar para alguém e chamá-la de esposa, quando no fundo mal conseguiria suportar a presença.
"Um pesadelo de olhos abertos. É isso que será."
Ele respirou fundo, forçando a expressão impassível. O coração, no entanto, permanecia pesado, batendo com força contida.
Do outro lado, Jinshi parecia relaxado, como se nada fosse capaz de atingi-lo. Aquilo apenas reforçava o contraste entre eles — gêmeos iguais por fora, mas distantes como dois estranhos por dentro.
Jiang desviou o olhar da janela e fechou os olhos, decidido a se calar pelo resto da viagem. Se deixasse escapar mais alguma palavra, talvez revelasse demais.
O peso no ar era quase palpável. Jiang mantinha-se imóvel, olhos fechados, como se quisesse desligar-se de tudo ao redor. Jinshi, por sua vez, apenas o observou de soslaio, sem forçar novas provocações. Conhecia bem aquele silêncio — era a forma do irmão erguer muralhas ao redor de si. Forçar a entrada só resultaria em conflito.
Por alguns minutos, apenas o som das rodas da caravana contra a estrada preenchia o ambiente. Yao Jun, sentado à frente deles, mordia o lábio, inquieto. O jovem não suportava aquele peso.
— É… — pigarreou, tentando parecer casual. — A estrada até as caravanas é longa, não é? Ouvi dizer que as planícies nessa época do ano ficam cobertas de flores silvestres.
Ninguém respondeu de imediato, Jinshi fechou os olhos, como se deixasse o silêncio seguir, mas Jiang continuava inerte, cada músculo rígido.
— Quem sabe até ver o pôr do sol juntos. — Yao Jun insistiu, olhando de um para o outro.
Dessa vez, Jinshi apenas inclinou levemente a cabeça, num gesto que não era nem concordância nem recusa. Jiang não se moveu.
Sentindo-se sozinho, Yao Jun soltou um suspiro e tentou puxar outro assunto.
— Ah, e… quando voltarmos, eu gostaria de conversar com o general sobre o meu ingresso oficial no exército. Tenho treinado bastante, e… bem, espero que o desempenho não decepcione.
Isso, pelo menos, arrancou de Jinshi um leve aceno de aprovação, Jiang permaneceu imóvel, mas a tensão em sua expressão parecia menos intensa.
O jovem sorriu sem graça, aliviado por ter quebrado ao menos uma parte do peso que pairava no ar. Talvez não conseguisse aproximar os gêmeos, mas podia ao menos impedir que o silêncio os esmagasse.
[. . .]
Palácio Imperial — País de Li
A princesa Jin-Ye caminhava devagar pelo corredor iluminado por lanternas de papel, o tecido pesado do hanfu colando-se à pele. Cada passo fazia um som úmido, lembrando-lhe da queda desastrosa dentro da tina. Seus cabelos violáceos ainda gotejavam discretamente, apesar dos esforços das damas de companhia em secá-los às pressas.
Quando dobrou a esquina em direção ao Pavilhão de Cristal, deu de cara com Lahan. Ele vinha apressado, carregando alguns rolos de pergaminho sob o braço, mas parou no mesmo instante. Os olhos dele se arregalaram ao vê-la naquela condição.
— Jin-Ye! — largou os pergaminhos sem hesitar, aproximando-se. — O que aconteceu? Está ferida?
Jin-Ye piscou, surpresa pelo tom alarmado, e depois riu suavemente, cobrindo a boca com a manga ensopada.
— Não, nada disso… — respondeu com a voz baixa, quase tímida. — Foi apenas… uma consequência da energia incansável dos seus irmãos. Fui arrastada sem querer para dentro da água.
Lahan franziu o cenho, os olhos deslizando instintivamente para a curva discreta da barriga, já escondida sob camadas de tecido.
— E o bebê? — a voz dele saiu grave, carregada de ansiedade. — Diga-me que estão bem…
Jin-Ye colocou a mão no ventre, sorrindo.
— Estamos, foi só um susto.
Mas o alívio dele não foi imediato, Lahan segurou-lhe o punho molhado, e, sem mais perguntas, a guiou com firmeza.
— Venha. Não pode ficar assim, resfriada e molhada, não agora.
Ela deixou-se conduzir, o destino, no entanto, não foi o Pavilhão de Cristal, mas sim o Refúgio dos Corvos — um espaço mais reservado, longe dos olhares curiosos. Lá, Lahan rapidamente retirou uma manta grossa de lã de dentro de um baú e a colocou sobre os ombros da princesa, envolvendo-a como se fosse algo frágil demais para o mundo.
— Obrigada. — Jin-Ye murmurou, a voz aquecida pelo gesto.
Eles se sentaram próximos, em bancos baixos de madeira. O silêncio inicial foi quebrado pelo leve suspiro da princesa.
— Está ficando… cada vez mais difícil esconder. — ela passou as mãos sobre a própria barriga, onde o tecido colado revelava um relevo suave. — Preciso falar com meus pais em breve. Já não poderei adiar muito mais…
Lahan ajoelhou-se diante dela, a expressão séria, os cabelos escuros caindo sobre os ombros. Ele segurou as mãos delicadas da princesa e, com devoção, beijou-as uma a uma. Depois, aproximou o rosto do ventre, que ainda trazia a umidade do banho forçado.
Por baixo das camadas de pano, havia vida, o leve movimento que se fez sentir sob sua testa o fez prender a respiração. Um brilho surgiu em seus olhos, ao mesmo tempo de espanto e ternura.
— Ele se mexeu… — Lahan sussurrou, quase como um segredo para si mesmo.
Jin-Ye sorriu, um rubor leve tingindo suas faces.
— Ele parece gostar de atenção…
Lahan fechou os olhos por um instante, absorvendo aquele momento. Em seguida, ergueu o olhar para ela, decidido.
— Assim que me organizar, falarei diretamente com o Imperador. — sua voz era firme, quase como uma promessa solene. — Essa responsabilidade é minha, não sua. Não carregue esse peso sozinha.
A princesa hesitou, apertando de leve as mãos dele.
— Mas… e se…
— Não. — ele a interrompeu com doçura, mas convicção. — Confie em mim. Você e o bebê não têm de se preocupar com nada além de descansar. O resto… é comigo.
O coração de Jin-Ye se apertou, dividido entre o medo e a estranha segurança que as palavras dele traziam. Por um momento, ela se permitiu apenas olhar para o homem ajoelhado diante dela, tão próximo, tão determinado a protegê-la, e sentiu que talvez… não estivesse tão sozinha nessa tempestade.
A manta aquecia os ombros de Jin-Ye, mas as mãos dela, ainda úmidas e geladas, tremiam levemente em meio ao tecido pesado.
Lahan notou. Sem pedir permissão, tomou-as entre as suas, envolvendo-as com firmeza. O contraste era imediato — o calor das mãos dele irradiava contra a pele fria dela. Ele esfregou-as devagar, como se tivesse todo o tempo do mundo, como se aquele gesto fosse mais importante do que qualquer palavra dita até então.
Jin-Ye baixou os olhos, e um sorriso tímido surgiu em seus lábios, quebrando a máscara de princesa que sempre carregava.
— Vai gastar toda a sua energia comigo… — murmurou, envergonhada, tentando puxar as mãos de volta.
— Não. — Lahan respondeu sem hesitar, segurando-as com mais firmeza, quase em súplica. — Não é gasto… é só devolvê-la ao lugar certo.
Ela soltou uma risadinha baixa, delicada, que escapou como um sopro.
— Que tolo…
Ele a observava de perto, o olhar suave, mas intenso, como se quisesse gravar cada traço daquele instante na memória.
— Se for tolice… então deixo que me chame assim quantas vezes quiser. — murmurou, sem soltar as mãos dela.
Jin-Ye sentiu o rosto corar, escondendo-se sob a franja úmida que caía pela testa. O coração batia rápido, não só pelo frio, mas pela proximidade, pelo calor das mãos dele envolvendo as suas, como se nenhum dos dois estivesse disposto a soltá-las.
E pela primeira vez em muito tempo, ali, no silêncio protegido do Refúgio dos Corvos, a princesa sentiu-se menos carregada de obrigações, menos sufocada pelas camadas de tecido e protocolos — e mais… apenas uma mulher, sendo cuidada com ternura.
Lahan não soltou as mãos da princesa, nem por um instante, ficaram assim por alguns instantes, em silêncio, apenas sentindo o calor um do outro. Jin-Ye foi a primeira a desviar o olhar, rindo baixinho para disfarçar o rubor que tingia suas bochechas.
— Sabe… — ela começou, a voz suave — nunca imaginei que os dias seriam tão cheios de pequenos segredos. Um banho desastroso com crianças, quedas que viram histórias cômicas, e agora… você, aqui, tentando aquecer minhas mãos como se fosse minha única tarefa importante no mundo.
Lahan arqueou um sorriso discreto, ainda concentrado em esfregar os dedos frios dela entre os seus.
— E não é? — replicou com simplicidade. — No meio de todas as responsabilidades, protocolos e intrigas do palácio… cuidar de você é a única coisa que me parece clara.
As palavras o surpreenderam tanto quanto a ela, mas Jin-Ye não retrucou. Apenas respirou fundo, como quem absorve um alívio escondido.
— Quando ele nascer… — ela falou quase num sussurro, pousando a outra mão sobre o ventre. — Tenho medo de como o mundo o receberá.
Lahan ergueu o rosto, os olhos firmes nos dela.
— Eu estarei lá. — disse com convicção, como uma promessa gravada em pedra. — Nem você, nem ele estarão sozinhos.
Por um instante, os dois se perderam no olhar um do outro. Havia tanto que não podia ser dito em voz alta, mas que se espalhava em cada gesto pequeno, em cada pausa. Jin-Ye, constrangida, riu outra vez — um riso baixinho, abafado contra as mangas ainda úmidas.
— Você fala como se pudesse carregar todo o peso por mim.
Ele inclinou a cabeça, os dedos ainda entrelaçados aos dela.
— Não precisa carregar sozinha… é tudo o que quero dizer.
A princesa desviou os olhos, o coração acelerado, e deixou escapar um sorriso tímido. O ambiente estava aquecido pela manta, pelo vapor ainda presente em suas roupas molhadas e, sobretudo, pela presença dele.
Assim permaneceram, trocando confidências em voz baixa, rindo de lembranças simples — como a careta que Fen Fang fez ao entrar na água, ou a expressão derrotada de Gaoshun ao ficar no fogo cruzado na briga das crianças. Aos poucos, o peso da tensão foi se dissolvendo, deixando apenas a leveza de estarem juntos, sozinhos naquele refúgio.
Quando a noite avançou e os sinos do beiral soaram novamente ao vento, Jin-Ye ajeitou a manta sobre os ombros e suspirou.
— Deveríamos voltar. Se demorarmos muito, começarão a procurar por mim.
Lahan assentiu, mas não largou as mãos dela de imediato. Apertou-as uma última vez, como quem grava a sensação na pele, e então as soltou com relutância.
Eles se ergueram juntos, e antes de atravessarem a porta do Refúgio dos Corvos, Jin-Ye lançou-lhe um olhar breve, carregado de algo que não ousava nomear.
— Obrigada… — disse apenas, baixinho, como se fosse um segredo partilhado só entre os dois.
Lahan observava Jin-Ye com uma mistura de ternura e reverência, reparando em cada detalhe — o brilho suave dos olhos dela, a maneira como a respiração se compunha entre calma e hesitação.
Ele se aproximou devagar, respeitando cada momento, como quem teme quebrar algo precioso demais para ser apressado. Quando finalmente parou diante dela, deixou que os dedos roçassem de leve o contorno das bochechas de Jin-Ye, sentindo o calor suave da pele. O gesto foi terno, quase uma confissão silenciosa.
Jin-Ye, com o coração acelerado, ergueu os olhos vermelhos para ele, permitindo-se um pequeno sorriso que revelava mais do que qualquer palavra. E então, com naturalidade, inclinou-se para frente, depositando um selinho nos lábios de Lahan.
Ao afastar-se, os olhares permaneceram presos um ao outro — o dela carregado de coragem recém-descoberta, o dele transbordando paixão contida. As mãos de Lahan continuaram acariciando as bochechas dela, como se quisesse eternizar aquele instante, gravando-o na memória como o início de algo que não poderia mais ser negado.
Chapter 24: Sombras do Oeste
Notes:
Ao todo, foram 16.221 palavras escritas, superou meu recorde normal.
Esse capítulo ele é um dos meus preferidos por uma riqueza de detalhes, e por contar coisas que antes ficaram soltas e dando mais profundidade, trazendo assuntos inacabados a tona, podendo tanto tranquilizar, quanto traumatizar quem está lendo, depende do ponto de vista né.
Me perdoem se tiver texto ou diálogos duplicados, tenho escrito os capítulos no meu horário de almoço e às passo um texto do notas pro wattpad ou direto pro docs, então pode ficar uma confusão na hora de postagem, mas com mais tempo irei revisar e organizar tudo
A autora não está tão bem da cabeça, mas é o que tem pra hoje, um bjo
Boa leitura e aguardo os comentários de vocês. :)))))
Chapter Text
1° carta
"Maomao, minha luz de jade, já se passou apenas um dia desde que deixei a capital e sinto como se anos me separassem de você. O ar aqui é seco, os costumes, diferentes — mas nada é mais estranho do que dormir sem ouvir sua respiração tranquila por perto. Estou bem, não se preocupe, mas confesso que me sinto incompleto. Espero que esteja se alimentando direito e que não se esqueça de mim, nem por um instante."
7° carta (três dias depois)
"Ainda penso no gosto do chá que você me preparou antes da partida, com especiarias raras, nada se compara. Recebo relatórios militares e civis, mas o que eu mais queria receber era um bilhete seu, mesmo que curto e rabugento. Sei que me chamaria de tolo por escrever tanto — e talvez eu seja — mas é a única forma de enganar esta saudade que não me larga."
12° carta (cinco dias depois)
"Sei que vai rir ao ler isso, mas até a lua desta província me parece pálida, porque não está refletida em seus olhos. É exagero, sim, mas não consigo conter. Quando voltar, não importa se haverá banquetes ou reuniões, irei direto até você, mesmo que precise atravessar o palácio inteiro correndo."
19° carta (no sétimo dia)
"Dizem que cartas excessivas cansam. Que o coração feminino prefere mistério e intervalos. Mas eu não consigo, Maomao. Prefiro correr o risco de ser insuportável a passar um dia sem escrever. Se minhas palavras a incomodarem, guarde-as em uma caixa e jogue fora quando estiver irritada. Mas ainda assim, vou continuar enviando."
Jiang folheava as cartas empilhadas sobre a mesa, os dedos ágeis passando pelos selos quebrados, cada um com o brasão imperial. Seus olhos estreitados carregavam aquele brilho malicioso típico.
— Décima nona carta, Ka Zuigetsu? Por causa está em guerra e está se despedindo da sua amada? — anunciou, erguendo o pergaminho mais recente com um gesto teatral. — Uma só semana e você já parece um adolescente escrevendo versos atrás da cortina de papel de arroz.
Jinshi, sentado à mesa, desviou o olhar com um rubor discreto, mas manteve a compostura.
— Não é exagero. É… necessidade.
— Necessidade? — Jiang gargalhou, inclinando-se sobre o irmão. — Se continuar nesse ritmo, Maomao vai se cansar de tanta melosidade antes mesmo de você voltar. Aposto que ela revira os olhos a cada carta.
Jinshi suspirou, mas não retrucou. Seus dedos tocaram o lacre ainda fresco do próximo pergaminho, já preparado para ser enviado.
— Mesmo que revire… ao menos sei que ela vai lembrar de mim todos os dias.
Jiang bufou, divertindo-se.
— Ah, irmão, você se tornou um poeta desesperado. Quem diria que o calculista e impenetrável “Zuigetsu e as mil máscaras” cairia tão baixo, transformado em um marido ansioso que conta as horas para retornar para casa…
— Melhor ser ansioso do que indiferente. — respondeu Jinshi, firme, embora um sorriso quase imperceptível lhe escapasse.
Jiang riu mais alto, balançando a cabeça.
— Pois continue, então. Escreva a vigésima. Assim, quando voltar, poderá carregar uma pilha inteira de papel meloso para ouvir Maomao dizer: “Haa, que incômodo.”
E Jinshi, sem se importar com as provocações, já molhava o pincel na tinta, como se nada pudesse detê-lo.
Jiang ainda ria, abanando as cartas como se fossem leques improvisados, quando Jinshi ergueu os olhos, desta vez com um brilho sagaz.
— É isso, não é? — disse com uma calma provocativa. — Você zomba de mim porque está com inveja.
O sorriso de Jiang vacilou, mas ele arqueou uma sobrancelha, fingindo indiferença.
— Inveja? — repetiu, sarcástico. — Do quê? De gastar pergaminhos inteiros para ser ignorado por uma mulher rabugenta?
Jinshi inclinou-se na cadeira, cruzando os braços, a voz carregada de um veneno doce.
— Não. Inveja porque eu tenho alguém a quem posso escrever. Alguém que amo, que mesmo resmungando vai ler cada palavra. Enquanto você… — ele deixou a frase suspensa de propósito, como se fosse um golpe lento de lâmina. — …vai acabar casado com Lady Loulan, sem ter escolhido, remoendo-se em silêncio como um prisioneiro que enfeita a própria cela.
Jiang apertou os lábios. O riso sumiu, restando apenas um olhar estreito, quase felino.
— Cuidado, irmão. — Sua voz agora era mais baixa, cortante. — Palavras podem voltar contra quem as pronuncia.
Jinshi se inclinou mais, satisfeito em ver a máscara de escárnio ruir.
— Então admita. Dói, não é? Dói saber que terá uma esposa que não deseja, enquanto eu tenho Maomao… uma mulher que escolhi, que aceitou estar ao meu lado, mesmo com sua personalidade excêntrica com títulos e uma liberdade invejável para uma mulher, principalmente na nobreza.
Jiang desviou o rosto, a mão batendo levemente nas cartas como se quisesse calar o assunto com um gesto.
— Ridículo. Não passa de sorte passageira.
Jinshi sorriu de canto, vitorioso, e voltou a mergulhar o pincel na tinta, sem pressa.
— Sorte ou não, Jiang, é minha realidade. E enquanto você se afoga na sua amargura, eu escrevo mais uma carta. A vigésima.
O silêncio que seguiu não era o habitual cheio de zombarias. Jiang permanecia imóvel, olhando para o vazio, enquanto Jinshi já havia se recolhido, satisfeito após escrever mais uma carta melosa destinada a Maomao. Jiang, porém, permanecia desperto, sentado diante de uma mesa vazia, apenas com uma garrafa de vinho pela metade.
Ele girava a taça lentamente, observando o líquido vermelho refletir a chama da lamparina. O silêncio parecia pesado demais, quebrado apenas pelo estalo do pavio queimando.
— Lady Loulan… — murmurou, como se o nome fosse amargo na boca.
Fechou os olhos por um instante, lembrando-se da última vez que a vira: postura impecável, sorriso treinado, palavras frias como jade polido. Tudo nela era calculado, moldado para agradar à corte. Nada real. Nada que tivesse um pingo da intensidade que ele buscava.
A mão de Jiang fechou-se com força em torno da taça, o cristal rangendo perigosamente.
"Um casamento de fachada… um enfeite para alianças políticas."
Não havia escolha. Não havia espaço para recusar. Ele, o gêmeo que não tinha o mesmo brilho dourado de Jinshi, seria sacrificado na mesa das conveniências, Jiang era apenas o reserva, caso acontecesse algo com seu irmão, ele quem assumiria o trono e viria a tornar Maomao como sua consorte ou concubina. Essa era a lei e isso o assombrava, porque assim como Yao Jun, ele não tinha sonhos ou vontades de permanecer com o título de príncipe, ele só queria a paz e serenidade que a vida poderia lhe proporcionar.
Um riso curto e sem humor escapou de seus lábios.
— Enquanto você escreve cartas de amor, irmão… eu terei de escrever relatórios frios ao lado de uma mulher que não quero.
Levou a taça aos lábios, mas o vinho não suavizou o nó em sua garganta.
Por um momento, permitiu-se encostar a testa na borda da mesa, os cabelos longos deslizando sobre o braço. Não havia criados, nem guardas, ninguém para testemunhar a amargura que lhe corroía o peito.
— Talvez seja inveja, sim — sussurrou para o vazio. — Não por Maomao… mas por ter liberdade de amar.
[. . .]
Uma semana havia se passado desde que as crianças chegaram ao palácio, e o ambiente, outrora rígido e solene, parecia ter mudado de pele. Os corredores, antes preenchidos apenas pelo som contido dos passos dos servos e pelo roçar das sedas, agora ressoavam gargalhadas infantis, gritinhos de disputa e a cadência apressada de pés pequenos. Até os jardins, tão disciplinados em seus canteiros bem cuidados, estavam marcados por pegadas e pela ousadia das brincadeiras que se espalhavam como vento.
Zhìyuǎn, com sua natureza curiosa e um tanto competitiva, era sempre o primeiro a propor algum jogo novo, arrastando Fen Fang e Liang para aventuras improvisadas que terminavam em correria ou em provocações sem fim. Fen Fang, mais teimosa, não recuava diante de nenhum desafio, fosse subir em árvores proibidas ou disputar quem alcançava a beira do lago primeiro. Liang, filho de Lady Lihua, tinha uma energia impaciente e gostava de se colocar como líder, ainda que muitas vezes sua ousadia acabasse causando pequenas confusões. Yaling, a menor, seguia os irmãos com passinhos rápidos, sempre tentando provar que podia acompanhar e quando não conseguia, sua birra se transformava em lágrimas curtas, logo esquecidas ao ser incluída na próxima travessura.
Gaoshun os seguia em silêncio, a passos firmes, com a mesma disciplina de quando acompanhava generais em campo de batalha. No entanto, se antes enfrentava lanças e exércitos, agora lidava com desafios de outra natureza: apartar brigas acaloradas por um brinquedo improvisado, impedir quedas perigosas quando um deles se pendurava em colunas, ou manter os olhos atentos para evitar que desaparecessem em corredores labirínticos. Sua expressão permanecia estoica, mas o peso em seus ombros denunciava que aquela rotina exigia mais de sua paciência do que qualquer campanha militar.
Havia instantes, porém, em que a seriedade do guerreiro se desfazia por um breve segundo, quando Yaling sorria para ele de forma travessa antes de correr novamente, ou quando Zhìyuǎn, ofegante após uma disputa, buscava o olhar dele como se fosse um troféu silencioso. Nessas horas, Gaoshun lembrava-se de seus próprios filhos em tempos distantes, de risadas que ecoavam antes que a vida o levasse aos campos de treinamento. A nostalgia se infiltrava em sua rigidez, ainda que ele logo a camuflasse sob a máscara de severidade.
Lady Lihua, por outro lado, observava à distância, sentada sob a sombra elegante de um caramanchão no jardim interno. Suas mãos repousavam com leveza sobre o colo — onde o volume arredondado de sua gestação, já em torno do sexto ou sétimo mês, se tornava impossível de disfarçar. De tempos em tempos, sentia um leve movimento dentro de si, como se o filho ainda por nascer também acompanhasse a cena do jardim.
Os olhos de Lihua, atentos, seguiam cada gesto de Liang e das outras crianças. Era impossível não sorrir diante da energia dos pequenos, embora dentro de si houvesse também uma inquietação — a eterna pergunta silenciosa de toda mãe: “Estará ele bem? Estará sendo cuidado como eu faria?”
Liang corria de um lado a outro, liderando Zhìyuǎn e Fen Fang em uma disputa imaginária contra guerreiros invisíveis. A cada tanto, Yaling surgia com passos apressados, tentando manter o ritmo, mas logo tropeçava, caía, e voltava a se erguer com a teimosia dos mais novos. Lady Lihua sentia o coração se apertar a cada queda, mas notava também a presença firme de Gaoshun, sempre por perto, como uma sombra protetora que não se impunha com gritos ou ameaças, mas com a autoridade silenciosa de quem sabia exatamente quando intervir.
O contraste lhe parecia evidente. Ela, mãe, vivia o cuidado como instinto e afeto visceral — o desejo de proteger com os braços, de acalmar com o toque, ainda mais agora que carregava outra vida dentro de si. Gaoshun, por sua vez, cuidava com a disciplina de um soldado que conhecia os limites do corpo e da mente, que deixava os pequenos testarem sua coragem até o ponto certo, antes de puxá-los de volta à segurança. Era uma forma de proteção diferente, mas igualmente valiosa.
Nem sempre, porém, era Gaoshun quem assumia esse fardo. Lady Lishu, com sua voz suave e postura serena, muitas vezes atraía Yaling para perto de si, distraindo a menina com histórias inventadas ou cantigas simples. Já Chue, mais prática e direta, não hesitava em dar ordens aos meninos quando a confusão passava do limite, usando de firmeza materna mesmo quando não era sua responsabilidade direta. E o velho homem, com seus olhos endurecidos pela idade, observava em silêncio, mas havia ternura em seus gestos: era ele quem, ao final da tarde, chamava as crianças para junto de si, partilhando frutas secas ou ensinando pequenos ditados que carregavam a sabedoria de anos.
Lady Lihua compreendia que os irmãos de Maomao estavam em boas mãos — e que a ausência da jovem não era descuido, mas necessidade. Enquanto as risadas enchiam o jardim, Maomao dedicava suas horas à clínica, cuidando de enfermos com a mesma precisão que outros cuidavam de espadas, ou então mergulhava em reuniões políticas que exigiam de si uma seriedade adulta, muito além da idade que carregava.
Havia uma estranha harmonia nesse arranjo. Cada adulto, à sua maneira, sustentava a infância das crianças: Gaoshun com sua disciplina vigilante, Lady Lishu com sua doçura, Chue com sua firmeza prática, o sogro com sua presença austera, e Lady Lihua com o olhar constante de mãe — mãe de Liang e, em breve, de outro pequeno que já lhe fazia companhia dentro do ventre.
Lady Lihua suspirou baixinho, vendo Liang agarrar-se à mão de Zhìyuǎn para puxá-lo em uma nova corrida. “São felizes”, pensou, e a verdade dessa constatação trouxe paz ao seu coração, ao mesmo tempo em que a vida que carregava dentro de si parecia responder com um tênue movimento, como se também sorrisse junto com ela.
[. . .]
O final da tarde, o céu tingido em tons alaranjados, Maomao estava no canto mais silencioso do pátio interno, empilhando as cartas enviadas por Jinshi em ordem meticulosa. As fitas dos pergaminhos, de diferentes cores, já formavam quase um pequeno arco-íris ao lado dela.
Os irmãos brincavam mais adiante, mas logo perceberam o brilho do selo imperial nos papéis.
— Ei, irmã! — Zhìyuǎn correu até ela, tentando espiar por cima do ombro. — Aposto que são mais cartas do Imperador-de-faz-de-conta!
— Ele não é Imperador. — corrigiu Maomao, seca, tentando afastá-lo com o cotovelo — Ainda.
— Tanto faz. É bom que ele não esteja no palácio mesmo. — Zhìyuǎn disse, cruzando os braços. — Assim você para de olhar pra porta como um cachorrinho esperando o dono voltar.
Maomao arregalou os olhos, corando levemente, mas não respondeu.
Nesse momento, Yaling chegou correndo, quase tropeçando na barra de seu hanfu.
— Mentira! O Jinshi é bem mais legal que o Lahan! — exclamou, empurrando Zhìyuǎn de lado.
Fen Fang, rindo, balançou a cabeça com entusiasmo.
— Concordo! Ele até sabe carregar a gente no colo sem reclamar.
Zhìyuǎn bufou, indignado.
— Traidores!
Os três começaram a discutir, girando em torno de Maomao como se ela fosse o centro da contenda, mas ela não entrou na briga — apenas se afastou alguns passos, sentando-se sob a sombra de uma árvore, com as cartas no colo.
Ali, distante do barulho dos irmãos, abriu uma das cartas que já conhecia de cor. As linhas exageradas de Jinshi ainda a faziam suspirar e revirar os olhos em igual medida.
Ela passou os dedos devagar sobre a caligrafia.
Por mais que zombasse em pensamento, havia um calor estranho no peito, uma melancolia que não se dissipava.
O vento soprou, fazendo tremer as fitas coloridas.
“Você é um exagerado Zui”, pensou, mordendo os lábios. “Mas… está conseguindo o que queria. Eu penso em você todos os dias.”
Os risos dos irmãos ecoaram pelo pátio, e por um instante Maomao fechou os olhos, segurando a pilha de cartas contra o peito, como se pudesse, de alguma forma, encurtar a distância entre ela e o marido.
Quando abriu os olhos, Fen Fang estava parada diante dela, com as mãozinhas na cintura e um olhar curioso e travesso.
— Aposto que são dele, não são? — perguntou, inclinando a cabeça.
— E se forem? — retrucou Maomao, arqueando uma sobrancelha.
Fen Fang riu baixinho.
— Então ele deve ser muito pegajoso… só alguém assim mandaria tantas. Aposto que até escreve quando espirra.
Maomao conteve o riso, fingindo seriedade.
— Você anda dizendo coisas demais para alguém tão pequena.
A menina ergueu o queixo, ainda provocando:
— Se ele gosta tanto de você, devia estar aqui, não mandando papel todo dia.
As palavras bateram fundo, mas Maomao desviou o olhar, com calma.
— Ele tem deveres, Fen Fang. Deveres que você ainda não consegue entender.
Fen Fang suspirou, mas sorriu com malícia.
— Hm. Eu continuo achando que ele é um bobo, mas… um bobo que só pensa em você.
E saiu correndo, deixando Maomao sozinha com as cartas. Ela suspirou, apoiando a testa nos envelopes. "Um bobo… um bobo que me faz falta."
Mais tarde, já com as crianças adormecidas e o silêncio pairando sobre o pátio, Maomao acendeu a lamparina em seus aposentos. A luz suave tremeluzia sobre a mesa quando ela puxou uma folha em branco. O pincel demorou a se mover, mas então começou a deslizar firme:
"Recebi todas as suas dezenove cartas.
Estou começando a achar que você levou mais pergaminho do que roupas para a Província Ocidental. Antes que diga que é ‘necessidade’, aviso que a tinta gasta com seus exageros poderia abastecer o palácio inteiro por um mês.
Quanto ao seu receio de que eu me irrite com tantas palavras… não se preocupe, já estou irritada. Mas não o suficiente para querer que pare.
Você escreve que até a lua aí parece pálida sem meus olhos. Pois bem: a lua daqui continua a mesma, e mesmo sem você ela insiste em brilhar todas as noites. Ainda assim, admito… não é o mesmo. A ausência pesa, mesmo que eu finja estar ocupada demais para sentir.”
O pincel parou. Maomao fechou os olhos por um instante, pousando a mão sobre o ventre com um gesto instintivo. Ainda era cedo demais para certezas, mas havia ali uma vida que talvez Jinshi já pressentisse — como se seu exagero fosse também intuição.
Retomou a escrita, agora mais suave:
Mande notícias quando puder respirar entre um exagero e outro. E cuide-se, Zui. Você é precioso demais para desperdiçar com tolices.
Ouso dizer que te amo, mas isso seria meloso demais, então por favor volte inteiro por mim e não pelo império.
Princesa da Lua, sua esposa e sua gatinha venenosa.
Ka Maomao."
Ao terminar, Maomao repousou o pincel, olhou para a lamparina que tremeluzia e deixou escapar um sorriso quase imperceptível — um sorriso que era só dele, mesmo à distância. Selou a carta com o cuidado de quem guarda um segredo precioso, e colocou-a entre as demais, sob o travesseiro, como se o tecido pudesse abrigar também a esperança de um retorno em breve.
[. . .]
3 dias depois...
A viagem até a Província Ocidental já pesava em seus ombros, Jinshi, sentado em seus aposentos improvisados, tinha o semblante sério apenas para manter as aparências diante dos subordinados. Assim que ficou sozinho, agarrou a nova carta como quem segura um antídoto raro. Rompeu o lacre com pressa e começou a ler.
A cada linha, sua expressão mudava, primeiro o cenho franzido, depois o queixo erguido como se tentasse manter a compostura, até finalmente cobrir o rosto com a mão, desesperado.
— Dezenove cartas… — repetiu, sentindo o peito arder. — Como ela ousa dizer que trouxe mais pergaminho do que roupas? Eu trouxe roupas suficientes! E… e talvez alguns rolos extras de papel… mas isso não vem ao caso!
Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, a carta tremendo em sua mão.
— Irritada? Ela disse irritada! Irritada, mas não o suficiente para que eu pare… — murmurou, sentindo o coração disparar. — Isso quer dizer que ela… ela…
Cobriu os olhos, afundando na cadeira, e deixou escapar um riso nervoso.
— Ah, Maomao… sua língua é mais afiada do que qualquer espada, mas cada palavra sua é um bálsamo...
Leu novamente o trecho sobre a lua e bateu no peito como se fosse um golpe fatal.
— Comparar a lua comigo… não, não, comigo não… com os olhos dela! — exclamou, teatral. — Ela sabe muito bem que sem ela tudo perde o brilho! Como pode ser tão cruel e tão gentil ao mesmo tempo?
Nesse momento, a porta se abriu sem cerimônia, Jiang e Yao Jun entraram, curiosos com o alvoroço, encontraram Jinshi no meio do quarto, declamando para um pedaço de papel como se fosse uma peça de teatro.
— O que é isso? — Jiang ergueu uma sobrancelha, encostando-se no batente. — Está ensaiando uma tragédia?
— Ou pedindo uma concubina para passar os dias? — Yao Jun completou, já começando a rir. — Nunca vi alguém tão derrotado por tinta e pergaminho.
Jinshi tentou se recompor, mas estava vermelho demais para enganar alguém.
— Isto… isto é um insulto a minha esposa cogitarem me ver pedindo uma concubina. — bradou irritado — Não é da conta de vocês! É um assunto Imperial.
— Imperial? — Jiang arqueou os lábios num sorriso malicioso. — Parece mais conjugal.
Yao Jun estendeu a mão.
— Leia em voz alta, meu irmão. Já que está declamando sozinho, ao menos nos poupe do suspense.
— Não ousariam… — Jinshi começou, mas já lia outra vez, como se não conseguisse resistir. A cada palavra melosa que Maomao disfarçava com veneno, os dois quase choravam de rir.
Quando ele chegou à parte final, Jiang bateu palmas devagar.
— “Sua esposa e sua gatinha venenosa.” — repetiu, zombeteiro. — Gatinha venenosa! Ah, isso vai nos perseguir até o fim da viagem.
— Melhor que isso só se ela tivesse escrito "Para o meu querido, estranho e belíssimo Sapo." — Yao Jun gargalhou, quase caindo na cadeira.
Jinshi, ofendido, pressionou a carta contra o peito como se quisesse blindá-la do mundo.
— Vocês não entendem nada! E ela não me chamava assim Jun. Essa carta é... é puro veneno e cura ao mesmo tempo!
Jiang e Yao Jun se encararam rindo.
— É, veneno tem mesmo, dá pra ver pelos sintomas. — Jiang disse, apontando o rosto ruborizado dele.
— Mas convenhamos continua sendo engraçado, já que ela te chamava de Sapo o tempo inteiro quando se casaram. Como ela dizia mesmo?
— Sapo Imperial. — Jiang respondeu gargalhando com o caçula, provocando Jinshi que agora estava vermelho de vergonha.
Yao Jun completou, rindo ainda mais:
— Não sei se ele volta inteiro da Província Ocidental… mas que volta envenenado, ah, isso volta!
Jinshi virou-se de costas, tentando manter a dignidade, mas não conseguiu esconder o sorriso tolo que escapava. No fundo, não importava quantas piadas fizessem: ele dormiria em paz naquela noite, embalado pela lembrança da “sua gatinha venenosa” que o esperava.
[. . .]
Na manhã do décimo dia, Maomao foi convocada pela Imperatriz Viúva, Anshi, o coração da jovem apertou no peito — visitas àquele aposento raramente significavam leveza.
Ao atravessar as portas, encontrou a antiga soberana sentada diante de uma mesa baixa, os olhos perdidos no pátio interno, onde o vento agitava os bambus. Não havia a rigidez costumeira em seu semblante, mas um peso antigo, de memórias que não se deixavam silenciar.
— Seus irmãos, esses pequeninos… — murmurou Anshi, sem desviar o olhar. — Eles me recordam meus netos, correndo por estes corredores quando crianças. O riso deles quebrava a frieza do palácio, coisa que nem meu filho e nem Ah-duo, conseguiram. Eu estive com eles mais do que os próprios pais… e, ainda assim, falhei.
Maomao, após uma pausa respeitosa, falou:
— Vossa Majestade… falhou em quê?
— Com Jiang. — a resposta veio firme, embora atravessada por arrependimento. — Ele é... É meu filho, passei tempo demais negando isso a mim mesma, agindo com frieza, eu o rejeitei tantas vezes. Entreguei-o a Ah-duo, para que fosse criado como se não me tivesse como mãe. Hoje porém, ele me olha apenas como a avó, a Imperatriz Viúva, apenas isso. — a respiração de Anshi estremeceu. — E o que é pior… os maiores segredos sempre vêm à tona.
Maomao ergueu os olhos, atenta.
— Vossa Majestade acredita que ele pode vir a descobrir esse segredo?
— Mais cedo ou mais tarde com certeza irá. — o tom da Imperatriz Viúva tornou-se grave. — E quando esse dia chegar, ele desmoronará. Jiang sempre acreditou ser apenas uma sombra ou uma reserva caso algo acontecesse com Zuigetsu, seu “irmão gêmeo”. Se descobrir que foi enganado desde o nascimento, ele pode não suportar tamanha informação. — enfim, voltou o olhar para Maomao, fixo e penetrante — É por isso que digo a você: se esse dia vier, você e Jinshi precisarão ser seus pilares.
O silêncio se estendeu, denso como chumbo. Maomao engoliu em seco antes de perguntar:
— Se vossa Majestade não se importar, ouso perguntar, por que está me contando essa história?
Anshi fechou os olhos por um instante, como se pesasse as palavras.
— Porque o tempo não é mais um aliado para mim, já tenho quarenta e nove anos, e já percebo falhas em minha memória. Pequenas coisas… nomes, datas… momentos que escorrem entre os dedos. Notei que estou começando a confundir as pessoas. — a voz soou baixa, mas sem perder firmeza. — Talvez seja o começo da decadência. Talvez seja apenas fadiga, mas não posso ignorar.
Olhou para Maomao, com uma sinceridade rara.
— Você é médica e a esposa de Zuigetsu, além também de ser um pilar para este império. Se minha mente falhar… alguém precisa carregar este segredo. Alguém que possa proteger Jiang quando a verdade se revelar, Ah-duo e meu filho sabem desse segredo, mas agora com você por perto incluída nessa família, sei que será uma ponte entre Jinshi e Jiang, consolar ambos quando ninguém mais conseguir. — Anshi respirou fundo passando a mão pela garganta — Eles terão raiva de Ah-duo e de Yang por terem escondido isso por tanto tempo, por isso peço a você que guarde e que me prometa cuidar do meu menino...
Maomao respirou fundo, sentindo o peso daquela confiança e daquela responsabilidade. Depois, inclinou-se em reverência profunda.
— Guardarei as palavras de Vossa Majestade. E se esse dia chegar… farei tudo o que estiver ao meu alcance para protegê-los.
Nos olhos da Imperatriz Viúva brilhou um misto de alívio e melancolia. Por um instante, pareceu mais humana do que soberana, mais mãe arrependida do que viúva imperial. Ainda assim, a sombra do arrependimento não deixou seu semblante.
[. . .]
Dezenove anos antes
O pátio dos fundos estava cheio de vozes infantis, o sol da tarde entrava filtrado pelas copas das amoreiras, deixando manchas douradas no chão, onde pequenos pés corriam de um lado a outro.
Jiang, de quatro anos, tinha no rosto uma máscara branca de gato, um tanto desproporcional para o corpo miúdo. Ele ria alto, o som cristalino de uma criança que por alguns instantes esquecia o peso que carregava sem saber.
— Cadê a minha raposinha? — a voz doce e firme de Anshi ecoou pelo pátio.
Ele soltou um gritinho em meio as risadas, escondendo-se atrás de um pilar. A máscara cobria-lhe o rosto, mas não escondia as mãozinhas pequenas que tremiam de expectativa.
Anshi, que momentos antes o observava com certo desprezo, — filho de um homem abominável, repetia em sua mente — permitiu-se esquecer. Esqueceu quem ele era, de onde viera, e viu apenas uma criança. Estendeu os braços e, quando Jiang se lançou correndo em sua direção, pegou-o no colo, o abraçando fortemente.
— Achei minha raposinha! — disse sorrindo, erguendo-o para o alto.
Ele gargalhou, os pezinhos chutando o ar, e Anshi riu junto, surpreendendo-se com o som que escapou de seus próprios lábios. Por um instante, era apenas uma avó brincando de esconde-esconde.
Mas quando Jiang retirou a máscara, revelando o rostinho inocente e os olhos vermelhos úmidos de alegria, a sombra voltou. "Esse olhar… não é de criança. É dele." O coração de Anshi se fechou, e ela o colocou de volta no chão com certa brusquidão.
Jiang percebeu, seus lábios tremeram, e ele correu até o canto do pátio, encolhendo-se no chão de pedra, segurava a máscara de gato contra o peito como se fosse sua única proteção. As lágrimas escorriam silenciosas até o soluço explodir.
Foi quando Ah-duo se aproximou, a jovem mãe, ainda não Imperatriz, ajoelhou-se ao lado do menino, embalando-o nos braços.
— Está tudo bem, meu filho… está tudo bem. — passava-lhe a mão nos finos cabelos negros, beijando-lhe a testa. Jiang chorava apertado contra o ombro dela, e só parou quando, exausto, fechou os olhos, adormecendo nos braços da mãe.
Mais de uma vez, Ah-duo tivera de esconder aquela máscara. Sabia que Jiang a usava como chave para chamar a atenção de Anshi, embora ela soubesse que se ele crescesse acreditando que só atrás de um rosto falso mereceria amor… estaria perdido, e isso lhe partia o coração.
Naquele mesmo dia, mais cedo, o pátio estivera repleto de risos, Jiang e Jinshi, ambos com quatro anos, estavam sentados no chão com bonecos de pano nas mãos. Jin-Ye e Lingli, ainda com três anos, tentavam imitá-los, arrastando os bonecos e tropeçando de tanto rir.
— O meu guerreiro é mais forte! — disse Jinshi, erguendo o boneco como se fosse um general.
— Não, o meu pula mais alto! — retrucou Jiang, fazendo o boneco dar cambalhotas desengonçadas.
As meninas batiam palmas, encantadas, Jin-Ye tentou colocar o boneco sobre a cabeça e acabou tombando para trás, arrancando gargalhadas de todos. Foi uma cena breve, mas calorosa, os irmãos rindo da pequena e ao mesmo tempo a ajudando ficar de pé.
Quando as crianças se dispersaram e Jiang voltou a se refugiar atrás da máscara, Ah-duo se aproximou de Anshi, ainda sentada sob a sombra do alpendre.
— Senhora… — começou com cautela. — Sei que é difícil olhar para ele. Sei de quem ele veio. Mas Jiang é apenas um bebê.
Anshi franziu o cenho, defensiva.
— Ele me lembra a cada instante do homem que que odeio.
— E ainda assim… — Ah-duo suspirou, olhando para onde Jiang dormia em seus braços — …ele riu com a senhora, brincou no seu colo, e ainda o chamou de raposinha. Para ele, a senhora não é nada além de uma avó a qual ele busca atenção.
Anshi permaneceu em silêncio por longos segundos, o olhar vacilou, e pela primeira vez, pareceu quebrar.
Ah-duo prosseguiu, firme, mas sem perder a doçura:
— Se deseja estar na vida dele, então não o destrate quando ele mostrar o próprio rosto. Porque, Majestade… criança alguma merece acreditar que só pode ser amada atrás de uma máscara.
Anshi apertou as mãos no colo, não respondeu, mas naquela noite, sozinha, a lembrança da risada de Jiang — leve, cristalina — ecoou em sua mente, misturando-se com a culpa que, dali em diante, jamais a abandonaria.
O quarto da Imperatriz Viúva estava silencioso, iluminado apenas pela chama bruxuleante de uma lamparina de óleo. As paredes altas, cobertas de tapeçarias, pareciam mais frias que nunca.
Anshi sentou-se diante da penteadeira, os cabelos negros soltos caindo sobre os ombros, já sem as joias ou adornos que lhe davam a imponência habitual. Na superfície do espelho polido, o reflexo mostrava não uma soberana, mas uma mulher de traços cansados.
Fechou os olhos, e o som voltou.
A risada de Jiang.
Clara. Livre. Cristalina.
— Raposinha… — murmurou, lembrando-se de como ele havia se jogado em seus braços, confiante, sem medo. O calor daquelas mãozinhas pequenas ainda parecia real em sua pele.
A lembrança, porém, trouxe também o peso, o rosto sem máscara, os olhos tão familiares — olhos que não eram dele, mas do homem que ela odiava.
Anshi ergueu o queixo, tentando recuperar a rigidez:
— Eu não posso… eu não devo amá-lo. — a voz saiu baixa, como se tentasse se convencer. — Ele é fruto de um erro, de um crime. Um fardo que não escolhi.
Mas as palavras soaram ocas, caindo no vazio. O eco que permaneceu foi o riso infantil, vibrando como uma melodia que nenhuma ordem mental conseguia apagar.
De súbito, uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto. Logo outra e então, antes que pudesse contê-las, chorava em silêncio. As mãos cobriam o rosto, os ombros tremiam, e todo o peso de sua contradição se desmanchava na solidão do quarto.
Entre soluços abafados, repetia para si mesma:
— Não posso amá-lo… não posso…
Mas cada vez que fechava os olhos, via Jiang de máscara, correndo para o seu colo. E percebia, com desespero, que já o amava — mesmo que jamais fosse capaz de admitir.
[. . .]
Maomao sentia o peso esmagador do segredo que carregava. Sabia pouco sobre a Imperatriz Viúva, e o que conhecia era apenas o que Jiang lhe disse na primeira vez que conversaram diretamente — e só aquilo lhe parecia uma confissão muito grave. Mas ao deparar-se com a realidade, percebeu que a história era ainda mais sombria do que podia imaginar.
Era cruel assistir, impotente, uma mulher relativamente jovem perder a si mesma aos poucos. A cada falha de memória, a cada olhar vago, Maomao se via tomada por uma mistura de compaixão e medo. Não conseguia imaginar quão doloroso devia ser estar naquele corpo e naquela mente que se desfaziam lentamente, como fios se soltando de um tecido delicado.
Ela queria ajudar.
Queria preparar-se para retardar o avanço daquela possível doença neurológica, procurar meios, inventar tratamentos, qualquer coisa que desse tempo à Imperatriz Viúva. Mas conhecia os prognósticos: raros eram os casos que sobreviviam por muito tempo. Esse pensamento a assustava profundamente.
Ainda assim, não podia parar e foi no pátio das ervas que encontrou um tipo de respiro. As jovens auxiliares médicas a cercavam com olhos atentos, cada uma tentando absorver um pouco da experiência de Maomao.
— Yao, não é só anotar, precisa sentir o cheiro também. — disse Maomao, entregando-lhe um pequeno ramo de erva seca. — Quando a febre sobe, essa raiz deve ser fervida até soltar um aroma levemente adocicado. Se cheirar queimado, está errado.
Yao franziu a testa, puxou o ar pelo nariz e assentiu, ajustando o pincel no papel.
— É doce... mas com um fundo amargo. Entendi.
— Boa garota. — Maomao esboçou um sorriso raro. — Esse detalhe pode salvar uma vida.
Ao lado, En’en revirava um pote de argila com curiosidade quase irritante.
— E se misturar com isso aqui? Não ficaria mais forte?
Maomao estreitou os olhos e tomou o pote das mãos dela.
— Se alguém beber isso junto da raiz, vai vomitar até desmaiar.
En’en piscou, surpresa, mas logo abriu um sorriso travesso.
— Ah… então serve como purgante! Viu, também pensei em algo útil!
— Só se você quiser esvaziar o estômago de um tolo. — Maomao suspirou, mas não pôde evitar um riso curto. — Não seja precipitada. Primeiro aprenda a curar, depois pode brincar de ser apotecária.
As outras aprendizes riram baixinho da ousadia de En’en, e o peso que Maomao carregava pareceu afrouxar por um instante. Ensinar aquelas jovens, ver o entusiasmo delas, era como dividir o fardo silencioso que a consumia.
Enquanto guiava as mãos de Yao na preparação do emplastro, Maomao permitiu-se, por um instante, divagar sobre o futuro. A ideia lhe surgiu quase como um sussurro, carregada de uma estranha mistura de alívio e melancolia:
"Se um dia eu cair ou ascenteder ao trono ao lado de Zui, pelo menos haverá alguém capaz de continuar."
As manhãs de treino sempre começavam com o básico — infusões, emplastros, diagnósticos pelo pulso, mas Maomao sabia que, cedo ou tarde, aquelas meninas teriam de lidar com algo mais grave do que uma febre ou queimadura.
No salão de prática, improvisado com mesas baixas e bonecos de palha cobertos por tecidos, ela posicionou as jovens diante de um corpo animal preparado para simulação.
— Ouçam bem. Em casos de hemorragia interna, hesitar significa perder o paciente. Por isso treinamos aqui, para que as mãos de vocês aprendam o caminho antes que a vida de alguém dependa delas.
Yao engoliu em seco, ajustando a lâmina. En'en, mais ousada, já se inclinava curiosa.
— A incisão deve ser limpa. — Maomao segurou a mão de Yao, guiando o corte na barriga do animal. — Não tremam. Pensem que a carne se abre para que possamos salvar.
O cheiro metálico inundou o ar, En'en franziu o nariz, mas seus olhos brilhavam de excitação.
— E se for um parto de emergência? — perguntou ela, quase sussurrando, como se o peso da situação fosse grande demais para a própria voz.
Maomao assentiu lentamente.
— É quando se faz a incisão gestacional. Muitos chamam de último recurso, e é mesmo... — disse com certo pesar na voz só de lembrar — A mãe pode não resistir, mas às vezes é a única forma de dar uma chance ao bebê.
Ela desenhou com o dedo sobre o pano que cobria o boneco.
— A incisão começa aqui, vertical. Não se deve cortar de lado, ou o risco é maior.
En'en arregalou os olhos.
— Então você já fez isso antes?
Um silêncio pairou, Maomao demorou a responder, mesmo sendo médica, esse sempre seria um assunto sensível para ser abordado.
— Mais vezes do que gostaria de lembrar.
Yao desviou o olhar, perturbada, mas Maomao não suavizou as palavras.
— Vocês precisam estar preparadas. Uma aldeia inteira pode olhar para vocês na hora da decisão. E quando isso acontecer, não haverá tempo para dúvidas.
Ela então retirou cuidadosamente o "feto" de tecido que havia dentro do modelo improvisado, mostrando a posição, como cortar o cordão, como estancar o sangramento da mãe.
— Vidas estão em jogo. A nossa calma será o que resta quando o desespero consumir todos os outros.
As mãos de Yao tremiam ao tentar repetir o movimento, mas Maomao firmou seus pulsos.
— Respire. Lembre-se do que já aprendeu. Você consegue.
Já En’en, impetuosa, fez o corte rápido demais e rasgou parte do tecido.
— Viu? — Maomao puxou o material rasgado e ergueu diante delas. — Um erro assim poderia significar que a mãe nunca mais voltaria a respirar. Essa é a diferença entre pressa e precisão.
En’en corou, mordendo o lábio, mas em vez de bronca, Maomao lhe entregou uma nova agulha.
— Tente de novo. E de novo, até que a sua mão saiba o caminho sem que você precise pensar.
O treino seguiu noite adentro, com Maomao observando cada detalhe, corrigindo a postura das aprendizes, lembrando-as de que a medicina era tanto firmeza quanto compaixão.
[. . .]
A noite no Pavilhão da Lua era calma, apenas o som dos grilos e do vento contra as cortinas de papel, Maomao dormia profundamente, o corpo cansado do dia de treinos com as aprendizes e das próprias preocupações que nunca a deixavam em paz.
Mas os gritos romperam a madrugada como lâminas. Passos apressados, choros abafados, vozes desesperadas. Ela abriu os olhos de súbito, o coração batendo rápido.
— Vossa Alteza! — a voz de uma serva entrou pelo corredor. — A Concubina Qilan está morrendo! Venha depressa!
Maomao se ergueu da cama num só movimento, ainda vestida apenas com roupas simples de dormir, os cabelos soltos em desalinho, não perdeu tempo com vaidade, apenas o prendeu em um rabo de cavalo, pegou a caixa de instrumentos e correu até a porta.
Antes de sair, virou-se para Chue e Lishu, que despertaram assustadas.
— Cuidem de Zhìyuǎn, Fen Fang e Yaling. Não deixem que saiam do quarto, custe o que custar.
As duas assentiram com olhos arregalados, entendendo pela gravidade no tom que não era hora de perguntas.
No corredor, encontrou Basen, igualmente sonolento, mas já de pé com a espada na cintura.
— Basen, vá chamar Yao e En'en. Traga-as imediatamente para o harém das concubinas de baixo nível.
Ele a encarou, surpreso.
— A essa hora?
— Elas precisam ver o que é uma verdadeira emergência. Vão aprender mais nesta noite do que em meses de treino. — sua voz não vacilou.
Basen não discutiu, partiu apressado, enquanto Maomao atravessava o pátio com a lanterna em mãos.
[. . .]
No quarto abafado da concubina Qilan, o cheiro de suor frio e sangue impregnava o ar, a jovem mulher se contorcia sobre o leito, gemendo, as mãos sobre o abdômen inchado e duro. As servas choravam em volta, impotentes.
Maomao aproximou-se rapidamente, tocando o pulso da paciente, depois pressionando levemente o ventre, o grito agudo que recebeu em resposta confirmou sua suspeita.
— Apendicite. — murmurou. — Se não retirarmos, ela não verá o amanhecer.
As servas se entreolharam em pânico. Uma delas caiu de joelhos.
— Mas, Alteza… abrir o corpo dela? Não é pecado? Causaria a morte instantaneamente.
— O maior pecado é deixá-la morrer sem tentar salvá-la — Maomao respondeu seca, já ordenando que fervessem água e trouxessem tecidos limpos.
Foi nesse momento que Basen entrou, trazendo Yao e En'en às pressas, ambas ainda com roupas simples de dormir, os cabelos desgrenhados, mas os olhos acesos pelo choque da situação.
— Observem bem. — disse Maomao, sem sequer virar o rosto para elas. — É isso que significa ser médica.
A improvisação começou. Maomao esterilizou a lâmina na chama da lamparina, as ervas em volta do abdômen anestesiavam a área local, mesmo que por pouco tempo, as mãos de Maomao estavam firmes apesar do suor frio que escorria por sua nuca.
— Yao, segure a lanterna aqui, acima do ventre, preciso de luz constante.
A garota respirou fundo e obedeceu, a mão tremendo levemente.
— En'en, limpe o suor do rosto da paciente. Se entrar nos olhos dela, pode causar infecção.
— S-sim! — a mais jovem correu, engolindo o nervosismo.
Maomao apoiou a mão sobre o abdômen tenso da concubina.
— Segurem-na firme. Ela vai gritar.
E cortou.
O gemido desesperado da concubina Qilan ecoou pelo quarto, mas Maomao não hesitou. Fez a incisão precisa, como já havia treinado tantas vezes, abrindo caminho até encontrar o tecido inflamado. O cheiro fétido encheu o ar, e En'en levou a mão à boca, quase engasgando.
— Não ouse vomitar aqui. — Maomao lançou-lhe um olhar afiado. — Segure firme, a vida dela depende de nós.
En’en mordeu o lábio até sangrar, mas assentiu, tentando não desviar os olhos.
Maomao retirou o apêndice inchado com movimentos firmes, e, por um instante, até Yao esqueceu de respirar, hipnotizada pela calma de sua mestra.
— Quando o corpo inflama assim, não há tempo para preces ou desculpas. Só mãos que sabem o que fazer. — disse Maomao, mais para as aprendizes do que para si mesma.
Com rapidez, suturou a incisão com pontos grosseiros, mas seguros. Limpou o sangue, cobriu o ferimento com panos fervidos, e enfim recuou, exausta, com as mãos ainda trêmulas.
A concubina estava viva. Respirava ofegante, mas viva.
Maomao fechou os olhos por um segundo, permitindo-se sentir o peso da vitória frágil.
— Lembrem-se disso — falou baixo, encarando Yao e En'en. — A medicina não é poesia, não é só chá e ervas. É carne, sangue e decisões que ninguém mais pode tomar além de vocês que estão no comando.
As duas assentiram, em choque, mas com algo novo nos olhos: respeito, e um vislumbre do mesmo fardo que Maomao carregava sozinha.
A madrugada já se dissolvia em cinza quando Maomao deixou o quarto abafado da concubina Qilan. O corpo doía, as mãos ainda carregavam o cheiro metálico do sangue, e os olhos ardiam de cansaço. Havia salvado uma vida — ao menos por enquanto — mas a sensação de fragilidade nunca a abandonava. Cada ponto que dera era uma prece silenciosa para que o corpo da concubina resistisse à infecção.
Yao e En'en a acompanharam em silêncio pelo corredor, as duas tremiam, não de frio, mas do impacto daquilo que haviam visto. Yao segurava firme a lanterna, como se temesse derrubá-la, e En'en, pela primeira vez, não tinha perguntas na ponta da língua.
— Voltem a descansar. — murmurou Maomao, a voz rouca. — Refletiremos sobre o que aprenderam amanhã… não, hoje mais tarde.
As duas assentiram, respeitando o silêncio da mestra.
Quando Maomao atravessou os portões de volta ao Pavilhão da Lua, o céu já dava sinais de clarear, tingido de violeta e dourado. Os pés pareciam chumbo, mas algo a aguardava dentro do quarto.
Ao abrir a porta, viu Chue e Lishu sonolentas, sentadas ao lado dos pequenos. Zhìyuǎn, Fen Fang e Yaling estavam acordados, encolhidos nos cobertores, os olhos arregalados na expectativa de vê-la voltar.
— Irmã! Você demorou! — Zhìyuǎn correu até ela, agarrando sua cintura.
O peso do abraço quase a fez desabar, Maomao fechou os olhos e pousou a mão na cabeça do menino.
— Eu disse que ela ia voltar. — murmurou Fen Fang, meio emburrada, mas com lágrimas nos olhos.
Yaling, deitada, ergueu os bracinhos pedindo colo. Maomao se ajoelhou devagar, o corpo protestando, mas acolheu-a contra o peito.
Chue e Lishu trocaram um olhar cúmplice, aliviadas.
— Eles insistiram em esperar, mesmo com sono. — disse Lishu suavemente. — Não houve como convencê-los.
Maomao suspirou, sentindo as crianças se aconchegarem contra ela. O contraste era esmagador: horas antes, suas mãos abriam um corpo em desespero para arrancar a morte de dentro dele. Agora, aquelas mesmas mãos acariciavam cabelos infantis, como se só soubessem dar consolo.
Ela respirou fundo, permitindo-se um instante de fraqueza. O coração, tão endurecido pela frieza necessária da medicina, amolecia diante daqueles olhinhos esperançosos.
— Estou em casa. — murmurou, quase para si mesma.
Zhìyuǎn a olhou sério, como se fosse adulto.
— Você está cansada. Deita, que a gente fica aqui.
Um sorriso leve escapou dos lábios dela, Maomao colocou Yaling ao lado dos irmãos, ajeitou os cobertores e enfim se deixou cair sobre a cama. O corpo cedia, enquanto mente se aquietava.
[. . .]
Na Província Ocidental, os três príncipes reuniam-se no casarão de pedra do governante local, as paredes altas, de madeira escura e pesadas tapeçarias, não disfarçavam a atmosfera carregada de desconfiança. O ar cheirava a incenso queimado demais, como se fosse uma tentativa de mascarar a rigidez e a frieza do ambiente.
Gyokuen recebia-os com gestos ensaiados, um sorriso que jamais chegava aos olhos. Seus outros irmãos estavam presentes também, todos homens de ambição, cuja lealdade parecia sempre pender para o lado mais vantajoso.
Ser irmão de uma Concubina de Alto Nível possuía suas vantagens, embora o poder tivesse subido a cabeça da família como se a influência de Gyokuyou na corte fosse o suficiente para que seus irmãos usufruíssem de seu poder nas terras da Província Ocidental.
Jinshi passou a mão na testa cansado, mas foi o primeiro a falar, sua voz firme e pausada ecoando pelo salão.
— A província tem prosperado, apesar das tensões nas fronteiras. — ele olhou para Gyokuen, sem pressa. — O mérito é vosso, mas não devemos esquecer que a estabilidade não é fruto de um só esforço.
Gyokuen retribuiu o sorriso, estreito como a lâmina de uma faca.
— Claro. A Província Ocidental sempre servirá ao Império… desde que o Império não a esqueça.
Jiang, até então em silêncio, deixou escapar um leve resmungo, seus olhos avermelhados estreitaram-se enquanto cruzava os braços.
— Palavras ambíguas, senhor Gyokuen. Estabilidade é fruto de confiança, difícil construí-la quando o tom soa como ameaça.
Um silêncio pesado caiu sobre a mesa, tão denso que parecia ecoar entre as colunas do salão. O ambiente era solene, os olhares fixos nos documentos e mapas abertos, mas a tensão ameaçava romper a formalidade.
Jinshi, no entanto, não permitiu que o peso daquele instante se prolongasse. Com a voz firme, mas revestida de uma suavidade calculada, que parecia deslizar como seda entre as palavras, ele interveio:
— O que meu irmão deseja dizer — explicou, com um sorriso que amenizava os ânimos — é que a confiança se constrói em ambos os lados. É exatamente por isso que estamos aqui.
As palavras de Jinshi suavizaram os olhares, mas foi Yao Jun quem pareceu mais desperto com a deixa. Ele sempre adorara os debates políticos. Havia neles uma chama que o fazia se sentir parte de algo maior — ainda mais quando estava ao lado dos irmãos mais velhos. Filho de Lady Gyokuyou, o caçula antes do nascimento de Liang, carregava o título de príncipe com certo peso: era o terceiro na linha de sucessão entre os homens, e o quinto se considerada a ordem de todos os filhos, incluindo as princesas Jin-Ye e Lingli.
Ainda assim, em seu coração, havia uma dualidade.
Para Jinshi e Jiang, ele jamais deixaria de ser o irmão mais novo. Para Liang, agora, era o irmão mais velho. Essa posição intermediária era uma constante lembrança de que, mesmo sem desejar o trono, continuava sendo uma peça em potencial dentro do jogo de poder da corte. Seu verdadeiro sonho, no entanto, estava em outro lugar: o exército imperial. Lá, acreditava, poderia servir aos irmãos e ao Império sem que sua existência fosse vista como uma ameaça.
Ansioso para provar que não era apenas um menino perdido na sombra dos demais, Yao Jun inclinou-se levemente para frente, como se quisesse marcar presença.
— Eu diria mais. — acrescentou, a voz firme apesar do leve tremor inicial. — Viemos para ouvir, para compreender melhor as necessidades da província. Talvez assim possamos, juntos, encontrar soluções que fortaleçam o Império inteiro.
As palavras, carregadas de uma maturidade quase ensaiada, foram recebidas com uma surpresa discreta. Alguns dos presentes sorriram, aprovando, Gyokuen não conteve um riso baixo, divertido:
— Você é tão jovem, meu sobrinho. — comentou, balançando a cabeça com ternura — e já fala como um futuro estadista.
Yao Jun sentiu o peito inflar, orgulhoso do reconhecimento, mas o efeito foi imediatamente colocado à prova. Jiang arqueou uma sobrancelha, aproximando-se de Jinshi para murmurar em tom baixo, tão baixo que só o irmão mais próximo poderia ouvir:
— Ou como alguém tentando impressionar…
Jinshi conteve o riso, mas o brilho divertido em seus olhos o entregou.
Yao Jun, atento, percebeu a troca. A vermelhidão subiu-lhe ao rosto num misto de irritação e embaraço, e ele lançou aos irmãos um olhar carregado de reprovação. Porém, por mais que tentasse, não conseguiu disfarçar o leve rubor que denunciava a juventude ainda pulsando por trás de sua tentativa de solenidade.
As reuniões seguiram, recheadas de insinuações e meias-verdades. Jinshi controlava o ritmo, Jiang desmontava os argumentos mais perigosos, e Yao Jun equilibrava tudo com sua espontaneidade. Apesar das diferenças, havia entre os três um pacto silencioso: nenhum deixaria que a Província os dividisse.
No dia seguinte, Gyokuen surpreendeu-os ao propor uma caçada. O convite fora envolto em palavras amistosas — “estreitar laços” — mas ninguém à mesa se iludiu: cada gesto ali era um movimento em um tabuleiro de xadrez. E o campo aberto, vasto e dourado pela manhã, parecia disposto exatamente assim. Montarias alinhadas com precisão, servos espalhados em posições estratégicas, estandartes tremulando ao vento como peças dispostas para um jogo maior.
Jinshi, pouco afeito à brutalidade da caça, montava com postura impecável. Seus olhos percorriam o cenário mais como quem lê intenções do que como quem busca presas. Já Jiang, de semblante austero, manejava o arco com a frieza de quem transformara disciplina em segunda pele. O disparo dele foi seco, certeiro, abatendo a presa em apenas um movimento. A expressão de alguns nobres se endureceu, como se reconhecessem na precisão dele um traço perigoso de implacabilidade.
Yao Jun, por sua vez, parecia lutar contra as próprias mãos, ajustou a corda do arco com ansiedade visível e, ao soltar, a flecha partiu em ângulo desastroso, cravando-se na terra muito antes de alcançar o alvo. Um coro de risadas ecoou, algumas maldosas, outras apenas divertidas. O rubor subiu-lhe ao rosto, mas, em vez de se recolher, ele respirou fundo e riu de si mesmo, o som leve dissipando parte da tensão. Aquela risada franca, juvenil e sem vaidade, arrancou simpatias que ele jamais esperaria conquistar.
Gyokuen, observando tudo com olhos de águia, recostou-se na sela, trocando um olhar de cumplicidade com os irmãos:
— O mais jovem entre os tigres — comentou em tom irônico, mas não cruel — Ainda precisa de garras.
O comentário arrancou alguns murmúrios, mas Jiang não permitiu que se transformasse em deboche. Endireitou-se na sela e, sem hesitar, rebateu:
— Garras podem ser afiadas, mas coragem não se forja com o tempo… e isso meu irmão já tem de sobra.
O silêncio que se seguiu foi carregado de significado. Yao Jun arregalou levemente os olhos, surpreso. Não era comum Jiang se colocar em sua defesa, muito menos em público. O coração dele bateu mais forte, um misto de gratidão e incredulidade atravessando-lhe o peito.
Jinshi, a uma curta distância, acompanhava tudo com seu sorriso enigmático. Para ele, não era apenas uma caçada, mas uma encenação cuidadosamente observada pela Província. E ver o elo entre os irmãos se consolidar diante de tantos olhos atentos era, para o Príncipe da Lua, uma vitória silenciosa.
O casarão do governante local estava iluminado como se fosse um palácio. Tendas coloridas, tecidos importados e músicos foram preparados para dar ao banquete um ar de grandeza, mas por trás das cortinas bordadas e dos risos educados, o ambiente estava impregnado de cálculo e hostilidade.
Gyokuen, irmão de Lady Gyokuyou, caminhava entre os convidados como um anfitrião perfeito. Seus olhos, porém, carregavam a sombra de algo maior. Aquele banquete não era mera celebração; era um campo de prova.
Os três príncipes — Jinshi, Jiang e Yao Jun — foram recebidos em lugares de honra, cercados por nobres locais e conselheiros da Província Ocidental.
Jinshi, com sua elegância habitual, ergueu a taça:
— Ao fortalecimento de nossas relações.
Gyokuen respondeu com um sorriso calculado.
— Relações precisam ser testadas antes de fortalecidas, Vossa Alteza. Nem sempre o sangue basta para sustentar a lealdade.
Jiang apoiou o cotovelo na mesa, olhos fixos no anfitrião.
— E o que mais seria necessário, além de sangue e juramento? Moedas? Tropas? Ou talvez… submissão?
Um murmúrio correu pelo salão, Gyokuen apenas riu, mas sua voz era cortante.
— Talvez seja apenas coragem. Algo que, com todo respeito, a corte da capital tem mostrado em falta.
Yao Jun, que até então apenas acompanhava, endireitou-se na cadeira. Seu rosto jovem estava ruborizado, não de vinho, mas de indignação.
— A corte não carece de coragem! — a voz de Yao Jun ergueu-se clara e firme, surpreendendo até mesmo Jinshi e Jiang. O brilho em seus olhos não era mais de um menino, mas de alguém disposto a se ferir em defesa do que amava. — Minha mãe, Lady Gyokuyou, dedicou a vida a servir ao Império. Se estamos aqui, é para mostrar que a linhagem imperial permanece unida, mesmo que alguns duvidem disso!
As palavras ecoaram no salão como uma afronta direta, o silêncio caiu pesado, e os olhares convergiram para ele. Gyokuen, impassível até então, estreitou os olhos, a frieza em sua expressão cortante como lâmina.
— Coragem ou teimosia, jovem príncipe? — devolveu, a voz baixa, mas carregada de veneno — Não confunda um com o outro. Ainda mais vinda daquela estrangeira ruiva. A única coisa que Gyokuyou fez direito foi se unir ao Império ao aceitar ser concubina do Imperador e isso… foi o mínimo que ela pôde fazer pelo Clã You, que a sustentou por todos aqueles anos, apesar de sua origem.
A sala pareceu congelar, alguns nobres esconderam sorrisos de escárnio, outros baixaram o olhar, tensos, mas Yao Jun não se retraiu. O sangue lhe subiu ao rosto, o corpo rígido de indignação.
— Não ouse menosprezar o nome de minha mãe. — disse, levantando-se de súbito, a cadeira arrastando-se pelo chão num ruído cortante. O olhar dele encontrou o do tio sem vacilar, um desafio evidente. — A honra dela é a minha.
A tensão explodiu como faísca em pólvora, um dos nobres locais, aproveitando a brecha, murmurou em tom áspero:
— Sangue estrangeiro jamais trará estabilidade ao trono.
Antes que o veneno da frase pudesse se espalhar, Jiang reagiu, sua taça chocou-se contra a mesa com força, o líquido escorrendo como sangue derramado. O gesto silenciou o murmúrio da sala, e sua expressão glacial era um aviso por si só.
Jinshi, por sua vez, ergueu-se num movimento calculado, a voz ecoando firme, ressoando como autoridade.
— Basta! — ordenou, olhando de um lado a outro da mesa. — Estamos aqui como convidados, não inimigos.
O ar no grande salão, outrora carregado de música e o aroma de incenso e banquetes, havia se tornado tenso e pesado. A tensão era uma corda prestes a arrebentar, esticada pelas provocações calculistas dos conselheiros de Gyokuen. Cada palavra era uma agulha, cada insinuação, um golpe baixo destinado a testar os limites dos jovens príncipes.
Yao Jun, com o coração fervendo de um calor juvenil que sua posição nunca permitiu que ele dominasse completamente, via o rosto de seus irmãos se endurecerem a cada insulto. A paciência, um luxo que eles não podiam mais ter, esgotou-se quando um dos conselheiros, um homem de sorriso afiado, se aproximou o suficiente para que Jun sentisse o hálito embriagado e o desdém.
— O filho mais novo do Imperador, — sussurrou o homem, veneno em cada sílaba — deveria aprender a ser mais... discreto e submisso a ordens, assim como a vagabunda da sua mãe que se vendeu por poder, ao menos ela foi útil para algo nessa província.
Aquilo tinha sido a gota d'água. Um rugido surdo escapou dos lábios de Yao Jun, a raiva, cega e absoluta, tomou conta de seu corpo. Ele não pensou, apenas agiu, empurrando o conselheiro com uma força que surpreendeu a todos, incluindo a si mesmo. O homem cambaleou para trás, tropeçou em uma mesa baixa e caiu sobre um conjunto de taças de porcelana, que se estilhaçaram com um estridente clamor de violência.
Foi o sinal.
O salão explodiu, como se a chama do fogo tivesse se alastrado por tudo em volta, a cortesia desintegrou-se. Mesas de madeira laqueada tombaram com um baque surdo, lançando iguarias e vinho ao chão. Guardas que antes eram estátuas moveram-se com intenção assassina, e no turbilhão deliberadamente orquestrado, Yao Jun se viu isolado, cercado por armaduras e olhos hostis.
— Jun! — o grito de Jiang cortou a confusão, um som visceral de puro terror.
Ele se moveu como um raio, tentando colocar-se entre o irmão mais novo e os guardas, mas a armadilha já estava fechada. Em um instante que pareceu se esticar para a eternidade, uma lâmina surgiu de entre os corpos. Não um golpe de espada larga e honorável, mas uma punhalada traiçoeira e eficiente, desferida por um homem às escuras.
O mundo desacelerou.
A lâmina encontrou seu alvo com um som úmido e horrível, afundando profundamente no abdômen do jovem príncipe. Yao Jun não gritou. Um suspiro ofegante, um som de ar sendo brutalmente expulso de seus pulmões, foi sua única resposta. O salão, como se possuísse um único coração, silenciou por um segundo abissal. O único som era o respingo rubro do sangue jorrando sobre o frio chão de pedra, um tamborilar macabro que anunciava o fim de uma era.
Yao Jun caiu de joelhos, o corpo já não lhe obedecendo. Seus olhos, muito jovens e muito claros, estavam arregalados de incredulidade. As mãos, finas e delicadas, tremeram em direção à ferida, tentando inutilmente conter a vida que escapava por entre seus dedos, manchando suas roupas imperiales de um vermelho grotesco.
— Não… não, fique comigo, Jun! — a voz de Jinshi, normalmente um instrumento de controle e diplomacia, quebrou em um sussurro desesperado. Ele chegou ao chão ao lado do irmão, ajoelhando-se na poça de sangue que se alargava, suas vestes imaculadas absorvendo a tragédia. Suas mãos tremiam enquanto tentavam sustentar o peso do corpo que começava a definhar.
Jiang chegou um instante depois, seu rosto era uma máscara dilacerada entre a fúria assassina e uma dor tão profunda que parecia consumi-lo por dentro. Ele agarrou os ombros do irmão caçula, os dedos cravando-se na carne, como se pudesse fisicamente mantê-lo ali, ancorado à vida.
— Você não vai nos deixar! Você não pode! — o grito de Jiang era rouco, embargado por lágrimas que ele se recusava a derramar completamente. — Não dessa forma irmãozinho.
Yao Jun tentou falar, seus lábios até se moveram e. uma tentativa fraca de formar uma palavra, um nome, um último conselho. Mas em vez disso, um fio escarlate escorreu do canto de sua boca, um contraste violento contra a palidez mortal de sua pele. Seus olhos, perdendo o foco, buscaram os dos irmãos. Já não havia raiva ou medo, apenas uma ternura profunda e um pedido de desculpas silencioso. Então, a luz que os habitava vacilou, e se apagou para sempre, extinguindo-se ali mesmo, no chão frio, nos braços daqueles que mais o amavam.
Um som foi arrancado da alma de Jinshi, não um choro, mas um lamento gutural de uma fera ferida. Ele apertou o corpo inerte de Yao Jun contra o peito, suas lágrimas limpas misturando-se ao sangue do irmão, suas costas curvadas sob o peso de uma dor insuportável.
Jiang, porém, não chorou.
Lentamente, ele ergueu a cabeça. Suas lágrimas haviam secado, substituídas por um gelo que prometia fogo. Seu olhar, um vulcão prestes a entrar em erupção, varreu a sala e fixou-se em Gyokuen e nos nobres paralisados. A fúria em seu rosto era tão palpável que parecia mudar a pressão do ar.
— Vocês não apenas mataram o filho do Imperador. — sua voz não era um grito, mas uma lâmina forjada no gelo do desespero, tão cortante que pareceu ferir fisicamente todos os que a ouviram. — Como a partir deste instante, não existe mais conciliação. Não há tratados. Não há perdão. — ele levantou-se, manchado de sangue, uma figura de pura vingança, seus olhos vermelhos estavam semicerrados amedrontando todos os nobres com seu olhar firme, assim como o do Antigo Imperador — Agora teremos uma guerra.
O silêncio que se abateu sobre o salão era mais profundo do que o anterior. Era o silêncio do véu sendo rasgado, da linha sendo cruzada, do ponto de não retorno sendo alcançado. Gyokuen manteve a postura impassível, mas um breve tremor em suas mãos e um lampejo de cálculo rápido em seus olhos revelaram a verdade: ele sabia que aquele não era um mero assassinato. A morte de Yao Jun era o pavio, e o império inteiro era a pólvora.
E naquele chão, manchado pelo sangue do príncipe mais jovem, a guerra já havia começado. Sua primeira batalha já estava perdida, e sua próxima vítima seria atingir o Imperador.
[. . .]
O banquete terminara em caos, o salão, antes iluminado por tochas e músicas festivas, agora estava mergulhado no silêncio mais pesado que se podia imaginar. O corpo de Yao Jun jazia no chão de pedra, o sangue ainda quente espalhado sob ele.
Jinshi continuava ajoelhado, os braços envolvendo o irmão caçula como se pudesse aquecê-lo de volta à vida. Sua túnica azulada agora estava manchada de vermelho, mas ele não parecia se importar. O príncipe, sempre elegante, sempre calculado, agora era apenas um homem quebrado.
— Ele era só um garoto… — murmurou, a voz embargada. — Nosso irmão… meu Jun…
Jiang estava ao lado, os olhos inflamados de lágrimas e fúria. Apertava o ombro de Yao Jun, como se a força de suas mãos pudesse impedir a partida.
— Você me ouve? — dizia, quase gritando. — Abre os olhos, Jun! Nós ainda precisamos de você!
O silêncio da morte respondeu.
Alguns nobres locais se afastaram, horrorizados com a cena, outros observavam em silêncio, calculando o significado político daquilo. Gyokuen, parado no fundo do salão, mantinha a máscara de neutralidade, mas todos sabiam: aquele sangue manchava suas mãos.
Jinshi ergueu o rosto lentamente, encarando Gyokuen com olhos tomados de dor e ódio.
— Vocês conseguiram… — sua voz era baixa, mas cortante. — Fizeram o que queriam, mas haverá o preço.
Jiang, de pé, apontou o dedo para os anfitriões.
— A Província Ocidental cavou sua própria cova, a morte de Yao Jun não ficará impune.
Naquela mesma madrugada, os dois príncipes mantiveram-se junto ao corpo do irmão, recusando-se a deixá-lo sozinho. Servos hesitantes tentavam oferecer água, lenços, mas eram afastados. O salão, agora vazio, parecia um mausoléu improvisado.
Jinshi, sentado ao lado do corpo, passou a noite em silêncio, repetindo apenas o nome do caçula como um mantra. Jiang, inquieto, caminhava de um lado para outro, murmurando estratégias entre soluços — um homem tentando transformar a dor em ação.
O amanhecer por outro lado, trouxe mais do que luz: trouxe mensageiros.
No casarão, os corredores se encheram de vozes apressadas. Conselheiros da província discutiam em tom baixo, tentando encontrar justificativas, temendo as consequências. Soldados locais estavam inquietos, pois sabiam que, ao cair do sol, poderiam ser chamados não para servir, mas para morrer em uma guerra.
No aposento onde o corpo de Yao Jun havia sido preparado, Jinshi e Jiang receberam a primeira notícia oficial: os mensageiros imperiais, que viajavam entre províncias, já haviam sido enviados de volta à capital, a morte não poderia ser ocultada.
— O Imperador saberá em poucos dias — disse um velho conselheiro, a voz trêmula. — E com ele, todo o palácio, nossa mãe ficará arrasada... a dor de perder um irmão já é dolorosa, perder um filho é ainda pior...
Jiang explodiu:
— Dias? Cada batida de tambor do correio imperial ecoará como um trovão em toda a corte! — ele se virou para Jinshi — Não podemos esperar, precisamos agir agora.
Jinshi respirou fundo, os olhos cansados e vermelhos.
— Agiremos, mas não como tolos irmão, o sangue de Jun já caiu; não deixaremos que mais vidas sejam desperdiçadas sem estratégia.
Ele se levantou, finalmente deixando o lado do corpo do irmão. Sua postura, ainda que abalada, trazia de volta o príncipe calculista e frio, mas agora moldado pela dor.
— Organizaremos os relatórios. Selecionaremos quais mensageiros seguirão para a capital, quais tropas devem ser alertadas. E, acima de tudo… — sua voz vacilou, mas se manteve firme — …levarão o corpo de nosso irmão com a honra que merece.
Jiang assentiu, respirando com dificuldade, as mãos ainda tremendo.
— Ele não será lembrado como um garoto morto em uma briga. Ele será lembrado como o príncipe cujo sangue uniu irmãos e acendeu a fúria de um império.
No pátio central do casarão, os nobres da província reuniam-se às pressas. O medo estampava seus rostos. Todos sabiam: a morte de Yao Jun não era apenas uma tragédia familiar. Era uma sentença.
E enquanto os primeiros tambores dos mensageiros ecoavam ao longe, levando a notícia até a capital, a Província Ocidental mergulhava em silêncio, o tipo de silêncio que precede a guerra.
[. . .]
Palácio Imperial – País de Li
O salão de reuniões era amplo, sustentado por colunas entalhadas, e impregnado de incenso, Maomao sentava-se no assento lateral reservado à consorte do Príncipe da Lua — porque, de fato, era assim que agora todos a viam.
À frente, ministros recitavam relatórios em vozes arrastadas, enquanto ela, com o queixo apoiado na mão, fingia plena paciência. Jin-Ye e Lingli, sentadas logo atrás, eram apenas convidadas de honra. Basen, firme como uma muralha, postava-se à lateral, o olhar de águia acompanhando qualquer movimento suspeito.
Jin-Ye estava envolta em camadas de tecidos finos, delicadamente sobrepostos sobre a cintura e barriga, de modo discreto, mas Maomao decidiu ignorar achando que estava pensando demais ao analisar os gestos da amiga, ela já estava enlouquecendo naturalmente sozinha com os próprios problemas, Maomao não precisava saber da vida particular de Jin-Ye, só seria mais uma dor de cabeça saber do que não deveria.
No entanto, para a princesa Lingli saber da vida particular dos outros era sua especialidade, mesmo que não o fizesse de propósito, embora naquele dia a princesa estivesse inquieta, e sendo a primeira a notar a palidez no rosto de Maomao.
— Ei... você está com cara de quem engoliu uma ameixa azeda. — sussurrou, escondendo o riso por trás do leque cor-de-rosa.
Maomao revirou os olhos.
— É apenas a fadiga, estes debates intermináveis sugam energia de qualquer um.
Jin-Ye pousou a mão delicadamente sobre o braço da irmã, em gesto de silêncio, e lançou um olhar firme para Maomao.
— Descanse assim que puder, não adianta representar o Príncipe da Lua, se seu corpo não acompanha.
Basen pigarreou, seco, chamando atenção para a postura, e todos voltaram ao protocolo como se nada tivesse sido dito.
[. . .]
Horas depois, já noite fechada, Maomao voltou aos aposentos. O silêncio dos corredores contrastava com o peso do dia, e Basen a acompanhava, ainda de semblante severo, como se tivesse engolido espinhos. Ele não disse uma única palavra durante todo o trajeto, mas o ranger de suas botas no piso polido falava por ele — irritação, cansaço, vigilância.
Assim que a porta se abriu, o ambiente acolhedor da sala a envolveu, Lady Lishu estava sentada junto à janela, costurando sob a luz tênue das lamparinas. Ao vê-la, ergueu-se imediatamente, o rosto iluminado por um sorriso caloroso.
— Finalmente. Já estava preocupada, senhora.
Maomao suspirou e revirou os olhos diante do "senhora". Já havia deixado claro que Lishu e Chue não precisavam se prender ao protocolo, mas parecia impossível arrancar delas certas formalidades.
Chue, por sua vez, foi mais direta, aproximou-se sem cerimônia, os olhos atentos ao estado de Maomao. Sem pedir licença, tomou as mangas pesadas do hanfu cerimonial.
— Venha, sente-se. — ordenou, num tom que não admitia recusa. — Vamos tirar isso antes que desmaie.
E já começou a soltar os laços do traje.
— Eu estou bem... — murmurou Maomao, embora não oferecesse resistência. Na verdade, cada camada de tecido lhe parecia um fardo, como se carregasse o peso de todas as obrigações do palácio sobre os ombros.
Lishu riu baixo, divertida.
— "Estou bem"... — repetiu, zombeteira. — E quase cai na frente de meia corte?
Maomao abriu a boca para retrucar, mas não teve tempo. Um grasnado estrondoso cortou o ar como um trovão. Logo em seguida, a porta escancarou-se e Zhìyuǎn entrou como uma flecha, os olhos faiscando de travessura. Liang vinha logo atrás, tropeçando no tapete, ambos em completa euforia.
— Pega ele! — Zhìyuǎn berrou — O pato vai ser o jantar!
Antes que alguém entendesse, Jofu surgiu em disparada, atravessando o aposento como uma sombra emplumada. As asas batiam com força, derrubando um jarro de porcelana que se estilhaçou no chão.
— Meninos! — Fen Fang surgiu no corredor, esbaforida — Não corram aqui dentro!
Mas os pequenos estavam surdos de tanta excitação.
— Ele é nosso! — Liang protestou, quase se enroscando nos panos que Chue acabara de soltar do hanfu de Maomao.
O caos tomou conta do aposento, Yaling, sentada em um canto com o bebê Guang no colo, ria tanto que lágrimas escorriam pelo rosto. O pequeno gargalhava com a confusão, batendo palminhas como se fosse o maestro daquele espetáculo.
— Peguem o pato! — Zhìyuǎn mergulhou sob a cama, tentando agarrar Jofu, que escapou por um triz.
— Esperem! — Chue ergueu-se num salto, desesperada para cobrir Maomao com os tecidos soltos, mas as crianças tornavam impossível qualquer compostura.
Foi nesse instante que a porta se abriu de novo. Basen entrou, espada à cintura, expressão carregada de autoridade.
— Que bagunça é ess...
Ele parou.
A cena diante de seus olhos era digna de uma pintura de comédia: Maomao envolta apenas em tecidos soltos, o rosto vermelho de embaraço; Lady Lishu rindo até perder o fôlego, apoiada contra a mesa; Zhìyuǎn e Liang engatinhando pelo chão atrás de um pato; Yaling gargalhando com Guang no colo, o bebê eufórico; e Jofu correndo em círculos, grasnando como se zombasse de todos.
— BASEN! — Lishu quase caiu de tanto rir. — Justo você, entrando para salvar o pato, e encontra a Princesa da Lua escondida debaixo de panos!
O guarda fechou os olhos, inspirando fundo como quem tentava reunir paciência, em seguida, avançou sem cerimônia, segurando Zhìyuǎn e Liang cada um por uma orelha.
— Vocês dois, fora daqui. Agora.
— Mas o pato...! — Zhìyuǎn se debateu.
— Fora. — repetiu, e sua voz não admitiu réplica.
Resignados, os meninos foram arrastados para o corredor. Basen, ainda de semblante severo, apanhou Jofu debaixo do braço como se fosse prisioneiro de guerra e, antes de sair, voltou-se para Maomao.
— Perdão por invadir seus aposentos de forma tão indigna Vossa Alteza. — disse, inclinando a cabeça num gesto formal.
Maomao, corada até as orelhas, não conseguiu segurar. Riu. Primeiro baixo, depois acompanhando Lishu e Chue em gargalhadas que dissolveram toda a tensão.
— Apenas... — disse entre risos, abanando a mão. — Apenas não conte nada disso a Jinshi, ele não precisa saber que fui pega assim.
— Oh, ele adoraria saber! — Lishu estava quase sem ar de tanto rir.
— Shh! Ele odiaria saber que o irmão de leite dele viu a Princesa da Lua seminua. — Maomao ergueu o dedo, tentando recuperar a seriedade. — Isso morre aqui.
Basen suspirou, resignado, e saiu empurrando os meninos, enquanto Jofu grasnava vitoriosamente sob o braço dele.
Quando o quarto finalmente mergulhou em silêncio, ainda havia risadinhas abafadas pelo ar. Maomao recostou-se contra as almofadas, exausta, sentindo as mãos trêmulas e o corpo pesado.
— Sabe... — murmurou, com a voz baixa, os olhos se fixando em Lishu como se buscasse coragem ali. — Se esses sintomas persistirem, vou precisar de respostas.
O sorriso leve que ainda pairava nos lábios de Lishu desapareceu. Ela arqueou a sobrancelha, inclinando-se um pouco à frente, como se a tensão na voz de Maomao tivesse atravessado a sala inteira.
— Respostas? — repetiu, agora em tom sério.
Maomao desviou o olhar, respirando fundo, passando a mão pela barriga fazendo um gesto que fez Lady Lishu compreender instantaneamente.
— As cortesãs dos bordéis tinham um método antigo. — disse, num fio de voz, quase em confidência — Simples... mas eficaz. Eu vou tentar.
Lishu endireitou a postura, os olhos se estreitando em concentração. Sem hesitar, aproximou-se e sentou-se ao lado de Maomao, tão perto que os joelhos quase se tocavam. O ar leve de antes havia desaparecido por completo, substituído por uma gravidade que deixava a atmosfera densa.
— E se o resultado for positivo? — perguntou, firme, sem rodeios.
O silêncio que se seguiu caiu como um véu espesso, sufocante. As lamparinas vacilaram com a corrente de ar, lançando sombras instáveis sobre o rosto de Maomao, ela fixou os olhos nas próprias mãos, percebendo o tremor sutil que insistia em denunciá-la. Por mais que tentasse controlar, a verdade pulsava sob a pele.
As lembranças vieram como golpes sucessivos: os olhares inquisidores da corte, os sussurros venenosos que sempre a seguiam, o peso sufocante de responsabilidades que nunca escolhera carregar. E agora, talvez, algo muito maior que si mesma.
— Então... — sussurrou, quase como se falasse apenas para si. — A minha vida mudará de novo.
A última palavra mal conseguiu escapar, quebrando-se no ar como um segredo que se recusa a permanecer escondido.
Dentro dos aposentos, Maomao ajeitava uma pequena mesa baixa, limpando o espaço com precisão cirúrgica. Sobre ela, dois recipientes de barro repousavam, cada um contendo grãos separados — cevada em um, trigo no outro.
Lishu a observava deitada de lado sobre as almofadas, com o queixo apoiado na mão.
— Então... é esse o tal “método infalível” das cortesãs? — perguntou, o tom de voz carregado de curiosidade e sarcasmo na medida certa.
Chue, mais prática, inclinou-se sobre os recipientes.
— Você está me dizendo que basta... urinar nos grãos? É sério isso?
Maomao suspirou, já se arrependendo de ter revelado o plano.
— É mais complexo do que vocês fazem parecer. A reação dos grãos indica a vitalidade... e sim, foi usado por gerações inteiras antes de nós.
Lishu riu baixinho.
— Na minha terra, as velhas diziam que bastava observar os sonhos da mulher. Se ela sonhasse com romãs, era gravidez certa.
— Se dependesse de sonhos, metade do palácio estaria grávida toda noite — resmungou Chue, fazendo Maomao soltar um sorriso contido.
Determinada, Maomao ergueu o olhar.
— Agora silêncio. Preciso me concentrar.
Ela pegou os recipientes e desapareceu atrás de um biombo improvisado, o som de tecidos arrastando-se e o leve barulho de líquido contra o barro ecoaram no ambiente. Lishu e Chue trocaram olhares cúmplices, ambas lutando para não rir.
— Parece uma cerimônia secreta. — cochichou Lishu, tapando os lábios com a manga do hanfu.
— Mais para uma bruxaria de bordel. — respondeu Chue, sem cerimônia, arrancando uma risadinha abafada da princesa.
Quando Maomao voltou, carregava os recipientes com extremo cuidado, como se fossem peças raras de laboratório. Colocou-os sobre a mesa e ajeitou-se diante deles, os olhos estreitos fixos nos grãos úmidos.
— Agora... esperamos.
Lishu esticou o pescoço.
— Esperamos o quê? Que brotem flores imediatamente.
— Não. — Maomao cruzou os braços. — Mas se germinarem rápido, se tornarem mais verdes do que o normal... significa que há vida.
Chue bufou.
— Parece superstição.
Maomao arqueou uma sobrancelha, sarcástica.
— É fácil falar... — murmurou Maomao, encostando a nuca na cadeira, exausta. — Mas se eu cair desmaiada amanhã de enjoo, vai ser você correndo atrás de decocções para me salvar.
O silêncio que se seguiu pareceu mais pesado que a própria frase. O único som audível era o crepitar da lamparina na mesa, estalando como se quisesse preencher o vazio.
Lishu, até então pensativa, inclinou levemente a cabeça e deixou o olhar vagar para os recipientes sobre a bancada, como se buscasse uma resposta nas sombras que dançavam ao redor.
— Se isso confirmar... — disse, a voz baixa, quase hesitante. — O que você vai fazer, Maomao?
A pergunta não veio com zombaria ou ironia, apenas com uma suavidade que fazia doer.
Os dedos de Maomao tamborilaram na borda da mesa, num gesto de quem procura firmeza no próprio corpo. Seus olhos, semicerrados, refletiam a luz amarela do óleo queimando.
— Continuar com a minha vida. — respondeu, após uma pausa longa, que soou quase como uma resistência. E acrescentou, num tom mais baixo: — Mas... de forma mais cuidadosa.
Chue bufou, cruzando os braços e sacudindo a cabeça, incapaz de esconder o peso que sentia por trás daquela resposta contida.
— “Continuar”... como se fosse simples. — rebateu, firme, os olhos fixos nela — Você não é só você, Maomao. Carrega o Príncipe da Lua, o Imperador, as Imperatrizes, as princesas... todos dependem da sua cabeça fria.
A rigidez da fala de Chue pairou no ar, quase como uma repreensão, mas antes que se transformasse em algo mais cortante, Lishu se aproximou e pousou a mão delicadamente no braço de Maomao. O gesto foi simples, mas desarmou a tensão.
— E terá a nós também. — disse, com um sorriso pequeno, mas cheio de firmeza. — Não finja que está sozinha.
Maomao desviou o olhar, fixando-o nos grãos de ervas espalhados sobre a mesa, fingiu indiferença, mas os olhos denunciavam um brilho úmido sob a luz tênue. Uma vulnerabilidade que raramente deixava escapar.
— Vamos ver... — murmurou, mais para si que para elas. — Se esses métodos antigos ainda sabem guardar segredos.
Recostou-se na cadeira, cruzando as pernas com um gesto calculado, como quem tentava recuperar o controle da própria postura. O silêncio voltou a se instalar, pesado mas não hostil.
Lishu e Chue não disseram mais nada, spenas permaneceram ali, ao lado dela, em expectativa silenciosa, como se todas três estivessem espiando juntas o destino germinar diante de seus olhos — e aguardando, sem pressa, que o tempo revelasse a resposta.
[. . .]
O sol mal havia se levantado, e os primeiros raios atravessavam as janelas de papel de arroz, tingindo o quarto com um dourado suave. O cheiro fresco da madrugada ainda pairava no ar, misturado ao aroma discreto das ervas que Chue havia deixado queimando durante a noite.
Maomao se aproximou da mesa com passos silenciosos, o coração acelerado de um jeito que nem ela sabia controlar. Os recipientes de barro estavam lá, onde os deixara, os grãos úmidos de cevada e trigo agora exibiam pequenas hastes verdes, frágeis, mas vivas, despontando como se quisessem anunciar um segredo ao mundo.
Ela ficou imóvel por alguns instantes, os olhos semicerrados, como se precisasse confirmar se aquilo não era fruto de um sonho. Aproximou-se mais, passou os dedos levemente sobre a borda do recipiente e então, com um sopro de ar preso na garganta, deixou escapar:
— Germinaram...
Chue, que estava sentada perto da janela, levantou-se e cruzou os braços, aproximando-se devagar.
— Então... é mesmo isso.
Lishu, ainda enrolada em tecidos claros, deu um passo apressado, os olhos brilhando de curiosidade.
— Mostre!
Quando ela viu os brotos verdes despontando da terra úmida, levou a mão aos lábios e depois, num gesto espontâneo, agarrou a mão de Maomao.
— Está grávida. — disse com uma convicção quase infantil, um sorriso se abrindo em seu rosto.
Maomao, por um instante, deixou a racionalidade de lado. Sentou-se devagar sobre as almofadas e pousou uma das mãos na barriga ainda plana. O gesto foi sutil, quase tímido, mas carregado de uma ternura silenciosa.
— Um bebê... — murmurou, sem perceber que dizia em voz alta. — Um filho só nosso...
Chue arqueou uma sobrancelha, mas havia um calor suave em seu olhar.
— Então até você consegue admitir isso em voz alta. Pensei que iria disfarçar até para si mesma.
Maomao soltou um riso baixo, abafado, e desviou os olhos.
— Não é de meu feitio ser melodramática. Mas... — voltou a fitar os brotos — é impossível não sentir algo diante disso.
Lishu não resistiu: inclinou-se para abraçá-la de lado, apertando-a com cuidado, como se temesse machucá-la.
— É maravilhoso, Maomao! — exclamou, o sorriso largo iluminando seu rosto. — Você merece isso.
Chue suspirou, mas acabou cedendo ao impulso, juntando-se ao abraço, envolvendo as duas com seus braços fortes.
— Pois bem... teremos mais um pestinha para zelar e cuidar além do príncipe Liang e os irmãos da senhora Alteza.
Maomao riu, tímida, mas não se afastou, pelo contrário, por alguns segundos fechou os olhos, permitindo-se ser envolvida naquele calor inesperado.
Depois, retomou sua calma habitual, embora a voz ainda tremesse de leve quando falou:
— Escutem bem. Quero que se preparem para o momento certo. Quando Jinshi voltar... — fez uma pausa, os dedos deslizando inconscientemente pela barriga — eu contarei a ele, mas até lá, esse assunto fica entre nós três.
Lishu assentiu rápido, os olhos marejados de alegria.
— Prometo guardar segredo.
Chue também acenou, séria, como uma guarda leal.
— E eu. Nenhuma palavra até que você decida.
Maomao respirou fundo, deixando que a emoção lhe aquecesse o peito. Pela primeira vez em muito tempo, sentia-se não apenas observadora da vida alheia, mas protagonista de algo que florescia dentro dela.
Os brotos verdes continuavam ali, frágeis mas firmes, como o prenúncio de um futuro que começava a se formar — um futuro que agora, inevitavelmente, a unia ainda mais a Jinshi.
[. . .]
No quarto silencioso, o cheiro suave de incenso misturava-se ao farfalhar dos tecidos sendo ajustados. A jovem princesa Jin-Ye permanecia sentada diante de um biombo envernizado, permitindo que a irmã mais nova, Lingli, a ajudasse a vestir-se.
A luz das lamparinas ressaltava a pele alva de Jin-Ye e o contraste marcante de seus cabelos violetas soltos sobre os ombros, logo presos em um coque simples e masculino, como exigia o disfarce. Seus olhos vermelhos, de brilho intenso, carregavam aquela mesma beleza andrógina que marcava os irmãos Jinshi e Jiang — feições finas, delicadas, mas de contornos firmes, capazes de se adaptar tanto à suavidade feminina quanto à rigidez masculina.
— Isso é uma loucura, Jie Jie. — Lingli resmungou, apertando a faixa azul-escura sobre a cintura da irmã, talvez com mais força do que o necessário. Seus cabelos rosados, trançados de maneira prática, balançavam quando ela se inclinava, e os olhos verdes brilhavam em impaciência. — Você não é mais uma criança para brincar de se disfarçar de menino. Agora é adulta, já deveria se portar como tal.
Jin-Ye, com um meio sorriso provocativo, ajeitou as mangas largas da túnica.
— E desde quando meus irmãos se portaram como tal? — rebateu, arqueando a sobrancelha — Jiang e Jinshi várias vezes se disfarçaram de concubinas só para escapar das responsabilidades do trono. E ninguém ousou chamá-los de infantis.
Lingli bufou, mas não conseguiu disfarçar o rubor leve no rosto.
— Isso é diferente! Você… você está se vestindo como um eunuco. Vai chamar atenção de qualquer jeito.
— Só se alguém olhar demais. — respondeu Jin-Ye, afagando o próprio estômago em gesto zombeteiro — Talvez até pensem que andei exagerando na comida… nada mais.
— Você está realmente mais gordinha mesmo. — comentou Lingli, semicerrando os olhos, embora fosse mais crítica do que sincera — Mas ainda assim, é arriscado.
Jin-Ye se aproximou dela, pousando a mão sobre os ombros da irmã. Sua expressão suavizou-se por um instante.
— Guarde segredo, Lingli. Não é apenas uma travessura… eu só quero um pouco de paz. Só isso.
Na verdade, seu coração batia mais rápido do que deixava transparecer. A “paz” que buscava estava à espera em um ponto cego dos corredores do palácio, onde nenhuma sentinela ousava se demorar. Ali, Lahan estaria.
Lingli suspirou fundo, ajustando o chapéu simples que escondia os fios violetas da irmã.
— Eu ainda acho errado… mas se vai mesmo, ao menos caminhe como homem. Ou todos notarão.
Jin-Ye sorriu, o vermelho de seus olhos faiscando entre malícia e ansiedade.
— Caminhar como homem eu aprendi observando nossos irmãos. O resto… eu mesma dou conta.
Lingli revirou os olhos, terminando de amarrar a última faixa, afastando-se um passo e cruzou os braços, examinando a irmã com olhar crítico. Jin-Ye ergueu o queixo, deixando que a sombra do capuz caísse sobre o rosto, disfarçando a intensidade de seus olhos vermelhos. A androginia natural de suas feições fazia o disfarce funcionar com surpreendente perfeição: o maxilar delicado, mas não suave demais; o nariz reto e elegante; e os lábios finos, que em meio à neutralidade do semblante poderiam facilmente ser confundidos com os de um jovem estudioso ou mesmo de um eunuco reservado do palácio.
— Hmph. Incomoda-me admitir, mas você realmente parece um rapaz — Lingli resmungou, apertando os lábios. — Só que ainda enxergo sua teimosia de princesa mimada.
— Ótimo — Jin-Ye inclinou-se, olhando-se rapidamente no espelho de bronze. — Que acreditem que sou apenas um eunuco teimoso, é tudo o que preciso.
Lingli se aproximou outra vez, segurando-lhe os ombros com força.
— E se descobrirem? E se o papai e a mamãe souber? Vai ser punida severamente, Jin-Ye. Você acha que ele vai rir como quando Jinshi e Jiang brincavam de se vestir de concubina? Eles eram homens… herdeiros. Você é mulher.
Por um instante, Jin-Ye sustentou o olhar da irmã sem piscar. Havia em seus olhos um brilho de desafio, mas também uma centelha de dor oculta.
— É exatamente por isso que faço isso. Todos os meus passos são vigiados. Todas as minhas palavras pesadas. Não posso dar um suspiro sem que alguém interprete como capricho ou rebeldia. Só quero respirar. Só quero um instante sem olhos sobre mim.
Lingli hesitou. As palavras da irmã a atingiram mais fundo do que gostaria de admitir.
— E se esse “instante” envolver aquele soldado? — ela questionou em tom mais baixo, quase num sussurro. — Você pensa que eu não percebi? Esse tal de Lahan… sempre espreitando as sombras onde você passa.
Jin-Ye conteve o ímpeto de sorrir, mordendo levemente o lábio. Fingiu arrumar as mangas largas do traje para desviar o olhar.
— Não fale o que não sabe, irmãzinha.
Lingli estreitou os olhos verdes, mas não insistiu. Em vez disso, estendeu a ela um anel simples de jade esverdeado.
— Leve isto. Se alguém desconfiar, mostre-o. Dirão que pertence a mim, e talvez lhe deem passagem.
Jin-Ye recebeu o anel e segurou a mão da irmã por um breve instante.
— Obrigada. E lembre-se… silêncio absoluto.
Lingli suspirou, exasperada, e virou-se de costas.
— Vá logo, antes que eu me arrependa de ajudá-la.
Encoberta pelas roupas masculinas, Jin-Ye deslizou pelas portas laterais do aposento, sentindo o coração bater com mais força. Cada passo era um risco, mas a promessa de encontrar Lahan nos corredores ocultos do palácio era mais forte do que o medo.
Ela desapareceu na penumbra, e Lingli ficou sozinha, olhando para a porta entreaberta, murmurando para si mesma:
— Jin-Ye é uma idiota como o Jiang com as servas… um dia, esse jogo vai custar caro. — murmurou afundando o rosto em meio as mãos.
O sol da tarde filtrava-se em faixas douradas entre as frestas dos corredores, mas ali, no ponto cego onde as patrulhas não passavam, tudo parecia suspenso. Jin-Ye caminhava firme, os passos controlados para não chamar atenção, mas seu coração denunciava a pressa em chegar.
Da sombra surgiu Lahan, recostado a um pilar de madeira. Não vestia armadura completa, apenas o uniforme simples dos estrategistas, a faixa presa ao peito e o olhar intenso que sempre a desarmava.
— Você veio. — disse ele, a voz baixa, carregada de um alívio que fazia contraste com sua postura calculada.
Jin-Ye ergueu o rosto, escondido sob o disfarce de eunuco.
— E você duvidava?
Lahan deu alguns passos à frente, os olhos deslizando sobre o traje masculino, até parar nos olhos vermelhos que o disfarce não conseguia ocultar. Um sorriso breve lhe escapou.
— Enganaria a muitos… menos a mim.
Antes que ela pudesse responder, a mão dele se ergueu com naturalidade e repousou sobre sua barriga. Jin-Ye conteve o fôlego, surpresa.
— Saudações, pequeno. — murmurou Lahan, como se falasse a alguém invisível. — Que você cresça forte, mas que herde o atrevimento da sua mãe.
Jin-Ye riu, abafando o som contra a própria mão.
— Você fala como se já fosse pai há anos.
Ele riu também, um som raro, sincero, que ecoou baixo entre as paredes de pedra.
— Talvez eu esteja ensaiando. — seus olhos encontraram os dela, sérios agora — Em breve falarei com o Imperador, não quero que continuemos nas sombras.
O coração de Jin-Ye se agitou, mas ao invés de responder com palavras, ela agarrou a gola da túnica dele e o puxou para si. Os lábios se encontraram com urgência, e por um instante o mundo deixou de existir.
Lahan retribuiu o beijo com delicadeza primeiro, as mãos firmes segurando-lhe a cintura, como se temesse que ela escapasse, mas Jin-Ye não era de recuar: ousada, pressionou-se contra ele, aprofundando o beijo, roubando-lhe o fôlego.
Ele sorriu entre um beijo e outro, deslizando a mão para acariciar-lhe a nuca.
— Você sempre tão impetuosa… — sussurrou, antes de capturar os lábios dela novamente.
— E você sempre tão doce… — retrucou Jin-Ye, ofegante, mordiscando-lhe o lábio inferior em provocação.
Aos poucos, os beijos tornaram-se mais lentos, íntimos, recheados de promessas silenciosas. Lahan encostou a testa na dela, fechando os olhos.
— Um dia… não precisaremos mais de disfarces, nem de pontos cegos.
Jin-Ye sorriu, desafiadora mesmo na ternura.
— Então corra, estrategista, fale com meu pai. Traga-nos a liberdade.
Ele a beijou mais uma vez, como um voto selado no segredo daquelas paredes. E, por um momento, a princesa não era uma fugitiva disfarçada, nem ele apenas um soldado. Eram apenas dois corações teimosos, lutando pelo direito de amar.
As palavras ainda pairavam no ar — “Traga-nos a liberdade” — quando Lahan a puxou de volta para si, selando a promessa em outro beijo. Mas desta vez não havia mais pressa; era um beijo demorado, profundo, no qual cada movimento parecia guardar tanto desejo quanto cuidado.
Jin-Ye entreabriu os lábios, permitindo que o dele se moldasse ao seu com mais firmeza. O gosto doce e quente do momento a fez estremecer, e ela retribuiu com ousadia, mordiscando de leve antes de puxá-lo para mais perto. Suas mãos, antes fechadas em punhos contra o peito dele, escorregaram pela nuca e depois pela linha de seus ombros, sentindo a solidez do estrategista que tantas vezes se escondia sob camadas de disciplina.
Lahan soltou um riso baixo contra a boca dela, como se fosse impossível resistir ao jeito atrevido da princesa. Seus dedos se demoraram em sua cintura, mas logo subiram pelo contorno das costas, traçando círculos lentos por cima da túnica. — Você me deixa sem defesas, Jin-Ye — murmurou, a voz rouca pelo desejo contido.
Ela afastou-se apenas o suficiente para fitá-lo com seus olhos vermelhos faiscantes, um sorriso desafiador nos lábios.
— Ainda bem. Porque eu quero ver o estrategista perder todas as batalhas quando estiver diante de mim.
Ele arqueou uma sobrancelha, fingindo indignação, mas não resistiu: inclinou-se e começou a beijar-lhe a linha do maxilar, depois a curva sensível abaixo da orelha. Jin-Ye suspirou, arqueando o corpo para mais perto, seus dedos enroscando-se no cabelo dele.
— Lahan… — seu sussurro escapou carregado de calor.
O toque dele desceu pela lateral de seu corpo, explorando a curva sutil de sua cintura até retornar à barriga. Ele pousou a mão ali de novo, acariciando com ternura.
— É por nossa família que irei falar com o Imperador e logo estaremos em nossa casa com nosso filho. — disse, como uma promessa solene, antes de beijar-lhe a boca outra vez.
Jin-Ye, arrebatada pelo misto de segurança e ousadia que ele lhe proporcionava, entreabriu os lábios e aprofundou o beijo, intensa e destemida. As línguas se encontraram num compasso íntimo, ora lento, ora faminto. Lahan a segurava firme, mas sua ternura se mantinha constante; cada carícia, mesmo mais ousada, tinha o cuidado de quem não queria ferir, apenas se entregar.
O tempo parecia ter parado ali.
Os corredores seguiam desertos, e só o som abafado dos beijos e respirações preenchia aquele canto secreto do palácio.
Quando finalmente se afastaram, ofegantes, Lahan encostou a testa na dela, os olhos fechados como se quisesse gravar cada detalhe daquele instante.
— Um dia, princesa, não teremos de nos esconder.
Jin-Ye sorriu, ainda com a respiração acelerada, e mordeu o próprio lábio antes de provocá-lo mais uma vez:
— Pois trate de vencer essa guerra logo, estrategista. Porque eu não pretendo esperar para sempre.
Ele riu, e o som, suave e apaixonado, ecoou como uma promessa de que voltariam a se encontrar, até que o mundo finalmente os permitisse viver à luz do dia.
— Preciso ir antes que alguém nos veja — murmurou ele, os lábios quase roçando a orelha dela.
— Eu sei… — respondeu Jin-Ye, lutando para manter a voz firme, enquanto o coração batia descompassado.
O corredor inteiro parecia suspenso, como se o tempo tivesse parado. Lahan inclinou-se, e seus olhos encontraram os dela com intensidade, transmitindo tudo o que não podiam dizer em voz alta. Por um instante, ele acariciou, discretamente, a barriga dela, como se despedisse do bebê, e um sorriso breve, contido, escapou de seus lábios. Jin-Ye não pôde deixar de rir silenciosamente, o som preso entre eles.
— Prometa que vai me esperar. — disse ele, a voz baixa, carregada de urgência e afeto.
— Prometo. — respondeu ela, sentindo o peso daquela promessa selada em silêncio.
Os corpos se afastaram, mas antes que Lahan desaparecesse na penumbra do corredor, ele inclinou-se e pressionou os lábios nos dela, num beijo rápido, mas cheio de significado. Um toque que guardava saudade, desejo e a certeza de um reencontro futuro.
Quando se separaram, cada um recuou para as sombras, evitando olhares curiosos. O corredor estava vazio novamente, mas o eco daquele toque permanecia no ar, invisível para todos, exceto para eles. Um fio invisível os ligava, frágil e forte ao mesmo tempo, prometendo que, apesar da distância e do perigo, aquele encontro não seria o último.
Jin-Ye apressava-se pelos corredores, cada passo ecoando sobre o piso polido. A adrenalina do encontro com Lahan ainda pulsava em seu peito, e ela mal percebia a própria velocidade, cabeça baixa, tentando não chamar atenção.
Foi quando se esbarrou abruptamente em Maomao e Basen, que caminhavam lado a lado rumo a mais uma reunião política.
De imediato, Maomao a reconheceu. Um brilho divertido surgiu em seus olhos, e ela tampou a boca com a mão, lutando para não rir, mantendo uma postura séria o suficiente para não levantar suspeitas. Jin-Ye continuava com a cabeça abaixada, fingindo não perceber nada, tentando não transparecer a urgência de seus passos.
— Ei, você! — gritou Basen, surpreso ao se deparar com o “eunuco”. — Por que não pede desculpas? Você derrubou a Princesa da Lua!
Jin-Ye respirou fundo, inclinando-se ligeiramente para cumprir a formalidade. Estava prestes a se desculpar, quando Maomao não conseguiu mais conter o riso.
— Basen! — explodiu em gargalhadas, inclinando-se para frente no corredor. — Você está pedindo desculpas à pessoa errada! Essa é… a princesa Jin-Ye, disfarçada!
O grito de surpresa fez Basen se recompor imediatamente. Ele se curvou respeitosamente em direção à princesa, agora ciente da situação:
— Minhas sinceras desculpas, Alteza! — disse, mantendo a reverência, enquanto ela acenava com as mãos, tranquila, dizendo que estava tudo bem. — Volte à sua posição normal, ninguém pode saber sobre meu disfarce.
Maomao não conseguiu evitar mais risadas, o som ecoando pelo corredor silencioso do palácio. Aproximando-se mais, ela comentou, ainda sorrindo:
— Sério… se você mudasse a cor dos olhos, Jin-Ye, seria a cara do Jinshi! Parece até uma mistura perfeita dele com Jiang, só que numa versão mais feminina.
Jin-Ye manteve a cabeça baixa, mas não pôde deixar de sentir um rubor subir às bochechas. O corredor, antes tenso com passos apressados e encontros inesperados, agora parecia carregar uma aura de leveza e cumplicidade silenciosa.
Jin-Ye não esperou por mais nada. Com o coração ainda acelerado pelo encontro com Lahan e agora pela intervenção de Maomao, ela retomou os passos apressados pelos corredores. Cada movimento era calculado, mas a sensação de quase ter sido descoberta fazia com que cada sombra parecesse uma ameaça.
Maomao, por sua vez, seguiu o seu ritmo, caminhando atrás dela com um sorriso malicioso que denunciava o quanto estava se divertindo com a situação.
— Você viu a cara do Basen? — disse Maomao, quase rindo, mas mantendo um tom baixo para que ninguém mais ouvisse. — Ele parecia prestes a desmaiar!
Jin-Ye manteve a cabeça abaixada, respirando fundo. Por dentro, uma mistura de nervosismo e divertimento a consumia. Quase não conseguia acreditar que Maomao tinha descoberto seu disfarce tão facilmente, mesmo que apenas a Basen. Cada passo ecoava no corredor silencioso, e ela apertou levemente as mãos contra o capuz, tentando controlar a respiração e a sensação de vulnerabilidade.
— Maomao… — murmurou, a voz firme, mas carregada de alerta — isso é sério! Ninguém pode saber. Ninguém!
— Eu sei, eu sei! — respondeu Maomao, rindo baixinho.
Jin-Ye soltou um suspiro silencioso, quase sorrindo, mas o nervosismo voltava a dominá-la.
O corredor parecia interminável. Cada porta, cada arco, cada lanterninha lançando sombras parecia conspirar para que fosse descoberta. Mas, mesmo com o medo pulsando em suas veias, Jin-Ye sentia uma faísca de excitação — a sensação de quase ser pega, o risco, e a lembrança do toque e do olhar de Lahan ainda queimando na pele, como se os segundos do encontro tivessem deixado um rastro invisível de calor.
Enquanto Jin-Ye desaparecia pelos corredores do palácio, cada passo ainda carregava a tensão do encontro com Lahan e a adrenalina do segredo prestes a ser revelado. No ar, permanecia o rastro do riso contido de Maomao, da pressa de Jin-Ye, da promessa silenciosa que os unia, mas o mundo lá fora continuava implacável.
Na Província Ocidental, a cena era silenciosa e austera, os príncipes realizavam uma vigília junto ao corpo, mantendo-se imóveis, como se a própria respiração pudesse perturbar o peso da perda. Em meio às cortinas e tapeçarias, resolviam parâmetros políticos, tomavam decisões com gestos contidos, sem palavras, cada movimento carregado de formalidade e responsabilidade. Mas por baixo da compostura, a fragilidade de Jinshi e Jiang era evidente: mãos que tremiam, ombros que se curvavam, olhares perdidos que traíam o peso da dor e da impotência diante do destino dos irmãos mortos.
O contraste com o palácio não podia ser mais cruel, enquanto a política arrancava vidas e forçava os corpos a permanecerem rígidos sob o jugo da obrigação, Maomao sentia o calor silencioso da vida crescendo dentro dela, a alegria serena de uma nova existência que se formava. Cada toque na barriga, cada pensamento sobre o bebê, era um sopro de esperança e felicidade que atravessava os corredores do palácio, alheia à brutalidade que se desenrolava longe dali.
A medida que uma vida florescia escondida em Maomao, cheia de promessas e ternura, na Província Ocidental a política ceifava vidas jovens, deixando apenas a fragilidade e o silêncio pesado dos que permaneciam. Entre nascimento e morte, esperança e dor, cada gesto carregava o peso das escolhas e a lembrança de que nenhum coração podia permanecer imune a dor mundo que se movia ao seu redor.
Chapter 25: O Palácio em Colapso
Notes:
Acho que todo esse capítulo está extremamente pesado e delicado, quem leu as tags leu.
Tentei não pesar a mão, mas pesei, ainda não ficou da forma como eu queria que ficasse, sinto que não me dediquei o suficiente pra esse capítulo, mas espero que gostem e apreciem a leitura.
Estarei acompanhando os comentários e respondendo.
Boa Leitura :))))
Chapter Text
Palácio Imperial — País de Li
O corredor estava imerso pela penumbra da noite, iluminado apenas por uma lamparina que ardia fraca, quase morrendo, Maomao, meio desperta pela sensação incômoda de vigília constante que a perseguia desde a ausência de Jinshi, levou a mão instintivamente ao baixo ventre. Não era um gesto consciente, apenas um reflexo. Grávida de pouco mais de um mês, talvez dois, ela ainda mal conseguia acreditar que dentro dela havia uma vida tão frágil novamente.
A princesa não havia percebido de imediato quando a porta deslizou com um rangido contido demais para ser acidental.
Três homens, trajando uniformes de oficiais do palácio, entraram com passos certeiros, como sombras que conheciam cada canto do lugar, o brilho metálico de adagas refletiu na meia-luz.
— Se gritar… — o primeiro murmurou, a voz grave roçando como uma lâmina no silêncio — …as duas mulheres e a criança do quarto ao lado serão as primeiras a morrer.
O sangue de Maomao gelou.
Seu olhar correu para a porta que separava o cômodo onde dormia o bebê, tão inocente, tão indefeso. O corpo reagiu em sobressalto: a mão pousou de novo sobre a barriga, dois mundos frágeis, dentro e fora dela, dependiam do seu silêncio.
Zhìyuǎn foi o primeiro dos irmãos a se erguer, assustado, ainda sonolento, recebeu de imediato o peso seco de um tapa que o jogou de volta a cama. O estalo ecoou no quarto, Fen Fang, tentando proteger o irmão mais novo, levantou-se em desespero, apenas para ser contida brutalmente por outro dos intrusos. Yaling, a menor, choramingou sem entender, agarrando-se à manga da irmã mais velha.
— Não! — Maomao tentou avançar, mas uma mão áspera a agarrou pelos cabelos e a jogou contra a parede, a dor explodiu em sua cabeça, a visão piscou em preto e vermelho. Um segundo depois, veio o impacto seco de um soco atravessando-lhe o rosto. O gosto do sangue se espalhou pela boca. O baque reverberou direto em seu ventre, e um pânico novo tomou conta: o medo de perder o bebê antes mesmo de poder protegê-lo.
Ela tentou manter a calma, lembrando-se das vezes em que estudara plantas venenosas, dos efeitos do medo sobre o corpo humano — taquicardia, suor frio, paralisia. Mas nenhum manual preparava alguém para o terror de ver os irmãos sendo tratados como fardos descartáveis, nem para o instinto de mãe que começava a despertar em si, exigindo que sobrevivesse a qualquer custo.
— Coloquem cordas neles. — ordenou o que parecia liderar o grupo.
Zhìyuǎn se debatia, mas um chute no abdômen o fez gemer, dobrando-se como uma folha ao vento, Fen Fang tentava manter a compostura, os olhos marejados de raiva e desespero, enquanto os punhos pequenos eram forçados para trás, amarrados com cordas ásperas que queimavam a pele. Yaling soluçava, chamando baixinho por Maomao, como se a irmã pudesse afastar aquelas sombras só com palavras.
“Calma. Se eu reagir agora, eles morrem. Eles todos morrem e eu… eu não posso perder esse bebê…”
O pensamento latejava em sua mente, cada vez mais desesperado, enquanto mãos brutais prendiam seus pulsos e a arrastavam pelo chão.
As portas foram abertas em silêncio ensaiado, e, um a um, eles foram arrastados pelos pontos cegos do palácio, como se alguém tivesse estudado previamente cada rota escondida dos guardas. O chão frio arranhava a pele dos pés descalços, os grilhões de silêncio apenas quebrados pelo soluço contido de Yaling e pelo rangido das cordas.
O ar noturno atingiu seus rostos quando saíram para o pátio lateral, do outro lado da muralha, sob a sombra das árvores, uma carruagem fechada os aguardava — tão discreta quanto uma emboscada perfeita.
Empurrados para dentro, Maomao tentou observar, contar respirações, memorizar vozes, odores — qualquer pista que pudesse mais tarde se tornar uma arma. Mas, por ora, tudo que podia fazer era inspirar fundo, segurar as lágrimas para não abalar as crianças e sussurrar em silêncio para si mesma:
“Sobreviva. Aguente. Ache uma brecha. Proteja eles e proteja o bebê.”
[. . .]
A madeira rangeu, fechando-se atrás deles com um sopro abafado que cheirou a ferrugem e couro velho. No espaço estreito da carruagem, a escuridão era quase absoluta — apenas fissuras por onde a lua fazia listras pálidas sobre os corpos amarrados. O ar estava quente, pesado pelo cheiro de couro úmido, pelo suor dos homens e por um traço de poeira de estrada. O ruído cadenciado das rodas batendo na pedra transformou-se num tambor inquietante que ditava cada segundo.
Maomao sentiu a carruagem tremer quando alguém empurrou o tampo que servia de assento improvisado; as cordas que prendiam seus pulsos já a queimavam, mas foi o contato com o peito que a obrigou a reavaliar a dor: o corpo dentro dela, pequeno e silencioso, enviou um sussurro de alerta que ela atendeu com a mesma ferocidade de quem protege um nome sagrado. Não havia como mostrar isso agora. As mãos que haviam encontrado o ventre antes ficaram presas, e ela fez delas um esconderijo de silêncio.
— Fiquem quietos. — murmurou, a voz fina como um fio de seda cortado, mas ainda mais firme do que ela se sentia. Zhìyuǎn, ainda zonzo do tapa, apertou os olhos, Fen Fang havia prendido a respiração ao ver o rosto da irmã molhado de sangue seco, Yaling abraçava um pequeno brinquedo de pano com força absurda, os olhos queimando. A calma de Maomao precisava ser crença para os outros, e ela o forjou com precisão. Apertou o que restava de coragem como se fosse um dente, não deixando que tremesse.
Ao seu lado, um dos sequestradores encostou-se ao interior da carroça, os ombros largos recortados contra a fresta de luar. Era um homem de fala baixa e pernas curtas; o perfil revelou uma cicatriz que cortava o lóbulo da orelha, outra voz — mais aguda, com um rastro de fruta e alho no hálito — discutia rotas com alguém que rangia as palavras como se não quisesse que sobrasse eco. Maomao começou a catalogar tudo: o jeito que um deles mordia o lábio quando se irritava, o som das chaves penduradas numa corrente, como o couro do banco cheirava a sebo antigo. Cada detalhe era uma linha para costurar depois, uma pista possível para perseguição ou vingança.
Os dedos de Zhìyuǎn tremiam quando encontrou os dela, ele não perguntou nada buscou apenas segurança na sua mão, como se um toque pudesse apagar o mundo cruel à volta. Maomao apertou de volta, transmitindo — sem palavras — que estava ali. Que não iria soltá-los. Por dentro, um turbilhão: o medo de que um solavanco partisse aquilo que ainda não havia nascido; a imagem de Guang no quarto ao lado se sobrepunha às memórias de neve de Jinshi ausente, e uma raiva silenciosa florescia. Mas nada disso podia transparecer. Não ainda.
— Shhh. — sussurrou ela para Yaling, inclinando o rosto — Dorme um pouco... Tente contar até dez.
A menina obedeceu, não por acreditar na ordem, mas por reconhecer na irmã um porto, o soluço contido de Fen Fang vacilou, e então seqüestrada pelo sono ou pela exaustão, a criança cedeu a uma respiração mais longa. Maomao aproveitou cada fôlego contido para mapear a carruagem: a tábua solta perto do pé dele, o prego exposto que poderia, com sorte, servir de alavanca; um entrelace de cordas que parecia ter sido feito às pressas — nó simples, não marinheiro; o cheiro de ervas no casaco de um dos rapazes, talvez para disfarçar odores, talvez para manter as mãos firmes.
Por um momento, o estômago deu um nó tão forte que pensou ter desmaiado, Maomao conteve o som entre os dentes, fechando a garganta. Deixou que a respiração baixasse, contando internamente: cinco segundos de inalação, cinco de exalação. Respirar assim era mais que respiração — era estratégia.
A carruagem sacudiu, e a voz grossa do líder ecoou por trás de um pano que cobria parcialmente a abertura.
— Não tentem nada. Em algumas horas estaremos bem longe do País de Li princesa. — “Território distante.”, a palavra fez o mundo apertar.
Significava estradas longas, vigílias alheias, gente para a qual ninguém ali lhes faria perguntas, significava perder a linha entre o que conheciam e o que restaria deles.
Maomao inclinou a cabeça, fingindo desmaio leve — uma tática que sugeria fraqueza e talvez amolecesse a guarda. Não era verdade, cada músculo seu acordou para observar, se conseguisse ancorar vozes a rostos, teria mais que um mapa — teria um dossiê.
Maomao contou cada solavanco da carroceria como quem mapeia passos, o destino provável — um casebre endurecido por ventos e silêncio, com poucas janelas e portas trancadas, mantido por um senhor que recebera ordens e pouco se importaria com os lamentos — fazia seu estômago apertar. Portas de madeira, correntes, um pátio cercado por paliçadas: imagens que ela tecia silenciosamente, cada uma contendo riscos e, ao mesmo tempo, possibilidades de fuga, caso soubesse como aproveitá-las.
Enquanto a carruagem rolava por estradas que cortavam terras estranhas e o mundo externo transformava-se em sombras esticadas — mourões, cerca de arame, lagoas escuras — Maomao fechou um pouco os olhos e deixou que seu pensamento fizesse o que o corpo não podia: arquitetar. Memorizou o arranjo das cordas, a maneira como o homem do couro arranhava o polegar numa fivela quando estava nervoso, a posição da fresta por onde a poeira se infiltrava — tudo, para que, se houvesse uma brecha, o fio de silêncio que agora os envolvia pudesse, um dia, ser rompido.
Um tempo depois a carruagem parou com um solavanco seco, levantando poeira que se infiltrou pelas frestas de madeira. O ranger das rodas cessou, substituído pelo som de botas pesadas descendo para o cascalho, o coração de Maomao disparou, o silêncio que se seguiu foi ainda mais terrível, como se o mundo tivesse prendido a respiração.
— Saíam. — a ordem veio ríspida, seguida pelo bater da porta contra a lateral da carroça.
Cordas puxaram, mãos ásperas arrancaram-nos do interior e os jogaram contra o chão frio da madrugada. Zhìyuǎn caiu de joelhos, gemendo baixo, Fen Fang tentou ampará-lo, mas foi empurrada de volta como se fosse nada. Yaling soluçava, apertando o brinquedo de pano contra o peito, o olhar perdido entre a lua e os homens que os rodeavam.
À frente deles, erguia-se a silhueta de uma construção esquecida. Uma estalagem antiga, de paredes gastas e telhado quebrado, agora tomada por sombras e silêncio. As janelas estavam entaladas com tábuas, e uma única porta se mantinha aberta, exalando um cheiro úmido de madeira podre. Era ali que seriam guardados — como prisioneiros sem nome.
Maomao ergueu os olhos, ignorando o gosto do sangue que ainda lhe cortava os lábios. O desespero queimava, mas ela forçou firmeza na voz:
— O que querem de nós?
O homem que parecia liderar o grupo riu, um riso baixo, arrastado, carregado de escárnio, ele se aproximou, inclinando o rosto para que ela visse o brilho cruel nos olhos.
— Não é o que eu quero, menina. É o que já é meu por direito.
Fen Fang arregalou os olhos, confusa, enquanto Zhìyuǎn cerrava os punhos presos, impotente.
— Antes de ser a Princesa Imperial que todos protegem e conhecem, você já tinha um noivo — o homem falou ríspido a encarando irritado — A Lady Kan e o Mestre Lakan prometeram você ao primogênito do Clã Zhaong, um acordo de sangue, foi feito quando ainda não passava de uma criança. — ele tocou a cicatriz na orelha, um gesto que parecia ritualístico, como se evocasse aquele passado enterrado — Mas eles quebraram a promessa quando você completou sete anos, eles traíram o que foi selado.
Maomao sentiu o mundo girar, a mente viajou em memórias nebulosas, lembranças de infância abafadas, nomes que apenas agora ganhavam peso. O corpo estremeceu, mas ela tentou se manter ereta, mesmo com os joelhos afundados na terra fria.
Ele não poderia ser o homem de quem Lahan havia falado nas vésperas do casamento — não, isso parecia absurdo demais para ser verdade. E, ainda assim, a dúvida se infiltrava como uma sombra persistente. Como poderia ela, justamente ela, a mente analítica e racional da casa, ter deixado algo assim escapar? Como não percebera o fio que se estendia diante de si, discreto, mas evidente, desde aquela primeira conversa com Lahan?
Agora, olhando em retrospecto, cada gesto, cada frase dita com naturalidade parecia carregado de um significado oculto, como se o plano todo estivesse ali o tempo inteiro, esperando apenas que ela o enxergasse. E o mais perturbador era admitir que talvez, no fundo, uma parte dela tivesse percebido — mas escolhera ignorar.
Meses tiveram que se passar para que Maomao acreditasse nas palavras do irmão, afinal a única forma de afetar o Clã Kan e o Império atualmente seria sumindo com a Princesa da Lua, levando o reino e a família ao colapso, um Império enfraquecido seria mais fácil de dominar.
[. . .]
"— Estão ameaçando o clã Kan, nossos pais estão tentando segurar a situação para que não atrapalhe o seu casamento... mas pelo que me disseram, o plano de alguns pode incluir sequestrá-la.
Maomao sentiu o coração acelerar, e sua mente imediatamente começou a analisar cada possibilidade, cada risco.
— Se... se isso acontecer comigo? — perguntou, a voz firme, mas carregada de tensão.
— Isso poderia iniciar uma guerra, — respondeu Lahan, sem hesitar. — Um conflito que ninguém quer, mas que alguns grupos radicais poderiam considerar inevitável."
[. . .]
O homem inclinou-se mais, até que o hálito rançoso de álcool e carne seca roçou seu rosto.
— Agora, estou tomando aquilo que é meu por direito. — os olhos dele desceram devagar, numa promessa desprezível.
O riso ecoou pelas paredes velhas da estalagem, como se os próprios fantasmas daquele lugar tivessem se unido à ameaça.
Zhìyuǎn berrou um protesto, recebendo outro golpe que o silenciou, Fen Fang abraçou Yaling, tentando tapar os ouvidos da irmã menor. Maomao, por dentro, sentiu a náusea da dor e da raiva subir até a garganta, mas não deixou as lágrimas caírem. Não diante dele.
Enquanto era arrastada para dentro da construção, ela pensava em apenas uma coisa:
"Preciso sobreviver acima de tudo… e proteger a vida de quem eu amo, nem que para isso eu tenha que me sacrificar para que eles possam viver mais do que eu."
O riso do líder ainda ecoava quando os outros dois homens, de olhares grosseiros e sorrisos torpes, se separaram do grupo. Seus passos pesados não se dirigiram a Maomao, mas sim para os lados, onde Zhìyuǎn, Fen Fang e Yaling estavam amontoados. Um deles passou a mão áspera pelo cabelo esverdeado de Fen Fang, que estremeceu violentamente, enquanto o outro mirou o rosto pálido de Zhìyuǎn com um interesse doentio.
— E estes aqui… não vão ficar ociosos, vamos garantir que se sintam… bem-vindos — disse um deles, com uma voz rouca que não deixava margem para dúvidas sobre suas intenções.
Foi como se uma faca de gelo se cravasse no peito de Maomao. O desespero, que ela mantinha contido com força sobre-humana, explodiu, o mundo desabou ao redor dela, e o medo pela segurança dos irmãos ofuscou tudo, até seu próprio terror.
— NÃO! — o grito saiu-lhe da garganta, rasgado e cheio de um pânico visceral. Ela se debateu contra as mãos que a seguravam, os olhos fixos nos homens que se aproximavam das crianças — Parem! Por favor, parem!
O líder olhou para ela, um sobrancelha erguida em divertido desdém.
O chão frio arranhava os joelhos de Maomao quando foi atirada para o canto do aposento, o grito de Fen Fang ecoou logo atrás, abafado pelo punho pesado de um dos homens, Zhìyuǎn tentava em vão se colocar à frente das irmãs, enquanto Yaling soluçava em silêncio, agarrada ao braço dele.
O coração de Maomao batia tão alto que parecia querer romper as costelas. Cada segundo alongava-se em séculos. Os dois sequestradores os observavam com olhos duros, como predadores que saboreiam a presa antes do ataque.
Ela se arrastou, desesperada, os braços abertos como quem queria cobrir todos ao mesmo tempo, mas não havia como. O desespero queimava a garganta, e a voz saiu em um grito trêmulo, cortando o silêncio sufocante:
— Vocês sabem, eu sou a consorte do Príncipe da Lua, posso conseguir para vocês, o que quiserem é só me pedir que eu irei arranjar. — as palavras saíam rápidas, urgentes, como moedas jogadas em um poço sem fundo. — Territórios, títulos, o que quiserem… eu entrego tudo! Por favor, só não toquem neles!
Zhìyuǎn a olhou, pálido, sem compreender completamente a gravidade do que ela dizia.
— Façam o que quiser comigo. — Maomao insistiu, a voz já embargada. — Levem meu corpo, minha vida, qualquer coisa, mas deixem as crianças! Me toquem, me usem, só não toquem em minhas crianças.
O silêncio que se seguiu foi ainda mais aterrador que os gritos, o ar estava pesado, denso, como se faltasse oxigênio. Ela sentia a pele arder, a respiração curta, e uma náusea crescente que lhe revirava o estômago.
Os homens trocaram olhares, e o tempo pareceu suspenso, Maomao tremeu, não de fraqueza, mas de pavor e raiva ao mesmo tempo, uma parte dela queria se despedaçar em choro, mas a outra, maior e mais cruel, se erguia em fúria silenciosa: se alguém ousasse tocar em seus irmãos, teria de arrancar sua alma primeiro.
Um dos homens soltou uma risada seca, que mais parecia o estalar de madeira podre.
— Ouviram isso? — murmurou, lançando um olhar de escárnio ao comparsa. — A consorte do príncipe herdeiro se oferecendo…
O outro estreitou os olhos, aproximando-se devagar, seus passos ecoavam no chão como batidas de um tambor de guerra. Cada passo era um aviso, cada segundo estendido de propósito para alimentar o pavor que tremia no corpo dela.
— Você fala bonito — disse, a voz grave carregada de deboche. — Porém ter territórios ou títulos… não é como se nos importassemos com essa merda. — inclinou-se, roçando o ar próximo ao rosto dela, como se testasse a resistência — O que vale ouro de verdade é ver até onde vai a coragem de uma mulher que jura dar tudo para salvar quem ama.
Maomao estremeceu, o corpo gritava para se encolher, mas o instinto a fez erguer o queixo, mesmo com os olhos marejados. Não permitiria que vissem apenas medo.
Yaling soluçou alto, e Fen Fang apertou-lhe a mão com força. Zhìyuǎn, pálido, tentou se colocar à frente delas, mas foi empurrado com brutalidade contra a parede.
— Quieto, pirralho. — rosnou o primeiro, e então voltou-se novamente para Maomao — Vamos ver se o que você oferece… tem o peso que promete.
O segundo homem sorriu, satisfeito, como um lobo que cerca a presa.
— Talvez possamos negociar, mas antes… você vai mostrar que está disposta a cumprir cada palavra.
As palavras caíram sobre ela como lâminas, Maomao sentiu a dor interna crescer, o mundo girar ao redor, o corpo parecia não lhe pertencer mais, apenas uma moeda lançada ao chão, suja, sem valor, mas dentro do peito, o coração queimava de ódio e desespero.
Ela fechou os olhos por um instante, respirou fundo, e sussurrou quase sem voz:
— Não toquem neles… eu suplico…
O silêncio que se seguiu foi mais cruel do que qualquer golpe, era a espera, a antecipação, o jogo sádico de quem se alimenta do medo.
O mundo encolheu até se tornar um lugar de sombras ásperas e sons cortantes, o chão era duro contra as suas costas, mas a dor era um acontecimento distante, um eco abafado comparado ao som que lhe rasgava a alma: o choro de pavor dos seus irmãos mais novos.
Cada grito, cada soluço estrangulado deles era uma faca mais afiada do que qualquer agressão física que os homens sobre ela pudessem infligir. Era um ruído de inocência sendo quebrada, e Maomao sabia, com uma clareza aterradora, que o seu mundo não seria o único a ser destruído naquela noite se ela não interviesse.
Então, ela fez a única barganha que lhe restava, num ato final de proteção, ela entregou o que tinha de mais seu: a sua autonomia, a sua dignidade, a integridade do seu próprio corpo. Era um preço vil, mas era um preço que ela pagaria. Dez vezes, se fosse preciso, para que aqueles sons de terror infantil parassem e se transformassem apenas em choro. Para que o horror deles fosse apenas medo, e não a violação visceral que ela estava escolhendo absorver sozinha.
"Fiquem quietos", ela ordenou, sua voz saindo como um sussurro áspero, mas surpreendentemente firme, dirigindo-se às sombras onde eles estavam encolhidos. "Não olhem. Cantem aquela canção que eu gosto. Cantem para eu ouvir."
Era uma mentira cruel e gentil. Ela não queria ouvir a canção. Ela queria que eles fechassem os olhos. Que tapassem os ouvidos. Que se transportassem para qualquer lugar que não aquele. Ela os amarrava à vida com o fio tênue de uma tarefa, enquanto ela própria se desamarrou do próprio corpo.
A sua mente, a sua ferramenta mais preciosa, fugiu, ela focou num ponto no céu noturno acima da cabeça do homem, contou as estrelas visíveis, analisou a textura da rocha atrás dele. Qualquer coisa para não estar ali. Qualquer coisa para não ouvir o choro que teimava em continuar. Ela não era a filha inteligente de um estrategista, nem a mulher astuta que cativara um príncipe. Naquela escuridão, todos os seus títulos e feitps políticos foram arrancados. Restava apenas a carne e o osso de uma irmã mais velha, usando o seu próprio corpo como escudo, um sacrifício silencioso e brutal para que a inocência dos seus irmãos sobrevivesse mais uma noite.
As lágrimas que escorriam silenciosamente pelo seu rosto não eram de derrota, eram de uma fúria muda e absoluta, regando o solo onde ela jurou, naquele exato momento, que um dia brotaria a sua vingança. Ela sobreviveria e eles também, nada mais importava.
A escuridão do armazém cheirava a poeira, milho mofado e medo, o ar pesado estava saturado com o som que lhe dilacerava a alma: os gritos abafados e os soluços de pavor dos seus irmãos mais novos, Fen Fang, Yaling e Zhìyuǎn, suas pequenas formas retorcendo-se contra as cordas que os prendiam. Cada golpe surdo que eles recebiam ecoava no peito de Maomao como se fosse nela que as pancadas estivessem caindo.
A impotência era um sabor metálico e amargo em sua boca. Ela era apenas uma mulher, grávida e vulnerável, diante de brutos, mas naquela hierarquia perversa de poder, ela não tinha mais nada para que pudesse negociar.
— Parem por favor. — Maomao soluçava em meio as lágrimas sentindo a força do homem que entrava dentro de se corpo e a mordia, cada beijo, cada gemido que o homem soltava, era um lembrete de que ela era apenas uma mulher vulnerável e fraca diante de seu abusador.
A dor era um fogo vivo que lhe consumia as entranhas, mas era o toque dele que a verdadeiramente destruía. Cada mão em sua pele não era apenas uma invasão, era uma profanação. Enquanto seu corpo era dilacerado, sua mente gritava em silêncio, num lamento que não encontrava saída. A vergonha era um véu pesado e sujo que a envolvia, mais suffocante que qualquer força física. Ela não se sentia apenas ferida; sentia-se contaminada. Como se a essência daquele homem, sua maldade e violência, estivesse sendo esfregada em sua alma, deixando uma marca que nenhum banho poderia jamais limpar. Era uma sujeira por dentro, uma imundície que a fazia querer arrancar a própria pele.
E, no entanto, esse era apenas um nível do seu inferno.
Através da névoa de sua própria agonia, os gritos de seus irmãos a perfuravam como facas. Eram sons que ela não apenas ouvia, mas sentia fisicamente no peito. Cada urro de pavor, cada choro abafado era um novo rasgo em seu coração. A impotência era um sabor amargo na boca, mais forte que o sangue dos lábios que mordia para não gritar. Ela era a mais velha. Seus pequenos. Era seu instinto primordial se encolher ao redor deles, como uma ave faria com seus filhotes sob uma tempestade de granizo.
Mas suas asas estavam quebradas, seu ninho, violado.
Sua mente, em um ato torturante de autopreservação e masoquismo, projetava imagens do que estavam a sofrer. E cada imagem era um novo degrau descendo no abismo, o trauma não era uma única faca, mas uma chuva de lâminas: a que a cortava, e as que cortavam seus irmãos, que ela era forçada a testemunhar. Era demais para qualquer um suportar, quanto mais para crianças. O mundo deles, que já deveria ser de inocência e descobertas, estava sendo reduzido a isto: um quarto escuro, dor e o rosto de monstros.
E então, no centro do furacão de sua dor, da sua vergonha e da agonia alheia, surgiu um pensamento tão claro e frio como uma lâmina de gelo: "Eu nunca me perdoaria se os perdesse."
Não era apenas um pensamento. Era um juramento talhado na própria alma. Era a única âncora em meio àquele caos. Se a dor era o preço da sobrevivência, ela pagaria. Se a vergonha era a moeda para permanecer viva para eles, ela a carregaria. A culpa por não poder protegê-los agora já a queimava por dentro, mas a culpa de sobreviver e vê-los morrer seria infinitamente pior. Eles eram sua razão para aguentar o inaguentável. Sua respiração ofegante, seu corpo imóvel sob as mãos do homem, tudo se tornou um ato silencioso de resistência.
Não pela sua própria vida, mas pelas vidas daqueles pequenos corações gritando no escuro, ela os perderia para a morte se fosse preciso, mas não os perderia por desistir. Enquanto eles gritassem, ela encontraria uma maneira de suportar. Pois o amor, distorcido e ferido, mas ainda assim amor, era a única arma que lhe restava contra a escuridão.
A voz dela irrompeu na penumbra, mais firme do que ela sentia.
— Por favor... pare, eles não vão aguentar. — Maomao arfava entre um grito e outro, tentando não pensar na sua dor.
A decisão foi tomada num átimo, um cálculo horrível e instantâneo de uma irmã mais velha, no silêncio que se seguiu, enquanto os homens a avaliavam com olhos gananciosos, Maomao fez uma despedida silenciosa. Dirigiu-se à pequena centelha de vida em seu ventre, àquela alegria repentina que havia começado a florescer nela. "Perdão", pensou, num lance de agonia que eclipsou todo o medo. "Eu te amo o suficiente, mas eu preciso sacrificar a gente para salvar eles." Era um pensamento de uma beleza e horror tão avassaladores que quase a fizeram desabar.
Ela chorou não por fraqueza, mas por raiva. Lágrimas de fúria impotente e de uma tristeza cósmica pelo filho que ela sabia estar perdendo naquele mesmo momento. Era um luto silencioso e simultâneo à violência, uma dor dupla que nenhum corpo deveria ser capaz de suportar. Quando a sensação quente e úmida de sangue começou a escorrer por suas pernas, não foi uma surpresa; foi a confirmação de um sacrifício concluído. Era a vida do seu filho, o preço pago, escorrendo para o chão de terra batida do armazém.
Ela fixou os olhos nos irmãos, que assistiam horrorizados, seus rostos pálidos manchados de lágrimas. Esse era o seu foco, sua âncora no mar de agonia.
Quando finalmente os homens se cansaram e se afastaram, cuspindo insultos e deixando-os no chão frio, o silêncio que ficou foi mais aterrorizante que o barulho. Maomao não se moveu imediatamente. Ela jazia ali, numa poça de sua própria dor e perda, esvaziada, quebrada.
Mas então, Fen Fang soluçou, era um som pequeno e quebrado. E aquele som foi mais forte que qualquer dor. Com um esforço sobre-humano, arrastando o corpo que já não lhe parecia seu, ela se puxou para perto deles. Suas mãos trêmulas começaram a trabalhar nas cordas que os prendiam, ignorando a própria agonia, o sangue, a devastação.
Ela não os abraçou. Ela os envolveu, criou um casulo com os restos do que era, um refúgio de carne e osso machucado.
— Shhh... já passou. — ela mentiu, sua voz um farrapo de som. — A irmã está aqui, ninguém mais vai machucar vocês. Eu prometo.
E naquele momento, enquanto acalmava os irmãos, a raiva que substituíra a dor começou a esfriar e a se solidificar em algo perigoso e duro como diamante no seu peito. Eles não tinham tirado apenas a sua inocência, tinham tirado o seu futuro e por isso, ela os destruiria. Não com fúria cega, mas com a frieza, calculada precisão de um veneno administrado gota a gota.
Maomao fechou os olhos.
Um corpo oferecido no altar da proteção. Enquanto as lágrimas quentes e silenciosas finalmente rompiam sua barreira de gelo e escorriam por suas têmporas, manchando a madeira suja da parede, ela permitiu que sua mente fugisse. Fugiu para uma memória de dias mais ensolarados, dos risos de seus irmãos no jardim do palácio, da sensação de segurança que um dia conhecera. Era para aquele lugar, para aquela paz roubada, que sua alma recuava, deixando para trás um invólucro de carne e osso para suportar a tempestade.
O preço estava sendo pago.
Integralmente e no silêncio de seu coração, dilacerado entre a alívio pelos que amava e o luto por si mesma e pelo segredo que carregava. A escuridão a havia engolido, e ela a aceitara, para que uma pequena faísca de luz pudesse continuar a brilhar do lado de fora.
[. . .]
Palácio Imperial — País de Li.
O palácio fervilhava com os preparativos de mais uma cerimônia quando tudo aconteceu. Não era uma ocasião qualquer: celebrava-se a chegada do Festival da Colheita, um dos festivais mais importantes do império, marcado por oferendas à terra, procissões de concubinas em trajes de seda bordada e a presença obrigatória da família imperial. Naquele ano, a solenidade tinha peso ainda maior, pois seria também uma homenagem às grávidas do palácio — entre elas, a própria Concubina de Alto Nível, Lady Lihua, já em seu sexto mês, símbolo de prosperidade e continuidade da linhagem.
Os corredores estavam repletos de servos carregando bandejas de frutas e jarros de vinho, enquanto músicos afinavam seus instrumentos para o cortejo que passaria pelo jardim interno. Era ali, entre as magnólias e o lago ornamentado, que a princesa Jin-Ye deveria se apresentar diante das damas mais velhas e, discretamente, diante dos enviados de clãs aliados. Seu papel, como filha imperial, era o de encantar e reafirmar o prestígio da dinastia, ao lado de sua irmã, a Princesa Lingli para conseguirem boas alianças políticas e casamentos arranjados.
Jin-Ye caminhava com as damas de companhia em direção ao jardim interno, o hanfu violeta longo ondulando com cada passo. O dia estava abafado e o ar pesado, e talvez por isso, ou pelo esforço constante em esconder as mudanças de seu corpo, a princesa vacilou de repente.
Um tropeço sutil transformou-se em queda diante dos olhos atentos de dezenas de servos, as mulheres ao redor correram para ajudá-la, mas já era tarde: o impacto a fez levar instintivamente as duas mãos à barriga. O gesto foi protetor, instintivo, e não passou despercebido.
O silêncio caiu por um instante, logo substituído por murmúrios aflitos. As camadas do vestido, que antes disfarçavam, já não conseguiam ocultar as curvas arredondadas de sua cintura — a barriga, firme e já evidente, denunciava aquilo que até então se mantivera em segredo.
— A princesa… está grávida! — sussurrou um eunuco, incapaz de conter o espanto. Sua voz ecoou como um trovão entre as paredes douradas do pavilhão.
Em segundos, a fofoca espalhou-se como um raio pelos corredores, servas correram para cochichar nos outros pavilhões, eunucos se atropelaram em busca de superiores, e os ministros mais próximos já franziam o cenho, calculando o impacto daquela revelação nos jogos de poder.
Lahan ouviu a notícia não como rumor, mas como um relato aflito de um oficial que testemunhara a cena, o sangue lhe subiu ao rosto. Não pensou duas vezes: deixou para trás o grupo de conselheiros com quem discutia e disparou pelos corredores do palácio.
— ABRAM O CAMINHO! — sua voz rugiu, fazendo guardas e criados se afastarem às pressas.
A cada passo, o coração dele martelava, o medo não era da verdade em si, mas das línguas afiadas, das intrigas, do risco que agora pairava sobre ela, ele sabia que tinha demorado demais para conversar com o Imperador, mas sua consciência estava limpa porque fazia dias que ele esperava uma oportunidade ao qual o Imperador aceitasse sua solicitação para uma conversa particular. Quando chegou ao jardim interno, ainda encontrou o tumulto: damas tentando erguer Jin-Ye, concubinas observando com olhos brilhando de malícia, e eunucos atônitos.
Lahan não hesitou, abriu caminho à força, ignorando as reverências forçadas, e a tomou nos braços sem se importar com as regras do decoro.
— AFASTEM-SE TODOS! — ordenou, a voz dura como lâmina. — Quem ousar se aproximar, enfrentará a minha espada.
O silêncio caiu, Jin-Ye, ainda pálida pela queda, ergueu os olhos para ele, com um misto de medo e alívio. Lahan apertou-a contra o peito, o braço firme envolvendo não apenas sua mulher, mas o seu filho que ela carregava.
— Eu estou aqui. — murmurou baixo, apenas para ela. — E não permitirei que ninguém a toque, nem que transformem você ou nosso bebê em arma para intrigas.
Enquanto os rumores já alcançavam os salões do Imperador, Lahan corria com ela nos braços, decidido a enfrentar sozinho a tempestade que acabara de começar.
O palácio era um redemoinho de vozes quando a notícia explodiu nos corredores, os eunucos se atropelavam, servas corriam em todas as direções, e os conselheiros mais ousados já cochichavam em tom calculista. A frase se repetia como um eco implacável:
— A Vossa Alteza, a princesa Jin-Ye está grávida!
A informação chegou ao Salão Imperial como uma lâmina, o Imperador Yang ergueu-se de súbito, os olhos faiscando. A Imperatriz Ah-duo, ao lado, sentiu o corpo gelar antes mesmo de compreender todas as consequências. Gyokuyou, que estava de visita naquele instante, cobriu a boca com a mão, chocada. Já Lihua, sempre contida, manteve-se ereta, mas seus olhos não conseguiam esconder a gravidade da situação.
— Onde ela está?! — Yang bradou, a voz tão alta que ecoou pelas colunas.
— No Pavilhão do Refúgio dos Corvos… — um eunuco respondeu, quase tropeçando nas próprias palavras.
Não houve tempo para mais nada, o Imperador partiu em passos largos, quase correndo. Ah-duo o seguiu, os olhos marejados de raiva e incredulidade. Gyokuyou e Lihua vinham logo atrás, a primeira em silêncio sufocado, a segunda tentando desesperadamente manter a ordem naquela procissão tempestuosa.
— Isso é uma desonra! — Yang rosnava pelo caminho, suas mangas esvoaçando como asas de águia. — Uma afronta à dinastia! A nossa família.
— Eu devia tê-la protegido mais! — Ah-duo dizia entre dentes, a voz embargada, mas cheia de fúria — Demos a ela conforto, dei a ela uma vida sem privações dentro da nossa realidade, tudo o que não tive… e ela retribui assim? Com essa vergonha?
As mãos da Imperatriz tremiam, e o coração parecia rasgar-se em mil pedaços.
No íntimo, a dor se misturava à culpa: havia estado distante demais, sempre sobrecarregada de deveres, e agora sentia que sua ausência abrira espaço para que a filha cometesse o maior erro possível.
— Ah-duo, acalme-se. — Gyokuyou tentou intervir, a voz serena, mas firme. — Este não é o momento para acusações. Precisamos ver como Jin-Ye está primeiro, precisamos ouvir dela…
— Ouvir?! — Yang interrompeu, cuspindo a palavra como veneno. — O ventre dela fala mais alto do que qualquer desculpa!
Ah-duo mordeu o lábio até quase sangrar, seu corpo tremia inteiro, mas não apenas de raiva. Era o medo, o medo da vergonha, do julgamento, do futuro da filha. O medo do que poderia acontecer com Jin-Ye em meio a uma corte que não perdoava erros, principalmente de uma princesa.
Lihua, silenciosa até então, apenas apertou as mãos contra o peito, seu coração se partia pela situação da filha, mas sabia que qualquer palavra de consolo agora soaria como desafio ao Imperador e à Imperatriz.
Os quatro avançaram pelos corredores em ritmo frenético, servos se curvando apavorados ao vê-los passar. Quanto mais se aproximavam do Pavilhão do Refúgio dos Corvos, mais pesado se tornava o ar. A cada passo, o rugido da cólera imperial e os soluços abafados de Ah-duo se entrelaçavam com a frieza calculada de Lihua, que tentava desesperadamente conter a catástrofe iminente.
Quando finalmente o portão do pavilhão surgiu à frente, oficiais se apressaram em abrir caminho, o coração de Ah-duo quase parou: lá dentro, sua filha a esperava — grávida, caída no meio de um redemoinho de olhares e intrigas.
E, por um instante, toda a grandeza da dinastia parecia pender no fio frágil da respiração daquela jovem princesa.
O Pavilhão do Refúgio dos Corvos até então estava mergulhado em um silêncio pesado, interrompido apenas pela respiração acelerada de Jin-Ye, Lahan a segurava firme contra o peito, como se fosse o único escudo possível diante da tempestade que se aproximava. Com cuidado, ofereceu-lhe um copo de água e, quando ela bebeu, a deitou sobre o divã. Seus dedos permaneceram entrelaçados aos dela, numa promessa muda de que não a deixaria sozinha.
Foi então que os passos soaram fortes do lado de fora, a porta se abriu com violência, e o Imperador Yang entrou primeiro, a fúria faiscando em cada traço de seu rosto. Atrás dele, Ah-duo vinha quase em disparada, tremendo de raiva, Gyokuyou e Lihua por outro lado completavam a cena, ambas em choque contido.
— INSOLENTE! — Yang rugiu, apontando o dedo contra Lahan. — Como ousa encobrir uma vergonha dessas dentro do meu palácio?!
Ele avançou, mas Lahan ergueu o braço num gesto firme, interpondo-se entre Jin-Ye e o Imperador.
— Majestade! — a voz dele ecoou clara, sem vacilo — Não será aqui e nem agora, que esse assunto deve ser resolvido. — impôs sério encarando o velho homem com a postura firme — A princesa precisa descansar e não seus gritos.
— Você ousa me desafiar? — Yang já erguia a mão, como se fosse golpeá-lo.
Mas Lahan não recuou, seus olhos encontraram os do soberano, cheios de determinação.
— Eu jamais seria tão desonroso a ponto de tratar disso em meio a boatos e quedas. Visto que eu estava aguardando uma resposta dos conselheiros de quando poderia ter uma reunião interna com a Vossa Majestade. — abaixou a cabeça por um instante, em sinal de respeito, mas a firmeza não cedia — Não era nestas circunstâncias que eu queria fazer este pedido… mas o faço mesmo assim, Majestade, dê-me sua bênção para casar com a princesa Jin-Ye, ela a quem carrega meu filho agora.
O ar sumiu da sala, até Gyokuyou levou a mão à boca, sufocando um suspiro.
Yang empalideceu de fúria.
— Você perdeu a razão, Lahan? Um estrategista de faixada, sem um grande destaque na corte além de ser filho de Mestre Lakan, — o Imperador engoliu em seco, ignorando todas as ameaças que Lakan tinha lhe feito nos últimos anos, afinal quem tremia só de ouvir o nome daquela família de serpentes era o Imperador —como ousa pedir a mão da minha filha? A Princesa Imperial depois de manchar o nome dela?!
Antes que pudesse avançar mais, Ah-duo explodiu, aproximou-se do divã com os olhos em brasa, a voz trêmula mas afiada como lâmina.
— Jin-Ye! — gritou, as lágrimas escorrendo, mas o tom era de ira. — Depois de tudo o que fizemos por você! Você foi criada como a joia rara deste palácio junto de Lingli… e retribui assim?! Com uma mancha sobre nossa dinastia?!
A princesa encolheu-se no divã, a mão sobre o ventre, incapaz de conter as lágrimas.
— Mãe, eu… — a voz dela saiu baixa, embargada.
— Não me chame de mãe agora! — Ah-duo retrucou, a dor e a vergonha se misturando. — Passei noites sem dormir para que você tivesse o que eu nunca tive, lutei contra todos neste palácio para que tivesse liberdade, felicidade… e você destrói tudo em um único ato!
— BASTA! — Lahan interrompeu, erguendo-se ainda mais diante dela. Sua voz carregava um peso que fez até os criados do lado de fora se calarem. — Se há alguém a quem devem culpar, que me culpem. Foi minha escolha, minha responsabilidade. A princesa não deve carregar sozinha este fardo e ninguém deve gritar com ela sabendo de sua fragilidade, Jin-Ye teve uma queda e por conta disso precisa descansar e não de mais alvoroço Majestades.
Yang bufava de raiva, pronto para investir contra ele, mas Gyokuyou, até então silenciosa, adiantou-se um passo e falou num tom frio:
— Ah-duo, Yang… antes de qualquer decisão, lembrem-se de que a vida da princesa e da criança está em jogo. Se a fúria de vocês recair sobre ela agora, será tarde demais para reparos.
O ar parecia rarefeito no pavilhão, a acusação de Ah-duo ainda reverberava, e os olhos de Yang queimavam de cólera quando Jin-Ye, trêmula, ergueu-se um pouco no divã, a mão firme sobre o ventre. As lágrimas escorriam, mas sua voz, embora fraca, soou clara:
— Não me olhem como se eu tivesse cometido um crime imperdoável… Eu não me arrependo de carregar esta criança, É O MEU FILHO.
O silêncio foi rompido pelo estrondo da fúria imperial.
— CALE-SE! — Yang trovejou, dando um passo à frente. — Você ousa falar em não se arrepender? Destruiu com suas próprias mãos a honra da família imperial! A SUA HONRA JIN-YE!
— Honra?! — a voz de Jin-Ye tremeu, mas se ergueu contra o rugido do pai. — E quanto à minha vida, aos meus sentimentos? Desde pequena me moldaram como peça de um tabuleiro, mas esta criança que cresce dentro de mim… é minha escolha!
Ah-duo, sufocada pelo choro, avançou até quase tocar o divã, o peito arfava de dor e fúria.
— Escolha? — disparou, a voz embargada. — Eu lutei contra casamentos arranjados a qual você detestava, servi como escudo contra intrigas e agora está aqui derrubando toda uma dinastia porque seguiu o coração? Você é egoísta, Jin-Ye!
A princesa baixou os olhos, engolindo o pranto, mas não recuou.
— Talvez seja egoísmo, mãe… mas é o único pedaço de felicidade que eu realmente conquistei por conta própria.
As palavras caíram como navalha, Ah-duo deu um passo atrás, ofegante, como se tivesse sido golpeada.
Yang quase perdeu o fôlego diante da audácia, seu olhar faiscava, prestes a explodir.
— Você acha que uma simples declaração apaga a desonra?! — rugiu
Lahan, imóvel, respondeu com firmeza:
— Não sou igual a ela, nem ousaria me comparar, mas juro, diante dos céus e do trono, que não haverá homem neste império que a respeite e a proteja mais do que eu.
A respiração de Ah-duo vinha em soluços contidos, as unhas cravadas na palma da mão, Jin-Ye, ainda deitada, buscou a mão dele e a apertou, a voz saindo entre lágrimas:
— Eu não pedi para nascer princesa… mas peço para ser mãe. Se não posso ser as duas coisas, então deixem que eu escolha pelo menos esta e viverei exilada do Império ao lado de Lahan.
As palavras dela ecoaram pelo pavilhão, partindo como raio os corações e certezas de todos ali.
Yang permanecia de pé, o olhar faiscando entre Jin-Ye, pálida e deitada no divã, e Lahan, que se mantinha como um bastião à frente dela.
— Eu deveria matá-los aqui mesmo! — o Imperador rugiu, apontando sua espada em direção ao pescoço de Lahan — Um estrategista que ousa desonrar a casa imperial merece a morte!
Ah-duo, ainda em prantos, apertou o braço do marido.
— Essa criança que carrega só pode trazer desgraça, se não a arrancarmos agora, será um peso eterno sobre todos nós, mas abaixe essa espada Yang...
Jin-Ye sufocou um soluço, os olhos arregalados diante das próprias mães, Lahan, por reflexo, se colocou ainda mais à frente, a mão pousada sobre o punho da espada, pronto para morrer ali se fosse preciso.
Foi nesse momento que Lihua, adiantou-se um passo, a respiração pesada pelo peso do ventre não apagava a firmeza de sua voz.
— BASTA! — sua palavra cortou o ar como aço.
Yang e Ah-duo a encararam, surpresos com a ousadia, mas Lihua não vacilou.
— Ah-duo, você deu à luz a Jin-Ye, a criou como uma linda menina até os seis anos, mas depois disso, Gyokuyou e eu também a criamos como nossa filha, como criamos todos os príncipes e a princesa Lingli. — seu tom ficou mais duro, as mãos segurando o ventre com força — Então como mãe de Jin-Ye, não permito que se refiram a ela como se tivesse cometido um crime.
Ah-duo estremeceu, os lábios tremendo, mas Lihua não lhe deu espaço.
— Ela e Mestre Lahan aparentam se amar e Mestre Lahan… é irmão da Princesa da Lua, ele possui integridade. Jamais faria Jin-Ye sofrer ou passar por tudo sozinha, ele está aqui, não está? A protegeu, e não a deixou isolada quando o segredo veio à tona, ele agiu como homem, ele poderia muito bem ter se escondido e deixado que Jin-Ye recebesse toda a bronca sozinha, mas não, ele agiu como um verdadeiro homem. — a voz dela elevou-se ainda mais, mirando diretamente Yang. — E se Vossas Majestades não conseguem compreender isso, então é pura ignorância.
Um murmúrio de choque percorreu os cantos do pavilhão, até Gyokuyou arregalou os olhos, mas se adiantou um pouco, apoiando as palavras da irmã de ventre erguido.
Lihua avançou mais um passo, encarando Ah-duo agora.
— E você, Ah-duo… como pode, sendo mulher que já perdeu filhos em seu ventre, ter a ousadia de exigir que Jin-Ye arranque esta criança? Você sabe que, nesta altura da gravidez, seria condenar sua filha à morte. — seu olhar era um misto de desdém e nojo ao encarar a amiga — Você deveria sentir vergonha de dizer essas palavras sendo mãe, Jin-Ye apenas está recebendo esse tratamento medíocre de você e do Yang por ser mulher, mas aposto que se fosse Jiang que tivesse engravidado algum de seus casinhos do palácio, a conversa seria outra, então me poupe de hipocrisia nessa altura, ainda mais com a minha menina. Nossa filha.
Ah-duo empalideceu, cambaleando com a acusação direta, era óbvio que a Imperatriz se sentia péssima em dizer tais palavras a filha, no entanto a raiva era muito maior do que o seu arrependimento naquele momento. Ela não enxergava Jin-Ye grávida a sua frente, mas ainda a via como sua menininha que corria saltitante de um lado pro outro com os cabelos violáceos voando.
[. . .]
20 anos atrás
Palácio Imperial — País de Li
O jardim interno parecia um refúgio suspenso no tempo, envolto pelo canto suave das cigarras e pelo perfume das flores de ameixeira que caíam em pétalas espalhadas pelo chão de pedra. O sol da tarde incidia de forma oblíqua, colorindo de dourado os fios de cabelo que o vento agitava entre as damas reunidas.
Ah-duo caminhava devagar pela trilha ladeada por bambus, a filha enlaçada em seus braços. Com apenas dezoito anos, ainda havia nela uma juventude radiante, visível no brilho dos olhos lilases que se estreitavam num sorriso ao olhar para Jin-Ye. A menina, de apenas dois anos, tinha as mãozinhas pequenas erguidas, tentando alcançar as flores que caíam ao redor. Seus cabelos roxos, curtos e macios como seda, brilhavam sob a luz, enquanto os olhos vermelhos se abriam de curiosidade diante de cada detalhe do jardim.
— Mamãe, caiu florzinha… olha! — a voz infantil saiu arrastada, ainda tropeçando nas palavras.
Ah-duo riu baixo, inclinando o rosto até encostar a testa na da filha.
— Caiu sim, minha pequena orquídea e é toda sua, se quiser.
Com cuidado, ela abaixou-se, equilibrando o corpo para colher uma pétala no chão. Colocou-a delicadamente sobre a palma da mãozinha de Jin-Ye, que a apertou contra o peito como se guardasse um tesouro precioso.
Ao lado, Lady Gyokuyou observava a cena com um sorriso cheio de serenidade. Nos braços, carregava sua própria filha, a pequena Lingli, da mesma idade de Jin-Ye. A menina de cabelos rosados observava a irmã com curiosidade silenciosa, erguendo as mãozinhas gorduchas para tentar imitar o gesto de segurar uma pétala invisível.
— As duas parecem já entender o valor dos presentes simples da natureza. — comentou Gyokuyou, a voz suave e melodiosa, como se recitasse uma poesia.
Lady Lihua, de pé um pouco atrás, trazia as mãos cruzadas diante do corpo, os olhos refletindo um brilho terno enquanto seguia os movimentos das crianças. Havia algo em sua postura — calma, contemplativa — que fazia dela quase uma guardiã silenciosa daquele instante.
Mais adiante, Jinshi e Jiang corriam em círculos pelo gramado, aos três anos, ambos eram pura energia: Jiang, de cabelos negros e olhos vermelhos, avançava decidido, como se o mundo fosse feito para ser explorado. Jinshi, com os mesmos olhos e cabelos roxos da mãe, acompanhava o irmão, mas parava vez ou outra para recolher pedrinhas, folhas ou qualquer pequeno detalhe que lhe despertasse a atenção.
O riso infantil ecoava pelo jardim, criando uma melodia própria, enquanto o som ritmado dos passos dos gêmeos se misturava ao farfalhar do bambuzal.
Ah-duo, no entanto, parecia alheia a tudo por um momento, seu mundo estava inteiro nos olhos da filha, Jin-Ye mordiscava a pétala com inocência, antes de estender o bracinho para o rosto da mãe.
— Pra você, mamãe. — o gesto, ainda desajeitado, fez Ah-duo sentir um aperto doce no peito.
Ela pegou a pétala amassada e a levou aos lábios, fingindo um beijo cerimonioso.
— É o presente mais precioso que já recebi.
Jin-Ye gargalhou, um som cristalino que fez Gyokuyou sorrir e Lingli balbuciar em resposta, como se quisesse rir junto.
Lihua suspirou baixo, deixando escapar em voz quase inaudível:
— Elas ainda são tão pequenas… mas já carregam em si tanto brilho.
Ah-duo beijou a têmpora da filha, deixando que o momento se gravasse em sua memória: o calor do corpinho nos braços, o riso que iluminava seu coração, o céu dourado tingindo o jardim. Uma imagem que, anos mais tarde, ainda voltaria a ela como um sonho doce — quando tudo já tivesse se transformado.
[. . .]
Então, Lihua ergueu o queixo, olhando diretamente para o Imperador, o peso político em cada palavra:
— Pois bem, se não você, ao menos eu, abençoo esta relação, meu desejo é que se casem e se porventura você, Yang, for contra, sabe muito bem o que pode acontecer. — seus olhos faiscaram. — As facções do palácio não tolerariam que fosse contra um pedido meu, não agora, não depois de tudo que passei. Você não gostaria de enfrentar uma rebelião provocada pelo Clã Zheng.
Um silêncio mortal caiu, o Imperador recuou um passo, os olhos flamejando de cólera, mas a ameaça clara de Lihua ecoava mais forte que seus gritos.
Lahan, ainda firme, aproveitou o momento e inclinou-se em profunda reverência.
— Majestades… não lhes peço perdão por meu erro, mas peço apenas a chance de reparar, unindo meu nome ao da princesa, diante do céu e da terra.
O peito de Jin-Ye subia e descia, as lágrimas molhando-lhe o rosto, mas havia um brilho novo em seus olhos: pela primeira vez desde a queda, ela não se sentia sozinha.
A sala parecia conter a respiração, até as lanternas que ardiam nas colunas altas projetavam sombras mais densas, como se o próprio palácio se retraísse diante da tensão. Yang, ainda em pé diante do divã, mantinha o punho cerrado e o olhar fulminante em direção a Lahan.
— Se este é o caminho que desejam seguir. — a voz do Imperador ecoou grave, carregada de veneno — Então não será sem preço.
Ah-duo, ao lado dele, trêmula de raiva e dor, fitava a filha com os olhos marejados e ao mesmo tempo endurecidos. Jin-Ye, ainda pálida, ergueu os olhos apenas para se encolher sob aquele julgamento silencioso.
Yang respirou fundo, como se buscasse a medida exata entre fúria e cálculo, antes de prosseguir:
— Concederei o casamento. — o silêncio que se seguiu quase fez o ar rarefazer — Mas não sem condições.
Ele voltou-se para Lahan, erguendo o queixo com um gesto de superioridade:
— Primeiro: este casamento não será celebrado em festa grandiosa. Não darei ao mundo a imagem de júbilo por um erro que nos envergonha. Será feito em cerimônia restrita, sob minhas ordens, e sem pompa.
A cada palavra, Ah-duo parecia respirar mais rápido, como se fosse ela mesma quem empunhasse a lâmina da sentença.
— Segundo: se ousar tocar nela com desonra novamente, se ela sofrer qualquer desgraça sob sua guarda, Lahan, sua cabeça rolará diante do portão principal do palácio.
Lahan, ainda de pé e com o semblante firme, curvou-se levemente, sem baixar demais a cabeça, firme no próprio orgulho:
— Aceito suas ordens, Majestade, mas que saiba: não temo suas condições, pois nunca terei motivo para manchar a honra de Jin-Ye.
O olhar de Yang faiscou, como se ainda cogitasse romper o chão de todo aquele equilíbrio frágil.
Ah-duo, por sua vez, deu um passo à frente, apontando para a filha:
— E vale a pena passar por isso tudo Jin-Ye? Por causa de um capricho minha filha? — a voz de Ah-duo falhava.
A princesa, ainda frágil, forçou-se a erguer a voz, embargada pelas lágrimas:
— Mãe… não é capricho. Eu… eu o amo.
As palavras caíram como aço sobre o mármore.
Foi então que Lihua, sustentando a barriga arredondada de seis meses, avançou entre eles, erguendo a mão como quem corta uma lâmina no ar. Sua voz, firme mas embargada pela autoridade materna, ecoou pela sala, lembrando a todos cada palavra que ela já havia lançado como flecha. Reiterou, com ainda mais peso, que Jin-Ye era filha de todas elas, que abortar seria crime contra a vida, que Lahan havia agido como homem — e que se o Imperador ousasse negar, enfrentaria não só o coração do clã, mas a ira política dos Zheng.
O impacto de suas palavras pairou como trovão no ar.
Yang não respondeu de imediato, a fúria ainda faiscava em seus olhos, mas sua respiração pesada denunciava a luta interna. Ah-duo mordeu os lábios, os dedos crispados em suas próprias mangas de seda, dividida entre a mágoa e o orgulho ferido.
[. . .]
O silêncio do Refúgio dos Corvos ainda parecia colar nas vestes imperiais quando Yang, Ah-duo, Gyokuyou e Lihua deixaram o pavilhão. As lanternas ao longo do corredor os iluminavam de maneira intermitente, como se cada passo fosse observado pelos próprios deuses.
Yang caminhava à frente, os punhos cerrados, até parar diante de uma coluna, onde esperou que Ah-duo se aproximasse. O olhar do Imperador estava carregado de sombra, mas sua voz saiu em tom grave e controlado:
— O melhor agora é antecipar o retorno de nossos filhos. — ele respirou fundo, como se as palavras custassem a sair — Precisamos preparar o casamento de Loulan e Jiang. Isso desviará as atenções, trará prestígio e abafará os boatos sobre Jin-Ye.
Ah-duo, que até então mantinha a postura rígida, desabou contra o peito do marido, chorando baixinho. Seus dedos se agarraram ao manto dele como se tentassem arrancar a própria culpa.
— Fui dura demais com ela… — soluçou. — Nunca reprimi Jiang por dormir com as servas, nunca e hoje… joguei tudo em Jin-Ye toda a minha fúria, como se ela fosse uma criminosa, mas ela é apenas uma menina, a minha menina e eu fui grosseira, sem coração com ela, ela carrega o nosso neto e eu agi tão sem compaixão.
Yang passou a mão pesada pelos cabelos da esposa, tentando conter a amargura que lhe queimava a garganta.
— Jiang nunca gerou filhos bastardos meu bem. — respondeu com firmeza. — Nenhuma serva engravidou, a situação de Jin-Ye é diferente… a exposição foi cruel.
Ah-duo ergueu o rosto, os olhos marejados tremendo sob a chama das lanternas.
— Eu só… só estava apavorada, não queria que ela sofresse, não queria que fosse julgada. E acabei me tornando o próprio julgamento, fiz ela sofrer com o peso de minhas palavras, eu não fui uma mãe para ela...
Yang a envolveu nos braços, apertando-a com força, como se quisesse protegê-la não só do mundo, mas dela mesma.
— Você agiu como uma mãe apavorada, você agiu da forma que agiu porque a ama e só quer ver o bem dela. — sua voz suavizou. — E sei o quanto a ama, por mais que eu não queira admitir, Lahan a protegeu e está claro que ele não permitirá que ela enfrente tudo isso sozinha.
Ah-duo assentiu, mordendo o lábio, calada por alguns instantes. Depois sussurrou, quase como quem confessa um segredo proibido:
— Precisamos chamar Mestre Lakan e Lady Kan para o palácio. — endireitou os ombros, mesmo com a voz ainda trêmula. — É necessário que seja decidido… o casamento de Lahan e Jin-Ye. Afinal, será mais um membro da família Kan unindo-se à família imperial.
As palavras pairaram no ar, pesadas e irrevogáveis, como uma sentença que mudaria para sempre o destino de todos no palácio.
[. . .]
No pátio tranquilo do Pavilhão da Lua, Lady Lishu caminhava de um lado para o outro, os dedos finos torcendo o lenço de seda como se quisessem rasgá-lo. Basen, recostado em uma das colunas, observava a esposa com a expressão carregada de incômodo.
— Não a vi o dia todo. — murmurou Lishu, quase num sussurro, como se temesse que o próprio palácio escutasse. — Nem a princesa, nem as crianças, isso é estranho Basen, Maomao nunca some por tanto tempo sem deixar aviso.
Basen ajeitou a postura, cruzando os braços sobre o peito, sua voz soou grave, mas com a tentativa de acalmá-la:
— Pode ter ido atender alguma concubina em apuros. Você sabe que ela não recusa chamados, principalmente se houver risco para as outras mulheres do harém.
— Ainda assim… — Lishu mordeu o lábio, os olhos inquietos. — Ela sempre manda um bilhete, uma serva, qualquer coisa. Hoje porém, nada.
Nesse instante, os passos apressados de Chue ecoaram no corredor, a jovem surgiu ofegante, o rosto corado pelo cansaço, e nos braços trazia o pequeno Guang, adormecido em profundo descanso. Ela parou diante de Lishu, a respiração entrecortada.
— Lady Lishu… — sua voz falhou antes de firmar-se. — Também não encontrei Maomao, procurei por todo o pavilhão. Nem sinal dela… nem das crianças.
Lishu levou a mão ao peito, o coração disparando, aproximou-se de Chue e ajeitou melhor o sobrinho nos braços da moça, como se o peso do menino fosse também o peso da ausência que se instalava.
— Então não é apenas impressão minha… — murmurou, quase sem fôlego.
Chue apertou o bebê contra si, como se buscasse nele algum consolo, os olhos marejados de preocupação.
— Não sei o que está acontecendo, mas… algo não está certo.
Basen, até então contido, endireitou-se e caminhou até elas, o semblante agora severo.
— Se a princesa desapareceu de fato, e levou consigo e as crianças… — ele respirou fundo, deixando a frase suspensa no ar. — Isso não é descuido. É sinal de que algo grave está prestes a nos alcançar.
O silêncio que se seguiu foi pesado, quebrado apenas pelo leve ressonar do pequeno Guang, alheio ao peso daquilo que os adultos já pressentiam.
Lishu segurava com força o braço de Basen, como se aquele contato fosse a única âncora diante da inquietação que latejava em seu peito.
— Não podemos alarmar os oficiais ainda. — disse Basen, a voz baixa, firme, mas carregada de tensão. — Se for apenas um mal-entendido, acabaremos gerando pânico desnecessário.
Chue ajeitou o pequeno Guang, que ressonava no seu colo, e balançou a cabeça em concordância. O olhar dela, no entanto, revelava a mesma preocupação de Lishu.
— Mas também não podemos simplesmente esperar… — retrucou Lishu, trêmula. — Quanto mais tempo passa, mais temo pelo que pode ter acontecido.
Basen respirou fundo, endireitando-se, sua sombra projetada pela lamparina parecia mais dura que sua própria expressão.
— Farei o seguinte: vou procurar meu pai, ele saberá como agir, discretamente. Se Maomao estiver em algum lugar onde não devesse, ele terá meios de descobrir sem chamar atenção.
Chue e Lishu se entreolharam, e uma compreensão silenciosa passou entre as duas.
— Enquanto isso, — completou Lishu, recobrando a firmeza no olhar — eu e Chue vamos ao Pavilhão do Refúgio dos Corvos. Talvez Maomao esteja lá, com as crianças e mestre Lahan.
O nome de Lahan pairou no ar, trazendo um arrepio involuntário à lembrança do tumulto de mais cedo. Basen assentiu e pousou a mão sobre o ombro da esposa, num gesto rápido de carinho e despedida.
— Se virem algo estranho, não se aproximem, voltem imediatamente.
— Entendido. — respondeu Lishu, firme apesar do nó na garganta.
Chue, segurando Guang com cuidado, acrescentou em sussurro:
— Que os deuses façam ser apenas um susto…
Então se separaram, Basen seguiu apressado pelo corredor em direção aos aposentos de Gaoshun, enquanto Lishu e Chue tomaram o caminho do Refúgio dos Corvos, os passos abafados pela noite silenciosa.
O palácio, apesar do burburinho do dia, agora parecia segurar o fôlego. Cada porta fechada e cada sombra projetada pela luz das lanternas aumentavam a sensação de que algo, escondido nas frestas, estava prestes a vir à tona.
Lady Lishu, com o cenho franzido, atravessou os corredores do palácio ao lado de Chue, Basen tinha se apressado na direção dos aposentos do pai, em busca de uma resposta, de uma ordem, de qualquer sinal que pudesse amenizar a inquietação que se espalhava como veneno.
As duas mulheres seguiram o rumo do Pavilhão do Refúgio dos Corvos, talvez Maomao estivesse ali dando suporte ao irmão e a amiga, talvez junto das crianças, talvez fosse apenas mais uma preocupação exagerada, mas o silêncio que caía nos jardins ao redor e o peso de um presságio incômodo tornavam os passos mais rápidos e o coração mais apertado.
Ao entrarem no pavilhão, encontraram Lahan sentado junto a Jin-Ye, a princesa estava deitada em um divã, o rosto ainda pálido, a respiração curta. Lahan ajeitava cuidadosamente uma toalha fria sobre a testa dela, os olhos atentos a cada mínimo movimento, como se vigiasse um cristal prestes a se partir.
— Lady Lishu? Chue? — Lahan ergueu a cabeça, surpreso com a pressa no olhar das duas. — O que houve?
— Procurávamos a Princesa da Lua e as crianças. — Lishu tentou soar firme, mas a voz vacilou. — Não a vimos desde a manhã.
Jin-Ye se agitou no divã, apoiando-se nos braços para se erguer um pouco.
— Maomao? Ela não esteve aqui... nem as crianças.
Chue, apertando o pequeno Guang que dormia em seus braços, balançou a cabeça aflita:
— Eu mesma não os vi o dia inteiro. Pensei que estivessem com vocês.
O silêncio que seguiu foi sufocante, Lahan franziu o cenho, apoiando-se no joelho para se levantar.
— Como assim, não foram vistas? — insistiu, a voz grave, quase ríspida. — O que estão dizendo?
— Que a princesa... sumiu. — Chue murmurou, a palavra escapando como um sussurro proibido.
O ar pareceu rarefeito. Jin-Ye, pálida, levou a mão ao peito, a preocupação atravessando seu semblante frágil. Lahan se aproximou, fitando-as com uma dureza que mal escondia a preocupação crescente:
— Desde a manhã? — perguntou, a incredulidade vibrando em cada sílaba. — E só agora dizem isso?
— Não queríamos alarmar sem certeza. — respondeu Lady Lishu, tentando manter a compostura. — Meu marido foi procurar o Senhor Gaoshun, precisamos esperar... talvez eles já estejam descobrindo algo.
Lahan passou a mão pelos cabelos, a tensão evidente. Jin-Ye, em voz baixa, completou:
— Se Maomao desapareceu mesmo... o palácio não ficará em paz até que seja encontrada.
As palavras dela pairaram no ar, pesadas como chumbo, Lishu e Chue se entreolharam, ambas tentando conter o desespero, enquanto esperavam que Basen e Gaoshun retornassem com alguma resposta.
O silêncio no Pavilhão do Refúgio dos Corvos foi quebrado apenas pelo som apressado de passos que ecoavam no corredor de pedra. Basen entrou primeiro, o semblante rígido, e logo atrás vinha Gaoshun, carregando algo pequeno fechado na palma da mão. O ar ficou denso, como se todos soubessem que nada de bom seria revelado.
Lahan, que já caminhava de um lado para o outro, parou abruptamente, os olhos fixos no mestre.
— Encontraram alguma coisa? — sua voz saiu áspera, quase num rosnado.
Gaoshun não respondeu de imediato, aproximou-se, abriu lentamente a mão calejada, revelando a pulseira dourada, cravejada de rubis, que reluzia sob a luz bruxuleante das lamparinas. O adorno cintilava com ironia cruel, como se zombasse de todos os olhares ali reunidos.
— Foi achada num dos pontos cegos do palácio. — a voz grave de Gaoshun parecia carregar pedras — Escondida entre as colunas, num espaço que raramente é patrulhado.
O ar fugiu dos pulmões de Jin-Ye; ela levou a mão à boca, os olhos se enchendo de lágrimas silenciosas. Lady Lishu apertou a própria saia com força, como se o gesto fosse impedir o desespero de transbordar. Chue abraçou Guang contra o peito, instintivamente, como se quisesse proteger o menino de uma ameaça invisível.
Lahan, porém, recuou um passo, os olhos fixos na pulseira como se fosse uma lâmina atravessada em seu peito.
— Os pontos cegos... — murmurou, a voz embargando.
Ele começou a andar em círculos, as mãos pressionando o rosto, o peito arfando. As palavras escaparam num jorro de fúria e dor:
— Maldição! — chutou o banco próximo, derrubando-o. — Foram os mesmos lugares... os mesmos! — ergueu os olhos vermelhos para Basen e Gaoshun. Para minhas conveniências! E nunca os relatei!
Jin-Ye estremeceu no divã, a dor da revelação refletida em seus olhos marejados.
Lahan socou a parede, o som seco ecoando pelo salão.
— Por minha irresponsabilidade, meus irmãos pagaram o preço! Se algo acontecer com Maomao e com as crianças... — a voz se quebrou, e ele caiu de joelhos, escondendo o rosto nas mãos. — Eu juro... eu juro que foi minha culpa.
Gaoshun pousou a pulseira sobre a mesa baixa, deixando que seu peso simbólico falasse mais que qualquer sentença. Basen se aproximou do irmão, hesitando entre confortá-lo ou repreendê-lo, o próprio rosto contraído de angústia.
O brilho da pulseira, abandonada, era a única prova de que Maomao tinha passado por ali... e agora era também a prova da falha que poderia custar não só uma vida, mas muitas.
E todos, sem dizer em voz alta, sentiram o mesmo: o tempo estava correndo, e cada segundo de silêncio aproximava-os de uma tragédia irreversível.
Gaoshun recolheu a pulseira da mesa com movimentos firmes, os olhos estreitados, a expressão marcada pela dureza de quem já carregava peso demais nos ombros. Ele girou o adorno na palma da mão, analisando cada detalhe, antes de erguer o olhar para todos.
— Isso não pode ficar apenas entre nós — disse por fim, a voz grave, cortante como lâmina. — O desaparecimento de Maomao e das crianças já é alarmante o suficiente, mas encontrar esta pulseira... — ele ergueu o braço, deixando que o ouro e os rubis brilhassem diante de todos — significa que o perigo está dentro dos muros do palácio.
Lady Lishu estremeceu, cobrindo a boca com a mão. Chue apertou Guang contra o peito com força, o coração disparado.
— Mestre Gaoshun... — Basen começou, num tom quase suplicante. — O senhor pretende...
— Tenho que levar isso imediatamente ao Imperador. — interrompeu, firme. — É a única forma de mover a máquina do palácio. Apenas ele pode autorizar buscas em áreas restritas, mobilizar guardas em massa e fechar os portões. Se ficarmos calados, perdemos tempo. E tempo é tudo o que não temos.
As palavras caíram como marteladas.
— Mas e os boatos...? — Lady Lishu tentou argumentar, a voz trêmula. — Se isso se espalhar...
— Melhor boatos do que cadáveres. — respondeu Gaoshun sem hesitar, os olhos duros. — Não estamos falando apenas da princesa Maomao, mas das crianças. O palácio inteiro tremerá se algo acontecer a elas.
Jin-Ye endireitou-se no divã, a voz embargada, mas firme:
— Por favor... façam alguma coisa, não deixem que... que ela desapareça sem que ninguém lute por ela.
O olhar de Gaoshun suavizou por um breve instante diante da súplica da jovem, mas logo voltou à rigidez habitual. Ele virou-se para Basen, como quem já ditava ordens:
— Você virá comigo, Mestre Lahan fica. Não quero mais imprudências.
Lahan ergueu o rosto, os olhos marejados e inflamados de raiva.
— Eu não vou ficar parado! — rugiu. — São meus irmãos!
— Justamente por isso — retrucou Gaoshun, frio. — sua mente está tomada pela culpa. E homens culpados cometem erros. Um segundo erro seu pode custar a vida deles.
Lahan caiu no silêncio, mordendo os lábios até sentir o gosto de sangue.
Gaoshun ajeitou a pulseira dentro da manga do traje, ocultando-a com cuidado. Depois respirou fundo, o ar pesado de decisão.
— O Imperador precisa saber, só assim poderemos agir.
E com essas palavras, ele partiu com Basen, deixando no ar o peso da revelação e a certeza de que, a partir daquele momento, nada mais poderia ser escondido.
[. . .]
O ar nos aposentos do Imperador estava pesado, quase sufocante, as cortinas de seda balançavam levemente com a brisa da tarde, mas nada podia aliviar a tensão que pairava sobre Yang e Ah-duo. O Imperador caminhava de um lado para o outro, os punhos cerrados, os passos ecoando pelo piso de mármore, enquanto Ah-duo permanecia sentada junto à janela, as mãos trêmulas sobre o colo.
Foi então que um mensageiro entrou, a expressão rígida, entregando uma carta lacrada, a escrita na parte externa, formal e precisa, denunciava sua origem: Jinshi e Jiang. O selo dos filhos mais velhos cintilava sob a luz da lamparina, mas nada do brilho pôde aliviar o peso que a notícia traria.
Yang abriu a carta com cuidado, o olhar varrendo cada linha, absorvendo a cada palavra como se fossem golpes. Sua mandíbula se endureceu, o corpo tenso como se quisesse conter a fúria e a dor.
"Ao Imperador de Li, nosso pai e soberano,
Com mãos trêmulas e o coração dilacerado, ousamos dirigir estas palavras a Vossa Majestade. Não escrevemos como apenas vossos filhos, mas como testemunhas de uma tragédia que transformará o destino de todo o país de Li.
Nosso irmão mais novo, o príncipe Yao Jun, não mais respira entre nós. Sua vida foi ceifada de modo vil na Província Ocidental, não em campo de batalha, mas sob o manto da traição. O golpe fatal veio da mão de quem deveria estar ligado a nós pela honra e pelo sangue — o irmão de Lady Gyokuyou.
Pai, vimos o instante em que o riso de Yao Jun foi silenciado, Jiang fechou seus olhos com lágrimas ardendo, e eu permaneci imóvel, incapaz de compreender como a vida pode ser tomada com tanta crueldade. O sangue dele ainda mancha nossas roupas, e o peso de sua ausência rasga cada respiração.
Pedimos perdão se nossas palavras trazem mais dor do que alívio, mas é dever dos filhos não esconder a verdade: a paz com a Província Ocidental morreu junto com Yao Jun. O sangue real derramado pela mão da perfídia selou o destino — Li agora está em guerra.
Não buscamos a vingança cega, mas a justiça que a honra de nossa casa exige. Que o Céu testemunhe: não nos foi deixada escolha. Yao Jun tombou inocente, e sua morte será o estandarte que ergueremos em defesa de Li.
Pai, sabemos que vosso coração já sofre por tantos problemas, mas pedimos que não deixe que a dor nos paralise. A memória de nosso irmão deve ser força, não sombra. Confiamos que Vossa Majestade guiará o país neste caminho inevitável.
Retornaremos assim que possível da Província Ocidental, entramos em guerra e traremos dor e sangue para aqueles que sujaram suas mãos com o sangue de meu irmão.
Ao Imperador, com lágrimas de filhos e o juramento de príncipes,
Ka Zuigetsu e Ka Jiang
Na Província Ocidental, em vigília pelo corpo de Yao Jun."
— Yao Jun… — murmurou, quase inaudível, a carta tremendo em suas mãos.
Ah-duo se levantou de um salto, o corpo rígido, os olhos marejados.
— Não… não pode ser verdade… — disse, a voz quebrando. — Ele era meu filho também… — e a mão tremeu, pousando sobre o peito, tentando conter o choque.
A carta relatava, com uma frieza burocrática, a morte de Yao Jun em um ataque surpresa durante uma missão da Província Ocidental. Mais adiante, os irmãos informavam que, devido ao estado de guerra, retornariam imediatamente ao palácio, abandonando temporariamente os compromissos na província.
— Eles… voltarão mais cedo — Ah-duo disse, a voz embargada. — Em meio a esta guerra… — engoliu em seco, a mão cobrindo a boca — … e com tudo isso acontecendo…
Yang fechou os olhos, respirando fundo, cada sílaba da carta parecia carregar o peso de uma vida inteira. Ele sabia que não podia demonstrar fraqueza, mas a dor da perda era inevitável. Seus olhos se ergueram para Ah-duo, que agora tremia, soluçando baixinho.
— Ah-duo… — começou ele, a voz baixa, controlada — sei que sentes o mesmo que eu. Yao Jun era… teu filho, como era meu, e mesmo sabendo disso, nada muda a dor que agora sentimos.
Ah-duo se lançou nos braços dele, abraçando-o com força, enquanto soluços cortavam o ar, o Imperador, apesar da rigidez habitual, apertou a esposa contra si, sentindo a própria raiva e desespero tentando escapar.
— E agora… com os príncipes voltando mais cedo… — continuou, os olhos sombrios. — Tudo precisa ser rearranjado. Os preparativos, as agendas, as cerimônias. Tudo.
Ah-duo assentiu, ainda abraçada a ele, a mente girando em mil pensamentos. Cada decisão que tomassem seria carregada de peso e culpa, e a lembrança de Yao Jun, a criança que ambos amavam profundamente, seria a sombra que os acompanharia.
— Devemos… — começou Ah-duo, a voz tremendo — devemos nos preparar para recebê-los, mas também… para… lidar com tudo que aconteceu.
Yang apertou o rosto dela contra o peito, respirando fundo.
— Sim… — murmurou. — E que nossos filhos encontrem forças, mas agora… precisamos encontrar forças também.
A carta de Jinshi e Jiang repousava sobre a mesa, testemunha silenciosa da tragédia, da guerra e do retorno iminente dos príncipes, enquanto Yang e Ah-duo permaneciam entrelaçados, tentando manter o coração firme apesar do abismo que se abria ao redor deles.
O corredor que levava aos aposentos do Imperador estava silencioso demais, cada passo de Gaoshun e Basen ecoava como um tambor pesado, prenunciando que notícias graves se aproximavam. A lamparina na parede oscilava, projetando sombras longas e inquietantes, enquanto o som de seus passos se misturava ao sussurro distante do vento entre as colunas do palácio.
Ao chegarem diante das portas do salão privado, Gaoshun respirou fundo, os olhos endurecidos pelo peso da informação que carregava. Ele tocou a porta com os nós dos dedos cerrados, e Basen acompanhou, o semblante tenso, quase segurando a respiração.
— Majestade… — Gaoshun chamou, a voz firme, mas com a gravidade de um trovão prestes a cair. — Imperador… Imperatriz… precisamos alertá-los.
Yang ergueu o olhar do documento que ainda segurava sobre a mesa, a expressão carregada pelo luto recente de Yao Jun. Ah-duo ergueu-se, sentindo o corpo estremecer diante do tom urgente.
— O que houve? — perguntou a Imperatriz, a voz ainda trêmula, as mãos apoiadas na mesa de carvalho polido.
Gaoshun aproximou-se e, sem rodeios, falou:
— Majestades… a princesa Maomao e seus irmãos mais novos… desapareceram desde esta manhã. Não há sinal deles em nenhum dos pavilhões ou jardins que revistamos.
Ah-duo congelou, as mãos pressionando a boca.
— Como… isso é possível? — murmurou, os olhos marejados.
— Procuramos em todos os lugares possíveis. — Basen acrescentou, engolindo em seco. — Mas os pontos cegos do palácio, aqueles que raramente são patrulhados… nada. Não conseguimos encontrá-los.
Yang ergueu-se, a fúria e a apreensão queimando em seus olhos.
— E os guardas? — sua voz saiu dura, firme. — Todos?
— Sim, Majestade — Gaoshun respondeu, com a calma fria de quem já analisou todos os detalhes. — Mas houve falhas. E encontramos indícios preocupantes: a pulseira dourada, cravejada de rubis, que pertence à princesa… foi achada em um desses pontos cegos. — ele ergueu a mão, mostrando o adorno reluzente, o brilho dos rubis refletindo na luz das lamparinas. — Isso indica que estiveram ali, mas agora… ninguém sabe onde realmente se encontram.
Ah-duo estremeceu, as lágrimas escorrendo silenciosas pelo rosto.
— Meu Deus… — sussurrou, engolindo o nó na garganta. — Todos eles… — a mão voou ao peito, a aflição transbordando. — Yao Jun… e agora Maomao… e as crianças…
Yang permaneceu parado por um instante, a expressão endurecida, o corpo rígido, a perda de Yao Jun ainda queimava, e agora o sumiço da filha e dos netos pressionava-o como ferro em brasa.
— Gaoshun… — disse, finalmente, a voz baixa, controlada, mas carregada de autoridade — você tem que trazer isso imediatamente ao meu conhecimento completo.
Gaoshun inclinou a cabeça.
— Sim, Majestade, mas para que possamos agir de forma eficaz… — pausou, os olhos firmes — a informação deve ser oficial. O Imperador precisa autorizar buscas em massa e bloquear qualquer saída até que todos sejam localizados. Caso contrário…
Ah-duo fechou os olhos, soluçando baixinho, e Yang respirou fundo, fechando os punhos. A decisão pairava sobre eles: como mover o palácio inteiro sem criar pânico, sem dar vantagem a qualquer inimigo oculto, e ainda proteger aqueles que amavam?
O silêncio caiu por alguns segundos, pesado, como se o próprio tempo tivesse parado, a pulseira de Maomao sobre a mesa doImperador refletia o brilho frio das lamparinas, testemunha silenciosa do desaparecimento que ameaçava abalar o coração do Império.
[. . .]
1 semana depois...
Uma semana havia se passado desde o desaparecimento da princesa Maomao, o palácio, antes calmo e meticulosamente ordenado, fervilhava em sussurros e olhares ansiosos. Guardas percorriam corredores, criados cochichavam entre si, e em todos os cantos se falava do sumiço da jovem princesa, que permanecia sem pista.
No entanto, a morte de Yao Jun ainda era um segredo que o Imperador Yang mantinha para si e para Ah-duo. Ele não conseguia, nem queria, trazer à tona a notícia para Gyokuyou, mesmo sabendo que sua ausência e preocupação seriam inevitáveis.
No grande Salão Imperial, FengXian entrou de forma abrupta, os cabelos verdes em desalinho, olhos vermelhos faiscando de fúria. Ao seu lado, Lakan, o tentava manter a compostura, mas a tensão do ambiente era palpável.
— Imperador! — gritou FengXian, sem se conter. — Como ousa ser tão negligente?! Meus filhos estão desaparecidos há uma semana e você não avisou os príncipes nem por um minuto se quer, não moveu um único soldado para protegê-los! — ela chutou o ar com raiva, jogando seus sapatos na direção do Imperador.
Yang permaneceu ereto desviando da mira de FengXian, os olhos vermelhos fixos nela, tentando conter a própria raiva.
— FengXian… — começou, firme. — Tenha calma.
— Calma?! — disparou ela, a voz tremendo de fúria. — Esperava que o palácio tivesse cuidado e zelo com seus membros, ao invés de vê-los como peças descartáveis.
Lakan segurou sua esposa pelos braços, encostando-a levemente para que respirasse fundo.
— Minha querida, pelo bem do bebê… acalme-se — disse, em tom firme, mas preocupado, enquanto ela finalmente respirava fundo e voltava a se sentar à mesa, rodeada por Yang, Ah-duo, Lahan, Jin-Ye, Gyokuyou e Lihua — Você não deve se alterar lembra?
A mulher ignorou o comentário, jogando os cabelos esverdeados por trás do ombro.
— E com isso o casamento de Jin-Ye e Lahan será feito às pressas. — continuou o Imperador, tentando manter a autoridade, mas a tensão no ar só aumentou.
— Feito às pressas? — FengXian ergueu a voz novamente, inclinando-se à frente da mesa, a raiva pulsando em cada gesto, Ah-duo pediu que a filha se levantasse, e ao fazê-lo, FengXian finalmente notou a barriga de Jin-Ye, a expressão dela endurecendo de indignação.
Ela virou-se abruptamente para Lahan, olhos vermelhos faiscando:
— Você… — a voz da mãe cortava como lâmina. — Não criei um filho devasso para que desonrasse uma princesa!
Antes que pudesse conter-se, FengXian bateu com a mão no rosto de Lahan, e em seguida desferiu um soco firme em seu peitoral, Lakan segurou-a com força, os braços envolvendo-a enquanto tentava acalmá-la.
— Vou casar com a princesa Jin-Ye. — respondeu Lahan, a voz firme, os olhos azuis fixos no chão por um instante. — Isso é o mais importante.
— Isso é o mais importante. — o imitou batendo novamente na cara do filho — O casamento não apaga o fato de você ter seduzido a princesa! — rugiu FengXian, os cabelos verdes caindo sobre os ombros. — E a engravidou, trazendo desgraça ao nome da família dela! E PARA A NSSA — os olhos vermelhos faiscavam de raiva — Tenho todo o direito de chamar sua atenção Lahan, você cresceu de tamanho, mas continua sendo uma criança, continua sendo meu filho e se repudio essa ação, é porque nem mesmo eu quando era cortesã, ousei perder a minha honra antes de me casar, me casei e só depois vim a ter meus filhos e vejo que falhei totalmente como sua mãe. E ouso dizer que Jin-Ye não possuí a culpa sozinha de ter se entregado a você, mas você foi o maior culpado sabendo das consequências que isso poderia trazer...
Lakan permaneceu em silêncio, a decepção evidente em seu olhar, Lahan também ficou calado, sem conseguir rebater a mãe que defendia Jin-Ye com veemência, tratando-o como se ainda fosse uma criança.
Jin-Ye permanecia parada, os cabelos roxos caindo sobre os ombros, os olhos vermelhos fixos no chão, o coração disparado pelo embate que se desenrolava à sua frente. Ah-duo, respirava fundo, tentando controlar a própria tensão, enquanto Gyokuyou, observava a cena com cuidado, preocupada em não piorar o conflito, enquanto Lihua, permanecia silenciosa, analisando cada gesto, pronta para intervir caso fosse necessário.
Lahan permanecia em pé, o corpo rígido, os olhos azuis faiscando de determinação e frustração. Cada gesto de FengXian, cada palavra carregada de fúria, parecia pesar sobre seus ombros como chumbo. Mas ele respirava fundo, tentando se manter firme, lembrando-se de Jin-Ye, que estava ao seu lado, pálida, mas de olhos vermelhos fixos nele, segurando com força o próprio ventre.
— Mãe… — disse Lahan, a voz firme, mas carregada de tensão — sei que está indignada, e não espero que compreenda agora, mas eu vou casar com Jin-Ye. Ela é minha responsabilidade, e a protegerei de tudo e todos. Isso é o que importa.
FengXian encarou o filho, o rosto marcado de raiva e dor.
— Responsabilidade?! — a voz tremia, cheia de fúria e incredulidade — Você seduziu uma princesa, engravidou-a, e ainda fala de responsabilidade? Que honra é essa, Lahan? Que nome é esse que você pretende manter?
Lakan apertou o braço de FengXian, tentando conter o ímpeto da esposa, mas ela se afastou bruscamente.
— Eu não vou me calar! — gritou. — E não aceitarei que ninguém trate a princesa como uma desonra!
Jin-Ye, com a cabeça baixa, ergueu os olhos lentamente, encarando a mãe de Lahan, e com a voz trêmula, mas firme, falou:
— Lady Kan… eu… não posso mudar o que aconteceu, mas Lahan está aqui, erramos igualmente, seu filho tem cuidado e me protegido muito bem, vamos passar por tudo isso juntos, isso não é o fim.
O olhar de FengXian suavizou por um instante, mas logo voltou a endurecer, Lakan suspirou fundo, fechando os olhos por um instante, sentindo a decepção pela situação, mas também tentando conter o furor da esposa.
Ah-duo, que até então permanecia silenciosa, aproximou-se de Jin-Ye, a mão pousando suavemente em seu ombro.
— Minha filha… — murmurou, a voz carregada de pesar e autoridade — o casamento será feito. Agora não há outra escolha que nos permita preservar o nome da família e a integridade de todos.
Yang permaneceu ao lado, olhos vermelhos sombrios, acrescentando:
— Que seja rápido, que Mestre Lahan, cuide da princesa e que este casamento se conclua sem mais delongas.
O peso das decisões pairou sobre a sala, mas antes que o silêncio se assentasse por completo, Gaoshun entrou, seguido de Basen, ambos com expressão grave.
Lahan apertou a mão de Jin-Ye com firmeza, transmitindo a promessa de proteção, wla, por sua vez, respirou fundo, a tensão cedendo lugar a uma determinação silenciosa — se o palácio não os encontrasse rapidamente, eles mesmos precisariam se manter fortes e unidos.
FengXian, ainda se recuperando da explosão anterior, respirou fundo, a raiva ainda pulsando em suas veias, mas a consciência de que precisava conter-se pelo bebê a segurava. Ela fitou Lahan por um instante, os olhos verdes faiscando de raiva contida, mas não pôde negar que ele havia se mantido firme diante de toda a pressão.
— Então… — disse Ah-duo, a voz carregada de autoridade — que este casamento aconteça. Mas todos nós estaremos atentos. Cada passo, cada decisão… — pausou, os olhos percorrendo os presentes — … será acompanhado.
A sala mergulhou em um silêncio tenso, cada respiração parecia ecoar pelas paredes de mármore. Todos sabiam que aquele momento marcava o início de uma semana decisiva: o casamento que uniria Lahan e Jin-Ye, e a busca incessante por Maomao e seus irmãos. A tensão, a responsabilidade e o medo pairavam como sombras, mas também havia uma centelha de esperança, eles precisavam acreditar que tudo estaria bem com Maomao e as crianças, caso contrário perderiam a fé naquilo que mais preservavam, o amor pela família mesmo em momentos difíceis.
Chapter 26: O Imperador em Pavor
Notes:
Ando muito cansada e acredito que a história não esteja tão boa como deveria, mal consegui revisar alguns trechos, pedi pra IA corrigir de tão cansaço que estou nesses últimos dias.
Mas de toda forma espero que gostem, estarei olhando os comentários e respondendo assim que possível
Boa leitura :)))
Chapter Text
O Salão do Trono permanece envolto em um silêncio pesado, como se até as paredes de pedra absorvessem e devolvessem em eco as palavras que o Imperador havia proferido minutos antes. Eles ainda retumbavam na mente de todos os presentes, gélidos e inescapáveis, como um veredicto irrevogável.
— O Império não pode ruir por um nome, o povo deve ver estabilidade, não fraqueza, não há ordem para mobilizar o Exército Proibido.
A sentença reverberava como aço contra aço, dura demais para ser contestada, os conselheiros mantinham-se imóveis, com o olhar baixo, cada um tentando disfarçar o peso da tensão que se acumulava no ar. Até mesmo os eunucos e servos, acostumados a presenciar disputas e decretos, apenas petrificados, receosos de respirar alto demais.
O Imperador, sentado em seu trono dourado, não estende a voz além do necessário, ele não precisa. Sua autoridade não vem da força das palavras, mas do vazio que deixa depois delas. Uma frieza calculada, que se impunha mais do que qualquer grito, seus olhos, estreitos e sem emoção, varreram o salão, lembrando a todos de que o peso do império residia sobre seus ombros — e que qualquer fragilidade seria esmagada sem piedade.
Aquelas palavras não eram apenas uma decisão política. Era um aviso. Um limite. Uma muralha invisível erguida contra qualquer esperança de mudança.
Lahan inclinava a cabeça em reverência, os punhos fechados sob as mangas, mas a reverência era apenas fachada: por dentro, o sangue pulsava como um tambor de guerra.
Quando saiu do recinto, o silêncio dos corredores parecia zombar dele, o mármore refletia suas passadas pesadas, e cada passo era uma tentativa de conter a fúria.
— Não por um nome? — repetia — Eles não são apenas um nome, são meus irmãos. E Maomao é minha gêmea, minha carne e sangue.
A lembrança de Maomao surgiu claramente: o sorriso sedutor, os olhos azuis atentos como lâminas, a forma com que sempre guardava mais do que dizia. A vida inteira ela o protegeu, mesmo quando estavam separados por muralhas, mesmo quando seu destino foi selado por intrigas palacianas. E agora, quando mais solicitado, o Imperador prefere o silêncio à ação.
O céu noturno cobria o palácio como um manto pesado, pontuado apenas pelo canto distante dos grilos, a lua parecia fria, indiferente. Lahan caminhou pelos corredores mais escuros, conhecendo cada atalho que os guardas ignoravam. Seu destino estava traçado: a biblioteca imperial.
A porta rangeu sob seu toque firme, ao entrar, foi recebida por um oceano de estantes, fileiras e fileiras de saber acumuladas por dinastias. O cheiro da madeira antiga misturada ao pó encheu suas narinas.
Ele parou no centro, respirando fundo, como quem se despede antes de executar um golpe final.
"Perdoe-me, irmãos... mas se eles não se movem por vocês, então eu obrigarei o Império a se mover."
Movendo-se rapidamente, descobri a coleção de documentos escondidos atrás de painéis de madeira e estantes secretas. Mapas militares, tratados de fronteira, registros de linhagem, relatórios sobre entrega de forças armadas — aquilo que não poderia ser entregue às chamadas. Cada rolo de papel era guardado sob sua capa com precisão. Lahan não era um homem desordenado: até na fúria, havia método.
Por fim, atraiu uma tocha, a chama dançava em sua mão, refletida em seus olhos endurecidos. Ele encostou uma ponta incandescente num pergaminho deixado sobre uma mesa central. O fogo começou pequeno, tímido, como se hesitasse diante da imensidão. Depois, ganhou força. As chamas se espalharam, subindo pelos fios de seda que ornamentavam as prateleiras, lambendo as estantes como feras libertas da jaula.
O estalar da madeira quebrava o silêncio como chicotes, o ar logo se encheu de fumaça, de cinzas rodopiando como mariposas condenadas.
Lahan observava, imóvel, o inferno que criara, o calor o atingia no rosto, o suor escolria pela testa, mas seus olhos estavam fixos, duros, como se aquela visão não fosse apenas destruição, mas um manifesto.
— Se o Imperador não ordena a busca... então que o próprio império arda com suas escolhas. — murmurou, a voz grave, quase inaudível sob o rugido das chamas. — Eu os trarei de volta, mesmo que precise queimar o mundo inteiro.
No fundo do palácio, soaram os primeiros gritos, guardaram a fumaça escapando pelas frestas das janelas altas. Logo os gongos ecoaram, estrondosos, sacudidos o palácio adornado, o incêndio na biblioteca não pôde mais ser ocultado.
Lahan, entretanto, já desaparecia pelas sombras de um corredor lateral, levava consigo os documentos mais preciosos, ocultos sob a capa. A cada passo, deixava para trás não apenas livros e registros, mas o próprio coração do saber imperial.
Do lado de fora, a lua iluminava a fumaça que se erguia como um lamento silencioso, o céu parecia tingido de vermelho, e o palácio, abalado, despertava em alarme.
A noite no palácio havia começado serena, com apenas o murmúrio distante dos criados recolhendo as últimas lamparinas e o som de grilos além das muralhas. Mas, aos poucos, uma coluna de fumaça espessa-se como um fantasma negro contra a lua prateada.
O primeiro avistar foi um guarda que rondava os pavilhões que viriam.
—Fogo! Uma Biblioteca! — referiu, a voz compartilhada de pavor.
Em instantes, o alarme se mantinha, os gongos subiam, graves e repetidos, ecoando como trovões no silêncio da noite. O som despertou concubinas, eunucos, oficiais e até mesmo crianças nos dormitórios. Portas se abriram apressadamente, vozes se ergueram em tumulto.
— A Biblioteca Imperial está em chamas!
— Os registros! Os livros!
— Tragam água! Depressa!
Corridas desordenadas encheram os corredores, servos agarraram baldes, formando linhas apressadas até os poços e cisternas. Guardas queriam organizar o caos, mas o desespero já dominava a multidão.
O fogo, entretanto, não esperava, as chamas, já altas, iluminavam o céu noturno, tingindo-o de vermelho. O calor se espalhava pelos pavilhões próximos, e a fumaça sufocante fazia muitos tossirem, cobrindo o rosto com as mangas.
Concubinas se amontoavam nas varandas, algumas chorando, outras rezando em desespero. Eunucos gritaram ordens contraditórias:
— Salvem os registros!
— Não, protejam os pavilhões vizinhos!
— Depressa, ou o fogo vai engolir tudo!
O coração do palácio ardia diante de seus olhos, estantes milenares, selos oficiais, escritos dos ancestrais imperiais - tudo estava sendo consumido pelas chamas. Cada estalo da madeira que cedia era como um gemido de dor da própria dinastia.
Dentro do tumulto, oficiais de alto posto chegam, usam às pressas suas roupas cerimoniais. A visão das chamas fez muitos empalidecerem.
— Se a biblioteca cair... será como se a memória do império fosse apagada! — murmurou um deles, quase sem voz.
Guardas tentavam conter a multidão, mas o desespero era maior, alguns eunucos arriscavam a vida, correndo para dentro das salas já tomadas pelo fogo para salvar pergaminhos. Poucos voltavam. Outros foram engolidos pelas labaredas, os gritos perdendo-se no rugido incansável do incêndio.
A noite parecia interminável, o palácio, habituado ao silêncio respeitoso, agora estava tomado pelo som de choro, correria e caos. A Biblioteca Imperial, símbolo de poder e de saber, ardia como um holocausto diante de todos.
E ninguém sabia ainda que aquele incêndio não fora obra do acaso, mas a mão decidida de Lahan, que caminhava nas sombras, carregando consigo os segredos que escolhera salvar.
O gongo soava ininterrupto, estrangulando madrugada em notas graves e desesperadas, oficiais da guarda e eunucos corriam sem rumo, tentando salvar o que podiam da Biblioteca Imperial, mas o fogo já erguia muralhas incandescentes, lambendo o céu como se quisesse devorar as estrelas.
Quando o portão principal se abriu, um silêncio pesado se deixou por entre o tumulto, o Imperador surgiu, avançando pelo pátio iluminado pelas labaredas. Sua figura, imponente sob as vestes escuras bordadas em ouro, parecia não vacilar nem diante do caos. Ao seu lado, caminhava a Imperatriz Ah-duo, envolta em um manto carmesim que ondulava ao vento quente do incêndio.
Todos se curvaram, mesmo em meio ao desespero, como se a presença imperial fosse ainda mais ardente que o fogo atrás deles.
Ah-duo levou uma mão ao rosto, os olhos arregalados diante da visão da biblioteca — o coração do império — sendo consumido em chamas.
— Céus... todo o conhecimento de nossos ancestrais... — sua voz saiu quase num sussurro, mas próximo o suficiente para o Imperador ouvir.
Ele, porém, apresenta imóvel, os olhos estreitos fixos no incêndio. Não houve lágrimas, nem desespero, apenas resolução.
— O que se perde em papel pode ser reescrito — disse, com uma calma cortante. — Mas a ordem, se quebrada, nunca retorna.
Ao redor, oficiais e eunucos se agitavam, aguardando ordens. Um general se mudou, a armadura refletindo o vermelho das chamas.
— Majestade, enviamos homens para tentar conter o fogo, mas já é tarde! Parte dos arquivos se desintegrou com o fogo!
Ah-duo recuou um passo, o calor ardendo em sua pele. Os olhos dela se encheram de lágrimas ao ver um grupo de eunucos carregando, às pressas, um rolo carbonizado, tentando salvar ao menos uma fração da memória imperial. Ela segurou firme o mangá da veste do Imperador, quase em súplica.
— Não podemos assistir em silêncio enquanto tudo se perde!
Mas ele apenas pousou a mão sobre a dela, firme, quase reprimindo o gesto.
— Já está decidido. O que queima é apenas reflexo do império que já se desfaz por dentro.
Suas palavras gelaram os corações ao redor. Muitos baixaram os olhos, incapazes de compreender aquela frieza.
Enquanto o incêndio rugia, um eunuco caiu de joelhos diante do Imperador, soluçando.
— Majestade, documentos das províncias externas... os registros da linhagem real... se perderão para sempre!
O soberano projeta a cabeça lentamente, os olhos brilhando à luz do fogo.
— Que se percam. Um império não vive de tinta e seda. Viva de acordo.
Ah-duo fechou os olhos, sufocada pela dureza das palavras, para ela, aquelas chamas não destruíram apenas papel — queimaram também a memória, a alma da dinastia.
Atrás deles, o rugido da biblioteca desabando em cinzas ecoou como um trovão, o império, naquela noite, testemunhava não apenas a perda de seus registros, mas o prenúncio de uma tempestade que ainda se erguia.
E, nas sombras, longe da multidão, Lahan observava, ninguém sabia que aquela ruína carregava a marca de suas próprias mãos e ele usaria isso como uma moeda de troca, nisso ele sabia como fazer o jogo voltar ao seu favor.
[. . .]
A alvorada trouxe consigo um céu acinzentado, como se as próprias nuvens carregassem as cinzas da noite anterior. O palácio ainda exalava o odor acre da fumaça. Os corredores, geralmente imaculados, eram sujos de fuligem, e servos iam e vinham com olhos baixos, carregando restos queimados que foram resgatados da biblioteca.
No grande salão, o Imperador permaneceu sentado no trono, mas sua postura era muito tranquila. As mãos seguravam firmemente os braços de madeira entalhada, os nós dos dedos brancos. Seu olhar, fixo e duro, denunciava a que rugia dentro dele.
Ah-duo estava próximo, com a expressão serena mas vigilante, como quem sabe que um único gesto errado poderia incendiar novamente não apenas a biblioteca, mas todo o palácio. Ela mantinha a voz baixa, quase um canto brando:
— Majestade... o império precisa de sua firmeza, mas também de sua cautela, a empatia que o aproxima mais do povo. A tragédia já aconteceu, o que resta é mostrar ao povo que nada abalará o trono.
Ele a olhou de relance, os olhos faiscando, ainda assim, não respondeu de imediato, a ira não lhe permitiu palavras.
Foi nesse instante que passos apressados ecoaram pelo corredor, Lingli, entrou primeiro, a saia longa erguida nas mãos para não tropeçar. Seu rosto, geralmente composto, estava pálido de ansiedade.
— Pai! — chamou, a voz trêmula. —É verdade? A biblioteca... realmente caiu?
Atrás dela vinha Liang, correndo sem conseguir acompanhar o passo da irmã, o menino, ofegante, segurava firme o braço da ama que quase o perdera de vista. Seus olhos brilhavam com lágrimas contidas.
— Pai... Disseram que tudo pegou fogo!
Antes de chegar mais perto, Gyokuyou estendeu a mão e interceptou os filhos, sua expressão carregava uma ternura firme.
— Não se aproxima. — disse com doçura, mas sem espaço para contestação.
Lingli parou, confusa, fitando a mãe.
— Mas mãe... precisamos ouvir dele!
Lady Lihua, que apareceu ao lado de Gyokuyou, pousou a mão no ombro da jovem princesa, seu tom era suave, mas decidido:
— O Imperador não está em condição de falar agora, vocês não podem somar peso ao coração dele.
Liang, inquieto, tentou se soltar.
— Eu só quero perguntar... se o fogo doeu nos livros. Eles eram vivos... não eram? — a inocência de sua idade transformou uma tragédia em algo quase palpável.
Gyokuyou se abaixou e o abraçou com força, ocultando as lágrimas que ameaçavam cair.
— Os livros não sentem dor, meu filho, mas nós... nós sentimos por eles.
Lingli, porém, não consegue se conter. A lembrança de ter treinado tantas horas naquelas salas, de ter lido registros antigos ao lado dos tutores, feria-lhe o coração.
— Então é verdade... — murmurou, a voz embargada. — O coração do império se perdeu nas cinzas...
Do trono, o Imperador transparente o olhar. Finalmente corte o silêncio, sua voz grave cortando o ar:
— BASTA!
O som da palavra ecoou como aço batendo em pedra, até os guardas estremeceram.
Ah-duo se adiantou, pousando suavemente a mão sobre o braço dele, como se sua presença pudesse amortecer a fúria.
— Majestade... são apenas seus filhos, movidos pelo amor e pelo temor do que viram.
O Imperador respirou fundo, cerrando os olhos por um instante. Não era um homem dado a limitações de fraquezas, mas a visão de Lingli e Liang — duas vidas que representavam parte do futuro do império — trouxe-lhe uma pontada de realidade.
Ainda assim, a ira não se dissipava.
— O que foi perdido não se recupera, mas o trono permanece. — ele ouviu a voz, firme, para que todos no salão ouvissem. — Enquanto eu respiro, este império não tombará em chamas.
Os oficiais da guarda inclinaram-se a cabeça em sinal de obediência, mas a tensão era palpável, Ah-duo manteve o toque sobre ele, delicado, ancorando-o à humanidade que quase se perdia na frieza.
Gyokuyou abriu as mãos dos filhos, mantendo-os a uma distância segura, consciente de que a chama que extrai a biblioteca ainda ardia no coração do próprio Imperador.
E assim, sob o peso do dia seguinte, o palácio inteiro compreendeu: o incêndio não havia destruído apenas pergaminhos, mas também o delicado equilíbrio do trono.
Os corredores do palácio fervilhavam não apenas com o cheiro ainda adocicado e enjoativo da fumaça, mas com sussurros que se espalhavam mais rápido do que qualquer brasa. O incêndio na Biblioteca Imperial — o coração do saber, o repositório da história e da glória do Império — deixou a todos atordoados.
Eunucos passavam apressados, mas ao mesmo tempo se curvavam uns para os outros em esquinas escuras, trocando olhares de desconfiança e palavras quase inaudíveis:
— Como isso poderia acontecer? — sibilava um deles, a voz trêmula — Não era apenas madeira e papel, mas registros de alianças, mapas militares, decretos sagrados...
— Talvez não tenha sido um acidente — murmurava outro, olhando para os lados antes de inclinar-se ainda mais próximo — Quem teria ousado... incendiar o coração do Império?
As concubinas, afastadas em seus pavilhões, cochichavam entre si, abandonando-se com leques mesmo sob o vento fresco da manhã. Alguns falam em maldição, outros em conspiração. Havia aqueles que juravam que o fogo fora um aviso dos céus, castigo pelo silêncio do Imperador diante dos desaparecimentos recentes.
— Primeiro o sumiço da princesa... agora a destruição da Biblioteca... — disse uma concubina de voz rouca, os olhos arregalados. — Isso não é coincidente.
— Cuidado com a língua! — retrucou outra, tapando a boca da companheira com o leque — Se os guardas ouvirem, não restará nem cinza de ti para enterrar.
Enquanto isso, nossos escritórios, oficiais imperiais discutiram em sugestões tensas. Alguns temiam que os documentos escondidos no fogo incluíssem tratados de fronteira, relatórios de espionagem ou nomes de aliados secretos. Outros murmuravam que aquilo só poderia ser obra de alguém muito próximo do trono — um golpe, uma sombra de guerra interna que ameaçava nascer dentro dos próprios muros do palácio.
Um velho ministro, curvado de idade e peso de segredos, falou baixinho a seus pares:
— Se o incêndio não foi mero acaso, então é o prenúncio de divisão. E um Império dividido é um Império que sangra.
Do lado de fora, servos ainda corriam para levar água a baldes inúteis diante das ruínas negras que fumegavam. Os guardas tentavam fugir curiosos, mas os olhos da corte - atentos, desconfiados e famintos por respostas, já estavam voltados para um único ponto: quem ousou desafiar o Imperador naquela noite?
Os rumores não mais perguntaram se o incêndio fora intencional, mas sim quem havia acendido a chama e se aquele fogo não era apenas a fagulha inicial de uma guerra interna que poderia consumir a todos.
[. . .]
Tarde já caiu quando Jin-Ye o encontrou no pátio sul, onde o cheiro de fumaça ainda se agarrava às pedras. Ela vinha do lado dos pavilhões queimados, a alva gola manchada de cinza, um fragmento enegrecido de pergaminho enrolado e preso na palma da mão como quem segura um segredo vivo. A luz dourada do entardecer cortava as sombras longas sobre os dois, refletindo-se nas ruínas negras.
Lahan estava encostado numa coluna, a capa jogada para trás, o rosto exausto mas com uma postura firme. Quando ela se moveu, ele olhou para a cabeça com um sorriso curto, de desdém que parecia, à primeira vista, zombaria.
— Sério que fez isso? — ele disse, a voz tão leve que parecia brincar com a tragédia. — Eu não imaginava.
O sarcasmo dele caiu no ar como um golpe, Jin-Ye deixou o pedaço de pergaminho entre as mãos e encarou-o sem recuar. Havia naquele olhar a paciência de quem conhece alguém demais e a surpresa de quem não esperava tamanha frieza.
— Não seja idiota, Lahan. — a voz dela saiu baixa, ardida — Não venha fazer graça com as cinzas dos nossos livros. — ela levou a outra mão ao peito, sentindo a respiração acelerada. — Quem... quem fez isso?
Ele não respondeu imediatamente. Por um instante, a fisionomia se fechou: a ironia evaporou, substituída por uma calma que cortava. Lahan baixou os olhos para o fragmento na mão de Jin-Ye, depois voltou a olhar, sério pela primeira vez naquela tarde.
— Você acha que eu faria uma coisa tão... teatral? — ele perguntou, e a pergunta não buscava riso nenhum. — Se o Imperador não move um dedo pelos meus irmãos, Jin-Ye, alguém precisa obrigar este palácio a acordar.
As palavras caíram como pedra dentro do lago, Jin-Ye sentiu o mundo tremer por um segundo: a teoria se materializou ali, na voz dele. Ela pegou o queixo, forçando-se a manter o rosto impassível, mas seus olhos ardiam.
— Você está insinuando — começou ela, controlada — que incendiou a biblioteca propositalmente para forçar uma ocorrência? Para que você procure um Maomao? — a última palavra saiu num fio — Lahan... você está louco? Entendendo que o sumiço de seus irmãos seja desesperador, eu também estou preocupado, mas você foi totalmente irracional ao cometer esse crime, Kan Lahan são SÉCULOS DE HISTÓRIA, documentos, alianças, meu bem isso é uma loucura, você destruiu tudo o que temos...
Lahan se atrasou um passo, como quem precisa de espaço para admitir algo impossível, havia culpa naquele movimento, e também algo que se parecia com determinação crua. Ele respirou, e cada sílaba seguinte foi medida.
— Eu não quis destruir o que era precioso. — ele fez um gesto, molhado de cinza, na direção das chamas que se apagaram em parte durante a noite — Eu quis que a ordem completa do palácio fosse sacudida. Tudo estava quieto demais, o Imperador calou-se. Mandos menores se enfiaram no silêncio. Meus irmãos... — a voz dele cortesmente por um instante, e não era apenas política no que disse — meus irmãos desapareceram, e ninguém moveu o Exército Proibido. Ninguém falou a verdade, seu pai decidiu se ocultar e não me restou alternativas. — Lahan a encarou com uma expressão tensa — Se não fosse a biblioteca, o que seria? Usar você para cantar seu pai? Eu não seria tão louco para isso querida, seria um golpe tão baixo quanto incendiar alguns documentos não mais importantes.
— Seria melhor que eu usasse desse modo a colocar vidas inocentes em perigo!
Jin-Ye abriu o fragmento entre os dedos até sentir a pele formigar lembranças, dela e de Maomao, risos que compartilharam, as longas noites de estudo entre aquelas paredes, tudo parecia concentrado naquele pedaço que agora era apenas negro e frágil.
— Você sabia que isso poderia custar vidas? — murmurou ela. — Guardas, eunucos... quem tentou salvar o que pôde... e quem não conseguiu voltar. Sabia disso e mesmo assim fez?
Lahan atraiu o queixo, e a severidade do rosto derrubou o pouco de provocação que restara. Seus olhos eram obscuros, implacáveis, com a mesma urgência que o empurraa até ali.
— Eu sei. E dói. — era uma confissão por inteiro, sem eufemismos. —Mas o que dói mais é ver a indiferença tranquila do trono enquanto o sangue de minha família é exotado como se fosse coisa menor. Se eu não arranjar um modo de fazer o palácio acordar, nossos desaparecidos serão apenas mais um segredo enterrado. Isso eu não vou aceitar.
Jin-Ye deu um passo, a distância entre os dois encolhendo até que pudesse sentir o calor residual do corpo dele. Havia amor ali, sempre houve; Houve também um choque profundo entre método e coração.
— E em que posição você me coloca, Lahan? — Disse ela, mais baixa, ferida — Ao lado de um incendiário que queimou a própria história para obter justiça? Ou ao lado de quem precisa salvar vocês de um trono que prefere a ordem à vida?
Ele a olhou como se a resposta fosse simples, segurou a mão dela por um instante - não para persuadir, mas para ancorar.
— Eu não te peço que entenda agora. — disse ele, quase suave — Peço só que me espere. Prometo que vou trazer os meus irmãos de volta. Mesmo que para isso eu preciso rasgar o próprio céu sobre nossas cabeças.
Jin-Ye fechou os olhos por um segundo, sentindo o peso da promessa e o peso do ato. Quando os abriram, havia nela uma mistura de raiva, medo e uma resolução serena.
— Então não me deixe ser cúmplice de algo que não posso reparar. — Sua voz foi firme. — Se for para salvar a Maomao, faça-o com cuidado. Ou eu mesmo vou detê-lo, mesmo que isso signifique arrancar a chama de suas mãos.
Lahan sorriu, por um segundo apenas, um sorriso cansado e triste.
— Eu não esperaria nada menos de você.
Eles ficaram ali, sob as ruínas que ainda fumegavam contra a luz dourada da tarde, dois que amavam as mesmas pessoas e que divergiam nas maneiras de salvá-los, alinhados por um destino que agora queimava em todas as suas formas.
[. . .]
Seria encontrar o prejuízo real por trás dos incêndios a biblioteca imperial, não havia pistas o suficiente difícil além de uma lamparina quebrada com uma garrafa de bebida a poucos metros de distância, é claro que a forma como a investigação era feita indicava que quem tinha incendiado a biblioteca, estava embriagado, mas era apenas uma suposição, dado como um achismo dos oficiais.
O Imperador estava a ponto de colapsar diante do Conselho Imperial, um filho estava morto, dois estavam em viagem, o país em guerra, uma filha grávida, o sequestro da esposa do filho e dos irmãos dela, além do início de uma guerra que estava por vir, Yang naturalmente estava surtando, não sabia o que fazer e nem como continuar governando o país, ele caminhou para a sua ruína e isso por si só já explicou muita coisa.
No entanto, o sequestro da Princesa da Lua, foi um pesadelo para todos do palácio, especialmente para a cabeça do Imperador, os Kan obtêm ser naturalmente assustadores quando solicitados, de modo peculiar Lahan, o irmão gêmeo da Princesa Imperial, visto que o jovem mestre não se importava com o grito e as espadas dos oficiais do palácio que tentavam o barrar e Lahan apenas os encarava com desdém como se barra-lo fosse realmente um problema.
Yang o encarou sério a distância, analisando sua insolência e coragem, a Imperatriz o observava em silêncio apoiando as mãos no braço do marido que deu um comando com os dedos para que os oficiais permitissem a aproximação de Lahan ao Imperador.
— A que devo uma visita tão inesperada e caótica como a do seu Mestre Lahan? Já não basta ter deflorado a minha filha e feito ela ficar confinada no seu pavilhão até o festival da Colheita?
Lahan riu se aproxima cada vez mais cruzando os braços e erguendo o olhar para o botão que se segurava para não matá-lo ali mesmo.
— Engraçado dizer isso, porque eu não devo nada a você, afinal meu casamento com Jin-Ye será no festival da colheita. — envie com a voz irônica — Mas você sim me deve muito, respostas inclusivas. O Imperador apenas se esquece de que Maomao faz parte desse jogo político envolto das alianças feitas com esse casamento e o descaso que você está a fazer tem consequências. E não me assuste nenhuma delas, afinal você precisa mais de mim do que eu de você, já que sua filha está grávida e se algo acontecer comigo, ela será afetada e considerada uma desonra para o corte já que ainda não nos casamos. Pense nisso antes de continuar a fingir que está no controle.
O eco daquelas palavras pairou no ar como fogo invisível, queimando o silêncio que reinava na corte, o Imperador respirou fundo forçando uma risada sarcástica seguida por um olhar sério e quase mortífero.
— E você, um moleque se acha no direito de chegar até mim, me ameaçar usando minha filha? Pensava que havia um pouco de cavalheirismo de sua parte, mas noto que é diferente de sua irmã, ela possui uma postura e classe que o senhor aparentemente não demonstra e Ouso dizer, suas ameaças não vão mudar minha decisão. — disse o Imperador sendo segurado pelas mãos de Ah-duo que ainda tentava manter o controle.
Lahan riu, foi ao mesmo instante que Lady Gyokuyou e Lady Lihua retornaram ao salão, ao lado de Ah-duo confundiram pela comoção que estava o lugar reservado para reuniões diretas com o Imperador.
Yang estava tenso, irritado e segurando-se bem para não pular em cima de Lahan e matá-lo com suas próprias mãos, enquanto as três mulheres o cercavam tentando fazê-lo ficar calmo para que não perdesse a cabeça e nem tomasse alguma atitude que viesse a se arrepender depois.
— Claro que Vossa Majestade não se sentiu ofendido e nem mudou de idéia, mas vale lembrar que sou filho de um estrategista e também sou um, se serve de incentivo aos documentos salvos naquela biblioteca do palácio, saiba que todos foram queimados, no entanto talvez eu tenha salvo alguns mais importantes, então ao menos que o Imperador mandou o Exercício Proibido atrás de meus irmãos e avise o Príncipe da Lua e o Príncipe do Sol, os documentos serão salvos e eu mesmo entrego em suas mãos, caso contrário eu mesmo terminarei de queimá-los. Então pense bem, assim como seus filhos são importantes para você e para a Imperatriz e as concubinas, saiba que meus irmãos são filhos de alguém e Maomao em especial, é um consorte do Príncipe herdeiro, o que você fez negligenciando às buscas atrás de meus irmãos é um erro grave Majestade e eu espero que os encontrem com vida, porque se eu mesmo não fizer o País de Li ser dividido e acabar com a monarquia.
O eco daquelas palavras pairou no ar como fogo invisível, queimando o silêncio que reinava na corte. O Imperador demonstrou com força, forçando uma risada curta e amarga que morreu antes de alcançar os ouvidos alheios. Seus olhos, acostumados a comandar liderança, acabaram-se lâminas.
— E você, um moleque, se julga no direito de chegar aqui e me ameaçar usando minha filha? - a voz de Yang saiu cortante, rígida como metal. — Achei que havia ao menos um pingo de cavalheirismo em você, mas vejo que é diferente da irmã: ela tem postura, classe — virou o rosto, o desprezo explícito. — Suas intimidações não moverão minha mão.
Ah-duo segurou o braço do Imperador com a delicadeza tensa de quem tenta conter uma tempestade; suas mãos trêmulas buscavam lembrar Yang do autocontrole mais do que da razão. Mal terminara a frase quando o riso de Lahan rompeu o salão, um som frio, sem alegria.
Yang estava tenso como um arco prestes a disparar. Era visível — nos punhos cerrados, na veia no pescoço, no brilho quase homicida no fundo dos olhos — que ele lutava contra o impulso de lançar-se sobre Lahan e terminar ali a frente com as próprias mãos. As três mulheres cercaram instintivamente, formando uma muralha de urgência, tentando aquietar o fogo que rumoresejava sob a pele do soberano.
A última sentença caiu como um punho. Não era apenas uma ameaça; era uma promessa esculpida em aço. No rosto do Imperador, a máscara de autoridade trincou por um instante, dando passagem a algo mais profundo: o medo de que as alianças que sustentavam o trono hospedando a um fio — e que, desse fio rompido, viesse o fim de tudo que conhecia.
O salão pareceu encolher em volta deles. Depois da sentença de Lahan, o som das espadas baixando virou um zumbido distante, tudo o que restou foi o peso das quatro presenças sobre o irmão, como se as paredes mesmas estivessem avaliando o inimigo.
Os olhos do Imperador eram brasas contidas. Cada fibra do corpo de Yang exalava violência contida: o queixo apertado, a respiração curta, as mãos que tremiam por trás do trono. Não era só raiva; havia, por baixo dela, uma corrente de cansaço que fazia a autoridade dele oscilar e essa fissura, mais que qualquer argumento, era o que Lahan mirava com precisão.
Ah-duo segurava a mão dele com dedos de porcelana — um gesto que, à primeira vista, era proteção, mas que carregava também a urgência de quem conhece as linhas de falência do outro. Seus dedos pressionavam a pele do Imperador com uma força quase carinhosa; não para rir, mas para ancorar-lo. Os olhos dela não fogem de Lahan; eram frios, avaliados, e nelas havia uma história que o salão não conhecia: memórias de estratégias, acordos selados ao luar, promessas sussurradas que se transformaram em trancas.
Lady Gyokuyou ficou levemente recuada, mas suas sobrancelhas desenharam uma linha de desenho. Havia orgulho no modo como mantinha o queixo firme — não a típica indignação histórica de quem teme pela honra, antes, uma curiosidade tensa, como quem lê um mapa e já imagina por onde seguir. Lady Lihua, ao lado, era o contraste perfeito: olhos que fixavam Lahan como quem pesa uma moeda, lábios comprimidos num risco fino. Havia nela menos ternura e mais política, cada músculo do rosto parecia traduzir números e probabilidades.
Lahan, por sua vez, mantinha-se imóvel. Estava perto o suficiente para que o ar entre ele e o Imperador tremulasse — um sopro de álcool, talvez, e algo mais que lembrava terra molhada de estratégia. Ele sorriu sem deboche, com uma calma que mais parecia a tranquilidade de quem vê o final do tabuleiro antes do início do jogo.
O silêncio se tornou um objeto cortante. Então, como se rompesse uma tensão que era ao mesmo tempo privado e público, Ah-duo se clamou. Não houve ordem, nem imposição — apenas um movimento natural, preciso. A sala prendeu a respiração enquanto ela caminhava, passo breve e seguro, até ficar a uma distância onde só Lahan e ela pudesse sentir o calor um do outro.
Ninguém esperava o que veio a seguir. Ah-duo não insultou, não ameaçou. Apenas estendeu a mão e tocou o pulso de Lahan - um contato mínimo, firme, com a leveza de quem conhece o pulso de um aliado e a firmeza de um inimigo. O toque trouxe um silêncio diferente: íntimo, pessoal, carregado de história.
— Você joga um jogo perigoso garoto. — murmurou ela, tão baixo que só Lahan poderia ouvir. A voz era seda sobre aço. — E eu sei jogar.
Lahan desviou o olhar por um instante — surpresa, talvez, ou reconhecimento — e então encontrou de novo os olhos dela. Era como se, naquele segundo, algo invisível tivesse sido lembrado entre os dois: um pacto antigo, um respeito que ultrapassava a corte. Ah-duo não é sincero. Não preciso.
Ah-duo avançou dois passos, o silêncio do salão acompanhando cada movimento dela. Seus olhos se prenderam em Lahan como se pesassem cada palavra, cada respiração, cada linha da postura dele. Não havia deboche em sua expressão - apenas uma observação atenta de alguém que reconhecia um reflexo distante de si mesma.
Estendeu a mão e tocou levemente o pulso dele, firme o bastante para que todos vissem, íntimo o bastante para que só ele entendesse.
— Você exige sua presença de uma forma que poucos ousariam diante do trono. — sua voz é tão calma, mas trazida de algo que atravessa gerações. — Não teme o poder, não se curva ao peso das coroas, nem ao fogo que se ergue à sua frente. Isso... — inclinou levemente o queixo, deixando escapar uma sombra de sorriso - é a marca de quem nasceu para liderar.
Ah-duo soltou o pulso dele, deixando uma frase pairar como uma sentença.
— O Clã Kan terá em você um futuro digno, Lahan. Forte, estratégico... e indomável.
As palavras não foram ditas como elogio raso, mas como uma constatação recente, quase profética. O salão inteiro pareceu prender a respiração, dividido entre a ousadia dele e o raro reconhecimento dela.
O som foi pequeno, mas o efeito foi sísmico. Yang recuou um pouco, quase sem querer, a mão relaxando na do trono. Gyokuyou enfiou os dedos nas mangas, controlando a emoção com aquele protocolo contido que só disfarça tempestades. Lihua, por fim, soltou um suspiro que ninguém se recuperou plenamente, mas que deixou pistas no ar: houve rompimento, medo e a consciência de que havia trocado uma ameaça aberta por um acordo que cheirava a armistício.
Lahan apresentar a cabeça e estudar Ah-duo com interesse novo, sua ameaça não havia sido ignorada; fora convertida em prazo, em algo que poderia ser usado contra ele ou a favor. O toque dela - breve, quase maternal - o desarmou e, ao mesmo tempo, o desafiou.
As palavras de Ah-duo ecoaram no salão como um selo antigo sendo quebrado. Nenhum dos presentes ou interrompido.
Yang, contudo, sentiu algo dentro de si se mover — um nó que se apertava no peito. O ciúme veio primeiro, rápido como lâmina: aquela mulher que ele tomou como sua âncora havia acabado de considerar valor em outro homem, e não em qualquer homem, mas no insolente que ousara ameaçasse sua coroa. O elogio não foi bajulação; fora reconhecimento. E isso o feria mais do que se Lahan tivesse desembainhado uma espada contra si.
A segurança segue logo atrás, quente, sufocante, o Imperador fechou os punhos no apoio do trono, os nós dos dedos embranquecendo. O olhar duro que lançou para Ah-duo não era de desprezo, mas de súplica mal disfarçada: como poderia ela, entre todos, enxergar grandeza naquele que ele queria reduzir a pó?
E, no entanto, sob o ciúme e a raiva, cresceu o medo. Yang conhecia Ah-duo melhor que qualquer conselheiro, sabia quando ela conversou por diplomacia e quando conversou com a certeza fria de quem o pressente o fez. Se ela via em Lahan um líder nato, talvez o futuro estivesse prestes a se curvar ao jovem Kan, quer ele aceitasse ou não.
Ah-duo manteve o olhar em Lahan, e foi aí que o salão prendeu a respiração. Não havia ternura, mas também não havia hostilidade. Era um olhar de igual para igual, como dois generais que, em silêncio, regularam a força um do outro antes de mover uma peça no tabuleiro.
Lahan não desviou. Seu sorriso morreu, substituído por algo mais sério, quase grave, ele entendeu o peso do reconhecimento dela, e não preciso de palavras para responder, naquele instante, não havia estrategista, não havia Imperador, não havia damas do palácio. Havia apenas o fio tenso entre os dois: o respeito perigoso de quem poderia ser aliado ou inimigo mortal.
Yang veja. Viu com clareza o que se formou diante de si: uma ponte silenciosa entre Ah-duo e Lahan, construída não de afeto, mas de entendimento mútuo. E essa ponte, para ele, era uma ameaça ainda maior de que o incêndio da biblioteca ou o sequestro da princesa.
O coração do Imperador bateu pesado. Parte dele queria erguer a voz, interromper, apagar aquela conexão com gritos e ordens. Mas outra parte — a mais profunda, a que se agarrava ao medo — o fez calar. Porque temia que, se rompesse esse fio, Ah-duo não seguraria mais sua mão.
O silêncio que silêncio foi absoluto, até mesmo o ar parecia se recusar a se mover, como se esperasse para ver quem, entre os três, daria o próximo passo.
[. . .]
A atmosfera dentro da residência do Clã Kan era sufocante, carregada de tensão e choro contido. Já se passavam mais de duas semanas desde o desaparecimento dos filhos, e cada dia que amanhecia sem notícias parecia arrancar mais um pedaço da sanidade de FengXian.
Os olhos vermelhos, marcados pela vigília e pelas lágrimas incessantes, brilhavam sob a luz das lamparinas. Seus cabelos verdes, que em tempos tranquilos caíam sedosos como seda, agora estavam desalinhados, colados às faces úmidas pelo suor febril.
Ela caminhava de um lado a outro, os pés descalços quase tropeçando na barra do hanfu. Quando uma das servas entrou com uma bandeja de chá, tentando aplacar o nervosismo da senhora, FengXian, em um ímpeto de raiva e impotência, golpeou a bandeja, espalhando porcelana e líquido pelo chão.
— Eu não quero chá! — disse, a voz rouca e embargada. — Eu quero meus filhos!
O grito reverberou pelo salão, atravessando paredes e corações. Em seguida, como se toda a força tivesse se dissipado, ela tombou de joelhos, as mãos instintivas envolvendo a barriga saliente.
— Me perdoe... — soluçou em desespero, afagando o ventre como se o gesto pudesse tranquilizar a vida que cresceua ali. - Perdoe, não estou raciocinando direito...
Lakan estava ao lado dela em um instante, seus olhos azuis, tão firmes em batalhas e conselhos, agora estavam embaciados pelo medo de ver-la se desfazer diante dele. Envolveu-a pelos ombros, sustentando-a contra o próprio peito, seus cabelos negros roçando no rosto trêmulo da esposa.
— FengXian... — sua voz soou grave, mas suave, como quem implora. — Você precisa respirar. Precisa ser engraçado. Pense no bebê, toda essa angústia só vai adorar vocês dois.
Ela falou o rosto, olhando-o com um olhar que ardia mais de dor do que de fúria. Um riso nervoso, quase histérico, escapou de seus lábios.
—Acalmar? — repetiu, arfando. — Olhe para mim, Lakan! — com mãos trêmulas, aparência o hanfu, deixando à mostra a pele. Braços, pernas e até o pescoço estavam cobertos de manchas rosadas — Veja! Meu corpo está gritando. Desde que falaram do sumiço deles eu estou colapsando sozinha!
Os soluços a sacudiram com violência.
— Fadiga... febre... dores... Pensei que fosse gravidez, mas não... não é! Algo está errado comigo!
Lakan a abriu contra si, como se pudesse evitar que ela se quebrasse por inteiro. Por dentro, a angústia o dilacerava tanto quanto a ela, mas não podia se dar ao luxo de demonstrar fraqueza.
— Servos! — rugiu, sem desgrudar da esposa. — Chamem meu tio Luomen! Agora! Diga que é urgente!
As servas, apavoradas, se dispersaram em disparadas pelos corredores, o som de suas luxuosas ecoava como uma corrida desesperada contra o tempo.
FengXian continuava a tremer em seus braços, os olhos vermelhos fixos na barriga própria, os cabelos verdes escoltados sobre seu rosto pálido enquanto murmurava, quebrado, como se implorasse perdão a um filho que ainda não nascera:
— Não me deixe... não me abandone também... eu já perdi todos eles...
Lakan fechou os olhos por um instante, a testa encostada na dela, seu coração ardia em desespero, mas seu corpo inteiro se erguia como muralha para protegê-la. Ainda assim, a residência inteira parecia respirar medo — o medo do que o exame de Luomen revelaria, e de quanto o corpo e a mente de FengXian resistiriam à ausência insuportável de seus filhos.
O quarto ainda ecoava as soluções de FengXian quando passos firmes atravessavam o corredor. A presença de Luomen impôs silêncio imediato às servas, o homem, de postura ereta e olhar frio, trazia consigo a calma que precede uma verdade dura. Seus anos fora da corte, estudando em terras distantes, ele deram uma visão diferente dos homens do corpo humano — e um senso de observação aguçado, que não se deixava levar por riqueza superficial.
Ele se mudou de FengXian com passos contidos, o olhar atento varrendo cada detalhe: o rubor irregular nas faces, o tremor das mãos, o suor que escorria pela têmpora, as manchas que salpicavam braços e pernas. Ajoelhou-se ao lado dela, retirando dos bolsos pequenas ferramentas que trazia sempre consigo, em uma bolsa de couro bem gasta.
— Deixe-me ver. — disse com voz grave, mas sem rispididez. Pegou a mão de FengXian, observando os dedos trêmulos, depois moveu delicadamente o tecido do hanfu para examinar as manchas em seu pescoço.
Lakan, tenso, manteve-se ao lado da esposa, segurando sua outra mão como se fosse âncora.
— Tio... — sua voz carregava urgência. — Diga-me que não é grave.
Luomen não respondeu de imediato. Suas sobrancelhas se franziram em concentração enquanto verificava a pulsação, encostava o dorso da mão na testa úmida de FengXian, depois a fazia abrir a boca para observar a garganta. Ele trabalhou em silêncio, apenas o som do tinir leve de seus instrumentos preenchendo o ar pesado.
Por fim, pareça-se devagar, olhando diretamente para Lakan, seu tom não era dramático, mas a firmeza em suas palavras pesava mais do que qualquer alarde.
— Não é apenas um mal-estar da gravidez — começou. — Não é febre comum, nem fraqueza passageira.
FengXian atrai os olhos marejados para ele, os cabelos verdes colados às faces.
— Então... o que é? — sua voz era quase uma voz sussurrante.
Luomen respirou fundo, o olhar ainda fixo nela.
— FengXian, seu corpo está reagindo de forma agressiva contra si mesmo, eu já vi esse quadro antes, durante meus anos na Europa. É uma doença autoimune, chamada Lúpus.
O silêncio caiu como uma pedra no ambiente. As servas se entreolharam em choque, e até Lakan, sempre contido, empalideceu.
— Lúpus... - repetiu ele, quase sem voz. — O que isso significa para ela?
Luomen se inclina para observar novamente as manchas na pele de FengXian.
— Significa que o sistema de defesa do corpo dela está atacando. A febre, as manchas, a fadiga, as dores... tudo são manifestações dessa batalha interna. — ele fez uma pausa, escolhendo as palavras com cautela. — O estresse é um dos acontecimentos e... considerando o trauma do desaparecimento das crianças, não me surpreende que esse colapso tenha se manifestado agora.
FengXian levou as mãos ao ventre, os olhos marejados se enchendo novamente de lágrimas.
— Então... foi porque eu não aguentei... porque meu coração está em pedaços...
Lakan se ajoelhou diante dela, segurando-a com firmeza.
— Não. Não diga isso. Não é culpa sua.
Luomen, apesar da firmeza habitual, suavizou o Tom.
— Não é questão de culpa. É algo que já estava latente em você, o estresse apenas despertou a doença, mas ainda podemos controlar os sintomas. Há tratamentos, restrições e cuidados que devem ser seguidos.
Ele encarou Lakan, sério.
— A prioridade agora é proteger tanto FengXian quanto o bebê. Vocês precisarão de equilíbrio, de vigilância. E sobretudo, ela precisa ser poupada de esforço que a corroam ainda mais.
As palavras emparelhadas foram pesadas, mas também como uma primeira faísca de orientação em meio ao caos.
FengXian, porém, não contém a solução.
— Como posso me rir, se meus filhos ainda estão desaparecidos?
Lakan a envolveu, os olhos azuis marejados, mas firmes.
— Eu vou encontrá-los, mas não posso perder você...
O silêncio depois da revelação pareceu se estender como um abismo, Lakan sentiu o peso da respiração presa em seu peito, como se qualquer decisão que tomasse pudesse rasgar sua alma em duas. Os nomes de seus filhos ecoavam em sua mente, o vazio da ausência deles queimando como uma ferida aberta. Mas quando seus olhos desciam para FengXian, deitada diante dele, pálida e frágil, um medo ainda mais cruel se erguia: perdê-la.
Ele fechou os punhos, a pele esbranquiçada pelo esforço de conter a agonia, o estrategista que sempre soube agir com firmeza em meio à guerra agora se via paralisado dentro de sua própria casa.
"Devo partir agora... buscar cada pista, cada sombra, arrancar os céus em busca dos meus filhos... mas e se, enquanto isso, ela se apagar?"
Lakan inclinou-se, passando os dedos com cuidado pela frente febril de FengXian, o calor do corpo dela era alarmante, mas o suor frio que cobria sua pele o fazia tremer mais do que qualquer campo de batalha.
— Maldição... — murmurou baixo, quase para si mesmo — Como posso escolher?
Seus instintos de pai gritaram, planejaram ação imediata, uma marcha implacável até os limites do império se necessário. Mas o homem que amava FengXian hesitou, sentindo-se covarde por sequer pensar em deixá-la sozinha.
Ele a observou se mover, gemendo fraco, e o coração se partiu. Por um instante, desejou ser dois — dividir-se, proteger e buscar, guerrear e cuidar, mas era apenas um homem, dilacerado.
"Se eu for, talvez não volte a tempo... Se eu ficar, talvez nunca os encontre."
Lakan levou a mão ao próprio rosto, cobrindo os olhos com força, abafando o desespero que ameaçava transbordar. Pela primeira vez em anos, ele não sabia qual caminho escolher — e essa indecisão o devorava.
FengXian respirava com esforço, os olhos pesados como se cada tarefa fosse feita de ferro. Ainda assim, reuniu um pouco de força que restava para erguer o rosto e encarar o marido. Lakan estava ao lado, o semblante duro tentando disfarçar a vulnerabilidade, mas ela o conhecia bem demais para não perceber.
— Você... — a voz dela saiu rouca, quase um sussurro. — Está dilacerado, não está? Entre me guardar... e procurar nossos filhos.
O olhar dele vacilou por um instante, e FengXian esboçou um sorriso triste, cansado. Estendeu a mão trêmula, pousando-a sobre a dele.
— Eu conheço sua alma, Lakan... sei que ela arde por eles, mas também sei... que você tem medo de me perder.
Ela então desviou os olhos, buscando Luomen, que se mantinha próximo, preocupado, mas firme. Havia nele a serenidade de quem carregava verdades difíceis.
— Diga-me... — pediu FengXian, prendendo o fôlego antes de continuar. — Como... posso tratar essa doença? Ó lúpus. Há algo que possa ser feito?
Luomen hesitou. O peso da pergunta parecia arrastar o ar para fora da sala. Então, baixe os olhos por um instante, antes de encarar a mulher com a honestidade de um estudioso que não poderia dourar a realidade.
— Segundo o que já investiguei... não existe cura. — disse, a voz grave, mas sem frieza. — É uma enfermidade que ataca por dentro, silenciosa e cruel. Mas... pode-se retardar o avanço.
Os olhos de FengXian se umedeceram, embora ela não tenha desviado o olhar.
— Como?
— Chás, principalmente. — respondeu Luomen, com calma. — Infusões para aliviar os sintomas, fortalecer o corpo, diminuir as crises. Não é uma vitória... mas é uma resistência para retardar o processo.
O silêncio se prolongou após as palavras. FengXian fechou os olhos, absorvendo a sentença, enquanto Lakan apertou sua mão com força, como se o simples gesto pudesse investigar-la do resultado.
— Então... — murmurou ela, com voz quebrada. — não tenho cura. Apenas tempo... descoberto.
Luomen não respondeu de imediato. Apenas inclinou a cabeça em respeito, confirmando sem crueldade, deixando que a própria verdade se impusesse.
FengXian manteve os olhos cerrados por alguns segundos, o peito subindo e descendo de forma irregular, como se lutasse contra algo invisível. De repente, empurrou o apoio das almofadas com força inesperada e se sentiu desconfortável, mesmo que o corpo vacilasse. O hanfu se desarrumou em seu movimento brusco, a seda caindo pelos ombros e revelando a pele coberta de manchas rosadas.
Lakan deu um passo à frente para segurá-la, mas ela o atrasou com um gesto firme da mão.
— Então é isso... — sua voz saiu tensa, carregada de indignação. Os olhos verdes, vermelhos de choro, se cravaram em Luomen com a força de uma acusação. — Está me dizendo que assinei minha própria sentença.
— FengXian você precisa manter a calma, mas não é o fim, podemos fazer o possível para te manter viva, mas não posso garantir ou prometer nada.
Ela respirou fundo, ofegante, mas não recuou.
— Quatro dos meus cinco filhos foram arrancados de mim, e o senhor me pede calma. Me pede serenidade, silêncio, resignação... — cuspiu as palavras com amargura. — Como pode? Como pode uma mãe manter a calma quando seu coração foi mutilado desse jeito?
Os punhos dela se fechavam contra o tecido amarrotado do hanfu, e as lágrimas, antes contidas, agora escoriam sem pudor.
— Não consigo... não posso fingir que aceito isso! — disse, a voz trêmula, embargada pela dor. — Tudo dentro de mim se revolta, tudo grita, o corpo, a alma, até o meu sangue... não há paz quando meus filhos estão em algum lugar, sofrem, e eu... presa aqui, à mercê de um destino cruel!
Ela naturalmente o olhar para o teto, tentando respirar, mas a revolta não cessava.
— Se o preço de sentir essa dor é me consumir mais rápido, então que assim seja. — as mãos tocaram a barriga envolvente, em um gesto instintivo de proteção. — Eu não sei quanto tempo terei, mas sei que cada crise, cada colapso, cada febre... será o reflexo daquela carga por dentro.
Virou-se para Lakan, o olhar flamejante, tomado por uma mistura de amor e desespero.
— Não ficarei viva por muito tempo, não do jeito que me pede. — voz, embora firme, se cortes em seguida. — Porque o que me mata não é apenas a doença, Lakan... é a ausência deles. Não sei se estão vivos. É não poder abraçá-los, não poder trazê-los de volta para casa, para debaixo de meus braços, do meu olhar de mãe.
O silêncio que se abatia era pesado como ferro, a respiração de FengXian ecoava pelo aposento, irregular, quase ofegante, enquanto o hanfu escorregava mais pelos ombros, deixando à mostra a fragilidade da carne marcada e o espírito que ardia em revolta.
Luomen baixou os olhos, respeitando a explosão, enquanto Lakan sentiu a garganta se fechar com uma dor que não sabia expressar: a impotência de um marido que queria ser escudo e espada, mas era obrigado a escolher entre salvar a mulher que amava e resgatar os filhos que carregavam seu sangue.
Lakan não suportava ver-la naquele estado. O hanfu escorregou, a pele marcada em tons rosados, o olhar tomado pela raiva e pelo desespero — FengXian parecia uma chama prestes a consumir a si mesma. Ele avançou, ignorando o gesto anterior que o afastara, e segurou os ombros dela com firmeza.
– Xian'er, pare! — a voz dele ecoou, grave, mas trêmula. — Não fale assim... não diga que não viverá por muito tempo.
Ela se debateu, lágrimas desceram em rios, mas Lakan não cedeu. Apertou-a contra o peito, sentindo o calor febril da pele dela, o tremor que a percorria.
— Eu sei que dói... sei que cada minuto sem eles é um inferno. Mas se você se perder, se deixar que a dor te engula, o que restará para mim? — sua voz falhou, quebrando em súplica. — O que restará para este bebê?
A mão dele, instintiva, descansou sobre a barriga dela, como se buscasse um fio de esperança. FengXian soluçou, mas manteve o olhar fixo no dele, ardente de revolta.
— Eu não sei como lutar contra isso, Lakan! — ela falou. — Não consigo simplesmente respirar e seguir!
Ele acariciou o rosto dela, ignorando as lágrimas que umedeciam seus próprios dedos.
— Então me deixe lutar por você. — sussurrou, com uma firmeza quase desesperada. — Se não consegue se rir, deixe que eu seja sua calma. Se não conseguir acreditar, deixe-me acreditar pelos dois.
O abraço dele a envolvido como se quisesse desejasse-la até dela mesma, mesmo que por dentro também se despedaçar.
Luomen assistia à cena em silêncio, os olhos treinados do médico percorrendo cada sinal do corpo da sobrinha. As manchas, o tremor, o calor excessivo — tudo era familiar demais. Ele já vira aquilo em leitos de hospitais na Europa, mulheres consumidas pela doença e, mais ainda, pelo desespero que a acelerava.
Deu um passo à frente, a postura firme, mas o olhar suavizado pela compaixão.
— FengXian... — chamou, a voz baixa, mas clara. — Eu sei que não posso pedir que pare seu coração. Nenhuma mãe conseguiria, mas o que você precisa entender é que cada explosão, cada crise... empurra seu corpo ainda mais fundo nesse abismo.
Ela virou o rosto para ele, os olhos marejados e cheios de raiva.
— Então quer que eu seja o quê? Uma pedra? Fria, imóvel, sem sentir?
Luomen suspirou, mas não desviou o olhar.
— Não. Quero que seja forte o bastante para continuar vivendo. Forte o bastante para que, quando seus filhos voltarem, eles ainda tenham uma mãe para abraçá-los.
O silêncio se instalou, pesado, a respiração de FengXian ecoava pelo quarto, e mesmo em lágrimas, a intensidade de sua dor deixava claro: o que a corrosão por dentro não era apenas o lúpus, mas a ausência, o vazio.
Luomen sabia que não poderia curar-la, mas poderia ao menos guiá-la - e, em seu íntimo, temia que o tempo estivesse contra todos eles.
FengXian arfava contra o peito de Lakan, os dedos empurrando sua túnica como se quisesse se libertar da prisão dos braços dele. Mas, ao mesmo tempo, não consigo soltar-se. A força que a mantinha de pé parecia vir justamente daquela pressão firme, daquela calor que a envolvia como um escudo.
— Lakan...me solte! — elegância, a voz entrecortada, os olhos marejados fitando os dele. — Eu não posso... não posso me rir quando meus filhos estão nas mãos de alguém que nem sei quem é!
O peito dele se contraiu com a dor das palavras, mas não cedeu. Sua mão a segurava com firmeza pela nuca, como se tivesse medo de que, se a largasse, ela simplesmente desmoronaria diante dele.
– Então grite. Tarefa. Destrua o que quiser. - sussurrou, a voz rouca de emoção. — Mas faça isso aqui, comigo. Não sozinho.
As pernas de FengXian cederam, e por um instante ela se aninhou no abraço, o rosto enterrado contra o ombro dele.
Mas logo, um soluço mais forte a fez se erguer novamente, empurrando o peito dele com força, a raiva retornando como um açoite.
— Eu odeio isso! — abrangidos, os olhos vermelhos faiscando. — Odeio ser fraca! Odeio que meu corpo me traia quando mais preciso estar firme!
Lakan segurou os punhos dela quando começou a bater contra ele, não em defesa, mas em desespero. A dor não sofreu golpes, mas na forma como ela se despedaçava diante dele.
— Você não é briga... — murmurou, com uma intensidade grave. — Está apenas carregando mais do que qualquer ser humano deveria.
O olhar de FengXian vacilou, oscilando entre a fúria e o cansaço, a respiração pesada, os lábios trêmulos, como se cada palavra fosse uma batalha perdida. No fundo, parte dela desejava apenas se entregar ao consolo aquele abraço, mas outra parte... outra parte ainda ardia em chamas, incapaz de se render à calmaria.
Lakan a retirar novamente contra si, ignorando os protestos, ignorando até os olhares atentos de Luomen e dos servos ao redor. Não importava quem visse. Aquela mulher era sua vida, e se necessariamente fosse o pilar contra o que ela se quebrava, ele aceitaria — quantas vezes fosse necessário.
FengXian ainda se debateu, empurrando o peito de Lakan com a força que ele restava, mas a energia já não acompanhava a fúria. Cada golpe nos ombros dele era mais frágil que o anterior, cada protesto mais trêmulo que firme.
As lágrimas rolavam sem controle, manchando o tecido da túnica dele. A respiração, entrecortada de soluções, parecia o lamento de alguém que já não tinha voz para gritar.
— Eu... eu não consigo... — murmurou, a garganta falha, como se a própria alma estivesse se despedaçando em cada palavra.
Lakan abriu-a contra si, uma das mãos firmes em sua nuca, a outra protegendo sua cintura, sentindo o calor febril atravessar o tecido. Ele não disse nada, apenas manteve o silêncio, o corpo oferecido como abrigo, porque as palavras já não bastavam.
FengXian afundou o rosto no ombro dele, e as soluções foram acontecendo, transformando-se em murmúrios quase inaudíveis. Sua resistência se dissolve como areia em maré cheia. A tensão dos músculos cedeu, e o peso dela caiu inteiro sobre o marido.
— Shhh... — Lakan murmurou, baixinho, como se embalasse uma criança. — Estou aqui. Não vou deixá-la... nunca.
Os dedos dela ainda se agarravam à túnica dele, mas sem força, apenas como se temesse que, se soltasse, se perderia no vazio. O hanfu caído apresentava uma pele marcada com manchas rosadas, mas agora o que se impunha era uma palidez de seu rosto.
Pouco a pouco, a respiração dela foi ficando mais lenta, mais pesada. Até que o silêncio voltou, quebrado apenas pelo som suave do sono exausto.
FengXian adormecera, não em paz, mas vencida pela própria dor.
Lakan está imóvel, abraçando-a como se segurasse um vaso prestes a se quebrar. Seus olhos azuis estavam vermelhos, marejados, mas ele não cedeu às lágrimas. Não podia.
Ao levantar o rosto, encontrei o olhar atento de Luomen. O tio médico não disse nada, apenas o inspirado com uma gravidade silenciosa.
Lakan sabia que aquela noite não terminaria ali. Mas, por agora, só havia uma certeza em seu coração: ele carregaria FengXian nos braços, sustentaria seu peso e sua dor, até que ela pudesse respirar de novo.
[. . .]
O Pavilhão de Jade por outro lado, exalava um perfume doce de flores recém-colhidas, cortinas de seda ondulavam suavemente com a brisa, espalhando pelo salão o cheiro das ameixeiras em flor. Dentro, o ambiente fervilhava de risos e vozes femininas — as damas de companhia corriam de um lado a outro, trocando tecidos, adornos e penteados, enquanto o som das pulseiras e dos espelhos tilintava em harmonia.
Era um dia raro no palácio: um dia de expectativa, de luz.
Os príncipes Jinshi, Jiang e Yao Jun estavam voltando — a tempo do festival da colheita.
Diante do espelho de bronze, Gyokuyou deixa que uma de suas damas ajustasse o broche de jade em seu cabelo rosado. O coque alto, entremeado por fios soltos que emolduravam-lhe o rosto, realçava o brilho dos olhos verdes, olhos que há muito não cintilavam com tanta esperança.
— Há semanas o palácio não respira tanta vida — comentou ela, a voz doce, mas com uma emoção contida. — Que bom será ver meus filhos novamente... ouvir suas risadas ecoarem por estas salas.
As damas sorriram, trocando olhares cúmplices. Era impossível não se contagiar com a animação de Gyokuyou, mas, sob o brilho da expectativa, havia uma sombra silenciosa.
Mesmo envolta em seda dourada e sorrisos ensaiados, o coração de Gyokuyou latejava de preocupação. A alegria pela volta dos príncipes misturava-se com a dor da ausência de outros que não retornariam com eles.
A princesa da Lua, Maomao — sua menina brilhante e curiosa — permanece desaparecida e com ela, os três irmãos mais novos, sumidos desde o conflito que abalara as fronteiras ocidentais.
O nome de cada um era um nó na garganta que nenhuma audiência conseguiu desatar.
Lingli, que penteava seus próprios cabelos rosados, inspirava o reflexo da mãe e experimentava o leve tremor em suas mãos. Aproximou-se, sorrindo com delicadeza.
— Eles vão encontrar notícias, mãe. — disse ela, baixinho. — Zuigetsu sempre cumpriu suas promessas... e Jiang jamais descansaria sabendo que os pequenos estão desaparecidos.
Gyokuyou respirou fundo, concordando.
— Eu sei, minha flor, mas a incerteza é uma espada sem bainha... fere mesmo quando está quieta.
No canto, Jin-Ye se refere a um assento de veludo, as mãos acariciando o ventre já oferecido sob o tecido lilás. Desde que a gravidez deixou de ser segredo, ela finalmente conseguiu respirar sem medo, pelo menos dentro do pavilhão, mas havia outra angústia que a mantinha desperta à noite.
— Toda essa situação me apavora, era como se fosse um recado que deixou, ao sequestrá-la juntos das crianças. — murmurou, com os olhos vermelhos fixos na janela — E isso me assusta.
Gyokuyou se mudou, pousando a mão sobre o ombro da filha.
— Então vamos, minha querida. Rezemos para que seus irmãos cheguem com respostas... e que o festival traga bons presságios, principalmente com o seu casamento e o casamento de seu irmão. — deu fraca tentando manter uma falsa felicidade — Depois que tudo isso acabar, também preciso conversar com Yang para arrumarmos uma boa noiva para Yao Jun, ele já está na idade.
Lingli se juntou às duas, entrelaçando as mãos da mãe e da irmã, o gesto simples preencheu o ar com uma força silenciosa, uma promessa de que, mesmo na dor, permaneceriam unidas.
— Acredito que Yao Jun será um bom marido assim como Jinshi é, agora Jiang... — resmungou Lingli soltando a mãe e a irmã.
— Pobre Lady Loulan, escolheram logo a maçã podre da família para ela. — brincou Jin-Ye fazendo Gyokuyou lhe dar um leve tapa em meio aos risos.
Todos conheciam a figura que era o Príncipe do Sol, embora fizessem vista grossa para evitar discussões com o mesmo, afinal o que Jiang era imprevisível quando o irritavam com algum assunto. O que divertia suas irmãs mais novas
Do lado de fora, os tambores chegaram a subir, vibrando com o eco do anúncio: os príncipes conquistados cruzados os descobertos do palácio.
Gyokuyou endireitou-se, o manto dourado deslizando ao redor do corpo como um raio de luz.
— Vamos recebê-los. — disse, com voz firme, mas doce. — Se o império sangra, que ao menos o Pavilhão de Jade brilhe.
E enquanto as três caminhadas iam lado a lado pelo corredor banhado pelo entardecer, o palácio inteiro parecia conter a respiração.
O sol da tarde pintava o pátio imperial com toneladas de ouro e carmim, e o som dos tambores ainda ecoava entre os arcos e colunas do Palácio. As bandeiras tremulavam, as servas lançavam especificamente, e a multidão de nobres aguardava com expectativa. A chegada dos príncipes, após tantas semanas de acordos e incertezas, parecia o prenúncio de um tempo mais calmo.
No Salão do Trono, Gyokuyou se aproxima da porta acompanhada de Lady Lihua e da filha mais velha, Lingli. O coração batia acelerado, e o sorriso que a curvava dos lábios era de pura ansiedade - uma esperança ainda frágil, sustentada por sonhos.
— Eles estão voltando, Lihua... — Ajeitando um dos fios soltos do coque rosado, os olhos verdes marejados. — Meus meninos... finalmente em casa.
— E o príncipe Yao Jun deve ser radiante. — respondeu Lihua, com doçura, tentando disfarçar a inquietação que sentiu desde o nascer do dia. — Ele sempre foi o primeiro a correr até você.
Gyokuyou riu baixinho, uma lembrança viva em sua mente.
— Sempre tão impaciente... — murmurou, os dedos trêmulos sobre o colar de jade.
As portas se abriram. Um corte silencioso.
Primeiro vieram os eunucos, abrindo caminho, depois, Jinshi e Jiang surgiram, mas neles algo estava errado, os rostos sérios, os trajetos de viagem ainda cobertos de pó. Nenhum sorriso. Nenhuma saudação.
Entre os dois irmãos, um caixão de madeira escura, envolto em seda negra e fitas imperiais, era carregado com reverência por mais dois homens.
O riso de Gyokuyou se cortes no ar.
— Que brincadeira é essa...? — a voz dela vacilou, os olhos percorrendo o salão em busca do filho ausente. — Onde está... onde está o meu Yao Jun?
Lingli a olhou, pálida, sentindo o sangue fugir-lhe do rosto. Lady Lihua deu um passo à frente, o coração apertado, mas nada disse. O silêncio era pesado demais, quase sagrado.
No centro do Salão do Trono, o Imperador mantinha-se ereto, o olhar vazio. Ao seu lado, a Imperatriz Ah-duo observava em silêncio, o rosto sereno demais para a dor que sabia prestes a emergir.
Do outro lado, Jin-Ye aproxima-se lentamente, amparando-se no braço da avó, a Imperatriz Viúva. O coração do jovem batia descompassado, como se o corpo pressionasse antes da mente o que estava prestes a acontecer.
Jiang parou diante do trono. Jinshi apresenta imóvel ao seu lado, os olhos baixos, a mandíbula tensa.
— Mãe começou... — Jiang, com a voz rouca — Perdoe-nos.
Gyokuyou deu um passo hesitante à frente, ainda sem compreender, o sorriso vacilante e o olhar confuso.
— Onde está seu irmão? Por que não o vejo? Diga-me, Jiang. Diga-me que ele apenas adoeceu... que está no Pavilhão de Jade...
Jiang fechou os olhos por um instante, quando os abriram, havia neles algo partido, uma dor antiga e irreparável.
— Yao Jun... — respirou fundo, forçando as palavras. — Durante nossa estadia na Capital Ocidental, o senhor Gyokuen... traou contra nós. Foi durante um jantar. O príncipe... — a voz falhou — o príncipe mais novo foi assassinado.
O som que veio a seguir não parecia humano.
Gyokuyou cambaleou, levando as mãos ao ventre como se o corpo tivesse sido atingido, as lágrimas romperam sem aviso, quentes e furiosas, escorrendo pelo rosto que outrara encantara o império.
— Gyokuen... matou meu filho? O meu irmão matou o meu filho?! — a voz de Gyokuyou partiu o ar como uma lâmina, rouca, desesperada, atravessando o silêncio pesado que pairava sobre o salão. O eco de suas palavras reverberou pelas paredes como um trovão que se recusa a cessar — Aquele canalalha... ele matou o meu menino... o meu filho...
As mãos dela subiram à cabeça, os dedos se enroscaram nos fios do próprio cabelo como se quisessem arrancar a dor pela raiz. Então, as forças a abandonaram — e ela caiu de joelhos. O som seco do impacto contra o piso frio é como um lamento.
— Meu filho não... — balbuciou, quase sem voz — Não o levem de mim... o meu bebê...
Lady Lihua, tomada pelo instinto, ajoelhou-se ao lado dela e tentou contê-la pelos ombros, mas Gyokuyou se desprendeu com a força de uma mãe ferida. Correu, tropeçando no próprio vestido, até o caixão coberto de véus escuros. Suas mãos tremiam profundamente sobre a madeira fria — e o toque parecia quente.
—Yao Jun! — o nome saiu em um grito que não era humano, era ancestral — Yao Jun! — repetiu, soluçando entre as palavras, como se o som pudesse trazê-lo de volta — Você se escondia no meu manto quando não queria estudar... lembra? — as lágrimas encantaram o rosto — Você ria tanto... dizia que o mundo lá fora era grande demais pra você... e eu te dizia que o mundo era pequeno perto do meu amor.
Ela pressionou o rosto contra o caixão, sentindo a madeira fria colar em sua pele quente e úmida.
— Eu prometi... — sugeri — Eu prometi que te protegeria.
Atrás dela, Lingli chorava sem emitir som, o rosto oculto entre as mãos pequenas, os ombros tremendo em silêncio. Jin-Ye, pálida, o ventre pesado sob o tecido dourado, mudou-se com dificuldade. Ajoelhou-se devagar, as lágrimas caindo sem resistência, como se a dor da mãe pulsasse dentro dela também, um eco sangrando de geração em geração.
A Imperatriz Viúva, de olhos cerrados, murmurava uma prece antiga, tão antiga quanto as muralhas que cercavam aquele palácio. Suas palavras se perderam no ar, impotentes diante do grito materno que ainda ressoava.
E, no trono, o Imperador permanece imóvel. Nenhuma expressão, nenhum consolo, apenas o silêncio — cruel e absoluto, o silêncio de quem sabia. O silêncio de quem escolheu o saber.
Ah-duo, sentado à esquerda, aberto ou as mãos sobre o colo até os nós dos dedos empalidecerem. Seus olhos, firmes por hábito, vacilaram por um instante — e nesse lampejo, o espelho de porcelana se cortes. Ela respirou fundo, tentando recompor uma máscara de serenidade, mas por dentro, algo também se despedaçava, deixando que por um momento as lágrimas escorressem por todo seu rosto.
No centro do salão, Gyokuyou permanece curvado, o corpo inteiro estremecendo em soluções. Cada choro seu era um corte aberto na alma dos que a ouvi. O som ecoava pelas colunas douradas, atravessava cortinas e corredores, como um lamento que nem o tempo ousaria apagar.
Era o som de uma mãe chamando pelo filho — e de um império inteiro se calando diante do eco da sua dor.
Os gritos de Gyokuyou ainda ecoavam entre as colunas douradas quando um som diferente rompeu o silêncio — um soluço rouco, carregado de desespero.
Era a Imperatriz Viúva, Anshi.
Ela se levanta do trono lateral com o corpo trêmulo, os olhos perdidos em um ponto distante. O rosto enrugado parecia mudar a cada piscada — ora confuso, ora aterrorizado, como se visse fantasmas que só ela pudesse enxergar.
— Não... — murmurou, as mãos tremiam erguendo-se diante de Jinshi e Jiang. — Não pode ser... você não pode estar aqui...
Jiang deu um passo para trás, hesitante ficando ao lado de Jinshi, enquanto a mulher se aproximava cada vez mais.
— Vovó, sou eu... Zuigetsu. — a voz era suave, mas ela protegida, ofegante.
— Não me toque! — falei ela, os olhos arregalados. — Eu sei esse olhar... eu sei essa voz! Zhongjian! — o nome saiu como um veneno, cuspido entre lágrimas.
Os guardas se entreolharam, inquietos, o salão inteiro pareceu prender a respiração.
Anshi tremia dos pés à cabeça, o corpo arqueando como se lutasse contra o próprio passado.
— Você me enganou... — ela sussurrou, os olhos fixos em Jinshi, mas o chama com outro nome. — Me fez acreditar que era só dever... só obedecer... e agora... — a voz dela se cortes — agora você matou o meu neto também! Não bastava ter roubado a minha inocência e de tantas outras crianças, eu necessariamente mataria o meu neto também?
De repente, ela avançou.
A velha imperatriz, antes tão frágil, moveu-se com uma força inesperada, golpeando o peito de Jiang com os punhos fechados.
— Monstro! — soluçava — Assassino de inocentes!
Jinshi tentou contê-la, mas ela o atingiu no rosto com uma tapa trêmulo, os olhos perdidos em um passado que ninguém mais via.
— Eu te odiei todos esses anos, Zhongjian! — conversei ela, a voz rasgando o ar — Você tomou tudo de mim, e agora vem tirar até meus netos!
— Vovo. — Lingli correu até ela, tentando segurar-lhe os braços, as lágrimas escorrendo. — Por favor, olhe pra mim, não é ele! É o Jinshi, seu neto, não o Antigo Imperador!
Jin-Ye, pálida, cambaleou alguns passos, sentindo o corpo pesar sob o susto, Ah-duo, vendo a cena, soltou um grito:
— Guardas! Segurem a Imperatriz Viúva, agora! — ela atravessou o salão, a túnica carmesim abrindo-se no ar, colocando-se à frente dos filhos, os braços estendidos, como se pudesse deter tanto o passado quanto o presente — Não deixem que ela se aproxime da princesa Jin-Ye! — conversamos, e um dos guardas apressou-se a amparar o jovem antes que ela perdesse o equilíbrio.
Anshi debateu-se, as veias do pescoço tenso, o olhar perdido entre as eras.
— Foi por sua culpa, Zhongjian! — bradou, enquanto os guardas tentavam contê-la — Eu era uma criança! Uma criança! E você me fez gerar o próprio sangue amaldiçoado deste trono! — referência para Yang acima — E anos mais tarde afim de me vingar, ainda sim me trouxe o maior arrependimento da minha vida, o Jiang... — os olhos dela se encheram de lágrimas, confusões entre amor e horror — você nunca pediu pra nascer... foi ele... sempre ele...
O salão inteiro gelou.
As palavras da Imperatriz Viúva emparelharam como uma sentença, o som das armaduras se chocando contra o chão ecoava junto aos soluços abafados de Gyokuyou, ainda ajoelhada diante do caixão.
Ah-duo mantinha-se firme à frente dos filhos, o olhar frio, mas com a respiração descompassada. As damas e eunucos se ajoelharam, incapazes de esperar o que acabaram de ouvir.
Anshi, finalmente contido, foi amparada pelos guardas - os gritos mudando-se em murmúrios desconexos.
— Ele ainda está aqui... eu o vejo... sempre o vejo...
Ah-duo desviou o olhar, os dedos trêmulos apertando a barra da veste, Jinshi, imóvel, deixando o sangue escorrer do parto sem ocorrência. Jiang o olhou em silêncio, o peito erguendo-se pesadamente, como se cada respiração fosse uma luta.
O silêncio que se abalou ao colapso da Imperatriz Viúva era quase irrespirável, as palavras insanas de Anshi ainda ecoavam pelos corredores do Salão do Trono, como fantasmas impossíveis de silenciar.
Gyokuyou com o rosto colado à madeira fria, soluçando como se o mundo tivesse desabado junto com seu filho. As lágrimas escorriam sem pudor, e os dedos trêmulos se agarravam à borda, como se o toque pudesse trazê-lo de volta.
Quando a revelação caiu — quando as palavras de Anshi deixaram de soar como delírio e se voltaram a sentido — Gyokuyou congelou, o olhar turvou-se, e ela exerceu a cabeça lentamente, os olhos marejados fixos em Ah-duo, depois em Jiang.
— O que... o que ela disse... é verdade...? — sussurrou, a voz embargada, incrédula.
Ah-duo não respondeu de imediato, havia em seu semblante o cansaço de quem sustentava o peso de um império inteiro sobre os ombros. Jiang, por sua vez, encontra-se imóvel, com os punhos cerrados e o olhar fixo na mulher que, até aquele instante, chama a mãe sem hesitação.
Quando os guardas levaram Anshi aos aposentos, Lingli e Jin-Ye se aproximaram da avó materna, tentando convencê-la a sair dali.
— Vovó, venha conosco... por favor, está frio aqui... — suplicava Lingli, chorando.
Lihua as ajudou, abraçando Gyokuyou pelos ombros, que ainda relutava, soluçando.
— Deixe que a Imperatriz cuide dos príncipes. — murmurou Lihua, conduzindo-a junto das princesas para o Pavilhão de Jade. — Eles precisam de tempo e você também minha amiga..
Assim que as portas se fecham atrás delas, o ar parece partir em dois.
Jiang deu um passo à frente, os olhos marejados, a respiração trêmula. Encarou Ah-duo como se visse uma estranha.
— Quando vocês vão me contar? — Disse, a voz embargada. — Quando eu já não tive mais nada pra perder? Então tudo o que eu vivi foi uma mentira? Meu pai não é meu pai, é meu irmão e meus irmãos são meus sobrinhos? Quando pretendi me dizer a verdade desse faz de conta?
Ah-duo respirou fundo, mas sua expressão manteve-se firme, mesmo que o tremor de seus dedos denunciasse o contrário.
— Jiang... você ainda era um bebê quando tudo aconteceu — começou ela, com a voz baixa, mas incluída de uma dor antiga — A Imperatriz Viúva... não suportava a ideia de criar o filho que nasceu naquela monstruosidade.
Ela fez uma pausa, o olhar perdido em algum ponto distante, como se as lembranças a arrastassem de volta naquela noite, as mãos tremiam, entrelaçando-se sobre o colo.
— No dia em que você e Jinshi nasceram, — contínuo, com esforço — o bebê de uma concubina de posto menor morreu logo após o parto. Quando a Imperatriz Viúva soube, mandou trazer o corpo daquela criança... e então, tentou a troca.
A voz dela vacilou.
— O corpo do bebê morto foi colocado no berço dela, e o filho que ela gerou... foi entregue aos meus braços. A partir daquele dia, ela anunciou ao Império que aquele era seu filho legítimo. — respirou fundo, as lágrimas marejando os olhos. — E eu... guardei em silêncio que você, Jiang, era o verdadeiro filho dela.
Jiang levou as mãos à cabeça, cambaleando um passo para trás. Jinshi, sem hesitar, o segurou pelos ombros, mas o toque só o fez desabar.
— Eu fui entregue a você como o quê? Um fardo? Uma mentira viva? — falou caindo de joelhos.
Ah-duo se ajoelhou diante dele, o olhar marejado.
— Como um filho. — sua voz corte, e pela primeira vez, lágrimas escorreram de verdade — Você era só um bebê... e eu tinha acabado de dar à luz a Jinshi. Eu jurei que te protegeria, que ninguém mais te usaria ou te feriria. Eu disse ao Império que tinha tido gêmeos... e cumpri essa mentira todos os dias da minha vida, mas foi a maior dádiva da minha vida, porque eu nunca menti quando disse todas em todas as vezes que você era o meu filho Jiang, assim como Zuigetsu, Jin-Ye, Liang, Lingli e Yao Jun, todos vocês são meus filhos. Só não queria a verdade, você se machucasse..
O grito de Jiang ecoou pelo salão, rasgando o silêncio.
— Eu merecia saber a verdade, independente! — ele socou o chão, os ombros sacudindo em pranto. — Eu tinha o direito de saber quem eu sou!
O Imperador, até então calado, se mudou, seu tom era grave, mas não havia frieza.
— Jiang, o que fizemos... foi para salvá-lo. — ele se ajoelhou também, colocando a mão sobre o ombro do rapaz — Minha mãe nunca te veria como um filho, assim como também possui resistência em mim ver como filho dela. Ela... odiava o sangue que o gerou, mas aqui comigo e sua mãe você foi criado com amor, com honra. Foi amado como nosso.
Jiang transitório o rosto, os olhos vermelhos, a respiração entrecortada.
— Mas eu não sou de vocês, sou? — sussurrou.
Ah-duo o abraçou, mesmo que ele não retribuísse.
— Você sempre foi. — a voz dela saiu num fio — O sangue não define o amor, Jiang, mas o amor... foi o que te manteve vivo.
Jiang permanece de joelhos diante do trono, o rosto úmido de lágrimas, os olhos vermelhos demais para esconder a dor, ao lado dele, Jinshi se abaixou, tocando o ombro do irmão com cuidado - firme, mas silencioso.
— Você sabia disso? — Jiang disse com a voz embargada, entre a raiva e o medo. - Sabia que ela não era minha mãe?
Jinshi balançou a cabeça devagar, a respiração trêmula.
— Não. — a palavra saiu rouca, quase inaudível. — Eu só soube agora, junto com você.
O olhar de Jiang vacilou, parte dele queria acreditar, a outra queria fugir, atrás dos dois, Ah-duo deu um passo à frente, as mãos trêmulas, os olhos marejados.
— Jiang... — ela murmurou, tentando se aproximar.
Mas ele se atrasou, quase instintivamente, o gesto foi brusco, ferido, o tipo de recuo que dizia mais do que qualquer palavra. O Imperador se declarou num movimento contido, a voz grave cortando o ar.
–Basta. — ele olhou para o filho com firmeza — Sei que é difícil, mas não se atreva a descontar sua dor em quem te deu colo quando ninguém mais o faria. Ela te criou com amor, Jiang e isso é o que você fez quem você é, na verdade o que fez vocês serem príncipes tão gentis e amorosos com todos.
O silêncio voltou a se espalhar, denso e pesado, Jinshi olhou para o irmão de lado e, sem dizer nada, assentiu — um gesto simples, mas que pedia que ele ouviusse.
Jiang respirou fundo, a raiva se misturando ao desespero, quando finalmente clamou o olhar, Ah-duo ainda estava ali, de braços abertos, lágrimas correndo livres pelo rosto.
— Eu fiz o melhor que pude. — ela disse, com a voz embargada, mas firme — Fiz o que necessariamente para que você nunca se sentisse deslocado, nunca diferente. Pode não ter nascido de mim, Jiang... mas é meu filho e isso é importante.
Ela deu um passo mais perto, hesitante.
— Agora precisamos ser fortes. — contínuo — A Imperatriz Viúva... ela não está bem. Eu mesmo procurei Maomao há algumas luas para me aconselhar sobre os lapsos dela e o que Anshi precisa agora é paciência, não culpa.
Ah-duo subjacente o olhar, a voz ficando mais firme.
— E Gyokuyou também precisa de nós, mas do que nunca.
Jiang desenvolveu fundo, a garganta, o peito ainda doía, mas o tom da mãe — aquela serenidade que sempre o ancorava — começou a dissolver parte do peso. Ele deu um meio passo à frente, deixando que os dedos dela roçassem sua bochecha, suave, quente, tão familiar.
O sorriso que veio em seguida era fraco, cansado, mas real.
Ah-duo o acolheu com as mãos, antes que Jinshi também se aproximasse, o irmão mais velho a abraçou por trás de Jiang, o gesto natural de quem sustentava a família mesmo nas ruínas.
— Mãe falando nisso... — Jinshi murmurou contra o ombro dela — Onde está Maomao? E os irmãos mais novos dela?
Ah-duo hesitou por um segundo, o olhar ficando distante, as lágrimas que havia contidas deixaram a brilhar sob a luz do salão.
Do lado de fora, a chuva engrossava.
O corredor que levava ao Pavilhão de Jade estava mergulhado em silêncio, nem o som dos passos dos guardas se atrevia a ecoar. A chuva lá fora ainda caiu a fina, escorrendo pelas lanternas de pedra e pelas espetaculares que cobriram os caminhos do jardim interno.
Ah-duo caminhava à frente, o manto carmesim arrastando pelo chão, enquanto o Imperador a seguia em silêncio. Atrás deles, Jinshi e Jiang trocaram olhares breves — o mais velho ainda tentava entender o que a mãe não dizia, e o mais novo apenas temia a resposta que viria.
— Mãe... — Jinshi cortes o silêncio, a voz rouca. — Onde está Maomao? Você desviou duas vezes da mesma pergunta.
Ah-duo não respondeu, o Imperador também não, apenas seguiram, o som do vento batendo nas cortinas de seda.
Quando chegou ao Pavilhão de Jade, o perfume de incenso e flores adocicadas encheu o ar. Lá dentro, Gyokuyou estava sentado numa divã de veludo, o rosto inchado de tanto chorar, Lady Lihua e as damas de companhia se mantinham próximas, tentando conter os soluços da princesa viúva. Lingli e Jin-Ye ficaram ajoelhadas aos pés da mãe, trocando olhares aflitos.
Lahan estava de pé, próximo à janela aberta, observando o pátio encharcado, ao notar a chegada deles, apenas inclinado a cabeça, sem dizer nada, ele ainda não era da família oficialmente, mas como Jin-Ye estava grávida e eles ainda eram noivos, ele tinha que acompanhá-la para o seu próprio bem-estar e do bebê.
O ar se tornou mais pesado. Jinshi deu dois passos à frente, os olhos fixos em Ah-duo.
— Mãe, diga-me. — a voz dele cortes — Onde ela está? Onde está Maomao?
Ah-duo respirou fundo, olhou para o filho mais velho, depois para Jiang, e por fim para Gyokuyou, que parecia um retrato de dor viva. Quando falou, a voz saiu suave demais para a gravidade daquela:
— Há mais de duas semanas, Maomao e os três irmãos dela foram sequestrados. — ela baixou o olhar, incapaz de encará-los — Ninguém sabe o paradeiro deles.
Por um momento, o mundo pareceu parar.
Jinshi ficou imóvel, os olhos vidrados como se esperasse que a mãe desdissesse o que acabasse de dizer. Jiang, ao lado, o segurou pelo braço — instintivamente, como quem impede uma queda.
— Isso é uma piada? — Jinshi murmurou, a voz baixa, o peito arfando — Duas semanas? E ninguém... ninguém achou que deveria me avisar?!
O Imperador não respondeu, mas Lahan, ainda perto da janela, se virou e falou por ele:
— O Imperador acreditou que seria prudente não avisar. — sua voz era fria, controlada — O império já estava instável. A morte do príncipe Yao Jun abalou o equilíbrio, e o casamento de Jiang com Lady Loulan estava próximo. Ele precisa preservar a imagem de estabilidade.
Jinshi girou o rosto lentamente, os olhos faiscando em direção ao pai.
— Preservar a imagem... — repetiu com amargura — Então escondi a verdade, deixei-me longe, acreditando que ela estava bem.
Ele deu um passo à frente, os punhos cerrados, num impulso, agarrou o colarinho do hanfu imperial, puxando o pai para perto, Jiang tentou contê-lo, mas Jinshi estava tomado pelo ódio, o rosto tenso, os olhos marejados.
— Ela é minha esposa! — rugiu.— E vocês... esconderam! Como se a vida dela fosse só mais um detalhe de conveniência política!
Lahan se movia rapidamente, segurando o braço de Jinshi, enquanto Jiang o agarrava pelo outro lado, tentando o puxador de volta, o som das roupas se agitava ecoou no salão.
O Imperador, porém, não reagiu, nem medo, nem raiva, apenas aquela serenidade cruel que só o poder absoluto concede.
— O império não pode ruir por um nome — disse, a voz firme, quase sem emoção. — Já perdi um filho. Não perderei o trono junto.
Jinshi o encarou, descrente.
— Você perdeu a alma do império, pai. — cuspiu as palavras — E ainda acha que sobrou algo pra governar.
Foi então que Gyokuyou se clamou, o movimento foi brusco, quase violento, e as damas se afastaram com susto. As lágrimas que antes desciam em silêncio agora vieram em torrentes.
— Basta! — conversando, a voz cortando o ar — Chega de silêncio! De segredos! De mortes escondidas sob véus e títulos!
Ela diretamente diretamente para o Imperador, os olhos verdes incendiados.
— Meu filho está morto, a filha da Lua desapareceu, e vocês ainda falam em estabilidade?! — realmente — Que império é esse, se só existe à custa dos nossos mortos?!
Lady Lihua segurará os ombros, mas Gyokuyou se desvencilhou, cambaleando em direção ao centro do salão. Jin-Ye correu até ela, mas a mãe a demorou com um gesto.
— Não me toque! — o grito de Gyokuyou rompeu o silêncio do salão como uma rajada de vento.
Lihua e as princesas se recuperaram imediatamente, deixando a concubina sozinha no centro da sala, o manto carmesim arrastando pelo chão molhado pelas gotas que o vento empurrava pelas janelas abertas. A tempestade rugia lá fora, trovões ecoando como se o próprio céu compartilhasse da revolta que tomou conta dela.
— Eu dei tudo a este palácio! — disse, a voz embargada pela dor. — Amor, filhos, lealdade... e em troca, ele só me devolve luto!
Ah-duo, foi o próximo de Jinshi e Jiang que estavam mais calmos agora, porém não se moveu, sabia que uma amiga precisava extravazar toda aquela raiva, só uma mãe que perde o filho sabe a dor que é e Ah-duo conhecia muito bem aquela sensação.
A Imperatriz observava em silêncio, o olhar profundo e controlado, mas havia algo — uma sombra de compaixão — escondida sob a fragilidade de sua postura. Ela sabia o que era perder, sabia o que era ser mulher num trono erguido por homens que confundiam dever com frieza.
Lahan estava próximo de Ah-duo, enquanto abraçava Jin-Ye pela cintura com cuidado, seu semblante era grave, mas contido — o olhar alternava entre Gyokuyou e o Imperador, que permanece à frente, imóvel.
— Majestade, talvez devêssemos encerrar deixar Lady Gyokuyou sozinha nesse momento. — começou Lahan, com voz baixa.
Gyokuyou se voltou bruscamente para ele, os cabelos soltos colando-se ao rosto molhado de lágrimas.
O Imperador a encarou seria passando a mão em sua testa, antes de se envolver no meio do caos que ele mesmo tinha causado.
— O Império atravessa uma fase delicada. O luto precisa ser tratado com descrição, O povo não pode saber que um príncipe morreu dentro do palácio.
Ele respirou fundo, a voz carregando um certo pesar, mas o deveria o forçava à frieza.
— Por isso, as buscas pelas crianças Kan e pela Princesa da Lua devem seguir em segredo. E... precisamos continuar os preparativos do casamento de Jiang e de Jin-Ye. São alianças que manterão o país estável.
Um trovão retumbou, fazendo os vitrais estremecerem.
Gyokuyou deu uma risada curta, amarga.
— Estável? — ela repetiu, com os olhos marejados — Nada neste palácio é estável. Nem o amor, nem a lealdade, nem a justiça.
Ela deu um passo à frente, o olhar fixo no Imperador, que não desviou.
— Você quer usar o casamento do nosso filho para esconder a morte de outro filho. Quer calar os corredores com música e abafar os gritos do sangue derramado!
Ah-duo entreviu entrando no meio do marido e da amiga, o manto preto com detalhes em prata deslizaram com elegantes, mas sua voz saiu baixa e cortante como o som de uma espada desembainhada.
- Gyokuyou. Lembre-se de onde está.
— Ah, eu me lembro muito bem! — rebateu a concubina, virando-se para ela. — Sou apenas uma estrangeira, um arranjo político desde o reinado do Antigo Imperador, mas não sou cega Ah-duo, eu sei quando tudo está colapsando.
O olhar de Ah-duo parece sereno, mas havia uma sombra de dor que só quem perdeu um filho saberia importância. Ela não respondeu, Jiang respirou fundo, tentando conter o caos antes que uma tempestade se tornasse uma tragédia.
Mas Gyokuyou já não ouvia ninguém.
Deu um passo à frente, chutou a mesa cerimonial diante do trono — o som da porcelana se estilhaçando ecoou alto, o chá se manteve como sangue no chão de mármore.
— Agora se você Yang disser mais uma vez essa palavra... "casamento" ... — a voz dela vacilou, mas a cada sílaba recuperava força — eu juro, diante dos deuses e de todos os mortos que residem neste palácio, que me juntarei a Lahan e acabei com o que resta dessa monarquia podre que você tanto protege!
O Imperador respirou fundo, impassível, os dedos se apertaram no apoio do trono.
— Gyokuyou... — começou ele, em tom baixo, controlado, quase ensaiado — ...o povo precisa de estabilidade. O casamento do príncipe Jiang e da Lady Loulan traz paz. Precisamos apagar os barcos da gravidez de Jin-Ye e do falecimento de Yao Jun.
A sala pareceu congelar.
Por um instante, o rugido da chuva lá fora foi o único som audível.
Jinshi e Jiang, lado a lado, viraram lentamente o rosto em direção à irmã.
Jin-Ye, pálido, estava sentado em uma cadeira ornamentada próxima às colunas, os dedos entrelaçados sobre o colo, o olhar perdido no chão. A respiração dela era curta, o corpo rígido — como se tentasse desaparecer dentro do próprio silêncio.
Os dois irmãos encontraram-se imóveis, os olhares espelhando o mesmo choque silencioso. Jiang piscou, sem fato, e Jinshi apenas abriram os punhos, o coração batendo rápido demais. Nenhum deles precisou falar: o ar pesado já fez tudo.
Entre eles e a irmã, Lahan mantinha-se próximo, o semblante envergonhado, os olhos desviando de todos os rostos, afinal Jinshi e Jiang eram os únicos que não sabiam da gravidez da irmã e Lahan sabia que enfrentaria a fúria dos príncipes gêmeos muito em breve.
Ao fundo, a voz de Gyokuyou voltava a crescer, cortando o ar com ira e desespero, seus gritos dirigidos ao Imperador ecoando entre os pilares dourados.
Mas para os príncipes, o som já parecia distante.
— Apagar os barcos?! — ela o interrompeu num grito, avançando dois passos, o kimono carmesim abrindo como uma chama viva. — Meu filho está morto! Morto dentro deste palácio que você jura controlar! — seus olhos se estreitaram, ardendo de desespero — E você fala em festas, em flores, em paz! É isso que você chama de estabilidade, Yang?! É isso que restou da sua humanidade?!
Ele desviou o olhar, talvez por culpa, talvez por medo de que veria no rosto dela, mas Gyokuyou não o permitiu recuar. Aproximou-se até ficar a poucos palmos dele.
— Olhe para mim. – antiguidade.
Silêncio.
O Imperador obedeceu.
Os olhos dela, vermelhos, refletiram a dor de todas as mães que o trono já destruiu.
— Você quer usar o casamento do Jiang como distração, não é? — ela cuspiu as palavras, amargas. — Quer calar o palácio, enterrar meu filho e me vestir de seda como se eu devesse sorrir enquanto tudo apodrece!
— Gyokuyou, basta. — o tom dele era frio agora, um aviso que já fez calar ministros e generais, mas ela riu — um riso curto, quebrado, doído.
— Basta? – repetiu, tremendo. — Bastaria se você tivesse coragem de chorar comigo, e não de decretar uma festa por mero capricho político.
O Imperador se atraiu, alto, imponente, mas Gyokuyou não recuou, ela deu um passo à frente e o empurrou com força. Ele cambaleou um pouco, surpreso, mas antes que pudesse reagir, ela chutou o lado da mesa cerimonial, que tombou, espalhando chá e porcelanas pelo chão.
— Você matou o que restava de mim, Yang! — conversamos, a voz embargada, as lágrimas caindo agora sem contenção. — Se fizer essa cerimônia, se tocar um tambor mesmo neste palácio, juro que acendai o fogo com minhas próprias mãos. Nem os deuses apagarão!
Ele ficou imóvel, o olhar perdido nela — aquela mulher que um dia amou e que agora ardia diante dele como uma maldição viva.
Gyokuyou respirou fundo, o corpo tremendo, os lábios entreabertos.
— Não ouse transformar o luto do meu filho em espetáculo político.
Virou-se, sem esperar resposta, e as portas se fecharam atrás dela com um estrondo que ecoou por todo o corredor.
O Imperador revelou ali, imóvel, cercado por cacos de porcelana e sua família que agora o encarava com nojo e frieza.
Por um instante, ele pareceu inclinar a cabeça, o olhar vazio pousando na mancha de chá derramada, escura, espalhada como sangue.
Mas não disse nada.
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