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Lady Talia

Summary:

No Oriente, o nome Talia Lazarus não é pronunciado com medo — e sim com desdém.

(Apenas Ra’s al Ghul sabe a verdade. Bom mais ou menos)

Notes:

Inspirado por todas as Fanfics que já li sobre Máfia, isso é uma homenagem a elas.

Inspirado principalmente pela Fanfic: https://archiveofourown.info/works/19017142

Chapter 1: - PRÓLOGO -

Chapter Text

 

- PRÓLOGO -

No Oriente, o nome Talia Lazarus não é pronunciado com medo — e sim com desdém.

Para mercadores, chefes locais, senhores de guerra e até generais que a viram de longe, ela é apenas uma estudiosa arrogante, uma mulher que gosta mais de ouro e esmeraldas do que de gente. Uma colecionadora de joias, vaidosa até a ponta dos cabelos negros, capaz de atravessar um salão inteiro só para que todos notem o brilho de suas pulseiras.

E, de fato, é difícil ignorar sua presença.
Talia é uma beldade quase impossível de descrever, como uma pintura de um anjo: pele morena de traços árabes, olhos puxados herdados de sua linhagem chinesa, lábios grossos e sensuais, olhos verdes que parecem brilhar com uma luz própria. Cada gesto, cada passo, cada sorriso é calculado, envolvente — impossível não notar.

Para todos, porém, ela é apenas bela demais para ser levada a sério.
Mas essa é uma mentira muito conveniente.
Todos esquecem que, sob as roupas impecáveis ​​e o cuidado obsessivo com a aparência, existe uma mente afiada, calculista e perigosa.
Todos a veem como arrogante, fútil e encantador, mas ninguém suspeita que, atrás do sorriso e da vaidade, existe alguém capaz de enganar Nyssa, falsificar mortes e escapar do controle de Ra's al Ghul.

E, convenhamos, é muito mais fácil entender isso.
É mais confortável pensar que Talia é apenas uma excêntrica rica, uma mulher fútil que nunca usou uma arma, uma pintura em um quadro como Monalisa.
Assim, ninguém precisa se preocupar com o que acontece quando os olhos verdes dela parecem cintilar como vidro iluminado em plena escuridão.

Poucos sabemos esses detalhes.
Menos ainda têm coragem de comentá-los.

Apenas Ra's al Ghul sabe a verdade.

A verdade é mais difícil de engolir.
A verdade é que existe algo de errado nos olhos verdes de Talia, algo que brilha quando ninguém está olhando.
A verdade é que Talia preferiu usar o sobrenome de sua mãe prostituta, mesmo que isso criasse um alvo maior sobre ela na relação com irmãos.
A verdade é que ela saiu viva do Poço, um presídio de onde ninguém escapou — e voltou lá apenas para incendiá-lo, queimando homens até os ossos e deixando apenas inocentes respirarem.
A verdade é que, quando ela decide colocar a mão em você, seja para salvar ou destruir, não resta nada além da decisão dela.

Não importa se ela sorri com especialidades, se exibe pulseiras cintilantes ou se fala como se fosse apenas uma estudiosa vaidosa.
Há uma aura em volta dela que faz o ar ficar... diferente, como se você estivesse diante de um anjo (ou de um demônio).

Mas Ra's sabe...

Enquanto o mundo apenas vê uma jovem estudiosa obcecada por riquezas.

Ra's sabe que de todos os seus filhos, Talia é a única que lhe dá arrepios.
E é exatamente por isso que ele nunca a subestima.

E, em algum momento, enquanto os ventos do deserto sopram sobre palácios, cidades e mercados, Talia observa o mundo como uma rainha invisível, bela, arrogante e gananciosa, guardando segredos que ninguém jamais suspeitaria.

Entenda, Ra's não sabe de tudo.
Ele desconhece que Talia possui um dom impossível (pelo menos para esse universo), uma habilidade de curar, em que cada ferimento ou doença poderia ser revertido por ela com um toque — claro que com consequências.

Ele passou a vida inteira buscando algo que pudesse prolongar a vida — algo que perdeu no instante em que condenou a mãe de Talia à morte. Seu desprezo pelo destino da mulher e da filha lhe custou mais do que poderia compreender (por enquanto).

Apenas Talia sabe.

...E Antônio, claro, para quem ela está envolvida. E nesses poucos momentos enquanto conversava com ele, o sorriso que saía de seus lábios jamais poderia ser copiado, até pelo mais talentoso artista.

Chapter 2: Crianças

Notes:

Universo alternativo da DC Comics, em que quase todo mundo é criminoso ou mafioso. Qualquer semelhança com a realidade é coincidência.

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– Capítulo 1 –

Crianças

As paredes do palácio eram frias como aço, mesmo cobertas de tapeçarias orientais e ouro roubado. Do lado de fora, o vento do deserto rugia contra as janelas arqueadas, arrastando areia e poeira para dentro das fendas da construção. O palácio de Ra’s al Ghul era um lugar que respirava poder, mas também crueldade.

E foi nesse cenário que Talia ouviu um eco ao longe, como quem ouve uma moeda cair em um salão silencioso. Seu corpo inteiro ficou tenso. Não era o primeiro grito que cruzava aquelas paredes — o palácio estava cheio deles, vindos de homens, de soldados, até mesmo de servos que ousaram falhar. Mas aquele… aquele tinha um timbre diferente.

Jovem.

Talia deixou o cálice de vinho repousar na mesa de mármore e caminhou com passos suaves, sem pressa aparente. Seus braceletes de ouro tilintaram em um ritmo delicado, o suficiente para distrair qualquer olhar curioso. Ninguém jamais desconfiava quando Talia cruzava os corredores à noite. Para todos, ela era apenas a filha fútil de uma prostituta, obcecada por joias e aparências, incapaz de mover o mundo.

Ao virar um dos corredores, ela o viu. O menino estava caído no chão frio, a perna torcida em um ângulo errado, respiração ofegante, o rosto banhado de suor e lágrimas contidas. Uma menina mais velha — oito anos, talvez — estava ajoelhada ao lado dele, ensanguentada, como se tivesse tentado defender o garoto de algo muito maior do que seu pequeno corpo suportava.

Damian.

Cassandra.

Os olhos verdes do menino se ergueram e encontraram os dela. Não havia súplica, nem medo. Havia fúria, orgulho e algo que soava… antigo. Como se aquela criança tivesse visto o mundo acabar e recomeçar.

— Você é lenta — ele disse entre dentes, como se Talia tivesse obrigação de estar ali antes.

Talia arqueou uma sobrancelha.
— Três anos e já insolente. Isso é quase encantador.

Ele estreitou os olhos.
— Me tire daqui.

Cassandra apertou o braço dele, os dedos pequenos manchados de sangue. Ela não falava, mas o gesto dizia o suficiente: ele manda, eu sigo.

Talia observou os dois em silêncio por alguns instantes. Para qualquer outro, aquelas crianças seriam apenas ferramentas quebradas de Nyssa, destinadas ao descarte ou à reconstrução forçada. Para ela, no entanto, havia algo diferente. Não porque acreditasse em redenção — Talia não acreditava em nada que não pudesse ser comprado com ouro ou conquistado com sangue. Mas porque via diante de si duas pequenas joias cobertas de poeira, machucadas, ignoradas. E Talia nunca deixou uma joia ser desperdiçada.

Ela se ajoelhou, os tecidos luxuosos de seu vestido se espalhando no chão de pedra. Seus dedos, adornados com anéis, tocaram de leve o rosto de Damian.

— Nyssa foi generosa demais — ela murmurou, com a voz aveludada, quase um sussurro. — Você ainda respira.

Damian não desviou o olhar.
— Ela não vai conseguir me quebrar.

Talia sorriu.
— Ah, criança arrogante. Todos se quebram. O que importa é o que fazemos com os pedaços.

Cassandra ajudou a erguer Damian, o que fez com que ele soltasse um gemido de dor abafado. A perna estava claramente quebrada, mas seus olhos verdes não mostravam vulnerabilidade alguma. Apenas desprezo por todos à sua volta, inclusive ela.

— Você vai me ajudar — ele afirmou, como quem dá uma ordem.

Talia riu baixo, como se fosse uma brincadeira deliciosa.
— Vai me usar como sua nova serva, é isso?

— Se servir. Até eu não precisar mais.

Cassandra olhou para Damian e depois para Talia, como se pesasse a presença dela. Seus olhos escuros brilhavam com algo duro, quase assassino. Mesmo ferida, mesmo coberta de sangue, a menina parecia disposta a matar qualquer um que se aproximasse dele sem permissão.

Talia reconheceu aquele olhar. Já o vira em Antônio, no Poço. O olhar de quem só conhece obediência a alguém mais forte, porque o mundo nunca ofereceu nada além de correntes.

Nyssa apareceu no corredor minutos depois, o chicote ainda manchado de sangue pendendo em sua mão. Seus olhos gelados fitaram a cena: Talia ajoelhada, Cassandra coberta de cortes, Damian de pé apesar da perna quebrada.

— O que temos aqui? — Nyssa disse com desdém. — Uma joalheira se compadecendo de lixo?

Talia não se levantou.
— Apenas examinando os resultados do seu… treinamento.

Nyssa sorriu com frieza.
— Fraco. Ele não passa de um erro.

Damian abriu a boca para responder, mas Talia foi mais rápida.
— Então por que se incomodar? — ela disse suavemente, seus olhos verdes cintilando sob a luz das tochas. — Erros não merecem chicote. Merecem esquecimento.

Nyssa se aproximou, os passos firmes.
— Você o quer para si?

Talia ergueu a cabeça, exibindo o pescoço como quem exibe uma gargantilha rara.
— Eu quero tudo que é desperdiçado. Ouro mal fundido ainda pode ser lapidado.

Nyssa a encarou por longos segundos, e então soltou uma risada breve, cruel.
— Fique com ele, então. Mas quando se cansar, lembre-se: foi você quem pegou a sucata.

Ela se afastou, o som de suas botas ecoando até desaparecer no corredor.

Damian olhou para Talia com desconfiança.
— Vai me usar contra ela?

Talia sorriu, e seu sorriso era puro veneno envolto em mel.
— Talvez. Ou talvez você seja mais útil do que imagina.

Naquela noite, em seus aposentos repletos de joias, Talia observava Damian e Cassandra deitados em mantas macias. A menina dormia com o corpo entrelaçado ao do menino, como uma sombra que jamais o abandonaria. Damian, porém, não dormia. Seus olhos estavam abertos, frios, calculistas.

— O que você quer de mim? — ele perguntou, direto.

Talia ergueu uma taça de cristal, admirando como o vinho refletia a luz.
— O mesmo que quero de todos: utilidade.

— Eu não confio em você.

— Ótimo. A confiança é superestimada.

Ele estreitou os olhos.
— Então por que me ajudou?

Talia olhou para ele, e por um instante o brilho em seus olhos não era apenas vaidade, mas algo mais profundo, mais perigoso.
— Porque eu não tolero ver crianças quebradas.

Damian permaneceu em silêncio, mas algo em seu olhar vacilou por um segundo. Cassandra, mesmo dormindo, apertou o braço dele como se sentisse a tensão.

Talia sorriu para si mesma. Ele podia acreditar que a estava usando. Podia pensar que estava no controle. Mas para ela, aquilo não passava de uma criança ferida — e não havia nada mais precioso do que isso.

Naquela noite, enquanto o vento batia nas janelas e o deserto respirava lá fora, Talia fez uma promessa silenciosa.

Ninguém jamais machucaria aquelas duas crianças sem antes passar por ela.

E, mesmo que Damian jamais confiasse, mesmo que Cassandra jamais falasse, Talia sabia que, cedo ou tarde, eles entenderiam.

Ela não era a joalheira vaidosa que o mundo acreditava.
Ela era a mulher que queimara o Poço por vingança.
Era a única capaz de transformar joias quebradas em coroas.

E se para isso precisasse enganar até seu próprio pai, assim seria.

A lua se erguia por trás das muralhas do palácio, tingindo de prata as torres e os jardins secos do deserto. Para quem via de fora, aquela fortaleza parecia invencível. Para quem vivia dentro, era apenas uma prisão com portas douradas.

Damian estava sentado no peitoril da janela do quarto de Talia, a perna enfaixada de modo improvisado. Cassandra permanecia ao seu lado como sempre, apoiada contra a parede, os olhos semicerrados, mas atentos a cada movimento. O ar estava pesado com o perfume doce de incenso e o brilho de pedras preciosas espalhadas sobre mesas e estantes.

— Você vive cercada de ouro — Damian disse, sem disfarçar o desprezo. — Mas não tem poder nenhum.

Talia ergueu os olhos do livro de medicina antiga que examinava. O sorriso que curvou seus lábios era de pura diversão.
— Que audácia, para alguém que mal consegue andar.

— Estou observando — ele replicou, com uma calma fria. — Você poderia ser mais do que uma colecionadora vaidosa. Mas prefere brincar de estudiosa.

Cassandra lançou um olhar duro para ele, como quem o advertia em silêncio. Damian ignorou.

Talia se levantou, caminhando até a mesa onde várias pulseiras de ouro estavam dispostas como se fossem troféus. Seus dedos deslizaram pelas pedras, mas seus olhos estavam fixos no menino.
— O ouro obedece a quem sabe usá-lo. Assim como as pessoas. Você ainda é pequeno demais para entender isso.

Damian não piscou.
— Pessoas não obedecem. Elas temem.

Por um instante, os olhos de Talia cintilaram em verde sob a luz da lua, como se uma verdade invisível escapasse. Ela se recompôs rápido, voltando a exibir o sorriso presunçoso.
— Talvez você esteja certo. Mas ainda assim… prefiro quando acreditam que me obedecem. O medo deixa cicatrizes muito visíveis.

Cassandra se moveu pela primeira vez, aproximando-se de Damian para ajeitar o casaco nos ombros dele. Seu gesto era cuidadoso, quase maternal, embora ela mesma estivesse com um corte profundo no braço, ainda sem curativo adequado.

Talia notou o sangue escorrendo pela manga da menina e suspirou.
— Você, sombra silenciosa, vai acabar desmoronando se continuar assim.

Cassandra apenas a fitou com olhos negros, frios e fiéis.

Damian respondeu por ela:
— Ela aguenta. Sempre aguenta.

Na manhã seguinte, Nyssa atravessou os corredores como uma tempestade. O som de suas botas ecoava, e o chicote em sua mão parecia ansiar pelo próximo golpe. Talia a encontrou no salão principal, onde os guardas se alinharam em silêncio.

— Ele ainda está vivo? — Nyssa perguntou com sarcasmo.

Talia sorriu, como se fosse uma pergunta ingênua.
— Muito mais do que isso. Ele respira como se fosse feito de ferro.

— Não é ferro — Nyssa cuspiu as palavras. — É apenas carne. Carne que deve ser moldada.

— Até quebrar? — Talia inclinou a cabeça, as pulseiras chacoalhando suavemente. — Não seria desperdício?

Nyssa estreitou os olhos.
— Sempre com sua língua venenosa. Cuide dele, se acha que consegue. Quando falhar, eu mesma cuidarei dos restos.

Talia sorriu.
— É um acordo justo.

Mas enquanto Nyssa se afastava, Talia sentiu o peso do olhar dela. Sabia que sua meia-irmã desconfiava. Nyssa via Damian como propriedade, um herdeiro forçado, uma ferramenta. Se ela notasse que Talia estava interferindo, não hesitaria em matar o menino — ou a ela.

De volta ao quarto, Damian a esperava sentado, Cassandra ao lado como sempre. Ele ergueu os olhos, avaliando seu rosto com a calma de um juiz.
— Ela vai te matar.

— Provavelmente — Talia respondeu, sem perder o tom leve. — Mas só se eu permitir.

Damian arqueou uma sobrancelha, desconfiado.
— Você fala como se fosse mais perigosa que ela. Mas ninguém teme você.

— E isso me mantém viva — Talia rebateu, com um sorriso cheio de veneno. — Não é maravilhoso quando subestimam você?

Damian não respondeu de imediato. Depois de alguns segundos, falou com uma firmeza que não cabia em uma criança.
— Então prove.

— Provar o quê?

— Que você pode me tirar daqui.

Cassandra olhou para ele com uma intensidade quase suplicante. Seus dedos tocaram o braço dele, mas Damian manteve o olhar fixo em Talia.

Ela se aproximou, ajoelhando-se diante dele como se fosse uma sacerdotisa diante de um altar. Seus olhos verdes o analisaram, e ela riu baixo.
— Ah… então é isso. Você quer me usar como chave.

— Quero sobreviver — Damian corrigiu, a voz grave demais para seus três anos. — E ela também.

Os olhos de Cassandra brilharam. Era a primeira vez que ele a incluía diretamente na decisão.

Talia suspirou e se recostou.
— Sobreviver custa caro, criança.

— Você gosta de ouro. Eu gosto de viver. Temos algo em comum.

Talia gargalhou, encantada.
— Você é mesmo perigoso.

Mas por dentro, sentiu o peso da escolha que já havia feito. Não se tratava de ser usada ou não. Ela já havia decidido, no instante em que viu Damian no chão com a perna quebrada, que nenhuma daquelas crianças seria descartada. O que ele acreditava ser manipulação era, para ela, apenas reflexo de dor.

As semanas seguintes foram um jogo silencioso de máscaras. Damian a tratava como um recurso. Cassandra a observava como se fosse um enigma. Talia os mimava com roupas limpas, comida melhor, mantas macias — tudo sob o disfarce de vaidade. Para os olhos do palácio, era apenas Talia exibindo seus “brinquedos” de luxo.

Mas por trás das paredes douradas, ela planejava.

Guardas foram subornados com promessas de ouro. Rotas de fuga foram traçadas, mapas escondidos entre as páginas de seus livros. Um mercador endividado recebeu ordens de preparar uma carroça. Cada detalhe era calculado com a mesma precisão que ela usava para escolher suas joias.

Damian, porém, não se deixava enganar.
— Você não faz isso por mim — disse uma noite, enquanto Cassandra limpava cuidadosamente o ferimento no braço. — Faz por você.

— Claro — Talia respondeu, sem hesitar. — Tudo o que faço é por mim.

Ele a observou em silêncio. Talvez parte dele acreditasse. Talvez parte soubesse que era mentira.

Cassandra desviou os olhos, como se não quisesse participar da mentira ou da verdade.

Numa madrugada silenciosa, enquanto o vento cortava as janelas, Talia percebeu o peso da decisão. Ela os levaria embora. Forjaria a morte deles, enganaria Nyssa, enganaria até Ra’s. Seria arriscado, quase impossível.

Mas não podia ignorar. Não depois de ver a menina sangrando para proteger o menino. Não depois de ouvir a arrogância fria na voz de uma criança que nunca teve chance de ser criança.

Ela olhou para eles dormindo — Damian com o cenho franzido mesmo em descanso, Cassandra curvada sobre ele como uma muralha silenciosa. E sussurrou para si mesma:

— Ouro pode ser substituído. Vocês, não.

O primeiro movimento seria feito na noite seguinte.

 

A noite estava quente, pesada, como se o deserto respirasse junto com os homens que patrulhavam os corredores. O palácio dormia em silêncio, mas Talia sabia: nunca havia silêncio verdadeiro ali. Cada sombra era uma testemunha, cada suspiro podia se tornar uma sentença de morte.

Ela vestia roupas de seda cor de vinho, o suficiente para brilhar sob a luz das tochas. Para os olhos do palácio, continuava sendo a mesma Talia vaidosa que não respirava sem pulseiras de ouro. Na verdade, cada adorno escondia pequenas lâminas, frascos de veneno, moedas de suborno.

No quarto, Damian já estava de pé, mesmo com o corpo ainda frágil. Ele não esperava explicações. Apenas disse:

— Vai funcionar?

— Se não funcionar, não estaremos aqui para ver o erro — Talia respondeu, ajeitando os brincos.

Cassandra permaneceu colada ao menino. Ela não perguntava nada. Só observava Talia com seus olhos negros insondáveis, como se já tivesse visto muitas fugas e soubesse que a maioria terminava em morte.

O primeiro passo foi simples: os corpos.

Dois prisioneiros haviam morrido dias antes, anônimos, sem rosto ou família. Talia subornara os guardas para que desaparecessem. Agora, vestidos com roupas rasgadas e queimados até não poderem ser reconhecidos, seriam Damian e Cassandra.

— Eles não vão acreditar nisso — Damian disse, a voz cortante.

— Eles vão acreditar no que eu colocar diante deles — Talia rebateu, sem paciência. — O mundo prefere acreditar em ilusões convenientes.

Ela derramou óleo sobre os cadáveres e, com um estalar de dedos, o fogo subiu alto, consumindo tudo. O cheiro de carne queimada se espalhou pelos corredores, trazendo guardas alarmados.

Talia os recebeu com lágrimas falsas nos olhos, a voz embargada:
— Eles estavam brincando perto das tochas… e o fogo… o fogo…!

O ouro nas suas pulseiras tilintava enquanto ela gesticulava, cada lágrima brilhando sob a luz das chamas. Os guardas, desconfortáveis, desviaram os olhos. Ninguém ousava contestar.

Nyssa foi a última a chegar. Seus olhos percorreram a cena, duros como lâminas. Ela olhou para Talia, depois para os restos fumegantes. Por um instante, a dúvida brilhou em seus lábios, mas não havia nada a dizer.

— Sempre fracos — murmurou, virando-se para sair.

Talia sentiu o coração apertar, mas não deixou que ninguém percebesse.

Ninguém desconfiou de Talia. Por que desconfiariam?
Ela chorou lágrimas falsas diante dos criados, lamentou a “tragédia” com voz melosa e, em seguida, desapareceu para cuidar de seus próprios assuntos, como sempre.

Enquanto o palácio se ocupava com o incêndio, Talia os conduziu pelos corredores secretos que conhecia desde a infância. O chão de pedra gelada ecoava sob as sandálias, e cada curva parecia um risco.

Damian caminhava em silêncio, a expressão impassível. Cassandra, porém, começou a mancar: o ferimento no braço abrira novamente, e a manga estava vermelha.

Talia parou, agachando-se diante dela.
— Você não vai aguentar até o fim se não cuidar disso.

Damian a interrompeu, frio:
— Continue. Ela aguenta.

Os olhos verdes de Talia se fixaram nos dele. Por um instante, quase deixou escapar a verdade — que podia curar Cassandra ali mesmo com um toque. Mas o peso da escolha a esmagou. Mostrar seu dom seria como entregar sua alma a Ra’s. Por sorte a perna de Damian havia se curado bem.

Ela apertou os lábios e apenas rasgou um pedaço da própria túnica, amarrando firme no braço da menina.
— Vai aguentar, sim. Mas não precisa sangrar até ficar sem nada.

Cassandra piscou para ela, em silêncio, e pela primeira vez não desviou o olhar.

A saída ficava no subterrâneo, atrás de um depósito de jarros antigos. O ar cheirava a poeira e ratos. A carroça que Talia havia providenciado os esperava, coberta com tecidos grossos. O mercador que conduzia não ousava perguntar nada — o ouro já pesava em seus bolsos.

Damian subiu primeiro, ajudando Cassandra a se acomodar. Talia entrou por último, e a carroça começou a se mover lentamente para fora do palácio.

O silêncio era sufocante. O som das rodas nos paralelepípedos, o ranger da madeira, o bater distante de tambores de guarda. Talia mantinha o véu sobre o rosto, fingindo tranquilidade.

Damian, porém, falou baixo:
— Você chorou muito bem.

Ela arqueou uma sobrancelha.
— Um elogio?

— Só uma observação. — ele respondeu. — Foi convincente. Mas não para sempre.

Talia riu.
— Nada é para sempre, pequeno príncipe. Só precisamos de tempo.

A saída parecia garantida, até que uma voz ecoou atrás deles:

— Talia.

A carroça parou. O mercador empalideceu.

Talia ergueu a cabeça, e seu coração, por um instante, acelerou.
Ra’s al Ghul estava ali, parado na sombra, as mãos para trás, o manto negro balançando com o vento. Os olhos verdes dele, tão iguais aos dela – tão iguais ao do Damian –  brilhavam como brasas antigas.

— Deixando o palácio tão tarde? — ele perguntou, com a calma de quem já sabe a resposta.

Talia sorriu, e seu sorriso escorria vaidade, sem nenhuma marca de choro ou tristeza.
— Um carregamento de esmeraldas não pode esperar. O ouro não dorme, pai.

Ra’s a estudou por longos segundos, e o ar pareceu ficar pesado. Era impossível enganar aquele olhar — e, no entanto, ela sempre tentava.

Finalmente, ele inclinou levemente a cabeça.
— O mundo pode esperar, Talia. Mas sua ambição, não.

Ela riu suavemente, como se fosse um elogio.
— Então sabe que não minto.

Ra’s não respondeu. Apenas se virou, caminhando de volta para as sombras.

O portão se fechou atrás dele, e o mercador soltou o ar que prendia.

Talia permaneceu imóvel, os dedos apertados contra as pulseiras que usava.

Ainda assim, deixou a carroça seguir em frente.

A viagem até a cidade foi longa, marcada apenas pelo ranger das rodas e pelo farfalhar das especiarias. Damian, debaixo dos tecidos, cochichou:
— Ele sabe.

Cassandra, ao lado dele, apertou seu braço como se dissesse fique quieto.

— Claro que sabe — Talia respondeu baixinho, sem olhar para eles. — Mas mesmo o homem mais perigoso do mundo precisa escolher quando agir, no que isso o beneficia. Se não não seria o homem mais perigoso do mundo.

Damian estreitou os olhos.
— Então ele vai apenas esperar.

— Sim. — O sorriso dela era frio. — Vai esperar que eu dê um passo em falso. Mas não vou dar.

Horas depois, já fora dos limites da cidade, a carroça parou em uma encruzilhada. O mercador desceu sem dizer palavra e desapareceu no escuro, com uma bolsa pesada de ouro. Era parte do acordo.

Damian desceu também, com Cassandra logo atrás. Ele olhou em volta, avaliando o deserto que se estendia como um mar sem fim.
— Então é isso? Estamos sozinhos.

— Nunca estamos sozinhos — Talia murmurou, ajustando os brincos. — Sempre há olhos nos observando.

Ele a fitou, desconfiado.
— Então por que ainda está aqui?

Ela sorriu, suave, mas seus olhos verdes brilhavam como lâminas ocultas.
— Como disse antes, ouro pode ser substituído. Vocês, não.

Damian não respondeu. Virou o rosto, como se não quisesse acreditar. Mas Cassandra se aproximou de Talia, silenciosa, e tocou de leve sua mão.

Por trás da máscara arrogante, Talia sentiu o peso do gesto. Não era confiança ainda. Mas era o primeiro passo.

Naquela mesma noite, de volta ao palácio, Ra’s observava as cinzas dos corpos queimados. Seus olhos antigos não se deixavam enganar tão facilmente. Ele caminhou em silêncio pelo pátio, as mãos cruzadas atrás das costas.

— Mortos — disse Nyssa, com desdém. — Eram fracos.

Ra’s não respondeu de imediato. Seus olhos fixaram a fumaça que ainda se erguia.
— Talvez. Ou talvez apenas invisíveis.

Nyssa franziu o cenho.
— O que quer dizer?

Ra’s inspirou fundo, o olhar distante.
— Diga ao mundo que as crianças morreram. Mas nunca baixe a guarda.

E seus pensamentos voltaram à filha que ele nunca subestimava.

Longe dali, no meio do deserto, Talia ajeitava as mantas sobre Damian e Cassandra enquanto eles descansavam, exaustos. O céu estava cravejado de estrelas, e o vento frio cortava a pele.

Ela os observou em silêncio, sentindo a consciência pesar como nunca. Podia curar cada ferimento, podia apagar cada dor. Mas não ousava.

Então, em silêncio, sussurrou para si mesma:
— Vocês nunca entenderão. Mas eu não vou deixá-los morrer.

O vento levou as palavras, mas Damian, mesmo meio adormecido, abriu um pouco dos olhos verdes e a observou. Não disse nada. Apenas pensou, com a frieza que já lhe era natural:

Vou usá-la. Até não precisar mais.

E Talia, olhando para as crianças, pensava quase o oposto:

Vou protegê-los. Até não precisarem mais de mim.

O deserto guardava o segredo de ambos.

Chapter 3: Refúgio

Notes:

Universo alternativo da DC Comics, em que quase todo mundo é criminoso ou mafioso. Qualquer semelhança com a realidade é coincidência.

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– Capítulo 2 –

Refúgio

O esconderijo não era luxuoso. Pelo contrário: paredes gastas de pedra e cal, tapeçarias velhas cobrindo frestas para disfarçar a entrada, baús de ferro com fechaduras duplas que guardavam documentos e barras de ouro como se fossem simples mantimentos. A ironia estava em cada detalhe — Talia, a mulher conhecida por atravessar salões ostentando pulseiras de esmeralda, agora vivia escondida em um lugar que parecia tão comum quanto qualquer depósito esquecido nos becos do Oriente.

Mas era exatamente esse contraste que a tornava intocável. Ninguém suspeitaria que uma mulher tão vaidosa, tão arrogante e tão exibida pudesse se esconder em algo tão ... pobre.

Damian, sentado em um dos tapetes gastos, observava o ambiente com olhos escuros e uma expressão que não condizia com seus três anos de idade. O olhar era frio, calculista — como se cada pedra da parede fosse catalogada, cada saída mentalmente mapeada para uma fuga futura. Ele não confiava naquele refúgio. Não confiava nela.

Ele a estudava como se fosse uma adversária. Cada movimento dela, cada gesto. E quanto mais Talia sorria com suavidade, quanto mais parecia se importar em ajeitar o cabelo dele ou oferecer comida a Cassandra, mais Damian sentia-se inclinado a pensar que havia uma manipulação ali.

Cassandra, por outro lado, permanecia quase sempre em silêncio, encostada em uma das paredes ou próxima a Damian, como uma sombra. Aos oito anos, seus olhos diziam mais do que qualquer palavra: desconfiados, atentos, sempre prontos a reagir. Quando Damian franzia a testa, Cassandra copiava o gesto. Quando ele estendia a mão, Cassandra estava pronta a segui-lo. Se ele se irritava, ela se fechava. Não havia discursos de lealdade, nem declarações de afeto. Havia apenas presença. Constante.

Talia, é claro, percebia isso. Ela não deixava de notar como Cassandra parecia mais um cão de guarda do que uma menina. Isso a incomodava, porque sob a máscara da estudiosa vaidosa, havia algo em Talia que se contorcia ao ver crianças presas em papéis que não deveriam carregar. Mas não demonstrava. Nunca demonstrava.

— Quantos segredos mais você guarda aqui, Talia? — Damian perguntou de repente, sem levantar a voz, quase como um sussurro carregado de veneno infantil.

Talia arqueou uma sobrancelha, distraída com a caixa de madeira onde guardava pequenas pedras lapidadas. Suas mãos, de unhas perfeitas pintadas em tom claro, manuseavam uma safira como se fosse apenas uma peça de xadrez.

— Segredos, Damian, são como diamantes. — Ela ergueu a pedra azul contra a luz fraca da lamparina. — Você não os entrega, você os lapida. Quanto mais os esconde, mais preciosos se tornam.

O menino sorriu, um sorriso pequeno, perigoso. — Ou talvez só se tornem inúteis, esquecidos em um cofre.

Cassandra, sentada próxima a Damian, tocou seu braço de leve. O gesto não era de repreensão, mas de aviso. Ela não falava — não precisava. Seus olhos escuros diziam mais do que palavras. Damian bufou, afastando-se um pouco, mas não rompeu o contato visual com Talia.

— Um dia, seus segredos vão te enterrar — completou, frio.

Talia deixou escapar um riso baixo, sem humor. Colocou a safira de volta no estojo e fechou-o com um estalo metálico.
— Querido, é o ouro que enterra as pessoas, não os segredos. Mas os dois, juntos, fazem belos epitáfios.

Damian não respondeu. Apenas cruzou os braços, mantendo aquele ar de quem não confiava em nada, de quem só via utilidade nas pessoas.

Cassandra, porém, desviou o olhar para Talia, como se quisesse decifrar algo além das palavras afiadas. Havia algo de diferente naquela mulher. Por trás da arrogância, do modo como falava de joias como se fossem mais valiosas que vidas humanas, havia uma chama de algo que Cassandra não conseguia nomear.

A tensão foi interrompida por um som baixo, metálico. Um telefone. Não qualquer um — era pequeno, negro, incrustado de detalhes dourados na borda, como se fosse um objeto de luxo e não um simples aparelho. Damian imediatamente voltou os olhos para ele, curioso.

Talia, no entanto, pegou o telefone com a naturalidade de quem já esperava. Atendeu sem pressa, com um sorriso que raramente mostrava.
— Antônio…

O nome soou como uma confidência. Damian estreitou os olhos. Cassandra inclinou a cabeça, atenta.

A voz grave do outro lado não podia ser ouvida claramente, mas o tom era calmo, quase banal. A conversa, estranhamente, parecia de duas pessoas que falavam sobre a vida cotidiana.

— Sim, eu comprei algumas peças novas hoje. Ouro do Uzbequistão. Uma liga mais pura do que costumam vender por aqui. É impressionante como tentam enganar com falsificações. — Talia brincava com uma pulseira no pulso enquanto falava, deixando-a tilintar suavemente. — Você se lembraria, Antônio. A diferença está no brilho. O verdadeiro ouro nunca perde a cor.

Damian franziu o cenho, confuso. Não parecia uma conversa de criminosos ou exilados. Parecia… normal. Ele sentiu uma pontada de irritação.

“Idiota”, pensou. “Ela finge uma vida comum no telefone.”

— Sim, eu estou bem. — A voz dela suavizou, quase imperceptível. — Não, nada demais por aqui. Apenas o silêncio de sempre.

Damian sorriu de canto, ácido. — Patética.

Talia desligou pouco depois e repousou o telefone como se fosse uma jóia rara, o único objeto no mundo que merecia aquele cuidado. Virou-se para Damian com um olhar quase divertido.
— Está com ciúmes, pequeno príncipe?

— De quê? — ele respondeu seco. — Do seu teatrinho?

— Do fato de eu ainda ter quem me ligue — retrucou, calma. — Você deveria experimentar. Ter alguém que se importa.

Damian estreitou os olhos, irritado. Cassandra olhou para ele com doçura silenciosa, como quem queria lembrá-lo de que ele não estava sozinho. Mas Damian desviou o rosto, como sempre fazia.

Talia suspirou e voltou sua atenção para uma esmeralda bruta sobre a mesa. Com uma lâmina delicada, começou a demonstrar as facetas, explicando mais para si mesma do que para as crianças.

— A maioria só vê a cor verde. Mas o que realmente importa é a pureza da pedra, as fissuras internas. Se olhar bem de perto… — Ela girou a pedra diante da lamparina. — …você pode ver todo o coração dela. Como uma pessoa.

Damian se aproximou, não por interesse, mas por cálculo. Ele queria entender o que ela escondia, o que significava tanto para ela. Seus olhos escuros acompanharam cada movimento, tentando absorver conhecimento.

— Então você também é só uma pedra com rachaduras? — ele perguntou, sarcástico.

Talia sorriu, mas não respondeu. Apenas segurou a esmeralda entre os dedos finos e deixou o silêncio preencher a sala. Cassandra a olhava fixamente, e em seu rosto havia algo estranho: pena.

Naquele instante, as três vidas se entrelaçaram em uma teia de segredos, arrogância e feridas invisíveis. E ninguém ali, nem mesmo Talia, sabia até onde aquilo os levaria.

O esconderijo tinha se transformado em uma estranha rotina. As paredes de pedra já não pareciam tão hostis, os tapetes gastos começavam a carregar o cheiro de lamparinas e poeira, e os baús, sempre trancados, pareciam respirar junto com os três.

Talia circulava pelo espaço como se fosse um palácio invisível. Cada gesto era calculado, cada movimento envolto de uma vaidade natural. Mesmo ali, longe de olhares, usava vestidos simples, mas impecáveis; pulseiras discretas, mas de ouro verdadeiro. Para ela, não existia lugar onde não pudesse exibir a própria riqueza — mesmo que fosse apenas para duas crianças que a olhavam de maneiras tão diferentes.

Damian a seguia com olhos de predador. Silencioso a maior parte do tempo, mas sempre pronto para soltar uma frase que cortava como faca. Ele não acreditava em nada daquilo. Via Talia como um recurso, uma peça útil que deveria ser estudada, medida, manipulada.

Cassandra, por outro lado, movia-se como sombra dele. Não falava, mas seus olhos diziam tudo. Quando Damian cuspia sarcasmo, era ela quem desviava o olhar para Talia e percebia, de forma quase instintiva, algo além da arrogância. Havia rachaduras no mármore daquela mulher — Cassandra não sabia o que eram, mas podia sentir.

Naquela noite, Talia retirou de um baú uma pequena caixa de ferro. Dentro dela, em veludo preto, repousavam três pedras. Uma esmeralda, um rubi e um diamante sem lapidar. Ela acendeu mais uma lamparina, trazendo a luz para perto, e começou a falar sem perceber que dava uma aula.

— O rubi — disse, segurando a pedra vermelha diante da chama. — É chamado de “o sangue da terra”. Sempre foi usado como símbolo de poder, mas também de maldição. Um rubi perfeito pode valer mais que um reino… e destruir um reino.

Damian ergueu uma sobrancelha. — Destruir como? É só uma pedra.

— É sempre “só uma pedra”, até alguém matar por ela. — Talia devolveu o rubi à caixa e pegou o diamante bruto. — Agora, este… é diferente. Um diamante é invencível. Inquebrável. Você pode tentar esmagar com martelos, queimá-lo, mergulhá-lo em ácidos… ele não cede. Mas ainda assim, no estado bruto, parece sem valor.

Ela ergueu o diamante contra a luz. — Só alguém que entende o corte, que sabe onde atingir, pode revelar a beleza escondida.

Damian observava, intrigado apesar de si mesmo. — Então você acha que todos são pedras? Escondendo algo que só aparece quando cortam no lugar certo?

Talia sorriu, satisfeita com a sagacidade dele. — Alguns são ouro, outros são pó. Mas sim, Damian. O valor está sempre escondido. O resto é só casca.

Cassandra inclinou-se para a caixa, os olhos fixos na esmeralda. Seus dedos hesitaram antes de tocá-la, como se tivesse medo de manchar a perfeição da pedra. Talia notou o gesto e, sem dizer nada, empurrou a pedra suavemente em direção a ela. Cassandra a pegou com delicadeza, quase reverente.

— Veja isso, Cassandra — disse ela, sem olhar para ela. A voz era baixa, calma, quase musical. — Muitos diriam que essa pedra é perfeita. Que bastaria lapidá-la e moldá-la em ouro para vender por uma fortuna. Mas eles não enxergam… as falhas.

Ela segurou a mão de Cassandra e inclinou a pedra, e a luz revelou pequenas rachaduras internas, como veios de fumaça.

— Essa esmeralda se partiria no meio de uma viagem. O ouro a seguraria por um tempo, mas não por muito. O comprador a chamaria de amaldiçoada. E eu, claro, já teria ido embora com o dinheiro. — Um pequeno sorriso tocou os lábios dela, mas não era zombeteiro, apenas... natural. — O segredo está em saber o que os outros não sabem.

Damian a encarava com seus olhos verdes herdados de Nyssa, — de Ra’s, de Talia — ainda mais sombrios pela expressão desconfiada.

— Então é só isso que você faz? Enganar idiotas com pedras quebradas? — perguntou ele, a voz baixa, mas firme para a idade.

Cassandra o olhou de relance, como se quisesse pedir silêncio, mas não disse nada.

Talia desviou os olhos da esmeralda e o encarou de frente. Havia algo nos olhos dela — algo que Damian não conseguia ler facilmente, mesmo sendo quem era.

— Isso é sobrevivência, Damian. — Ela guardou o rubi de volta na caixinha com veludo com cuidado. — Você prefere morrer de fome ou enganar alguém que já tem o suficiente para perder?

Damian deu de ombros.

— Prefiro não precisar escolher.

Talia sorriu, quase com ternura.

— Ah… — murmurou ela, aproximando-se para ajeitar o colarinho da camisa dele. — Mas escolhas são tudo o que temos.

Damian, por sua vez, se afastou do toque e recostou-se contra a parede. — Você se descreve bem. Toda vaidade, joias e cascas bonitas. Mas o que esconde de verdade?

A pergunta pairou no ar como fumaça. Talia não respondeu de imediato. Passou o polegar sobre o diamante antes de guardar de volta na caixinha, quase distraída. Então riu baixo, um riso suave e perigoso.

— Talvez eu seja apenas isso, querido. Joias e vaidade. — Guardou então a esmeralda com mais cuidado que as outras e fechou a caixa. — Mas se for o suficiente para sobreviver, não vejo motivo para mudar.

Damian não pareceu satisfeito. Mas também não retrucou.

O silêncio foi quebrado por um som agudo: o telefone secreto. O pequeno aparelho negro, com detalhes dourados, repousava sobre um tecido fino. Talia o pegou rapidamente, mas não com pressa. Atendeu com uma calma e alegria suave.

— Antônio.

Damian rolou os olhos. Cassandra endireitou-se, atenta.

A voz grave do outro lado não chegava até as crianças, mas o tom leve de Talia deixava claro que era diferente do modo como falava com qualquer outra pessoa. Ela ria baixinho, falava de banalidades.

— Sim, eu experimentei o vinho que me indicou. Um gosto pesado demais, mas… não ruim. — Ela caminhava pelo esconderijo como se estivesse em um jardim. — Ah, e encontrei uma peça curiosa: ouro com impurezas de cobre. O brilho é mais avermelhado. Bonito, mas enganador.

Damian estreitou os olhos. Ele não entendia. Não eram informações sobre armas, planos, mortes. Eram conversas medíocres. Patéticas. Sem sentido.

Quando Talia desligou, percebeu o olhar ácido dele.
— Sim, Damian? — perguntou, divertida.

— Você age como uma tola — ele disse com frieza. — Conversando como se o mundo fosse um mercado de vinho e pedras.

— E o que você gostaria que fosse? — ela rebateu, inclinando-se. — Só sangue, só dor... Só poder bruto?

— Pelo menos seria honesto. — Ele cruzou os braços.

Talia sorriu de lado. — Crianças… sempre achando que a honestidade tem valor.

Damian não respondeu, mas o olhar dele era um corte. Cassandra, no entanto, voltou o olhar para Talia e sentiu pena. Pena daquela mulher que ria e falava de ouro, mas escondia algo por trás da vaidade.

Mais tarde, quando as lamparinas já se apagavam, Talia permaneceu sozinha diante da esmeralda. Passou os dedos sobre a pedra e, por um instante, sua expressão mudou. O rosto perfeito, impecável, se contorceu em algo que parecia dor. Ela fechou os olhos e respirou fundo, como se tivesse afastado um peso.

Cassandra, fingindo dormir, viu o gesto. Guardou o segredo em silêncio.

Meses haviam se passado desde que o esconderijo se tornara a prisão voluntária — ou talvez um refúgio — de três almas quebradas. O tempo escoava lento, marcado pelas rotinas de estudo, silêncios densos e pelo brilho das pedras que Talia catalogava noite após noite.

Damian, mesmo aos três anos, já se movia como um príncipe caído, cheio de arrogância, sarcasmo e frieza. Cassandra não o deixava nem por um instante: era sua sombra, sua espada muda, ao lado dele quando fosse preciso. Talia os observava como quem olha para fragmentos de espelhos rachados, e em silêncio, tentava encaixá-los.

Foi numa noite abafada, enquanto observava um rubi sob a chama de uma lamparina, que Talia tomou a decisão. Ela se lembrava vagamente da própria infância, do poço que quase lhe roubara tudo. Nunca tivera aniversários, nunca recebera presentes que não fossem a indiferença. Mas ali, com aquelas duas crianças, um pensamento cresceu.

— Por que não? — murmurou, os olhos verdes refletindo o rubi.

Dias depois, ela pegou o telefone secreto, o aparelho caro que Ra’s jamais conseguira rastrear. Apenas um número gravado nele. Apenas uma pessoa do outro lado.

— Antônio.

A voz grave respondeu quase de imediato: — Hermana. Sempre tão pontual. O que deseja hoje?

— Preciso de conselhos — disse ela, a voz carregada de uma ironia suave. — Sobre crianças.

Silêncio do outro lado. Antônio não perguntou quais crianças, nem por quê. Limitou-se a rir. — Você nunca me surpreende, e ao mesmo tempo, sempre me surpreende.

— Não me faça perder tempo — retrucou ela, mas sorria de verdade. — Quero dar presentes.

— Para quem?

Ela hesitou por um instante. — Para meus… filhos adotivos.

Houve outro silêncio, mais pesado. Antônio não sabia da história completa. Não sabia da sombra de Nyssa, nem do peso de Ra’s. Para ele, Talia vivia cercada de pedras, negócios, excentricidades. E agora, de repente, surgiam crianças.

— Então escute — disse ele, enfim. — Crianças não querem ouro nem livros caros, ainda que você acredite nisso. Querem o que é só delas. Algo que mostre que você pensou nelas.

— Por exemplo?

Ele riu baixo. — Um prato quente, roupas que sirvam, talvez algo que as proteja. Ou… apenas tempo com você.

— Tempo comigo? — ela repetiu com desdém.

— Pois é justamente o que mais precisam.

Ela desligou com um sorriso agridoce. Antônio sempre parecia saber onde cutucar, mesmo sem conhecer a verdade.

Nos dias seguintes, Talia sumiu do esconderijo — não que fosse a primeira vez, nem a décima. Saía com vestes luxuosas, véus cobrindo o rosto, sempre deixando para trás ordens secas:

— Comportem-se. Eu volto.

Nunca dizia para onde ia. Mas quando retornava, trazia baús e pacotes embrulhados em tecidos finos, cheirando a especiarias e poeira de mercados distantes.

Damian fingia não se importar. Cassandra a observava em silêncio, olhos escuros seguindo cada movimento.

Finalmente, numa manhã marcada pelo vento frio do deserto.

Damian estranhou o cheiro primeiro. Um aroma metálico e forte que invadia o ar desde cedo, misturado ao perfume doce de mel aquecido. Cassandra inclinou o rosto, farejando como um animal alerta.

Quando entraram no grande salão, a surpresa os atingiu.

A mesa central, antes carregada de papéis e pedras brutas, estava limpa e arrumada com tecidos coloridos. Lamparinas pendiam do teto, derramando uma luz suave que fazia os olhos de Talia cintilarem como vidro iluminado. E, sobre a mesa, repousavam pratos que nenhum deles esperava.

Uma travessa fumegante de seonji-guk — a sopa espessa de sangue de boi, vermelha, intensa, como um desafio. Ao lado, frutas secas, tâmaras e nozes reluzindo em mel dourado. E, no centro, um bolo árabe, quadrado e úmido, coberto por amêndoas tostadas e calda brilhante: basbousa.

Talia estava ali, vestida com uma túnica clara que realçava a pele morena e os cabelos negros. Segurava uma faca com a graça de sempre e sorria com algo que parecia quase humano.

— Hoje teremos uma celebração. — Talia anunciou.

— Celebração? — repetiu Damian, a voz carregada de ironia. — É isso o que estamos fazendo?

— Seu aniversário, pequeno príncipe sombrio. E, já que sua sombra não o deixa por um segundo — ela olhou para Cassandra, que a encarou imóvel —, também será o dela.

Cassandra ergueu os olhos por um instante, sem conseguir esconder o brilho da surpresa, mas logo voltou a abaixá-los, tímida. Damian, porém, apenas cravou o olhar na mulher à sua frente.

— Uma festa? — ele insistiu, como se fosse uma armadilha.

— Não — respondeu Talia, mexendo em sua pulseira de ouro com uma esmeralda no centro. — Uma promessa.

 

O salão subterrâneo tinha sido transformado. Talia espalhou tapetes novos, trouxe vasos de flores raras e pratos que exalavam aromas fortes.

Damian aproximou-se, olhou a sopa e riu baixo. — Sopa de sangue de boi? Que presente macabro.

— Nutritiva — Talia corrigiu, sorrindo. — Rica em ferro. Crianças precisam de força.

Cassandra foi a primeira a provar. Seus olhos se estreitaram, mas ela comeu em silêncio, como sempre. Damian provou depois, e um brilho quase infantil — quase — cruzou seus olhos, antes de ele mascarar tudo com sarcasmo.

Basbousa — disse, notando o olhar fixo de Cassandra no bolo depois de tomar a sopa. — Um doce antigo. Não existe celebração sem ele.

Cassandra piscou, surpresa. Damian estreitou os olhos.

Talia não vacilou. Cortou o primeiro pedaço de bolo, o cheiro de mel e manteiga espalhando-se pelo ar, e colocou diante de Damian. Depois, diante de Cassandra. Só então serviu a si mesma.

Os presentes vieram em seguida. Não eram brinquedos, mas armas leves, punhos de adaga feitos sob medida, roupas resistentes, cadernos encadernados à mão. Havia até mesmo um livro raro, com páginas que falavam de estratégias de guerra em dinastias passadas.

— Você não sabe escolher presentes — disse Damian, mas os dedos dele demoraram-se no punho da adaga.

— Talvez — replicou Talia, rindo. — Mas sei escolher pedras.

Talia ergueu duas pequenas caixas de veludo e as colocou diante deles. Dentro, colares.

— Ouro puro — explicou, com um brilho divertido nos olhos. — Não confiem em joalheiros que misturam cobre, aprendam a diferença pelo peso. O corte das pedras... esse é perfeito.

Damian retirou o colar primeiro. Era simples, mas o pingente era uma esmeralda de verde profundo, lapidada em forma de ponta. Cassandra abriu o seu em silêncio e encontrou uma safira azul, delicada mas firme, como água endurecida.

— Joias não são apenas para ostentação — disse Talia, quase em tom de aula. — São símbolos. A esmeralda é o olhar do falcão: visão, poder, destino. A safira é a lâmina na água: lealdade, firmeza, verdade.

Cassandra tocou a pedra com cuidado, como se fosse algo vivo. Damian, por sua vez, fechou a mão em torno da esmeralda, analisando-a como quem estuda uma arma secreta.

— Você se esforçou — disse, por fim, em tom ambíguo. — Para alguém que só pensa em ouro e joias, curioso ver tamanha dedicação.

O sorriso de Talia se curvou de leve. — Ouro, joias, conehcimento... tudo isso é útil.

Cassandra continuou tocando a safira com cuidado, completamente fascinada. Damian, por um instante, pareceu desconcertado.

— É apenas uma pedra — disse, frio.

— Justamente — respondeu Talia, os olhos brilhando. — Mas é só sua.

O resto da noite se passou entre silêncios carregados e pequenas faíscas de algo novo. Só o som das facas cortando a basbousa e o perfume doce enchendo a sala. Cassandra comeu em silêncio, mas não tirou os olhos da safira. Damian manteve seu sarcasmo, mas não largou o seu colar.

E, de repente, mesmo que não admitissem em voz alta, por alguns instantes aquele trio esquecido pelo mundo parecia ter se tornado algo próximo de uma família.

E Talia… Talia observou os dois com algo que nunca tinha permitido a si mesma.

— Feliz 4 anos Damian. Feliz 9 anos Cassandra. — Disse suavemente, tomando seu cálice de vinho, quase como um brinde. — uma promessa.

Mais tarde, sozinha diante do telefone, ligou para Antônio outra vez.

— Deu certo? — ele perguntou.

Ela sorriu. — Não sei. Mas foi… diferente.

Ele riu. — Um dia quero conhecê-los. Afinal sou o tio.

Talia não respondeu. Apenas fechou os olhos, sabendo que esse dia talvez nunca viesse.

Naquela noite, no mesmo momento em que Talia estava no telefone, Damian que deveria estar dormindo estava com os olhos bem aberto. Sentou-se na cama com o colar de esmeralda ainda fechado na mão, a pedra refletindo lampejos da lamparina. Cassandra, deitada no canto, mantinha os olhos abertos, observando-o.

— Não confie nela — disse ele, a voz baixa e cortante. — Não importa o que pareça.

Cassandra não respondeu. Apenas passou os dedos pelo pingente de safira, como se o brilho azul fosse uma resposta silenciosa que ele não gostaria de ouvir.

O esconderijo nunca parecia tão silencioso quanto nos dias em que Talia desaparecia. Ela saía como um sopro de vento, vestida em sedas e jóias, o perfume de especiarias ainda pairando no ar mesmo depois de a porta se fechar. Nunca dizia para onde ia — apenas deixava ordens curtas, como chicotadas — Nada comparado aos chicotes dos instrutores ou de Nyssa.

— Não abram as portas. Não deixem ninguém entrar. Não façam barulho.

Damian observava a porta se fechar e sorria com desdém. — Sempre tão misteriosa…— A voz dele cortou o ar, seca. — Joias, ouro, segredos...

Cassandra não respondeu. Estava sentada no chão, afiada como uma lâmina, as mãos nos joelhos. Apenas inclinou a cabeça na direção dele, como quem diz: ela volta.

Damian soltou um suspiro baixo, quase um rosnado. — Claro que volta. A pergunta é: para quê?

Cassandra não respondia, apenas ajeitava a adaga que Talia lhe dera na cintura. Seus olhos, porém, denunciavam algo: não era desdém. Era algo parecido com… curiosidade.

— Venha — disse Damian, sua voz fria. — Temos armas novas. Vamos testá-las.

Na sala ampla que Talia transformara em uma espécie de biblioteca e salão de estudo, Damian espalhou os livros raros sobre o chão, como se fossem apenas ferramentas descartáveis. Cassandra os recolheu com cuidado, alinhando-os ao lado da parede, como quem entende o peso silencioso de cada página.

— Lute comigo — ordenou Damian.

E assim foi. Os dois treinaram como guerreiros pequenos e sombrios, mas letais. Cassandra movia-se como sombra, sua adaga refletindo o brilho da lamparina. Damian, mesmo ainda tão jovem, já carregava no corpo a lembrança de habilidades que não deveria ter. Golpeava com precisão, com frieza, com uma crueldade que não combinava com a idade.

Em certo momento, ele a desarmou e encostou a lâmina em sua garganta. Cassandra não recuou. Apenas o olhou, firme.

Damian abaixou a adaga, rindo baixo. — Sempre tão leal. Se eu pedisse, morreria agora.

Cassandra não respondeu. Apenas fez um gesto pequeno com os dedos: E se eu pedisse, você morreria por mim?

Damian estreitou os olhos. — Talvez.

Depois do treino, ele se jogou no tapete, ofegante, folheando um dos livros de estratégia que Talia trouxera. As páginas falavam de batalhas esquecidas, de generais que manipularam impérios com apenas um punhado de soldados. Ele absorvia cada palavra como se fossem lembranças recuperadas.

Cassandra se sentou ao lado, silenciosa, limpando a lâmina.

— Essa Talia… — começou Damian, a voz carregada de veneno. — Ela não é a mesma que eu conheci.

Cassandra ergueu os olhos.

— Na outra vida, ela era covarde, luxuriosa, sempre atrás de ouro, sempre se escondendo. Mas agora… — ele riu, amargo. — Agora finge ser mãe. Cozinha, compra armas, dá livros, faz colares. Até mesmo tentou dar uma festa.

Cassandra inclinou a cabeça, curiosa.

— Você não acha estranho? — Damian continuou, os olhos cintilando como lâminas. — Ou será que nunca a conhecemos de verdade?

Silêncio. Cassandra baixou os olhos, mas seu corpo dizia mais do que palavras.

Damian se ergueu, andando de um lado para o outro, a adaga ainda em mãos, falando alto alguns pensamentos desconexos. — Talvez por Nyssa tê-la matado. Talvez essa versão de Talia nunca tenha tido tempo de mostrar esse lado. Talvez tenhamos mudado tudo a conhecendo antes.

Ele parou diante de Cassandra, encarando-a como se buscasse uma resposta que não viria. — Ou talvez… — e sua voz caiu para um sussurro — ela esteja apenas jogando conosco.

Cassandra apertou os dedos no punho da adaga, o olhar firme. Não era concordância. Era um aviso: Se for um jogo, ainda assim, eu ficarei.

Damian riu, seco. — Sempre tão previsível.

No entanto, mesmo em sua risada havia algo que o traía. Um resquício de incerteza. Porque, pela primeira vez em muito tempo, Damian não tinha todas as respostas.

Ele se jogou de novo no tapete, a esmeralda que Talia lhe dera ainda pendendo do pescoço. Passou os dedos sobre a pedra, distraído, como se quisesse odiá-la… Mas não conseguisse.

— Se for um jogo — murmurou para si mesmo, mais baixo que o vento que passava pelas frestas da parede —, então vou jogar até o fim.

Cassandra o observava em silêncio. E, em seus olhos escuros, havia uma fagulha de algo que Damian jamais admitiria em voz alta: esperança.

O silêncio pairava pesado depois do treino — da conversa. Damian secava o suor da testa com a manga da camisa fina, o olhar duro fixo em Cassandra. Ela, sentada no chão frio, girava a adaga nos dedos em silêncio, como se cada movimento fosse uma resposta não falada.

— Não me olhe assim — resmungou Damian, a voz baixa, impaciente. — Sei o que está pensando.

Cassandra ergueu os olhos, calma, quase serena. O gesto mínimo de inclinar a cabeça bastava para contradizê-lo.

Damian riu, sem humor. — Que talvez ela seja diferente. Que talvez seja sincera. Você sempre quer acreditar nisso.

Cassandra não respondeu, mas apoiou o punho fechado no peito dele, firme. Ela nos protege, seus olhos diziam.

Damian não afastou a mão dela, mas também não cedeu. A amargura em sua expressão deixava claro que ainda não confiava.

O barulho de passos no corredor cortou a tensão. Passos seguros, cadenciados, o arrastar suave de tecidos caros contra a pedra. Damian se voltou para a porta, os músculos tensos.

Ela se abriu devagar.

Talia entrou, envolta em seu manto negro, trazendo consigo o cheiro de especiarias e poeira da estrada. Nas mãos, um embrulho envolto em seda vermelha. Seus olhos percorreram a sala num instante: as lâminas fora do lugar, os livros espalhados, o suor fresco nas testas infantis.

Ela arqueou uma sobrancelha e sorriu, como se aquilo fosse exatamente o que esperava.

— Vejo que aproveitaram bem o tempo.

Damian estreitou os olhos. — Esperava que ficássemos parados, como cães de guarda, até você voltar?

Talia caminhou até a mesa e depositou o embrulho, ignorando o veneno na voz dele. Abriu o embrulho que estava com vários objetos de ouro e alguns livros.

— Eu esperava — disse ela, calma, suave — que usassem o que lhes dei para se tornarem mais fortes. Não me decepcionaram.

Cassandra se aproximou, curiosa, mas hesitou. Damian manteve-se firme no lugar, braços cruzados, olhos afiados.

— Você desaparece por dias — disse ele, frio. — Volta coberta de ouro e segredos. Espera que finjamos gratidão. Só falta comprar uma máscara de ouro na próxima vez pra combinar.

Talia ergueu o olhar para ele. Por um instante, sua máscara perfeita vacilou; havia dureza, um brilho cortante por trás da serenidade.

— O mundo é feito de segredos, Damian — respondeu, aveludada, mas firme. — Alguns servem para proteger. Outros, para destruir. Vocês ainda aprenderão a diferença.

Damian não recuou. Avançou um passo, desafiador.

— Máscaras são para os fracos, mesmo que seja de ouro.

A tensão se espalhou pelo ar. Cassandra apertou a adaga no punho, sem saber se defendia o irmão ou a mulher.

Talia não piscou. Depois, lentamente, um sorriso curvou seus lábios.

— Se for uma máscara, Damian… — disse ela, num tom baixo, quase um sussurro — então é a única que resta para proteger vocês.

Cassandra desviou os olhos, perturbada. Damian endureceu a expressão, mas no fundo algo vacilava.

Sem mais palavras, Talia pegou o embrulho e saiu.

— Não precisam confiar em mim agora. Apenas se tornem fortes o bastante para um dia poderem escolher em quem confiar.

E saiu da sala, deixando o perfume de especiarias como uma sombra.

Damian deixou os pensamentos correndo sombrios. Voltou-se para Cassandra e murmurou:

— Talvez ela nunca tenha sido o que parecia. Talvez nunca tenhamos conhecido nada além de máscaras.

Cassandra o encarou em silêncio, os olhos marejados de algo que Damian não queria nomear. E no fundo, os dois pensavam o mesmo: se essa Talia era uma mentira, era a mais convincente de todas.

Talia nunca, jamais explicou aonde ia. Apenas vestiu uma túnica longa, cobriu os cabelos negros com um véu de seda translúcido e saiu ao amanhecer, deixando atrás de si o silêncio de perfumes e o som distante de portas trancadas.

O esconderijo, outrora um casario em ruínas, agora exalava o luxo discreto que só ela podia providenciar: tapeçarias bordadas, lâmpadas de vidro colorido espalhando reflexos esmeraldinos, pequenos cofres guardando segredos que as crianças só podiam adivinhar.

Damian observou pela janela a silhueta da mãe adotiva sumir entre os mercadores. Estreitou os olhos.

Enquanto isso, Talia atravessava o labirinto de bazares e caravanas do Oriente como se fosse a verdadeira dona daquele território. Seus olhos verdes percorriam cada pedra preciosa que lhe mostravam, cada corte imperfeito, cada impureza escondida sob o brilho.

— Isso é lixo — disse em árabe fluente, devolvendo uma safira ao joalheiro que quase engasgou com a ousadia. — O corte é raso, o brilho falso. Serve apenas para enganar concubinas baratas.

A vergonha vermelhou a face do homem, mas Talia já passava para a próxima barraca, onde um conjunto de turmalinas esperava. Tocou uma delas com a ponta dos dedos, e seus lábios se curvaram num sorriso discreto.

— Essa é legítima. Ferro e lítio em equilíbrio perfeito. Quem fez o corte sabia o que fazia.

As moedas mudaram de mãos. O negócio fora rápido, preciso. Mas nem todos os negócios de Talia eram tão inocentes.

Mais tarde, em um aposento discreto de paredes cobertas de tapeçaria para abafar os sons, ela abriu um cofre escondido. Dentro, não havia apenas joias, mas mapas, contratos e registros de transações em ouro que passariam despercebidos para olhos comuns, mas que, para ela, eram a chave para escapar de Ra’s e de Nyssa.

Foi então que o telefone tocou.

Um aparelho moderno, pequeno, leve demais para os padrões locais — quase um insulto em meio às relíquias antigas. Apenas um número podia alcançá-la ali.

Talia atendeu com um sorriso nos lábios.

— Antônio.

A voz grave e rouca do outro lado respondeu com um riso abafado. — Sempre tão formal, hermana. Pensei que tivesse esquecido de mim.

— Esquecer de você? — Talia riu baixo, o som leve, íntimo. — Só se eu esquecesse que existem poucas pessoas no mundo que não querem me ver morta. — disse meio que fosse brincando, mas que na realidade era verdade.

— Ora, hermana, não me diga que finalmente arranjou amigos. — Riu com gosto do humor ácido de Talia, sem saber da verdade.

— Você se ilude fácil. — Talia ajeitou o véu sobre os cabelos. — Ainda continuo com joias, ouro e ciência. A diferença é que agora tenho dois pequenos que tentam destruir a casa quando não estou olhando.

Houve silêncio do outro lado, e então Antônio murmurou:

— Você fala deles com carinho. Nunca pensei ouvir isso de você.

Talia rolou uma turmalina entre os dedos, os olhos verdes cintilando como vidro sob fogo.

— Talvez eu tenha descoberto que crianças podem ser joias também. Difíceis de lapidar, mas mais valiosas que todas as pedras do bazar.

Antônio riu, mas havia calor em sua voz. — Então está feliz.

— Não use essa palavra comigo, Antônio. — Talia sorriu de canto. — Você sabe que felicidade não combina com ganância.

— Mentira mal contada, hermana. — A voz dele se suavizou. — Você fala como se tivesse encontrado algo que vale a pena proteger.

Talia fechou os olhos por um instante. Quando falou de novo, sua voz estava calma, quase doce:

— Talvez. Mas não me pressione. Você não entenderia.

— Talvez um dia eu conheça essas crianças — disse ele. — E então decidirei se entendi ou não.

— Talvez — repetiu Talia, desligando o telefone antes que o peso das palavras se tornasse demais.

De volta ao esconderijo, Damian mexia nos livros que Talia havia deixado. Cassandra o observava, imóvel como uma sombra.

— Ela não nos diz nada — disse ele, folheando páginas de tratados de estratégia. — Fala de ouro, de pedras, de ciência. Mas nunca diz quem é.

Cassandra levantou a sobracelha. Nós também não somos sinceros.

Cassandra então se aproximou de Damian e fez um gesto rápido, dois toques no próprio peito, um de Damian.

— Família? — Damian arqueou a sobrancelha. Riu com sarcasmo. — Você ainda acredita nisso.

Ela sustentou o olhar, firme. Somos mais parecidos que diferentes dela.

Damian fechou o livro com força. — Família é uma corrente.

Cassandra baixou os olhos, mas não desistiu. Tocou na adaga ao lado, como quem jura lealdade.

Damian respirou fundo, sombrio. — Talvez devamos apenas usá-la, como ela pretende nos usar.

Mas no fundo, enquanto falava, não conseguia esquecer a lembrança de Talia sorrindo ao cortar o bolo de aniversário que fizera meses antes.

Esse contraste o corroía.

E Cassandra, mesmo sem palavras, sentia a mesma coisa: a dúvida se aquela mulher, arrogante e gananciosa, era apenas mais uma máscara... ou se, pela primeira vez, alguém estava realmente tentando protegê-los.

Chapter 4: Máscaras

Notes:

Universo alternativo da DC Comics, em que quase todo mundo é criminoso ou mafioso. Qualquer semelhança com a realidade é coincidência.

Chapter Text

– Capítulo 3 –

Máscaras

No palácio de Ra’s al Ghul, o tempo nunca parecia passar de forma natural. As paredes de pedra fria, decoradas com tapeçarias antigas, guardavam segredos mais pesados que o deserto além das muralhas. O vento que soprava das dunas entrava pelas frestas como um sussurro, trazendo areia, calor e lembranças de sangue.

Nyssa caminhava pelos corredores com passos calculados. Suas vestes escuras contrastavam com a luz dourada das lamparinas, e seus olhos verdes, frios como lâminas, percorriam cada detalhe à sua volta com desconfiança silenciosa. Muitos no palácio acreditavam que ela era a filha mais leal de Ra’s, a herdeira natural — e ela fazia questão de alimentar essa crença. Mas no fundo, Nyssa sabia que o olhar de seu pai sempre se desviava para Talia, mesmo que fosse para avaliá-la como se fosse uma peça fora de lugar.

Talia Lazarus.

Aquela mulher irritava Nyssa desde a juventude. Era considerada fútil, arrogante, vaidosa. Mas havia algo de errado. Talia desaparecia por longos períodos, sempre com a desculpa de estudar gemas raras, ouro e pedras que apenas ela parecia entender. Voltava ao palácio com novas joias, com conhecimento sobre rotas de comércio, com histórias sobre mercadores que só confirmavam sua reputação de estudiosa excêntrica. E, quando retornava, se comportava como se nada tivesse acontecido — sorridente, altiva, mostrando pulseiras e brincos como troféus.

Era o suficiente para despistar quase todos.

Quase.

Nyssa não acreditava em nenhuma daquelas aparências.

E, embora não dissesse em voz alta, havia uma certeza que se enraizava em sua mente: Talia estava escondendo algo.

Nos últimos meses, essa sensação se transformara em certeza absoluta.

Damian e a menina silenciosa, Cassandra, haviam sumido. Oficialmente, mortos. Nyssa aceitara essa versão por um tempo, acreditando que o destino dos dois era apenas mais um detalhe sem importância no grande jogo de Al Ghul. Mas agora, olhando com frieza para os movimentos de Talia, começou a perceber que o desaparecimento coincidia demais com as ausências prolongadas da meia-irmã, principalmente a do mesmo dia da “morte” das crianças.

Era possível… não, era provável… que Talia tivesse mentido.

Nyssa nunca se importara de verdade com Damian como pessoa. Para ela, ele era uma ferramenta, um corpo moldável para seus próprios planos. Um filho de sangue que deveria ser obediente, útil, uma extensão de sua vontade. Mas perder algo que lhe pertencia sem sequer uma explicação clara era inaceitável. Talia podia ser arrogante, mas não ousaria roubar dela. Não impunemente.

Na sala do conselho, Nyssa se encontrou com três homens. Não eram membros regulares da Liga. Eram mercenários, espiões de regiões distantes, trazidos com promessas de ouro e influência. Nyssa jamais confiaria inteiramente neles, mas não precisava disso. Bastava que obedecessem.

— A mulher que vocês devem vigiar é conhecida — começou Nyssa, a voz suave, quase melódica, mas com uma firmeza que não admitia discussão. — Talia Lazarus.

Um dos homens arqueou a sobrancelha. — A bela estudiosa de joias?

O comentário arrancou um sorriso frio de Nyssa.

— É assim que o mundo a enxerga. Bela. Arrogante. Fútil. — Ela inclinou a cabeça, os olhos faiscando com um brilho cortante. — Mas não se enganem. Há mais nela do que aparenta.

Os homens se entreolharam, inquietos.

— O que devemos procurar? — perguntou outro, hesitante.

Nyssa caminhou até uma mesa baixa, sobre a qual repousava um mapa dobrado. Desenrolou-o com cuidado, apontando para várias rotas marcadas a tinta.

— Talia passa semanas fora do palácio, supostamente estudando e negociando pedras preciosas. Quando retorna, traz joias que ninguém sabe ao certo de onde vêm. Vocês a seguirão. Descubram onde ela realmente passa esse tempo. Quero nomes, locais, todos com quem ela fala.

O primeiro mercenário pigarreou. — E se encontrarmos algo… inesperado?

Nyssa sorriu, e o sorriso não tinha nada de caloroso.

— Se for algo digno, tragam-me. Se não for, matem-no.

Os homens assentiram, tensos.

Nyssa observou-os por um momento, avaliando cada um como se fossem peças em um tabuleiro. Depois, dispensou-os com um gesto. Eles saíram apressados, deixando-a sozinha com seus pensamentos.

Sozinha, Nyssa permitiu-se relaxar a máscara por um instante. Aproximou-se da janela estreita da sala, olhando para além das muralhas, para o deserto escuro iluminado pela lua.

Ela conhecia bem o ódio que queimava dentro de Talia. Todos os filhos de Ra’s tinham suas cicatrizes, mas Talia sempre parecera mais… instável. Ainda assim, nunca acreditara que a irmã tivesse coragem de enganá-la. Agora, esse pensamento começava a corroê-la por dentro.

Se Talia realmente escondia Damian e Cassandra, isso não era apenas uma afronta. Era traição.

E traições exigiam punição.

Enquanto isso, Talia estava distante dali.

Ela tinha voltado recentemente ao palácio, usando sua melhor máscara: roupas impecáveis, joias exuberantes, um sorriso afiado como lâmina. Conversou com Ra’s sobre estudos triviais, mostrou-lhe novas pedras raras que havia adquirido, falou de negociações com mercadores. Nada que despertasse maior atenção. Nyssa estivera presente durante parte da visita, e Talia percebeu o olhar desconfiado da irmã, mas não se abalou. Ao contrário, parecia se divertir com a desconfiança alheia, como se fosse parte de um jogo que só ela conhecia as regras.

Agora, porém, estava de volta ao seu esconderijo secreto.

O contraste era gritante. No palácio, ela era a joia mais bem polida, impecável e intocável. Ali, entre paredes simples e móveis discretos, Talia podia ser outra. Ainda altiva, ainda vaidosa, ainda gananciosa — mas havia espaço para deixar cair o peso da máscara.

Damian estava sentado num canto, os olhos escuros fixos em um livro de táticas militares que ela mesma havia lhe dado. Cassandra permanecia perto dele, silenciosa como sempre, afiada como uma sombra.

Talia os observava com atenção.

Era curioso como aquelas duas crianças ocupavam um espaço dentro dela que ela não havia planejado. Não deixava transparecer, é claro. Para Damian, ela ainda era a estudiosa vaidosa, a mulher que falava demais de joias e que escondia mais do que revelava. Mas, no silêncio das noites, Talia sabia que faria qualquer coisa para proteger aquelas crianças.

Qualquer coisa.

Mesmo que o preço fosse encarar de frente a ira Al Ghul.

Nyssa, de volta ao palácio, passava os dedos sobre uma pulseira de ouro fino. Seu olhar estava distante.

Ela sabia que não poderia se precipitar. Se Talia fosse mesmo culpada, precisava de provas. Provas que não pudessem ser negadas nem diante de Ra’s.

O jogo estava apenas começando.

E, no fundo de sua mente, Nyssa sorria ao imaginar o momento em que arrancaria os segredos de Talia com as próprias mãos.

No salão interno do palácio, onde tochas ardiam presas em colunas e o cheiro de óleo queimado impregnava o ar, Nyssa aguardava em silêncio. À sua frente, uma cadeira de madeira entalhada permanecia vazia, como se fosse destinada a alguém importante que nunca chegava.

Ela não esperou muito. Passos arrastados ecoaram pelo corredor até que Dusan al Ghul entrou, encostando-se na sombra da parede como se já estivesse acostumado a ser ignorado.

A pele pálida, quase translúcida, refletia a luz das tochas. Os olhos claros piscavam como os de um animal que nunca deveria ter nascido sob o sol do deserto. As roupas eram simples, sem adornos, e mesmo assim havia algo imponente em sua presença silenciosa.

— Dusan — saudou Nyssa, a voz suave como seda esticada até o limite. — Veio como pedi.

Ele ergueu os olhos para ela. Não havia reverência, mas tampouco desafio. Apenas o peso de quem sabia que era sempre um “meio-filho”, nunca suficiente para Ra’s.

— O que quer de mim desta vez, Nyssa? — perguntou em tom rouco.

Nyssa inclinou-se para frente, apoiando os braços na mesa. — Quero sua ajuda para observar nossa irmã.

Um lampejo percorreu os olhos de Dusan. Ele respirou fundo, desviando o olhar.

— Talia. Sempre Talia. — Sua boca se contraiu numa careta de escárnio. — O que foi desta vez? Papai voltou a sorrir para ela e não para você?

Nyssa reprimiu a irritação. — Não zombe. Você também sabe que há algo errado.

Dusan manteve silêncio, o rosto voltado para a sombra.

Nyssa continuou, paciente:

— Ela desaparece por semanas. Retorna com pedras raras, ouro, histórias de mercadores. Diz que tudo é parte de seus estudos, mas quem precisa de tanto tempo para olhar para pedras?

— Talia sempre gostou de brincar de estudiosa — respondeu Dusan, seco. — E papai gosta de acreditar que ela serve para alguma coisa.

— Não é apenas isso. — Nyssa inclinou-se mais. — Damian e a menina... sumiram. Todos aceitam que estão mortos, mas os olhos de Talia brilharam demais quando voltou depois disso. Brilharam como se ela tivesse ganho.

Dusan estreitou os olhos. Havia raiva ali, escondida.

— Você acha que ela está escondendo as crianças?

Nyssa sorriu de canto. — Acho. E quero descobrir onde.

Por um instante, Dusan pareceu hesitar. Depois, soltou uma risada seca.

— Se for verdade... seria a melhor piada do século.

Nyssa deixou o riso dele morrer no ar antes de falar de novo, em tom baixo, frio:

— Não é uma piada, Dusan. É traição. Se ela realmente está com eles, roubou algo que me pertencia.

A menção de posse soou pesada. Dusan a encarou com olhos translúcidos, tentando decifrar o ódio nos lábios da irmã.

— E o que você espera que eu faça? — perguntou. — Você tem espiões. Mercenários. Sempre tem. Aposto que já mandou eles atrás dela.

Nyssa se aproximou dele.

— Quero que observe o palácio quando eu não puder. Quero que me diga se notar movimentos estranhos. Você é invisível para quase todos aqui, Dusan. Ninguém olha duas vezes para o “filho albino que nunca deveria ter nascido”. — O tom dela foi cruel de propósito. — Use isso.

Dusan não reagiu à crueldade, apenas permaneceu calado, a mandíbula tensa. Nyssa sabia que ele aceitava porque, em parte, também odiava Talia. Ela não precisava oferecer ouro nem promessas. O ressentimento era a moeda mais poderosa.

Enquanto os irmãos de sangue conspiravam contra ela, Talia sorria para Damian e Cassandra em seu esconderijo.

A mulher estava sentada sobre almofadas grossas, polindo uma pedra verde sob a luz de uma lamparina.

— Esmeralda do vale de Panjshir — explicou, quase cantarolando. — Pura, sem rachaduras. Valor incalculável no mercado certo.

Damian observava em silêncio, as feições duras para uma criança de apenas três anos. Cassandra, ao seu lado, seguia como sombra, os olhos atentos ao menor gesto da companheira.

Talia ergueu a gema contra a luz, os olhos verdes brilhando junto.

— Sabe, Damian, a beleza está nos detalhes. Quem não entende isso perde dinheiro. E eu detesto perder dinheiro.

O menino arqueou a sobrancelha. —Tt. Então você só se importa com ouro e pedras.

— Claro. — O sorriso dela foi de puro deleite. — Ouro não chora. Esmeraldas não mentem. Safiras não me pedem nada além de cuidado.

Damian segurou o olhar dela, sombrio, desconfiado. Mas Talia apenas devolveu com um brilho divertido, como se o sarcasmo dele fosse música agradável.

Naquele esconderijo, ela podia ser gananciosa e ainda assim... materna. Ninguém nunca acreditaria, mas era verdade.

Algumas semanas depois, Talia saiu em uma de suas “viagens de estudo”. Cabelos soltos, roupas cintilantes, carregando mais joias do que o necessário. A cada passo, parecia o retrato da estudiosa arrogante que todos esperavam ver.

O destino, porém, era o próprio palácio de Ra’s.

Ela atravessou os portões como se nunca tivesse desaparecido, cumprimentou guardas e servos, distribuiu sorrisos e histórias de mercados distantes. Mostrou pedras novas que “descobrira” e descreveu rotas comerciais com a precisão de uma diplomata.

Ra’s ouviu com interesse superficial. Nyssa, de longe, observava com olhos de predadora. Dusan, quase invisível nas sombras, também observava — e guardava para si o desconforto de ver Talia se mover como se fosse dona do lugar.

Ninguém desconfiava que, a cada aparição, Talia estava apenas reforçando sua cortina de fumaça.

E ninguém notava que, ao sair, seus olhos verdes carregavam um brilho secreto — o brilho de quem escondia algo que ninguém jamais imaginaria.

O deserto à noite parecia interminável. Areia negra, silêncio profundo, só o som distante de ventos que chicoteavam dunas. Foi nesse cenário que três homens se ajoelharam diante de Nyssa mais uma vez, dessa vez no terraço do palácio.

Eram mercenários de olhar vazio, calculados, acostumados a sangue e moedas fáceis. Nenhum ousou erguer a cabeça para encarar a filha de Ra’s por mais de alguns segundos.

— Sigam-na como ordenei — ordenou Nyssa, a voz firme como aço. — Cada saída, cada passo, cada sombra. Não falem com ela, não a toquem. Só quero saber onde vai, com quem se encontra.

Nas sombras atrás dela, Dusan observava em silêncio. Não aprovava nem discordava. Apenas deixava que a irmã o usasse, como sempre fizera.

Quando os homens partiram, Nyssa voltou-se para ele.

— Confio que não preciso repetir a você o quanto essa caça é importante.

Dusan cruzou os braços. — Você não procura apenas respostas. Quer sangue.

Nyssa sorriu friamente. — Talvez. Talvez queira apenas a verdade.

Enquanto isso, longe dos muros do palácio, Talia fechava a porta do esconderijo com discrição. As roupas luxuosas ainda exalavam o cheiro das ruas movimentadas. Pingentes dourados tilintavam enquanto ela depositava sobre a mesa uma caixa de madeira entalhada.

Damian ergueu os olhos do livro que lia, Cassandra como sempre ao seu lado. A menina se encolheu um pouco ao som da tranca da porta, como se cada retorno de Talia fosse uma surpresa que nunca sabia se era boa ou má.

— Voltei — disse Talia, o tom leve, quase alegre. — E trouxe algo que talvez faça vocês esquecerem o tédio deste lugar.

Ela abriu a caixa. Dentro, várias pedras brutas e polidas brilhavam sob a luz da lamparina. Esmeraldas, safiras, quartzos.

Damian fechou o livro com calma, mas havia dureza em seus olhos. — Joias de novo?

Talia sorriu, o brilho verde dos olhos refletindo nas gemas. — Joias sempre. Elas são como pessoas, sabia? Cada uma tem um defeito, uma impureza. Mas se souber olhar direito, encontra valor até nas rachaduras.

Damian inclinou a cabeça, cético. — Tt.

— Ah, meu doce pequeno príncipe… — Talia estendeu uma esmeralda para ele. — Até mesmo você há de admitir que há algo de fascinante em segurar um pedaço da terra que levou de dezenas a centenas de milhares de anos para nascer.

Damian não respondeu. Cassandra, porém, se aproximou e tocou de leve uma das pedras, curiosa.

Talia lhe entregou uma safira pequena, azul profundo. — Para você. Azul traz clareza, dizem os antigos.

A menina apertou a pedra contra o peito, os olhos brilhando em silêncio.

Damian observava em silêncio. Algo nele parecia querer repelir o gesto, mas não conseguiu evitar notar o detalhe: Talia distribuía joias como se distribuísse afeto, cada presente carregando um simbolismo que ela jamais confessaria.

À noite, enquanto Talia se recolhia ao quarto improvisado, Damian e Cassandra conversaram em voz baixa no canto do esconderijo.

— Ela não é como antes — disse ele, o tom sombrio. — Não é a mesma Talia que conhecemos.

Cassandra assentiu com a cabeça, sem emitir som.

A menina inclinou a cabeça, quase perguntando sem palavras: E agora?

Damian apertou a esmeralda. — Agora… usamos isso. Seja quem for, ela é útil. E eu nunca desperdiço utilidade.

Cassandra não respondeu. Mas seus olhos seguiram até a porta onde Talia dormia. Havia algo nela que desafiava a frieza de Damian. Algo que parecia… perigoso, mas também reconfortante.

Nos dias seguintes, Talia fez novas saídas. Cada vez que retornava, trazia novidades: livros, armas pequenas escondidas em lenços, pedras raras. Para as crianças, era como se ela quisesse tornar o esconderijo menos sufocante.

Mas ela não sabia que, do lado de fora, olhos já a seguiam.

Os mercenários de Nyssa a vigiavam à distância, sempre discretos. Viram-na entrar no palácio de Ra’s em mais de uma ocasião, sorrindo como se nunca tivesse desaparecido. Viram-na negociar em mercados, discutir valores de gemas com mercadores de vozes grossas, rir de piadas que não tinham graça.

Tudo parecia normal. Mas para eles, normalidade demais era suspeita.

Um deles comentou em voz baixa, em meio às sombras de uma rua estreita:

— Ela sempre sorri demais. Como se estivesse escondendo algo atrás dos dentes.

Outro respondeu: — Se estiver, logo descobriremos.

Eles ainda não sabiam que o segredo não estava nas pedras que ela comprava, nem nos livros que carregava. O segredo estava nas duas crianças que esperavam em silêncio cada vez que ela batia a porta do esconderijo.

O tempo passava no deserto como areia escorrendo entre dedos fechados: invisível, mas inevitável. Para os espiões de Nyssa, cada passo de Talia era registrado, cada olhar suspeito notado, cada negociação de joias relatada em detalhes.

Os relatórios chegavam noite após noite ao palácio.

Nyssa os lia em silêncio, as sobrancelhas arqueadas. A cada página, seu olhar se estreitava.

— Ela anda demais — murmurou. — Visita mercados, coleciona gemas, passa dias fora e depois retorna como se nada tivesse acontecido.

Dusan estava ao lado, os braços cruzados. A pele pálida, assim como seu cabelo contrastava com a escuridão do salão. — Sempre foi assim. Inquieta, deslocada. Você espera encontrar o quê?

— A verdade — respondeu Nyssa. — Algo não está certo. Ela é descuidada, mas ainda assim nunca deixa rastros. Como se…

— Como se soubesse que está sendo observada — completou Dusan.

Nyssa franziu os lábios. — Talvez saiba. Talvez apenas paranoica, afinal corre sangue Al Ghul nas veias dela. Mas não importa. Se esconde algo, vou arrancar com minhas próprias mãos.

Enquanto isso, no esconderijo, Damian e Cassandra estavam sozinhos.

A mesa ainda guardava as marcas da última refeição. O silêncio do lugar era quebrado apenas pelo som de páginas sendo viradas e o atrito suave de lâminas.

Damian manejava uma pequena adaga, testando o peso. O aço reluzia sob a chama da lamparina. Cassandra, ao lado, folheava um livro sobre anatomia e pontos de pressão — presente de Talia, embora não dito em voz alta como presente.

— Ela nos dá armas — disse Damian, em tom baixo. — Livros que Nyssa nunca deixaria em nossas mãos. E espera o quê? Que não usemos contra ela?

Cassandra ergueu os olhos, sem falar. Seus dedos formaram sinais simples, que ele aprendera a decifrar com o tempo: Confiança?

Damian riu seco. — Confiança não é uma moeda que eu gasto.

Ele se levantou, fez alguns movimentos no ar com a adaga, testando a agilidade. Depois, sem aviso, arremessou-a contra a parede. O som metálico ecoou pelo esconderijo.

Cassandra nem se assustou. Apenas fechou o livro e foi até a lâmina, retirando-a com cuidado. Entregou-a de volta a Damian.

— Obrigado, irmã— murmurou  ele, meio sarcástico, meio verdadeiro.

Cassandra apenas inclinou a cabeça, séria. Para ela, lealdade não era sarcasmo: era instinto.

Mais tarde, deitados em suas camas improvisadas, a conversa continuou em sussurros.

— Essa Talia é... — disse Damian.

Cassandra fez sinal de mudada.

— Mudada? — repetiu Damian. — Não. Gente como ela não muda. Gente como nós não muda. Mas ela… ela finge bem.

Houve silêncio. O único som era o vento do deserto batendo contra as paredes de pedra.

— Nyssa a matou cedo demais — continuou ele. — Talvez por isso nunca tenhamos visto essa versão. Ou talvez ela sempre fosse assim, só escondia melhor do que nós imaginávamos.

Cassandra abaixou o olhar. Pena, sinalizou.

Damian ergueu uma sobrancelha. — Pena dela?

A menina assentiu.

Ele soltou uma risada curta. — Você é doce demais para esse mundo.

Mas no fundo, parte dele também sentia algo estranho. Não pena, mas desconforto. Como se Talia, em sua estranha dualidade de ganância e cuidado, fosse uma ferida aberta que ele não sabia como fechar.

Naquela mesma noite, Talia retornou. A porta rangeu quando ela entrou, carregando sacolas cheias de tecidos e pequenos embrulhos.

— Estou em casa — anunciou, deixando as coisas sobre a mesa.

Damian a observava com olhar clínico. Havia suor em sua testa, poeira nas roupas. Mas os olhos verdes estavam vivos, sempre alertas.

— Saídas longas ultimamente — comentou ele, o tom carregado de ironia. — Negócios de joias são tão cansativos assim?

Talia lançou-lhe um olhar rápido, avaliando o peso da pergunta. Depois sorriu, leve sem responder.

Ela se aproximou da mesa, percebeu o leve deslocamento das cadeiras, a adaga ainda enfiada discretamente no canto da parede. Seus olhos se demoraram por um instante ali.

Mas não disse nada. Apenas começou a abrir os embrulhos.

— Trouxe tecidos novos para vocês. E alguns livros… nada perigoso, só poesia — disse, com um sorriso que quase soava zombeteiro, mas que na verdade continha orgulho.

Damian cruzou os braços, desconfiado. —Tt.

Cassandra observava em silêncio, como sempre.

Talia distribuiu os itens com calma, depois sentou-se. Por um instante, a máscara escorregou. O sorriso vacilou, e seus olhos pareceram cansados, velhos demais para o corpo que os carregava.

Damian percebeu. E naquele lampejo de verdade, algo se confirmou para ele: Ela quase parecia um ser humano de verdade.

Ele se inclinou para frente, a voz baixa, quase um sussurro, uma promessa. — Um dia, vou descobrir tudo.

Talia sustentou o olhar dele, sem se abalar. Depois, riu suavemente. — Talvez. Mas não hoje.

E voltou a sorrir, como se nada tivesse acontecido.

Do lado de fora, bem longe dali, os espiões de Nyssa registravam mais um retorno de Talia a um endereço que parecia irrelevante. Uma rua sem saída, um beco sem importância.

Um deles anotou em seu caderno. — Sempre a mesma área.

O outro respondeu: — O círculo vai se fechando.

Eles ainda não sabiam que estavam prestes a tropeçar em algo muito maior do que joias ou fugas.

Afinal, o deserto não guardava segredos por muito tempo. Quem aprendia a ler as dunas, o vento e o movimento das caravanas podia arrancar histórias da própria areia. E era isso que os espiões de Nyssa faziam, noite após noite.

Relatórios cada vez mais detalhados eram levados ao palácio, sempre com o mesmo padrão: Talia Lazarus se ausentava, negociava pedras preciosas, aparecia em mercados específicos, depois sumia por dias inteiros.

No salão de mosaicos, Nyssa lia com calma, mas sua impaciência era visível no bater rítmico de seus dedos sobre a mesa.

— Sempre os mesmos mercados. Sempre as mesmas ruas — disse ela, a voz baixa e dura. — Ela se repete, mesmo tentando disfarçar.

Dusan encostado em uma coluna, observava-a com olhos claros e inexpressivos. — Talvez ela apenas goste de rotinas.

Nyssa ergueu o olhar para ele, cortante. — Ninguém como Talia tem rotina. Se ela volta ao mesmo lugar mais de uma vez, há motivo.

— Ou paranoia sua — retrucou Dusan, com desdém.

Nyssa sorriu, fria. — Não é paranoia quando o instinto grita. Você deveria saber.

No esconderijo, a ausência de Talia se prolongava.

Damian afiava uma lâmina pequena sobre a pedra, o som estridente ecoando. Cassandra, sentada próxima, praticava com um arco menor, presente recebido semanas antes. Seus dedos eram precisos, o silêncio absoluto.

— Ela mente — disse Damian, quebrando a quietude. — Sempre mente.

Cassandra o olhou. Fez sinais rápidos: Mas cuida.

— Cuida? — riu ele, com sarcasmo. — Cuida como quem brinca com marionetes. Não se engane, irmã. Pessoas como ela não cuidam. Usam.

Mas quando ergueu os olhos, a lembrança dos colares cintilou em sua mente: a esmeralda em sua garganta, a safira no pescoço de Cassandra. Presentes dados sem exigência.

Por um instante, o silêncio se fez mais pesado.

Cassandra pousou o arco e escreveu com carvão em uma tábua de madeira, testando a sua caligrafia com o livro que Talia havia dado: Ela é diferente.

Damian leu e suspirou, irritado. — Tt. Diferente não significa confiável.

Na terceira noite sem Talia, o esconderijo parecia respirar junto com eles. O vento zunia entre as rachaduras das pedras, o calor do dia ainda impregnado nas paredes.

Damian estava deitado, mas não dormia. A voz de Cassandra em sua mente — ainda que muda, ele a ouvia de outra forma. Os gestos dela, os olhares, tudo se convertia em palavras silenciosas que só ele entendia.

E se ela não for como você pensa?

Damian fechou os olhos. — Então significa que não a conhecemos de verdade. E isso é pior.

Do lado de fora, os espiões de Nyssa registravam movimentos com precisão militar.

Um deles mostrou o mapa ao líder: linhas que convergiam em uma mesma área, ainda ampla, mas cada vez mais estreita.

— Ela sempre volta por aqui. E desaparece neste ponto. Não importa o caminho que use, o fim é o mesmo.

— Então é aqui que ela se esconde — respondeu o líder.

Não ainda. Eles sabiam que estavam perto, mas não o suficiente. O deserto ainda os confundia, e Talia era cuidadosa demais.

Enquanto isso, no palácio, Nyssa recebia as notícias.

— Estamos cada vez mais próximos — disse um espião, ajoelhado.

Nyssa olhou para Dusan, que permanecia em silêncio. — Viu? Eu disse que havia algo.

— Aproximar-se não é encontrar — replicou ele. — Talia sempre foi boa em despistar.

Nyssa se inclinou para frente. — Não a superestime. Ninguém esconde segredos de mim para sempre.

Dusan desviou o olhar. — Também não a subestime, Nyssa. — Virando e voltando para as sombras, quase se juntando a elas.

Nyssa apertou os olhos com fúria mal contida. Ela era Nyssa Al Ghul, futura líder da família Al Ghul e ninguém iria tirar nem um poeira de sua mão sem permissão.

No esconderijo, Damian e Cassandra treinavam juntos. O espaço era pequeno, mas suficiente para movimentos rápidos. As adagas cortavam o ar, os pés deslizavam pela areia que se acumulava nas frestas.

Após o exercício, Damian caiu sentado, suado. Cassandra trouxe água e sentou-se ao lado.

Ele a olhou, sério. — O que você realmente acha dela?

A menina fez um gesto lento, difícil de traduzir. Algo entre cuidado e máscara.

Damian suspirou. — Máscaras eu conheço bem.

Cassandra sorriu de leve, mas foi um sorriso triste.

Quando Talia retornou, quase ao amanhecer, encontrou-os na mesa, fingindo que haviam passado a noite apenas lendo. Talia sempre achava engraçado isso, como se ela já não comprasse armas e entregasse a eles para isso mesmo.

Ela entrou com a mesma energia de sempre, trazendo sacolas e histórias que não contava por inteiro.

— Voltei — disse, como se fosse apenas uma rotina.

Seus olhos percorreram o ambiente, atentos. Notou o arco fora do lugar, a adaga ainda com sinais de uso, o cansaço nos rostos deles.

Mas não comentou nada. Apenas sorriu, com doçura mal controlada. Como eram fofas essas crianças — mais ou menos pelo menos.

— Trouxe algo novo. Pedras raras, de cor tão viva que parecem arder no escuro.

Damian a encarou, frio. — Tt.

— Sempre beleza — Continuou Talia, sem perder a compostura. — Mesmo em lugares onde ninguém procura.

O olhar dela cintilava, e por um instante Damian se perguntou se aquela mulher, tão enigmática, era tola ou perigosa demais para ser ignorada.

Cassandra observava os dois, silenciosa, sentindo que o ar entre eles se tornava mais denso a cada retorno.

Do lado de fora, o deserto seguia em silêncio, mas já não era mais seguro.

O cerco se fechava, e ninguém dentro daquele esconderijo parecia perceber o quanto estavam próximos do abismo.

O tempo corria dentro do esconderijo como se fosse um rio subterrâneo: invisível, mas sempre presente. As estações passavam do calor abrasador ao frio cortante, e cada mudança era marcada por pequenos rituais que Talia inventava para dar aos dois algo que lembrasse normalidade.

Quando chegou o próximo aniversário, Damian já tinha cinco anos. A infância não suavizava seus olhos verdes — pelo contrário, tornava-os ainda mais profundos e sombrios, como se o tempo apenas reforçasse algo que sempre esteve lá. Cassandra completava dez, e sua lealdade silenciosa a tornava menos sozinha, ainda que ela própria carregasse cicatrizes invisíveis.

Talia preparou tudo em segredo. Durante dias, suas ausências foram maiores, e ao retornar trazia pequenas caixas embrulhadas em seda, perfumes fortes que enchiam o esconderijo, e um sorriso que escondia cansaço.

Na noite do aniversário, ela armou a mesa com tapetes novos, tecidos de cores vivas e lanternas penduradas que iluminavam as paredes gastas. No centro, colocou um bolo árabe feito por suas próprias mãos, com especiarias raras que enchiam o ar de aromas doces e picantes. Ao lado, tigelas fumegavam com seonji-guk, a sopa de sangue de boi que aprendera a preparar depois de muito insistir com as velhas cozinheiras de mercado.

Damian olhou para tudo aquilo em silêncio. Cassandra, de olhos atentos, permaneceu quieta, como se temesse quebrar o feitiço.

— Feliz aniversário, meus tesouros — disse Talia, a voz suave, mas carregada de um orgulho que não conseguia disfarçar. — Vocês crescem rápido demais.

Ela cortou o bolo com precisão, entregando as fatias com as próprias mãos. Os colares do aniversário anterior ainda brilhavam em seus pescoços: a esmeralda de Damian e a safira de Cassandra. Desta vez, Talia trouxe novos presentes: pequenos punhais com cabos trabalhados em ouro para ambos, e um livro raro de estratégias militares para Damian, junto a um novo volume de caligrafia e poesia para Cassandra.

Damian ergueu o livro, folheando-o com calma. — Armas, joias, livros… Você nos trata como se fossemos igual a você, tirando as armas pelo menos.

— Ou como alguém que enxerga o valor do que vocês podem ser — respondeu Talia, sorrindo com um brilho nos olhos. — Toda joia bruta precisa ser lapidada.

Cassandra apertou o punhal contra o peito, como se fosse um tesouro inestimável. Seus olhos se ergueram para Talia, e ela fez um gesto pequeno, quase tímido: Obrigada.

Por um momento, o ar pareceu leve. Mas Damian quebrou o encanto.

— Você nunca nos responde, Talia. Por que fazer tudo isso? Por que nos esconder, nos dar presentes, nos tratar como se… como se importasse?

Talia riu baixo, o som como vidro contra pedra. — Talvez porque vocês são meus diamantes mais raros.

Damian a encarou, sério. — Tt. Ou talvez porque somos úteis.

Ela não respondeu. Apenas passou os dedos sobre seu próprio colar dourado e ergueu a taça de vinho.

Enquanto isso, no palácio, Nyssa recebia notícias frescas.

— Senhora, encontramos vestígios — disse o espião, ajoelhado. — Movimentações no mercado não batem com o que ela declara. E há sinais de suprimentos sendo levados para fora da cidade, sempre por rotas indiretas.

Nyssa sorriu, fria. — Então finalmente estamos perto.

Dusan, presente ao lado, ergueu a sobrancelha. — Perto não é suficiente. Você ainda não sabe onde exatamente ela se esconde.

— Saberemos em breve — respondeu Nyssa, sem perder a compostura. — E quando isso acontecer, não restará pedra sobre pedra.

— E Damian? E a menina? — Dusan perguntou.

Nyssa o olhou como se fosse óbvio. — São meus. Sempre foram. Talia apenas brinca com algo que não lhe pertence.

O albino desviou o olhar, mas não discutiu.

De volta ao esconderijo, o aniversário terminou em risadas contidas, comida compartilhada e uma estranha sensação de pertencimento. Mas quando as lanternas foram apagadas e o silêncio retornou, Damian e Cassandra se recolheram ao canto que dividiam.

Cassandra fez sinais rápidos: Ela tenta. Você vê.

Damian bufou. — Tentar não a torna menos suspeita. Cada gesto dela pode esconder outro motivo.

Ela insistiu, os dedos movendo-se com firmeza: Ela não é Nyssa, Damian.

Damian ficou em silêncio por um longo tempo, encarando o teto. No fundo, não podia negar que havia algo em Talia que confundia sua lógica fria. Nyssa era fácil, Talia era...menos simples.

Talia, sozinha, arrumava os restos da festa. O sorriso desaparecera, e seus olhos verdes refletiam uma preocupação que ela não admitiria em voz alta. As rotas estavam mais arriscadas, havia olhares demais nos mercados, e a sensação incômoda de ser seguida nunca a abandonava.

Ela suspirou, tocando o pingente de ouro em seu pescoço. Pensou em Antônio, em ligar para ouvir sua voz e se distrair com suas histórias triviais. Mas não o fez. Em vez disso, guardou as pedras, fechou as portas e acendeu uma vela.

Sabia que algo estava se aproximando. O deserto nunca guardava segredos por muito tempo.

E ela temia que, quando a areia se movesse, não houvesse lugar seguro para esconder Damian e Cassandra.

Do lado de fora, os espiões de Nyssa observavam as dunas, cada vez mais certos de que o esconderijo estava próximo. Eles já tinham rastros suficientes para não desistir.

E, no palácio, Nyssa aguardava, paciente, como uma serpente enrolada.

O aniversário tinha sido uma celebração silenciosa da vida, mas também um prenúncio de que a infância não duraria.

Damian, aos cinco anos, e Cassandra, aos dez, ainda riam entre si como crianças. Mas em seus olhos já havia sombras que não pertenciam à idade.

E Talia, ao observá-los dormir, soube que o tempo do esconderijo estava acabando.

Logo, o mundo voltaria a reivindicar aquilo que ela tentava, desesperadamente, manter só para si.

 

Chapter 5: Cerco

Notes:

Universo alternativo da DC Comics, em que quase todo mundo é criminoso ou mafioso. Qualquer semelhança com a realidade é coincidência.

Chapter Text

– Capítulo 4 –

Cerco

Dois anos.

Para o mundo da Liga, Damian e Cassandra eram apenas nomes riscados. Desaparecidos, engolidos pelo deserto ou pela incompetência de Talia. Ra’s nunca se importara o suficiente para cobrar explicações diretas — filhos e netos eram peças substituíveis em um tabuleiro eterno. Mas Nyssa, não.

Ela não deixava peças desaparecerem.

Quase dois anos de buscas silenciosas. Esquadras de assassinos enviados como mercadores, andarilhos, até estudiosos itinerantes. Cada pista parecia dissolver-se nas areias. Talia Lazarus era cuidadosa demais: seus esconderijos se moviam como miragens, seus rastros se apagavam antes que o vento pudesse levá-los.

Ainda assim, havia olhos sempre voltados para ela.

Na grande sala do palácio que pertence a Nyssa, mapas se espalhavam sobre a mesa de ébano. Nyssa curvava-se sobre eles, os dedos batendo no ritmo da própria impaciência. Dusan observava de uma cadeira afastada, como uma sombra albina que nunca se dissipava.

— Quase dois anos, irmã. — Sua voz era lenta, arrastada. — Se as crianças estivessem vivas, você já as teria achado.

Nyssa ergueu os olhos, faiscando.
— Elas estão vivas. Eu sinto isso.

Dusan riu baixo, tossindo em seguida.
— Ou talvez você apenas não suporte perder para Talia.

Ela ignorou o veneno.
— Um dos meus homens viu movimentos estranhos no norte, perto da Rota da Seda. Mercadores relatam que caravanas inteiras mudam de caminho quando “uma senhora de joias” aparece. Sempre há ouro demais, pedras demais, para alguém que se diz apenas colecionadora. — Seus dedos se fecharam com força sobre o mapa. — É o disfarce perfeito.

Dusan inclinou-se para frente, os olhos claros brilhando.
— Ou talvez ela apenas seja isso: uma mulher de joias.

Nyssa não respondeu. A certeza queimava em sua mente. Talia não é apenas isso. Nunca foi.

Enquanto isso, no esconderijo distante, Talia percebia o tempo escorrendo. O silêncio das paredes pesava, mas a presença de duas crianças quebrava a monotonia.

Damian crescia como um espinho, sombrio e desconfiado, mas de uma inteligência que até ela tinha dificuldade em acompanhar. Cassandra, cada vez mais ágil e feroz, não desgrudava dele. Quando treinavam juntos, moviam-se como sombras gêmeas, complementando-se com naturalidade assustadora.

Talia os observava em silêncio, entre fascínio e medo. Sabia que cedo ou tarde teria que explicar mais do que queria. Mas não agora. Não enquanto o cerco de Nyssa começava a se aproximar.

E ela sentia isso — não por rastros, mas por instinto.

Era como um frio constante na nuca. O tipo de sensação que apenas alguém criado na corte de Ra’s poderia identificar: estamos sendo caçados.

Do outro lado, no palácio, os relatórios se multiplicavam. Ling, a espiã silenciosa, ajoelhou-se diante de Nyssa com um rolo de pergaminho nas mãos.

— Movimentações confirmadas. Ela volta sempre ao mesmo setor a cada três meses. Nunca mais de uma semana.

Nyssa abriu um sorriso que não alcançou os olhos.
— Então vamos estreitar o laço. Mais homens. Mais olhos.

Dusan a observava, quieto. Sabia que a obsessão da irmã era perigosa. Mas, no fundo, também queria ver até onde isso iria.

Algumas semanas mais tarde, o palácio de Ra’s al Ghul ainda erguia-se como uma cicatriz dourada no deserto. De longe, parecia um templo antigo, guardião de segredos milenares, sustentado por muralhas altas e colunas que resistiam ao vento e à areia. À noite, o lugar ganhava uma aura ainda mais pesada: tochas iluminavam corredores estreitos, sombras se alongavam sobre os mosaicos persas do chão, e o ar cheirava a incenso misturado a ferro e sangue.

Ra’s caminhava lentamente por uma das varandas abertas, as mãos escondidas atrás das costas. Seus olhos, frios como a lâmina de uma cimitarra, varriam o horizonte sem realmente enxergar as dunas. Ele não precisava olhar para ver. Sentia o mundo mover-se como peças em um tabuleiro de xadrez. Cada mercador que prosperava demais, cada general que hesitava, cada filho que respirava mais fundo do que deveria — nada escapava.

— O Oriente está inquieto — murmurou para si mesmo, como se conversasse com o vento.

Atrás dele, passos firmes ecoaram. Nyssa entrou, vestindo roupas de seda escura e armadura leve por baixo. Seus cabelos presos num coque simples a faziam parecer uma guerreira disfarçada de diplomata. O tom de sua voz era direto, quase cortante:

— O senhor continua a desperdiçar tempo olhando para o deserto. Enquanto isso, Talia brinca com as suas ausências.

Ra’s não se virou.

— Talia... — saboreou o nome, como quem experimenta uma fruta amarga. — A filha que carrega o sangue do meu descuido.

Nyssa cerrou os olhos.

— Ela desaparece por meses, pai. Quando retorna, vem carregada de ouro, pedras preciosas, contratos de joias. Todos acreditam que é apenas uma vaidosa. Mas eu não acredito.

Foi então que outro vulto entrou, mais lento. Dusan, o albino, trajava roupas largas que escondiam a fragilidade do corpo. Seus olhos claros e doentios brilhavam com ironia. Ele riu baixo, aproximando-se da varanda.

— Sempre a mesma conversa. Nyssa, a herdeira perfeita, obsessiva em provar que a irmã é uma traidora. — Pousou as mãos magras sobre a pedra fria do parapeito. — E nosso pai, sempre fingindo não ver nada.

Ra’s finalmente se virou, e mesmo no rosto marcado pela idade havia algo indestrutível.

— Contanto que isso não mexa na liga, não me importo. Até você tem seus segredos Nyssa, vocês são o futuro da liga de assassinos, força e sangue é o que a liga exige. Se não consegue controlar a sua irmã que mal segura uma espada, como vai reinar no meu lugar como deseja?

Nyssa fechou os punhos.

— Ela matou Damian e Cassandra de propósito. Eu sinto isso. Aquelas crianças eram apenas instrumentos, peças minhas. E ela... — engoliu, fingindo a raiva, sabendo que estavam vivos e que talvez pudessem ser recuperados — ela não devolveu o que era meu.

Dusan riu de novo, fraco, quase tossindo:

— "Peças minhas"... sempre tão generosa, irmã. Talvez Talia apenas descobriu que crianças não são brinquedos de guerra.

Nyssa girou a cabeça na direção dele, os olhos faiscando, entrando no jogo.

— Você a defende?

— Eu a acho mais divertida do que você, isso é tudo. — Dusan ergueu o queixo, ainda no teatro. — Pelo menos ela tem estilo.

O ar pareceu se condensar. Nyssa prestes a retrucar, quando passos distintos ecoaram pelo salão principal. Tinham cadência de desfile. Uma presença envolvente, cheia de arrogância.

E então ela surgiu.

Talia Lazarus.

Seus cabelos negros brilhavam como seda escura, soltos até os ombros. Vestia um vestido verde profundo, cravejado de bordados em ouro, com pulseiras que tilintavam como sinos discretos a cada passo, olhos verdes tão encantadores, tão gananciosos. Nas mãos, carregava uma pequena caixa de madeira, enfeitada com incrustações de pedras coloridas.

Ela parou diante do pai, arqueando uma sobrancelha com um sorriso encantador.

— O tabuleiro mudou, não mudou? — sua voz soou leve, quase preguiçosa, mas cada sílaba parecia carregada de veneno doce. — Estive em Samarcanda, depois em Isfahan. Os mercadores imploram pelo meu olhar. Levei safiras, trouxe rubis. E ouro... ouro em quantidades que fariam reis se ajoelharem.

Nyssa não disfarçou o desprezo.

— Sempre a mesma história. Pedras e moedas. Enquanto nós lutamos, você desfila.

Talia virou os olhos verdes para a irmã.

— Nem todos têm seu gosto por sangue, querida. Alguns de nós preferem que o sangue permaneça dentro das veias.

Dusan gargalhou, tossindo em seguida.

— Ah, como eu senti falta disso.

Ra’s levantou a mão, e o silêncio caiu.

— Talia, seus negócios chamam atenção demais.

Ela inclinou o rosto, fingindo surpresa.

— Atenção? — mordeu o lábio inferior, um gesto calculado. — Pai, atenção é poder. E poder é o que todos nós buscamos, não?

Ra’s a observou longamente. Seus olhos velhos viam mais do que os outros. Viagem após viagem, Talia voltava com mais confiança. Mais brilho nos olhos. E, mesmo quando parecia fútil, havia algo que escapava da máscara. Algo que ele ainda não decifrara.

Ao fundo, dois membros da Liga se aproximaram discretamente. Ubu, imenso, de músculos como pedra, mantendo distância respeitosa. E Ling, a espiã silenciosa, seus olhos atentos como os de uma águia. Ambos traziam relatórios sobre movimentações externas. Ambos também desviavam o olhar de Talia, como se sua simples presença fosse incômoda demais.

Nyssa cruzou os braços.

— Pai, permita-me colocar homens para segui-la. Se houver algo... — ela deixou a frase suspensa.

Talia sorriu, mas o sorriso não alcançou os olhos.

— Como se você já não tivesse mandado alguém para me seguir, não sou uma tola. Sempre tão obcecada comigo, irmã. Deve ser cansativo viver à minha sombra.

A tensão era palpável. Dusan aproveitou para provocar ainda mais:

— Façam isso, sim. Coloquem espiões atrás da nossa querida joalheira. Talvez descubram que, além de pedras, ela coleciona corações.

O riso dele ecoou pela varanda.

— Como se você não estivesse na sombra de Nyssa nisso também Dusan. —Talia mexeu em uma mecha negra de cabelo olhando para Dusan que com o comentário fez o sorriso morrer de seu rosto. — Como disse não sou tola.

Ra’s ergueu a mão novamente, calando todos.

— Façam como quiserem. Mas lembrem-se: o tabuleiro é meu.

Os olhos dele se demoraram em Talia. A jovem apenas sustentou o olhar, como se desafiasse o próprio abismo.

O silêncio que Ra’s impusera permaneceu após sua última sentença. As chamas das tochas tremulavam, projetando sombras longas sobre as colunas. O ar, carregado de tensão, parecia pesar mais do que o mármore sob seus pés.

Nyssa ainda estava rígida, os punhos cerrados, mas conteve a réplica. Dusan se encostou ao parapeito, satisfeito por ter provocado. Já Talia mantinha aquele meio-sorriso insolente, tão difícil de interpretar — meio charme, meio veneno.

Ubu avançou um passo, a voz grave como um trovão contido:
— Mestres… há rumores em Bagdá e no Cairo. Cidades governadas por homens que antes se dobravam à Liga agora têm novos aliados. Alguns dizem que a Ordem de São Dumas voltou a circular pelo deserto.

Ling completou, em tom suave mas letal:
— E alguns mercadores juram que viram símbolos da Mão Negra entre caravanas armadas.

Ra’s não demonstrou surpresa. Apenas ergueu levemente o queixo, absorvendo as informações.
— Sempre surgem abutres quando sentem que o leão repousa.

Nyssa aproveitou a deixa, mirando o pai:
— Justamente por isso não podemos permitir que Talia siga desaparecendo. Cada ausência dela é uma brecha.

Talia estalou a língua, como quem repreende uma criança.
— Tt… tão dramática. — Seus olhos faiscaram. — O mundo não gira ao redor de nossas espadas, irmã. O ouro que trago compra silêncios. As alianças que faço são invisíveis. Você derrama sangue para assustar, eu o evito para seduzir. Ambos servimos à Liga. Apenas de formas diferentes.

A resposta provocou um breve murmúrio entre os presentes. Ling inclinou levemente a cabeça, intrigada. Ubu franziu o cenho, como se medisse o peso das palavras.

Foi então que um novo personagem entrou. Saif, o “Espada de Khorasan”, um dos generais mais leais da Liga, de barba escura e olhos como lâminas afiadas. Ele se ajoelhou diante de Ra’s, a voz firme:
— Mestre, nossos informantes dizem que até mesmo os monges de Nanda Parbat questionam sua ausência dos conflitos. Eles perguntam quem herdará o trono do Demônio.

O comentário recaiu como chumbo no ambiente. Nyssa ergueu o queixo, orgulhosa. Dusan desviou o olhar, amargo. Talia apenas arqueou a sobrancelha, como se fosse parte de uma encenação já prevista.

Ra’s sorriu pela primeira vez naquela noite — um sorriso lento, que parecia mais cruel do que qualquer fúria.
— O mundo sempre pergunta. A resposta virá quando eu decidir. Não antes.

Talia aproveitou para dar dois passos à frente, abrindo a pequena caixa que trazia nas mãos. Lá dentro, reluziam moedas antigas de ouro, algumas gregas, outras persas, todas intactas.
— Enquanto isso, pai… — ela disse, oferecendo a visão do tesouro. — O ouro dos mortos continuará enchendo nossos cofres.

Nyssa apertou os olhos, envenenada pelo gesto.
— Tesouros não compram lealdade.

— Claro que compram, irmãzinha. — Talia sorriu, fechando a caixa com um estalo suave. — Só é preciso saber o preço certo.

Ra’s ergueu a mão novamente, encerrando a discussão.
— Chega. Vocês são minhas lâminas. E lâminas não se embainham em rivalidades mesquinhas. — Os olhos dele brilharam com frieza. — Sejam pacientes. O tabuleiro ainda não mostrou todas as peças.

O salão parecia respirar junto com eles. Cada palavra, cada olhar atravessado, moldava o ar em volta como lâminas invisíveis.

Ubu pigarreou, sua voz retumbando como pedra arrastada no chão:
— Mestre, permito-me discordar. A ausência prolongada da senhora Talia não apenas chama atenção… mas divide. Há soldados que se perguntam se devem seguir a lâmina de Nyssa ou a sombra dourada de Talia.

O comentário fez o olhar de Ra’s se estreitar. Nyssa abriu um sorriso satisfeito, mas Talia não recuou. Pelo contrário, avançou mais um passo, o corpo ereto, o queixo levemente inclinado para cima.
— Divisão não é fraqueza, Ubu. É escolha. E quando homens têm escolha, a lealdade que oferecem é muito mais ardente do que a que é arrancada à força.

Ling se pronunciou, sua voz fina, quase sussurrada, mas que cortava como vidro.
— Ou muito mais volátil. A lealdade comprada pode virar contra nós no instante em que alguém oferecer mais.

Talia a olhou por um longo momento, como se estivesse avaliando um inseto raro.
— E a lealdade regada a sangue não desaparece, Ling? Quantas vezes guerreiros da Liga já nos traíram por vingança, por dor, por medo? Nada é eterno, exceto a morte.

Dusan riu, abafando uma tosse.
— Ah, irmã, você sempre encontra poesia até na falsidade.

Ra’s não interferiu. Observava. E esse silêncio dele era pior do que qualquer reprimenda.

Foi então que Saif voltou a falar, olhando de esguelha para Talia:
— O ouro que ela traz é útil, não nego. Mas não paga as guerras que se aproximam. A Ordem de São Dumas não coleta pedras para adornar pescoços. Eles levantam exércitos.

Antes que Talia pudesse responder, um homem de túnica escura e capuz entrou no salão. A marca de pergaminho em seu cinturão denunciava sua função: emissário. Ele se ajoelhou diante de Ra’s, o rosto oculto pela sombra.
— Mestre, venho de Bizâncio. Trouxe notícias.

O ar mudou. Até Nyssa inclinou-se levemente para frente.

— O Império das Sombras, a quem juraram fidelidade outrora, movimenta tropas perto do mar Negro. — a voz do emissário era firme. — Eles dizem que o Trono da Liga está vazio. Que o Demônio envelheceu demais para guiar o mundo.

Nyssa sentiu o coração acelerar; Dusan baixou os olhos, fingindo desdém, mas com um tremor nos lábios.

Talia… Talia apenas riu baixo. Uma risada musical, perigosa, que ressoou pelo salão.
— O trono nunca está vazio. Nem envelhecido. Apenas disfarçado. Quem ousa dizer o contrário não entendeu nada sobre o que é Ra’s Al Ghul.

Ra’s finalmente ergueu a voz, e ela caiu sobre todos como um trovão lento:
— Deixem que falem. Palavras são vento. O deserto as devora. Mas quando o Demônio levantar a espada, até os reis fugirão.

O emissário curvou-se, recuando.

Nyssa respirou fundo, recuperando a pose.
— Pai, ainda assim, precisamos decidir. Quem será a lâmina que os homens verão quando a sua sombra se ausentar? Eu? Dusan? Talia?

Ra’s não respondeu de imediato. Caminhou até o centro do salão, a capa arrastando pelo mármore, os olhos queimando de dentro para fora.
— Vocês ainda não entenderam. O tabuleiro não se decide pela pressa das peças. Eu escolherei. O destino escolherá. E até lá… cada um de vocês continuará sendo testado.

Ele parou diante de Talia. O olhar dele era profundo, mais velho que o próprio deserto.

Talia sustentou o olhar, mas a caixa de ouro em suas mãos parecia pesar mais.

A reunião se dissolveu lentamente. Ubu e Saif saíram trocando olhares pesados, já discutindo rotas e provisões. Ling desapareceu como uma sombra, silenciosa. Nyssa permaneceu apenas alguns instantes, encarando Talia com a fúria contida de quem queria cortar e não podia. Dusan saiu rindo sozinho, o som ecoando como ferro enferrujado.

Restou apenas Talia, ainda diante do pai.

Ra’s voltou à varanda, contemplando o deserto como se fosse um oráculo.
— Vá descansar, filha. Amanhã, o sol trará mais perguntas.

Ela inclinou-se, respeitosa, mas sem se curvar demais.
— Como desejar, pai.

E deixou o salão.

O som dos passos de Talia ecoava pelos corredores longos do palácio, ritmados como uma melodia seca. Cada mosaico antigo refletia a luz das tochas, desenhando sombras que pareciam observá-la.

Ela mantinha a cabeça erguida, como se ainda houvesse olhos da Liga escondidos em cada esquina. A cada servo que se curvava em silêncio, ela respondia com um aceno mínimo, calculado, impecável. A Lady Talia não podia fraquejar.

Mas conforme se afastava da varanda de Ra’s, a rigidez começou a pesar. O vestido de seda verde parecia sufocar-lhe o corpo, apertando o peito, as costas.

Atravessou um arco de pedra talhada com versos antigos em árabe. Ao passar sob ele, o coração disparou. As palavras de Nyssa voltaram como lâminas: “Ela matou Damian e Cassandra de propósito.”

Talia quase deixou escapar um tremor.
Não… não posso pensar nisso aqui. Não posso.

Desceu uma escadaria estreita, onde a luz rareava. Aqui, as sombras eram maiores, e a atmosfera se tornava íntima. Ela segurou a caixa de pedras preciosas mais forte, como se fosse um talismã. Mas dentro dela, tudo o que via eram os olhos de Damian, verdes como os dela, e o silêncio de Cassandra, sempre vigilante.

No fim da escadaria, havia uma porta de madeira simples, escondida atrás de tapeçarias persas. Talia empurrou, revelando um pequeno quarto lateral, usado apenas por ela.

Ali, longe dos olhares da Liga, o disfarce se despedaçou. Ela encostou-se contra a porta, respirando fundo, deixando a tensão escapar em ondas. Tirou o bracelete de ouro e o deixou cair sobre a mesa, o som metálico ecoando no silêncio.

Talia fechou os olhos por um instante antes de pegar o telefone escuro com detalhes dourados e discar. A cada número discado, parecia estar abrindo uma fenda em seu próprio peito.

O chiado inicial trouxe alívio. Logo, a voz grave, familiar, carregada de sotaque hispânico, atravessou o fio:
— Hermana… pensei que só ligaria amanhã.

O som quebrou o gelo em seu peito. Pela primeira vez em semanas, Talia deixou que a voz tremesse, ainda que de leve.
— Antônio… precisava ouvir você.

O silêncio entre o chiado da linha e a respiração do outro lado era como um bálsamo. Talia manteve os olhos fechados, como se pudesse se refugiar naquela voz.

— Hermana… — Antonio repetiu, com ternura quase paternal. — Está tudo bem?

Por um instante, ela não respondeu. O nó em sua garganta era mais pesado do que qualquer espada. Quando finalmente falou, a voz saiu baixa, áspera:
— Hoje foi… sufocante.

Antonio suspirou do outro lado, como quem já sabia, mas não entendia os detalhes.
— Outra reunião da sua família, não? — perguntou num tom leve, sem imaginar o veneno oculto nas paredes douradas de Ra’s. — Você sempre me liga nesses dias.

Talia apoiou a testa na palma da mão.
— É como andar num labirinto de facas. Todos sorriem… mas cada palavra é uma ameaça.

— E você sobrevive — completou Antonio, firme. — Como sempre. Você nasceu para atravessar esse labirinto.

Ela riu baixo, mas o som saiu quebrado, sem alegria.
— Você fala como se eu fosse invencível.

— Para mim, é. — A voz dele carregava uma certeza ingênua, quase infantil. — Você é a hermana mais forte que eu conheço, você tira de letra uma família de riquinhos mimados.

O coração de Talia apertou. Se ele soubesse… se soubesse quantas vezes pensou que não acordaria, quantas vezes os olhos de Nyssa pesaram sobre ela como lâminas. Mas Antonio não sabia. Nunca soube. Nunca saberá por vontade dela.

E por isso, naquele espaço íntimo, ela podia fingir que era apenas uma mulher cansada.

— Antonio… — murmurou, os olhos marejando. — Se eu desaparecer um dia, você cuidaria deles?

Do outro lado, silêncio. Ele hesitou.
Deles?

Talia percebeu o deslize. Apertou o colarinho do vestido, tentando recompor-se.
— Dos meus negócios… das minhas coisas. — Corrigiu rápido, mas a voz denunciava uma sombra. — Você sabe, alguém precisa manter ordem no caos.

Antonio não insistiu. Não era homem de perguntas afiadas. Apenas disse, firme:
— Eu cuidaria, sim. Mas você não vai desaparecer. Eu conheço você. Você sempre dá um jeito. Agora você tem duas crianças que dependem de você não hermana?

Essa confiança simples, quase absurda, fez Talia sorrir com lágrimas nos olhos. Ele acreditava nela de um jeito que mais ninguém no mundo acreditava. Nem Ra’s, nem Nyssa, nem Dusan. Só Antonio.

Ela respirou fundo.
— Às vezes acho que você é o único lugar no mundo onde ainda posso ser… eu mesma.

— Sempre será — respondeu, com uma calma que atravessou a distância como um abraço. — Hermana, lembre-se: o ouro, as pedras, tudo isso que você fala… não importa. Você importa.

Talia fechou os olhos com força. Doía. Doía porque ele não sabia. Doía porque, se soubesse, talvez deixasse de acreditar.

Mas, por agora, essa mentira era seu único refúgio.

A linha ficou em silêncio após o último “hermana” de Antonio. O coração de Talia batia forte, como se tivesse corrido milênios em poucos minutos.

Ela não desligou de imediato. Manteve o aparelho encostado ao ouvido, ouvindo apenas o chiado estático, prolongando a ilusão de que ainda estava acompanhada. Quando finalmente afastou o telefone, encarou-o como se fosse um talismã. Aquele objeto, tão pequeno e tão caro, guardava o único laço puro de sua vida.

Guardou-o com cuidado dentro da caixa de joias, escondido sob uma camada de pedras preciosas. Para qualquer olhar alheio, apenas um tesouro banal. Para ela, a linha de vida.

Respirou fundo. Uma vez. Duas. Depois ergueu o queixo diante do espelho de corpo inteiro que enfeitava seus aposentos.

A mulher refletida tinha os olhos vermelhos, o delineado borrado pelo sal das lágrimas. Vulnerável. Frágil. Um retrato que Ra’s jamais perdoaria e que Nyssa usaria como lâmina.

Talia se aproximou. Puxou um pano de linho, limpou o rosto, refez a pintura com precisão quase cirúrgica. O verde de seus olhos voltou a brilhar como lâminas de esmeralda. O sorriso ensaiado reapareceu nos lábios. E aos poucos, a frágil irmã se dissolveu, dando lugar à Lady Talia.

No fundo, ainda sentia a voz de Antonio ecoar: “Você importa.”

E foi com essa voz presa ao peito que abriu as portas pesadas de madeira, deixando os corredores engolirem sua figura. O eco de seus passos voltava a ser firme, calculado, cada movimento estudado.

Lá fora, Nyssa rondava como uma pantera desconfiada. Dusan ria baixinho em algum canto, alimentando a ironia que mantinha viva. Ubu e Ling já a observavam com olhos atentos.

Ninguém jamais saberia que, minutos antes, a Lady Talia havia chorado.

Ninguém jamais saberia que, sob a máscara cravejada de ouro e veneno, havia uma irmã tentando proteger algo mais precioso que todas as pedras do mundo.

O esconderijo de Talia não tinha janelas, apenas lanternas suspensas que banhavam as paredes em tons dourados. As chamas faziam os mosaicos refletirem desenhos distorcidos, e às vezes parecia que os olhos pintados nas figuras antigas observavam os que ali viviam.

Era seguro. Mas também era um labirinto.

Talia o escolhera por isso: passagens ocultas, túneis que levavam a saídas improváveis, portas disfarçadas atrás de tapeçarias. Um lugar onde o tempo se confundia, onde os caçadores poderiam se perder até desistirem.

Ali, Damian e Cassandra cresciam.

O menino agora com cinco anos, a sombra de um príncipe em miniatura, movia-se com frieza que jamais combinaria com a idade. Seus olhos verdes — reflexo cruel do sangue que carregava — fitavam os livros, as armas pequenas que Talia lhe permitia treinar, e até os animais que surgiam na beira do refúgio. Damian gostava deles de um jeito silencioso, quase clandestino, como se sua dureza precisasse de uma fissura para respirar.

Cassandra, dez anos, já era uma muralha em volta dele. Seus movimentos eram afiados, seu silêncio gritava mais do que qualquer palavra. Ela não desgrudava dele, como se cada respiração dependesse da dele. Quando Damian caminhava pelo refúgio, ela estava atrás. Quando ele treinava, ela caía junto no chão, levantava junto, sangrava junto.

Talia via isso e sentia o coração contrair.

No entanto, fingia naturalidade.

Ela trazia livros ilustrados, algumas roupas novas escondidas em baús, comidas exóticas que dizia ter encontrado em suas viagens. Até um rádio, caro demais, que captava vozes distantes. Às vezes o ligava, e o refúgio se enchia de músicas que pareciam vir de outro mundo. Nesses momentos, Talia dançava sozinha, com movimentos leves e quase teatrais.

Damian e Cassandra a observavam. Sempre sérios. Sempre sombrios. Mas havia algo nos olhos deles — um brilho escondido — que denunciava fascínio.

Era esse o jogo de Talia: criar brechas de normalidade em meio ao caos.

Mas, fora dali, Nyssa estreitava o cerco.

Mercenários e membros da Liga infiltravam-se nas cidades próximas, espalhando boatos, comprando informações, pagando guias do deserto. Alguns morriam tentando. Outros voltavam com pistas que pareciam inconsistentes — até que começaram a se repetir.

— Um refúgio antigo, nas rotas comerciais esquecidas. — Ling relatou, com a voz baixa, ajoelhada diante de Nyssa. — Usado no passado como entreposto de joias.

Nyssa estreitou os olhos.
— Joias... — murmurou, saboreando a coincidência.

Dusan, encostado em um pilar, sorriu.
— Então nossa irmã colecionadora encontrou um ninho perfeito para suas pedras. Que conveniente.

Nyssa o ignorou.
— Mandem os melhores. Mas não se aproximem de imediato. Quero confirmação absoluta antes de agir.

As sombras da Liga moveram-se como um enxame obediente.

No refúgio, Talia observava Damian manusear uma pequena adaga. Ele a girava entre os dedos como se fosse parte da mão, os olhos fixos na lâmina. Cassandra, sentada no chão, afiava a própria arma com cuidado silencioso.

— Vocês dois parecem estátuas — disse Talia, fingindo leveza, cruzando os braços. — Até mesmo quando brincam, têm esse ar de morte.

Damian ergueu os olhos para ela, frios.
— Não estamos brincando.

— Tt. — murmurou, como um selo de desprezo.

Talia suspirou e se abaixou diante deles, ajeitando uma mecha de cabelo.
— Eu sei. Mas vocês ainda são crianças. — O tom dela oscilou, como se esquecesse de manter a máscara. — Crianças precisam... de algo mais.

Damian não respondeu, apenas desviou os olhos, voltando ao treino. Cassandra, porém, ergueu o rosto. O silêncio dela parecia mais eloquente que palavras: não nos obrigue a ser o que não somos.

Talia sorriu de canto, mas o sorriso morreu rápido. Porque, no fundo, ela sabia. E temia.

Enquanto isso, no deserto, os mercenários avançavam. Homens e mulheres da Liga, vestidos como andarilhos, guardando armas sob túnicas. Seguiam trilhas apagadas, interrogavam guias, observavam caravanas.

E, por fim, um deles — um assassino chamado Idris, especialista em rastrear como um cão de caça — encontrou marcas.

Ele não avançou mais. Apenas cravou uma estaca no chão, sinalizando o achado.

O cerco estava fechado.

E, dentro do refúgio, Talia ainda dançava sob a música do rádio, tentando convencer-se de que os monstros não estavam prestes a atravessar a porta.

A noite no refúgio era densa. O ar carregava o cheiro de pedra fria e óleo queimado das lamparinas. O rádio chiava baixo em um canto, até que a voz distante de um locutor foi engolida pelo silêncio.

Damian acordou primeiro. Não pelo som — mas pela ausência dele.
Era como se o deserto respirasse diferente.

Ele se levantou devagar, a adaga curta ainda junto ao corpo. Seus pés descalços se moveram sem ruído pelo corredor estreito até chegar à entrada disfarçada por pedras. Encostou-se no vão e fechou os olhos.

Passos. Longe. Medidos. Não de viajantes comuns.

— Tt. — o som escapou, baixo, quase um aviso para si mesmo.

Cassandra surgiu logo atrás, como se tivesse sentido o mesmo. Seus olhos escuros se estreitaram, atentos ao vazio além das paredes. Não disse nada — não precisava. Apenas assentiu.

Damian olhou para ela, e os dois compartilharam o pensamento: eles estão vindo.

Na manhã seguinte, Talia apareceu com os olhos cansados. Ela havia dormido pouco, embora fingisse o contrário.

— Vocês estão acordados cedo. — tentou soar leve, enquanto ajeitava o manto.

Damian a encarou.— Há gente lá fora. — Talia parou. Um segundo apenas, mas suficiente para trair a máscara. O olhar dela correu para Cassandra, que confirmou com um gesto mínimo da cabeça.

— Não são viajantes — completou Damian, firme. — Movem-se como caçadores.

Talia respirou fundo, disfarçando com um sorriso.
— O deserto está cheio de ecos. Às vezes o vento parece gente.

Damian estreitou os olhos.
— Eu conheço caçadores.

O silêncio pesou. Cassandra ergueu-se devagar, como se dissesse não adianta negar.

Talia desviou o olhar. No fundo, sabia que eles tinham razão.

Enquanto isso, não muito longe, Idris observava do alto de uma duna.
Atrás dele, quatro mercenários descansavam à sombra improvisada de um pano estendido.

— Eles sabem — disse Idris, os olhos fixos no refúgio camuflado pelas rochas. — Se moveram à noite. Cautelosos. A mulher ensinou bem.

Nyssa havia ordenado paciência. Mas Idris, caçador por instinto, sentia o desejo de avançar. De testar as defesas.

Ainda assim, conteve-se.
— Vamos cercar. Não atacar ainda. Quero que respirem o medo antes.

De volta ao refúgio, Talia reuniu Damian e Cassandra.
Ela caminhava de um lado para o outro, o rádio ainda ligado, mas baixo. A música agora parecia um fundo irônico para a tensão.

— Escutem. — sua voz era firme, mesmo com o coração disparado. — Se eles nos encontraram, precisamos estar prontos.

Damian ergueu o queixo.
— Já estamos.

Cassandra apertou a lâmina que carregava, como se concordasse.

Mas Talia os encarou com severidade.
— Não. Vocês são crianças. Eu vou enfrentar isso. Vocês vão ficar escondidos.

Damian franziu o cenho, o sangue fervendo.
— Tt. — cuspiu. — Você sempre fala como se não fôssemos capazes.

Ela respirou fundo, abaixando-se para encará-lo nos olhos.
— Porque eu sou sua... A adulta aqui. E é meu dever proteger vocês.

Cassandra observava em silêncio, mas dentro dela a raiva queimava. Se alguém tocar nela, eu mato. O pensamento era cru, direto, sem filtros infantis.

Damian assentiu. Como se concordasse com Talia, mas na verdade compartilhava a mesma sombra de pensamento de Cassandra.

Ele olhou para Cassandra quando Talia virou de costas. O silêncio dos dois dizia mais do que palavras: se o perigo chegasse, Talia não estaria sozinha — quisesse ela ou não.

A noite voltou pesada, abafada, como se o próprio deserto tivesse decidido sufocar o refúgio.
Damian estava sentado no chão, afiando a lâmina com movimentos precisos. Cassandra fazia o mesmo, em silêncio, apenas o som áspero do metal cortava a escuridão.

De repente, o rádio chiou. Estática. Depois, uma voz desconhecida, cortada por ruídos.
— …vento… leste… alvo em movimento…

Talia congelou. A mão dela apertou o tecido do manto, o coração disparando. Não era transmissão comum. Alguém estava usando a mesma frequência que ela utilizava para mascarar comunicações.

— Interceptaram — murmurou, quase sem ar. — Estão perto demais.

Damian ergueu o olhar, afiado.
— Tt. Eu disse.

Cassandra fez um gesto seco: eles já estão aqui.

Talia tentou disfarçar, mas o sangue gelado denunciava a verdade. Desde que fugira, sempre vivera como se houvesse olhos atrás das dunas. Agora, finalmente, aqueles olhos a fitavam sem máscara.

Do lado de fora, Idris e seus homens haviam deixado sinais quase imperceptíveis perto das pedras. Riscos curtos na areia, pequenas marcas em formato de meia-lua. Para qualquer viajante, apenas rastros de vento. Para um assassino, era aviso: o cerco começou.

Nyssa recebera o primeiro relatório naquela manhã. Sorriu diante da mensagem cifrada.
— Continue observando. Quero que Talia sinta a respiração deles antes de ver o fio da lâmina.

Dentro do refúgio, Talia caminhava sozinha pelos corredores estreitos. A luz das lamparinas projetava sombras alongadas que pareciam zombar dela. Seus passos ecoavam, e cada batida contra a pedra trazia lembranças do passado: as reuniões frias com o pai, o julgamento duro de Nyssa, o riso doentio de Dusan.

Quando chegou ao pequeno quarto secreto onde guardava mapas e papéis, acendeu outra lamparina. A chama iluminou o traçado de linhas finas em pergaminos: rotas de fuga, marcações de pontos de água, esconderijos alternativos.

Com mãos firmes, ela começou a riscar novos caminhos.
Três rotas. Duas falsas. Uma real.

Sempre fora assim: cada plano tinha que enganar não apenas o inimigo, mas também quem viesse depois — porque ela sabia que, cedo ou tarde, alguém encontraria o que deixava para trás.

O medo queimava em silêncio, como um veneno lento. Não permitia que ele transbordasse. Ao contrário, moldava-o em cálculos.
Se nos cercarem pelo leste, fugiremos pelo norte.
Se bloquearem o norte, crio uma fenda falsa no sul.
Se nos pegarem de surpresa…

Ela não terminou o pensamento.

Em vez disso, abriu uma pequena caixa de ferro. Dentro, estavam apenas três coisas: um frasco de veneno, uma chave sem fechadura e um pedaço de tecido manchado de sangue seco. Pegou a chave, girando-a entre os dedos.
— Se controla, não perca o controle. — murmurou, quase num sussurro.

Guardou tudo de novo, fechando a caixa.

Naquele quarto escuro, ninguém a via. Ninguém ouviria sua respiração acelerada. Ali, Talia permitia-se sentir o pavor por segundos, apenas para depois sufocá-lo com disciplina.

Quando voltou para perto das crianças, a máscara já estava no lugar. A mãe, a estrategista, a mulher que fingia ter todas as respostas.

Mas nas paredes de pedra, ainda ecoava o som do lápis riscando mapas falsos, como se fosse um coração batendo apressado demais.

Chapter 6: Tempestade

Notes:

Universo alternativo da DC Comics, em que quase todo mundo é criminoso ou mafioso. Qualquer semelhança com a realidade é coincidente.

Chapter Text

– Capítulo 5 –

Tempestade

As noites no Oriente eram longas e traiçoeiras. O vento passava pelas fendas do rochedo, fazendo o esconderijo parecer um túmulo vivo. Dentro dele, Talia caminhava lentamente, as mãos sobre o tecido grosso da túnica verde que usava para esconder os braceletes de ouro. O ouro brilhava demais — sempre brilhava — mas servia de máscara, distração e símbolo. Para todos, ela era a estudiosa arrogante que preferia pedras preciosas à lâmina. Para Damian e Cassandra, ela era… outra coisa. Nem mãe, nem mestra, mas um ponto fixo num mundo que se movia rápido demais.

Naquela noite, contudo, havia algo no ar. Talia sentia nos ossos. O silêncio não era o mesmo. Cassandra percebeu antes dela. A menina estava deitada perto da entrada, como uma sentinela muda. Quando os ventos mudaram, ela ergueu o corpo magro, a mão instintivamente pousando no punhal que Talia deixara com ela. Damian, do outro lado, interrompeu a leitura de um dos livros raros que ganhara.

— Eles estão vindo — disse ele, sem levantar os olhos da página. Sua voz era firme, fria, mas dentro havia um calor de excitação. — Tt. Achei que demorariam mais.

Talia parou. Seu coração não bateu mais rápido; pelo contrário, pareceu desacelerar. Respirou fundo, sentindo o peso de cada joia em seus braços, cada segredo guardado.

— Quantos? — perguntou ela, não para Damian, mas para Cassandra.

A menina fez um gesto rápido com as mãos, números desenhados no ar. Doze. Depois, mais dois. Quatorze no total.

Damian riu baixo.
— Só isso? Nyssa deve estar cansada de brincar.

Talia caminhou até ele, tomando-lhe o livro das mãos e fechando-o com força.
— Cuidado com a arrogância, Damian. São homens suficientes o bastante para matar duas crianças e uma mulher “indefesa”.

— Mas nós não somos apenas isso — respondeu o menino, os olhos verdes faiscando.

A tensão no ar estava sufocante. Cassandra se moveu até ele, silenciosa, a lealdade escorrendo em cada passo. Eles eram um reflexo um do outro: ele, a mente; ela, a lâmina.

Talia sabia que não poderia segurá-los. Eles eram como sombras presas em corpos infantis. Sombrios sem desculpa. Mas ainda assim, eram crianças. Suas crianças.

Lá fora, os mercenários da Liga se aproximavam como hienas. Eram homens experientes, escolhidos a dedo por Nyssa. Entre eles, estava Said, conhecido pela crueldade com que tratava prisioneiros; e Harun, arqueiro de elite que nunca errava duas vezes. Eles se moviam em silêncio, pés sobre a areia como se fossem parte do próprio deserto.

O líder, Said, levantou a mão para parar o grupo. Apontou para as fendas na rocha.
— É aqui.

Um dos homens riu baixo.
— Esconderijo patético para a filha de Ra’s.

Said não sorriu.
— Não subestime ninguém.

Dentro, Talia se ajoelhou diante de Damian e Cassandra.
— Vocês sabem o que fazer.

Damian assentiu, sério.
— Eliminar. Como sempre.

Talia pousou uma das mãos no ombro dele.
— Não. Escapar primeiro. Se tiverem chance, eliminem. Mas sobrevivam.

Ele quase retrucou, mas engoliu. Cassandra apenas segurou sua mão, apertando rápido, como quem promete sem palavras.

O primeiro impacto veio com força. Explosivos colocados nas rochas fizeram as paredes tremerem. Poeira caiu do teto. Cassandra instintivamente cobriu Damian, embora ele não precisasse. Talia se levantou, já com duas lâminas curvas em mãos.

— Fiquem atrás de mim — ordenou, sabendo que não obedeceriam.

Os mercenários invadiram. O primeiro, Harun, entrou com arco em punho. Uma flecha foi disparada imediatamente, mirando Talia. Ela desviou de lado, a lâmina cortando o ar e partindo a haste ao meio. Em seguida, avançou. O segundo mercenário caiu com a garganta aberta antes mesmo de gritar.

Damian se moveu como uma fera. Usando a pequena adaga que sempre guardava, lançou-se contra as pernas de um dos homens, rasgando os tendões. Cassandra o seguiu, atacando outro pelas costas. Não houve hesitação. Eram crianças, mas lutavam como assassinos treinados.

O sangue espirrou nas pedras. O cheiro metálico se espalhou.

— Malditas crianças! — rosnou Said, avançando com espada em punho.

Talia interceptou, lâmina contra lâmina. O choque ecoou pelo esconderijo. Ele era forte, brutal. Ela, veloz, calculista.

Enquanto lutavam, Damian e Cassandra cuidavam dos outros. A sincronia era assustadora. Cassandra cortava, Damian finalizava. Eles não riam, não gritavam. Apenas matavam.

Mas ainda assim, eram apenas dois. E havia muitos.

Foi então que as sombras começaram a mudar.
Um dos mercenários caiu sem que ninguém tivesse tocado nele. Garganta cortada, sangue espirrando. Outro caiu em seguida, uma faca cravada no coração. Nenhum dos três no esconderijo havia feito isso.

Damian percebeu primeiro.
— Não estamos sozinhos.

Talia desviou de Said, cortando-lhe o braço, e olhou ao redor. Nada. Apenas as sombras.

Cassandra, com olhos atentos, captou um movimento rápido, como uma asa negra passando. Mas não disse nada. Apenas sorriu, breve, quase imperceptível.

Os mercenários começaram a entrar em pânico.
— Há mais alguém aqui!

Said rugiu.
— COVARDES! Matem-nos todos!

Mas o medo já se espalhara. As sombras estavam contra eles.

Ling.

Ela se movia como vento, como ausência. Nenhum dos três a viu claramente. Apenas sinais: corpos caindo, lâminas sumindo, gargantas abertas em silêncio.

Para Damian, era irritante não ter controle. Para Cassandra, era reconfortante. Para Talia, era desconcertante.

— Quem...? — começou Damian, mas se calou.

Não importava. O sangue cobria as pedras. E os mercenários caíam um a um.

Do outro lado do deserto, longe dali, Dusan caminhava pelos corredores do palácio. O albino tossia, apoiado na parede, mas com um sorriso cruel nos lábios.

Nyssa aguardava relatórios. Mas Dusan segurava os papiros, dobrando-os lentamente.
— Que demora... — murmurou, rasgando discretamente uma das mensagens. — Talvez os ventos do deserto tenham se perdido.

Ele riu sozinho, um riso baixo, enquanto guardava as cinzas do papel em uma pequena caixa.

— Vamos ver até onde Talia consegue dançar.

O esconderijo já não parecia refúgio. Tornara-se um campo de extermínio. O cheiro de sangue dominava o ar, ferroso, quente. As paredes de pedra absorviam cada gota, como se tivessem fome.

Damian ergueu a adaga ainda pingando, os olhos vidrados. Ele não piscava, não respirava fundo; apenas analisava o próximo alvo como se fosse resolver um problema lógico.
— Tt. Eles são desorganizados demais.

Cassandra não respondeu, mas sua lâmina o seguiu. Sempre dois passos atrás, sempre cobrindo o flanco dele. Quando um mercenário tentou agarrar Damian, Cassandra já havia atravessado a lâmina pela costela do homem, empurrando-o para o chão. Ela não sorria. Não tremia. Apenas executava.

Talia percebeu. E esse foi o momento em que seu coração falhou.

Não pelo perigo. Ela conhecia o perigo desde a infância. Mas porque via, em carne viva, a repetição de uma história: duas crianças que não eram crianças, já moldadas pela sombra da violência.

Um dos mercenários gritou, carregando uma lança curta. Talia o interceptou com um giro, cortando-lhe o pescoço. O sangue respingou no rosto de Damian. Ele não se incomodou. Apenas avançou, empurrando o corpo do homem morto para usar como escudo contra outro ataque.

— Está vendo? — gritou Said, ainda de pé, brandindo a espada com a outra mão. — São monstros! Crianças ou não, devem morrer!

Talia o encarou, lâminas em guarda.
— Eles são meus.

A fúria do homem o fez avançar com brutalidade. As lâminas se chocaram de novo, faíscas voando. Ele era força bruta, mas Talia era estratégia. Cada golpe que ela desviava era calculado para desgastá-lo.

Ainda assim, por trás da batalha, a sombra avançava.

Dois mercenários fugiram para a lateral do esconderijo, tentando cercar Damian e Cassandra. Mas antes de chegarem perto, caíram como bonecos, gargantas abertas por cortes invisíveis. Nenhum som. Nenhum vulto.

Damian parou por um instante. Olhou para o escuro.
— Quem está aí? Mostre-se!

Nada.

Cassandra tocou o braço dele, balançando a cabeça. Melhor não chamar. Melhor deixar as sombras agirem.

Damian franziu o cenho.
— Não gosto de dívidas.

Mesmo assim, recuou.

Harun, o arqueiro, ainda estava de pé. Tinha recuado para a entrada, preparando três flechas de uma vez. Seus olhos eram frios, treinados. Ele mirava não em Talia, mas nas crianças.

Damian percebeu.
— Talia!

Talia girou, mas estava presa no duelo com Said. Ela não chegaria a tempo.

O arqueiro soltou a corda.

O som seco cortou o ar. As flechas avançaram.

Cassandra reagiu. Pulou à frente de Damian, cruzando os braços e desviando o corpo. Duas das flechas passaram raspando, a terceira atravessou seu corpo. Ela caiu de joelhos, mas não soltou a lâmina.

Damian gritou, um grito contido, quase animal.
— Cassandra!

O arqueiro recarregou. Mas não teve tempo. A sombra o alcançou. Uma lâmina saiu da escuridão e atravessou sua garganta, deixando-o engasgar no próprio sangue antes de cair.

Ling.

A batalha virou massacre. O medo espalhou-se entre os mercenários. Os que ainda resistiam viraram presas. Um a um, foram cortados. Alguns por Talia, outros pelas crianças, muitos pela presença invisível que ninguém ousava nomear.

Em minutos, o chão estava coberto de corpos. O esconderijo se tornara um charco de sangue.

Said era o último. Estava ferido, mas ainda de pé, respirando pesado. Segurava a espada com ambas as mãos, tentando se manter ereto.

— Maldita... — cuspiu para Talia. — Nyssa vai terminar o que começamos. Você não pode proteger esses demônios para sempre.

Talia avançou, encostando a lâmina na garganta dele.
— Eu não preciso para sempre. Só preciso de hoje.

E o golpe foi rápido, limpo. Said caiu, os olhos arregalados, sem mais palavras.

O silêncio voltou. Um silêncio pesado, apenas interrompido pela respiração acelerada de Damian e pelo sangue pingando da ferida de Cassandra.

Damian caiu de joelhos ao lado dela, segurando-a pelos ombros.
— Você não devia ter feito isso! Tt...!

Cassandra apenas o encarou, mordendo os lábios para não soltar nenhum som de dor. O sangue escorria pela roupa, manchando o chão.

Talia se aproximou, ajoelhando-se. Seu rosto, pela primeira vez naquela noite, deixou escapar a máscara. O medo estava nu em seus olhos.
— Cassandra... — murmurou, pressionando a ferida. — Vai ficar bem. Eu juro.

Damian a olhou com fúria.
— Ela se machucou porque você nos trouxe para cá! Porque você insiste em nos esconder como se fôssemos frágeis!

— Não são frágeis — respondeu Talia, com firmeza. — Mas ainda são meus. E eu não vou deixá-los morrer por arrogância.

Damian abriu a boca para retrucar, mas se calou. A sombra havia se movido de novo.

Ling surgiu pela primeira vez. Não de corpo inteiro, apenas uma silhueta entre as pedras. Pequena, ágil, com o rosto coberto por um véu negro. Seus olhos, estreitos e duros, fitaram Talia de longe. Não disse nada. Não se aproximou. Apenas observou.

Talia a reconheceu. O choque a percorreu, mas não demonstrou.
— Ling.

A sombra não respondeu. Apenas sumiu, como se nunca tivesse estado ali.

Damian se levantou, cerrando os punhos.
— Então era ela...

Cassandra tocou seu braço. Um gesto breve, silencioso. Não era hora de caçar sombras.

Talia respirou fundo. Olhou o esconderijo em ruínas, os corpos espalhados. Não podiam ficar ali. Nyssa saberia. O sangue atrairia ainda mais predadores.

Ela fechou os olhos por um instante. Quando os abriu, sua máscara estava de volta. A mulher preocupada dera lugar à general calculista.
— Precisamos partir. Agora.

Damian franziu o cenho.
— Para onde?

— Para bem longe daqui. — Talia se levantou, erguendo Cassandra nos braços, apesar da resistência da menina. — Vamos nos mover como fantasmas.

Damian olhou o corpo dos inimigos no chão, depois para a entrada.
— E se nos perseguirem?

Ela sorriu, um sorriso frio. Antes de mandar Damian atear fogo no lugar, até virar completamente cinzas.

No deserto, muito distante dali, Dusan sentiu o vento mudar. Sentiu o cheiro da fumaça, mesmo que fosse apenas uma lembrança. Ele riu sozinho, tossindo em seguida.
— Parece que minha querida irmã sobreviveu... e com estilo.

Atrás dele, um dos informantes de Nyssa se aproximou, carregando um pergaminho.
— Senhor... as notícias... são confusas. O destacamento enviado não retornou.

Dusan fingiu surpresa.
— Não retornou? Que pena... — Virou-se lentamente, seus olhos pálidos faiscando. — Então é hora de mandar outra leva.

Ele entregou o pergaminho ao fogo de uma lamparina, observando as chamas devorarem as palavras.
— Mas não rápido demais. Quero ver até onde Talia resiste.

Ra’s, do alto, assistia. Sempre assistia. E ainda não dizia nada.

O deserto parecia não ter fim. As dunas se moviam com o vento, como se a própria areia tentasse apagar os rastros do massacre que deixaram para trás junto com as cinzas. A lua prateada iluminava apenas o suficiente para que Talia guiasse os filhos, Cassandra apoiada em seu ombro, enquanto Damian caminhava adiante com a adaga em punho.

Ele não falava. A cada passo, parecia mais distante, mais consumido pela raiva de não ter podido impedir a flecha que atingira a irmã.

O sangue escorria sem parar do corpo de Cassandra, tingindo a areia de vermelho. O corpo da menina tremia, não de medo, mas de febre. Ainda assim, seus olhos negros se mantinham fixos, vigilantes, recusando-se a fechar.

Talia sabia: estavam por pouco.

— Continue andando, Damian. — Sua voz soava firme, mas cada sílaba escondia pânico. — Ainda não estamos seguros.

Damian rangeu os dentes.
— Tt. Não podemos continuar assim. Ela está morrendo!

Talia não respondeu. Apenas acelerou o passo, guiando-os por entre pedras que formavam uma pequena garganta natural. Ali, o vento não os denunciaria tanto. Era hora.

Eles se abrigaram numa fenda de pedra, estreita, mas suficiente para ocultar três corpos. Talia depositou Cassandra com cuidado no chão, arrancando pedaços da própria roupa para improvisar faixas. A flecha havia atravessado fundo, rasgando músculos e quase atingindo o pulmão.

Damian se ajoelhou, o olhar fixo no ferimento. Sua voz tremia de ódio, não de medo:
— Ela vai morrer, não vai?

Talia não respondeu. Pela primeira vez, suas mãos hesitaram. E, nesse instante, a máscara começou a rachar.

Ela respirou fundo, olhando para Cassandra. A menina a fitava em silêncio, aceitando a dor como aceitava tudo: como parte inevitável da vida. Aquilo quebrou Talia por dentro.

Talia então tomou sua decisão.

— Não. — murmurou. — Não enquanto eu respirar.

Damian percebeu algo mudar. Viu Talia retirou do cinto não uma arma, mas a pequena caixa de ferro que carregava desde sempre. A mesma onde guardava coisas que ninguém entendia.

O líquido brilhava sob a luz da lua, como se tivesse vida própria.

Damian estreitou os olhos.
— O que você...?

Talia não respondeu. Colocou a caixa do lado, pegou a flecha e arrancou com firmeza. Cassandra mal havia se mexido com o movimento, mas ainda com o olhar atento. Talia então abriu a própria mão e pressionou contra o ferimento de Cassandra. Seus olhos se fecharam, o rosto tenso.

E então, aconteceu.

Uma luz verde tênue escapou de sua pele. Não forte como fogo, mas delicada como brasa. Escorreu pelos dedos, penetrou a carne de Cassandra, atravessando o ferimento. A respiração da menina, que antes era irregular, começou a estabilizar. O sangue parou de jorrar. A pele se fechou, devagar, até restar apenas uma cicatriz fina.

Damian recuou, o corpo rígido, tudo havia sido muito rápido e ao mesmo tempo lento.
— Como... — murmurou, sem conseguir formar mais nada.

Cassandra piscou, como se acordasse de um pesadelo. Seus olhos se moveram, fixando-se em Talia. A dor havia sumido. Ela ergueu o corpo devagar, tocando onde antes havia um buraco de flecha. Estava inteiro.

— Mãe... — a palavra saiu em pensamento, não em voz, mas Damian a sentiu como se fosse um grito de Cassandra.

Talia nem percebeu esse movimento enquanto afastava a mão, ofegante, gotas de suor escorrendo pela testa. A luz se dissipou. Ela parecia exausta, mais do que depois da batalha.

— Está feito. — murmurou. — Você vai viver.

Damian não se moveu por alguns segundos. A mente dele girava como um redemoinho. Ele conhecia técnicas de batalha, estratégias, venenos, anatomia. Conhecia morte. Mas aquilo não era nada que pudesse ser explicado.

— Como...? — sua voz saiu rouca, quase infantil. — O que você fez?

Talia não respondeu de imediato. Seus olhos que antes estavam verde iluminados, agora estavam apagados, fitaram os dois filhos.
— Algo que vocês não deveriam ver tão cedo.

Damian se aproximou, o rosto contraído entre medo e fascínio.
— Isso não foi medicina. Nem veneno. Nem arma. Isso foi...

Ele não conseguiu terminar.

Cassandra, ainda deitada, segurou a mão de Talia com força. Pela primeira vez, os olhos dela brilharam com algo diferente de disciplina: fé.

O silêncio entre os três foi quebrado pelo vento que atravessava a fenda. Damian se levantou, andando em círculos.
— Isso muda tudo. Se você tem esse poder, não precisamos fugir. Podemos enfrentar Nyssa. Podemos... — Ele parou, ofegante. — Podemos vencer.

Talia ergueu o olhar, firme.
— Não.

— Tt! Como não?! — Damian a encarou, quase furioso. — Você pode curar! Você pode nos salvar sempre que for preciso!

— Não é assim que funciona. — Sua voz soava grave, amarga. — Esse poder cobra um preço. Cada vez que o uso, fico cansada e quanto maior o ferimento mais perigoso fica. Não é eterno, Damian. É um fardo, não uma arma.

Damian fechou os punhos, mas não retrucou. Ele entendia. Ainda assim, o brilho em seus olhos não apagou.

Cassandra sentou-se devagar, apoiando-se no ombro de Talia. Seu olhar não julgava, não cobrava.

Talia suspirou, abrindo um buraco no chão e guardando a caixa de ferro.
— Nunca falem disso a ninguém. Nunca. O que viram hoje deve morrer aqui, igual essa caixa enterrada.

Damian a observou por um instante. E então, pela primeira vez em muito tempo, sorriu. Um sorriso pequeno, sombrio, mas real.
— Não se preocupe com isso.

Cassandra assentiu, silenciosa, como se confirmasse cada palavra.

A noite passou lenta. O trio ficou na fenda até o sol começar a nascer. Talia manteve-se acordada, vigiando, mas em sua mente... O que ela havia revelado não poderia mais ser apagado.

Do alto de uma duna distante, Ling observava. Seus olhos fixos nos três, sua presença tão leve que nem mesmo o vento a denunciava.

Ela tinha visto. Tinha visto a singela luz verde.

E sabia que, se Nyssa descobrisse, não seria apenas perseguição. Seria guerra.

Ling desapareceu novamente na areia, levando o segredo com ela. Por enquanto.

O sol nascia, tingindo o céu de vermelho. O sangue do deserto parecia refletir nos olhos de Talia. Ela mantinha Cassandra apoiada contra seu peito, como se ainda fosse uma criança pequena, mesmo sabendo que a menina já aprendera a suportar dor melhor do que muitos adultos.

Damian permanecia de pé, a poucos passos delas, com a adaga na mão. Seus olhos não se afastavam de Talia. Não do deserto, não do perigo — dela.

O silêncio era insuportável.

Talia ajeitou a faixa improvisada no ombro da filha, mesmo sem necessidade. O ferimento havia fechado, a pele estava firme, mas o gesto era quase instintivo. O desconforto, porém, lhe corroía.

Eles viram. Viram o que eu realmente sou.

Não o disfarce da joalheira elegante. Não a guerreira inútil treinada na Liga. Mas o segredo que carregava desde que nascera a amaldiçoara com algo que jamais pedira.

E se agora eles a enxergassem como um monstro?

Ela afastou a mão do ombro de Cassandra com delicadeza, evitando olhar diretamente para as crianças. Seus dedos tremiam levemente, imperceptíveis para qualquer estranho, mas não para eles.

Damian deu um passo à frente. O som de suas botas esmagando a areia quebrou o silêncio.

— Você... não é humana? — A voz dele era baixa, quase um sussurro.

Talia sentiu a frase atravessar-lhe como uma lâmina.

Ela ergueu o olhar, forçando firmeza.
— Sou mais humana do que gostaria.

Damian estreitou os olhos. Por dentro, sua mente fervia. Ele vira homens morrerem, vira cadáveres, vira psicopatas, vira o impossível da maldade humana na vida anterior. Mas aquilo... aquilo era diferente.

Ele se ajoelhou diante dela. Pela primeira vez, não com sarcasmo, não com desdém, mas com algo próximo de reverência.

— Não importa o que seja. — murmurou. — Você salvou a Cassandra. Salvou a única pessoa que eu jamais poderia perder.

O tom da voz quebrou. Talia piscou, surpresa. Damian raramente deixava a frieza cair.

E então ele disse, quase cuspindo a palavra como se tivesse medo dela, mas ainda assim incapaz de segurar:
— Mãe.

Talia congelou.

Cassandra levantou os olhos, e sem emitir som algum, apenas formou a palavra com os lábios. Mãe.

O coração de Talia se apertou. O mundo pareceu perder forma.

Ela esperara medo. Rejeição. Até ódio. Mas o que encontrou foi algo que não recebia desde a sua mãe, desde Antônio: aceitação.

Damian abaixou a cabeça, como se aquele gesto fosse pesado demais. Cassandra, em silêncio, segurou mais uma vez a mão da mãe, desta vez não para se apoiar, mas para dizer: não tenha medo.

Talia respirou fundo, tentando conter o tremor em sua voz.
— Vocês não entendem... isso que viram não é dom, é maldição. Eu... eu...

Damian ergueu a cabeça, os olhos verdes faiscando.
— Então vamos carregar essa maldição com você.

Ela arregalou os olhos.
— Damian...

— Tt. — Ele desviou o olhar, incapaz de sustentar a ternura por muito tempo. — Você acha que pode nos afastar para nos proteger, mas não pode. Você não entende? Você é nossa.

Cassandra assentiu, encostando a testa contra o braço da mãe.

Talia fechou os olhos, lágrimas que jamais permitia a si mesma ameaçando escapar. Pela primeira vez, não eram lágrimas de raiva, nem de perda, mas de pertencimento.

Eles a chamavam de mãe. Não Lady Talia. Não filha de Ra’s. Não sombra de Nyssa.

Mãe.

O vento voltou a soprar mais forte, trazendo o cheiro da areia quente. Talia sabia que não poderiam permanecer muito tempo ali. Nyssa não descansaria até encontrá-los. E agora, havia mais risco do que nunca.

Se o segredo que Damian e Cassandra tinham visto se espalhasse, a Liga inteira iria atrás ela. Ra’s a trancaria e usaria seus poderes até secar.

Ela respirou fundo, limpando o rosto com as costas da mão.
— Levantem-se. Ainda não estamos seguros.

Damian obedeceu sem discutir. Cassandra também se ergueu, embora ainda estivesse cansada.

Eles seguiram juntos, mas algo havia mudado. O deserto não parecia tão vasto, tão vazio. Pela primeira vez, Talia não se sentia sozinha na maldição que carregava.

Enquanto caminhavam, Talia não conseguia afastar uma imagem da mente: a de Ra’s descobrindo. O olhar dele, não de orgulho, mas de ganância. Se algum dia soubesse que a filha tinha algo que podia transcender morte, ele a tornaria mais do que uma peça do tabuleiro.

E Nyssa... Nyssa usaria essa revelação como arma. Para destruí-la — Usá-la para o trono.

O medo se infiltrava, mas agora havia outra força que se sobrepunha: os dois pequenos ao seu lado, que pela primeira vez tinham lhe dado algo que nem todo o ouro, nem todas as joias, nem todas as vitórias podiam comprar.

Mãe.

O vento ainda trazia o cheiro de sangue seco quando Talia reuniu forças para se levantar. O esconderijo, agora contaminado por memórias de morte, já não oferecia abrigo. Cassandra respirava com dificuldade, o corpo ainda exalando calor após a cura, e Damian mantinha-se ao lado dela como uma sombra endurecida, o olhar fixo em cada detalhe, como se ainda esperasse uma nova emboscada.

Talia sabia: não podiam ficar. A Liga tinha provado que chegaria a qualquer canto. Era hora de mover-se — e rápido.

Ela deslizou a mão por dentro do manto, retirando uma pequena lâmina curva. Mas não era para matar. Gravou um símbolo discreto na pedra da parede: um sinal antigo, usado apenas entre mercenários que partilhavam memórias de sangue. Um chamado silencioso. Um risco calculado.

Horas depois, quando a lua já rasgava o céu com sua luz pálida, uma figura solitária surgiu na beira do desfiladeiro. O manto cinza que carregava não escondia os movimentos precisos, o andar felino, o peso de quem vivia entre sombras. Julia Marie.

— Pensei que só chamaria quando estivesse com a garganta aberta — Julia falou primeiro, a voz grave, quase arrastada, como quem saboreava a provocação. — O desespero não combina com você, Talia.

Talia manteve-se impassível.
— Não estou desesperada. Calculo minhas opções.

Julia riu baixo, tirando o capuz. O rosto, marcado por cicatrizes finas, revelava olhos escuros e frios.
— Calculo é chamar uma Marie? Você sabe que minha mãe morreria de novo se pudesse ver no que me tornei.

Damian estreitou os olhos.
— Quem é você?

Julia o encarou. Um segundo de pausa. A criança de olhar afiado parecia atravessá-la como uma lâmina.
— Julia Marie. Talvez tenha ouvido falar ou não. No meu emprego quanto menos me conhecerem melhor.

O silêncio caiu pesado. Talia não respondeu.
— Tt. — Um som seco escapou. — Arrogante.

Julia sorriu de canto, um sorriso que mais parecia um corte.
— Eu não tento agradar pirralhos.

Talia cortou o ar com um gesto.
— Chega de sentimentalismos. Você veio porque sabia que eu pagaria bem. E porque... — seus olhos se estreitaram, analisando Julia — ...no fundo, você quer ver até onde consigo sobreviver.

Julia ergueu uma sobrancelha.
— Ou talvez eu só queira ver até onde você cai.

Apesar da provocação, ela caminhou até Cassandra, que respirava ainda frágil. Ajoelhou-se ao lado dela, tirando de dentro do manto uma pequena garrafa de vidro âmbar.
— Aqui. Não é milagre, mas evita febre.

Damian se moveu instintivamente, ficando entre a irmã e a estranha. Julia não recuou; ao contrário, inclinou-se, desafiando o garoto com o olhar.
— Bom instinto. Mas não perca tempo desconfiando só de mim. O mundo inteiro vai querer o que vocês são.

Talia observou. Julia não oferecia compaixão, mas também não oferecia crueldade gratuita. Ela simplesmente via Damian e Cassandra como peças de um jogo — peças valiosas, mas peças. E, de alguma forma, isso a tornava útil.

— Precisamos sair — Talia disse, firme. — Agora.

Julia se levantou, limpando a poeira das luvas.
— Eu tenho um ponto seguro. Não é bonito, nem acolhedor, mas vai mantê-los vivos até a próxima tempestade.

Damian arqueou uma sobrancelha, quase zombando.
— Até a próxima? Tt. Conveniente.

Julia não respondeu. Apenas lançou um olhar breve para Talia, como quem lembrava que a decisão não estava nas mãos do garoto.

O caminho era duro. Eles cruzaram ruínas e vales estreitos, sempre em silêncio. Julia abria a dianteira, os olhos varrendo o terreno com precisão de predadora. Talia vinha logo atrás, com Cassandra protegida em seu braço e Damian acompanhando, os olhos atentos a cada detalhe — aprendendo, absorvendo.

No meio da travessia, uma sombra se moveu entre as pedras. Um assobio agudo cortou o ar. Julia reagiu primeiro: em um movimento rápido, atirou uma lâmina curta que ricocheteou no escuro. Um corpo caiu com um baque seco. Um mercenário da Liga.

— Eles não param — ela murmurou, limpando a lâmina na própria manga. — Nyssa não vai descansar até ver você sangrar, Talia.

Damian correu até o corpo, observando os detalhes da armadura, o tipo de lâmina, o símbolo gravado no coldre.
— Eles vieram do norte. Reconhecimento avançado.

Julia o olhou com atenção, surpresa pela frieza.
— Você aprende rápido.

— Eu já sei — Damian respondeu, seco.

Julia riu de canto.
— Ah, claro. Filho de Nyssa. Esqueci que vocês nascem treinados.

Talia cortou o diálogo.
— Andem. Estamos expostos.

O “refúgio” que Julia havia preparado não era um palácio escondido, mas sim um subterrâneo de paredes de concreto sob uma fábrica abandonada. O lugar cheirava a ferrugem e óleo queimado, mas era sólido, protegido, invisível.

Ela abriu a pesada porta de ferro, permitindo que entrassem.
— Bem-vindos ao paraíso — disse com sarcasmo.

Cassandra, mesmo cansada, segurou firme o braço da mãe. Damian observava as máquinas quebradas e os corredores estreitos, já avaliando rotas de fuga.

Talia entrou por último, os olhos analisando cada detalhe.
— Por quanto tempo isso vai nos servir?

Julia apoiou-se contra uma coluna, cruzando os braços.
— Se você parar de fazer tanto barulho, talvez meses. Se não... dias.

O silêncio pairou. Então Julia completou:
— Mas não se preocupem. Eu não gosto de funerais.

Damian a encarou, desconfiado. Cassandra encostou a cabeça no ombro da mãe. E Talia, por um instante, permitiu-se respirar. Não era paz. Não era vitória. Mas era tempo — e tempo, naquela guerra invisível, era mais precioso que ouro.

A travessia até o novo refúgio parecia não ter fim. O silêncio do deserto era cortado apenas pelo som dos passos, pelo farfalhar dos mantos e pelo vento que soprava, carregando areia e segredos. Julia caminhava na frente, a silhueta ereta, confiante. Talia vinha atrás, Cassandra aninhada contra si, e Damian fechava a retaguarda, os olhos atentos a cada sombra.

Julia não parecia sentir o peso do olhar do garoto, mas ele a dissecava como um caçador analisa uma presa. Cada movimento dela era registrado: a forma como equilibrava o peso nas solas, a maneira como tocava levemente a capa antes de trocar a mão de posição — pequenos gestos que revelavam disciplina, cálculo e experiência.

Damian quebrou o silêncio primeiro:
— Você anda como quem espera morrer a qualquer momento.

Julia arqueou uma sobrancelha, sem olhar para trás.
— E você, como alguém que ainda não entendeu que já nasceu morto.

O ar ficou pesado. Cassandra levantou a cabeça, observando os dois em silêncio.

Talia interveio.
— Chega. Não temos tempo para isso.

Julia riu baixo.
— Mas então pra que viver?

Damian não respondeu, apenas apertou os punhos e deixou o som seco do Tt escapar. Cassandra tocou o braço dele, como quem pede contenção, e o garoto se calou.

O caminho se estreitou em gargantas rochosas. Julia os guiava com precisão, como se tivesse mapas invisíveis gravados sob a pele. De vez em quando, ela lançava olhares discretos para Talia, avaliando, testando.

— Você esconde bem — murmurou em certo momento. — A maioria já teria desmoronado.

— Eu não sou a maioria. — Talia respondeu sem hesitar com um sorriso enganosamente doce.

Julia sorriu de canto.
— Não. Quem poderia imaginar isso?

Talia manteve o olhar fixo no horizonte.

Damian percebeu o desconforto e, sem saber por que, deu um passo mais à frente, colocando-se entre a Talia e Julia. Cassandra seguiu o movimento, seu corpo pequeno espelhando o instinto de proteção do irmão.

Julia notou. E, pela primeira vez, seu sorriso vacilou.

Quando finalmente chegaram à fábrica abandonada, o ar mudou. O cheiro de óleo queimado misturava-se ao mofo. O portão enferrujado rangeu quando Julia o empurrou, revelando o interior escuro.

— Aqui estamos — disse, com falsa solenidade. — O palácio da ferrugem.

Damian entrou primeiro, os olhos correndo pelas paredes, pelos cantos, pelas vigas expostas.
— Quantas saídas? — perguntou.

Julia ergueu dois dedos.
— Três, se você contar a que só eu conheço.

Ele estreitou os olhos.
— Tt. Conveniente demais.

Julia riu.
— Aprenda, garoto: tudo que mantém você vivo é conveniente demais.

Cassandra deslizou para dentro, apertando a mão de Talia. O lugar era frio, mas sólido. As sombras dançavam nas paredes, e a menina as acompanhava com os olhos, como se conversassem em silêncio.

Talia observava tudo, sempre com aquela máscara inquebrável. Mas cada passo dentro do refúgio novo era também um peso: seria abrigo ou armadilha?

Julia caminhou até uma mesa metálica e jogou uma pequena sacola sobre ela. Dentro, suprimentos: água, pão escuro, algumas armas menores.
— Não é luxo, mas dá para sobreviver.

Damian pegou uma das adagas, girando-a nos dedos.
— Mal equilibrada.

— Melhor que nada — Julia rebateu.

Cassandra, em silêncio, aproximou-se de um pedaço de parede descascada e desenhou algo com o dedo: um traço, depois outro. Um símbolo simples, quase uma runa. Julia percebeu.
— Ela entende símbolos?

Talia respondeu seca:
— Cassandra entende tudo o que precisa.

Julia inclinou a cabeça, estudando a menina. Por um instante, algo brando cruzou seu olhar. Mas logo desapareceu.

As horas seguintes foram de ajuste. Julia se movimentava pelo espaço como quem media as fraquezas da estrutura. Damian a seguia de perto, anotando mentalmente cada comentário. Cassandra ajudava a mãe a organizar o pouco que tinham, mas de vez em quando se afastava, os olhos fixos nos corredores escuros, como se esperasse que a Liga surgisse dali.

Talia tentava manter normalidade: organizou mantos sobre um canto para improvisar camas, dividiu comida, distribuiu tarefas. Mas cada gesto dela tremia na borda da artificialidade. A máscara ainda estava firme, mas os filhos, que a conheciam, sentiam as rachaduras.

Julia percebeu também.
— Você não vai conseguir manter isso para sempre.

Talia a encarou.
— Manter o quê?

— A ilusão de que está tudo bem. Eles veem as falhas. E, estranhamente, isso os prende mais a você.

Damian interrompeu, seco:
— Cale a boca.

Julia riu, como se estivesse se divertindo.
— Ah, ele tem dentes. Bom saber.

Cassandra puxou o braço de Damian, como quem pede silêncio. Mas os olhos dela estavam fixos em Julia, avaliando, pesando, como se enxergasse algo que nem mesmo Talia ousava encarar.

À noite, o novo refúgio respirava pesado. As máquinas antigas rangiam com o vento. Talia mantinha vigília, sentada com a espada ao lado, os olhos semicerrados. Damian treinava movimentos curtos no escuro, repetindo padrões como se fosse uma oração. Cassandra o observava, copiando discretamente alguns gestos.

Julia, encostada contra uma coluna, acendeu um cigarro, a fumaça serpenteando para cima.
— Vocês parecem fantasmas. Crianças que não respiram como crianças.

Damian não parou o movimento.
— Crianças não sobrevivem.

Julia ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, soltou a fumaça devagar.
— Então talvez você seja mais parecido comigo do que imagina.

Talia fechou os olhos, mas não dormia. Apenas ouvia. E, no fundo, temia o quanto daquela frase era verdade. Os dias no novo refúgio se misturaram em uma sequência quase indistinta de silêncio, treinamento e vigília. O espaço metálico, frio e úmido, parecia mais uma tumba do que uma casa, mas era seguro — pelo menos por enquanto.

Damian explorava cada canto como um prisioneiro que planeja a fuga. Ele contava passos, media a distância entre colunas, testava a resistência das grades. Cassandra o acompanhava, mas sempre em silêncio. Seus gestos eram mais fluidos, mais sutis. Enquanto ele observava os pontos de ataque, ela parecia focar nas rotas de sobrevivência.

Julia assistia tudo de longe, como se estivesse estudando espécimes raros. Quando achava que o garoto exagerava, ela deixava escapar comentários venenosos:
— Você se move como se fosse um general. Mas continua sendo só um menino.

Damian respondia com o seco “Tt” e voltava a treinar, fingindo indiferença. Mas Cassandra via o fogo em seus olhos.

O cotidiano pesava. A comida era medida, o sono era leve, e cada barulho do lado de fora soava como ameaça. Julia, no entanto, tornava-se parte da engrenagem. Ela trazia suprimentos, consertava armas, organizava rotas de fuga. Não era leal — Talia sabia disso —, mas era competente.

Em algumas noites, Talia observava a forma como Julia interagia com as crianças. Nunca havia carinho, mas uma estranha forma de respeito velado. Julia não via Damian e Cassandra como frágeis, e talvez fosse isso que os atraía e repelisse ao mesmo tempo.

Cassandra, em especial, mantinha olhos longos sobre ela. Às vezes copiava seus movimentos sutis, a maneira como Julia equilibrava o corpo antes de sacar uma lâmina. Julia percebia e não comentava — talvez até aprovasse.

Na terceira semana no refúgio, Talia trouxe uma garrafa antiga, resgatada de uma de suas saídas noturnas. Era um vinho escuro, pesado, mais um ritual do que prazer.

— Isso é perigoso — disse Julia, quando Talia a convidou a dividir.
— Viver já é perigoso — respondeu Talia, enchendo dois copos improvisados.

Sentaram-se em uma mesa metálica, a luz fraca das lanternas oscilando sobre seus rostos. As crianças dormiam no canto, mas Damian mantinha um olho semiaberto, atento mesmo no descanso.

Julia girou o líquido no copo e riu baixo.
— Faz quanto tempo, Talia? Desde aquela noite em Viena?

O nome da cidade trouxe de volta lembranças densas. Talia sorriu de leve.
— Você ainda lembra. Eu achei que tinha apagado de propósito.

— Como esquecer? — Julia tomou um gole demorado. — Você apareceu como uma princesa perdida, mas se movia como uma sombra. E ainda tentava bancar a inocente.

— Talvez eu fosse inocente. Ou talvez só fingisse melhor naquela época.

Julia inclinou a cabeça.
— Você fingia tão bem que quase me convenceu.

O silêncio se alongou. As duas bebiam devagar, cada gole mais pesado que o anterior.

Julia suspirou, os olhos perdidos em algum ponto da memória.
— Eu era boa na espionagem. Talvez boa demais. Sabia onde cada corpo cairia antes da bala ser disparada. Mas descobri cedo que nada disso mudava o mundo. Só trocava as mãos que seguravam as correntes.

Talia escutava em silêncio, os dedos roçando no copo.
— E foi isso que te fez sair?

Julia deu um riso amargo.
— Não. Eu saí porque percebi que não tinha ninguém para me segurar quando a queda chegasse. A Liga, os governos, os homens... todos querem usar, ninguém quer salvar.

Por um instante, seus olhos se fixaram nos de Talia.
— Talvez você entenda melhor do que qualquer um.

Talia desviou o olhar.
— Eu nunca pedi para ser salva.

— Não, mas construiu um exército de mentiras para sobreviver. — Julia apoiou o queixo na mão, estudando a amiga-rival. — E agora constrói um lar de ferro para duas crianças que não deveriam estar vivas.

As palavras caíram como lâminas. Talia não respondeu de imediato. Bateu o copo na mesa, deixando o som ecoar no espaço vazio.

— O que eu faço, Julia, não é para ser entendido. É para ser feito.

Julia sorriu de canto.
— Essa é a mulher que eu lembro. A mulher que transforma sobrevivência em arte.

Damian, semiacordado, ouviu cada palavra. O coração dele se apertava de formas que não queria admitir. Cassandra, mesmo dormindo, parecia inquieta, mexendo-se como se as vozes atravessassem seus sonhos.

A tensão entre Talia e Julia era como fogo contido. Não era amizade, nem inimizade pura. Era algo mais sombrio: duas mulheres que conheciam demais os próprios abismos, e ainda assim se sentavam lado a lado, partilhando copos.

Naquela noite, o refúgio pareceu menos um esconderijo e mais um confessionário. Mas os segredos revelados eram tão perigosos quanto os guardados.

Na manhã seguinte, Julia se levantou cedo, como se nada tivesse acontecido. Organizou armas, verificou suprimentos, deu ordens em tom frio. A noite anterior parecia ter sido um lapso, um instante roubado.

Mas Talia sentia o peso. A bebida, as palavras, os olhares — tudo ainda vibrava nela.

E as crianças também. Damian estava mais calado, os olhos ainda mais sombrios. Cassandra, por outro lado, se aproximava mais da mãe.

 

 

 

Chapter 7: Fuga

Notes:

Universo alternativo da DC Comics, em que quase todo mundo é criminoso ou mafioso. Qualquer semelhança com a realidade é coincidência.

Chapter Text

– Capítulo 6 –

Fuga

O refúgio anterior já não oferece paz. Julia foi a primeira a notar.
Não havia nada explícito: nenhum vulto na janela, nenhum som de passos nos corredores. Mas havia algo no ar, uma vibração que ela aprendeu a considerar desde os tempos em que ainda orbitava as redes de espionagem da inteligência britânica.
A Liga se aproxima.

— Mais alguns dias e o cerco dados — ela disse, com a voz fria, sem pedir licença para invadir o espaço de Talia. — Se quiser que as crianças continuem respirando, precisamos sair.

Damian franziu o cenho, o "Tt" preso nos lábios, como um veneno contido. Ele não gostou do modo como Julia se referia a ele e Cassandra: “as crianças”. Era quase um insulto. Ele não era um garoto indefeso. Cassandra menos ainda.

Talia, como sempre, mascarou a tensão.
— Concordo — disse em tom calmo. — Já planejava nossa saída.

Mas, por trás da voz suave, Damian viu a abertura em seus olhos verdes. Ele não a desmascarou. Ainda não.

A viagem foi silenciosa no início. Um avião clandestino, seguido de longas deslocações por terra. Julia mantinha a postura de quem conduzia uma missão. Dava pedidos curtos, refinados, como uma lâmina que corta sem deixar margem para dúvida.

— Não falem em público. Não olhem demais para ninguém. Caminhem como se fossem invisíveis.

Damian bufava baixinho a cada comando.
— Como você sabe o que é invisível...

Julia não deixou passar.
— Sei o bastante para ter sobrevivido as coisas que fariam você tremer, menino.

—Tt. Eu não tremo. — Damian cuspiu as palavras como um felino ofendido.

Cassandra, em silêncio, observava. Os olhos escuros acompanhavam cada movimento, cada resposta, cada provocação. Julia a notou, mais de uma vez, e aquilo a incomodou profundamente. Cassandra não preciso falar: o olhar dela dizia mais do que qualquer insulto. Um julgamento silencioso. Uma acusação sem palavras.

Julia odiava esse tipo de silêncio.

Julia andava como se fosse dona do espaço, distribuindo instruções de modo ríspido: onde dormiriam, como dividiriam tarefas, quando fariam os turnos de vigília.

Damian reagia a cada ordem com comentários carregados de veneno.
— Você fala demais.
— Eu não preciso de babá.
— Acha que manda porque trouxe a gente até aqui?

Julia responde sempre, sem elevar o tom:
— Eu falo porque sei.
— Você é um garoto, e vai seguir regras se quiser sobreviver.
— Eu mando porque Talia não está em condições de fazer tudo sozinha.

O choque entre eles se tornou evidente. Talia, com inteligência seu projeto, tentou mediar.
–Basta. — disse em certo momento, o olhar tão refinado quanto uma adaga. — Vocês três precisam aprender a coexistir. Julia não é inimiga.

Mas Damian não se convenceu. Nem Cassandra. E Julia também não queria convencer.

Na primeira noite, o silêncio era quase sufocante. O vento rugia do lado de fora, fazendo as paredes tremerem como se o mundo lá fora quisesse invadir o abrigo.

Cassandra sentou-se num canto, afiando uma pequena lâmina dada por Talia. Seus olhos nunca deixaram Julia.
Damian escreveu cálculos e mapas improvisados ​​em folhas soltas, ignorando a mulher que caminhava de um lado para o outro, sempre em alerta.

Julia, por fim, corta o silêncio.
— Vocês dois me olham como se eu fosse o inimigo. — Sua voz foi transmitida de sarcasmo. — Mas não se enganem: o inimigo está lá fora, e não se importa se são crianças ou não. Vai matar vocês sem hesitar.

Damian fechou o caderno com força.
— Então tente não ser pior do que o inimigo, Julia.

O olhar dela gelou por um instante, mas não respondeu.

Talia, por sua vez, suspirou baixinho, escondendo o peso nos ombros.
Naquele refúgio, ela sabia: não bastava sobreviver ao frio ou aos mercenários. Eles precisariam sobreviver uns aos outros.

O frio da noite não perdoava.
O vento, sempre presente, atravessava as paredes do refúgio como agulhas invisíveis, obrigando todos a viverem com camadas de roupas pesadas, mantas improvisadas e fogo constante.
Ainda assim, não era o frio o que mais incomodava Damian. Era a voz de Julia.

Desde o amanhecer, ela os arrastava para treinos. Não perguntei se queria, não pedi permissão a Talia. Simplesmente declarou, com sua voz firme, que a disciplina era o único modo de sobreviver.

– Levantem. Agora. — A ordem cortava o ar.

Damian revirava os olhos, soltava o famoso "Tt", mas acabava obedecendo.
Cassandra apenas se pronunciou em silêncio, seus movimentos firmes, como se estivesse pronta antes mesmo de ser chamada.

Julia os faz correr pelas toneladas de pedra, treina armas improvisadas. Cassandra aceitou, seu corpo respondeu com a leveza de quem sempre viveu em combate. Damian, por outro lado, recuperou cada sessão, mas absorveu tudo com uma rapidez irritante.

— Você tem talento, mas não tem paciência. — Julia disse certa vez, depois de vê-lo errar um golpe de faca.

—Tt. Não preciso de paciência para matar alguém.

— Mas precisa para não morrer. — Ela contra-atacou, a lâmina quase tocando o pescoço dele antes que conseguisse recuar.

Cassandra, observando, estreitando os olhos, um aviso silencioso. Julia respondeu com um meio sorriso:
— Não se preocupe, garota. Ainda não é hoje que vou acabar com ele.

O silêncio dela foi mais cortante do que qualquer ameaça.

Dentro do refúgio — qual número já não consegui lembrar mais — Talia assistia a tudo, mantendo a compostura. Ela não se opunha aos treinos, porque sabia que Julia tinha razão em parte: eles precisavam estar preparados. Mas seu coração apertava cada vez que Damian voltava com lesões, ou que Cassandra respirava pesadamente após exercícios exaustivos.

À noite, quando os dois dormiam, ela os cobria com mantas extras, ajeitava os cabelos de Cassandra, afastava as folhas rabiscadas das estratégias de Damian. Pequenos gestos que mascaravam seu medo.

Era nesses momentos que Julia se aproximava, carregando uma garrafa discreta de bebida forte. Não contestei de imediato. Bebia um gole, inspirou Talia, e só então estendia.

— Não é venenoso, antes que você pergunte. — disse com ironia.

Talia aceitou, um gole apenas, o suficiente para aquecer o estômago e soltar a língua. Foi naquelas noites, quando os ventos rugiam mais fortes do que nunca, que Julia tocou no assunto importante.

— Você me deve. — Sua voz não tinha raiva, mas também não tinha informações específicas. — Eu não trouxe vocês até aqui por generosidade.

Talia girou uma taça improvisada nas mãos. Seus olhos verdes refletiram a chama baixa da fogueira.
— Eu sei.

— Então vamos parar de fingir que isso é sobre crianças indefesas ou laços de sangue. — Julia se inclinou para frente. — É sobre pagamento.

Talia manteve a calma, mas por dentro sentiu o gelo apertar.
— O que você quer? Ouro? Pedras? Documentos?

Julia gentil de canto, um sorriso que nunca alcançou os olhos.
— Quero garantias. Quero portas abertas para quando precisar. E quero saber o que você realmente está escondendo.

A última frase caiu como lâmina.
Talia bebeu mais um gole, controlando a respiração.
— Todas escondemos coisas, Julia. Você mais faz que ninguém deveria entender.

–Entendo. — Julia recostou-se, mas não recuou. — E é por isso que vou continuar aqui. Até decidir que obterá o suficiente.

O silêncio se prolongou. O fogo estalava, as sombras dançavam nas paredes úmidas.

Do outro lado do túnel, Damian não dormia. Ele ouvia. Sempre ouvia.
E, em sua mente sombria, registre cada palavra, cada fraqueza, cada possibilidade. Cassandra, deitada ao lado, também sabia. Não preciso de som para entender. O olhar dela encontrou o de Damian no escuro, e os dois compartilharam o mesmo pensamento: Julia era parte da manifestação, mas também era ameaçada.

Nos dias seguintes, a tensão aumentou. Julia impunha regras cada vez mais escadas: racionamento de comida, turnos de vigilância sem descanso, exercícios até a exaustão.

Damian protestou sempre, Cassandra ajudou em silêncio, mas ambos seguiram. Talia não intervia, embora seus olhos traíssem o desconforto.

— Vocês se comportam como se eu fosse inimiga. — Julia disse certa manhã, após encerrar o treino. — Mas lembre-se: se eu não estivesse aqui, vocês estariam mortos.

Damian cuspiu como palavras.
— Talvez estivéssemos melhores mortos do que presos às suas ordens.

Julia riu baixo, sem humor.
— Então prove, menino. Prove que você pode sobreviver sem mim.

Cassandra, ao lado, abriu a lâmina na mão. Seus olhos fixaram-se em Julia com uma intensidade que quase queimava. Julia sentindo, por um segundo, o peso desse olhar. Um aviso silencioso de que, se um dia cruzasse a linha, não seria Talia quem a deteria.

Na — não sabia mais dizer direito qual — noite, enquanto o vento rugia lá fora, Julia voltou a beber com Talia.
— Você ainda não me respondeu. — disse, entre goles. — O que você está disposto a pagar por isso?

Talia manteve o mesmo tom calmo, quase doce.
— O suficiente para que nunca precise questionar minha palavra.

Julia estreitou os olhos, examinando-a.
— Você fala como se já tivesse comprado minha lealdade.

— Talvez já tenha. — Talia respondeu, um sorriso enigmático dançando em seus lábios.

O silêncio caiu entre as duas. Mas, naquela noite, não foi apenas silêncio. Foi também a certeza de que o refúgio não poderia durar para sempre.

O continente africano era vasto, interminável, quase um labirinto de vento e pessoas. O refúgio — de diversos que encontraram — serviu para sobreviver, mas não para viver. Julia sabia disso, e Talia sabia ainda mais. Preservava corpos, mas corroía vontades.

Numa das noites, depois de mais uma rodada de treinos e discussões veladas, Talia reuniu Julia em frente ao mapa que mantinha dobrada dentro da caixa de ferro.
O papel estava gasto, com marcas de umidade e bordas rasgadas, mas os símbolos ainda eram claros: pontos assinalados, linhas em vermelho, um itinerário que já estava desenhado muito antes de chegar naquele buraco de coelho branco.

– Aqui. — Talia apontou para uma região ao norte, próxima a antigas rotas de contrabandistas. — Há depósitos escondidos, ouro e joias que ainda não foram reclamados. Eu posso usá-los para pagar o que você exigiu.

Julia arqueou uma sobrancelha, descrente.
— Você tem cofres enterrados?

— Não há cofres. — Talia respondeu com calma. —Memórias. Lugares que herdei do meu pai. Não são seguros por muito tempo, mas servem.

Julia bebeu um gole de sua garrafa, olhando o mapa como se pudesse arrancar a verdade com os olhos.
— Isso não me agrada.

—Ó ouro? — Talia melhorou o queixo.

— Não. — Julia bateu a ponta dos dedos na mesa. — A ideia de que estou te seguindo como mercenário de qualquer maneira. Que sou paga com joias de sangue enquanto carrega seus filhos nas costas.

A palavra “filhos” foi dita com ironia, quase com veneno, e Talia manteve a compostura apenas por disciplina.

— Então você prefere o quê? — Talia respondeu. — Palavras doces? Promessas vazias?

Julia não respondeu de imediato. Apenas liberado. Aquilo, para ela, era um jogo — mas um jogo que começou a incomodar.

A decisão foi tomada na manhã seguinte. Eles sairiam para buscar o ouro. Damian e Cassandra estavam prontos para se moverem, como se o refúgio já tivesse se tornado uma prisão. Julia fosse a expedição, o olhar sempre desconfiado, as armas ajustadas, como se cada sombra uma ameaça disfarçada.

Durante a caminhada, o vento castigava os rostos, arrancando lágrimas involuntárias. Cassandra caminhava em silêncio, firme, sua postura alerta. Damian resmungava, mas não reclamava de verdade — havia algo em seus olhos que brilhava com expectativa, como se aquela missão fosse um desafio ao seu orgulho.

Foi nessas pausas, quando se abrigaram atrás de uma formação de pedra, que Julia deixou escapar um comentário que mudou o tom da jornada.

Ela sugeriu Damian ajeitar o casaco, o colar pendente de seu pescoço, um fio escuro contra a pele clara. O mesmo colar que Cassandra também carregava, como marca de algo mais profundo do que simples adorno.

Julia inclinou a cabeça, seu olhar refinado.
— Esses colares... vocês se apegam a eles como se fossem talismãs.

Damian extraiu os olhos, a mão instintivamente pousando sobre o pingente.
— Não são da sua conta.

Julia transmitiu de canto, avançando um passo.
— Talvez eu deva avaliar seu valor. Ouro? Pedra rara? Quem sabe não resolver parte da dívida?

Ela estendeu a mão, quase tocando o colar de Damian. O movimento foi rápido, casual, mas suficiente para incendiar a tensão.

Damian recuou como uma fera acuada, os olhos faiscando.
— Tire as mãos de mim.

Cassandra, ao lado, foi ainda mais direta. Segurou o punho de Julia antes que se aproximasse demais, seus dedos finos mas firmes como garras de aço. O olhar dela dizia tudo: ameaça.

Julia arqueou a sobrancelha, surpresa com a força silenciosa da garota.
— Interessante. — murmurou. — Vocês protegem isso como se fosse mais importante que a sua própria vida.

Cassandra e Damian olharam com frieza e leve loucura. — Meu, meu, meu, meu, meu...

Por um instante, o vento pareceu diminuir, como se até a natureza aguardasse a explosão.

Talia, que observava uma cena de metros curtos, soltos ou um suspiro profundo, pesado, cansado.
Ela sabia o quanto aqueles colares queriam — não apenas como lembranças, mas como símbolos de laços que iam além da lógica fria do mundo. Afinal ela amava joias e ouro — Damian mesma, Cassandra, Antônio — como não poderia entender o sentimento.

— Júlia. — Talia interveio, uma voz suave e elegante, mas cortante. — Não teste a paciência deles com isso.

Julia soltou um riso breve, recuando.
— Entendido. — disse, mas seu olhar permanente sobre os colares, como se tivesse visto algo que ainda queria decifrar.

Damian ainda respirava fundo, o punho cerrado. Cassandra manteve-se atenta até Julia afastar-se completamente, só então soltando o punho dela.

Naquele momento, o tempo não parecia tão quente, parecia que havia esfriado. Vinha do espaço entre eles, da fratura que Julia quase provocava — e que, talvez, ainda provocaria.

A jornada prosseguiu, mas nada voltou a ser igual.
Damian andava mais próximo de Cassandra, o colar sempre guardado sob as roupas, como se pudesse desaparecer da vista de Julia. Cassandra mantinha os olhos vigilantes, cada vez que Julia se aproximava demais.

Talia caminhava em silêncio, mas por dentro lutava contra a sensação de que todos estavam à beira de um precipício invisível. Julia poderia ser útil, poderia até ser necessária, mas havia limites que nem mesmo ela poderia cruzar sem consequências fatais.

E, enquanto o vento rugia e o mapa de Talia os guiavam rumo ao ouro enterrado, uma pergunta ecoava dentro dela:
Até onde Julia iria por pagamento?
E até onde Damian e Cassandra permitiriam que ela chegasse antes de responder com sangue?

A marcha até o ponto marcado por Talia durou três dias.
O mapa não mentia: antigas rotas de contrabandistas cruzavam como cicatrizes enterradas pelo sol quente. Talia lembrava-se delas não por experiência direta, mas por relatos e registros herdados de Ra's — um conhecimento guardado como quem guarda veneno em frasco.

Quando finalmente alcançaram o desfiladeiro estreito, o vento impediu-se a um lamento distante, abafado pelas paredes de pedra, pelas dunas...

– Aqui. — Talia afirmou, juntando-se a uma marca quase invisível: um símbolo entalhado, desgastado pelo tempo, mas ainda reconhecível como um sinal da Liga.

Damian observou os braços cruzados, impaciente.
— Parece apenas uma pedra.

— Porque é assim que deve parecer. — Talia retrucou.
Ela retirou uma pequena lâmina e forçou uma fenda, revelando um mecanismo rudimentar de ferro.

Julia inclinou-se, assobiando baixo.
— Bem escondido.

— Não por mim. — Talia corrigiu. — Mas por meu pai.

A trava se abriu com um rangido seco, expondo uma escadaria estreita, descendo para o escuro. O ar que cantou dali era pesado e metálico, cheirando a ferrugem antiga e ossos esquecidos.

Lá embaixo, as tochas improvisadas iluminaram um espaço pequeno, quase uma câmara funerária.
Caixas de madeira apodrecidas empilhadas, algumas já abertas, revelando o brilho abafado de moedas, correntes de ouro, pedras preciosas envoltas em trapos.

Cassandra foi a primeira a avançar, silenciosa, seus olhos escuros como tinta nova capturando cada reflexo como se avaliassem armadilhas invisíveis. Ela agachou-se diante de uma caixa quebrada, tocando com cuidado um tesouro de moedas.

Damian acompanhou, mas seu olhar era diferente. Não se impressionava com o ouro — parecia mais interessado no que aquele depósito representava: poder, herança, sangue.

— Isso é o que vai pagar Julia? — ele disse, a voz compartilhada de ironia. — O legado de cadáveres e escravos?

Talia hesitou. Sabia que, em parte, Damian tinha razão.
Ela não respondeu de imediato, apenas passou os dedos sobre uma corrente de ouro, como se pesasse memórias mais do que metal.

Julia, por sua vez, mudou-se e retirou uma pedra rubra de dentro de um pano, erguendo-a diante da luz da tocha.
— Isso sim é pagamento. — disse, quase com satisfação. — Isso eu entendo.

Damian lançou-lhe um olhar sombrio.
— Você fala como os mercenários que nos caçam.

Julia encantadora de canto, um sorriso quase perverso.
— Talvez porque eu conheça o que move o coração deles.

Enquanto selecionavam o que levar, Cassandra mantinha-se inquieta.
Ela não falava, mas seus gestos eram claros: o ambiente não estava seguro. Seus olhos percorriam as paredes, buscando fendas, rachaduras, marcas ocultas. E quando ela parou de repente, o silêncio foi tão pesado que até Julia se endireitou.

— O que foi agora? — Julia perguntou, irritada.

Cassandra apontou para um símbolo riscado na pedra, próximo ao teto: uma marca de inspeção, usada pela Liga para indicar depósitos revisados.

Talia franziu o cenho.
— Isso não estava aqui há dez anos.

Ó sangue de Damian ferveu.
— Então não está tão abandonado assim.

O eco da frase dele foi um lembrete cruel: nada do que era de Ra's permanência intocado por muito tempo.

Julia coletou rapidamente um buraco de pedras preciosas, guardando em uma pequena bolsa.
— Então precisamos sair antes que o chão se feche sobre nossas cabeças.

– Concórdia. — Talia respondeu. Mas por dentro, o coração dela batia acelerado.
O depósito, que deveria ser apenas transação, tornar-se-ia armadilha em potencial.

Subiram as escadas em silêncio, apenas o barulho de respirações pesadas e do metal chacoalhando nas bolsas.
Lá fora, o vento cortante parecia mais acolhedor do que o ar estagnado do costado.

Mas algo havia mudado entre eles.
Julia carregava uma bolsa de pagamento como um troféu, mas seus olhos voltavam constantemente para os colares de Damian e Cassandra.
Damian andava como se estivesse pronto para atacar o menor movimento suspeito.
Cassandra mantinha-se próxima de Talia, mas seus gestos eram tensos, como se o peso invisível da Liga já os espreitasse.

Talia respirou fundo, disfarçando a tensão com a mesma máscara que usava desde sempre.
— Temos o que precisamos. Agora, precisamos sobreviver com isso.

Julia riu baixo, um som quase zombeteiro.
— Sobrevivência sempre tem um preço, Talia. E o ouro nunca cobre tudo.

A noite caiu antes que chegassem a algum lugar seguro. Acamparam no meio do deserto, protegidos apenas por uma fogueira tímida e pelas pedras do desfiladeiro.

Foi nessa noite que Julia deixou escapar um pensamento que ninguém esperava.
Sentada diante da chama, ela estendeu uma pedra rubra entre os dedos, observando o reflexo dos olhos de Damian.

— Sabem... vocês se prenderem os colares como se fossem corações. Mas ouro, pedra, tudo isso... — ela girou a joia no ar. — Tudo isso apodrece com o tempo.

Damian retrucou imediatamente:
— Diferente de você?

Julia transmitiu, mas não respondeu.
Cassandra, porém, se moveu silenciosamente, puxando o cobertor sobre os ombros. Seus olhos disseram tudo: Julia não era parte deles, mas agora estava dentro do mesmo círculo de fogo.

Talia observava em silêncio, sabendo que, apesar das confianças, havia algo decidido na aliança: Julia, por mais sombria e desconfortável que fosse, estava presa ao destino deles.

E o nosso nas mãos dela era apenas o primeiro elo dessa corrente.

– Ano 1 –

As primeiras semanas depois disso foram feitas de movimento constante. Julia conduzia as passagens ilegais pelas fronteiras de Marrocos e da Argélia, usando contatos herdados de anos no submundo da espionagem. Sempre havia alguém disposto a vender abrigo, documentos falsos ou uma rota para o próximo esconderijo. Nada era gratuito. O ouro que Talia carregava — pequenos lingotes e joias — se tornava moeda de sobrevivência.

Dormiam cada vez mais em casas de barro abandonadas, armazéns do porto, ocasionais em quartos miseráveis ​​de hotéis clandestinos. O calor durante o dia era insuportável; à noite, o frio cortava ossos. Damian reclamava um pouco, mas quando fechava os olhos, a febre surgia com facilidade. Cassandra passava noites em claro, cobrindo o irmão com panos gastos, como se vigiasse fosse a única forma de mantê-lo vivo.

Talia os observava, sempre em silêncio, dividido entre a vontade de puxá-los para si e a necessidade de manter os resistidos. Mas seu olhar sempre demonstrava ternura — principalmente quando Cassandra, exausta, máquinas encostadas no braço da mãe, e Damian fingindo que não via, se aproximava e dizia que era mais seguro ficarem todos juntos.

Julia Marie não era companheira agradável. Cinismo e dureza eram suas ferramentas diárias. Quando Damian tossiu sangue após atravessarem uma área de mina abandonada, Julia foi a primeira a resmungar:

— Ele não vai aguentar muito se continuar nesse ritmo.

Talia girou a cabeça devagar, o olhar mortal, mãos coçando com o poder sobre a pele.

— Ele vai aguentar. — Disse sorrindo e colocando Damian nas costas, não perdendo o andar suave a arrogante.

O silêncio que se seguiu foi pesado. Julia riu balançando a cabeça, apagando o cigarro na sola da bota.

Mas, em seus gestos discretos, Julia também carregava água, também levantava Damian quando ele tropeçava, também deixava porções maiores de comida perto do prato dele. Nunca admitia. Nunca suavizou o tom. Mas Cassandra via tudo.

Ao fim do segundo trimestre de fuga, já passado por três países. Em todos, a mesma sensação: estavam em território hostil, invisíveis para os governos, mas visíveis demais para olhos atentos do submundo.

Num mercado clandestino de Argel, um comerciante gordo tentou tocar em Talia enquanto negociava uma carroça. Antes que Talia pudesse reagir, Julia já o prensara contra a parede, faca pressionada sob o queixo do homem.

Damian assistiu fascinado, sem piscar, com uma adaga na mão.
—Tt. — foi só o que murmurou, como se a brutalidade fosse uma lição natural.

Cassandra, porém, segurou o braço da mãe, impedindo-a de interferir. O olhar dela para o mercador era frio, carregado de uma sensação assassina que não pertencia a uma menina de dez anos. Quando Julia o largou, Damian apenas cortou a mão que tentou encostar em Talia, seus gritos ecoaram pelo mercado, mas ninguém deu uma segunda olhada ou foi ajudar, não era problema deles.

Talia franziu aprimorando o cenho. O mundo era cada vez mais sombrio.

O primeiro baque sério veio com malária.
Damian foi o primeiro a adoecer. Delirava, suando, os olhos febris. Cassandra segurava sua mão noite e dia, enquanto Talia passava horas preparando compressas, fervendo a pouca água que tinha. Julia ficou ausente durante dois dias, assim que ela foi Talia tentou curar Damian.

— Não. Mãe você já me curou umas 2 vezes de doença, Julia vai desconfiar. — Disse Damian com os olhos ainda vidrados, mas com a voz firme.

— Pequeno príncipe... — Talia franziu o cenho, sabendo que Damian estava certo.

Cassandra colocou a mão no peito de Talia e depois no de Damian e deu de leve depois. Vai ficar tudo bem mãe e irmão.

Julia retornou apenas ao amanhecer do terceiro com frascos roubados de uma clínica.

— Não me agradeça — disse, tirando os remédios na mesa improvisada. — Se ele morrer, não será útil a ninguém.

Talia disse o olhar, sabia que era mentira. Julia se importava mais do que admitia. Mas ela mesma não agradeceu. Apenas administradas em doses, sustentando o filho até a febre quebrada.

Cassandra, quando Damian finalmente respirou melhor, se permitiu expirar um ar que estava guardado. Damian acordou melhores horas depois.
—Tt. Não vai se livrar de mim tão fácil.

Palavras que não são relevantes para uma criança.

Ao longo do primeiro ano, pequenos atritos entre Talia e Julia se intensificaram. Julia questionava as escolhas de rotas de Talia, criticava as escolhas de esconderijo de Talia, insinuava que Talia ainda pensava como "herdeira de um império" e não como fugitiva.

— Você caminha como se carregasse um trono invisível nas costas — disse uma vez, quando atravessava uma vila abandonada. — Aqui ninguém se importa com sua linhagem. Aqui você é só mais uma mulher tentando não morrer.

Talia não respondeu, apenas continuando andando e olhando para frente.

O que mais marcou esse primeiro ano era a infância arrancada dos dois, em uma pequena vila no deserto argelino. Um refúgio miserável, mas que parecia oferecer algumas semanas de paz.
Julia afiava sua faca todas as noites. Cassandra treinava sozinha, passos silenciosos, sombra contra o luar. Cassandra relatou tristemente. Quando o fazia, era à noite, contando histórias mudas a Damian através de gestos que só os dois entenderam.
Damian, ainda pequeno, tentou imitar os treinos que via de Julia, das disputas com Cassandra. Fazia flexões até o corpo tremer, erguia adagas como se fossem espadas. Uma noite, caiu exausto no chão de terra batida, e Talia o pegou no colo. Ele acordou rápido, envergonhado:

— Eu não vou ser fraco.
— Não é fraqueza, Damian. — a voz dela foi quase uma sugestão, comunicada de algo raro apenas para seus filhos. — É só sono.

Ele a encarou, intrigado, como se aquela doçura fosse mais desconfortável do que qualquer ordem dura que recebeu de Julia.

Damian dormia perto da mãe, o punho cerrado até depois de cair no sono.

Talia, sentada na porta de barro, observava o céu sem estrelas.

Mas, à noite, enquanto todos dormiam ela encarou as mãos por longos minutos que durante muito tempo foi coberta de joias, pulseiras cintilantes e unhas bem feitas, lembrando do toque de seu pai, da voz de Ra's ecoando na infância: O mundo inteiro deve curvar-se a um AL GHUL!

Lembrou de um toque mais antigo ainda — o da sua mãe — que ela recentemente se deixou lembrar, uma voz cansada: Sobreviva, minha Talia.

Lembrou de Antônio — como um corte de faca no seu coração — de quem ela não tinha voltado a ligar, do celular que havia sido perdido nas chamas, do seu irmão: Hermana...

Agora, o mundo cuspia areia em sua boca e roubou o sono de seus filhos. Talia fechou as mãos com força, ódio, ganância, seus olhos iluminados como brasas. Teria tudo de volta, tudo o que merecia. Nada seria perdido para sempre como antes. Ela era Talia Lazarus e tudo o que ela queria seria dela para sempre.

– Ano 2 –

O calor era diferente agora. Não o deserto frio da Argélia, mas a umidade pesada da África central, que colava a pele e transformava cada respiração em esforço. O grupo havia sido preparado, por algumas semanas, numa aldeia erguida ao lado de um rio turvo, cercada por mosquitos e pela sombra de guerrilheiros que vinham e iam conforme a guerra local mudava de cor e de bandeira.

Talia observava tudo de dentro de uma cabana feita de palha e barro. Cada detalhe passando pelos olhos dela como uma aventura: os homens armados que dormiam mais do que vigiavam, as crianças descalças com barrigas inchadas de fome, os médicos estrangeiros que chegavam com promessas e partiam deixando apenas frascos vazios.

Cassandra ficou sempre na borda do rio, ajudando as mulheres no carregamento de água. Era como se buscasse aprender com o silêncio, integrando-se às sombras daquele lugar. Damian, agora com seis anos, corria com um facão pequeno que Julia havia lhe dado para cortar lenha, mas na verdade usava para treinar golpes, o punho já duro de disciplina.

Julia Marie era impiedosa. Não via crianças; via sobreviventes em formação.
Treinava Cassandra e Damian com a frieza de quem sabia que um dia eles precisariam lutar por suas próprias vidas.

— Outra vez. — ordenava, enquanto Cassandra, com os pés sujos de lama, repetia movimentos de ataque com um bastão improvisado.

Damian, mesmo pequeno, tentava acompanhar. Caía, levantava, cuspia terra, mas voltava à posição. Julia olhou para ele com aquele meio sorriso cínico, como se visse o reflexo de alguém que já havia conhecido: obstinado, teimoso até a dor.

— Você vai quebrar, garoto — ele disse quase satisfeito.
—Tt. — Damian bufava, limpando o suor da testa. — Eu não quero.

Cassandra não falou, mas seu olhar denunciava a raiva silenciosa que sentia de Julia. Não foi apenas treinamento. Era o modo como Julia falava, como tocava no braço de Damian para ajustar a posição, como sorria de canto quando ele se superava. Cassandra sentiu que Julia queria marcar território, importa-se como uma força entre eles.

Foi durante uma noite particularmente abafada que Julia trouxe uma garrafa de bebida local, algo forte, de gosto amargo. As duas se sentaram na entrada da cabana enquanto as crianças dormiam. O som dos insetos preenchia o silêncio entre goles.

Julia acendeu um cigarro.
— Você sabe... — ela começou, o olhar fixo no nada — ...eu nunca Pensei que acabaria assim. Carregando dois órfãos pelo meio da África, ao lado da filha do demônio.

Talia arqueou uma sobrancelha.
— E mesmo assim você ficou.

Julia deu de lado, amarga, enquanto bebê outro gole.

O silêncio se prolongou. Talia girava o copo nas mãos, o rosto endurecido. Por dentro, uma memória a sufocava: Damian ardendo em febre, com malátria, no ano anterior. Ela poderia tê-lo curado. Poderia ter usado o poder que guardava, mas não o fez. Não ousou — não importava se Cassandra e Damian tinham... —. Júlia teria percebido. A Liga teria sabido. E aquele segredo, aquela marca, não poderia ser revelado.

A bebida a falar fez mais baixo, quase num sussurro:
— Às vezes penso que os condenei. Que se tivesse tido mais poder, mais joias, mais ouro, mais influência, eles não sofreriam tanto.

Julia olhou de lado, intrigada.
— Você? Sofrer por culpa? Achei que não tinha esse tipo de fraqueza.

Talia mordeu os lábios, desviando o olhar.
— Não é fraqueza. É calculado.

Julia riu, exasperada.
— Você é pior que eu, Talia. Ao menos eu admito o que sou.

As duas beberam em silêncio por minutos. Cassandra, meio desperta, ouvindo parte da conversa. Não entendi todas as palavras, mas veja o peso na voz da mãe.

O segundo ano marcou uma virada para Damian.
A infância foi sendo substituída por disciplina. Treinos diários. Observação constante de Julia e Talia.
Ele começou a formular pequenos planos de fuga, táticas que desenenharam em pedras e depois apagaram antes que os outros vissem.

— Você pensa como um velho — Julia disse uma vez, rindo, quando o pegou arriscando mapas imaginários.

Damian perdeu o olhar, sério demais para os seis anos que tinha.
— E você pensa que eu sou só uma criança.
— Mas é. — Júlia respondeu.
—Tt. — ele virou as costas, irritado.

Cassandra observava tudo, dividido entre orgulho e medo. Orgulho por ver o irmão forte. Medo por vê-lo perder a luz da infância tão rápido.

Os atritos também se aprofundavam. Julia não confiava nas rotas que Talia escolheu.
— Você pensa demais como herdeira. Essas aldeias não são seguras. Você acha que compra lealdade com ouro, mas aqui a lealdade é comprada com sangue.

Talia estreitou os olhos.
— E você era como se meu ainda fosse um agente do governo, achando que é um chefe. Mas é apenas uma sombra que sobreviveu por acaso, que enche o bolso com meu ouro e joias.

As palavras se cortaram como lâminas. Ainda assim, nenhuma das duas foi removida. A tensão era parte do pacto silencioso: odiavam-se, — ou eram muito parecidas — mas primeiramente uma da outra.

Quando o segundo ano terminou, já estavam em movimento para o sul. Talia começou a comprar livros de estratégia, de outras línguas, matemática avançada, ciências e até um jogo de xadrez. Ela não queria armas, queria que quando suas crianças tivessem escolha, realmente teriam escolha . O conhecimento era a única coisa naquele momento que ela poderia oferecer, que não precisaria ser tirada. Isso é mais um aniversário com uma travessa fumegante de seonji-guk — a sopa espessa de sangue de boi — e um bolo árabe, quadrado e úmido, coberto por amêndoas tostadas e calda brilhante: basbousa . Com um olhar de desgosto de Julia, mas para alegria de Talia e um olhar desconcertante de Damian e Cassandra — quase um suspiro em conjunto.

Nenhum momento era a única coisa que poderia dar a eles, nada de joias ou ouro. Talia sem sequer imaginar, enquanto Damian e Cassandra comiam felizes, Julia quando provou a sopa e o bolo, não pode deixar de dar um leve sorriso. Estava tudo delicioso.

– Ano 3 –

As chuvas daquele ano não vieram quando deveriam. O céu sobre a savana se mantinha de uma cinza metálica, pesada, como se estivesse preso em silêncio. Era nesse silêncio que Julia dirigia o velho jipe ​​​​roubado, as mãos firmes no volante, as unhas marcadas de sujeira e pólvora, o olhar fixo em frente como se nada mais importasse. Ao lado dela, Talia parecia serena demais para alguém em fuga. A serenidade de uma serpente enrolada, esperando o momento de atacar.

Atrás, Damian dormia encostado em Cassandra. O menino já não tinha a fragilidade dos seis anos. Havia em seu rosto o esboço de um sofrimento precoce, uma sombra que não vinha apenas das lutas, mas da convivência constante com o medo. Cassandra, com treze anos, a segurança contra si, o braço direito envolto como se fosse uma muralha silenciosa. Ela era cada vez mais silenciosa. Cada vez mais letais nos movimentos que Julia lhe ensinava — socos secos, lâminas rápidas, olhares que nunca piscavam.

— Está ficando pior — disse Julia, quebrando o silêncio, sem olhar para Talia. — Guerrilheiros tomaram a estrada ao sul. A gente vai ter que negociar.
— Negociar com homens que só entendem a linguagem do sangue? — Talia respondeu, a voz baixa, quase um sussurro, mas comunicado de desprezo. — Não se negocia com chacais. Se oferece carne, eles voltam para mais.
Julia gentil, um sorriso curto e amargo. — Então me diga, o que sugere? Atiramos em todos?
— Vai chamar muita atenção — Talia estende o olhar para o horizonte. — Ou talvez seja hora de gastar mais do ouro que você tanto gosta de pesar em seus bolsos.

Essa menção não foi em vão. Julia havia se tornado a guardiã das pequenas reservas: moedas antigas, pulseiras de jade, pedras sem origem clara. Era com isso que compravam gasolina, silêncio e, às vezes, uma noite em que podiam dormir sem medo de serem degolados. Mas cada moeda entregue parecia corroer algo nela, como se fosse arrancar pedaços de uma vida que ela nunca teria de volta.

À noite, quando as crianças dormiam, vinham as conversas. Garrafas de destilados africanos, fortes e amargos, espalhadas pela mesa improvisada de madeira. Julia bebê como quem desafia a si mesma a aguentar mais um dia. Talia bebeu um pouco, sempre comedida, mas era nas palavras dela que vinha o golpe mais duro.

— Você está sendo muito duro com eles— disse uma noite, com a lua ardendo branca sobre o acampamento.
Julia riu, uma garrafa na mão. — Não o suficiente. Você prefere que cresçam fracos?
— Prefiro que permaneçam vivos.
— Eles não vão sobreviver sendo apenas vivos, Talia. — Julia se inclinou, os olhos ardendo. — Preciso ser armas. Você sabe disso.
— Não botei a minha vida em xeque para ser mais uma Nyssa ou Ra's na vida deles. — O olhar duro de Talia atingiu Julia. — Eles são minhas joias, eu não destruo o que me pertence.

Cassandra, deitada próxima, fingia dormir. Mas as palavras entravam como facas em sua mente. Damian, febril naquela semana, gema em seus sonhos, e Talia escondida com olhos verdes cintilantes em Julia, as mãos firmes sob a mesa, apesar da bebida tomada, sempre no controle, sempre intocável. Julia não percebeu, mas mal conseguia piscar quando aqueles olhos a encaravam.

A febre começou com pequenos calafrios. Damian disse que era nada, mas Cassandra vive os tremores, a pele quente demais. Julia avisou que ele aguentava, que não fosse mole, mas seus olhos demoravam nele. Só quando a febre explodiu, queimando como fogo em seus ossos, é que a máscara de força ruiu. O menino delirava, sussurrando em árabe, em inglês, em fragmentos de sonhos sobre sangue e desertos.

Talia se fechou no quarto improvisado do casebre de barro, ajoelhada ao lado dele. O suor encharcava as roupas do filho. Ela estendeu a mão. O poder latejava sob sua pele, a promessa da cura pulsando, querendo saltar. Bastaria um toque. Bastaria um sopro de sua vontade para arrancar o veneno da febre.

Mas Julia estava ali. Sempre desconfiada, sempre atenta. Sempre observando como aquelas crianças quase nunca adoeciam, como nunca houve cortes profundos que demorassem a fechar. Se Talia mostrasse agora…

Ela recuou a mão. Fechando os olhos em silêncio. Cassandra a observava do canto, os olhos carregados de fúria. Não contra Talia — mas contra o destino. Ela sabia que Talia poderia. Mas também sabia o peso do segredo.

Três dias se passaram. Julia arrastou o menino até uma aldeia, onde um curandeiro local trocou raízes e poções por duas moedas de ouro. Não foi a cura. Mas foi o suficiente para estabilizar Damian até que o corpo reagisse. Talia, calada, carregava a culpa como uma ferida invisível.

Quando Damian acordou, fraco mas vivo, disse: — Está tudo bem mãe.

A palavra é como uma lâmina cortando o silêncio. Júlia não ouviu. Talia e Cassandra, sim. Talia desviou os olhos, como se fosse um crime. Dentro dela, algo tremeu, culpa.

O treinamento voltou mais duro depois disso. Julia não aceitava a fraqueza que vira em Damian. Fez o menino correr até vomitar, lutar até cair. Cassandra intervinha às vezes, colocando-se como escudo. Julia permitiu, talvez até esperesse.

— Você tem que diminuir o ritmo com eles — disse Talia numa noite, depois de beberem, circulando o dedo fino no copo.
— Você quer que eles vivam — retrucou Julia. —Se preocupe com você. Vive escondido. Vive pensando. Vai acabar...
—. Sua função é no momento nos levar do ponto A até o Z, não querer ser minha psicóloga. — Talia declarou os olhos pra lua, antes de beber mais um gole, sempre cada passo calculado, quase delicado demais.
Julia gargalhou, amarga. — Acha que não percebem? Cassandra olha para você com preocupação. Damian… bem, ele olha do jeito dele.

Talia a encarou, e naquele olhar Julia encontrou algo que não esperava: um verde quase congelado, sombrio. Julia sentiu um leve arrepio na espinha. No resto da noite não consegui, ainda sufocada com o sentimento que teve.

Na manhã seguinte, peguei a estrada outra vez. — Como se toda a conversa teve um sonho. O ouro e as joias estavam acabando, e Julia falou em atravessar para o leste, perto de minas controladas por mercenários. Talia ficou em silêncio, já calculando quanto precisaria ser gasto para que sobrevivessem mais um ano.

E o ano três terminou assim: com Damian carregando uma cicatriz nova no ombro, Cassandra aprendendo a silenciar até os próprios pensamentos, Julia com mais sombras nos olhos, e Talia escondendo um segredo que a consumia mais a cada dia.

– Ano 4 –

O sol africano não era um sol comum. Quando a cirurgia, queimou não apenas a pele, mas a própria esperança. As estradas de terra vermelha se estendem como cicatrizes abertas na paisagem. Foi por essas cicatrizes que Julia guiou o velho jipe ​​​​mais uma vez, agora com um olhar duradouro, como se cada milhão arrancasse pedaços dela que nunca seriam devolvidos.

Damião era maior. Já não cabia nos colos improvisados ​​que Talia oferece durante longas viagens. Tinha nove anos e um olhar que, em certas horas, parecia mais velho que o de Julia. Cassandra, com catorze, carregava a gravidade de uma sentinela. Dormia pouco, comia pouco, e vigiava mais do que falava.

— As minas ficam a dois dias daqui — disse Julia, batendo a mão no volante. — Se conseguirmos trocar ouro por combustível, garantimos algumas semanas de respiro.
— E em troca? — Talia perguntou.
— Em troca, nada. Só não precisamos virar corpos no meio do caminho.

O silêncio caiu entre elas, corte apenas pelo ronco do motor e pela poeira que subia. Damian, no banco de trás, ouvia. Ele ouvia tudo agora. Cada palavra, cada pausa, cada suspiro.

As minas eram um inferno. Crianças cobertas de pó, com olhos vazios, trabalham até desmaiar sob o olhar de homens armados. Julia fingia não ver. Talia não fingia, mas também não intervia. Era o preço da sobrevivência.

Trocaram uma casca de ouro por combustível e sacos de arroz. Julia segurava as moedas como se fossem pedras de sua alma sendo entregues. Damian observava, os punhos fechados. Cassandra se mudou de um dos meninos mineiros, ofereceu um gole de água. O garoto falou, mas antes que pudesse beber, um soldado arrancou a garrafa e bateu no menino com a coroa da arma.

Cassandra gelou. Damian suspendeu-a para trás. Talia a segurou pelo ombro. Julia apenas caminhou, os olhos fixos à frente.

Naquela noite, Cassandra não dormiu. Seus olhos seguiram os da mãe, por que não tinham feito nada .
— Porque não podíamos — Talia respondeu, a voz calma, como uma lâmina afiada.
Cassandra abaixo dos olhos, meio triste. São crianças.

Damian estalou o pescoço. – São fracos, Cassandra. Apenas os fortes sobreviveram.
Talia desviou o olhar, com o rosto ainda sereno. Cassandra abraçou o irmão, mas nada disse.

Mais tarde naquela noite, quando todos dormiam, Talia que não conseguia dormir clamorosamente, seus olhos quase opacos. Como o vento, saiu da casa e ligou o motor do jipe. Tudo bem tranquilo, aconteceu até a mina. Seus passos eram suaves e elegantes, suas vestes sujas não conseguiam tirar isso dela, nem de suas lâminas meio enferrujadas.

Depois de algumas horas, quando as crianças da mina acordaram, não havia mais nenhum adulto mal. Até tinha estavam todos os mortos, havia sangue espalhado as crianças correram pros seus pais, falando todos que talvez Deus tivesse decidido intervir e mandou um anjo para liberta-los.

Quando Julia acordou no dia seguinte, viu que suas baterias eram maiores. Tanto de joias e ouro quanto de comida e combustível.

Ora, ora... – Julia pronunciou uma sobrancelha para Talia rindo. – Foi a fada do dente ou o papai noel...

Cassandra e Damian apenas olharam para Talia levantando uma sobrancelha.

– Não eram da liga, não tem comparação. –Talia se invejou em frente às joias que havia pego como recompensa, ignorando os humanos na sala – tinha até uma boa leva dessa vez, tocou de leve em pequeno diamante furta-cor na luz do sol. Havia uma pequena gota de sangue no manga, Talia franziu o cenho com nojo. – Vou tomar um banho, queimem a minha roupa.

Julia começou a gargalhar, botando a mão no cabelo –Você é louca, completamente insana.

Tt. – Damian foi pegar uma roupa para queimadura e seus olhos não estavam tão duros. Cassandra apenas riu de leve como um pequeno passarinho.

A mãe deles era muito gentil.

Julia intensificou os treinos.

— Aprenda a suportar — dizia, tirando uma faca curta aos pés de Damian. — Se você quiser sobreviver, precisa.
O menino a encarou com raiva. Pegou a faca, cortou a própria palma com um risco rápido. Não fez um som. Júlia transmitiu. — Está aprendendo.

Cassandra se colocou entre eles.
— Não, Cassandra. — Julia se inclinou, os olhos duros. — Nenhum de vocês é só uma criança. Se não entenderem isso, morrerão como carne fraca.

Talia observava, calada, preparando os livros para o estudo mais tarde com os filhos. À noite, quando Julia se encheu de bebida – mais uma vez –, ela finalmente falou:
— Você descarrega suas raivas.
— Eu os preparo para o mundo. — Julia bateu a garrafa na mesa. — Não estou fazendo bonecas de porcelana. Você me desviou, obrigado.
— Agradecer por roubar o que resta da infância deles?
— Infância? — Julia riu, amarga. — Acha que ainda existe isso aqui?

As duas beberam em silêncio. Naquele silêncio, Cassandra vigiava a porta. Damian fingia dormir, mas suas mãos tremiam de raiva, apertando o colar de safira que carregava no peito.

Foi nesse ano que Damian adoeceu de novo. Não é uma febre, mas um tosse persistente que lhe roubou o ar. Julia o obrigava a treinar mesmo assim. Talia quase explodiu, já não podia só olhar.

— Ele vai morrer desse jeito.
— Então que morra treinando — Julia respondeu, seca.

Talia parou de sorrir, o rosto ficando contorcido. Cassandra correu até o irmão, o ajudou a respirar. Damian olhou, os olhos marejados de vergonha.
— Eu não consigo, Cass...
Ela abriu a mão. Não disse nada. Mas o olhar dela dizia: Eu consigo por você .

Talia, do lado de fora, fechou os punhos. O poder pulsava em suas veias, gritando para sair. Bastava um toque, e a ventilação do menino seria limpa. Bastava um sopro, e a tosse sumiria. Mas Julia estava ali, sempre observando. Sempre desconfio. Sempre questionei-se por que aquelas crianças nunca sucumbiram às doenças como outras.

Talia se odiou por se conter.

O ouro estava no fim. Joias foram entregues a contrabandistas, a atravessadores. Julia começava a rosnar como fera encurralada cada vez que Talia abria uma bolsa de veludo.
— Vai acabar, e então? — Disse uma noite, já meio embriagado. — Vai usar o que, Talia? Sua beleza? Seus segredos?
Talia apenas bebeu.
— Eu sei que você esconde algo. — Julia se inclinou, o hálito de álcool quente. — E não vou morrer sem saber o que é.

Talia a encarou, e naquele olhar havia algo que fez Julia recuar por um segundo. Um abismo que não queria encarar.

O quarto ano terminou com eles atravessando territórios em guerra, passando por aldeias queimadas, escondendo-se em ruínas antigas. Damian já não sorri. Cassandra já não sonhava. Julia resiste cada vez mais.

E Talia… Talia se tornou um segredo prestes a morrer.

– Ano 5 –

O quinto ano começou em Luanda. As ruas ferviam com gente apressada, mercados lotados, e o barulho incessante de vozes e motores. Mas por trás da fachada de movimento, havia fome, contrabando e olhares que cortavam como lâminas.

Damian não suportou. A febre chegou de repente, alta, brutal. Primeiro os tremores, depois a pele ardendo como fogo. Em dois dias, já não consigo ficar de pé. Julia o obrigará a andar até o limite. Cassandra, desesperada, carregava o irmão nos braços, o rosto tenso como nunca.
— Médicos aqui vendem morfina e deixa as crianças morrerem na calçada — Julia rebateu, empurrando as portas do quarto improvisado, tensa apesar de não querer. — Se levá-lo, estará morto antes do pôr do sol.

Talia comentou. Seus dedos tremiam. O poder latejava, como um veneno antigo pedindo para ser libertado. Ela tentou resistir. Tente manter a máscara. Mas Damian tossiu sangue – pela sexta vez nesse dia –, e nesse instante a máscara se rompeu.

Ela se ajoelhou ao lado da cama, tocou a testa suada do filho, e deixou que o fluxo a atravessasse. A energia verde saiu de sua pele como uma corrente invisível, percorrendo o corpo do menino, varrendo a febre, limpando o sangue, refizendo o que estava prestes a se partir.

Damian arqueou o corpo, os olhos se arregalaram como se fossem atingidos por uma onda elétrica. Cassandra caiu de joelhos, incrédula. Mãe, não...

Júlia… Júlia viu tudo.

Ela estava atrás, segurando uma garrafa de uísque como sempre, mas deixou cair no chão. Os olhos vidrados, a boca entreaberta. O rosto dela não mostrava medo — mas êxtase.

— Meu Deus… — murmurou, quase sem voz. — Você é…

Talia virou-se de súbito, o poder ainda faiscando nas veias, os olhos mais verdes do que nunca.
— Se abrir essa boca, você vai desejar ter morrido.

Julia não recuou. Ao contrário, deu um passo à frente, fascinada.
— Não… não vou dizer nada. Você acha que eu temeria? — A respiração dela saiu em tremores. — Isso… isso é divino. Você é um anjo, Talia. Um anjo ganancioso, mas… real.

Cassandra abriu a mão de Damian, que respirava fundo, sua pele voltando ao ter o tom normal. O menino abriu os olhos e olhou para a mãe, confuso, atônito. Era isso que Cassandra fazia sentido há anos atrás, não era quando eram pequenos cortes, isso foi... intenso.

Julia se ajoelhou diante dela, ainda embriagada, ainda perdida na visão.
—Eu... eu seguirei você até o fim.

Talia sentiu um nó no peito. Parte dela queria empurrar Julia para longe. Parte sabia que era melhor assim. Mas, acima de tudo, sinto o olhar dos filhos — pesado, preocupado, amoroso, vivo. No final era isso que importava.

Quando saímos de Luanda, já não eram os mesmos. Damian se recuperou rápido demais. Cassandra vigiava a mãe com olhos sombrios, protetores, como se quisesse defender o próprio segredo. Julia, por sua vez, tornar-se-ia uma sombra ainda mais presente, andando ao lado de Talia como se fossem iguais.

O ouro e as joias eram agora apenas memórias. Havia restos de alguns fragmentos escondidos em bolsas de costura de veludo nas roupas. Julia falou um pouco sobre isso. O olhar dela dizia outra coisa: se você cura a morte, o ouro não importa mais .

Foi então que retornou à aldeia.

Perdida no coração de um país devastado, parecia à primeira vista um oásis: crianças rindo, barracas improvisadas, e no centro, uma mulher loira, americana, de jaleco branco amarrotado, que falava alto e distribuía remédios como vitórias. Sheila Haywood.

— Bem-vindos, viajantes! — ela abriu os braços, um sorriso largo demais. — Aqui tratamos todos. Aqui ninguém é deixado para trás.

Julia estreitou os olhos. Talia ficou em silêncio, os instintos alertas. Cassandra e Damian se entreolharam, sem confiança.

Nos primeiros dias, parecia que a aldeia era real: comida simples, uma cama para dormir, crianças brincando ao redor. Mas logo vieram os sinais. Uma menina que tossia sangue morreu depois de tomar “o remédio milagroso” de Sheila. Um garoto desmaiou e nunca mais acordou. As mães choravam, e Sheila erguia as mãos, dizendo que “fez tudo o que poderia”.

Talia foi a primeira a desconfiar.
— Isso não é cuidado. É descaso. Ela não sabe o que faz.
— Ou não quer saber — Julia completou, seca, limpando a arma.

Damian observava de longe, apertando os punhos. Ele reconhecia a farsa. Sabia o que era mascarar poder com espetáculo. Sheila não era uma médica. Era uma atriz.

Talia não disse nada. Apenas observava, os olhos cada vez mais frios, com as vestes balançando no vento.

Numa noite, quando o choro de mais uma mãe ecoava, Julia detectou Talia. As duas juntas, como sempre, mas havia algo diferente. Julia estava inquieta.
— Eu não esqueci do que vi — ela disse, baixinho. — De você curando Damian.
Talia a encarou, dura.
— Já disse. Se falar disso…
— Eu não vou. — Julia tocou o braço dela, quase em súplica. — Eu juro. Eu só... preciso dizer. Você é o que me mantém aqui. Não são as joias. Não é o ouro. É você. Você é um anjo, é uma benção nesse mundo sujo.

Talia suspirou, pesada, com um olhar piedoso para Julia. — Hum, anjo. Uma benção. Ah. —. Bebendo com calma.
— Isso não é uma vitória, Júlia. É uma maldição. Também não se iluda, estou tão perto de ser um anjo, quanto um tomate de ser um rubi.
— Então me amaldiçoe também. — Julia sinceridade, bêbada e crua. — Mas não me deixe sozinho.

As duas ficaram em silêncio. Cassandra, ouvindo atrás da porta, sentiu o coração apertado. Damian, ao lado dela, apenas murmurou:
— Talia tem razão, ela não é um anjo. — Damian espreguiçou os braços. — Não existe nada disso.
Eu sei . Cassandra respondeu, perguntou as mãos. Só que às vezes… parece .

A travessia pela savana parecia interminável. O vento seco queimava a pele, e cada passo deixava um rastro de poeira no ar. Julia Marie mantinha a dianteira, o olhar sempre desconfiado, avaliando cada rocha e sombra como se dali pudesse surgir uma emboscada. Talia tremia logo atrás, mascarando a tensão com aquele ar calculista, mas seus olhos não desgrudavam de Damian, que já se mostrava cansado, a respiração curta e o rosto avermelhado. Cassandra, com seus quase quinze anos, era a muralha silenciosa: caminhava ao lado do irmão, firme, como se pudesse protegê-lo apenas com a presença.

Foi nesse ponto da fuga, já no quinto ano, que eles ouviram falar da doutora americana que ajudava aldeias remotas. Sheila Haywood. Uma mulher que construiu fama entre nômades, viajantes e contrabandistas. “A médica que salva vidas” — diziam. Mas, quando cheguei, não encontrei uma salvadora.

A aldeia cheirava a doença. Moscas circulavam em torno de corpos frágeis demais para afastá-las, e o sorriso largo de Sheila não escondia o olhar apático, distante. Ela foi recebida como uma rainha em seu pequeno trono de seringas usadas, cercada por curativos sujos e garrafas de água turva. Julia e Talia trocaram olhares rápidos — reconheciam o tipo. Uma mulher que acreditou ser redentora, mas matou mais do que salva.

Naquele mesmo período, um barco corria entre contrabandistas: o mafioso de americano, dono de portos, armas e homens, estava enviando alguém para investigar Sheila Haywood. E foi assim que Jason Todd apareceu.

Jason chegou à aldeia em um caminhonete velha, acompanhado de cinco capangas armados. Ele não parecia um garoto de dezassete anos — parecia um soldado já gasto. O jeans surrado, a jaqueta de couro, o cigarro no canto da boca. O olhar, frio, calculando tudo ao redor.

De cima da caminhonete, ele consolidou a cena: a aldeia em ruínas, Sheila sorriu como se fosse santa, e no canto, uma mulher arabe de porte elegante, outra com postura militar, e duas crianças, uma árabe e outra asiática, que não se encaixaram em lugar nenhum.

Curioso… Jason pensou, franzindo o cenho. Eles não combinavam com o resto da aldeia, embora as vestes não se destacassem das outras pessoas. Bruce enviará para investigar Sheila, descobrirá se vale a pena financiar suas operações médicas como fachada para rotas de contrabando. Mas aquelas pessoas ali? Algo não fechava.

Jason passou o dia rondando, observando. Viu a mulher de olhos verdes sempre com um sorriso nos lábios e seus olhos sempre nas crianças. Viu Julia bebendo mais do que devia, mas com a mão sempre próxima da arma. Viu a menina se move como uma sombra silenciosa, protegendo o menino. E viu... o garoto de dez anos que carregava nos olhos verdes algo perigoso, sombrio para a idade.

Jason não pode deixar de sorrir.

Naquela noite, Jason encostou no caminhonete vermelha velha e acendeu outro cigarro. Sheila falava alto, rindo de suas próprias piadas, ignorando os gemidos das pessoas que definhavam nas camas. Jason não desprezou isso. Mulher inútil , inventada. E é isso que o velho quer investir? Que piada .

Então viu de novo o menino, caminhante cambaleante para buscar água. — Parecendo mais uma peça. — Cassandra o acompanhava de perto, mas nem piscou quando Jason se mudou do nada. Interessante.

— Você não parece daqui — Jason disse, com a voz rouca.
Damian o encarou, sério, desconfiado. —Tt. E você parece?
Jason riu baixo. O garoto tinha veneno na língua.
– Touché.

Cassandra removeu Damian pelo braço, como se afastasse um predador. Jason atraiu com os olhos, intrigado. Não sabia quem eram. Mas senti que carregavam algo importante — talvez mais do que joias, mais do que armas. Algo que poderia interessar ao Bruce.

Porque havia algo naquela mulher de olhos enganosamente verdes, algo na forma como o soldado a seguir como devota, algo na forma como aquelas crianças não planejou brigas mesmo cercadas de doença. O que fez Jason se perguntar o que eles estavam fazendo aqui. E Jason Todd sabia muito bem: Só preciso ver se seria comprado, quebrado ou comprado para descobrir.

E pela primeira vez em anos, Jason sentiu o coração acelerar, um sorriso decadente em seus lábios. A capanga que viu o sorriso, sentiu um arrepio na espinha. Conhecia muito bem aquele menino — monstruoso em pele humana. — Poderia fazer. Rumores em Gotham nunca foram apenas rumores.

Jason se manteve na sombra do caminhonete vermelha, um cigarro atrás do outro, observando o cenário miserável. A aldeia era uma ferida aberta, e Sheila Haywood fingia ser uma médica que suturava o mundo, mas só se espalhava a infecção. Seus quatro capangas, homens de confiança de Gotham, estavam inquietos.

— Chefe… — disse Marco, um brutalmontes de voz grossa. — Esse lugar fed. A mulher é uma charlatã. Tá tratando essa gente com água suja e panos podres.

Jason não respondeu imediatamente. Soltou a fumaça devagar, o olhar fixo na tenda onde vira o menino com olhos verdes iguais da mulher desaparecer mais cedo.

— Não foi pra avaliar a higiene que o velho nos mandou, Marco. — Ele jogou o cigarro no chão, amassando com a bota. — Ele quer saber se essa mulher serve aos interesses dele.

O outro capanga, Luiz, riu com desdém.
— O que ele quer é fachada, né? Hospitais falsos pra circunstância grana suja. Mas, sério, Todd, essa daí não dura um mês sem matar metade dos pacientes.

Jason olhou para eles, olhos semicerrados. — Não subestimem. O velho não aposta sem calcular.

Naquela mesma noite, Jason recebeu a ligação que esperava. O telefone por satélite vibrou no bolso da jaqueta, e quando ele atendeu, a voz grave de Bruce Wayne o envolveu como um punho fechado.

— Todd. Relatório.

Jason respirou fundo. — A doutora é uma fraude, B. Se quer fachada, vai manchar mais do que limpar. As pessoas estão morrendo nas mãos dela.

Do outro lado da linha, silêncio por um instante. Depois, uma risada seca de Bruce.
— É exatamente isso que me interessa. Gente incompetente demais é fácil de manipular. E, no caso dela… há um detalhe.

Jason sentiu o estômago gelar.
— Que detalhe?

A resposta veio cortante:
— Ela é sua mãe.

O silêncio se prolongou, pesado. Jason alterou o telefone, como se tivesse ouvido errado. Voltou a encostar no ouvido.
— O quê?

— Biológica. A mulher que te largou. A mulher que agora você vê no fundo da África, brincando de deusa e deixando essas pessoas apodrecerem. — A voz de Bruce carregava um veneno prazeroso. — Eu queria ver sua ocorrência.

Jason fechou os olhos, os punhos cerrados. A fumaça dos cadáveres da aldeia parecia entrar em sua garganta.
— Você me mandou até aqui… só pra mim jogar isso na cara?

— Não é isso — respondeu Bruce. — Quero que você conheça. Quero que veja com os próprios olhos o que o sangue fraco faz. Quero que você agradeça por eu ter te acolhido.

Jason desligou o telefone com tanta força que os capangas recuaram. Ficou ali, respirando pesado, olhando para as estrelas sem brilho do deserto.
— Minha mãe… — murmurou, cuspindo no chão. — Que piada.

Na manhã seguinte, Sheila recebeu com um sorriso falso.
— Você deveria ser enviado de Gotham, não é? — disse, ajeitando o jaleco manchado. — Eu… eu sempre quis mostrar meu trabalho para pessoas influentes.

Jason a encarou em silêncio, os olhos duros. Ela parecia menor de perto, quase uma caricatura de médica, seu loiro bem cuidado para um lugar tão decadente. Os dedos tremiam quando tentavam mostrar caixas de soluções vencidas, seringas sem esterilizar. Ele deixou falar, até o ponto em que não aguentou mais.

— Você não passa de um vigarista nojenta. — A voz dele saiu baixa, mas cada palavra cortava como lâmina. — Quantas pessoas morreram aqui só essa semana?

Sheila empalideceu, tentando rir. — São condições difíceis, não entende… não temos recursos…

— Recursos não fazem você deixar uma ferida infecciosa. — Jason deu um passo à frente, os olhos faiscando. — Você era que deveria estar morto.

Ela recuou, e pela primeira vez Jason viu medo genuíno nos olhos dela. Não é um medo da morte, mas o medo de ser desmascarado.

E no fundo, uma raiva cresceu em Jason.
"Essa é a mulher que me pariu? Essa é a desculpa de ser humano que me largou?"

Ele odiou não ato.

Enquanto a raiva queimava nele, Jason se via cada vez mais atraído por outra coisa: A presença do soldado e da beldade.
Eles não eram como os miseráveis ​​da aldeia. Havia disciplina em cada gesto. Ele as observava em silêncio: a soldada sempre de guarda, bebendo mas com o dedo perto do gatilho; a beldade cuidando das crianças dela com uma precisão quase cirúrgica, mas afetuosa, sem nunca baixar a guarda.

E então havia o garoto sombrio e a menina sileciosa.
— O que duas crianças como aquelas estão fazendo aqui? — Jason murmurou, encostado no capô do carro.

Mathias, um dos capangas, mastigando um pedaço de carne seca, deu de ombros.
— Não parece normal. A mais velha asiática… parece uma máquina. E o garotinho, aquele olhar… parece que já matou alguém.

Jason franziu o cenho. Não sabia quem era, mas algo neles despertava sua curiosidade. E, mais do que isso, uma sensação incômoda: eles são importantes.

A terceira noite tinha o peso de um presságio. Jason Todd sentia o ar carregado desde que o sol se pôs atrás das colinas poeirentas da aldeia. Havia barulho de tambores ao longe, cânticos que se misturavam ao sopro do vento, mas no pequeno acampamento improvisado o silêncio era um animal agachado, pronto para saltar sobre qualquer palavra errada.

Ele estava cansado da rotina: vigiava de dentro da caminhonete, conversava com capangas sem cérebro, anotava relatórios que Bruce nunca leria direito. O que importava para Bruce era o resultado — se Sheila ainda estava viva, se os negócios locais permaneciam sob vigilância, se a droga dos “filhos de Gotham” estavam controlados. Jason odiava aquilo. Odiava ainda mais quando o nome da médica aparecia junto com o do Coringa nos boatos que tinha acabado de descobrir.

Mas, naquela noite, não foi Sheila nem o palhaço que ocuparam seus pensamentos. Foram eles: a mulher de postura régia que parecia que saiu da realeza, a soldada sombria que afia faca como quem afia os próprios dentes, e as duas crianças que pareciam combinar ainda menos com o ambiente.

Jason saiu da caminhonete vermelha. Seus passos esmagaram a poeira seca até a tenda deles. Empurrou a lona, entrando sem pedir licença.

A cena quase o fez recuar: Julia afiava uma lâmina curta, o som metálico estridente atravessando o espaço; Damian estava deitado, olhos semicerrados, mas atentos; Cassandra sentada ao lado dele, vigilante como um cão de guarda; e Talia, os cabelos soltos, acariciava distraidamente a cabeça do menino, seu olhar fixo em algum ponto que parecia muito além daquela aldeia.

O silêncio que se seguiu à sua entrada foi denso. Jason se obrigou a respirar devagar, a manter o corpo solto, as mãos afastadas da arma no coldre.

— Brancos brincando de deuses em terras que não conhecem. Sempre a mesma história... — disse Talia, sem desviar o olhar do menino. Sua voz era suave, mas carregada de desprezo.

Jason sentiu o coração bater mais rápido. Havia algo naquela mulher que o incomodava. Não, não era medo. Era... respeito?

Ele ergueu as mãos num gesto conciliador. — Não vim brigar. Só… conversar.

Julia soltou uma risada curta, afiada como sua lâmina. — Conversar? Com mafiosos não se conversa.

— Então você sabe quem eu sou. — Jason deixou escapar um sorriso enviesado. — Ou pelo menos o que eu faço.

Damian virou o rosto, recusando até a ideia de olhar para ele. Cassandra manteve os olhos fixos na arma no coldre de Jason. Talia, no entanto, ergueu o queixo, estudando-o como se pesasse o valor de uma joia rara.

Jason olhou para os dois jovens. — Esses dois... Quais os seus nomes?

Silêncio. A tensão parecia aumentar um grau. Jason quase se arrependeu da pergunta, mas Talia foi quem respondeu, sem pressa:

— A cortesia pede que primeiro você se apresente.

Ele segurou o olhar dela, e por um instante sentiu-se puxado para dentro de algo maior. Talia moveu-se com moda, pegou um pouco de água e lhe ofereceu. O gesto parecia simples, mas havia uma teatralidade nele, como se fosse um teste.

Jason pegou o copo. — Jason Todd, de Gotham, nos Estados Unidos. — Bebeu um gole, sem hesitar.

Chapter 8: Cavalo

Notes:

Universo alternativo da DC Comics, em que quase todo mundo é criminoso ou mafioso. Qualquer semelhança com a realidade é coincidência.

Chapter Text

– Capítulo 7 –

Cavalo

A noite permanecia linda, quando Julia largou a faca sobre o chão e cruzou os braços. — Gotham. Faz sentido. Cheira a sangue e arrogância.

Jason arqueou a sobrancelha. — E você não?

— Eu sei o que sou e o que você é. — Ela inclinou-se para frente. — Por isso garoto, tome cuidado.

Jason sorriu.
— E isso faz de você... a líder do grupo?

— Não. — Julia riu seca. — Só a que sabe atirar melhor.

Cassandra se mexeu, minimamente, como se fosse intervir. Damian agarrou o braço dela, segurando-a.

Talia, no entanto, parecia satisfeita com o que ouvia — Finalmente algo diferente acontecia. Seus olhos verdes brilhavam com uma curiosidade contida. — Então é isso que você é. Filho de uma cidade que devora os próprios. Julia já me contou um pouco de Gotham, lugar... Acolhedor.

Jason riu de leve, sentando sem muita cerimonia perto de Talia  — Não sei quem vocês pensam que são, mas não parecem só... aldeões..

Julia soltou um som de escárnio. — Ótimo faro, garoto.

Jason respirou fundo. — E os nomes deles? — apontou com o olhar para os dois jovens. — Ainda não me disseram.

Damian virou de repente os olhos verdes para ele, cortantes. — Você não merece saber.

Jason estreitou o olhar. — Que fofo.

O menino se sentou, os músculos tensos. Mas antes que pudesse dizer algo mais, Cassandra colocou a mão em seu ombro, firme. Olhou para Jason, como se decidisse em segundos se valia a pena. Olhou para Talia, que botou uma mecha escura do cabelo atrás da orelha.

— O nome dela é Cassandra. — Cassandra balançou a cabeça, com seus olhos de tinta bem escuros encarando o verde de Jason — mais escuro que o de Damian e de Talia.

Jason piscou. O nome ficou ecoando em sua cabeça. Havia uma força nele.

— Bonito nome — respondeu, sem ironia.

Damian bufou. — Tt. Idiota...

— E você? — Jason insistiu.

— Damian — respondeu o menino, com desdém. — E você já sabe demais.

Jason deixou o nome sair pela boca, saboreando-o. — Cassandra. Damian.

Ele olhou para Talia.

Ela manteve o mistério por alguns segundos, até sorrir, um gesto que não tinha nada de caloroso. — Sou Talia, mãe desses dois encrenqueiros. — Damian resmungou e Cassandra parecia encantada.

Jason então olhou para Julia. — E você?

A soldada inclinou a cabeça, avaliando se valia a pena. Por fim, disse:

— Julia.

O silêncio voltou, pesado. Mas Jason sentiu que tinha dado um passo. Não sabia se era rumo à confiança, mas estava dentro do jogo deles agora.

Ele tentou relaxar, ajeitando-se sobre uma caixa de suprimentos. — Sabe... não achei que ouviria esses nomes hoje.

Julia riu, seca. — E o que você vai fazer com eles? Vender para o primeiro que pagar?

Jason a encarou, sério. — Eu não sou estúpido. Se esses nomes têm valor, primeiro quero saber para quem.

Talia inclinou-se levemente, como se aprovasse a resposta, seus dedos ainda mexendo no cabelo de Damian.

Damian bufou outra vez. — Covarde.

Jason olhou para o menino, e pela primeira vez não sentiu apenas irritação. Sentiu... familiaridade. Uma raiva juvenil que ele mesmo já carregara.

— Talvez. — disse, sem se defender. — Mas estou vivo. E, pelo que vejo, vocês também querem continuar assim.

As palavras ficaram pairando, sem resposta imediata. Cassandra estreitou os olhos, como se avaliava se Jason estava sendo sincero ou apenas jogando.

Talia, por fim, quebrou o silêncio: — Talvez ainda haja algo em você além de arrogância.

Jason inclinou a cabeça, quase sorrindo. — Talvez.

Ele tinha visto aquele tipo de dinâmica antes, em gangues de Gotham, em orfanatos abandonados, nos corredores esfumaçados do submundo. O olhar atento da Julia, o silêncio feroz da menina, a fragilidade disfarçada do menino. E no centro, uma mulher que parecia não pertencer a lugar nenhum, mas que dominava o espaço como uma rainha caída.

Naquela noite, ele saiu da tenda sabendo duas coisas: primeiro, que aquelas pessoas não eram comuns; segundo que seu instinto dizia que eles eram importantes. E isso o corroía, porque pela primeira vez Jason se perguntava se não preferia guardar o segredo só para si. O jeito que Talia cuidava das crianças. Seu peito apertou em ciúmes ao comparar com Catherine e... Sheila.

Na madrugada, Jason afastou-se da aldeia para responder ao comunicador por satélite discreto que Bruce havia deixado em seu casaco. O som metálico da voz dele atravessou o chiado:

— Você está mais quieto do que o habitual.

Jason bufou. — E o que esperava? Que eu mandasse relatórios animados? Principalmente depois que você me mandou pra cá pra ver quão fudida é a minha genética.

Houve silêncio. Depois, Bruce falou com calma controlada:

— Não subestime a utilidade do sofrimento alheio, além de que genética não significa nada sem habilidade. Ele revela quem são os fortes e quem são os fracos.

Jason revirou os olhos. — Sempre a mesma merda.

— Você viu Sheila de novo. — Bruce disse, cortando a ironia.

Jason se enrijeceu. — Vi, é por isso que estou aqui, né? E não gostei de novo do que vi.

— Ela é sua mãe biológica. — A voz de Bruce não oscilou, quase com prazer. — Achei que merecia conhecer.

Jason quase desligou o comunicador. — Você me trouxe até aqui só pra ver essa mulher, essa filha da puta, que está matando sem ganhar nada com isso, apenas fingindo ser uma deusa e na verdade sendo uma praga?

— Eu queria ver a sua reação. — Bruce confessou, frio e divertido, mas sem esconder uma sombra de sinceridade. — Queria que você entendesse de onde veio.

Jason fechou os punhos. — Se isso era pra me dar orgulho, parabéns. Agora sei que não passo de um erro de uma mulher que só faz merda.

— Não. — Bruce retrucou, firme, sem risos. — Agora sabe que eu o escolhi por habilidade, não por genética.

A frase atingiu Jason de um jeito estranho, como lâmina enfiada devagar. Por que ele falava, como se se importasse? Como se ele valesse realmente alguma coisa. Apertou os dentes com força e punhos com força. O que ele era para o B?

Esqueça, melhor fazer só o serviço logo e ir embora logo.

— B, tem umas pessoas aqui bem mais interessantes que a Sheila. — Jason repassou as informações que descobriu mesmo assim, afinal era o B — seu pai.

Nos dias que se seguiram, Jason não conseguiu afastar aqueles nomes da cabeça. Cassandra. Damian. Talia. Julia. Eram como um veneno lento, se infiltrando em cada pensamento.

Ele reportou ao B. Bruce adorava segredos, adorava controlar cada peça do tabuleiro. Vigie. Observe. Relate.

Depois de três manhãs depois daquele dia, Jason não ficou na caminhonete vermelha como sempre fazia. Em vez disso, encostou no tronco de uma árvore próximo à área onde eles preparavam uma refeição improvisada. Não podia arriscar ser visto. — Com uma câmera pequena presa no punho, disfarçada como um botão.

— Bom dia — disse Jason, sorrindo.

Ele esperou o momento certo. Talia, ajoelhada, lavava raízes num balde enferrujado. O sol da manhã desenhava linhas douradas em seu rosto. Jason finge espreguiçar-se, ergue o braço, clica. Primeira foto.

Cassandra aparece no fundo, observando. Jason resmunga uma piada qualquer sobre o calor, gira o corpo e… Segunda foto.

Julia, séria, de fuzil nas costas. Terceira foto.

Damian o encara como se sentisse algo estranho. Jason continua sorrindo.

— Relaxa, garoto, não tô roubando nada.

Ele finge se afastar para urinar na mata. De trás do tronco, ajusta o botão.
Damian, de perfil, afiando o ferro com intensidade obsessiva. Quarta foto.

Por último, volta o foco a Talia. Seus olhos se erguem por um segundo, como se percebessem algo, seus olhos ficaram mais belos ainda na luz do sol, com um sorriso breve, quase imperceptível. Jason quase abaixa a mão. O clique sai rápido. Quinta foto.

— Veio cedo — comentou Talia, como se não tivesse visto nada.
Jason se sentou no tronco, ajeitando o coldre como se fosse só mais um gesto automático, mas Talia não perdeu nada. Os olhos dela seguiam cada detalhe — o modo como ele apoiava o corpo mais no lado direito, a maneira como os dedos tamborilavam na coxa, o disfarce do tédio que escondia vigilância.

— Não gosto de café fraco — repetiu ele, forçando uma quebra no silêncio. — E o de vocês parece bem mais interessante.

Julia soltou um resmungo, olhando de esguelha para Talia, como se dissesse: ele parece um cachorro com um osso. Cassandra, em silêncio, largou os galhos e foi até Damian, colocando-se ao lado dele — proteção disfarçada de companhia.

Foi então que Talia quebrou o ritmo, sua voz calma, quase um sussurro que carregava mais autoridade do que gritos.
— Já deve ter tomado uns cafés muito bons por aí.

Jason sorriu de canto.
— Já estive em muitos lugares. Vi muita coisa.

— E sempre sozinho? — Talia perguntou, erguendo o olhar de forma lenta, medindo-o.

Jason hesitou. Ele podia mentir, mas havia algo na forma como ela perguntava que o prendia.
— Nem sempre. Tenho... alguém acima de mim — um pai, dois irmãos e um mordomo.

Julia se endireitou.
— Então é isso — murmurou. — Você é cão de alguém, melhor filhote.

— Melhor isso do que cadáver — retrucou Jason, seco.

Mas Talia não reagiu ao veneno na voz de Julia. Pelo contrário, os olhos dela se iluminaram com uma ideia ainda embrionária.

— Esse alguém... — começou, com calma. — Ele confia em você?

Jason a encarou, desconfiado.
— Confia o bastante.

Talia apoiou as mãos nos joelhos e se inclinou para a frente, sem perder a serenidade.
— Então talvez possamos... conversar.

O ar mudou. Julia, de imediato, colocou-se entre Jason e Talia, como uma muralha.
— Não, não, não. Isso cheira a problema.

— Tudo cheira a problema para você — respondeu Talia, com suavidade. Depois voltou-se para Jason, seus olhos como brasas o encarando. — Você me parece inteligente o suficiente para entender o que quero dizer.

Jason riu, mas o riso soou vazio.
— Já ouvi muitos acordos ao longo da vida. E quase todas terminam mal.

— Talvez termine diferente — disse Talia. — Talvez termine com você ganhando algo.

Ele arqueou a sobrancelha.
— E o que você tem a oferecer?

Talia não respondeu de imediato. Pegou um pedaço de raiz recém-cortada, deixou-o escorregar entre os dedos e, por fim, deixou cair dentro da panela fumegante. O vapor subiu, criando uma cortina breve entre eles. Quando falou, a voz saiu baixa, porém firme:

— Informação. E lealdade, se for recíproca.

Jason sentiu a garganta secar. Ele não sabia ainda o que aquela mulher era capaz de oferecer — mas tinha certeza de uma coisa: ela não era aldeã perdida. E o chefe dele — pai — Bruce, iria querer saber.

Julia cruzou os braços, olhando de um para o outro.
— Isso vai acabar em morte — decretou.

Damian, do outro lado, ergueu os olhos e cuspiu no chão.
— Tt. Não confiem nele.

Mas Cassandra... Cassandra apenas observava, o silêncio dela mais eloquente do que qualquer palavra.

Jason respirou fundo, forçando um sorriso.
— Vou pensar no assunto.

Talia inclinou a cabeça, satisfeita.
— Não perca muito tempo. Às vezes, o destino não espera.

No bolso, o celular pesa. Jason quando sai envia tudo para o número cifrado de Bruce. As mãos tremem levemente. Ele não sabia por quê.

No acampamento, o ar estava mais pesado do que nunca. Sheila Haywood passava de tenda em tenda, derramando promessas vazias de cura. Crianças ainda morriam em suas mãos, como moscas caindo no chão, e Jason via o desprezo no rosto de Talia cada vez que a médica se aproximava.

À noite, Jason voltou a se aproximar da tenda deles. Julia estava na entrada, a faca sempre presente.

— Você de novo? — Ela ergueu o queixo, olhos semicerrados. — Não tem nada melhor pra fazer com a sua vida, garoto mafioso?

Jason sorriu de canto. — Poderia perguntar o mesmo de você.

Julia fez um som de desdém, mas não se moveu. — Fica rondando a gente. Parece cachorro farejando porta de açougue.

— Quem sabe eu esteja procurando carne melhor que a que me servem na caminhonete. — Jason retrucou com voz de escárnio, mas manteve a voz baixa, como se não quisesse acordar os outros.

Julia estreitou os olhos, avaliando-o. — Cuidado, Todd. Você pode se engasgar.

Jason não respondeu. Apenas entrou.

Dentro, Talia estava sentada sobre esteiras, o corpo ereto, os olhos semicerrados. Cassandra cochilava, mas Damian estava acordado, fingindo que não.

Jason se jogou em uma caixa vazia. — Preciso perguntar. Vocês não têm medo de morrer nesse buraco?

Damian se ergueu, os olhos faiscando. — Você está no mesmo buraco que a gente Todd.

Jason soltou uma risada curta. — Estou vivo até hoje. Isso já é alguma coisa.

— Só por enquanto. — O garoto devolveu.

Cassandra, ainda sonolenta, olhou entre os dois, como quem media forças invisíveis.

Talia interrompeu, sua voz calma, mas firme: — O medo é um luxo que não carregamos.

Jason virou o rosto para ela. — Então carrega o quê?

Ela o encarou longamente. — Sobrevivência.

O silêncio voltou, espesso.

Naquela noite, Jason saiu com mais dúvidas do que respostas.

Dois dias depois, o calor da aldeia parecia um castigo. O ar era denso, grudento, como se o deserto tivesse decidido devorar até a sombra dos homens. Jason limpava o suor da nuca com a barra da camisa, quando viu Julia surgir com duas garrafas de vidro barato, turvas, cheias de um líquido que tinha mais cara de veneno do que de bebida.

Sem cerimônia, ela atirou uma para Talia.
— Precisa relaxar. — disse, arrancando a rolha com os dentes e cuspindo o pedaço de cortiça no chão.

Talia arqueou uma sobrancelha, mas aceitou. Girou a garrafa como quem avalia uma armadilha. Bebeu um gole pequeno, lento, calculado. Até naquele gesto havia método, como se controlasse até o ritmo da própria respiração.

Jason observava à distância, meio escondido atrás de um tronco seco, afiado como estaca. Fingiu que afiava a faca no joelho, mas os olhos não desgrudavam das duas mulheres.

Talia foi a primeira a falar, a voz já rouca pelo álcool barato:
— Gotham... você já esteve lá?

Julia inclinou a cabeça, os olhos semicerrados.
— Vi apenas de longe. Uma cidade sufocante. Finge grandeza, mas fede a podridão.

Ela riu sem humor, quase amarga.
— A descrição perfeita. Cresci ouvindo histórias. Espiões, patrões, milionários que pagavam por informações. Gotham é uma máquina que mastiga quem não sabe jogar.

Talia bebeu de novo, mais fundo, os olhos semicerrados.
— Me parece... familiar.

Fez uma pausa e continuou, como se testasse o peso das próprias lembranças:
— Eu tive um amigo que era de Gotham. Acho que voltou pra lá. Ou quero acreditar que sim.

Julia arqueou a sobrancelha, surpresa.
— Caramba, quem diria... a princesa teve amigos.

Talia ignorou a provocação. Seu tom ficou mais baixo, quase íntimo.
— Ele era um garoto bom. Ingênuo, até. Me lembra o Jason.

Julia piscou, lenta.
— Ah.

— “Ah” o quê? — Talia retrucou, agora com um fio de sorriso.

— Só... você anda muito simpática com aquele projeto de Soprano. Isso meio que explica.

O silêncio ficou por um instante, só o estalo do fogo quebrava o ar abafado. Talia inclinou o rosto.
— Em Gotham... talvez seja possível uma vida. Uma vida real. O príncipe falava horrores daquela cidade, mas, ao mesmo tempo, sempre falava em voltar. Queria consertar as coisas.

— Príncipe? — Julia a interrompeu, fixando o olhar.

Talia piscou, como se tivesse se traído. Demorou um segundo para responder, um segundo que não passou despercebido.

— É só... uma referência. — Forçou um sorriso. — O Príncipe, de Maquiavel. Ele citava muito o livro, dizia que qualquer homem que quisesse mudar o mundo precisava entendê-lo.

— Interessante. — Murmurou. — Então você se guia por Maquiavel? Explica como ainda está viva.

— Não. — Talia respondeu com suavidade, quase defensiva. — Eu apenas aprendi a escutar.

Julia girou a garrafa na mão, a luz vermelha da fogueira refletindo no vidro.
— Você tem certeza de que ele está vivo?

Talia hesitou. Um segundo longo demais.
— Não. Nós nos afastamos. Ele era... um dos pupilos do meu pai.

Julia não escondeu a incredulidade.
— Pupilo do seu pai? E mesmo assim você o chama de “garoto bom”?

— Ele era. — Talia sustentou o olhar. — E isso já o fazia diferente da maioria.

Julia bebeu fundo, como se lavasse a garganta antes de responder.
— Você mesma sabe que as coisas nunca são simples.

Por cima da garrafa, Julia a olhou de novo. Mas não havia só sarcasmo. Pela primeira vez, havia respeito. Quase cumplicidade.

— Me surpreende você ter sobrevivido tanto tempo, Talia. — disse, firme, com voz quase suave. — Você é boa demais pra esse jogo.

 

Jason fechou os olhos por um instante. A raiva latejou como febre.
O que o corroía mais? O fato de ver duas mulheres que pareciam se bastar, tão donas de si quanto qualquer rei mafioso de Gotham — ou perceber que Bruce, se estivesse ali, provavelmente olharia para Talia e Julia com fascínio?

Era fácil imaginar. Bruce sempre conseguia o que queria. Sempre encontrava peças que jogavam por ele. Jason, por mais que fosse o filho escolhido, o braço armado, não passava de parte do tabuleiro. Mas aquelas mulheres... não eram peças. Elas pareciam jogar sozinhas.

E, em silêncio, Jason entendeu: Gotham podia estar a milhares de quilômetros, mas a sombra de Bruce Wayne ainda estava entre eles.

Na manhã seguinte, Damian treinava fora da tenda, golpes contra o ar seco, a postura rígida. Jason se aproximou, e o garoto parou no mesmo instante.

— O que você quer? — rosnou Damian.

— Só ver se você sabe lutar de verdade. — Jason cruzou os braços. — Ou se é só pose.

Damian avançou num movimento rápido, chutando a poeira contra os pés de Jason. O garoto mais velho desviou, rindo.

— Isso aí. Tem fogo.

— Tt. Não preciso da sua aprovação. — Damian quase rosnando.

Jason ergueu as mãos. — Tudo bem. Mas um dia, quando tiver que escolher entre bater e sobreviver, vai lembrar de mim.

Cassandra observava da sombra, silenciosa. Mas Jason percebeu o detalhe: os olhos dela não carregavam apenas desconfiança. Havia curiosidade.

Numa outra noite abafada, Jason voltou e encontrou Talia sozinha, limpando pequenos objetos. Reconheceu o brilho de pedras preciosas e ouro, envoltas em tecido.

— Joias e ouro. — murmurou ele. — Então é isso que mantém vocês vivos.

Talia não respondeu. Apenas enrolou as pedras e lingotes e guardou de volta.

— Gotham poderia pagar muito por isso. — Jason provocou.

Ela o encarou, e naquele olhar havia um aviso claro. — Gotham paga por tudo pelo que fui informada. Até pela própria ruína.

Jason desviou o olhar. Cada vez que ele entrava naquela tenda, sentia que se afundava mais no enigma deles. E uma parte dele não queria voltar à superfície.

A aldeia parecia nunca dormir. Mesmo quando o sol desaparecia, os gemidos das pessoas doentes enchiam o ar, misturados ao bater distante de tambores. Jason já se acostumara ao som — ou achava que tinha.

Na terceira semana, Sheila Haywood começou a se aproximar mais da tenda de Talia. Trazia remédios improvisados, um sorriso condescendente e sempre a mesma frase:

— Estou salvando vidas aqui.

Jason via a reação dos quatro. Julia semicerrava os olhos, a mão sempre próxima ao cabo da faca. Cassandra cruzava os braços, como se fosse capaz de parar o mundo inteiro só pela força do silêncio. Damian franzia o cenho com desdém puro.

E Talia… Talia sorria. Um sorriso educado, quase dócil, mas os olhos verdes queimavam como lâminas afiadas.

Na primeira noite em que Sheila tentou “ajudar” Damian, Talia interceptou.

— Ele não precisa da sua medicina. — disse, com a suavidade de quem desfere um corte.

Sheila forçou uma risada. — Ele precisa de antibióticos. Você não entende…

— Eu entendo mais do que você imagina. — Talia retrucou, afastando o frasco das mãos da médica.

Jason não disse nada. Apenas observou.

Três dias depois, mais uma pessoa da aldeia morreu após tratamento de Sheila. Jason a viu sendo carregada em um lençol sujo, as pessoas chorando atrás.

Talia estava parada diante da cena, braços cruzados. Julia ao lado, murmurou baixo o suficiente para que só ela ouvisse:

— Sempre o mesmo. Americana brincado de deusa.

Talia respondeu com frieza: — Não é uma deusa. É uma praga.

Jason se encolheu. Parte dele queria discordar, mas não conseguiu. Vergonha de compartilhar o mesmo sangue dela.

Naquela tarde, Jason foi até Sheila. Encontrou-a limpando as mãos em um lenço, o rosto suado.

— Você sabia que essa pessoa não resistiria. — disse Jason, sem rodeios.

Sheila arregalou os olhos. — Não fale como se entendesse. Medicina é tentativa. Às vezes funciona, às vezes não.

Jason a olhou como se já tivesse a sentença. — Não. Você escolhe quem vive e quem morre.

Ela não respondeu, apenas virou as costas. Jason, no entanto, carregou a imagem. Quero que ela morra, morra, morra...

De volta à tenda, Jason encontrou Talia sozinha. Ela estava afiando uma adaga, movimentos lentos e precisos.

— Brancos brincando de deuses. — Jason repetiu as palavras que ouvira dela antes.

Ela ergueu os olhos. — Então você também percebeu.

Jason hesitou. — Percebi que essa Sheila… não deveria estar aqui.

Talia o mediu com atenção. — Ninguém deveria, mas alguns insistem.

Ele riu, seco. — Isso inclui você?

Ela não piscou. — Inclui você.

Jason ficou em silêncio.

Na noite seguinte, Jason se aproximou do garoto novamente. Damian treinava, socando um pedaço de madeira até os nós dos dedos ficarem vermelhos.

— Se continuar, vai quebrar a mão. — Jason comentou.

Damian o ignorou. Continuou.

Jason suspirou, encostando-se em uma árvore. — Você me odeia, não é? Olha que eu não fiz nada, imagina se eu realmente fizesse alguma coisa.

Damian parou, arfando. — Não. Eu desprezo você. Só a sua presença já faz isso.

Jason riu. — Pior.

— Você não entende nada. — Damian disse, a voz mais baixa. — Não entende o que temos que fazer pra sobreviver aqui.

Jason sentiu o golpe daquelas palavras, mesmo sem entender totalmente. Não respondeu. Apenas ficou ali, observando o menino. Se lembrou de um momento em que Willis voltava bêbado pra casa querendo mais, lembrou de Catherine que encontrou morta com uma agulha no braço, lembrou também de roubar os pneus de um certo mafioso, num momento de desespero e fome.

— Pior que eu entendo. — Jason disse, puxando um cigarro caro da jaqueta, acendendo. — Muito mais do que você imagina.

Mais tarde, Cassandra apareceu ao lado de Jason. Ele se surpreendeu: ela nunca se aproximava por conta própria.

Ela não disse nada, apenas olhou para ele por longos segundos. Jason abriu a boca para falar, mas ela levantou a mão, em silêncio. Como se dissesse: não estrague.

Então ela se virou e voltou para perto de Talia.

Jason a acompanhou com o olhar. Pela primeira vez, percebeu que aquela garota de quinze anos carregava mais sombras do que ele mesmo, parecia que todos eles carregavam na verdade.

Na quinta semana, Jason ouviu uma conversa sussurrada atrás da tenda de Sheila. Uma voz que não conhecia, rouca, distorcida, mas carregada de algo que arrepiava a espinha.

Ele não conseguiu distinguir as palavras. Ele estava lá já a algum tempo, seus capangas tinham registrado cada poeira daquele lugar e com certeza lembraria de uma voz daquelas. Parece que Sheila tinha alguém por trás dela, bom pelo menos as coisas se tornaram mais interessantes.

Na mesma noite, Talia saiu da tenda, o véu cobrindo parte do rosto, e ficou parada sob a lua, seus olhos verdes brilhavam na luz das estrelas. Jason a observou de longe.

Talia parecia sentir algo. Como se pressentisse a tempestade antes da chuva.

O que ninguém sabia é que a uns seis meses atrás a Sheila Hoywood estava em sua tenda, nervosa. Uma sombra havia entrado sem que ela percebesse.

— Você está perdendo o controle — disse a voz rouca, com um chapéu que cobria parte do rosto.

Sheila olhou, assustada. — Quem...

O intruso não respondeu com nome. Apenas silêncio. Seus olhos verdes quase cristalinos, quebrados, irregulares, que pareciam rasgar o ar da tenda. Seu rosto tão pálido quanto de um vampiro, seus olhos mal piscavam, suas roupas impecáveis e em tons claros, seus lábios em uma linha reta. Com dois seguranças atrás dele.

Ele se aproximou, olhos acesos na escuridão. — Médica boazinha, salvando pessoas… ou escolhendo quem vai morrer primeiro?

Sheila tentou erguer a postura. — Eu faço o que posso com o que tenho.

— Oh, eu sei. — a figura inclinou-se, as linhas dos lábios pálidos sérios. — E o que você tem é a oportunidade perfeita para fazer um acordo comigo.

Ele pegou uma cadeira e sentou com um capanga em cada lado. Sua voz era rouca e nunca aumentava o tom, mas...

Os instintos de Sheila diziam para ela gritar, correr dali. Algo naquela presença a paralisava. Ela tinha vendido a alma para o demônio já tinha anos, mas esse homem tão pálido com o cabelo perfeitamente alinhado e com o terno tão claro, parecia bem mais assustador.

Voltando para seis meses depois e manhã seguinte do que Jason havia escutado da tenda de Sheila, Jason encontrou Talia perto do poço. Ela lavava as mãos, o olhar distante, com leves olheiras.

— Você não dormiu. — Jason comentou.

— Dormir é para os fracos. — Talia respondeu, mas a voz estava cansada.

Jason respirou fundo. — O que você faria se pudesse sair daqui?

Ela ergueu os olhos, avaliando-o, um sorriso de conhecimento surgindo nos seus lábios. — Fugiria. E levaria os três comigo.

Jason sorriu de canto. — Você fala como se fosse fácil.

— Nada é fácil. Mas tudo é possível. — Talia se aproximou um passo. — A questão é: você nos ajudaria ou nos entregaria?

Jason não soube responder.

Jason afastou-se do acampamento até onde o sinal mal alcançava. O telefone chiava, mas finalmente a voz grave atravessou, carregada de autoridade.

— O nome da mulher é Talia. — Não uma pergunta, mas uma constatação.

Jason respirou surpreso.
— Sim, eu ... te falei antes B.

O silêncio do outro lado parecia devorar o chiado da ligação. Jason apertou os dentes.
— Bruce? Você conhece ela?

No alto da torre de vidro que dominava Gotham, Bruce Wayne não se moveu. O celular repousava entre seus dedos, mas ele estava de volta a outra noite, anos atrás: o hálito da morte em seu pescoço, Nyssa sorrindo com a lâmina na mão. E então ela — Talia.

Um anjo entre demônios.

Tim já tinha visto aquelas fotos semanas atrás. Ele fora o único a se dar ao trabalho de abri-las: imagens enviadas religiosamente pelos capangas de Jason e do próprio Jason. Sheila, as atrocidades cometidas, material perfeito para chantagem ou moeda futura. E, entre elas, as figuras que Bruce simplesmente ignorara — a mulher de olhos verdes, as duas crianças, a soldada de cabelo curto. Bruce não tinha dado sequer um olhar.
Até agora.

Alfred se aproximou em silêncio, como sempre fazia.
— Senhor?

Bruce ergueu a mão, pedindo silêncio. Os olhos cravados na cidade encharcada. Bruce apertou o copo de uísque até quase estilhaçá-lo.

Jason estava tão energético em discutir. Demonstrando fraqueza em querer ajudar duas mulheres e duas crianças. Sem ouro. Sem vestidos. Sem nada que lembrasse a herdeira que ele conheceu. Apenas Talia, simples, viva.

 

Do outro lado, Jason explodiu.
— Fala alguma coisa, porra!

Bruce fechou os olhos, voltou ao presente. Sua voz saiu baixa, quase controlada demais:
— Você tem certeza desse nome?

— Absoluta. Ela mesma disse. O que foi? Você a conhece?

Bruce não respondeu. Apenas girou o copo de uísque na outra mão, observando o âmbar se mover como sangue liquefeito.

Dick entrou na sala sem bater, jogando uma pasta sobre a mesa. Tim veio atrás, discreto.
— Problemas no porto. Mas nada que não possamos resolver — disse Dick. Seus olhos azuis pousaram no telefone, com um sorriso encantador. — Jay? — O mais velho dos filhos Wayne era tão belo quanto manipulador, mas por algum motivo, estranhamente leal a família.

Bruce ignorou. Falou baixo, direto no aparelho:
— Continue de olho nela. Descubra quem são as crianças, a mulher do lado dela. Tudo. Mas não faça nada estúpido. Sheila não é mais uma prioridade. — E desligou.

Jason ficou parado com o telefone na mão, o eco da voz de Bruce queimando no ouvido. Lembrou do professor de história, falando de Napoleão: Eu sou o mestre do meu destino, eu sou o comandante da minha alma. Vai se fuder.

Em Gotham, Bruce deixou o aparelho sobre a mesa. O silêncio pesava.

Tim franziu o cenho.
— Julia ou Talia?

Bruce finalmente se virou, os olhos mais sombrios que a própria cidade.

— Talia. Uma amiga.

O silêncio seguinte foi tenso. Tim e Alfred se olharam. Dick arqueou as sobrancelhas, intrigado.

— Parece que Jay encontrou mais do que a mãe dele. — Tim disse, cauteloso. Seu tom parecia de quem cutuca, mas havia cálculo por trás. — Eu vi as fotos, todas. — Uma pausa curta. — Mas não achei que você ligaria pra elas.

Fora ele que ajudou nas pesquisas pra achar Sheila Hoywood. Não se podia deixar enganar pela pouca idade, mesmo sendo o mais novo da família Wayne era o mais inteligente e calculista.

Dick observava em silêncio, sorriso discreto no canto da boca. Ele sabia que havia mais ali.

Alfred, no entanto, manteve a expressão neutra, embora em seus olhos cansados houvesse reconhecimento. Talia Lazarus. Ele lembrava. Ele sabia.

Bruce ergueu o copo, deixou o uísque deslizar pela garganta como veneno doce. Seus olhos azuis acinzentados voltaram à cidade, mas Gotham desapareceu. No lugar dela, um rosto. Olhos verdes. Um véu caindo. Mãos que ofereceram ouro sem pedir nada em troca.

Um anjo entre demônios.

Jason queria muito em bater em alguma coisa, talvez atirar, atirar seria melhor. Pegou a sua arma e foi em direção a uma árvore, seus capangas foram espertos e apenas ficaram de guarda. Pensando que levariam um tiro. O que poderia acontecer, em Gotham ele já teria achado algum filho da puta para atirar, algum devedor ou coisa assim.

No vilarejo, Jason descarregava um pente inteiro de balas contra uma árvore. O som ecoava pelo mato, seco, brutal. Não era produtivo, nem sensato — mas era isso ou enfiar uma bala na própria cabeça — Não pense nisso, não seja fraco seu merdinha. Bruce parecia mais interessado numa mulher do outro lado do mundo que nele.

Quando a munição acabou, pegou uma faca. Afiava a lâmina, fúria latejando pelos poros, quando Cassandra surgiu sem som algum.

— Não é um bom momento, Cass. — disse, a voz curta.

Jason arqueou a sobrancelha. — Você é boa em aparecer do nada, sabia? Podia ter tacado a minha faca em você.

Ela deu de ombros.

Jason riu, meio miserável, triste.

Cassandra inclinou a cabeça. Olhando para ele com seus olhos escuros, como se estivesse medindo-o, vendo sua alma. Então puxou a sua camisa, como se pedisse para seguir ela.

E se foi, sem esperar resposta.

Jason ficou olhando a lâmina, o reflexo da própria expressão. Levantando e seguindo a menina de, talvez 15 anos, para mais dentro do vilarejo e dentro da tenda onde vivia.

A tenda de Talia cheirava a especiarias e carne assada. Tapetes espalhados pelo chão, travessas fumegantes. Jason piscou, surpreso. Se fosse um corpo no chão, talvez não ficasse tão chocado.

— Trouxe um convidado pro aniversário, Cassandra. — Talia disse, com um riso suave. Cabelo solto, vestido verde que parecia feito para ela.

— Ah. Feliz aniversário, Cass. — Jason coçou a nuca, sem jeito, antes de sentar num caixote perto da comida. Seus olhos caíram numa travessa fumegante, espessa e vermelha. — Isso... é sangue.

Julia riu, quase deixando a pistola cair da mão.
— Claro. Somos vampiros, e você é o jantar.

— Haha. Engraçada você.— Jason bufou, cruzando os braços, mas o sorriso torto denunciava que, por um instante, se sentia menos vazio.

— Tt. Isso é seonji-guk, seu ignorante. — Damian rolou os olhos, mas sentando perto de Jason.

— É aniversário do pequeno príncipe também. — Talia começou a servir a todos com a sopa fumegante. — Deu trabalho pra conseguir os ingredientes, mas vale a pena. — Ela servia de forma elegante, nem parecia que estava numa tenda medíocre.

— Muitos anos de vida, Dami. — Jason relaxou, tentando lembrar de quando foi a última vez que esteve num aniversário de verdade. — Espera... Vocês fazem aniversário no mesmo dia?

Jason olhou para as duas crianças. Parecia a coisa mais normal em comparação com o resto.

— Quantos anos vocês estão fazendo então?

— 15, a Cassandra e 10, o pequeno príncipe. — Talia disse depois de beber um gole da sopa.

— Na minha cabeça vocês já tinham essa idade. Mas o que eu sei de idade dos outros também. — Deu de ombros o Jason, provando a sopa. — Puta merda, isso é bom. — Jason bebeu tudo de uma vez, sentindo a língua ficar até dormente de tão quente que estava.

—Tem basbousa também. — Talia parecia encantada por mais alguém elogiar a sua comida. — É um bolo coberto de amêndoas tostadas e calda. — Cortou em pedaços antes de deixar à vontade para quem quiser pegar.

Julia foi lá e enfiou um pedaço inteiro na boca. Talia suspirou rindo, botando a mão levemente na boca, seus olhos brilhando.

Damian riu de forma cínica falando alguma coisa com Cassandra, que parecia divertida.

Jason deu uma leve mordida dessa vez. Que gente esquisita.

A tenda estava iluminada apenas pelo brilho quente das lamparinas. A comida já tinha sido servida, e as crianças riam baixo em um canto, mas Jason estava inquieto demais para relaxar.

Talia colocou o tabuleiro de xadrez improvisado entre eles. As peças gastas, de formatos desiguais, pareciam ainda mais ameaçadoras à luz trêmula.

— Você joga? — a voz dela saiu calma, quase suave, mas os olhos avaliavam cada detalhe dele.

Jason bufou. — Já joguei com o B, com o Al. Nunca foi divertido.

— Comigo também não será — respondeu, deslizando a primeira peça.

Eles jogaram em silêncio por alguns minutos. Jason movia as peças rápido, como se estivesse atirando balas no tabuleiro, sem pensar no próximo passo. Talia, ao contrário, tocava cada peça com a ponta dos dedos como quem medisse o peso da vida e da morte antes de movê-la.

— Você joga como quem quer vencer logo. — Talia disse, tomando um peão dele.
— E você joga como quem quer que eu me torture antes de perder. — Jason retrucou, sem levantar os olhos.

Talia sorriu de canto, quase divertida. — Você ainda não entendeu. O xadrez não é sobre ganhar. É sobre controlar o espaço. Ver além do que o adversário imagina.

Jason apoiou o queixo na mão, analisando o tabuleiro. — Isso parece papo do B.

Ela não desviou o olhar. — Talvez. Mas diferente dele, eu não quero moldar você. Só quero ver até onde você consegue ir sem se quebrar.

Jason moveu o cavalo e finalmente arrancou uma das peças dela. Um sorriso pequeno se abriu em seus lábios.
— Viu? Não sou tão burro.

— Não, você não é burro. — Talia disse baixo, seus olhos brilhando de um jeito estranho. — Mas ainda joga com raiva. Com pressa. Como quem já espera perder.

Jason congelou por um instante. A lâmina daquelas palavras entrou fundo, porque eram verdadeiras demais. Ele desviou os olhos, fingindo se concentrar no tabuleiro.

Damian, que até então apenas observava, comentou com frieza:
— Se continuar assim, estará em xeque em menos de quatro jogadas.

Jason ergueu a sobrancelha e riu sem humor. — Vocês são uma família muito divertida, sabia?

Talia apenas moveu a rainha, silenciosa, e deixou o tabuleiro falar por ela.

Jason estreitou os olhos, avançando com a torre. — Tá vendo? Agora eu abro caminho. Você não esperava por isso.

Talia inclinou a cabeça levemente, o rosto iluminado pelo clarão da lamparina. — Não? — Moveu um peão à frente, como se fosse uma jogada qualquer, irrelevante.

Jason mordeu o lábio. Sabia reconhecer blefe em mesa de cartas, mas com ela era diferente. A serenidade dela o irritava. Moveu outra peça, empurrando o ataque.

Damian se inclinou um pouco mais para ver o tabuleiro. — Você está caindo na armadilha dela. — O garoto disse seco, quase impaciente.
Jason bufou. — Não pedi torcida.

Talia manteve os olhos cravados nele. — Deixe. Cada um precisa aprender sozinho onde está a armadilha.

Jason riu, curto. — E você é cheia de enigmas. Já tentou falar como gente normal?
— Já. Mas gente normal não sobreviveu ao que eu sobrevivi.

As mãos dele hesitaram por um segundo sobre a peça. Mas só um segundo. Jason avançou de novo, empurrando o ataque com confiança. Talia parecia não se mexer, mas seus dedos já seguravam a rainha.

O silêncio se estendeu. Cassandra observava imóvel, olhos escuros brilhando. Julia mordia o lábio, segurando o riso. Damian balançava a cabeça, impaciente.

Então, sem pressa, Talia deslizou a rainha pelo tabuleiro. A peça atravessou o espaço e pousou firme, elegante, no quadrado certo.

Jason piscou. O coração pulou no peito. Ele seguiu a linha da jogada e o que viu fez o estômago afundar.

— Não... — murmurou. — Não pode ser.

Talia apenas apoiou o queixo na mão, o olhar tranquilo.
— Xeque. — disse, com uma calma cortante. — Mate.

Jason olhou para o tabuleiro outra vez. Sim, era inevitável. Ele tinha se deixado levar. Achou que estava abrindo caminho, mas cada jogada tinha sido prevista por ela. Ele tinha corrido em linha reta para a própria queda.

Julia soltou uma gargalhada curta. — Sabia que você ia perder.

Jason se recostou, irritado, mas rindo de si mesmo. — Eu até achei que estava ganhando.

— Esse é o perigo. — Talia disse, recolhendo as peças com cuidado. — O inimigo sempre deixa você acreditar que tem uma chance.

Jason cruzou os braços, os olhos semicerrados. — Então é isso que você faz com todo mundo?

Talia o encarou por um instante, sem sorrir. Depois, com um suspiro leve:
— Só com quem vale o esforço.

O silêncio voltou, denso. Jason desviou o olhar, mas por dentro a frase queimava como fogo.

Jason respirou fundo, o maxilar travado. O tabuleiro improvisado ainda estava diante dele como uma acusação, cada peça no lugar exato que Talia queria.

Damian quebrou o silêncio primeiro, com aquele tom seco, quase venenoso:
— Você perdeu porque joga com raiva. Só olha para o ataque, nunca para o que está atrás.

Jason virou a cabeça devagar, encarando o garoto. — Obrigado pela aula, professor. Quer jogar no meu lugar?

— Não. — Damian levantou o queixo, orgulhoso. — Eu já sei como você pensa. É previsível.

Jason riu, mas foi um riso sem humor. — Previsível, é? Você fala como um velho de setenta anos.

— Velhos vencem guerras. — Damian rebateu sem hesitar. — Meninos que riem demais, morrem cedo.

Jason arqueou uma sobrancelha, mordendo a língua para não retrucar. Tinha algo no jeito daquele moleque que lembrava Bruce — aquela arrogância fria que se confundia com certeza.

Cassandra, por outro lado, permaneceu calada. Os olhos escuros fixos nele, como se estivesse pesando cada reação. Depois, devagar, ela pegou uma das peças caídas — um cavalo preto — e a empurrou até o colo de Jason.

Ele olhou para a peça, confuso. — O que é isso, uma lembrancinha da derrota?

Cassandra apenas inclinou a cabeça, como se a resposta fosse óbvia. Não falou nada, mas Jason entendeu: ela estava dizendo que ele ainda tinha um papel no tabuleiro, mesmo que não tivesse notado.

Jason girou a peça entre os dedos. — Cavalo, huh? Sempre no movimento torto, nunca em linha reta. — Ele soltou um riso fraco. — É, faz sentido.

Damian bufou. — Não se iluda. O cavalo é útil só quando a rainha manda.

Jason estreitou os olhos, mas Talia interrompeu antes que a tensão explodisse.
— Basta. — disse com firmeza, recolhendo as últimas peças. — Cada jogo tem seu vencedor. Cada derrota, sua lição.

Jason a observou em silêncio, mas não respondeu. Só enfiou o cavalo no bolso e levantou-se, com aquela inquietação queimando sob a pele.

Damian o seguiu com o olhar, avaliando-o como se já decidisse se Jason era aliado ou ameaça. Cassandra, em contraste, manteve aquele silêncio carregado, mas quando Jason cruzou a lona da tenda, sentiu — pela primeira vez — que ela o aceitara, ainda que minimamente, dentro do círculo deles.

Jason saiu da tenda sem olhar para trás. O ar da noite era pesado, abafado, mas ainda assim pareceu mais leve do que aquele espaço onde todos os olhos o atravessavam. A lua mal surgia entre as nuvens, um reflexo metálico que lembrava a lâmina da faca que ele ainda carregava no cinto.

A cada passo, o som da sua própria raiva parecia ecoar no peito. O moleque de dez anos o havia chamado de previsível. A garota de quinze o tratara como um enigma mal resolvido. E Talia… ela o havia derrotado no tabuleiro como se já tivesse vencido antes mesmo de ele mover a primeira peça.

Jason tirou o cavalo do bolso. A pedra gasta refletia a luz da fogueira distante. Ele girou a peça entre os dedos.
— Cavalo, hein? — murmurou para si. — Sempre torto. Nunca reto.

Lembrou-se de Cassandra deslizando a peça até ele, sem dizer nada. Aquilo o incomodava mais do que o deboche de Damian. Pelo menos com o garoto ele sabia onde estava pisando: provocação, orgulho, arrogância. Mas Cassandra… Cassandra parecia enxergar algo nele que nem ele mesmo queria encarar.

Jason chutou uma pedra, nervoso. — Merda.

Dois capangas, Marco e John, se aproximaram devagar, como cães farejando a tensão do dono.
— Tudo certo, chefe? — Marco perguntou, a mão já coçando perto da arma.
— Certo é uma palavra forte. — Jason respondeu seco, guardando o cavalo no bolso. — Mas tô respirando, o que já é um milagre.

John forçou um sorriso. — Quer que a gente fique de olho neles? Nas mulheres, nas crianças?
Jason balançou a cabeça. — Não. Eles já sabem que a gente olha. Não são burros. Se for pra vigiar, tem que ser eu.

Houve um silêncio desconfortável. Jason percebeu o peso das próprias palavras: ele queria estar lá dentro, por vontade própria. Não era só missão. Não era só Bruce. Algo nele já estava puxado para aquele círculo estranho.

— Que merda de tabuleiro é esse que eu fui parar? — murmurou, antes de enfiar a peça de volta no bolso.

Jason riu, mas por dentro algo se mexeu. Gente esquisita.

As noites seguintes seguiram a mesma rotina. Jason voltava sempre com desculpas esfarrapadas — cigarros, comida, informações. Aos poucos, Damian soltava mais palavras, ainda ríspidas, mas já não o ignorava. Cassandra continuava em silêncio, mas Jason percebia que os olhos dela eram menos hostis, mais curiosos. Julia permanecia a barreira mais dura, sempre lembrando quem ele era: mafioso. Mas até ela, em certo momento, aceitou um cantil de água que ele ofereceu sem falar nada.

Talia, porém, era enigma. Às vezes, olhava para ele como se fosse apenas uma peça útil. Outras vezes, com uma ternura e atenção que não parecia falsa.

Damian e Cassandra discutiam em tom baixo, quase como um código próprio. Cassandra, poucas palavras, mas gestos precisos. Damian, feroz, mas com uma lógica fria. Jason observava os dois como quem encara animais selvagens em um zoológico — fascinantes, mas perigosos.

Talia entrou, ainda com a aura imperturbável, a mesma que usava no xadrez. Apenas o passo dela silenciou parte dos homens no corredor. Jason endireitou-se, tentando disfarçar o respeito instintivo que sentia.

— Você ainda pensa na derrota? — Talia perguntou, cruzando os braços.

Jason bufou. — Não foi derrota. Foi... didática.

Damian riu baixo, um som cortante. — Chamamos de xeque-mate.

Jason lançou-lhe um olhar torto. — Ninguém perguntou a sua opinião, pestinha.

Damian estreitou os olhos. Cassandra ergueu uma sobrancelha, quase divertida.

— O xeque-mate foi necessário — disse Talia, simples, como uma sentença.

Jason passou a mão pelos cabelos. — Claro, claro… todos contra mim. Parece até Gotham.

Talia não sorriu, mas havia um brilho nos olhos. — Você joga bem. Melhor do que muitos que já joguei. Mas ainda não aprendeu a ver o tabuleiro inteiro.

Jason se calou, desconfortável. Ele não sabia dizer por que as palavras dela pesavam mais do que deveriam.

— Se serve de consolo, nem o pequeno príncipe me venceu no tabuleiro de xadrez. — Talia comentou bagunçando o cabelo de Jason.

Jason ficou parado. A mão de Talia era quente.

— Tt. Ainda. — Resmungou Damian.

— Peste. — Jason falou com um sorriso.

Bruce observava as fotos recém-chegadas no monitor do computador. As imagens eram tremidas, tiradas às pressas por uma das câmeras ocultas que Jason havia enviado. Ainda assim, eram claras o suficiente.

Cassandra, Damian. Julia.
O rosto de Talia.

Bruce se inclinou para frente, os dedos apertando a borda da mesa. Não havia dúvida. Era ela. Mais velha, sim. Mas ainda ela.

— Então você voltou… — murmurou, sozinho, a voz grave ecoando nas paredes da mansão.

Na tela, uma foto provavelmente tirada por um dos capangas, Jason aparecia no fundo de uma das fotos, rindo de algo que Damian dizia. Bruce ficou imóvel diante daquela cena, como se assistisse a uma memória que não lhe pertencia.

De volta ao vilarejo, Jason se levantou, inquieto.
— Vocês quatro têm essa... coisa. Esse jeito de se entenderem sem falar nada. É como se eu fosse o estranho no ninho.

Damian cruzou os braços. — Porque você é.

Cassandra, no entanto, inclinou a cabeça, pegou a mão de Jason e começou a escrever em sua mão em inglês com a ponta dos dedos. Não precisa ser.

Jason piscou, surpreso.

Talia caminhou até ele, pousando a mão sobre seu ombro. O gesto foi firme, mas caloroso — pesado, como um selo.
— Está no tabuleiro agora, Jason. Seja uma peça… ou torne-se o jogador.

Jason engoliu em seco, sem saber como responder.

E, em Gotham, Bruce observava cada segundo, cada detalhe.
Sabia que Talia não fazia nada sem propósito.
Sabia que Jason estava sendo testado.
E sabia que, de uma forma ou de outra, aquele garoto estava no centro do jogo.

No elevador das Empresas Wayne, o sorriso Brucie ainda estava colado em seu rosto. Um charme vazio, automático, que distribuía a secretárias, investidores, ao próprio reflexo no espelho polido do elevador. Assim que entrou na sala privada, o sorriso escorreu como uma máscara derretida. Afrouxou a gravata e foi até a janela, olhando Gotham como se o vidro fosse um confessionário.

A porta abriu sem aviso. Tim entrou primeiro, a pressa quase infantil contrastando com a frieza de seus 13 anos. Vestia uma camiseta de Game of Thrones, que em qualquer outro garoto seria apenas nerdice — mas nele era calculada distração.
Dick veio atrás, impecável em seu terno, exalando charme e descaso, como se a vida fosse um palco em que ele sempre tivesse a última fala.

— Lazarus. — Tim quebrou o silêncio, irritado. — Esse sobrenome não existe. Nada nos registros, nada nos bancos de dados, nada nas rotas internacionais. É como se tivesse sido inventado.

Dick se deixou cair na cadeira de Bruce, girando devagar. — Invenção boa. Tem impacto. Podia até ser o nome de uma marca de luxo.

— Não foi inventado. — A voz de Bruce saiu baixa, controlada demais. — Foi escolhido.
Tim franziu o cenho.
— Escolhido por quem?

Bruce girou o copo vazio na mão, o âmbar do uísque ainda manchando o fundo. Seus olhos foram até os dois garotos — seus filhos, espertos demais para o próprio bem.
— Talia nunca usou o sobrenome do pai.

Dick parou de girar a cadeira, agora atento.
— E qual é?

Um silêncio longo. O peso de memórias que Bruce não queria revisitar.
Finalmente, ele deixou escapar:
— Al Ghul.

O ar da sala se tornou pesado.
Tim empalideceu. — Como... Ra’s al Ghul?
Dick endireitou a postura, o sorriso morto no rosto.
— Você está dizendo que ela é filha dele.

Bruce assentiu. — Ra’s tem três filhos. Duas meninas. Você não encontra nada porque não é permitido. Mas se andassem pelo Oriente, ouviriam o nome dela sussurrado nos mercados de ouro, nos becos onde as joias trocam de mãos. Talia é erudita, sofisticada... mas também gananciosa. Ela nasceu para governar a Liga dos Assassinos, e sabe disso.

Tim cruzou os braços, inquieto. — Então Jason está no meio disso sem nem perceber. Mas por que ela estaria num vilarejo doente, caindo aos pedaços?

Dick sorriu, mas não havia nada de calor naquele gesto. Apenas gelo herdado de Bruce.
— Se você não falar com o Jay, eu vou.

Bruce não respondeu. Apenas serviu o uísque, pousando o copo sobre a mesa como quem encerra uma confissão.

Dois dias depois. O cheiro de carne tostando no improvisado fogão de ferro dominava o espaço. Julia, de guarda, observava desconfiada enquanto alguns capangas iam e vinham com caixas.

Jason estava agachado perto do fogo, cutucando a frigideira com uma colher de metal.
— Quem diria... de todas as coisas que eu poderia estar fazendo hoje, estou virando cozinheiro de acampamento.

Damian fez uma careta. — Está queimando.

— Não tá queimando, peste. — Jason resmungou. — Tá... caramelizando.

Cassandra, sentada ao lado, inclinou-se para olhar, depois levantou uma sobrancelha para Jason.

— Queimando. — Repetiu Damian, com aquele jeito conciso que não permitia discussão.

Jason ergueu a colher como se fosse uma espada. — Vocês dois só sabem criticar, né? Aposto que nunca fritaram um ovo na vida.

Damian, sério: — Eu não desperdiço tempo com inutilidades.

Jason bufou, mas não conseguiu evitar o riso. — Você é impossível, Dami.

Cassandra estendeu a mão, pegando um pedaço de pão duro que estava numa cesta. Partiu ao meio e entregou para Damian, depois para Jason, sem dizer nada. O gesto foi tão simples e natural que Jason piscou, surpreso.

— Tá vendo? — ele comentou, tentando esconder a estranheza daquilo. — Aí está. Trabalho em equipe.

Damian resmungou, mas aceitou o pão. Cassandra apenas mordeu o dela em silêncio.

Por alguns minutos, não havia guerra, nem tabuleiro, nem Gotham. Apenas três pessoas mastigando pão duro e comida meio queimada, rindo baixo de piadas ruins que Jason insistia em contar. Ele acabou comentando nas piadas que tem dois irmãos, sendo que um é mais velho e outro mais novo. Engraçado como mais relaxada você está mais camadas de quem você é se sobressaem.

Do outro lado do campo, Talia os observava em silêncio. Não interveio. Apenas acompanhou, como quem lê o movimento das peças sem precisar tocar nelas.

E foi nessa trégua silenciosa que Jason percebeu os primeiros sinais. Mathias havia sumido. Luiz, encontrado morto — ou o que restava dele. O corpo estava dobrado de maneira impossível, o rosto congelado num sorriso grotesco, dentes expostos demais, como se alguém tivesse arrancado a pele e forçado músculos para cima. O riso não vinha do cadáver, mas parecia vibrar no ar.

No peito, uma carta suja de sangue. Um desenho simples, feito a lápis: um palhaço de rosto comprido, olhos vazios e uma boca que ocupava quase toda a face.

Jason sentiu o estômago revirar. Marco e John tremiam, pálidos. John vomitou atrás de uma árvore, mas Jason fingiu não ver.

O telefone vibrou. Ele atendeu de imediato, a voz fria.
— B, preciso de ajuda aqui. O patrocinador da Sheila deu as caras.

Do outro lado, não era Bruce.
— Jay, precisamos conversar.

Jason piscou, surpreso.
— Dick?

Jason apertou o celular contra a orelha, o coração martelando.
— Dick? Que porra é essa? Cadê o B?

Do outro lado, a voz veio calma, quase ensaiada.
— O velho está... ocupado. Achei melhor falar com você direto.

Jason bufou, cuspindo raiva.
— Ocupado? Eu tô com um cadáver sorridente com um bilhete de lápis de cor no meu quintal e ele tá ocupado?

Um silêncio pesado. Então Dick falou, num tom mais baixo:
— Jason, ouça. Essa mulher... Talia... ela não é qualquer uma.

Jason fechou os olhos, recostando-se contra a árvore mais próxima. — Já percebi isso, gênio. Agora me fala algo que eu não saiba.

— Ela tem conexões que você não imagina. — Dick insistiu. — O sobrenome dela é Al Ghul. E se eu tô certo... ela não tá ali por acaso.

Jason ficou em silêncio por um segundo, depois riu seco.
— Engraçado. Você fala como se soubesse de tudo. Mas é só mais uma encenação, não é? O Brucie te passou o script e você acha que eu vou engolir.

— Não é isso. — A voz de Dick endureceu. — Olha, você não precisa confiar em mim. Mas precisa entender: você está sendo testado. Não por Bruce.

Jason apertou os dentes.
— Testado pra quê?

— Sobre alguma merda que Bruce fez. — Dick deixou escapar, como quem revela mais do que devia. — O velho pode fingir que não, mas ele ainda... ainda deve algo a ela. E se ela resolver cobrar... você vai estar no meio disso, querendo ou não.

Jason ficou mudo, sentindo a raiva se transformar em algo mais pesado. Dívida. Aquela palavra queimava como ácido.

— Então é isso. — Sua voz saiu baixa, carregada. — Ele me manda pra cá como se fosse só mais uma missão suja, mas me mantém porque ele não teve coragem de encarar ela.

Dick não respondeu de imediato. O silêncio foi resposta suficiente.

Jason cuspiu no chão, furioso.
— Me escuta, Grayson. Eu não sou peça de tabuleiro de ninguém. Nem dela. Nem dele.

Dick suspirou do outro lado, cansado, mas ainda tentando manter o controle.
— Eu sei, Jay. É por isso que eu tô te avisando. Só... não faz nada idiota. Mantém a cabeça no lugar.

Jason riu, mas não havia humor.
— Idiota? Você esqueceu com quem tá falando.

E desligou antes que Dick pudesse responder.

Jason ficou parado ali, o celular ainda quente na mão. O lugar parecia observá-lo, cada folha um olho. E pela primeira vez, ele sentiu que não estava sendo caçado por um filho da puta psicopata— mas por algo muito maior, que vinha de Gotham e atravessava o sangue da própria família Wayne.

Jason se afastou do vilarejo. O peso da ligação ainda queimava dentro do peito.
Sem pensar, ergueu a pistola, descarregando tiros na árvore mais próxima até que o pente vazio caiu no chão. Mas não bastava. Nunca bastava.

Soltou a arma e, num acesso de raiva, chutou o tronco com força, depois socou a madeira até os nós dos dedos sangrarem. O impacto reverberava pelos ossos, mas a dor era um bálsamo.
Quando a árvore não cedeu, ele se voltou contra uma pedra maior. Pegou-a com as duas mãos e atirou no chão, estilhaçando-a em pedaços. Respirava como um animal acuado, peito arfando, suor escorrendo pela têmpora.

— Interessante. — A voz soou atrás dele, calma, musical, quase zombeteira. — Você quebra coisas... mas não resolve nada.

Jason girou, os olhos faiscando. Talia estava ali, a sombra do fogo distante iluminando seus traços perfeitos. Nas mãos, duas espadas curvas, leves, que pareciam dançar com a brisa. Ela jogou uma para Jason, e ele a agarrou sem pensar.

— Quer brincar? — Jason cuspiu, cerrando os dentes.

— Quero ver até onde vai sua fúria. — Ela respondeu, erguendo a própria lâmina em guarda.

Jason avançou primeiro, golpes rápidos, violentos, cada estocada carregada com meses de rancor. Talia desviava com fluidez, como se previsse cada movimento, seus olhos verdes nunca piscando. O choque das lâminas ecoava no ar noturno, metálico, brutal.

— Você luta como alguém que quer matar o próprio reflexo. — Ela disse, girando a espada e quase desarmando-o.

Jason rosnou.
— E você fala como se soubesse quem eu sou.

— Eu observo. — Talia respondeu, recuando apenas um passo antes de contra-atacar. — Seu pai te treina na sombra, seus irmãos te cercam de comparações. Você sangra por atenção e ainda assim se esconde.

Jason travou as lâminas contra as dela, o rosto a centímetros do dela.
— Não fala deles.

Ela arqueou uma sobrancelha.
— Então fala você.

Jason empurrou, separando as espadas. Voltou com mais força, cada golpe mais pesado, menos técnico.
— Dick é o favorito. O perfeito. Todo mundo adora. Ele pode sorrir, matar ou enganar, e ainda assim parece um príncipe de capa azul.
Outro golpe.
— Tim... o gênio. O mais novo, mas já melhor do que eu em tudo. Não precisa de músculos, ele vence só com o cérebro.
Outro golpe, ainda mais forte.
— E eu? Eu sou o erro. A caridade que o velho nunca quis, mas não teve coragem de jogar fora.

Talia aparou, firme, sem esforço. O som metálico ecoou como um gongo.
— E seu pai? — Ela perguntou, quase sussurrando. — O que é ele para você?

Jason ficou imóvel por um instante, a respiração falhando.
A raiva, pela primeira vez, deu espaço para outra coisa.
— Ele é... tudo. — A voz saiu quebrada. — E ao mesmo tempo, nada. Ele me salvou... mas nunca me viu. Não de verdade.

As palavras pesaram no ar mais do que qualquer espada.
Talia baixou a lâmina, sem pressa, e Jason fez o mesmo, exausto. O silêncio entre eles não era vazio, mas denso, quase íntimo.

— Você não é invisível, Jason. — Talia disse, olhando fundo nos olhos dele. — Só está cercado de homens que não sabem ver.

Jason apertou o punho sobre o cabo da espada, engolindo seco. Pela primeira vez em muito tempo, não tinha resposta.