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Baby, it's Halloween

Summary:

“Amor, é Halloween, podemos ser qualquer coisa”
— Halloween, Phoebe Bridgers

Wednesday vivia atormentada pelas sirenes e a vida corrida do hospital, até que o dia de Halloween chega e o fantasma de Enid Sinclair começa a lhe atormentar.

"— Não o amo. Mas esperaria. — Wednesday revirou os olhos com a resposta.

— Então estaria fazendo isso por conveniência, para provar que seus valores estão acima de seus sentimentos. — Enid olhou para ela, ofendida.

— Eu tenho consideração! É diferente. — Não iam chegar em um consenso. — E você, esperaria?

Wednesday pensou. Pensou no quarto que entrou hoje de madrugada, pensou como seria ver Enid todos os dias e esperar que ela abrisse os olhos para ela. Por algum motivo, pareceu ser o certo a fazer.

— Se eu a amasse, sim, a esperaria."

Notes:

Olá, eu escrevo muito pouco aqui, mas acredito que vá chegar a mais pessoas. Tenho apego por essa história, porque tem significados profundos para mim. Eu demorei anos para fazer essa fic e até mudei de ship, só consegui trazer essa história para frente quando adaptei para Wenclair. Espero que aproveitem!

Work Text:

“Amor, é Halloween, podemos ser qualquer coisa”

— Halloween, Phoebe Bridgers

As sirenes sempre estavam presentes, todas as horas do dia, principalmente pela noite. A mulher de cabelos pretos grunhia e colocava o travesseiro em cima do rosto esperando o som ser abafado. Contava algumas vezes para ver se conseguia dormir, mas era só o tempo de vir outro alarde da ambulância. Então tinha os olhos pregados no teto, como se dormisse de olhos abertos.

Wednesday Addams odiava morar perto de um hospital.

Morar perto do maior hospital da cidade era uma má ideia, ela já deveria saber. As sirenes, a correria, a sensação estranha de saber que esperança e dor estão bem ao seu lado, por vezes, na mesma pessoa. Para ela, tudo era muito simples. A doença vinha, o corpo cedia e não havia esperança. Não havia nada a ser feito.

Era incômodo nas reuniões de moradores, os condôminos viviam reclamando do barulho e ela só cruzava os braços, com cara de poucos amigos e olhava no relógio, esperando a reunião acabar. Sabia que alguns olhares estavam voltados para si, como se ela fosse culpada por aquilo. Viver lá era um inferno, só não entendia porque seu aluguel continuava tão caro...

Na verdade, Wednesday odiava sua vida. Isso incluía onde vivia, com quem convivia, as flores que não duravam uma semana em seu apartamento, suas despesas, seus gastos supérfluos para tentar preencher o vazio toda a vez que fechava os olhos, e, principalmente, o lugar que trabalhava.

Wednesday odiava trabalhar em um hospital.

Principalmente naquele hospital, justamente em frente ao seu prédio. O lugar sugava todas as suas energias e ela ainda conseguia sentir sua presença mesmo não estando lá. Ela era médica, conforme o desejo de sua avó, e seguiria por esse caminho indesejado, por quanto tempo não sabia.

Wednesday odiava tocar em pessoas, odiava a pressão diária de preencher protocolos, acompanhar pacientes que sabia que tinham pouquíssimo tempo, odiava sangue e, principalmente, odiava ter que ser simpática (ao mesmo, tentar) com familiares, mesmo sabendo que a qualquer momento poderia dar a pior notícia de todas. Ainda assim, ela se arrastava pelos corredores, fazendo seu último ano da residência. Depois viria mais anos de especialização e, se tivesse sorte, viveria em um laboratório isolado, longe das sirenes e de pessoas, num geral.

Ela não conseguia descansar pela noite, mesmo tendo uma vida movimentada logo pela madrugada. Aquele era seu único dia de folga, algo que ganha como se fosse um presente trabalhando 12 horas diárias. Nessas folgas, Wednesday sentia aquele vazio que não se explica. Aqueles que se tem quando a vida é um peso muito grande, sem ter espaço para aproveitá-la.

Não tinha um hobby, um amigo fora do hospital, às vezes, achava que nem dentro dele, nada. Ela assistia algo na TV e esperava o dia amanhecer para recomeçar... Mesmo odiando.

Isso causava olheiras profundas, humor ácido e ausência de sorrisos. Puxava o ar, tentando manter a calma. Às vezes, sentia vontade de voltar a escrever e ignorar todo o resto.

O telefone tocou, lógico que em algum momento ele tocaria, não sabia porque continuava acreditando que não seria acionada. Enquanto chutava as cobertas para ir em direção a sala de estar pegar seu casaco e sua bolsa, pensou:

“Se me acordarem mais uma vez, é bom que alguém esteja mesmo morrendo.”

Aquela madrugada era um pouco atípica, dia 31 de outubro, véspera de um dia sagrado para a igreja católica.

“A véspera do ‘Dia de Todos os Santos’ se torna uma véspera sagrada também, ou seja, Halloween”.

Pela manhã, veria a tradição do dia se projetar, junções de símbolos que culminaram o que a festa é hoje, o distanciamento do sagrado e encontro com o terror, transformado em misticismo popular. Abóboras, vampiros, zombies, fantasias de coelho sexualizadas, doces, travessuras, crianças, festas universitárias, existe de tudo um pouco naquele dia.

Mas antes disso, para Wednesday e sua família inteira, de ascendência mexicana, a data se aproximava do “Día de los muertos”, o dia em que seus entes queridos retornam a terra para visitar os vivos.

Wednesday poderia ser cética com quase tudo, menos com essa data. Levava a sério, prova disso é que antes de sair de casa, se inclinou e colocou mais uma flor para deixar o altar improvisado cada vez mais pronto. “Um pouco de alegria chegaria”, era isso que ela insistia em acreditar, criando pequenas doses de esperanças infundadas.

Suspirou, passando a mão nos olhos pelo cansaço e falta de sono tomando água. Analisou seu quarto, ainda desnorteada e foi até o banheiro. Pegou suas coisas e cruzou a rua, entrando no hospital, mais uma vez. Algum dia isso tinha que acabar.

Até a manhã muita coisa aconteceria, ela não sabia o quanto.

Sua emergência era uma paciente bem velha, chamada Georgina. Ela lembrava de sua avó, Goddy Addams. A senhora insistia que todas as ocorrências de pressão alta fossem atendidas pela jovem médica. E ninguém negaria o requisito de uma das maiores mantenedoras do hospital. Mesmo não entendendo o desejo da mais velha, Wednesday atendia suas necessidades, até forçava um esboço de canto de lábios para ela, demonstrando carinho do jeito... Bem, dela. Mesmo assim, Georgina, assim como os outros pacientes era apenas um problema que deveria se ocupar em resolver. Nunca criou sequer uma conexão com seus pacientes.

Georgina não tinha culpa de que ela odiava aquele lugar. Fez de tudo para conversar com ela, até que a pressão voltasse a estabilizar e a medicou. Até isso acontecer, já era tarde da madrugada.

A senhora agradeceu sua médica de confiança com um beijo e lhe desejou boa noite. Wednesday fez uma careta, mas dessa vez sorriu, sem os dentes, pela primeira vez no dia.

A jovem sabia que no momento que entrasse no hospital novamente, teria que ficar por mais tempo, atualizando e fazendo novos protocolos. Então, resolveu matar o tempo encostada no balcão da recepção, a médica olhava a TV, lia formulários e analisava cada detalhe insignificante daquela sala. O paciente que atendeu minutos antes estava bem e agora em observação.

Foi quando sua amiga tocou em seu ombro, causando uma reação imediata de desconfiança. Bianca tombou a cabeça, analisando-a com um meio sorriso, prestes a lhe dar um consolo.

— Vamos, Wendy, vamos fazer algo, vai ser halloween. Você é gótica, acredito que goste da data. — Bianca comentou, por também estar acordada, trabalharia até tarde, mesmo também sendo sua folga. Nessas horas, ela queria estar jogando um jogo de terror. Amnésia, era seu jogo favorito daquela época do ano. Assim como “Santa Claus in trouble” era o seu favorito de jogar no dia do natal.

— Eu não sei se quero. Estou muito cansada esses dias, não consigo dormir. Se não são pelas ligações, são pelas sirenes. — Reclamou audivelmente. Nesse mesmo instante, mais uma equipe passou correndo. Bianca era uma médica brilhante e Wednesday era só um projeto de médica medíocre. A diferença de seus olhares por aquela cena era gritante, enquanto Bianca olhava com compaixão para a pessoa que passava pela maca, Wednesday se resumia a uma pura e completa apatia.

— Você sabe que pode dormir na minha casa, da próxima vez. Minha mãe vai ter que aceitar dividir o espaço. — Wednesday ficou um pouco sem palavras, e nem era porque sua amiga estava oferecendo sua casa de abrigo... Mas não sabia mais como era dormir sem sirenes.

— Eu sei, obrigada. Mas vou passar o dia de Halloween atendendo crianças na porta e vendo filme de terror, obrigada. Afinal, eles têm que respeitar a minha folga em algum momento do dia... — Ela ouviu um suspiro ao seu lado e olhou para o relógio pela décima vez no período de cinco minutos. “Cada vez que olhar no relógio, você espera a morte chegar”, se lembrava vagamente de ler isso em um livro.

Sabia que suas amigas estavam preocupadas, que sua cabeça não estava nos melhores dias, mas queria acreditar que era uma fase. Queria acreditar que essa tristeza que sentia era passageira.

Quando mais uma sirene pode ser ouvida do lado de fora, Bianca se aproximou para pegar no seu ombro, mas sentiu que ela iria ficar tensa, então desistiu.

— Até Weds, boa noite. Se cuida, ouviu?

— Sim, tudo bem, pode deixar. Boa noite.

Wednesday deitou sua cabeça no balcão da recepção, só queria dormir... Depois que adormeceu, as sirenes não a incomodaram mais.

(I)

— Addams! — A voz de repreensão da sua chefe chegou aos seus ouvidos.

Wednesday acordou com torcicolo, um torcicolo insuportável. Sentia seu pescoço doer demais. Olhou para o relógio, da ultima vez que olhou para o aparelho eram duas da manhã, agora eram quase cinco.

— Desculpa, desculpa, prometo que nunca mais vou dormir no balcão! — Comentou, séria e orgulhosa, em defesa de sua dignidade.

— Você prometeu isso da última vez!

Era sábado, não precisava trabalhar. Queria poder ter dormido em sua cama, acordado com calma, tomando seu café assistindo algum desenho. Tudo bem, sua casa estava totalmente bagunçada, mas iria arrumá-la para receber as crianças do prédio e descolar uma fantasia também... Em algum momento... Quando tivesse tempo. Era a ladainha que vivia repetindo a si mesma.

Quando tivesse tempo...

Mas as sirenes, com suas luzes vermelhas vibrantes a cegaram por um instante, a fazendo recobrar a consciência de que ainda estavam brigando com ela.

— Sra. Weens, okay, okay, me desculpa. Agora eu posso ir para casa? Por favor, eu não consigo mais. — Choramingou, suplicante. Só queria dormir e nunca mais acordar.

Sra. Weens pegou em seu cenho franzido e balançou a cabeça.

— Tudo bem, mas Addams, é sério, hospitais não são uma brincadeira ou passatempo, você não pode tratar isso como mais uma das suas distrações. É seu trabalho! Tente achar sentido a tudo isso...

Weens olhou nos olhos de Wednesday e viu um vazio que nunca havia encontrado. A garota era competente, não poderia pedir para ela desistir, mas ela definhava naquele hospital, como as pessoas ali doentes. Viu a membro da sua equipe forçar o sorriso e balançar a cabeça, respondendo:

— Vou tentar. — Mentiu. As palavras “distrações” e “sentido” ainda martelavam na sua cabeça. Não tinham significado algum para si.

Wednesday sabia que não tinha vocação para a medicina. Pessoas olham para a profissão como ascensão social, sua avó queria isso para ela, por ser uma, seus pais não se opuseram sabendo de seu gênio. Mas vocação vai além de dinheiro, vem dos olhos que se enchem de vontade de querer explicar, examinar e pensar para resolver um problema complexo da saúde humana. Por fim, trata-se de ajudar os outros, como no próprio juramento. Ela sempre se comparava a Bianca, ela, sim, era a vocação em pessoa.

Suspirou andando pelos corredores. Pessoas sofriam diariamente entre aquelas paredes. Ela havia acabado de sair das suítes e entrou na área compartilhada da unidade de terapia intensiva, continuou andando sem olhar para os lados, não queria ver, não suportava ver.

— Ei! — Alguém a chamou, Wednesday quis ignorar e continuar andando. — Ei, você aí mesmo de jaleco. — Wednesday fechou os olhos, “Não, não, eu vou para casa”. Chega! — Você não é médica?

— Não. — Wednesday se virou para quem a chamava, era uma garota. De cabelos longos castanhos e franja. Seu comentário saiu mais ácido que o necessário, mas foi o mais sincero possível, não era médica...

— Então o que está fazendo aqui? — Perguntou, ressabiada.

— Como é Halloween, entrei aqui escondida, coloquei um jaleco e estou me fingindo de médica. — A garota percebeu o seu sarcasmo e sorriu um pouco. Wednesday não entendia porque quanto mais era intragável, mais as pessoas achavam que ela estava brincando.

— Você pode ver a minha amiga? — Addams olhou para o lado, eram 5:30 da manhã, ela poderia estar dormindo, ela deveria estar dormindo.

Se conseguisse.

Suspirou cansada e levantou a cabeça e os ombros mais uma vez. Era o seu dever, sua profissão. Deveria estar com um sorriso no rosto ao pensar que “salvaria” alguém. Isso não era algo que somente um Deus tinha poder?

A morena foi entrando no quarto na sua frente, ela a seguiu mecanicamente.

“okay, já você vai para casa, só mais essa pessoa”.

Quando adentrou no quarto, percebeu as cortinas bem abertas recebendo o sol da manhã. O quarto era bem organizado, existia um terço ao lado da cama, rosas frescas, chinelos bem arrumados, como se a pessoa fosse se levantar a qualquer momento. Porém, no café da manhã servido pelo hospital só existia uma xícara, um prato, para um acompanhante. A manta estava bem arrumada na cadeira ao lado.

Ao olhar para paciente, Wednesday prendeu a respiração.

Em meios aos tubos e de um eletrocardiograma, havia uma jovem de cabelos loiros cor palha deitada na cama. Seu rosto era pálido, muito pálido, suas mãos não se mexiam, olhos bem fechados e corpo coberto por um edredom fino.

Não existia sinal de estímulo algum, o que se caracterizava como coma.

Wednesday respirou fundo, ela odiava esses casos, eram os piores, era como se a pessoa estivesse morta. Ao contrário dos outros médicos, ela não lidava bem com a morte, ela refletia escondida toda vez que existia uma perda. Não importava o que diziam para a consolar, ela sabia que aquilo era irreversível. Ela teria que dar notícia a família, amigos, possíveis amores.

Ver aquela garota a deixava consternada.

Ela olhou para o lado, em um quadro estava as informações básicas da paciente. Enid Sinclair, um ano em coma, além disso, existia o nome da médica que a monitorava e quais medicamentos eram usados por ela.

— Achei que a sonda estava com problemas. — Wednesday murmurou alguma concordância com o comentário da garota e se aproximou do equipamento. Rapidamente notou que se tratava de um tubo obstruído. Ajeitou como pode, até algum técnico olhar com mais calma.

— É para estar certo agora... Mas vou pedir para alguém verificar se continua funcionando para a senhorita não voltar a se preocupar mais. — Wednesday não havia falado de Enid, como se ela fosse se preocupar, ela estava falando que a pessoa que acompanhava não iria mais se preocupar. Era como se Enid e sua situação fosse ao máximo evitada por ela.

— Certo, obrigada. — A garota que a acompanhava estendeu a mão para si. Wednesday olhou por alguns momentos para a mão estendida e apertou de leve. — Eu sou Yoko.

— Addams. — Assentiu fraco e pôs as mãos no bolso. O sono estava começando a se apropriar de seus sentidos.

— Doutora, você se incomodaria de ficar no quarto por um tempo? Preciso pegar algo para mim na cantina e não queria deixar Enid sozinha. — Wednesday olhou para a paciente pela primeira vez e engoliu em seco.

Ela assentiu letargicamente, mesmo não entendo o conceito de se incomodar em deixar alguém em coma sozinha, afinal, a paciente não percebe estímulos a sua volta, nem pode ouvir, comer, cheirar. Mesmo assim, Yoko sorriu para ela, agradecida, saindo do quarto.

— Eu já volto, obrigada.

Wednesday fitou Enid e logo depois dirigiu seu olhar para o outro lado do quarto onde tinha o sofá. Parecia tão confortável... Ela foi em direção ao móvel e reclinou seu corpo.

Ela não devia estar fazendo isso, ela não devia estar fazendo isso, ela não... E foi olhando de canto de olho para a garota no quarto que tudo foi ficando escuro novamente.

(II)

— Quem é você? — Wednesday acordou em sobressalto, olhando para o lado. Acreditou que estava sonhando e grunhiu, coçando os olhos. — Ei, estou falando com você.

Wednesday se assustou dessa vez, não era um sonho... Virou para o lado assustada. A paciente estava com a sobrancelha franzida, provavelmente confusa.

— O-oi. — Não sabia o que fazer, todos esses anos, isso nunca havia acontecido. Se levantou rapidamente, endireitando o jaleco. — Bom dia.

Deveria analisá-la, checar os batimentos, pressão, se a coordenação motora estava correspondendo. Tudo para saber se depois de um ano em completa inconsciência Enid tinha alguma sequela. Mas estava em uma situação tão constrangedora, que gostaria de chamar algum médico (de verdade) o mais rápido possível. Afinal, uma paciente acordou de um coma e se deparou com ela cochilando.

— Vou chamar um médico. — Wednesday ia sair do quarto, quando Enid a questionou.

— E você não é uma? — oh trevas, ela não poderia ter acordado uma hora mais tarde?

— É... — Pense, pense. — Hoje é dia 31 de outubro, e no Halloween podemos ser qualquer coisa, logo... Hum, eu invadi esse hospital, me vesti com esse jaleco e agora... Eu preciso chamar um médico para você.

Enid ainda estava pálida, ela com certeza precisava de alguns cuidados depois de tanto tempo em coma.

— Você me parece tão inexperiente que eu teria acreditado. Agora, se puder me ajudar, minha garganta dói. — Wednesday estava vermelha de vergonha, a situação acabou de ser piorada. “Idiota, idiota”, se crucificou.

Ela pediu licença e pegou um palito e abriu a boca de Enid, pegou na sua garganta, para testar as cordas vocais, abriu seus olhos colocando feixes de luz fortes e ainda testou os reflexos. Os olhos acinzentados lhe fitavam, enquanto fazia isso.

— Acredito que a senhorita esteja em perfeito estado. — Sorriu involuntariamente, ela ainda não tinha percebido, mas foi uma das primeiras vezes que agiu no automático. Sorriu sem pensar.

Enid suspirou aliviada. Ela olhou para a médica, raciocinando suas palavras. 31 de outubro, o último dia que se lembrava com clareza era 27 de setembro.

— Você disse que estamos no Halloween, certo? — Wednesday percebeu a burrada que cometeu, com certeza seria um choque para ela, a revelação deveria ter demorado mais. — Eu estava em coma? — Deduziu pelo procedimento, mas esperou a médica assentir, quando essa o fez, ela continuou raciocinando. — Fiquei em coma por um mês?

Wednesday abriu a boca diversas vezes, tentando formular uma resposta que não revelasse tudo. Enid a olhou confusa pela falta de resposta imediata.

— É... — Balbuciou uma tentativa, mas foi salva por Yoko entrando desavisada. Wednesday esperou o suco de caixinha que estava em suas mãos cair, afinal, era uma surpresa acordar bem depois de um ano de coma, certo?

— Enid? — Sinclair não tinha contato com a sua amiga fazia praticamente um ano, até onde se lembrava, e agora ela estava lá, no hospital que estava. — Como ela está?

— Yoko! — Gritou eufórica. Mas novamente, mesmo com toda a emoção da garota, não houve manifestação por parte de Yoko. Ela não saiu correndo para abraçar Enid com tudo que tinha guardado, olhou para Wednesday com o mesmo semblante e reduziu a velocidade.

Enid riu para Wednesday ao seu lado, observando sua amiga. Afinal, nem havia sido tanto tempo, três dias, óbvio que ela não ficaria triste. Mas tinha para si que coma era uma situação complicada, deve ser desesperador para quem fica esperando.

— Yoko, faz tanto tempo que não lhe via. Você não estava no Japão? — Comentou e a amiga sorriu triste para ela.

Wednesday ficou esperando uma resposta vindo da outra, mas nada. O olhar triste ainda pousava sob Enid na cama. Ignorando a pergunta, Yoko olhou para a médica dessa vez.

— Nenhuma complicação?

Wednesday olhou para Enid mais uma vez, confusa, mas negou qualquer confusão. Não era sua responsabilidade a falta de responsabilidade afetiva dos outros.

— Aparentemente não, mas preciso passar o parecer para quem cuidava dela. Vou deixar vocês a sós. — Olhou para Sinclair dessa vez. — Desejo que fique bem, senhorita.

Comentou olhando para Enid, que sorriu para ela e assentiu. Yoko achou fofa a interação, logo depois de ter achado Wednesday tão sombria e apática, principalmente com a amiga em coma.

Depois disso, a médica não ouviu mais a conversa das duas e voltou a andar pelo corredor. Logo encontrou Bianca e avisou que a paciente do quarto 304 teve melhora e seria liberado. Bianca achou estranho Wednesday comentando sobre uma paciente que havia acabado de sair de um coma, as sobrancelhas da amiga levantaram ao ver o esboço de emoção na voz da amiga.

Algo havia tocado suas emoções.

Wednesday ficou olhando para a porta e sorriu minimamente. Era a primeira vez que realmente se sentiu satisfeita com alguma examinação. A paciente estava bem.

(III)

Wednesday chegou em casa por volta das 8 horas da manhã. Ela rapidamente foi ao banheiro para se desfazer de suas roupas ou qualquer bactéria que possa ter carregado de lá, depois que o quente da água abafou seus pensamentos, ela olhou para a sua cama e se deixou afundar no mundo dos sonhos. Ela estava tão cansada.

O seu celular chamou e ela grunhiu. Tateou o celular cegamente para atender sem olhar, o desligando.

— Dra. Addams. — Wednesday estranhou e abriu levemente os olhos, ouviu a voz de uma garota ao fundo, mas ignorou, querendo verdadeiramente chorar de cansaço.

— Eu... — Quis implorar, queria muito implorar. Grunhiu contra o travesseiro no próximo chamado, “Addams”.

O celular que achou que tinha desligado voltou a tocar freneticamente. Quando olhou, não existia sequer uma ligação, ou alarme pra ser desligado. Mas o sono era tão avassalador que ela sequer se importou.

— A paciente quer apenas falar com você. — Wednesday franziu a testa, a voz parecia cada vez mais perto.

— Senhora Georgina está mal de novo? — Murmurou, contra o travesseiro. Eram 16 horas da tarde e a exaustão a impediu de arrumar a casa, ou qualquer fantasia.

Quando tivesse tempo...

Día de los muertos era o seu feriado, mas a vida que levava tirou toda a sua vontade de aproveitar.

— Não, é sobre a paciente que saiu do coma esta manhã. — Wednesday bocejou, ainda perdida e se encaixou do outro lado da cama, ainda ouvindo a voz que não reconhecia direito.

— O que ela tem? — Enid não parecia alguém difícil de lidar, então algo estava errado.

— Ela entrou em choque quando descobriu que ficou um ano em coma. Ela precisa da sua ajuda. — A voz suspirou, deveria estar cansada também, já que estava como plantonista.

— Eu preciso ir mesmo? — Ela quase completou com “é minha folga”, mas não queria irritar mais alguma supervisora chata que poderia a colocar facilmente em uma escala pior do que já era.

— Addams, sim, você precisa. É... é a única chance que eu tenho. — A voz se tornou um pouco chorosa e Wednesday começou a notar que existia algo de errado naquela “ligação”. Levantou a cabeça levemente, entreabrindo seus olhos e olhando de soslaio para o canto que a voz saia.

O susto que tomou foi tão grande que a médica se desequilibrou de desespero e caiu com lateral do corpo no chão, causando uma dor interessante. Mas o grunhido de horror não passou despercebido. A voz morreu em sua garganta, não conseguia acreditar na peça que a sua cabeça estava pregando.

Na ponta de sua cama, estava a mesma paciente que atendeu na madrugada, sentada encolhida, com a cabeça apoiada nos joelhos e lágrimas translucidas que não chegavam a molhar a cama.

Seus cabelos ao invés de estarem em um loiro apagado, estavam com mechas coloridas, azuis e rosas. Lábios mais vivos, suéter era vibrante também, magenta e alaranjado. Wednesday não deixou de reparar nos olhos, agora com cores, eram azuis e intensos.

— O-o que? — Tentou tomar um pouco de consciência do que estava acontecendo em sua frente. Era cética, não poderia acreditar que eram a mesma pessoa.

— Eu queria entender tudo isso... — A menina fungou, escondendo seu rosto entre seus braços.

— Enid? — Wednesday perguntou, cautelosa.

— É... A garota que estava de coma. — Sua voz saiu abafada.

— Mas... Mas o que aconteceu? Eu toquei em você, estava quente. Eu teria notado se estivesse morta. Seus batimentos estavam estáveis. — Wednesday estava confusa e questionando sobre tudo que havia aprendido nesses anos de medicina. — Não posso crer que esteja morta.

Enid segurou-se até quando pode, mas explodiu em um choro doloroso. Ela gostava tanto de viver... Como pode o destino ter sido tão cruel?

(II)

Wednesday andava de um lado para o outro na sua sala de casa. Enid já estava mais recuperada e a observava de forma inquieta. Suas mãos variavam em pousar no seu pescoço, arranhar seus braços, puxar seus cabelos.

— Doutora... — Tentou chamá-la pela terceira vez em 3 minutos.

— Ainda não, Enid! — Nunca acreditou em fantasmas. Para ela, tudo era envolvo pela ciência e projeções corpóreas nunca foram explicadas por artigos científicos.

Sua mãe sempre lhe disse que ela tinha um dom, que mais cedo ou mais tarde aparecia para ser reivindicado. Segundo ela, dons eram dádivas e os espíritos não gostavam quando alguém os ignorava. Mas até aquele momento, o “corvo” era quem a regia seu espírito, lhe dava visões e poderes psíquicos.

Mas passou grande parte da sua adolescência ao lado da avó, quando brigava com sua mãe e a mulher sempre a manipulou para seguir pelos caminhos mais “ordinários”, desde de cedo a introduziu na medicina, aproveitando de seus interesses mórbidos sobre a morte, deixando claro que ter a noção da vida era apenas uma passagem para algo maior. Era muito melhor do compreensões nebulosas sobre o destino... Visões que tomariam sua alma pouco a pouco.

“Wednesday não vai acabar como Ofélia, Mortícia, eu não deixarei”, numa discussão acalorada a mais velha retorquiu, olhando para sua filha com desprezo.

Então, Wednesday cresceu cética, renegando tudo que viria a ser. Mas hora ou outra, os espíritos cobrariam esse presente, que a Addams não teve consideração de aceitar.

“Desfeita”, sussurrava a voz.

— Preciso ir ao hospital, me certificar se está viva. — Concluiu a médica, doente de aflição e perguntas sem respostas.

Enid assentiu e se levantou, ajeitando suas roupas como se fosse ser vista, sem notar, andou em linha reta, passando dentro do sofá e outros móveis da casa. Wednesday olhou para a cena e suspirou, começando a achar que ainda estava perdida dentro do seu sonho e tudo não se passava de uma piada de mal gosto de sua mente esgotada.

Sinclair andou ao lado da Addams pela rua, até adentrarem o hospital.  Elas tinham acabado de passar pelo corredor do quarto de Enid quando encontraram do lado de fora Sra. Weens conversando com Yoko.

As duas lançaram o olhar para ela e se calaram. Sua chefe a olhou apreensiva, enquanto Yoko sorriu com uma tristeza reprimida. Larissa a olhou de uma maneira indecifrável, sem esconder um pouco de consternação ao notar seu rosto tão abatido. A chefe se aproximou e quase tocou no seu antebraço, mas desistiu, apenas indo para o canto, na esperança que Wednesday a acompanhasse.

— Escute, Addams, a paciente teve seu pior dia, foi constatado morte cerebral. Falamos com a família e todos concordaram em se despedir no dia de hoje. — Assim que ouviu a fala, quase soltou um sorriso irônico. — Vão desligar seus aparelhos até o final da noite.

— Vou entrar. — Anunciou recebendo apenas um aceno com a cabeça da sua supervisora.

Weens ficou calada, provavelmente constatando que Wednesday estava em estado de choque. Às vezes, ficava com dó de ver uma criatura tão miserável andando pelos corredores. Já a Wednesday suspirou, olhando para o espírito que chorava ao se ver na própria situação.

Ter ouvido aquelas palavras foi o choque mais duro que poderia receber. Como assim seu corpo estava cedendo? Não era só deitar nela mesma e se reconectar ao próprio corto? E depois dos aparelhos serem desligados? Para onde iria? Para o céu?

Enid se olhava na cama do hospital, relembrando de toda a sua trajetória, cada dor, cada rejeição, até mesmo do fatídico acidente. Mas também se lembrou dos momentos que fez sua curta existência valer a pena. Afinal, o que mais queria era viver.

Wednesday ajeitou o jaleco, comparando as duas figuras. Uma cheia de vida e outra prestes a não existir mais naquele plano. Imaginou que nada poderia machucar mais Enid do que a própria realidade de se deparar com a sua própria morte “em terceira pessoa”.

Addams não tinha muito que fazer ali, decidiu que o melhor a se fazer era tirar Enid de sua própria presença e esperar o dia terminar. Quem sabe ao final dele, aquela presença também desapareceria e deixaria de lhe importunar. E isso passaria a ser apenas mais um dos episódios estranhos de sua vida, como aquele da sua aula de anatomia que viu uma mão se mexendo sozinha e fazendo gestos para ela. Definitivamente estranho...

— Como se sente com tudo isso? — Perguntou de maneira sóbria e desprovida de muitas emoções, o que fez Enid agradecer um pouco. Andavam na sua, lado a lado, Wednesday prendeu seu olhar nos olhos de Enid, o sol entrava pela sua íris azulada, tornando-o mais claro ainda.

Enid ficou silenciosa por longos instantes, o que era novidade e até assustou a Addams. Sinclair suspirou algumas vezes, seus dedos eram amassados uns pelos outros, em claro sinal de ansiedade e inquietação.

— Enid? — A chamou, mais uma vez, ouvindo mais um grunhido.

— Minha vida está uma bagunça. —Sentenciou, encontrando os olhos da médica pela primeira vez em muito tempo. Estavam assustados e apreensivos.

— Se você tivesse mesmo acordado do coma, diria um psicólogo que pode dar assistência ao seu estado mental, hoje seria seu primeiro dia de recuperação. — Wednesday falava com uma leve surpreendente até para o seu estado de espírito habitual. — Essa confusão é natural, mas não consigo te tirar desse sentimento e nem posso não te dar razão sobre o que está sentindo.

— Você não faz ideia o que é perder um ano da sua vida! — Enid explodiu, chateada com a situação e a falta de expressões de Wednesday, que apenas respirou fundo depois da fala. — Você não sabe o que é isso, perder o crescimento dos seus sobrinhos, ver os seus colegas se formando antes de você, perder o namorado que não foi capaz de te esperar... — Enid apenas desabafou e isso claramente Wednesday não conseguia fazer ideia da gravidade, nunca entenderia. — E isso na seria demais se eu tivesse apenas acordado do coma.

— Enid, pelo menos, você viveu! — Falou sem pensar e isso fez com que ambas se calassem.

Vida... Wednesday tinha vivido um ano trabalhando naquele hospital, mas vivera mesmo todo esse tempo? Vivia no automático, desejando um dia ter paz, nem que fosse a eterna.

Era uma constatação melancólica que fazia naquele momento, ambas estivessem presas na complexidade humana envolta em sociedade, buscando achar alguma coisa que poderia se caracterizar com “identidade”, em um mundo mais caótico e imprevisível que o normal.

A fragilidade da vida de Enid, que nem sequer havia acordado e tinha poucas horas antes de todos os seus aparelhos serem desligados. Era um pesadelo e o silêncio de duas pessoas que pensavam demais parecia já ensurdecedor.

 — Por que então veio até mim? — Wednesday perguntou depois de um tempo, perdida naquela sensação sufocante de se questionar sobre suas escolhas.

— Você foi a única que me viu nesse estado, viu a minha alma. Tocou em mim, como se eu ainda estivesse aqui. Como se eu ainda estivesse viva. E é só isso que eu desejo nesse tempo que me resta.

— Eu não sei como eu faço isso... — Wednesday murmurou baixo.

— Não importa. Não agora, não mais. — Enid deu um passo para frente. — Eu não quero morrer sozinha, Wednesday.

A fala da garota fez sua nuca gelar. Ela só tinha poucas horas de vida e havia decidido, por escolha, ou não, estar passando com ela.

— Eu pensei que iria me ajudar, mas tudo bem se não conseguir. Eu só quero... Viver.

— Enid, eu não posso. — Franziu o cenho.

— É Halloween, podemos ser qualquer coisa. — Wednesday a olhou como se fosse louca. — Vamos lá, doutora Addams, eu só quero ser outra pessoa. Não uma alma condenada.

“Como se fosse possível eu colocar uma máscara para me proteger, só por hoje”.  

Wednesday olhou para seus próprios pés, como se buscasse por algo dentro de si. Estaria disposta de se adaptar e mudar, mesmo que isso signifique perder a própria identidade por um dia?

Pensou por fim se não era sua vida uma máscara que usava, pelas realidades que enfrentava. Ao contrário de Enid, no dia, seria ela mesma, sem máscaras.

— Okay, podemos fazer isso.

(IV)

Estar andando nas ruas com uma fantasma não estava nos planos da Addams para o Halloween, por mais que o clima estivesse propício. As pessoas já estavam fantasiadas sem pudor algum no meio da rua e cruzavam por elas, eram dezenas de pessoas com capas, dentes falsos, estacas de madeira, pregos, máscaras e sangue.

Mal sabiam elas que existia uma verdadeira assombração por perto e Wednesday nem estava fingindo falar com uma.

— Se eu pudesse, me vestiria de lobisomem. — Enid resmungou, tentando inutilmente tomar o café que Wednesday havia comprado.

— Uma criatura lupina com pelos, cauda e focinho? — Wednesday tentou esconder seu desgosto por meio de palavras de indiferença.

— É, quando eu era criança, morávamos próximo a uma floresta. Eu ouvia os lobos em alguns momentos da noite, hum... Pensava que seria legal viver com eles. — Sinclair desistiu do copo, pensava que sua barriga iria roncar, mas nada. Se sentir vazia daquele jeito era inusitado.

— Primitivo. — Wednesday apenas disse e olhou para os lados, mais e mais pessoas se aglomeravam no café. — Precisamos ir, talvez achar algum tipo de saída mais fácil. A exposição a muitas pessoas pode deixar seu plano astral inquieto, talvez você comece até a perder a conexão.

Wednesday não sabia daquelas informações, usava apenas deduções lógicas, somado a tudo aquilo que ouvia seus pais falando no jantar. Era um conhecimento ancestral dos Addams, afinal.

Se levantaram, em direção a porta, até que toparam com algumas pessoas. Enquanto a médica foi quase jogada para o chão, Enid ficava indignada, apenas sentindo as pessoas passarem por ela.

Uma das últimas pessoas que passaram, eram duas senhoras, uma vestida de padre e outra de cartomante. Wednesday quis ignorar, mas foi impossível pelo comentário que ouvira.

— Consigo sentir... Existe uma presença aqui. — Sussurrou para a outra senhora. — Está agitado. Brilhante demais para se tratar de uma alma perdida.

Enid olhou para Wednesday buscando resposta, pois havia ouvido muito bem. Wednesday apenas fez um movimento com o braço deixando claro que tentaria cuidar da situação.

— Ela consegue me ouvir? — Perguntou mais para a jovem Addams do que para aquelas que pareciam questionar se havia ali uma presença espiritual.

— Escute, as ondas... Posso senti-las, são de cores lindas... Azul e rosa, como o pôr do sol. — Wednesday, que antes estava cética, começou a se questionar das visões da senhora.

— É possível que uma pessoa esteja em planos diferentes ao mesmo tempo? — Quis saber.

— Você quer dizer entre a vida e a morte, criança? — Wednesday olhou para os olhos da mulher, eram negros e intensos, como a pele da mesma, retinta. Os cabelos grisalhos terminavam de contrastar o mistério.

— Sim, um fantasma em vida. — Wednesday ainda jogava meias palavras, buscando por respostas mais completas.

— Raros casos... É preciso estar atento a direção do vento. — Disse a senhora, antes de se distrair. — Veja, Astrid, eles têm uma bebida de morangos com chocolate. — A mulher antes de sair, tocou no antebraço de Wednesday, que aceitou o toque a contragosto. — Se misture aos fantasiados, Addams, seu poder precisa se manifestar sem que outras criaturas percebam.

“Addams”, então, a senhora sabia seu nome. Seria interessante, se não parecesse um tormento. Assim que a mais velha desapareceu, a quantidade de pessoas também pareceu reduzir.

— Tá... O que foi isso? — Enid perguntou assustada, mas parcialmente animada com o fato da sua energia ser transmitida.

— Acredito que tenha sido um conselho, vamos.

(V)

A loja de fantasia estava cheia, pessoas saiam e entravam de lá, procurando pela fantasia ideal e algo que mais se aproximasse de seus gostos. Wednesday não conseguia achar algo que pudesse lhe trazer algum agrado.

— Nada é interessante para você? Como? — Enid já tinha se animado com todas as roupas das gôndolas, era quase um ultraje para ela a médica estar tão apática. Toda a hora ela soltava um “Você viu essa fantasia da Barbie?”, “E essa de sereia?”, “Meu Deus, essa do Homem-Aranha, perfeita!”.

— Não me vejo usando nenhuma dessas fantasias ridículas. —Comentou, revirando os olhos.

— Bom... — Enid ultrapassava as araras sem menor dificuldade. — Se eu estivesse aqui em corpo, com certeza, já teria arrumado alguma. Mas segundo aquela cartomante, você precisa ter uma.

— Eu sei, mas não quero. — Além de feias, eram caras.

— Okay, acho que encontrei uma. — Enid apontou para um conjunto preto, simples, com duas orelhas pretas. — Você só precisa achar uma maquiagem pra fazer o focinho e...

— Sem maquiagem. — Wednesday aceitou, dando de ombros e bufou, pegando a peça, indo imediamente ao provador. Enid decidiu não a acompanhar para dar privacidade a ela. Minutos depois a garota voltou com cara de poucos amigos e se mostrou minimamente para a fantasma.

— Está perfeita! —Exclamou, indo em sua direção animada.

— Agora podemos ir. — Wednesday já ia em direção a porta quando notou que o espírito não a acompanhava. Olhou para trás e Enid ainda parecia olhar hesitante para as fantasias. — O que houve?

Enid estava segurando o choro e Wednesday deu mais alguns passos na sua direção.

— E só que... provavelmente é meu último halloween e as últimas coisas que eu farei em vida, sabe? — Perguntou de um jeito retórico. — Eu queria poder usar algumas dessas fantasias, porque sempre foi uma das minhas datas preferidas.

Wednesday pensou e acreditava fortemente que a época favorita da outra era o natal, pois era tão vibrante quanto aquele pavão escandaloso. Mesmo assim, sentiu que devia algo a ela, afinal, era seu último dia no plano, querendo ou não.

— Tenho uma ideia. — Wednesday rapidamente botou a ideia em prática. Colocou um manequim na frente do espelho e pegou uma roupa muito semelhante a sua, preta da cabeça aos pés e depois colocou uma orelha mais semelhante a um cachorro no topo da cabeça do manequim. — Coloca a sua cabeça bem encaixada no manequim, suficiente para aparecer sua projeção.

Enid não questionou, já seguindo a linha de raciocínio e agradecida que Wednesday estava acatando um de seus pedidos, sabendo que estava triste pela sua derradeira situação. Foi até o manequim, muito mais alto que Wednesday e encaixou seu rosto. Imediatamente, se sentiu mais realizada.

— Incrível. — Sentia que era seu corpo, colocava a cabeça de um lado para o outro, gostando de se enganar pelo seu reflexo. — Estou sentindo falta da maquiagem, entendo que você não queira colocar, mas eu gostaria.

Wednesday suspirou e foi em direção a um dos tubos pretos de cor que a loja disponibilizou para os clientes completarem a fantasia. Pegou um o indicador um pouco de tinta e foi em direção ao espelho, de ponta de pé, conseguiu alcançar a altura da cabeça do manequim pelo reflexo. Fez o focinho e as linhas do lado, sinalizando o bigode de cachorro, ou seria lobo?

Aquela simples ação de sujar o espelho da loja fez Enid realmente começar a derramar suas lagrimas prateadas.

— Pensei que fazendo isso, a deixaria feliz. — Wednesday não conseguia entender aquele ser. Era muito mais complexo do que imaginava. Mas se deixou admirar pelos olhos brilhantes, vendo o seu próprio reflexo no espelho.

— Eu estou, por isso estou chorando. — Definitivamente, a médica não entendia o conceito, raras vezes viu lágrimas que não fossem de pura dor. Pensou até não existir algo assim.

Por reflexo, levou sua mão até Enid, pensando que inutilmente provaria de suas lágrimas para saber como elas poderiam estar felizes. Assim que tocou na cabeça do manequim, sentiu que estava realmente molhado. Se surpreendeu, sentindo a pele da fantasma.

Logo, ambas quebraram o contato pelo terror. Wednesday olhava para a ponta do seu dedo molhado, sem sequer entender como era possível. Já Enid levou a mão até o rosto, sentindo-se pela primeira vez quente, mesmo com o gelado das mãos da Addams.

— Como? — Quis saber, olhando perplexa para a médica, mas nem mesmo ela sabia. Apenas levou seu polegar até as vestes, o secando e puxou um papel para limpar o espelho de tinta.

—Vamos, o dia está se passando rápido. — Já era quase sete horas da noite.

(VI)

— Você comentou sobre um namorado... — Estavam andando na rua, às vezes passando por algumas casas para pegar doces. Na realidade, nenhuma das duas sabia o que fazer para aproveitar o tempo tendo poucas horas de vida. Era inútil tentar achar alguma solução, quando nenhuma delas de fato sabia o que estava acontecendo.

— Ah sim, o que tem ele? — Enid estava brava com a sua recente descoberta.

— Você comentou que ele não a esperou acordar, é isso? — Wednesday não sabia o motivo de seu interesse repentino. Apenas tinha desejo de saber.

— Foi o que eu escutei quando sai da minha projeção e busquei algumas atualizações. Não dá para acreditar que ele simplesmente considerou que eu estava morta e partiu para outra. — Aquilo ainda a deixava consternada, mesmo sem se importar de fato com Ajax.

— E você acha que ele deveria ter esperado? Eu não sei... você poderia ter acordado daqui 2 anos, ou como estamos no dia de hoje, você com os aparelhos desligados. — Era cética, mas não poderia esperar uma resposta satisfatória para a situação.

— Bom, eu achei que viveríamos longos anos juntos. Me chame de boba, mas eu teria esperado se ele estivesse no meu lugar. — Enid tentou chutar as pedrinhas da rua, inutilmente.

— Você sequer o ama para fazer uma promessa como essa? Numa situação hipotética, ainda por cima.

Isso deixou Enid calada por alguns segundos.

— Não o amo. Mas esperaria. — Wednesday revirou os olhos com a resposta.

— Então estaria fazendo isso por conveniência, para provar que seus valores estão acima de seus sentimentos. — Enid olhou para ela, ofendida.

— Eu tenho consideração! É diferente. — Não iam chegar em um consenso. — E você, esperaria?

Wednesday pensou, pensou no quarto que entrara hoje de madrugada, pensou como seria ver Enid todos os dias e esperar que ela abrisse os olhos azuis para ela. Por algum motivo, pareceu ser o certo a fazer.

— Se eu a amasse, sim, a esperaria. — E a resposta pairou no ar, como se fosse uma promessa forte demais para ser digerida rapidamente.

(VII)

O dia foi se passando e Enid tentava esconder o quão assustada ela estava com o seu fim. Wednesday havia procurado um lugar mais calmo, em meio a uma colina, imaginando que em uma situação normal, Enid não gostaria de se desesperar em meio à multidão. Wednesday foi com sua lambreta, da qual não usava, por morar na frente de seu trabalho. Ela mesma começou a ficar perdida sobre o que deveria fazer.

— Enid, se acalme. — Começou, pacificadora.

— Calma, Wednesday? Não é você que vai morrer daqui há pouco. Eu não consigo sentir nada. Sei que meus pais devem estar se despedindo de mim nesse momento. E eu... Meu Deus, não sei nem como isso aconteceu. — Enid andava de um lado para o outro, inquieta.

— Enid, okay, eu sei, isso é terrível. Eu também não sei o que fazer. — Wednesday se sentou na grama, frustrada. E recolheu suas pernas para perto do peito. — Essa é a coisa mais estranha que já aconteceu na minha vida monótona. Eu nem quero viver na maior parte do tempo!

As palavras de Wednesday a calaram por algum momento. Enid tombou seus olhos para a grama pela primeira vez, vendo a situação frágil e perdida que a outra se encontrava. Ambas estavam perdidas.

— Por que não sai de todas essas coisas? —Enid se sentou com cautela ao seu lado, olhava o perfil de Wednesday, escondido em seus braços.

— Eu não sei, tem dias que eu não quero acordar, mas mesmo assim continuo me arrastando. Me afastei da minha família que era a única coisa que eu realmente tinha certa afeição. O hospital me mata, mesmo estando longe fisicamente. E tem vocês... Eu não aguento tudo isso. — Wednesday se sentia no limbo, perdida.

— Você tem um bom coração, Willa, consigo sentir. Você esteve comigo o tempo todo. Talvez as pessoas vejam exatamente o que você não consegue ver... Amor. — As palavras ecoavam em sua cabeça. Ela virou seu rosto para o lado, Enid estava com sua projeção cada vez mais fraca.

O tempo estava acabando.

— Escute. — Enid se aproximou mais de si e tentou, ao que parecia inútil colocar a mão no seu joelho, mas Wednesday se surpreendeu ao sentir o peso dos dedos no local. A alma não transpassou seu corpo, pelo contrário, estava firmemente no local. Como se estivesse de corpo presente. Ao tocar em Wednesday, pode ouvir no fundo de sua consciência sua mãe dizendo que iria sentir sua falta. Mas não poderia se concentrar em alucinações agora.

— Wednesday, você precisa viver. É o seu propósito estar aqui por algum motivo. Você só precisa que esse propósito a encontre. — Enid tentou agora pegar na bochecha da outra e novamente, Wednesday sentiu um calor desconhecido em sua face. — Não podemos viver de mascaras o tempo todo, nunca conseguimos cobrir o que somos por inteiro. Espero que hoje seja o primeiro dia que você não esteja mais com ela em seu rosto. Afinal, podemos ser qualquer coisa.

— Qualquer coisa? — Observou Enid assentir com confiança.

— Qualquer coisa.

Wednesday sentiu a imensa urgência de se segurar em Enid, seus olhos agora estavam mais cinzas e suas cores menos vibrantes. Temia que não fosse pela noite.

— Você vai ir bem consigo mesma? — Quis saber e viu Enid chorando, mas assentindo com um sorriso.

— É, um ou outro arrependimento, mas vivi bem. Não é como se nós decidíssemos a hora certa. — Respondeu conformada.

As duas ficaram olhando o céu estrelado e as luzes da cidade. As mãos estavam entrelaçadas e nenhum realmente entendia como conseguiam se tocar. Dessa vez, sabendo exatamente disso, Wednesday quis experimentar.

—Enid, eu cumpri tudo que queria no dia de hoje, mas queria que você me concedesse uma vontade. — A loira se virou, perdendo a força no olhar, mas ainda mantinha o aperto forte em sua mão.

— Qual seria? — A dor a incomodava agora, já era quase a hora.

— Para beijar alguém, precisamos tirar as máscaras. Me concederia tal ação? — Wednesday viu o sorriso de Enid. O beijo não precisava significar nada além de despedida, não era pra significar.

Se inclinou, sentindo que Enid a acompanhava na ação. De olhos fechados, tatearam o escuro até sentirem os lábios uma da outra em um beijo calmo. Aquele encontro impossível parecia certo ao trocarem mais uma vez de posição para encaixar melhor o beijo. Wednesday até jurou que sentia a respiração da outra em sua bochecha e ainda o calor de sua boca.

Se separaram ao sentir que Enid estava começando a desaparecer.

— Vamos fugir, por favor, Enid, aguente mais um pouco, eu...

Wednesday se inclinou mais um pouco para alcançar a outra e, dessa vez, não sentiu algo além do nada.

Enid havia sumido.

 

 

 

 

 

 

(VIII)

Wednesday derramou uma lágrima solitária, de novo na mesma posição de comprimir a perna contra o peito. A tristeza a preenchia de maneira irracional e forte. Mas ao abrir os olhos, tudo começou a fazer sentido. Como não havia pensado nisso?

Desesperada, Wednesday ligou para a única pessoa que estaria por ela, por mais que tentasse negar, seria em vão.

Mortícia Addams.

— Mãe... — A voz que transbordava uma emoção contida pode ser ouvida pela mãe, que teve seu peito logo apertado. Nenhuma mãe gosta de perceber que seus filhos são infelizes.

— Mi reina, fale comigo... — Mortícia manteve sua calma.

— Eu tive uma experiência.

— Experiência?

— Eu estava vendo um fantasma o dia todo. — A vidente levantou o canto da boca, não escondendo o quão satisfeita havia ficado com aquela revelação.

— Sabia que um dia estaria conosco, corazón nublado, só estava esperando a hora. Sua vó sempre tentou te tirar do seu verdadeiro dom com medo que ficasse igual sua tia e...

— Mortícia, escute. — Wednesday chorava agora, desesperada. — Enid se foi.

— Enid?

— A fantasma. Eu... Foi apenas um dia, mãe, mas eu senti... Foi diferente e agora... Ela...

— Deixou o plano, cariño?

Wednesday balançou a cabeça positivamente por mais que não a visse. Seus lábios tremiam segurando o choro que continuava a percorrer suas bochechas, sem pedir permissão.

— Temo que sim, eu a beijei e logo em seguida ela desapareceu. Os aparelhos seriam desligados hoje.

Mortícia franziu o cenho, tocou o telefone que fluía a energia da filha e teve uma visão esclarecedora. Ao contrário das visões de Wednesday, que sempre seriam pessimistas pela influência do corvo, Mortícia era uma pomba, a energia era mais otimista.

— Disse que ela era um fantasma, mas... Falou que os aparelhos seriam desligados hoje. Isso não é possível, mi reina. Fantasmas são pessoas mortas.

Mortícia falou com calma, pois não sabia como abordar o assunto com a filha, mas precisava persuadi-la a fazer a coisa certa.

— Eu achei... — Franziu o cenho, tentando pensar, desconhecia do mundo sobrenatural. — que como ela estava morrendo hoje, a projeção astral poderia ser feita.

— Almas só vagam incertas quando ainda tem algo a completar na terra. No caso, a morte gera essa insatisfação. — Falou, com calma. — Como foi a sua primeira interação com ela?

Wednesday lembrou da examinação que fez em Enid, nos olhos cinzas fixos aos seus, tão diferentes do calor azul que transmitia.

— Achei que havia acordado do coma. Toquei em sua mão, na garganta, checar os batimentos, estava perfeitamente bem. — Wednesday falava com dificuldade pela garganta arranhada, mas precisava finalmente entender.

— Você tocou nela e depois ela se tornou um fantasma?

— Precisamente.

— Mi reina... — Mortícia sentiu seu próprio coração se apertar. Não poderia acreditar. — Preciso que me responda com precisão o que vou perguntar agora.

Wednesday ficou calada e Mortícia entendeu que a filha lhe obedeceria.

— Você acha que tem a mínima possibilidade de chegar a tempo no hospital antes dos aparelhos serem desligados?

Wednesday se levantou do chão, em sobressalto, olhando para o pulso. 23:40, não daria tempo.

— Não, Mortícia, não teria esse tempo. — Wednesday sentiu seus batidos sempre tão baixos explodirem na altura do peito.

— Vou pedir pro seu tio Fester fazer uma visitinha o hospital e criar distrações. Você precisa ir para lá, Wednesday, agora! E Wednesday?

— Fala...

— Se lembre que sempre terá sua família. — Desligou antes da resposta de sua filha.

Wednesday não entendeu, só aceitou. Sentia que precisava confiar em sua mãe. Correu o mais rápido que pode até a sua lambreta, se esquecendo até de colocar o cinto.

— Bianca, a paciente. Desligaram os aparelhos dela?

— Ainda não. Não conseguiram, estava agendado para 13 minutos atrás, porque sua mãe acabou de sair do hospital, acompanhada dos irmãos e tios. Mas Wendy, não venha até o hospital, alguém invadiu a cozinha e explodiu três paredes. Disse que não iria parar. Ordenou que todos os médicos parassem imediatamente o que estavam fazendo, ou iria atirar. A polícia tá tentando conter ele agora mesmo.

Wednesday sorriu minimamente por aquilo. Seu coração se aqueceu levemente. Tinha se esquecido que tinha uma família que se importava com ela... E foi aquela fala que precisou para desligar a ligação e apertar o acelerador.

Wednesday chegou descabelada no hospital, jogou a lambreta de qualquer jeito na entrada, não se importando se tomaria uma multa ou se o veículo seria apreendido.

Subiu as escadas, sem paciência pra esperar o elevador e encontrou na frente do quarto de Enid, Sra. Weens é mais dois médicos responsáveis pelo processo de desligamento. Eles estavam confusos pela presença da jovem.

— Addams, você ainda está na sua folga, volte imediatamente para casa.

— Agora você se importa com a minha folga? — Falou, ignorando tudo, já pegando na maçaneta para puxar. Até que a senhora Weens a interceptou, segurando seu pulso.

— Wednesday... Você não pode entrar ali.

— Com todo o respeito, você me falou ainda essa manhã que eu tinha que achar um propósito para o que eu faço. Não me impeça agora de procurar por ele.

A fala deixou a supervisora confusa, mas surgiu efeito, ao vê-la soltar seu pulso.

Wednesday entrou com calma no quarto. Ele não estava mais ensolarado. Os terços e objetos haviam sido removidos. Não restava mais nada no quarto e Wednesday temia que em pouco tempo, nem sequer a paciente estaria.

— Depois do nosso beijo, achei que poderia me despedir de outro jeito. Mas estou vendo que tempo é uma coisa que não escolhemos ter...

— Você me disse que eu poderia ser qualquer coisa no dia de hoje, então me conceda ser exatamente isso. Me deixe passar pela transformação da minha máscara e me liberte da violência e da tragédia. — Wednesday tocou na sua mão, levemente, como se fosse algo frágil.

Não notou que naquele momento, a pontinha do pé de Enid se mexeu.

— Me deixe me despedir. — Uma lágrima escorreu de seu rosto e ela se inclinou, para fechar a distância dos lábios. Era o beijo mais frio que havia dado. Mesmo quando era um fantasma, os lábios de Enid queimavam. E os seus sempre gelados não ajudavam a transmitir calor.

Wednesday posou sua cabeça na testa de Enid depois do beijo singelo. Queria muito dizer mais algumas palavras, mas de repente, um sono que não sentia desde os 6 anos de idade a tomou no mesmo instante. Wednesday ia perdendo os sentidos e pousando o seu corpo em cima da garota. Não devia...

(IX)

Sentia seu rosto numa superfície macia e dura ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo que sentia dedos enroscando em seus cabelos e os penteando em uma carícia leve.

— Enid? — Murmurou, incerta.

— Sim, Willa.

— Onde estamos?

— No lugar mais bonito que poderia estar... Nos seus sonhos. — Enid sorriu para ela, ainda passando os dedos pelo seu rosto e colocando os cabelos atrás de sua orelha.

— Então... Estou sonhando?

— Não era o que você mais queria, dormir? — Enid sorriu daquele jeito desafiador e convencido.

— O que eu mais queria é que eu pudesse fazer algo para salvar você. — Wednesday queria aproveitar mais um pouco. Logo, a realidade a tomaria de volta e a traria a pior dor que poderia sentir.

— Você fez...

— Infelizmente, eu estava errada, Enid. — Disse olhando para o horizonte cheio de flores, a barreira da realidade a impedia de olhar para tudo aquilo achando beleza. Também achava que não estava nos seus sonhos, porque sempre foi um lugar muito mais sombrio. — Não podemos fugir, sinto muito.

Balançou a cabeça, não poderia se permitir e se transformar em qualquer coisa que desejasse.  

— O que mais gosta de fazer? — Enid perguntou, com olhos curiosos, mudando de assunto para distrair a médica.

— Salvar as pessoas, é claro! — Wednesday fez uma falsa animação o que provocou uma risada em Enid.

— Estou falando sério! — Enid disse rindo, batendo levemente nos ombros da outra.

— Okay, okay, eu... bom... — Pareceu pensar. — Eu adoro tomar café da manhã assistindo TV, acordo mais cedo só pra ter tempo de fazer isso. — Você?

— Eu danço, quer dizer, dançava, espero não ter desaprendido. — Comentou, sendo perceptível sua melancolia.

— Sabia que o seu cérebro tem memória corporal? Tenho certeza de que está tudo aí. — Wednesday comentou e Enid sorriu levemente, sentindo um mínimo conforto com a fala, sabendo que Wednesday não mentiria para ela.

— Falando sobre memória corporal. — Enid se inclinou, capturando seus lábios. O beijo era calmo e demorado. Wednesday pegou na sua nuca e aprofundou o beijo.

— Enid, seus aparelhos...

— Eu ouvi, eu ouço tudo. — Comentou, com tristeza, mesmo ainda parecendo enfeitiçada pelos lábios cheios da Addams.

— Você não se incomoda?

— Me sinto triste de não viver, mas não me incomodo. Não depois de te conhecer.

— E como você espera que eu fique? Você sabe... Eu não gosto de viver... Poderia facilmente me juntar a você. — Enid negou com a cabeça, seu rosto transbordando assombro.

— Não diga bobagens. — Bufou. — Você teve muitas mudanças no dia de hoje, vai saber aproveitar...

— Vou mesmo?

— Tenho certeza. No final, foi uma lição para nós duas. Que eu deveria aceitar a morte e você a vida.

— Talvez.

— Talvez.

— Então... Até uma próxima vida?

Enid sorriu para ela, mas antes que dissesse qualquer coisa, alguém a puxou do sonho, que com certeza não a pertencia.

A garota acordou assustada, olhou para os lados e mal pode entender o que estava acontecendo. Teve um sonho estranho... Com uma menina chamada Wednesday.

Abriu os olhos e a encontrou... Deitada no sofá ao lado. Com os cabelos em cima do rosto extremamente como estava no seu sonho. Dormia como se não tivesse dormido a séculos.

Foi paciente, tentando entender de quem se tratava a figura, lembrava apenas do nome dela. Aos poucos, viu a garota recobrar os sentidos e se levantar de vagar. Ao olhar para si, o projeto de medica arregalou os olhos e abriu a boca.

— Não acredito. Eu sonhei esse tempo todo? — Resmungou, inconsolável. — Ou será que estou presa em um looping temporal?

Enid ficava ouvindo a outra se lamentar, tentando achar uma explicação plausível.

— Wednesday? — Foi a primeira coisa que disse, após um ano de coma.

A Addams olhou para ela, assombrada.

— Isso não se encaixa no roteiro de looping temporal... — Murmurou e deu alguns passos para frente. Enid ficou sem graça com a intensidade do olhar de uma desconhecida. — Seus olhos estão azuis como o dia.

Mais um comentário tomado de um conhecimento analítico sobre sua pessoa.

— Você voltou a ser um pavão colorido.

— Que?

— Veja se não é o mais novo milagre do hospital. — Sra. Weens entrou no quarto, com uma prancheta em mãos. Logo entregou a Wednesday, forçando contra seu peito. A mais nova pode ver a data “01/11”, dia de finados. — Quase cometemos um grande erro... Se não fosse pelo nosso prodígio aqui.

Bateu nos ombros de Wednesday com força, o que a fez ir pra frente, chegando mais perto de Enid. Wednesday ainda a olhava de um jeito assustado como se quisesse entender o que diabos estava acontecendo e como vieram parar lá.

— Não consigo entender... — Enid comentou, olhando mais para a jovem Addams que para Larissa Weens.

— Não se preocupe, senhorita Sinclair, vamos cuidar de sua recuperação. É questão de dias até estar reintegrada. — A mulher alta e de cabelos platinados sorriu para ela. — Addams preciso falar com você lá fora.

— Não sei o que fez para Enid voltar de um indício de morte cerebral, mas saiba que tive muito esforço para relevar o fato de chegar no quarto e você estar dormindo em cima da nossa paciente. Mas esse fato, possibitou que pudéssemos ver respostas cognitivas do seu corpo. Então irei ser justa. Bom trabalho, Addams.

Addams, desconfiada com a amistosidade da sua preceptora, voltou para o quarto, não sendo capaz de deixar Enid sozinha por mais tempo. Mas era triste que não se lembrava dela. Precisava mandar mensagem para sua mãe também, a agradecendo.

— Sinto que te conheço. — Enid lançou depois de um tempo que estavam caladas, uma na presença da outra, sem intenção de parecer reveladora ou enigmática demais.

— Vai ver você me conhece mesmo. Você já se vestiu de lobo na minha frente. — Comentou, irônica.

— Como?

— Enid, eu prometo lhe visitar todos os dias daqui pra frente se me deixar, mas... — Esperaria, mesmo se ela ainda estivesse em coma. — Preciso comprovar uma teoria, se me deixar.

Enid engoliu em seco, vendo a médica se aproximar, claramente não era um movimento profissional. Wednesday se inclinou e juntou seus lábios. Mesmo sem entender, correspondeu ao beijo, fechando os olhos. Pensou que seu hálito estaria podre pelo ano inteiro de coma, mas pelo visto, a equipe do hospital havia cuidado disso, vendo que Wednesday não parecia se importar.

Quando Wednesday encaixou melhor o beijo, houve uma lembrança... O final do seu sonho.

“Então... até uma próxima vida? — Perguntou Wednesday, um tanto conformada. Mas apenas neguei com a cabeça, sorrindo.

— Vamos nos encontrar ainda nessa vida. Almas gêmeas procuram uma pela outra quando precisam de ajuda, não era um fantasma, era apenas minha alma procurando pela sua. Nosso encontro era pra ter acontecido no dia 31 de outubro, hora exata, 5:30 da manhã.

— Te vejo mais tarde, Willa.”

Ficaram no beijo por mais incontáveis segundos, até sentir que suspirava nos lábios de Wednesday.

— Aceito que você venha me visitar todos os dias. — Enid sorriu e tocou nos lábios de Wednesday com o polegar. — Mas vai ter que me trazer mais desses.

Se inclinou para tomá-la nos lábios mais uma vez, aprofundando o beijo e trazendo a cintura da médica para mais perto do seu corpo.

— Vamos com calma, não posso te receitar nada intenso pelo próximo mês. — Wednesday sorriu de um jeito largo e beijou seu nariz. — E posso saber o que te fez gostar tanto assim dos meus beijos em menos de 1 minuto?

Enid sorriu e deu mais um beijo nela.

— Se lembrou de mim, foi? — Era a perguntava que desejava que ela fizesse.

— Sim, a garota dos meus sonhos.

Wednesday estava um pouco corada e se afastou, reparando nos olhos azuis. Estavam reluzindo.

— Ainda não me parece que se lembrou de mim...

— Você está pedindo para que eu fale que ficou linda de lobo, não é? — Dessa vez, Wednesday pareceu surpresa.

— Então você se lembrou mesmo!

Wednesday foi em sua direção e a abraçou forte.

— Estou devendo tanto a minha mãe nesse momento. — Murmurou no seu pescoço. — Obrigada, obrigada.

Enid apenas sorriu, contente. Se sua alma fosse ligada mesmo a Wednesday, viveria bem e passaria depois uma eternidade condenada como um espírito. É, poderia viver com isso.  Passou a sua mão pela cintura da outra e se deixou descansar em seu ombro, suspirando seu cheiro.

Casa.

Enquanto isso, notou que a notícia passava um homem careca preso em algemas.

— Houve um atentado ao hospital?

— Ah... Sobre isso... São negócios de família.

(X)

O final do ano trouxe várias mudanças para a vida de ambas.

Enid retomou sua vida, ainda estando em fase de adaptação com todas as mudanças. Mas pode facilmente retornar a dança e as aulas na faculdade de teatro. Com muitas máscaras, mas nenhuma de fato ao rosto.

Já Wednesday se mudou de apartamento, terminou sua residência e se dedicou a estudos de pessoas em coma, tentando se manter o mais perto de laboratórios e não de pessoas. E pela noite, dormia muito bem, talvez o que a incomodava não era a presença das sirenes, afinal, era a ausência de algo maior.

No final, talvez a máscara fosse viver em constante violência consigo mesma, não aceitando seus próprios limites. A insatisfação, desgaste e autossabotagem que viviam a lhe assombrar, como em um dia de Halloween.

Agora, mesmo do seu jeito, procurava se conectar aos seus pacientes e viver uma vida que poderia amar e ser amada. O que em outras palavras poderia se materializar na figura de Enid Sinclair abraçada a si, enquanto dormia.