Chapter 1: The First Move
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Lily Davis percebeu o erro que tinha cometido ao comer cinco dos muffins de amora de Abby, mais tarde naquela noite. Seu corpo curvado por cima do vaso sanitário do vestiário feminino parecia tentar expelir o máximo de seu órgãos vitais possível. Quando ela finalmente conseguiu se levantar, sua visão estava borrada pelas lágrimas e seu abdome doía pela força. Não era atoa que suas pernas ainda estavam um pouco bambas quando ela ligou o chuveiro do vestiário.
Claro que Lily não culpava Abby. Nem um pouco. Os muffins estavam divinos. E Abby tinha sido um anjo por trazer todos eles para o treino. Era sempre assim na vida de Lily, uma coisa boa se transformava em um pesadelo em menos de um segundo. Seu próprio karma sempre seria o primeiro culpado e Abby era a pessoa favorita de Lily, no mundo todo provavelmente, então a única culpa que ela carregava era de ser perfeita. Como se não fosse patético o suficiente sua melhor amiga ser a enfermeira da escola, Lily não conseguia deixar de lado o sentimento de alívio por estar entre as paredes azuis e verdes novamente.
O vestiário da Escola Estadual Eleanor Roosevelt era melhor que qualquer casa que poderiam colocá-la e o lugar mais seguro para fugir da tempestade de neve que se formava do lado de fora. Abby havia dito pela manhã, junto com os muffins de consolação, um presente especial pela derrota humilhante do dia anterior para todos os jogadores, mas que viraram um presente apenas para Lily depois do primeiro comentário grosseiro direcionado a ela.
E mesmo que o pequeno mimo de Abby tivesse relação com Lily vomitando tudo que tinha comido nos últimos dois dias, tê-los ganhado não tinha sido o problema. Comer cinco deles e correr sete quilômetros, sim.
Lily se olhou no espelho depois de sair da água quente, o vapor escapando da cabine até embaçar todos os espelhos. Não era muito diferente das outras garotas de 16 anos de sua escola. Seu cabelo era castanho e encaracolado nas pontas e caía na altura de suas axilas. Seu corpo era meio retangular e ela sempre achava que estava magra demais, mas talvez fosse por preferir almoçar muffins ao invés das inabilidades culinárias de seu temporário pai adotivo. As únicas coisas diferentes em sua aparência eram as manchas brancas que se espalharam por sua pele escura e seus olhos, um castanho escuro e o outro azul.
Sua calça legging e camisa do time já estavam jogadas em cima do banco quando o espelho sai da sua linha de visão. O logo na blusa era uma pequena palmeira branca e contrastava com o tom verde e os detalhes azuis nas mangas. O grande número 07 em suas costas e a inscrição em cima “Davis” pareciam ter sido costurados a mão, apesar de Abby ter dito que tinha uma máquina de costura em casa. Lily não acreditava nela, mas mesmo assim tinha deixado ela fazer o trabalho. Ela não se importa em vestir o equipamento de segurança, se uma bola ricocheteasse na direção dela, o golpe seria por merecer. Ela leva para a quadra apenas sua raquete e um balde cheio de bolas. Antes de entrar no cubículo de acrílico, ela acende as luzes da quadra, agradecendo mentalmente Abby por ter passado os códigos de segurança do Centro de Esportes da escola.
Seus primeiros arremessos na direção do gol são apenas um teste para ver se seu estômago aguentaria a força que seus braços teriam que fazer, quando ela tem a certeza de que não vai vomitar no chão da quadra, ela arremessa com mais força. As bolas ricocheteiam na parede de acrílico e ela pega na rede de sua raquete, apenas para jogar de novo.
Se ela pensava que jogar ia acalmar um pouco seus nervos, tinha errado feio. O primeiro erro que ela comete em um dos arremessos a faz jogar a raquete longe, do outro lado da quadra, sob os pés de alguém que Lily definitivamente não havia ouvido chegar. Ela corre até as bolinhas espalhadas, juntando todas no balde e indo na direção de sua raquete.
Abigail Winfield não parece abalada com o surto de Lily ou com o fato de ser quase oito horas da noite e ter uma invasora na escola.
— Merda, merda. — Lily sussurra enquanto carrega o balde em um dos braços e sua raquete em outro. Ela vê os lábios de Abby se movendo, mas o barulho da tempestade do lado de fora impede o som de chegar até ela. Pela expressão cansada em seu rosto, ela não parecia irritada, mesmo que tivesse razão para estar.
Conforme o calor gradualmente deixava seu corpo, os fios molhados em seu ombro e o frio do lado de fora faziam seus braços começarem a tremer. Lily passa reto por Abby e enfia o balde em um armário no corredor e apoia sua raquete na parede, cruzando os braços. Ter seu treino interrompido era quase pior do que o sermão que provavelmente estava prestes a ouvir.
— Lily? — a voz de Abby soou pela primeira vez no corredor. O tom doce era nauseante, Lily tem vontade de sair correndo e abraçá-la. Ela se vira, vendo a enfermeira apagar as luzes da quadra e trancar a porta.
— Eu ‘tô aqui. — Lily limpa a garganta, tentando se livrar de algumas lágrimas. Ela nem sabia exatamente o motivo do bolo em sua garganta, implorando para ela chorar, mas algo na voz de Abby, a desconcertava. — Só, me deixa explicar — soltou a última frase em um sussurro imediatista.
Abby estava com os fios loiros presos em um rabo de cavalo e usava as mesmas roupas que Lily tinha visto nela, de manhã, durante o treino. Ela normalmente parecia cansada, mas naquela noite em especial parecia exausta.
— Lilian... — Abby suspira, como se o nome da garota fosse uma súplica e Lily sente como se fosse desmoronar ali mesmo. Ela corre sem pestanejar para os braços da enfermeira, a abraçando apertado. — Por Deus, onde estão suas roupas de frio? Está fazendo cinco graus lá fora. Você tem que se agasalhar.
Abby tira o próprio casaco, ajudando Lily a vesti-lo. Ela ainda estava usando uma blusa de lã por baixo e logo retoma o abraço com o rosto da mais nova afundado em seu ombro. Os minutos passam junto com o silêncio. As duas sabem que aquele momento é necessário, mas Lily tem tantas coisas para explicar que é impossível prolongar o momento. Lily nem percebe o momento exato em que começa a chorar, mas se deixa ser consolada pelo abraço agradável de Abby.
— Boris me ligou. Disse que não conseguia te achar de jeito nenhum. Algo sobre uma tal de Michelle Martin. O que aconteceu, Lily? — Abby pergunta, instigando aquilo que não podia aguardar mais e a guiando para a enfermaria da quadra, um dos braços entrelaçado ao de Lily.
Ela não queria falar sobre o que tinha acontecido. Porquê estava na escola tão tarde da noite. Porquê seu pai adotivo tinha ligado para Abby como última esperança de saber onde ela estava. Mas não podia esconder as coisas de Abby. Não depois que ela teve o trabalho de estar ali, aquela hora da noite. Lily se joga em uma das poltronas brancas da enfermaria assim que a luz é acesa, recolhendo suas pernas para cima do estofado, enquanto assiste Abby se dirigindo ao outro lado da sala.
— Eu fui para casa… — a fala repentina de Lily, chama a atenção de Abby, que ligava a chaleira elétrica para esquentar um pouco de água. — Depois da aula...Eu voltei para casa.
— Uhum — Abby murmurou para que Lily soubesse que estava sendo ouvida e separou duas canecas com saquinhos de chá.
— Eu voltei para casa e quando eu entrei, Boris não estava lá. Eu não ‘tava afim de olhar na cara dele, então foi bom. Eu ainda estava com as roupas do treino, sabia que ele ia reclamar se visse que eu não estava limpa — Ele gostava tanto de apontar o quanto Lily era suja, não importava quantos banhos ela tomasse, que já não era surpresa que ouviria um sermão principalmente estando suada após o treino — Eu fui direto para o meu quarto. — Lily começou a contar conforme as memórias voltavam em sua mente.
Ela havia acabado de entrar em seu quarto. Seu quarto. Um quarto, era uma definição melhor. Aquilo estava longe de ser seu. As janelas estavam abertas e o colchão que costumava dormir estava bagunçado, do mesmo jeito que ela se lembrava de ter deixado durante a manhã. A mesa que ela usava para estudar estava com uma pilha de papéis amassados, do trabalho de biologia que passara a madrugada inteira fazendo, e sua cadeira mal tinha espaço para sentar, já que seu uniforme estava jogado por cima do encosto, junto com os equipamentos de proteção.
Lily abriu a sua mochila, tirando uma caixa de papelão de dentro. Os muffins de amora ainda estavam quentes e tinham um cheiro doce e agradável. Ela pegou um deles e mordeu um pedaço, deixando o resto da caixa por cima da mesa. Lily se jogou na cama sem se preocupar querendo descansar um pouco. Mexeu na sua mochila até tocar em algo duro e tirou um livro de capa dura de segunda mão. “O Grande Gatsby”. Estavam lendo a obra de Fitzgerald na aula de literatura e só faltavam alguns capítulos para que ela finalmente conseguisse acabar.
A porta do quarto se abriu poucos minutos depois. Uma garota alta, magra, com cabelos pretos lisos e a pele pálida, apareceu na frente do colchão de Lily, a fazendo soltar o livro em seu próprio rosto, bufando e revirando os olhos. A mão ossuda da menina agarrou sua perna e a puxou para baixo, fazendo com que o livro caísse no colchão e Lily deslizasse para baixo.
— Que porra, Edith. — Lily tentou puxar sua perna de volta, mas a mão da garota apertou seu tornozelo. Ela fez mais força e sentiu um dos anéis de Edith arranhar sua pele quando finalmente conseguiu se soltar — Você sabe o que uma porta fechada significa ou precisa que desenhe? Assumindo que você não saberia ler se tivesse um aviso que te mandasse ficar fora.
— A casa é do MEU pai, então eu vou onde eu quiser. Mas não é por isso que eu estou aqui. Eu trouxe um presentinho — ela sentou na cama antes mesmo de Lily conseguir protestar — Se acalma, pestinha. É uma oferta de paz.
“Pestinha”. Porque tudo que Lily fazia era uma pestilência na vida de Edith. Porque Lily era uma parasita em sua casa e ela não se cansaria até conseguir se livrar dela. A garota puxa um papel de seu bolso e o balança entre os dedos.
— Eu sei sobre a sua coleçãozinha de cartas. Com aqueles ridículos famosos que você guarda na sua mochila — o coração de Lily dá um pulo e ela começa a remexer suas coisas, procurando o envelope. Eram cartas colecionáveis com os jogadores de Exy da seleção. Quando ela finalmente acha, o sorriso de Kevin Day brilha em sua direção. Seu suspiro é de puro alívio — Eu não mexi, que nojeira. Essas coisas gritam “virgem”. Para de ser uma bebê chorona e presta atenção. Eu disse que tinha um presente. Aí, você tá vendo porque nada de bom acontece aqui? Você estraga tudo com essa sua paranóia.
— Fala o que você quer logo, Edith — Lily normalmente não tem paciência para os joguinhos dela, mas depois de terem sido esmagados no jogo do dia anterior, ela tinha ainda menos paciência para qualquer teatro dela.
— Como eu estava dizendo, eu te trouxe um presente. Olha como eu sou boa, nem é seu aniversário — ela entrega a carta para Lily. Nem por um segundo ela se deixa enganar, pensando que Edith poderia fazer algo generoso. Então não há surpresa quando seus olhos encaram a carta de uma das versões mais antigas de monopoly: “Sorte: Saída livre da prisão” — Entendeu? Porque você vai pra lá hoje.
— Não, não entendi — Lily joga a carta longe e deita na cama, pegando de volta seu livro e apoiando e uma de suas pernas.
— Eu te explico, pestinha. Prisão é o lugar que as pessoas vão quando roubam dinheiro de uma família de pessoas amáveis que garantiu por quase dois anos que você tivesse um teto em cima de sua cabeça — Edith levantou o corpo e encostou no batente da porta com um sorriso cínico no rosto. Lily queria socar aquele sorriso para fora do rosto dela — Vão te mandar para o reformatório. Papai conseguiu provas que você roubou aquele dinheiro todo dele. — ela soava orgulhosa.
— Porra nenhuma. Eu não roubei nada. Você sabe que não fui eu. — Lily sentou no colchão com as pernas cruzadas. Edith não tinha precisado fazer muito, ela já estava ofegando de raiva. — Você sabe que essa porra de história é mentira, Edith.
— A sua assistente social vai chegar em duas horas. — Edith deu de ombros, ignorando as palavras dela. — Melhor começar a empacotar suas tralhas, mesmo que não vá precisar de nenhuma delas pra onde você está indo.
Edith bateu a porta e Lily se jogou no colchão escondendo o rosto nas mãos. Seu coração batia tão rápido que ela mal conseguia ouvir outros sons ambientes. Ela olhou para a caixa de muffins e a abriu. Comeu mais um e depois outro e quando percebeu, já tinha comido todos os cinco. Lágrimas curtas escorriam por suas bochechas. Ela se arrependeu imediatamente, ao ver a caixa vazia, e olhou para a porta do seu banheiro, antes que pudesse levantar, ouviu dois toques na madeira em sua frente que logo se abriu.
Boris White não era um homem muito alto. Tinha o rosto jovem e usava coletes de lã, blusas xadrez e óculos retangulares. Seu cabelo era calvo e preto com diversos fios brancos. Ele carregava uma expressão melancólica, mas assim que seu olhar encontrou Lily, ele suspirou em decepção, segurando a ponte do nariz entre as pontas dos dedos.
— Lily, o que eu já te falei sobre deitar na cama sem tomar banho? Esse quarto parece o vestiário masculino. — ele balançou a cabeça, como se tivesse cheirado algo podre, mas a garota nem teve tempo de responder — Nós precisamos conversar. Pode vir aqui na sala um minuto?
Ele saiu e deixou a porta aberta. Lily prendeu o cabelo em um rabo de cavalo e colocou o casaco da escola que estava cheio de perfume na esperança de mascarar o cheiro que vinha de sua camiseta. Suas mãos esfregam suas bochechas, ela não se importa ou nem se pergunta se Boris havia a visto chorando. Ela o segue até a sala, mas todo seu corpo congela quando ela vê quem está sentada na sala e uma das poltronas ofuscantemente amarelas.
Michelle, sua assistente social, estava segurando algumas pastas e tomava algo em uma caneca. Lily mordeu o interior da bochecha tão forte que sentiu o gosto férrico de sangue na ponta da língua. Todas as mentiras que ela já havia contado na vida passam por sua mente em flashes. Documentos falsos, lágrimas falsas, rostos e noites que ela desejava esquecer. Quando Boris volta a falar, ela solta o ar que nem sabia estar segurando.
— A Srta. Martin veio conversar com você sobre “o incidente” — ele se sentou no sofá e esperou Lily se sentar na outra poltrona vaga
O incidente. Era como Boris estava chamando os 700 dólares em dinheiro que haviam misteriosamente desaparecido dos pertences dele algumas semanas atrás. Lily achou que o assunto tivesse acabado. Ela não tinha pegado o dinheiro, mas mesmo assim fez questão de pagar cada centavo e pedir cada desculpa necessária para que o assunto fosse esquecido.
Lily não odiava Boris. Ele tinha sido um guardião razoável pelos últimos dois anos. Isso era suficiente para que ela não fizesse nada que pudesse pôr em perigo sua estadia ali. Ela amava sua escola. Amava seu time de Exy e amava Abby Winfield ainda mais. E inoportunamente, duas semanas depois de conversar com Boris sobre uma adoção permanente, “o incidente” havia acontecido. E Lily tinha certeza que a culpa não havia sido sua. Ela já tinha mentido sobre muitas coisas em sua vida, mas aquilo não era uma delas.
— Então, Lilian. — ela pigarreou. Seu nome parecia um pecado, saindo da boca de Michelle. — Eu e o Sr. White conversamos um pouco e nós dois sabemos que você é uma garota brilhante. Suas notas sempre foram excepcionais e você pratica um dos esportes mais concorridos das Little Leagues, estando apenas na nona série. E felizmente, entramos em um acordo de que não seria necessário prestar queixas a você com relação ao dinheiro desaparecido, principalmente porque você fez questão de repor todo o valor. — Michelle tinha um sorriso calmo no rosto. Lily estava com vontade de vomitar. — Apesar disso, entramos em concordância que seria melhor se você fosse destinada à outro lar adotivo. Eu passei as últimas semanas analisando a sua ficha e não vai ser difícil encontrar uma família. É uma consequência pequena para uma infração gravíssima.
— Lily, sabe quanto me importo com você, mas um acontecimento desses quebrou nossa confiança. Edith está abaladíssima de perder uma amiga, mas você entende que não conseguiríamos mais viver em harmonia com essa desconfiança ainda pairando no ar. — Boris apoiou uma das mãos no braço da poltrona de Lily, que se afastou imediatamente. — Vai ser melhor para nós todos seguirmos em frente dessa maneira.
— Não. — Lily expeliu, sem explicações.
— Querida, eu não acho que o Sr. White precise de mais desculpas esfarrapadas sobre o assunto. Porque não vai fazer suas malas e nós podemos conversar no carro? — Michelle sorriu, como se mandasse Lily ficar calada com a simples expressão facial.
Lily levantou- se da poltrona, se sentindo enjoada. Quando o cômodo parou de girar, ela seguiu para o quarto. Não haviam palavras não grosseiras que expressassem o tamanho daquela injustiça. Lily sabia que não tinha feito nada errado. Ela se lembraria se tivesse roubado 700 dólares de uma caixa de sapato. Não lembraria?
“Eu entendo que você precisava do dinheiro para viajar com seu time da Little League, mas roubar não era a solução, Lilian.” Foi o que tinham dito a ela no dia do incidente. Porém, a excursão tinha sido paga com o dinheiro dos doces que ela vendia na escola. Boris sabia dos doces. Ele tinha que saber de onde tinha vindo o dinheiro da excursão. Por que pensaria que ela o tinha roubado para isso?
“Ela é uma mentirosa patológica. Lembra quando ela chegou aqui? Disse estava no sistema há anos, mas no documento consta que entrou há dois anos. E olha para ela. Por que acreditaríamos em algo que ela diz? Ela usou o dinheiro dela para comprar aquela raquete idiota. A raquete sozinha é 700 dólares, pode procurar.” A raquete tinha sido um presente. Do treinador Diaz. Boris sabia da raquete. Ele também sabia dos doces. Ele tinha que saber do dinheiro. Por que mesmo assim ainda duvidavam dela? “Eu não quero morar com alguém que pode surtar a qualquer momento, roubar todas minhas economias da faculdade e fugir.”
Lily fechou a porta do quarto e começou a colocar suas coisas dentro da mochila. Não conseguia pensar no que estava colocando ali, mas tudo que encostava suas mãos acabava amassado junto às outras coisas. Ela olhou em volta do quarto e depois para a janela escancarada. Ela não podia perder tudo. Não de novo. E então, Lilian Davis passou uma perna após a outra pelo vão da janela e correu. Sete quilômetros com uma bolsa de lona, uma mochila escolar e uma raquete preta com detalhes azulados. Correu até que finalmente avistou “Eleanor Roosevelt Ensino Fundamental e Médio”.
— Eu tentei explicar que não fui eu. Ninguém acreditou em mim — Lily olhou para o próprio colo. Estava segurando a caneca com o chá com as duas mãos. — Por favor, Abby. Não fala para a Michelle que eu estou aqui. Fala que eu fugi do estado, manda eles me procurarem no México. Eu não posso sair da escola.
— Lily… — Abby esfregou uma das mãos em seu rosto. Fez uma pausa antes de continuar. — Se eu soubesse que você ia vomitar todos os meus Muffins, eu teria feito menos. — disse, tentando levantar o humor de Lily. Abby já tinha saído de sua cadeira e agora estava sentada na poltrona ao lado dela. Lily não conseguiu sorrir, mas apoiou a cabeça no ombro de Abby que soltou um suspiro. — Você não roubou aquele dinheiro. Eu acredito em você.
— A porra do problema é que eu não consigo provar. Eu não roubei aquela merda, eu não preciso do dinheiro dele… — Ela disse, com certo desespero. Não importa o quanto se esforçasse, não sabia se conseguiria dizer por mais muito tempo o que era real.
Tinham lhe dito que era culpada. Todas as provas apontavam para Lily. Mas ela se lembrava. Em algum lugar de sua memória. A raquete de presente. Os doces. O dinheiro para o jogo. Essas eram as únicas verdades dela. E tinham que ser a verdade real.
— Me deixa te ajudar. Tudo bem? Vamos dar um jeito, pestinha. — Abby pegou seu celular em cima da mesa e apertou o nariz de Lily entre os dedos antes de sair da sala para fazer uma ligação. “Pestinha”, um termo carinhoso entre pessoas que se adoram.
Lily estava torcendo para que não fosse sua assistente social. Nunca tivera tanto medo dentro de si antes. Nem quanto Edith a empurrava nos armários do corredor principal da escola. Nem quando estavam em noite de estreia. Nem quando acordava de madrugada, sentindo cheiro de hospital e fumaça, tremendo sozinha no escuro. Não queria perder a Roosevelt. Não queria ter que perder Abby.
— Ei. — Abby apareceu novamente e Lily levantou a cabeça. — Pega suas coisas. David está vindo buscar nós duas. Falei com a Srta. Martin. Você pode ir dormir lá em casa e deixamos a conversa para amanhã. — ela sorriu e esperou Lily correr para o vestiário para pegar suas coisas.
Chapter 2: The First Meeting
Notes:
Aviso de gatilho: Theodora Muldani
Disclaimer: esse capítulo é meio que novo, não existia na versão original da história mas espero que vocês gostem mesmo assim :D
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Kevin Day ouviu o clique da janela de vidro poucos minutos depois de se sentar nas escadas. Ele não se importava se os degraus estavam frios embaixo de suas coxas ou o cheiro da maconha que seu vizinho insistia em fumar às nove da manhã ficaria impregnado em suas roupas. Ele gostava de observar os carros descendo pela avenida, como se pudesse ver todos as décadas que cruzaram aquelas ruas. Deixar sua mente vazia por alguns minutos seria suficiente. Isso era, se não tivesse sido interrompido.
Ele não precisou olhar para trás para ver quem havia aberto a janela. Poucas pessoas entravam em seu apartamento e apenas uma delas gostava de chegar invadindo seu espaço pessoal. A mesma que momentos antes dividia a cama com ele. Theodora Muldani usava um suéter de lã listrado em vários tons de marrom, um presente de Natal antigo de Betsy. Seu cabelo estava meio úmido e seus jeans cheios de pelos de cachorro. O seu também estava, mas nenhum dos dois pretendia se importar.
— Eu não sabia se você ia querer acordar tão cedo… — ela diz, pulando o “bom dia” — Seu pai ligou… — Thea senta ao lado de Kevin, colocando uma caneca em suas mãos — Eu atendi, porque você estava dormindo, mas ele só disse para você ligar de volta.
Quando Kevin não responde, ela continua falando:
— Sabe, enquanto eu estava fazendo o café, vi uma daquelas bolsinhas que você usa no peito, no instagram. Você ia gostar — as tentativas de puxar assunto são patéticas e o silêncio de Kevin não é suficiente para que ela entenda o recado. Ele se apoia no corrimão e se ergue do chão.
— Você não precisa fazer isso — ele diz, a mão livre da caneca abre novamente a janela de vidro e ele se esgueira pelo pequeno quadrado para o lado de dentro.
— Isso o que? A bolsa era realmente a sua cara — ela respira fundo quando a expressão de Kevin responde tudo que ela precisa ouvir — Kev, nós…
— Não tem, “nós”, Theodora. O que aconteceu ontem foi um erro enorme. E você deixou bem claro quando me entregou os papéis do divórcio cinco anos atrás. Isso nunca deveria ter existido — Kevin não conseguia se compadecer pelas pequenas lágrimas se formando sob os olhos dela. O sorriso de Thea vacila, mas cada memória dos toques dela em sua pele queimavam e ele só conseguia se arrepender de cada uma de suas decisões — Eu não deveria ter te ligado.
Os flashes da noite anterior piscam como uma sirene de aviso, como se estivessem prestes a afogá-lo em sua própria mente. Ele não lembrava exatamente como havia acontecido. Em um momento tinha uma pílula nas mãos e em outro Thea estava em sua porta com os braços abertos. A cama só foi uma progressão de algo que já estava fadado ao fracasso desde o primeiro momento.
Kevin não ficou na sala para assistir Thea juntar suas coisas. Quando ouviu a porta da frente fechando, ele já estava na suíte principal, trocando os potes de água quase vazios no canto do quarto. Ellie, a golden retriever filhote que Kevin havia adotado poucas semanas antes, não estava ali, mas sua presença estava por toda parte. Ele não se arrependia, porém teria pensado um pouco mais se soubesse o quanto de pelo uma cachorra tão pequena soltaria. A diabinha aparece como se tivesse sido convocada por pensamento, segurando uma cenoura de pelúcia na boca.
Ele senta no chão para deixá-la subir em seu colo, mas o tsunami de arrependimento o impede de dar a atenção que ela merece. Se ele não tivesse tentado trocar algo bom por algo certo, não teria se enfiado nos braços de Thea. O celular vibra em seu bolso como uma interrupção grosseira, mas o nome “Robin” na tela é suficiente para que ele crie coragem de atender.
— Eu preciso de uma reunião, pode vir me buscar? — ele diz, antes mesmo que a voz dela possa soar do outro lado da linha, sem se importar se ela tinha ligado por algum motivo específico. Conhecia ela o suficiente para saber que se fosse realmente importante, uma enxurrada de mensagens chegaria antes da ligação.
— O Andrew não pode te levar? — A voz de Robin é cuidadosa, mas mesmo assim a respiração de Kevin fica ofegante só de pensar naqueles fios loiros — Eu chego em 15 minutos, me espera na frente do prédio, eu não vou subir.
Kevin deixa Ellie no sofá da sala e desce os sete andares pela escada de incêndio, se recusando a atravessar o corredor que dividia com Neil e Andrew. Se olhasse na cara dos dois fora da quadra, ia acabar vomitando. O último jogo havia deixado lembranças suficientes em sua mente para uma vida inteira e se havia aprendido alguma coisa com Betsy era que não se dar tempo de processar algo era o que fazia seus dias se organizarem em uma montanha russa de eventos. Era o que tinha feito Thea estar ali.
No passado, não teve tempo para processar sua mão quebrada, a vitória das raposas, o sequestro de Neil, a morte de Riko, a aposentadoria do Mestre, sua convocação para a seleção. Um acontecimento ofuscava o outro até formar uma bola de neve que Kevin deixava que o atropelasse e depois se afogava em comprimidos e garrafas. A percepção de que conseguia ofuscar um acontecimento com outro era tão autodestrutiva quanto genial. Neil e Andrew em um vestiário davam lugar ao corpo de Thea em sua cama que daria lugar a três anos de sobriedade jogados no lixo. Ele poderia ficar esperando essa próxima bomba, mas já não achava o fundo do poço tão atraente.
O aquecedor do carro, quando Kevin abriu a porta, parecia uma tarde amena de verão. Robin Cross era a terceira na lista de Kevin para quase tudo. Embora tivessem estudado na mesma universidade, a amizade deles só decolou quando começaram a jogar juntos nos Galos da Carolina do Sul. A segunda melhor goleira que conhecia e sua madrinha dos NA.
— O que aconteceu? — ela pergunta, como se fosse sua profissão, mesmo que saiba que Kevin não vai responder. Ela desiste após alguns minutos de silêncio, se aproveitado de um semáforo vermelho para olhar para ele — Você com-
— Não, eu não usei nada — Kevin se afunda o banco, cruzando os braços, o comprimido descendo pela descarga era uma imagem que gerava nojo pelo tanto de arrependimento atribuído a sua própria ação. Robin pisca algumas vezes voltando a dirigir, sua expressão confusa é indício de que ele provavelmente estava na defensiva à toa.
— Eu não achei que você tinha usado. Eu ia perguntar se você comprou alguma coisa e mandou enviar na minha casa… — ela abre uma das janelas, o frio que entra quase faz barulho contra o calor. Sua mão esquerda faz um sinal para os outros carros quando ela entra para estacionar na frente de uma igreja antiga — Chegou uma caixa lá com o seu nome, mas eu não abri para ver o que era.
— É um presente — ele se lembra de ter feito a compra por impulso em uma das madrugadas viradas. Do lado de fora, as pessoas circulam para dentro da enorme construção, os vitrais parecem ter sido feitos para assustar qualquer pessoa — Eu odeio essa igreja. Não poderia ter sido a salinha abandonada na zona norte?
— Essa era a mais perto e eu preciso comprar algumas coisas no mercado aqui do lado para cozinhar para o Natal. Abby pediu para eu me encarregar da Pavlova — Robin desliga o carro e os dois saem ao mesmo tempo — Me manda mensagem quando acabar aqui.
A reunião não está cheia, mesmo assim, Kevin escolhe um lugar no fundo, escondendo seu cabelo debaixo do gorro e a tatuagem em um band-aid que Robin havia lhe entregado antes de deixá-lo sozinho. Ele não perde tempo procurando os donuts ou o café aguado, porque já tem alguém no púlpito falando. Ele demora para entender a história, mas quando começa sua atenção fica presa.
Ele sabe que tomou a decisão certa quando está no carro novamente ao lado de Robin. Ela está falando sobre o volume de pessoas no mercado por causa das festas de Natal, mas ele só consegue pensar em Theodora. Ele não costumava falar nessas reuniões, mas o tempo para pensar em seus próprios problemas era bem utilizado todas as vezes. A claridade dos acontecimentos o assombram, mas agora ele entendia a sequência de decisões erradas. Deixar Thea manejar sua situação vulnerável talvez tenha sido sua culpa, mas ele nunca mais deixaria acontecer. Durante a viagem de volta, ele abre o celular e bloqueia o número dela. A ligação de seu pai em verde é lembrança suficiente para ele discar o número de imediato e colocar o telefone no ouvido.
— Finalmente o bonito acordou… — David está falando um pouco alto demais, tentando superar o barulho dos carros — É melhor você só vir amanhã e trazer um colchão inflável. Resgatamos mais um vira-lata — ele diz, mas antes que ele consiga perguntar algo, um “Ei” fino escapa do fundo da ligação.
Abby estava colocando as malas dentro do porta-malas quando David atendeu o telefone. Lily ainda não conseguia acreditar que entraria no carro do treinador Wymack de novo. Apesar de passar a noite tentando se convencer de que era apenas o marido de Abby, era quase impossível aceitar que ela estava na casa do treinador da PSU. Treinador das maiores estrelas de Exy do mundo inteiro e pai de Kevin Day. Saber que ele estava na arquibancada durante os últimos minutos de treino fez Lily derrubar Sam, o atacante titular do time da escola, com um pouco mais de força.
— Pegaram tudo? — ele disse, colocando o celular de volta no bolso. — Precisa passar no apartamento de alguém para pegar mais alguma coisa?
— Não, treinador. — Lily se arrumou no banco do carro. — É só isso. — ela apontou a bolsa de lona, a mochila e a raquete.
Wymack olhou a bagagem e deu um pequeno sorriso nostálgico, que Lily não entendeu. Lily escorregou no banco para olhar pela janela. O medo de perder tudo não tinha passado, mas ao menos ela se sentia segura ali. Tinha certeza que Abby não ia chutar ela de casa se ela sentasse no sofá com uniforme de jogo. E por um momento sequer, Lily se deixou sonhar. Pensando em como seria realmente morar com os dois.
Não durou muito. O carro de Michelle estava parado em frente a casa de Abby. A noite anterior tinha sido perfeita e agora ela teria que ir embora. Uma coisa boa se transformando em um novo pesadelo em menos de um segundo.
— Não. Não, não. Vocês falaram que ela só viria de noite — Lily se sentia traída. Suas mãos procuram a maçaneta e ela quase cai para fora quando a porta abre. Ela ia fugir. Ia esperar a noite cair e desaparecer. Lily Davis morreria no coração de Abby e outra renasceria em outro lugar. Já tinha feito algo parecido antes, poderia fazer de novo.
— Lily, espera. Ela disse que já estava aqui perto, eu falei que poderia vir conversar — Abby sai do carro e corre até a garota antes que ela chegasse perto da rua — Ela não veio te buscar, eu prometo — ela fala exatamente o que Lily quer ouvir, então é suficiente para fazer a garota parar — Ela não precisa nem falar com você se você não quiser, tá bom?
— Vem, vou te levar até a quadra para você ver onde fica — David entra na conversa. Ele tira um maço de cigarro do bolso e aponta o caminho pela calçada, o olhar agradecido que ele recebe de Abby quase passa despercebido — Não quero ninguém quebrando meu quintal, porque não consegue passar o feriado sem segurar uma raquete.
Lily havia comentado durante o jantar no dia anterior que nos últimos dois anos tinha passado o Natal na quadra da escola e como resposta e a ilusão de uma promessa, David havia dito que naquele Natal ela não precisaria ir tão longe. Seu coração ainda bate forte em seus ouvidos, mas ela o segue pela calçada, descendo o bairro do pequeno condomínio em que David e Abby moravam. Ele não fala nada no caminho, deixando Lily ficar também em silêncio.
A quadra não é exatamente de Exy, mas tem um gol e muros que serviriam assim como a parede de acrílico. Ela se apoia na grande da porta para olhar melhor o lado de dentro, mas decide entrar quando o treinador pega o celular para fazer uma ligação. Lily desejava ter pego sua raquete apenas para sentir o peso confortável dela em suas mãos. Ela aproveita a ausência de olhos ao seu redor para colocar as mãos no chão e fazer uma estrela. Seguindo mais duas em sequência. Uma com apenas uma das mãos e a outra sem elas.
— Ei, ginasta — ela quase cai na última, quando David a chama. Suas bochechas estão queimando quando ela chega no portão da quadra e seu tornozelo ardendo com a pisada dura — Kevin quer saber se você gosta de sorvete de morango… Ele vem amanhã por causa do Natal.
— Kevin… Tipo, Kevin Day? — o rosto de Lily fica ainda mais vermelho. Ela sabia que David era pai de Kevin, mas nunca tinha visto os dois juntos, exceto em gravações antigas de quando ele estava na faculdade. O astro do exy. A Rainha. Kevin Day estava querendo saber que tipo de sorvete ela gostava. Lily comeria sorvete de grama, se ele trouxesse — Eu prefiro de chocomenta.
Ela não sabe de onde vem esse sabor, não sabe nem qual foi a última que comeu sorvete, mas ela fala mesmo assim. Lily imagina Kevin segurando um pote de sorvete, o mesmo sorriso que ele exibe em suas cartas, em sua frente.
— A criança prefere de Cho. Co. Men. Ta? — ele repete no telefone, pausadamente como se não tivesse visto a alma de Lily sair de seu corpo segundos antes e como se desconhecesse todos os tipos de sorvete do mundo, tirando morango — Ta, tchau. Que caralhos é chocomenta?
É a última coisa que Kevin ouve antes de desligar o celular e devolvê-lo no bolso. O corredor do supermercado não está vazio, mas ele não se humilha a ponto de perguntar a algum funcionário o que diabos era chocomenta. Ele empurra o carrinho através do corredor até finalmente encontrar o pote de sorvete. A casa de Wymack e Abby já tinha abrigado Andrew, Aaron, Nicky, Jean, Robin e ele mesmo por tanto tempo que não era surpresa quando alguém novo acabava aparecendo por lá. Ele só não esperava que fosse uma criança.
Ou talvez soubesse que era inevitável. Desde que Abby tinha optado por uma semi-aposentadoria passiva, trabalhando no Centro Esportivo de uma escola estadual, todas as antigas foxes sabiam que era questão de tempo até um dos alunos aparecer para jantar. Só não previam que demoraria pouco menos de dois anos para acontecer.
O apartamento está escuro quando ele volta. Ellie está cochilando no sofá e o som da televisão é mínimo ecoando pela sala. Depois da reunião, Robin havia o deixado na frente do prédio, mas ao invés de subir, ele decidira seguir o que a garota tinha feito e comprar as contribuições para o Natal, já que iria para lá já no dia seguinte. É só quando ele deita na cama que percebe o quão cansado realmente estava.
Ele sonha que a seleção joga contra um bando de adolescentes, mas nem Andrew e nem Neil estão lá para impedi-los de serem massacrados por crianças.
Notes:
Eu fiz uma fanart da Lily conhecendo o Kevin. Postei no twitter (@thebubblefrog). Vou colocar o Link aqui:
https://x.com/thebubblefrog/status/1441804947629162498?s=20
Chapter 3: The First Practice
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Saber que conheceria o famoso Kevin Day e que poderia ficar na casa de Abby até o ano-novo era suficiente para que Lily não conseguisse prestar atenção em nenhuma de suas aulas. Durante a primeira metade, ela havia se concentrado em escrever “Lilian Winfield” na contracapa de seu caderno até seu pulso começar a doer, depois fizera um esboço do rosto de Kevin em roupas casuais segurando um pote de sorvete de chocomenta. Quanto mais tempo a aula se prolongava, mais detalhes ela colocava no desenho, imaginando o que ia falar para ele quando estivessem de frente um para o outro.
A cabeça de Lily só se esvazia durante o treino, sua atenção grudada no atacante reserva que ela estava marcando. Ela não conseguia entender a ideia de colocar titulares contra reservas, já que não melhorava em nada a harmonia em quadra em dias de jogo. Os reservas entravam, mas nenhum dos titulares sabia jogar junto a eles. Lily sabia que não era a única que odiava aquele arranjo, mas ninguém contestaria o treinador Diaz. Naquela altura da vida do treinador, qualquer discussão o faria pedir demissão e virar mais um Papai Noel de shopping. Era melhor ser o quinto melhor time das equipes jovens do sudeste, do que não ter time algum.
Se perder no breve pensamento de perder seu time, é distração suficiente para que ela seja derrubada no chão, deslizando contra a madeira. Evans, o atacante, faz o gol em Anne Marie e depois a ajuda a ficar em pé. Ele comenta algo sobre não ser hora de ficar no mundo da lua, considerando que amanhã teriam o primeiro jogo da temporada, mas não fica o suficiente para que Lily tenha tempo de fazer um comentário espertinho sobre o porquê de ele se preocupar tanto se nem vai jogar.
Ela se posiciona novamente e espera Anne Marie jogar a bola em sua direção. Estar na defesa era melhor do que estar no banco, mas definitivamente não era melhor do que ela se sentia quando estava com a bola correndo. O atacante do seu lado não era o mais talentoso, o que abria espaço para que ela corresse mais do que metade da quadra, mas não era igual a sensação de fazer um gol. Quando o treinador reúne o time para encerrar o treino, os titulares fizeram treze pontos contra três.
Assim que os outros jogadores se dispersaram, Lily foi direto para a sala de Abby. Ir para o vestiário tão cedo era quase suicídio. As líderes de torcida tinham seu treino no mesmo horário que o exy, o que fazia o lugar ficar lotado por um tempo. E considerando que Edith era capitã da equipe de torcida, sua vida se tornaria um inferno no momento que ela entrasse no vestiário. Bater papo com Abby por algum tempo já era quase ritual a esse ponto e comprava o tempo que ela precisava enrolar perfeitamente.
— Você me dá um segundinho, Lils? Ashton precisa passar aqui para dar uma olhada no pulso, aí podemos ir embora — ela pede, assim que Lily aparece na porta, que dobra o lábio inferior enquanto assente. Faz sentido que Abby queira acabar seu trabalho logo, já que conversar com Lily poderia ser feito em casa, mas não impede a garota de sentir uma pontada de rejeição.
Ela passa no vestiário para pegar sua mochila, agora sobraram apenas as meninas do seu time. Mesmo assim, ela não pensa em tomar banho. O dia que ficasse sem roupa na frente das outras garotas do time, seria o mesmo dia que ela se enfiaria na frente de um ônibus em movimento. Lily tinha visto’ Carrie, a estranha’ vezes o suficiente para saber o que acontecia quando pessoas como ela se deixavam vulneráveis na frente de garotas como aquelas. Ela não acena para se despedir ou fala alguma coisa para reconhecer a presença delas ali. Elas fazem o mesmo.
“Pra que tem chuveiro no vestiário se você vai simplesmente vir suja para casa?” A voz de Boris a faz olhar em volta do corredor apenas para encontrar o lugar todo vazio. Ela arruma sua mochila nas costas e esconde o sentimento de sua respiração acelerada enquanto começa a correr. Lily só para quando chega perto do carro de Abby, na vaga de funcionários do centro esportivo.
Dali ela consegue ver toda a estrutura. Por ser uma construção do Estado, tem três grandes estádios, futebol americano, tênis e exy e um prédio de reuniões. Ele é usado pelas sete escolas da Carolina do Sul de forma que os treinos são organizados de acordo com a disponibilidade. Eleanor Roosevelt tem três horas durante as tardes de dias ímpares, porque não é uma escola focada em esportes. Brighton Hall tinha três horas todas as manhãs, com todo seu horário de aulas pautados em volta disso. Não era atoa que eles eram considerados o melhor time de exy em todo sudeste. Se tivesse uma, Lily daria sua bola esquerda para estudar lá.
— Eu vou tomar banho assim que chegar na sua casa, eu juro. Esqueci de trazer outra roupa — Lily fica em pé quando Abby se aproxima para abrir o carro. Era mentira, mas não exatamente. Ela nem tinha cogitado colocar outra coisa além do uniforme na mochila.
— Não tem problema, meu bem. Você só vai ter que dividir o banheiro com Kevin a partir de agora. Ele monopoliza um pouco — Abby sussurra a última parte e Lily entra no carro voando para conseguir ver o rosto dela — Cinto… — A mulher aponta, mas Lily está debruçada por cima dos compartimentos de airbag.
— Ele já chegou? — Lily balança as pernas, se rendendo ao olhar de Abby para colocar o cinto. Quando ela confirma, Lily fecha as mãos e bate os pés no chão, pensando que vai explodir de animação — Como ele é de verdade? O que ele gosta de fazer no tempo livre? É verdade que ele tem um cachorrinho?
Abby só confirma com a cabeça, rindo provavelmente do quanto Lily era patética. Ela não se aflige com o provável julgamento. Kevin Day estava há poucos quilômetros e ela precisava elaborar todo seu discurso que já preparava anos, para o dia que dividisse uma quadra com ele. O sonho tinha começado há tanto tempo que a memória era facilmente resgatável.
A casa toda estava cheia do cheiro de batatas assadas e alecrim. Uma garotinha com tranças e um vestidinho roxo podia ouvir a voz doce de sua mãe cantando na cozinha. Ela cantava tão bem que acalmava cada osso do corpo da pequena. De vez em quando, a melodia parava e a mulher ria alto. A televisão à sua frente era grande e colorida, exibindo uma partida ao vivo de exy. A menina assistia atentamente. Ela entendia o suficiente das regras. O suficiente para saber quem era seu jogador favorito e que ela não ficaria feliz até o dia em que pudesse ter uma raquete nas mãos.
“Querida, venha almoçar.” A mãe apareceu na porta da cozinha. Ela tinha a pele escura e suave e usava um avental colorido. Seu cabelo era tão cheio e cacheado. Sempre cheirava a jasmim. Mas a pequena não conseguia tirar os olhos da televisão. “Filha, o Kevin Day estará no mesmo lugar quando você voltar.” Ela se aproximou, pegando-a com um pouco de esforço.
“Espera!” A menina se ajeitou no colo da mulher, afastando as mechas de cabelo para poder olhar para a televisão. E ali estava. O momento que Kevin Day e o mundo todo nunca esqueceriam por muitos e muitos anos.
Kevin Day, um jogador canhoto, trocaria sua raquete para a mão direita no meio da jogada, pescando o rebote com precisão e girando o corpo para a outra direção, mirando perfeitamente no gol nos últimos segundos do jogo. O time inteiro comemorava. Mãe e filha trocaram high fives e risadas.
“Uau...” A mãe olhou para a menina, divertida, e continuou caminhando até a cozinha. “Se você vai ser melhor que o Kevin Day um dia, precisamos te colocar em ritmo urgente.” Ela brincou, mas o olhar que recebeu dos olhos da criança era dedicado e firme. Aquela centelha nos seus olhos que nunca desapareceria enquanto o Exy ainda fizesse parte da sua vida.
A porta da casa de Abby agora estava decorada com uma guirlanda branca com flores vermelhas e pequenas luzes adornavam as pontas do telhado. Era simples comparado com as outras casas do condomínio, mas algo dizia que não era algo comum. Como se tivessem sido colocadas ali para ela ver. Abby sorriu de modo encorajador quando as duas pararam em frente a porta e a guiou para dentro da casa.
— Retorna para casa a mulher que falou que ia comprar suco na volta e voltou sem o suco — uma voz soou do outro lado da sala. Lily a reconhecia, mas não necessariamente de seu dia a dia. Ela também não conseguia ver quem era, porque Abby estava em sua frente.
— Vai e compra você, folgado — Ela jogou a chave do carro na direção do sofá e saiu andando na direção da cozinha, após o grunhido e o barulho metálico que fez parecer que as chaves tinham atingido a barriga da outra pessoa. Abby foi para a cozinha e Lily finalmente conseguiu colocar em um rosto a voz que vinha do sofá.
Com seus 31 anos, em pé na frente da tv, uma calça de moletom folgada, um arquinho de cabelo preto e uma cara de dor de quem acabou de ser agredido por um objeto pequeno, estava o famoso atleta olímpico, lendária estrela de Exy e o maior ídolo da garota de 16 anos, de uniforme, os cabelos enrolados e olhos heterocromáticos parada na porta de sua casa.
— Kevin Day — O nome dele saiu como um gritinho agudo e meio exasperado da garganta de Lily e a raquete dela foi para o chão, junto com sua bolsa de lona. Ela rapidamente se abaixou para pegar.
Lily teve certeza que quando levantasse ele não estaria mais ali. Ela tinha batido a cabeça em algum momento e agora estava tendo alucinações com sua maior inspiração. Talvez ter vomitado tudo que tinha dentro de si dois dias a tivesse deixado desidratada o suficiente para não conseguir enxergar o que era real. Tudo aquilo era uma miragem. Kevin Day, ela na casa de Abby. O dia que coisas boas acontecessem com Lilian Davis ela acordaria e perceberia que estava sonhando em um coma.
Ela se levantou novamente, mas ele ainda estava ali. Kevin Day estava parado no meio da sala. Kevin Day estava olhando para ela com um sorriso. Lily sorriu de volta, mas teve que se equilibrar para não derrubar a raquete novamente. A tatuagem dele na vida real era tão diferente.
— E você deve ser Lílian, adoradora de sorvetes com sabores inexistentes — Kevin se aproxima de Lily e pega a raquete de suas mãos, colocando na parte de cima do suporte de casacos.
Ele era tão alto.
Lily não conseguiu responder. Ela seguiu para a cozinha, Abby estava a chamando para comer. Kevin Day estava na mesma casa que ela e ainda tinha falado com ela. Lily parecia estar passando mal novamente, era bom que não tivesse comido cinco muffins dessa vez.
— Kevin Day está na sua casa, Abby. — Lily sentou na bancada da cozinha, perplexa, e sussurrou, como se Abby não soubesse. Ela olhou para o prato em sua frente e tocou a porcelana, sem pegar o sanduíche montado a sua frente.
— Ele é filho do David, querida. Veio passar o Natal. — Abby sorriu e colocou um copo de água na frente dela.
Lily ainda demorou alguns minutos para processar. Kevin Day, filho de Kayleigh Day, co-inventora do esporte Exy, e David Wymack, ex-treinador das raposas de Palmetto. Claro que ele estaria em casa para o natal e ela sabia que ele estaria. Lily afundou o rosto nas mãos e depois se beliscou. Não estava sonhando. Ela toca o pão com o indicador e depois pega uma das metades.
— Kevin Day está na sua casa. Ele está na mesma casa que eu. Nós estamos sob o mesmo teto — ela repetiu várias vezes, cantarolando baixinho enquanto comia, tentando normalizar a situação em sua mente. — Legal, legal, legal.
Abby riu e passou a mão no cabelo dela carinhosamente, antes de se sentar ao seu lado. Lily mal percebeu a rapidez com que se passou o resto da tarde. Depois de um banho rápido, ela tentou se concentrar na lição de casa, mas nenhuma de suas contas parecia certa, porque a cada cinco minutos lembrava que ela e Kevin Day estavam na mesma sala e seu surto recomeçava. Abby ria secretamente vendo a carinha admirada que ela fazia olhando para ele.
A situação ficou mais complicada na hora de dormir. Ela havia sido despachada para o sofá e as luzes do lado de fora a mantiveram acordada por tempo suficiente para que seus pensamentos gritassem com ela. A impedindo de dormir. Kevin Day estava no andar de cima. Amanhã, as Palmeiras enfrentariam os Lobos no primeiro jogo da temporada. Michelle poderia aparecer a qualquer momento para arrancá-la dali. Abby poderia se cansar dela e mandá-la embora. Haviam pelo menos três trabalhos de história atrasados e que ela se recusava a começar antes do final de semana.
Lily encarou sua raquete, pendurada ao lado da porta, e foi até ela na ponta dos pés. Ela tinha roubado algumas bolas no treino mais cedo e as achou facilmente em sua bolsa. Abrir e fechar a porta da frente era a parte mais difícil, mas ela mal faz barulho. Não está nevando, Lily havia agarrado seu casaco do cabideiro para esconder o pijama vergonhoso de ursinhos que ela estava usando. Era mais difícil comprar roupas novas quando estava presa no sistema de adoção.
Ela se lembra bem do caminho até a quadra então usa o percurso para se alongar. O portão não está trancado e os muros altos impedem que a brisa fria incomode. Ela levanta a raquete e arremessa a primeira bolinha na parede, esperando ricochetear. Quando volta em sua direção, ela pega com o centro da rede, mirando em um outro ponto no chão. Por alguns momentos eram só ela, o vento frio de inverno e Exy. As únicas coisas permanentes em sua vida, não importa onde estivesse.
Lily arremessava as bolinhas com força contra o muro, algumas ela conseguia pegar, outras escapavam e ela tinha que correr atrás. Não demorou muito para que ela tirasse o casaco e tivesse que prender o cabelo para que saísse de seu rosto. Ela se posiciona novamente e joga a bola com força. Força demais. O pulo que dá em seguida não é suficiente para alcançá-la, mas ela também não ouve a bola pingar no chão.
— Você deveria jogar a bola mais para baixo. Assim ela não vai muito alto e você ainda consegue treinar sua mira. — Kevin estava atrás dela, segurando uma raquete bem maior que a dela e provavelmente bem mais pesada. Ele joga a bola para ela, que consegue pegar com a rede. — E levanta mais o cotovelo, quando for arremessar, vai te dar mais estabilidade.
Lily demorou um pouco menos para processar as informações. Ela arremessou a bolinha mais para baixo. Esperou ricochetear, pegou com a rede e rodou um pouco o braço, arremessando na direção que queria. O sorriso em seu rosto foi perceptível. Ela fez mais uma vez. E depois outra.
Kevin continuava atrás dela. Ele dava conselhos e chegou até a arremessar algumas bolas em sua direção. A paixão que os dois tinham pelo esporte se misturava ao ar como neve, contagiando tudo.
Até Lily espirrar.
— Vamos voltar — Kevin diz de imediato, — Eu me deixei levar. Está frio demais para isso e você deveria estar na cama — Ele abre o portão da quadra, apoiando a raquete no chão. Lily tem vontade de teimar e falar que está bem, mas não quer deixar Kevin Day irritado, então o segue pelo caminho de volta para a casa de Abby.
— Você trouxe sua raquete — Lily menciona, caminhando ao lado dele na calçada. A ausência de resposta não a chateia, já que ela não havia feito uma pergunta — Se está frio demais para jogar, porque você trouxe?
— Muita coisa na cabeça. Meu pai falou que você é defensora, mas estava treinando arremessos de ataque — Não é uma pergunta, por isso Lily também não faz questão de responder. Os dois seguem em silêncio até entrarem na casa novamente — Vou fazer alguma coisa quente para você beber.
— Eu ‘tô bem. Não precisa. — ela abaixa para desamarrar os tênis e escala uma das banquetas, bocejando.
— Não perguntei, Josten 2. Vai lavar as mãos. — ele apontou o lavabo e Lily obedeceu.
Ela pulou para fora, ainda tentando fazer pouco barulho, ligou a água morna e aproveitou para lavar o rosto. Se sentia mais cansada do que antes, o que significava que provavelmente conseguiria dormir sem ficar pensando em quantas formas ela poderia fugir da assistente social, do seu time de exy e de qualquer final trágico para a história agradável que estava se montando ali. Ela pulou de volta na banqueta, sendo recebida com uma caneca com líquido escuro.
— Não é café — ele explicou pela careta no rosto de Lily — Eu só errei a mão, mas ainda é chocolate. Quem sabe de cozinha é a Abby. Mas não ficou ruim. — Ele mostrou que segurava uma caneca igual a dela e se sentou no banco do outro lado.
— Sobre o que disse antes... Josten. Tem alguma coisa a ver com “o” Neil Josten? — Lily perguntou, colocando a caneca na boca para testar se estava quente. — Tipo, o Josten? — seus olhos estavam brilhando novamente, o que fez Kevin rir.
— É, ele mesmo. Quando estávamos na faculdade, ele costumava sempre falar que estava bem, mesmo quando estava fodidamente claro que ele não estava. — Kevin tentou não parecer arrependido de ter soltado um palavrão, tomou o resto de seu copo em uma virada e colocou a caneca na pia. — Se você não pegar uma gripe, nós podemos treinar mais amanhã.
— Eu tenho jogo amanhã. Vocês são amigos próximos? — ela tenta mudar de assunto para conter a animação com a afirmação dele. Treinar com Kevin Day era provavelmente o mais alto que sua vida chegaria.
Kevin deu de ombros, com um suspiro anasalado, sem responder a pergunta exatamente e se encostou na pia. Lily acabou seu chocolate quente enquanto tentava entender o que aquilo significava. Os dois haviam estudado juntos e agora estavam na seleção e no time da Carolina do Sul juntos, mas isso podia muito bem não significar nada. Ela devolveu a caneca para a pia e foi expulsa da cozinha por Kevin, depois de tentar lavar a louça enquanto ele não estava olhando. Então, apenas se enfiou no sofá e fechou os olhos. Talvez demorasse mais um pouco para dormir, mas dessa vez seria por não conseguir conter sua animação.
Chapter 4: The First Crisis
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Tem um formigamento estranho no peito de Lily que surge no momento em que ela abre os olhos e consegue ver a sala aconchegante de Abby. Ela não sabe como explicar se é algo realmente bom ou fruto da expectativa de que algo horrível vai acontecer. Saber que tudo que havia acontecido nos últimos dias não tinha sido um sonho quase deixava de ser suficiente. Lily tinha treinado com Kevin Day, dormido sob o teto de sua pessoa favorita e sobrevivido três dias inteiros sem cruzar os olhos com Edith. Não era suficiente para fazê-la acreditar que aquilo ia durar, mas bastava para fazê-la sorrir, agarrando a borda do cobertor macio até sentir o cheiro dos anos que ele passara guardado dentro de um armário.
— Alguém acordou de bom humor — Lily não percebe que Kevin está ali até ele falar. Suas pernas estão cruzadas em cima da mesinha de centro e ele ocupa o canto do sofá logo ao lado dos pés de Lily. Na TV, uma reprise do jogo entre o time da Carolina do Sul e de Nova Jersey passa no canal principal — Eu não me lembro quase nada desse jogo. — ele estava com o mesmo moletom do dia anterior, mas tinha feito a barba e o cabelo estava bagunçado — Nem parece que fazem só dois meses. Me fala o que você consegue ver.
Lily esfrega os olhos contra as costas da mão e olha para a televisão. Não precisava analisar os jogadores, só vasculhar a própria memória até achar o que queria. Afinal, já havia assistido aquela partida pelo menos três vezes desde que havia ido para o ar.
— O backliner de NJE deixou todo o trabalho para o goleiro. O gol tem que ser a última linha de defesa da quadra, não a segunda. — Lily murmurou observando o jogo e cruzou as pernas, se colocando sentada — Você mal deve ter precisado se esforçar.
Kevin se ajeitou no sofá ouvindo ela falar. Eles trocavam comentários sobre cada jogador sem nenhuma piedade. Por parte de Lily, a maioria dos jogadores foi criticada, mesmo que ela soubesse que não conseguiria fazer metade do que eles faziam, falar sobre as falhas dos outros ajudava a corrigi-las em si mesma. Nem mesmo Kevin passou ileso de um dos comentários ríspidos de Lily e ele teve que confessar que a passada perdida tinha sido fruto de uma repentina falta de atenção. Kevin criticava os outros jogadores na mesma intensidade, pegando um pouco mais pesado com os membros de seu time e não fazendo comentário algum sobre Andrew e Neil. Quando a partida finalmente se encerrou, Lily se virou para Day, apoiando a cabeça no encosto do sofá.
— É verdade que você vai mudar de time? A imprensa está dizendo que você comprou um apartamento em Nova York e vai sair daqui. Eu achei que era besteira, porque o time daqui é bem melhor e eles parecem em sincronia com você. No NYE você teria que começar do zero. O mundo não sobreviveria um dia sem o trio de ouro — Lily soltou as palavras que estavam presas dentro dela desde o primeiro momento em que Kevin comentou sobre sua performance na noite anterior. Ela não sobreviveria um dia vendo Neil, Andrew e Kevin jogarem juntos apenas nos jogos da seleção. Kevin riu.
— Você parece que sabe mais da minha vida profissional do que qualquer outro repórter. — seu tom era de brincadeira e Lily optou levar aquilo como um elogio. — Eu recebi uma proposta muito boa de NYE. Mas eu ainda não sei o que vai acontecer, não tenho vontade de jogar sem eles.
Lily se surpreendeu com a resposta, mas não fez nenhum comentário a mais. Não imaginava que Kevin Day pudesse tomar uma decisão profissional que envolvesse seu ambiente pessoal. Não por achar que ele não ligava para a família, mas porque ele sempre foi popular por seu foco em jogo e sua árdua motivação — coisas que motivaram Lily a focar em Exy como se sua vida dependesse daquilo de vez em quando. Ela queria ser como o Kevin Day, não importava se passaria sua vida inteira sem uma família.
— Café, Lills — Abby aparece no canto da sala e faz um movimento com as mãos indicando que ela se levantasse.
— Vou salvar outras partidas para você assistir depois. — Kevin se esticou por cima do sofá e pegou o controle. Era o incentivo que ela precisava para deixar o cobertor de lado e sair do sofá.
— David vai levar você, porque ele tem que passar na Brighton, que é caminho. Eu só vou para o Centro quando estiver perto da hora do jogo. Você consegue ir de carona para o treino? — Abby coloca um prato na frente na frente de Lily e depois pega uma caneca que estava encaixada na cafeteira.
— Consigo… — a mentira é mais rápida do que a explicação. Era difícil ter uma carona quando não se tinha amigos no time. Não importava, ela arrumaria algum jeito de chegar. Nem que tivesse que ficar sem almoçar para que tivesse tempo suficiente. Ela come sua torrada enquanto calcula as rotas mais rápidas a pé da escola até o Centro.
Em dias de jogo, a escola ficava agitada. Pequenas bandeiras verdes e azuis estão espalhadas nas enormes janelas dos corredores, as pessoas se cumprimentam como se fossem amigas e os professores se importam menos com a bagunça dentro da sala de aula. Era o único dia em que Lily se sentia um pouco mais normal. As pessoas desejavam “bom jogo” e diziam que ela “iria arrasar”. Ela agradecia, sem se importar muito com a atenção. Mesmo assim, antes de deixar a casa havia quisera parecer apresentável e não como “a garota órfã do terceiro ano”. Ela prende parte do cabelo em dois coques em cima da cabeça, deixando a parte de trás solta. Dentro de sua mochila, ela acha uma blusa de lã listrada em diferentes tons de marrom, vestindo sem pensar duas vezes.
— Os olheiros da Brighton vão estar aqui hoje? — uma voz chocada soa atrás dela durante a aula de matemática, mas ela se força a continuar encarando suas equações.
— Por causa do concurso. Eles vão dar duas bolsas. Mas o resultado só vai sair dia primeiro — outra pessoa responde.
Lily não devia prestar atenção na conversa dos outros, principalmente quando se tratava de algo que ela estava tentando esconder fundo em sua memória. A bolsa, os olheiros da Brighton, era um sonho impossível. Abby tinha obrigado ela a colocar o nome na lista meses antes, mesmo assim tinha se obrigado a esquecer a informação até aquele momento. Seria doloroso demais não ser aprovada.
— Evan, Davis e Forcino, do nosso time, que eu saiba — a segunda pessoa volta a falar. Lily quase se vira quando seu nome é mencionado — Eu ouvi que eles precisam de um goleiro, então é capaz de chamarem a Forcino, mas Davis e Evans não tem chance — o coração de Lily parece apertado contra o próprio peito — Ela é boa, mas só o time sabe disso, porque já viu ela arremessar no gol. Ela não brilha na defesa. E Evans, bom, ele está no time reserva por um motivo, aquele garoto não sabe jogar, só empurrar.
Lily mal espera o sinal tocar para juntar suas coisas e sair correndo. Já era uma merda saber que estava na posição errada, mas saber que os outros viam isso era horrível. Só confirmava que o melhor que ela dava na defesa nunca seria suficiente. As coisas só pioram quando seu cadarço fica preso em algo, a fazendo ir para o chão, quase sem tempo para apoiar as mãos.
— Desculpa — Noah Kizuma desliza sua cadeira de rodas para longe de Lily, soltando seu tênis, mas depois se aproxima de novo para ajudá-la a se levantar. Lily repreende seu xingamento quando vê o garoto em sua frente, aceitando de bom grado a ajuda — Pensando no jogo de hoje?
Noah e Lily tinham algumas aulas juntos e passavam os intervalos juntos sempre que ela criava coragem de entrar no refeitório da escola. Os dois tinham uma relação peculiar de amigos. Se conheciam há dois anos, mas sabiam poucas informações sobre a vida pessoal um do outro. O que explicava a surpresa estampada no rosto de Lily ao ver o garoto com o uniforme masculino da torcida das Palmeiras.
— Ah, sim. Eu entrei para a torcida faz uns dois meses. Precisava dos créditos. Era isso ou grupo de debate — ele explica, ajudando ela a colocar os livros de volta na mochila — Vai para o treino com a Abby?
Por um momento, Lily se perguntou como ele sabia o nome da enfermeira se ela costumava frequentar apenas o Centro Esportivo, mas assumiu que a torcida também passava com ela. Seu pensamento é interrompido pela imagem de Edith White e Abby na mesma sala, suficiente para arrepiar o corpo inteiro da garota.
— Não, ela vai direto. Eu acho que vou a pé — Lily arruma a mochila nas costas.
— Você pode ir comigo, se quiser. Nós vamos passar a tarde revendo as rotinas. O motorista das minhas mães vai vir me buscar, se quiser me encontrar na saída.
A expressão de Noah é séria demais para todas as perguntas que brotam na cabeça de Lily. Ela engole todas junto com seu orgulho e aceita a carona, decidindo ignorar o fato de que Noah é rico e tem um motorista. Apesar de curta a viagem, Lily se permite fechar os olhos sob o ar condicionado e a trilha sonora de algum musical que ela não fazia questão de conhecer. Noah passa o trajeto falando o quão as coreografias da torcida estão ruins, mas ninguém tem coragem de reclamar com a capitã. Lily se identifica com o discurso, mas não contribui. Ela não falava sobre Edith com ninguém e não começaria com Noah.
Os dois se separam na entrada da quadra e Lily vai direto para o vestiário para se trocar, antes de procurar Abby com seu almoço. Na enfermaria, Kevin Day está sentado em uma das poltronas, mexendo dentro de uma caixa de comida chinesa com dois palitos de madeira. Abby não está ali, mas ela não pede permissão para entrar, sentando-se ao lado do jogador. Ela pega a caixinha com seu nome em cima e abre devagar, tentando parecer casual.
— Um dos seus amigos se machucou na quadra, Abby foi ver como ele está — Kevin pega um dos biscoitos da sorte e coloca na frente dela.
— Não são meus amigos, eu só jogo com eles — Lily dá de ombros, mexendo em sua comida. Ela pega dois palitinhos e respira fundo, tentando equilibrá-los em seus dedos. Depois que o primeiro cai no chão ela desiste, indo atrás de um garfo dentro da gaveta da escrivaninha de Abby.
— Mesma coisa — ele dá de ombros. Lily imagina que ele está pensando nas raposas ou no time da Carolina do Sul. Ele não entendia o quanto era diferente, mas ela também não fez esforço para explicar. Lily nunca veria seus time como a família que as raposas eram. Ela nunca conseguiria.
— Você veio trazer o almoço? — ela brinca com um dos fios de macarrão na ponta do garfo. Kevin não parece incomodado com a mudança de assunto, então ela continua — Normalmente em dia de jogo, Abby compra comida indiana.
— Estava fechado. Eu vim te ver jogar. Abby passou horas falando do seu talento, achei que precisava ver pessoalmente — Se Lily estivesse com alguma coisa na boca teria engasgado. Ela se limita a tossir e colocar a caixinha em cima das pernas, tapando a boca com as mãos — Qual é? Eu te vi jogando ontem. Você arremessa bem.
— Só que eu jogo na defesa e meus arremessos só servem para a primeira metade da quadra… — ela contradiz, enchendo a boca de macarrão para não precisar falar mais nada.
Kevin não discute e Lily se considera vencedora da discussão. Ela não come muito mais depois de engolir o montante que havia colocado na boca, assistindo os ponteiros do relógio mudarem de lugar até que Abby apareça na porta. Quando ela finalmente chega, seus braços descolam do quadril demonstrando alívio.
— Que bom que você chegou. O treinador Diaz quer falar com você, se você já tiver acabado de comer — ela aponta para o corredor e Lily não espera muito para sair, deixando sua caixinha e o garfo em cima da mesa. Abby mal espera ela sair para sentar na escrivaninha e abrir o computador.
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Todos os sinais para o início do jogo já haviam sido tocados, mas Lily não estava em lugar nenhum perto da quadra. Ela conseguia ouvir as bandas das duas escolas tocando seus hinos e os gritos dos estudantes. Altos o bastante para abafar o som das lágrimas que escorriam por cima das luvas de seu uniforme, escondendo o tremor suave de suas mãos. Depois de ouvir as palavras “reserva” e “ataque”, todo o discurso do treinador havia sido um desperdício enorme.
Ela podia muito bem ter ido embora depois da conversa. Ser colocada no banco era ruim o suficiente, mas ser colocada no banco para uma posição que ela não estava acostumada a jogar era pior ainda. Não importava que seus arremessos eram bons ou se ela conseguia correr. Não tinha treinado naquela posição. Não sabia como os outros jogavam. Esse nem era o pior de tudo. Era o primeiro jogo da temporada, perder era inevitável. Mas perder jogando como atacante reserva na frente dos olheiros do Brighton. Lily quase não conseguia aguentar.
— Lilian? — a voz vinha de algum lugar do outro lado do corredor. Em qualquer outro momento, teria sido maravilhoso ver Kevin Day segurando uma raquete com as cores das Palmeiras, mas naquele momento só fez a garota se encolher mais um pouco no canto do corredor, tentando desaparecer entre as paredes.
— Por favor, vai embora — ela murmura, mas só se ouve pelo eco a sua volta. Kevin não escuta já que senta em sua frente, as costas apoiadas contra um montante de armários — Eu disse para ir embora.
— O jogo vai atrasar um pouco. Tem uma jogadora desaparecida — ele apoia a raquete ao seu lado e levanta a cabeça na direção do teto. O silêncio quase perdura, mas um pequeno soluço de Lily, faz Kevin se mover desconfortavelmente — Você quer ir embora? O carro do meu pai está parado lá fora — ele balança as chaves, o suficiente para Lily levantar a cabeça.
— Você está blefando.
— Não estou. Se você falar que quer ir embora. Eu te levo. Eu também não ia querer me humilhar assim na frente de tantas pessoas. Se você quiser fugir, só dizer a palavra — ele dá de ombros, apoiando o braço em cima de um dos joelhos.
Lily abre a boca, mais de dez coisas passando em sua cabeça ao mesmo tempo. A primeira delas gritando que Kevin Day era um babaca e todas as outras apenas confirmando o quanto ele estava certo. Ela queria fugir. Queria voltar a se enfiar embaixo das cobertas de Abby e só existir ali. Nunca mais pisar em uma quadra. Nunca mais tocar em uma raquete. Lilian Davis realmente poderia existir se exy não estivesse em sua vida?
— E ai? Você pega suas coisas e eu vou ligar o carro? — ele pergunta, parecendo inabalado com a incredulidade estampada no rosto de Lily.
— Talvez eu nem jogue. Evans e Lenny já seguraram um jogo inteiro antes. Se o treinador achar que eles conseguem, eu nem vou entrar em quadra — ela despeja, esfregando as luvas nas bochechas úmidas — Era pra ser meu primeiro ano como titular. Eu sabia que não devia ter colocado meu nome naquele negócio. Abby ficou semanas insistindo, mas era óbvio que eu só ia passar vergonha.
— Se ele soubesse que dariam conta sem você, ele não teria te pedido para jogar na reserva. O cara é velho, mas ele sabe organizar um time — Kevin devolve as chaves para o bolso de sua calça e fica em pé, tirando a poeira de seu jeans. Ele estende a mão para ela — Você pode fugir se quiser, mas você também pode mostrar para eles o que consegue fazer mesmo quando as circunstâncias não estão ao seu favor.
Lily aceita a ajuda para levantar e alcança sua raquete antes dele. Três dias antes, se perguntassem a Lily se ela preferia fugir com Kevin Day ou jogar uma partida de Exy humilhante, sua resposta teria sido totalmente diferente. Agora, ela se via caminhando na direção da quadra, o capacete encaixado embaixo de um dos seus braços. Sua coragem não passava de um cão covarde, mascarado pela presença de Kevin. Se ela se forçasse o suficiente podia fingir que ele estaria orgulhoso de vê-la tentar, talvez bastasse para sobreviver ao jogo. Lidar com o fato de ser para sempre um projeto de caridade que as pessoas tentam salvar ficaria para outra hora. Afinal, se ela conseguia engolir esse sentimento para passar duas semanas na casa de Abby, duas horas de jogo seriam moleza.
Chapter 5: The First Couple
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Neil ouviu o clique da janela , que dava na escada de incêndio do prédio em que morava, poucos minutos após se sentar nos degraus frios e acender um cigarro, apenas para assistí-lo queimar enquanto via os carros passando pela avenida. Ele olhou na direção do barulho e viu um Andrew Minyard ainda meio sonolento, abrir o vidro e pular para fora. Estava usando uma blusa de lã listrada em vários tons de marrom, presente de Natal de Betsy. Seu cabelo estava meio úmido então Neil imaginou que ele tivesse acabado de sair do banho. Sua calça jeans estava cheia de pelos de gato, mas Andrew não parecia se importar.
— Achei que ia dormir até mais tarde — Neil disse, ao invés de "bom dia".
— Wymack ligou — disse, ignorando o comentário — Disse para não nos atrasarmos para o almoço, se não vai cortar nossas cabeças ou algo do tipo. — Andrew sentou ao lado de Neil, esgueirando as pernas por entre as barras de metal e tomando o cigarro de sua mão, o colocando na boca — Você está nervoso — ele ergueu o cigarro, como se apontasse para ele.
Andrew tragou e apoiou os braços nas grades medianas do corrimão. Neil não respondeu de primeira. Não porque fosse desmentir a acusação, mas porque não queria falar o motivo. Estava bem, olhando a movimentação nova iorquina e fingindo que não tinha problemas nenhum.
— E você está de bom humor. — Neil devolveu e Andrew deu de ombros, não convencido com o redirecionamento da afirmação. Neil suspirou. — É a primeira vez que vamos encontrar com ele, desde...
O vestiário masculino. Os chuveiros ligados, mesmo vazios. As últimas três pessoas após uma partida de Exy extremamente cansativa. E um desejo acumulado durante anos. Foi assim que Kevin, Andrew e Neil passaram o último pós-jogo da temporada. Um simples "sim ou não?" de Neil que ricocheteou nos "sim"s de Kevin e Andrew, consentindo os próximos minutos. Neil lembrava vividamente da boca de Kevin na sua e depois na de Andrew. Era novamente como se o mundo começasse e acabasse na boca dos dois. Ele tinha poucas certezas na vida, mas aquela era definitivamente uma delas. Neil sempre pensara que era o centro de gravidade que mantinha os três perto, mas na verdade sempre havia sido Kevin.
E então, eles não se viram mais. A temporada acabou, Kevin não respondia mais as mensagens e o corredor que os três dividiram permanecia vazio. Neil e Andrew conversaram, mais de uma vez, precisavam saber se estavam tomando a decisão certa. E realmente sentiram que estavam. O feriado era o momento perfeito para falarem sobre aquilo. Estavam à um passo de Kevin.
— Vamos manter o combinado — Andrew disse finalmente. — Depois do jantar… Nós três.
Neil pegou o cigarro de sua mão e apagou no chão da escada, jogando a bituca no ar e vendo ela cair no asfalto metros abaixo dos dois. Os dois viraram quando outro barulho no vidro chamou sua atenção. Sir Fat Cat McCatterson pulou por cima da beirada e veio na direção de Neil que prontamente a pegou no colo.
—Não tem nada para você aqui fora, Sir. — murmurou olhando a gata e dobrou as pernas para poder se levantar.
— Já está pronto para ir? — Andrew levantou e foi o primeiro a pular pela janela para voltar para dentro da casa. — Abby pediu para levarmos a sobremesa. Eu fiz uma torta.
— Você o que?! — Neil pulou para dentro junto com Sir e fechou o vidro. Ele tinha acordado há pouco tempo, como tinha tido tempo para cozinhar?
— Fiz uma torta. — repetiu e revirou os olhos ao encontrar a cara de Neil. — Ontem, idiota. De tarde. Ela me ligou, disse que tem uma visita e não ia ter tempo de fazer a sobremesa.
— Visita? — Neil, perguntou confuso. Kevin não era mais visita na casa de Abby e as outras raposas não dariam as caras naquele ano. Não tinha ideia de quem poderia estar visitando Wymack.
Andrew deu de ombros. Ele também não sabia. Os dois se dirigiram até o quarto. Neil colocou Sir em cima da cama e foi até o armário, levantando a alça de uma pequena mala de rodinhas que estava parada na frente . Andrew abriu a porta atrás de Neil para pegar outros casacos.
— As duas vão ficar aqui sozinhas? — Andrew perguntou ao observar King Fluffkins deitada em cima de seu travesseiro. Neil pareceu não entender a quem a pergunta se referia, mas logo em seguida seu olhar encontrou as duas gatas.
— Voltamos amanhã depois do almoço. Não tem como levar elas duas para a casa da Abby. Já é gente demais — Neil lamentou, arrastando a mala para fora do quarto — Enchi as tigelas de comida e deixei os potinhos de água corrente ligados. Elas vão ficar bem.
O “hum” que Andrew emitiu foi suficiente para que Neil soubesse que ele tinha se dado por convencido, apesar de não satisfeito. Os dois seguiram para a sala/cozinha compartilhada. Andrew apoiou as costas no balcão e tirou o celular do bolso, olhando a tela.
— Não esquece que temos que ligar para o Nicky, na Alemanha, quando for seis horas ou ele vai passar a semana inteira chorando que esquecemos dele no Natal. — Neil disse, vendo Neil juntar as coisas ao lado da porta para não esquecerem nada. — Me diga que você não esqueceu de enviar os presentes. Se não, já vou começar a planejar o nosso funeral conjunto.
— Sim, eu mandei. Não sei se Nicky vai gostar daquela jaqueta, mas enviei a que você escolheu. —Andrew checou pela milésima vez, nos últimos cinco minutos, se tinha pegado a carteira e as chaves do carro. — Podemos ir se quiser. Os presentes já estão no porta-malas. E acredite. Ele vai amar. — Andrew revirou os olhos. Odiava a tal da jaqueta tanto quanto Neil, mas era tão insuportavelmente a cara de Nicky que não teve como escolher outra coisa. —Espera um minuto.
Andrew caminhou na direção do quarto deixando Neil sozinho na sala. Ele colocou a chave na fechadura e abriu a porta. O corredor comum entre os apartamentos do prédio era revolto por janelas e luz do sol entrava por todas as partes. Tinham escolhido aquele condomínio exatamente por esse motivo e não se arrependiam de pagar um pouco mais caro que o normal se isso significasse que poderiam viver em um lugar o mais distante da aparência de uma prisão como o Ninho possível.
Neil puxou a mala para o lado de fora e a deixou parada sobre o tapete. Quando Andrew voltou sua blusa estava cheia de pelos de gato, fazendo um sorriso bobo surgir no rosto de Neil.
— Circulando, Josten — ele fez um movimento circular com o indicador no ar, mas Neil não se moveu. — Vamos chegar atrasados — ele disse como se ligasse, porém estava apenas tentando se segurar para não espelhar aquele sorriso que fazia todo seu coração tintilar.
Andrew estava parado na frente de Neil, que se encostou no batente da porta. Sua cabeça levemente inclinada para cima e os braços cruzados em frente ao seu corpo. Aquele sorriso estupidamente bonito ainda o encarava.
— Você estava dando tchau para as gatas. — Neil afirmou, segurando o tecido da manga do cardigan de Andrew e puxando um pouco para si, sem encostar em seu braço. — Está com pelos de gato até no rosto. — ele riu, Andrew ainda o encarava apatético.
— Para de me olhar assim. — Andrew pediu e descruzou um dos braços, o que tinha a manga presa nos dedos de Neil e tocou em seu peito para empurrá-lo para trás.
— Assim como?
— Como se eu fosse adorável. — fez uma careta com a palavra. — Com esse sorriso idiota.
— Você é. E estava se despedindo das gatas. Não dá para evitar… — Neil agora segurou a barra da blusa de Andrew, puxando para baixo. — Me deixa te beijar…
Andrew falhou em reprimir um pequeno sorriso, que escapou de seus lábios no momento que ele puxou Neil para dentro do apartamento. As mãos de Neil fizeram um pedido silencioso antes de envolverem a cintura de Andrew. As de Andrew escorregaram até seus ombros, o pressionando contra a parede. Quando os dois se afastaram, Neil não soltou de Andrew e o olhava com um sorriso sereno e satisfeito.
— Sorriso idiota. — Andrew repetiu.
Neil inclinou a cabeça e se abaixou um pouco para beijar o pescoço de Andrew. O Minyard inclinou o corpo mais para frente e fechou os olhos, recebendo mais dois beijos. Antes que pudessem continuar, o bolso da calça de Neil começou a fazer barulho. Ele tirou o celular de dentro da roupa e o atendeu. Andrew se afastou e pegou a torta, antes de sair pela porta da frente, indo na direção do elevador.
— Já estamos saindo, Abby. Andrew estava dando tchau para os gatos. — Neil disse ao atender o telefone e ouviu um palavrão vindo do corredor, o fazendo rir. — Estamos aí em quinze minutos. Precisa comprar mais alguma coisa?
Neil saiu do apartamento e fechou a porta, trancando-o e colocando a chave dentro do bolso da calça. Pegou a alça da mala e foi na direção do elevador. A ligação logo se encerrou. Abby queria apenas confirmar se ela poderia começar a preparar a comida. Os dois desceram até o estacionamento e Andrew entrou no lugar do motorista enquanto Neil colocava a bagagem no porta-malas.
— Podíamos chamar ele para passar o ano-novo aqui em casa. — Neil disse, após saírem com o carro da garagem, a torta agora estava em seu colo, e Andrew demorou para entender a volta do assunto “Kevin”.
— Se você quiser… — Andrew deu de ombros e olhou a cara de Neil pelo retrovisor. — Podemos, Neil. — reafirmou
— Será que é cedo demais? — perguntou, apoiando a cabeça no encosto do banco.
— Neil, antes do vestiário ele passava mais tempo na nossa casa do que na dele. Ele tem a chave da nossa porta da frente. Chamar o Kevin para passar o ano-novo comendo pipoca e vendo filmes ruins de Natal não é exatamente um pedido de casamento. — Andrew suspirou e se arrumou no banco, entrando com o carro na pista expressa. — Abre o vidro e faz sinal com a mão para eu poder entrar.
Neil apertou o botão e o vidro desceu. Ele estendeu a mão para fora, acenando no vento para sinalizar ao carro de trás que eles iam mudar de faixa. Josten não ficou muito satisfeito com a resposta que Andrew tinha dado, mas talvez ele devesse parar com toda a paranoia. Tinham mais de 10 anos de amizade. Não era agora que as coisas ficariam estranhas.
— Aposto 20 dólares que vamos receber um convite de casamento logo logo — Andrew soltou alguns minutos depois. — Andei conversando com a Renee…
— Não vou apostar com você. — Neil olhou para Andrew e depois para a janela. — Mas você iria perder. Allison me disse que não tem data escolhida. Só vão decidir depois do feriado por causa do calendário de jogos da temporada.
— O calendário já saiu. Dois dias atrás. — Andrew fez uma careta. — Não acredito que estou mais atualizado que você sobre os assuntos do time.
Neil o encarava perplexo.
— Eu estava ocupado, comprando todos os presentes de natal sozinho — ele resmungou. O carro já entrava no bairro de Abby.
— Ah, Neil, me poupe. De novo com isso?! Eu já disse que não precisava ter ido ao shopping sozinho. Podíamos ter pedido tudo pela internet como pessoas normais. — Andrew bateu as mãos levemente no volante, dirigindo mais devagar por estarem em um bairro residencial — Aquele lugar é o próprio inferno no Natal. Principalmente dois dias antes do feriado. Ninguém mandou você querer ficar naquela porra de fila por quatro horas e não olhar os seus e-mails.
— Ah, sim, me desculpe por querer comprar um presente legal para a Robin, depois de ela ter me dado de aniversário a merda do videogame que você usa mais que eu. — Neil riu, ironicamente, elevando um pouco o tom de voz. — Podia ao menos ter ido comigo.
— Não vamos fazer isso. — Andrew freou, na esquina que dava para a rua da casa de Wymack — Sai do carro.
— Andrew, faltam literalmente duas ruas para chegar na Abby. — Neil revirou os olhos e ergueu os braços em rendição. Saiu do automóvel e colocou a torta no banco, vendo Andrew virar a rua e seguir reto.
Andrew estacionou o carro atrás do de Kevin e desceu do veículo, pegando a mala e a torta para levar para dentro. Quando tocou a campainha, foi Kevin que abriu. Ele estava usando um suéter parecido com o de Andrew, então assumiu que Betsy tinha feito uma produção em massa de presentes de Natal. Não esperava travar completamente quando visse o Minyard em sua frente, mas seu corpo não obedecia sua cabeça. Quase três semanas haviam se passado, desde que ele, Andrew e…
— Cadê o Neil? — Kevin, perguntou, pegando a torta das mãos de Andrew.
— Andando. — Andrew passou por Kevin, indo direto para dentro, sem falar mais nada.
Kevin ainda ficou alguns minutos parado na porta, tentando entender o que ele havia querido dizer, mas Lily apareceu ao seu lado, com uma colher de Nutella na boca. Ela parou ao seu lado, virada para fora, encarando a rua vazia do condomínio, esperando algo acontecer.
— O que estamos olhando? — Lily tirou a colher da boca e olhou para Kevin e depois para fora.
Kevin não conseguiu formular uma frase completa, sua boca abria e fechava tentando falar algo inteligível. Mas o canto de chocolate na boca de Lily, o faz lembrar da torta em suas mãos, entregando nas mãos dela, antes de olhar para o lado de fora, procurando Neil. Como ele não fala mais nada, Lily aceita a conversa como terminada. Ela leva a torta até a bancada e deita a cabeça contra o mármore da ilha, respirando fundo.
Quatro dias haviam se passado e agora restavam apenas nove para que Lily se visse obrigada a deixar todos os momentos que tinha passado com Abby, Kevin e David guardados em uma caixinha em sua memória, escondidos para sempre em algum lugar quase inacessível. Ficava pior ainda quando ela se lembrava que podia ser colocada em uma casa fora da Carolina do Sul. Teria que dar adeus ao time, à Abby, à Noah.
Já seria doloroso demais que seu jogo de despedida fosse o da noite anterior. Tinham perdido de nove a três. Mesmo que ela tivesse feito dois deles, não era o suficiente para esquecer o silêncio na área técnica depois que o fim do jogo havia sido anunciado. Ou os elogios penosos de Abby e a expressão séria de Kevin durante o caminho de volta. Ele havia dito que estava pensando sobre o tipo de treino que mais beneficiaria a forma de jogo dela, mas Lily não conseguia acreditar. Ela sabia que todo mundo estava quase tão decepcionado quanto ela mesma.
Mesmo assim, aceitou quando Kevin propôs que os dois passassem a manhã toda treinando na pequena quadra do condomínio. Eles praticaram movimentos e arremessos até que Abby aparecesse na quadra irritada com Kevin por não ter olhado o celular e estar perto da hora do almoço. Lily tomou banho depois do treino e ficou ajudando a enfermeira na cozinha. Já fazia anos desde que ele vira esse tanto de comida sendo preparada para a ceia de Natal. De acordo com ela, seriam sete convidados. E seis já estariam ali no almoço. Ela, Abby, David e Kevin. Neil Josten e Andrew Minyard.
Os jogadores profissionais de Exy: Josten e Minyard.
Os “risada com significado subliminar” de Kevin: Neil e Andrew.
Lily tentou se preparar a manhã inteira para não surtar quando os visse pela primeira vez. Mas tentar é muito diferente de conseguir e quando Lily levantou a cabeça e viu Andrew roubando um batata assada de dentro de uma das travessas da bancada, seu corpo quase desequilibrou da banqueta, a obrigando a colocar os dois pés no chão.
— Você deve ser a visita que a Abby falou — ele disse, mas ela já não lembrava mais seu nome para poder se apresentar.
Lily apoiou as mãos na borda da bancada, voltando a sentar no banquinho, com a boca entreaberta. Abby estava rindo atrás de Andrew. Lily se abaixou rapidamente, escondendo o rosto por baixo da marmoraria. Depois de respirar fundo, contar até vinte e esperar seu rosto esfriar, ela ajeita a postura e exibe um pequeno sorriso.
— Andrew Minyard — é tudo que ela consegue dizer.
— A Lily joga na escola que eu trabalho. É a backliner titular do segundo ano. — Abby explicou e Andrew colocou o garfo com a batata na boca antes de se dirigir para fora da cozinha, com as mãos para cima.
— Ótimo, mais uma viciada. Como se já não bastassem os outros três, Santa Abby — ele balança a cabeça e Lily só consegue interpretar seu tom de voz carregado de desprezo. Talvez Andrew fosse o motivo pelo qual a fala “Não conheça seus ídolos” tenha sido criada.
Ao menos foi o que ela conseguiu pensar, afinal, não tinha como ela saber, naquele exato momento, que as duas pessoas favoritas de Andrew no mundo todo eram: Neil “escolhi exy ao invés de continuar fugindo para sobreviver” Josten e Kevin “nada é mais importante do que exy” Day.
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Neil caminhou até a casa de Abby sem pressa alguma . Colocou as mãos dentro dos bolsos do casaco e andou pela calçada aproveitando a brisa fria de inverno. Ele viu o carro sendo estacionado e Andrew levando todas as coisas para dentro sozinho. Também viu o rosto confuso de Kevin procurar Neil do lado de fora, então ele acenou. Kevin retribuiu o aceno e continuou parado, com a porta aberta, esperando ele se aproximar.
— Você veio andando…. — Kevin disse ao invés de “olá”.
— Eu e o Drew discutimos no carro e ele achou que a melhor solução era me fazer andar o resto do bloco sozinho. — Neil deu de ombros e entrou na casa, deixando Kevin fechar a porta.
— Ah… Sim… — Kevin não quis discutir.
Neil pendurou seu casaco e, assim que entrou, viu Andrew saindo da cozinha com um garfo na mão. Tomou a sábia decisão de não fazer perguntas assim que seu olhar encontrou o dele. Kevin ficou parado, como se qualquer movimento brusco pudesse ativar a bomba Minyard. Andrew saiu na direção do jardim dos fundo, deixando os dois sozinhos novamente.
— Vocês vão ficar até amanhã? — Kevin perguntou, mas já sabia a resposta. Abby havia dito mais cedo e a própria mala que Andrew entrara carregando os entregavam.
— Sim. Abby pediu para passarmos a meia-noite aqui. É ruim dirigir com a nevasca, então vamos voltar depois do almoço de amanhã. Mas vamos estar aqui no final de semana também. — Neil anunciou, andando na direção da cozinha.
Lily abriu a porta da cozinha ao mesmo tempo que Neil.
Kevin reprimiu uma risada ao ver o rosto dela ficando tão vermelho quanto a cobertura da torta de Andrew. Ele olhou por trás de Neil e Abby estava com um pano de prato na mão, gesticulando exageradamente: “Neil Josten!”, fazendo-o sorrir ainda mais.
Segundos depois veio a voz fina de Lily: — Neil Josten!
— Essa é a Lilian. Ela vai passar o Natal com a gente. É a backliner do time da escola em que a Abby trabalha. — Day explicou e Neil sorriu, esticando a mão para apertar a dela.
— Eu sou o… — Neil começou, mas foi interrompido por Lily que chacoalhava sua mão freneticamente.
— Neil Josten. Camisa 10. Comitê olímpico. Time da Carolina do Sul. O segundo melhor striker de todos os Estados Unidos. Eu sei quem você é. — Lily soltou da mão dele. — É incrível te conhecer pessoalmente. Nunca achei que fosse. Eu sempre assisto os seus jogos quando passam na televisão.
— Espera… Segundo? — Neil perguntou e a cara de satisfação de Kevin entregou que ele era o primeiro. Josten sorriu. — E você é a backliner da.. Roosevelt? — perguntou, sem saber exatamente como se lembrava do nome da escola em que Abby trabalhava.
— Uma das melhores do time, Neil. — Abby disse, do fundo da cozinha, tirando algo extremamente cheiroso de dentro do forno.
— Uau… Adoraria te ver jogar, algum dia desses… — ele comentou, com um sorriso e apoiou a mão na cabeça de Lily antes de passar por ela e ir cumprimentar a enfermeira. Lily saiu da cozinha e correu para o quarto, fazendo os três adultos rirem.
Abby recebeu Neil com um beijo no rosto e um abraço desajeitado. Neil se sentou em uma das banquetas e Kevin ao seu lado.
— Ela parece uma criança divertida. — Neil comentou, pegando um garfo para roubar uma das batatas da travessa em sua frente. No momento em que experimentou, toda a cena de Andrew com o garfo na mão fez sentido em sua mente. Era uma das melhores coisas que os dois tinham comido em dias.
— Meu pai e a Abby estão pensando em adotá-la. — Kevin explicou quando Winfield saiu da cozinha para colocar a mesa. Andrew entrou segundos depois, indo pegar alguns pratos dentro do armário. — Ela teve alguns problemas na antiga casa e a assistente social quis levá-la para longe. Você realmente tem que ver ela jogando. Tem um potencial fodido.
— Adotar quem? — Andrew se meteu na conversa, parando do outro lado do balcão com a pilha com seis pratos empilhados nos braços.
— Lilian — Day apoiou o cotovelo na mesa e continuou: — Eu estou pensando em me dispor a treiná-la. O treinador daquele buraco de escola é um incompetente. Faz ela jogar como defensora, mas ela nasceu para jogar no ataque. Essa garota tem o mesmo potencial que nós três, não vale a pena jogar no lixo.
— Você tem seus próprios problemas, Day. Não devia ficar cuidando da vida dos outros. Principalmente dos de uma criança que você acabou de conhecer. — Andrew apoiou os braços em cima da mesa.
— Você não pareceu ter esse problema quando eu fiz Neil entregar o jogo dele para mim. Ou quando prometeu me proteger, tendo me conhecido por… quanto tempo mesmo? — Kevin rebateu, o encarando.
— Eram tempos diferentes, Kevin. Você sabe disso. Você ainda tem aquela situação com o time de Nova York, não devia se propor a doar tanto tempo à outra pessoa. — Andrew suspirou e olhou para Neil. Talvez estivesse pedindo algum tipo de ajuda, mas não recebeu. — Você e o Neil precisavam de ajuda para sobreviver. Eu estava disposto a garantir isso. Você não conhece ela direito, não sabe do que ela precisa…
— E você sabe? — Kevin ergueu a sobrancelha — Nunca falou com ela. Drew, eu estou te falando. A Lily é… diferente.
— É verdade, Kevin, eu não conheço ela, não sei do que ela precisa. Mas eu sei o que você precisa, porque eu conheço você. E estou te dizendo que definitivamente não é ser responsável por treinar uma adolescente — Andrew finalizou o assunto levando os pratos para o lado de fora da cozinha. E então silêncio.
— Ele se preocupa com você — Neil finalmente disse, apoiando os braços na mesa — Tem certeza sobre o que disse? Sobre ela?
— Neil, você tem que ver ela jogando… — foi tudo que ele disse e Josten entendeu.
Neil soube, quase imediatamente, porque conhecia Kevin e porque queria acreditar que o entendia, que tinha mais história embaixo de tudo isso. Ele queria perguntar o que era, mas graças ao pequeno acesso de mau humor de Andrew, preferiu deixar o assunto para depois. Abby entrou na cozinha novamente e os dois decidiram se levantar para ajudar a colocar a mesa.
No sofá da sala, com as pernas cruzadas sobre o estofado, Lily encara um pequeno deque de cartas. Kevin Day sorria em sua direção por cima de todas as outras, sua tatuagem em forma da rainha do xadrez em sua bochecha, pouco abaixo dos olhos verdes. Ela tira a carta de cima e coloca no colchão, fazendo o mesmo até sete cartas estarem dispostas ali.
Kevin Day. Neil Josten. Andrew Minyard. Jean Moreau. Jeremy Knox. Laila Dermott. Catalina Alvarez.
Os maiores nomes da corte estadunidense de exy estavam em sua frente naquele momento. E três deles estavam na mesma casa que ela. Era como se todos os seus sonhos tivessem se realizando de uma vez só. Bom, não todos. Ao lado de seu corpo, em sua bolsa de lona, um pequeno panfleto amassado descansava sobre suas roupas. Ela tirou com cuidado e desamassou, suspirando.
“Terceiro Concurso de Bolsas para a Escola Particular Brighton Hall”
“Posições: Backliner, Goalie, Dealer e Striker”
“Vistoria: 23/12/21”
“Time 14U-16U”
“**O resultado será divulgado por e-mail no dia 01/01. A mensalidade dos jogadores selecionados será reduzida em 100%”
Guardou o panfleto dentro da mochila novamente, enfiando o mais fundo que conseguia. Não queria ver aquele papel de novo, nem por acidente. Nunca seria convidada depois de sua performance no dia anterior. Ela passou a mão na parte de trás de seu pescoço, sentindo uma pequena alteração em sua pele perto de seu ombro. A pequena cicatriz tinha pouco menos que 2 cm de diâmetro, mas Lily ainda sentia uma pequena dor fantasma toda vez que seus dedos passavam por ela. Talvez Edith estivesse certa todas as vezes que a tinha chamado de fracassada.
Duas batidas na porta avisaram a Lily que alguém queria entrar. Ela chamou e a porta abriu. Neil Josten colocou a cabeça para dentro, olhando em sua direção. Ele começou a falar algo, mas se interrompeu, distraído com a visão das cartas. Lily abaixou o olhar para ver o que ele encarava e juntou os cards tão rapidamente que quase amassou a ponta de um deles.
— Figurinhas legais. — ele comentou com um meio sorriso e pediu licença antes de se sentar no sofá ao lado dela — Posso ver?
Lily entregou o deque de cartas a ele em silêncio. Neil observou cada uma com cuidado, passando um pouco mais de tempo na dele. Lily pensou que ele provavelmente estaria a julgando por ser tão obcecada com jogadores de exy, até que Neil falou:
— Eu estou horrível nessa foto. Não acharam uma melhor para colocar? — ela tomou as cartas da mão dele imediatamente, o fazendo rir.
Lily observou a foto, depois olhou para a cara dele e depois para a foto de novo. A foto não estava feia, mas a quantidade de edição que tinha nela fazia o Neil de verdade não parecer quase nada com o da foto. Ela levantou o card na altura do rosto dele e deu de ombros, voltando a colocar a carta no deque.
— Te photoshoparam demais— Lily guarda os cartões dentro de sua mala. — Você parece mais real pessoalmente. Não como um sonho inalcançável.
Ela pensa em pedir desculpa quando vê a expressão de Neil se alterar, mas logo um sorriso sereno descansa em seu rosto, porque é naquele exato momento que Neil entende perfeitamente as palavras de Kevin Day.
Chapter 6: The First Shift
Notes:
Se tiver alguma coisa absurdamente errada, relevem. Eu quero acabar de editar logo, porque tive ideias novas pra depois e quero começar a escrever.
Chapter Text
The First Shift
Lily demora poucas horas para entender a dinâmica de jogo dos cinco. David Wymack não sai muito do escritório, escondido entre pilhas de pastas e papeis apesar de ter um computador perfeitamente funcional em cima de sua mesa e estarem em meio a um feriado nacional. Ela duvidava que a dinâmica das raposas de Palmetto fosse mais caótica agora que o trio de ouro não estava mais na faculdade, porém o gosto de David em adolescentes problemáticos nunca o faria realmente chegar a um estado de paz duradoura.
Abigail Winfield prefere mandar os outros pegarem coisas para ela do que pensar em sair da cozinha por meio milésimo de segundo. Seu medo de queimar alguma coisa é quase tão exagerado quanto a necessidade de todos aqueles pratos de comida para nada mais que cinco pessoas. De acordo com Kevin, era seu costume tradicional de abrigar quase nove pessoas todo ano durante o jantar de Natal que a impedia de fazer qualquer coisa em pequena quantidade.
Kevin Day, este, que parecia ter tido seu cérebro sequestrado no momento em que Andrew e Neil atravessaram pela porta. Agora tudo que ele conseguia fazer eram comentários desajeitados e fora de hora, como se a presença deles desafiasse sua língua a ponto de seu charme desaparecer em um buraco negro de vergonha. Andrew e Neil orbitavam ao redor dele da mesma forma que a gravidade os unia, não importa o quanto estivessem tentando se evitar. Lily não sabia se algo havia acontecido ou se eles eram normalmente daquela forma, mas não protestou quando o único lugar sobrando na mesa era entre os dois.
Cinco pessoas estavam ao seu redor naquele jantar e seu coração batia um pouco mais rápido do que o normal. Abby entregou uma das colheres na mão de Lily e ela se serviu, fingindo não perceber o olhar analítico de Andrew sobre si. Ela colocou apenas o que tinha certeza que conseguiria comer e depois não repetiu. Talvez sua própria dinâmica naquele jogo fosse fingir que não existia. Incomodar o mínimo possível. Fingir que não estava ali para que esquecessem de mandá-la embora.
— Hm... — Abby apoiou sua taça de vinho na mesa, deixando as pontas dos dedos nas bordas — Esqueci de avisar vocês três. Dia 30, eu e David vamos visitar meus pais do outro lado da cidade. Vocês estavam pensando em passar o ano novo aqui? Eu posso deixar a chave, se vocês não detonarem a casa.
— Eu ia ficar só até domingo mesmo, imaginei que vocês iam querer passar o ano novo com eles — Kevin respondeu e voltou a mexer em seu prato com o garfo. Lily estava um pouco assustada com a quantidade de salada que uma pessoa só conseguia comer — Acho que vou ficar na casa da Robin.
Uma análise rápida através da toalha de mesa natalinamente decorada, a fez perceber que apenas Abby e Wymack estavam bebendo. Lily imaginou que fosse porque os três atletas tinham que manter algum tipo de rotina nutritiva, mas duvidava um pouco pela quantidade de fritura no prato de Andrew.
— Você não tem sua própria casa? — Wymack parecia genuinamente perplexo, o que fez Lily rir.
— Tenho, mas gosto de passar tempo com a minha amável família do que abandonado em um apartamento vazio — Kevin disse de maneira um pouco dramática.
— É mentira. Ele acha que tem um espírito na cozinha do apartamento dele porque alguns talheres caíram de um balcão. — Andrew comentou indiferente.
— Os talheres estavam no meio do balcão e as janelas estavam fechadas! — Kevin advocou e depois apontou o dedo para Neil — Nunca mais te conto porra nenhuma, Josten.
— Não esperava mesmo que eu guardasse segredo disso, né, Kev? — Neil se recostou na cadeira, rindo.
— Se eu me lembro bem, quando vocês dois começaram a morar juntos, Neil vivia falando sobre a pia amaldiçoada. — Abby disse e até Andrew riu. Kevin tomou uma das mãos dela, beijando e agradecendo pela defesa.
— A pia se mexia mesmo. A culpa não é minha que toda vez que ligava a água, a torneira começava a girar sozinha — Neil resmungou, imitando com o dedo o movimento que a pia fazia.
O diálogo havia sido suficiente para quebrar um pouco do clima desconfortável amontoado por trás da conversa casual. Lily se pega pensando se ficaria sozinha durante o ano novo, já que não imaginava que Abby e Wymack iriam querer levá-la para conhecer o resto da família, porém não fazia sentido perguntar naquele momento. Ficar na casa de Abby com uma quadra à sua disposição era melhor do que qualquer outro cenário que ela pudesse imaginar.
A mesa do jantar foi tirada pouco tempo depois. Kevin e Neil tiraram os pratos. Andrew e Lily ficariam com a parte de carregar e esvaziar a lava-louças e Abby e Wymack iriam até o mercado, encher os armários para os próximos dias. Kevin não esqueceu de pedir novamente o suco que Abby um dia havia prometido e Lily disse que não precisava de nada, já que em algum lugar, um sorvete de chocomenta estava a esperando.
Depois de deixarem a mesa arrumada, Neil e Kevin foram para a sala jogar videogame. Lily se sentou na bancada com um potinho cheio de sorvete enquanto esperava Andrew esvaziar e encher a máquina. Ficaram em silêncio por vários segundos, até que Andrew teve coragem de falar alguma coisa.
— O que aconteceu na sua última casa? — Andrew perguntou, colocando mais um prato no escorredor.
— Uau, você é bem direto — Lily tinha achado a pergunta um pouco evasiva. Sabia que só tinham pessoas queridas por Abby ali, mas não era do seu feitio sair contando sobre sua vida para pessoas que tinha acabado de conhecer. Mesmo que o estranho fosse o melhor goleiro de exy do mundo e ela tivesse passado várias noites em claro se imaginando dividir a quadra com eles — Um mal-entendido. — ela respondeu e o rosto de Andrew se fechou. Ela tinha visto expressões assim demais para se sentir abalada.
— Não gosto dessa palavra. Qual é a verdade? — Ele fechou a porta da lava-louças e se virou para ela, apoiando a cintura no balcão da pia.
— Não interessa. É isso que disseram que foi, nada que eu falar vai fazer isso mudar — Lily disse, mas ele parecia mais interessado — Você não gosta de adolescentes.
— Não.
— Não foi uma pergunta. — Lily enlaçou os dedos em seu cabelo, fazendo um coque com as pontas soltas. Andrew continuava olhando para ela, o sorvete na ponta de sua colher parecia estar derretendo mais rápido — Já disse que foi um mal-entendido.
— E eu te perguntei a verdade.
— Eu te conto... Se me falar o que tem contra mim? — Lily cruzou os braços e ergueu as sobrancelhas o encarando.
— Eu acho que você vai atrapalhar a vida do Kevin. Ele não consegue cuidar nem da própria vida, imagina perder tempo treinando uma criança — sua expressão não muda, mas nem a dela. Não é surpresa ouvir exatamente o que ela estava pensando há dias. Principalmente se Kevin estivesse levando os treinos matinais tão a sério quanto ela. Mesmo assim, uma risada sutil escapa seus lábios com certa ironia.
— Eu não sei o que ele te falou, mas eu não estou procurando ninguém para cuidar de mim. Eu sei me virar sozinha — Não era mentira, mas falar em voz alta a fazia sentir como se estivesse traindo todo o carinho que Abby havia lhe dado. Ela não se desculpa, não queria ser o fardo de Kevin — Eu não estou a fim de ser o trabalho de caridade de mais ninguém, no momento que Kevin achar que treinar comigo é inconveniente, eu não vou contestar a escolha dele — a fala de Lily faz Andrew olhar para os lados, um ar irritativo — Eu não pedi para ele se oferecer para me treinar. E eu vou embora em menos de duas semanas. O que muda, na vida dele ou na sua, algumas horas de treino por dia?
— É sua vez — ele fala pausado, digerindo as palavras dela — O que aconteceu na sua última casa? — Andrew perguntou novamente. Ela não conseguia juntar poucas palavras para descrever toda a história, mas também não queria contar tudo para Andrew. Não seria surpresa se ele desacreditasse de sua parte da história. Ninguém costumava acreditar.
— Acharam que eu tinha roubado um dinheiro — ela encheu a boca com o que havia sobrado do sorvete para não ter que falar mais nada. Andrew continuou em silêncio por algum tempo, mas então decidiu falar.
— Você roubou?
— Não. Eles não tem provas, além da falsa culpa que eu senti ao devolver toda a quantia. Mas se eu não tivesse pago cada centavo de volta, talvez tivesse acabado no reformatório. Ia acabar com a temporada. O time da escola já é horrível sem um defensor meio-decente, eles iam afundar — ela respira fundo, sem notar o sorriso sutil no rosto de Andrew — Enfim, é mais fácil culpar a garota preta que veio do sistema adotivo, sem pais e sem dinheiro do que a própria filha — Lily balança as pernas embaixo da mesa.
— Como fez para pagar tudo de volta se não tinha dinheiro?
— Acabaram suas perguntas — Ela não sabe se Andrew está fazendo uma análise profunda da sua índole ou se está simplesmente curioso, mesmo assim falar sobre si mesma já estava começando a ficar cansativo. Ela levanta para colocar seu potinho na pia — Eu nunca roubei nada.
— Eu acredito em você.
Os dois ficaram em silêncio depois disso. Acabando de arrumar a cozinha aos poucos. Lily esvaziou a máquina quando a música soou e ajudou a limpar a mesa de jantar. Talvez a segurança de Andrew em suas palavras tivesse melhorado o clima entre os dois, mas ela já não sentia mais o peso de um interrogatório quando ele fazia alguma pergunta sobre ela. Logo não sobrou mais nada e a bancada estava completamente vazia. Andrew parou ao lado da porta e indicou com a cabeça para ela ir na frente. Os dois foram se sentar com Neil e Kevin.
Cada um segurava um controle de videogame. Era um daqueles jogos antigos de luta e os dois pareciam completamente engajados em derrotar o outro. Neil estava perdendo quase de lavada. Lily sentou ao lado de Kevin e ficou olhando para a tv, sem prestar muita atenção. Tinha muita coisa na cabeça e pouca vontade de entender como aquilo funcionava.
Andrew sentou ao lado de Neil que o olhou rapidamente, uma tentativa breve de ver se ele continuava bravo pela discussão do carro, ele logo volta a encarar a televisão. Andrew apoiou uma das mãos na perna de Neil, a deixando ali e ele suspirou aliviado. Mais de uma questão havia sido resolvida.
— Vai se foder, Kevin, você está roubando. — Neil xingou apertando os botões com mais força como se aquilo fosse ajudar.
— Você é horrível nisso. Dá o controle pro Andrew, ele sabe jogar. — Kevin disse e Neil fez uma careta, mas entregou o controle para o Minyard.
Não demorou para que ele ficasse entediado. Deitou o corpo para trás, com a cabeça apoiada no ombro de Andrew e beijou o pescoço dele delicadamente. Estava tão frio que ele quase esquecera o quanto a pele de Andrew era quente. Andrew virou o rosto na direção dele com um olhar fuzilador.
— Está me distraindo.
Andrew disse, mas não importava. Nem Kevin estava mais prestando atenção. Seu olhar tinha se perdido nos dois. Nenhum deles notou a súplica silenciosa nos olhos de Day e o sorriso melancólico que preencheu seu rosto.
Talvez tudo aquilo no vestiário tenha sido uma mera ilusão incabível.
— Desculpa, senhor gamer. — Neil disse, ainda com o rosto próximo ao pescoço dele. Deu outro beijo e levou uma cotovelada, que o fez grunhir e se afastar, sorrindo.
— Eu disse que estava me distraindo.
Neil ergueu as mãos em rendição e assentiu, aceitando o pequeno golpe que tinha levado. Quando tornou a abaixar os braços, sua mão ficou apoiada na perna de Kevin, sem que percebesse. Kevin olhou para baixo e depois para a TV.
Ou talvez aquilo fosse tão verdade quanto Day gostaria.
— Lilian, quer jogar? — Andrew perguntou e esticou o controle na direção dela quando a partida acabou.
— Não sei jogar. — Lily respondeu, não aceitando o controle, mas ele não recuou.
— Ótimo, então você e Josten tem alguma coisa em comum. Joguem juntos — Andrew levantou do sofá e foi na direção da porta, pegando seu casaco no cabideiro e abrindo a porta para sair. Kevin entregou o controle para Neil e foi atrás dele para o lado de fora.
Andrew se sentou na escada da entrada, puxou um cigarro do bolso e acendeu, colocando na boca. Kevin se sentou ao seu lado, enfiando as mãos nos bolsos do casaco. Não tinha nenhum carro na rua e uma neve fina cobria os gramados das casas do bairro.
— Eu não disse que queria companhia. — Andrew tragou e soltou a fumaça para o outro lado.
— Eu não disse que vim te fazer companhia. — Kevin rebateu.
Os dois ficaram em silêncio. Kevin pensando em tudo que queria falar e não tinha tido a chance nos últimos meses. Andrew pensando na hipocrisia de suas palavras quando tinha dito aquelas coisas sobre Lily. Era ridículo pensar que talvez o fruto dos seus sentimentos egoístas fossem só ciúmes. Não querer dividir Kevin com mais ninguém depois de todos os anos fingindo não sentir nada. Principalmente ridículo por saber que ela merecia muito mais do que eles dois.
— Aquelas coi…
— Eu queria conver…
Os dois disseram ao mesmo tempo e Kevin fez um sinal com a mão para que Andrew começasse.
— Aquelas coisas que eu disse sobre a Lilian. Se você tem certeza que quer doar seu tempo para ela. A escolha é sua. É uma escolha estúpida. Mas você poderia fazer outras piores. — ele disse.
Se Lily era a escolha estúpida, Neil e Andrew eram as piores. Se Andrew realmente o quisesse, não agiria como se escolhê-lo fosse ser uma péssima escolha. Eles estavam velhos demais para todo aquele tipo de drama e enrolação. Kevin preferiu não falar nada e quando Andrew perguntou o que ele queria falar e mentiu sobre qualquer assunto idiota.
Ainda na sala, Neil ensinava Lily a usar o controle do videogame.
— Neil, tira sua cabeça da minha frente, eu não consigo ver a TV — ela resmungou, tentando se esquivar dele. Neil estava com o corpo quase inclinado sobre o dela, sem dúvida nenhuma tentando bloquear sua visão. Ele se afastou quando ela pediu.
Apesar de ser um jogo em que disputavam um contra o outro, era possível afirmar que ninguém tinha ganho. No final da partida, Lily estava sentada a menos de um metro da televisão, de pernas cruzadas e olhando para cima e Neil estava em pé atrás dela, segurando o controle como se ele pudesse fugir de suas mãos. Os dois pareciam tão focados que realmente pareciam saber o que estavam fazendo.
Quando a porta da sala abriu, os dois se assustaram. Kevin e Andrew entraram juntos. Lily podia jurar que tinha visto as faíscas saindo dos dois, mas não sabia se era algo bom ou ruim.
— Já são quase 18h. Vamos ligar para o Nicky. — Andrew anunciou, tirando o celular do bolso e ligou para Nicky por chamada de vídeo. Kevin e Neil se encaixaram atrás dele para aparecerem na tela do celular.
Quando Nicholas Hemmick atendeu a chamada, os três acenaram. Ele estava usando mais roupas de frio que o comum e Erik, seu marido, acenava para a câmera em resposta. Os três conversaram por alguns minutos. Desejaram feliz Natal, perguntaram como estavam as coisas na Alemanha e se os outros já haviam ligado. E então desligaram. Kevin saiu do sofá e foi para a cozinha. Neil e Andrew ficaram juntos encarando o jogo pausado na televisão.
Lily levantou o foi atrás de Day. Entrando na cozinha, encontrou-o sentado em uma das banquetas, comendo a torta de Andrew direto com um garfo. Ela se sentou na frente dele e pegou outro garfo para comer junto.
— Aquele era mesmo o Nicky Hemmick? Tipo… Que jogou com vocês na faculdade? — ela perguntou, colocando o garfo na boca. Kevin pareceu não julgá-la então ela continuou a mastigar.
— Você realmente sabe demais sobre mim, Lily.
— Eu já te contei a história. Você é meu jogador favorito. Bla bla bla. Continuando… Então realmente era ele? — Lily apoiou os cotovelos na mesa. Não sabia exatamente o motivo, mas até o tom de voz de Kevin estava diferente.
— Era. Quando estávamos na faculdade. Eu, Neil, Andrew, Nicky e Aaron éramos “um grupinho”. Depois veio Robin, mas ela fez mais parte do grupo depois que saímos da faculdade, porque ela é mais nova. — Ele contou, comendo mais torta.
— Robin Cross e Aaron Minyard. — Ela repetiu os nomes com um pequeno sorriso.
— É, stalkerzinha. Eles dois. — Kevin riu e esticou uma das mãos para bagunçar o cabelo de Lily.
Lily quis perguntar o que tinha acontecido com Andrew do lado de fora. Não queria ser evasiva, mas ao mesmo tempo estava sendo gradualmente consumida pela curiosidade. Ela empurrou a forma para o lado e se inclinou para frente, semicerrando os olhos.
— Que?
— Você está chateado…
— Não…
— Não foi uma pergunta.
Os dois ficaram em silêncio por mais alguns minutos. Kevin puxou a forma de volta para frente de seu corpo e voltou a atacar o pedaço de torta. Lily ainda estava o encarando, brincando com a ponta do garfo na boca. Ela resolveu não retornar no assunto e Kevin agradeceu mentalmente por não ter que explicar nada.
— Vocês não tem amigos que não jogam ou nunca jogaram exy na vida? — ela perguntou. Não tanto como um julgamento e mais como uma esperança.
— Não. — ele responde, junto com Neil que havia acabado de chegar, como se um pré requisito para sua vida social fosse Exy.
— Vocês se encontram de vez enquanto para jogar? Tem quase dois times completos. Quer dizer, tirando o fato de que vocês têm três goleiros na conta. — Lily perguntou como se fizesse um mapa mental de jogo.
— Não. É raro estarmos todos juntos no mesmo lugar — Neil respondeu. Talvez ele e Kevin gostassem da ideia de um rematch com todos os amigos em uma quadra.
Andrew entrou na cozinha alguns segundos depois. Lily o observou caminhar até a geladeira e depois começar a tirar alguns ingredientes das prateleiras. Ele colocou as coisas na bancada em que os três estavam sentados. Neil estava focado em sua torta, mas não deixou de reparar em Andrew. Sabia que algo tinha acontecido com Kevin e queria perguntar. Talvez ele já soubesse, mas mesmo assim queria ter certeza.
Neil não estava pouco ansioso com a conversa que queria ter com Kevin, mas Andrew também não era a mais pura demonstração de calma. Sabia que ele estava estressado com isso e provavelmente repensando cada escolha que fizera nos últimos dois meses e isso o fazia descontar seus sentimentos no que quer aparecesse em sua frente primeiro. E dessa vez, tinha sido uma garota que mal conheciam.
— Vocês dois… — Minyard olhou para Neil e Kevin e apontou para a porta — Abby mandou mensagem pedindo para dar uma ajeitada na casa. Lilian… — ele se virou para ela — Você disse que cozinha. Pode me ajudar a fazer uma torta? Já que vocês acabaram com essa.
Mas, Neil pensou, pode ser que ele mesmo tivesse percebido seu comportamento e estivesse tentando fazer algo diferente. E então, os dois saíram da cozinha, deixando os Lily e Andrew sozinhos.
— O que vamos fazer? — Lily perguntou, colocando o último pedaço de torta na boca e pulando para fora da banqueta, indo na direção dos ingredientes.
— Roulade de bem-casado.
Lily ficou alguns segundos parada, olhando para Andrew. Ela estava acostumada a fazer doces simples. Trufas, brownies, bolos. Ela nem sabia o que era um roulade. Muito menos um bem-casado. Andrew acabou de colocar os ingredientes em cima da bancada e foi lavar as mãos.
— É tipo um pão de ló enrolado com doce de leite — ele explicou da forma mais simples possível e deu espaço para ela lavar as mãos.
— Acho que a Abby não tem doce de leite — Lily olhou para os ingredientes em cima da mesa, confirmando sua fala. Ela garantiu que o cabelo estava bem preso e então ligou a torneira, colocando um pouco de detergente nas mãos.
— Não tem problema. Dá para fazer com leite condensado. 30 minutos na panela de pressão e está pronto — Andrew pegou a lata de leite condensado e colocou na mão de Lily — Arranca o rótulo?
Lily assentiu e tirou o papel que envolvia a lata de metal. De repente se sentiu energizada. Cozinhar sempre a deixava assim. Era diferente de ter que comer algo que outra pessoa fez. Ali, ela tinha controle absoluto de tudo que ia em sua receita. Era como uma obra de arte e aprender um prato novo soava divertido.
Do outro lado do cômodo, Neil e Kevin arrastavam o sofá para o canto da parede oposta à porta. Eles entendiam o pedido de Abby. Era véspera de Natal, eles iriam comer demais, trocar presentes e depois ir dormir. E no dia seguinte, estariam cansados demais para arrumar a casa. Então era melhor que as coisas já estivessem perfeitamente arrumadas.
— O que aconteceu lá fora? — Neil perguntou, encostando o sofá na parede.
— Nada.
— Kevin, sua cara estava pior do que quando você me contou sobre o suposto espírito que tem na sua casa. “Nada” é uma péssima mentira — Neil suspirou, indo tirar os enfeites de cima da mesa de centro.
— O espírito não é suposto. Eu disse que ele está lá, esperando para me assombrar — Ele disse e Neil riu. Não era uma piada.
A história do espírito havia começado duas semanas depois de Kevin alugar o apartamento. De primeira, ele achou que seria uma boa ideia alugar um lugar grande, com muitas janelas e cômodos abertos. E tinha sido. As paredes eram coloridas, com quadros e enfeites, os tapetes que ficavam no chão eram peludos e confortáveis e sua cama era tão grande que poderia abrigar facilmente três pessoas e dois gatos (Não que ele tivesse pensado nisso quando encomendou o box e o colchão, claro que não).
Porém esquecera o pequeno detalhe de que ficaria naquele lugar imenso, completamente sozinho. E então tomou a pior decisão de sua vida: Assistir um filme de terror para passar o Halloween. No começo parecia uma ideia razoável. Entrar no clima do feriado com um filme idiota e mal produzido. E então os talheres caindo da bancada e a porta do banheiro vazio batendo apesar das janelas fechadas (Claro que ele não sabia que tinha esquecido os talheres na borda da bancada e que abrir a porta da varanda com a janela do banheiro aberta ia ter alguma consequência.). Depois disso não teve uma noite que conseguiu dormir completamente em paz.
O mês de novembro só não tinha sido pior porque Robin viera visitá-lo ao menos duas vezes por semana com a companhia de sue namorade, Dakota, dormindo no quarto logo ao lado do seu. O que facilitou ele não pensar no seu colega de apartamento, o espírito. E então, dezembro passou e ele se adiantou em ir para a casa de seu pai em duas semanas.
— Você sabe que eventualmente vai ter que voltar para casa, né? — Neil carregava uma expressão serena.
Kevin pensou em dizer que só voltaria se Neil fosse junto, mas achou idiota demais e apenas deu de ombros.
— Eu falei com Andrew e nós pensamos que se você quiser… Poderia passar o ano-novo lá em casa. Longe do espírito, claro — Neil disse a última parte com um meio-sorriso bobo no rosto.
— Vou ver minha disponibilidade, como eu disse antes, acho que vou passar com a Robin — Kevin fez uma expressão emburrada, enquanto movia algumas cadeiras de lugar.
Neil caminhou até ele e apoiou as mãos no encosto da cadeira, olhando nos olhos de Kevin. Ele almejava uma resposta diferente da que tinha recebido e não se incomodava de assombrar um pouco aqueles olhos verdes se fosse ter o que queria no final. Ele se inclinou para frente quando Day tentou tirar a cadeira do lugar, colocando todo seu peso no objeto.
— Eu disse que vou verificar minha disponibilidade, Josten — Kevin tentou mover a cadeira novamente, mas Neil não se moveu.
Kevin respirou fundo, com uma das mãos ainda apoiadas na lateral do encosto da cadeira. Ele encarou o estofado antigo e depois o olhos azuis em sua frente. Aquela porra de olhos azuis. 15 anos seguidos os encarando não tinham sido suficiente para que não hesitasse na mera sensação de estar sendo encarado de volta. Nenhum tempo seria suficiente. Os olhos de Neil deixavam Kevin fraco e isso era uma verdade irrefutável.
— Bom, para sua sorte, minha disponibilidade disse que eu vou estar livre, se ela puder ir junto... Então pode sair da minha cadeira agora.
Neil se afastou com um sorriso prazeroso no rosto. Kevin tinha medo daquele sorriso. Ele sempre aparecia depois de Neil conseguir o que queria. E Neil sempre conseguia o que queria com Kevin. Não porque Day era facilmente manipulável, mas porque Josten sempre sabia exatamente como conquistá-lo.
— E aí, depois, podemos dar um jeito no seu espírito de aluguel — Neil debochou.
— Josten, eu juro que, se você continuar, eu vou enfiar aquela pia que gira no seu cu.
Na cozinha, Andrew e Lily esperavam a panela de pressão acabar de preparar o doce de leite. Tinham decidido fazer três latas de leite condensado ao invés de uma, para o doce ficar bem recheado. Agora, Andrew batia os ovos e o açúcar em uma batedeira e Lily batia o creme de leite com um fouet para aerar.
Andrew pensara na curta conversa que tivera com Kevin do lado de fora. Se realmente estava com ciúme de Day, não fazia sentido algum que descontasse em Lily, afinal era uma criança e não tinha feito absolutamente nada. Porém, ao mesmo tempo, o pensamento de que talvez Kevin os trocasse por ela, trazia uma pontinha de dor que ele não estava conseguindo ignorar.
— Aaron é seu irmão. Vocês não costumam passar o Natal juntos? — Lily tentou puxar assunto com uma curiosidade inocente.
— Ano sim, ano não. Ano passado ele veio para cá. Esse ano, ele, Katelyn e os gêmeos vão passar na casa dos pais dela — Andrew respondeu, adicionando farinha na mistura com cuidado. — Que posição você falou que joga na escola?
— Backliner — Lily sorriu, baixando um pouco a guarda ao perceber que ele estava ativamente tentando engajar na conversa. — Vocês são próximos?
— Dividimos o mesmo útero, acho que não dá para ser mais próximo que isso — ele deu um sorriso falso que fez a garota rir. Ela ter entendido a brincadeira foi o suficiente para ele continuar — Somos. Agora pelo menos. Quem te ensinou a cozinhar?
— Ninguém. Aprendi sozinha. Não sou muito fã de que cozinhem para mim, tirando a Abby — Lily empurrou a vasilha com o creme de leite para o lado e se virou para desligar o fogo assim que a panela de pressão começou a apitar.
— Não mexe aí. Deixa que eu desligo — Andrew disse, antes que ela pudesse encostar no fogão e deu a volta na bancada, entrando na frente dela — Uma pena que não tenha conseguido entrar no time.
— É. Eu estava distraída. Não foi culpa de ninguém, exceto minha. — ela deu de ombros e Andrew não teve ideia de quem parecia mais capaz de soltar uma frase daquelas, Kevin ou Neil — Se eu for mesmo ficar aqui, posso tentar de novo ano que vem. Como Kevin falou, só pelo mérito.
O doce demorou quase uma hora para ficar pronto. A equipe que os dois formavam na cozinha era de uma sincronia absurda. Lily sabia o exato momento em que Andrew queria que mais ingredientes fossem adicionados na batedeira. Ela sabia quando agir e quando deixar para ele. Andrew sabia onde Lily queria ajudar e não monopolizava nenhuma parte da receita.
E com isso, a conversa fluiu. Lily descobriu que Andrew tinha duas gatas e achou seus nomes tão geniais que passaram cinco minutos seguidos apenas criando novos nomes únicos para gatos que provavelmente nenhum dos dois iria ter por vários anos. As ideias de Lily eram tão absurdas que faziam Andrew rir. E ela gargalhava com as sugestões dele. Talvez nenhum dos dois fosse tão ruim.
Andrew aprendeu sobre o grande ídolo de Lily, quando ela deixou escapar que tinha cards com todos os melhores jogadores de Exy de todos os tempos. E ela nem percebeu que apesar do comentário ríspido que ele tinha lhe feito quando se viram pela primeira vez, ele não tinha sequer reclamado quando ela começou a se empolgar e fazer uma lista de todos seus times favoritos.
Lily descobriu que Andrew, Neil, Aaron e Nicky falavam alemão e usavam isso para se comunicar secretamente. E que Kevin, (que ela já sabia que falava francês), se comunicava também com Neil e com Jean, na língua francesa, quando estavam sozinhos. Isso a fez ter vontade de aprender algo novo, mas a dura realidade era que ela mal conseguia lidar com o espanhol obrigatório que tinha na escola.
Os dois perderam quase completamente a noção do tempo, mas logo que o doce foi colocado na geladeira, devidamente pronto, os outros dois homens - e agora, Abby e Wymack, que voltaram do mercado - entraram com sacolas de compras na cozinha, expulsando os dois para terem espaço para guardar tudo.
Lily subiu direto para o quarto, ainda precisava tomar banho antes do jantar. Andrew foi para o lado de fora e não voltou por vários minutos. De volta à cozinha, Kevin beijava a bochecha de Abby por ter estocado seu almejado suco de laranja e a mulher ria, recebendo o carinho de bom grado.
— Seu pai quase esqueceu e eu tive que lembrá-lo quando já estávamos no caixa — ela acusou e Kevin balançou a cabeça.
— Eu sabia que podia contar com você, Abby. O treinador Wymack não está com nada... — Ele disse e teve que desviar de uma bolinha feita de ecobags dobradas que voou na direção de seu rosto.
— Não amola, Kevin — David disse, antes de voltar a guardar as compras.
— Podia ter acertado a Abby! — Kevin rebateu, olhando Wymack com a boca aberta como se estivesse chocado, mesmo sabendo que tinha passado longe.
— Ele não ia me acertar, Kev, olha a minha altura e a sua — Abby riu, se aproximando de David e abraçando sua cintura e recebendo um beijo no topo de sua cabeça.
— É, Kev, o treinador estava mirando nessa sua testa enorme, é realmente quase impossível errar — Neil riu e saiu da cozinha.
— Josten, eu juro por Deus… — Kevin foi atrás dele.
Abby e Wymack se olharam, o sorriso no rosto dela era incomparável. Wymack poderia achar aquela interação extremamente estúpida, mas o sorriso no rosto de sua esposa fazia com que ele se incomodasse um pouco menos com os três pseudo-adultos atrapalhando seu precioso silêncio. Eles ficaram alguns segundos na posição que estavam. Abby se sentia jovem demais ao lado dele e mesmo sem nenhuma erva-de-passarinho sobre suas cabeças, o beijou de forma agradável.
Chapter 7: The First Christmas Eve
Chapter Text
Lily havia acabado de sair do banho, ainda estava enrolada na toalha e encarava as roupas em cima de sua cama. Haviam quatro blusas parecidas e uma calça jeans. O resto eram roupas de academia e o uniforme do time. Ela precisava escolher alguma coisa para usar no jantar, mas não conseguia decidir qual opção era menos pior. Todas pareciam péssimas.
Acabou optando pela blusa menos surrada que tinha e colocou a calça jeans, mesmo odiando a textura em sua pele. Ela foi até o banheiro novamente, pegou a escova de cabelo e gastou longos minutos para fazer dois coques na lateral de sua cabeça, deixando as pontas soltas ao lado de seu rosto. Uma batida na porta foi suficiente para fazê-la soltar os fios castanhos e correr até a porta.
— Eu já vou desc... — Lily começou a falar, mas parou ao ver que era Abby. Ela segurava uma sacola de papel e a garota lhe deu licença para entrar.
— Eu comprei algo para você — Abby sentou na ponta da cama de Lily e despejou o conteúdo da sacola no colchão — Não é muita coisa, porque eu tive que improvisar. O mercado não é o melhor lugar do mundo para montar um guarda-roupa.
Abby estava usando um vestido longo vermelho de malha com flores brancas espalhadas por toda a extensão. Seu cabelo estava solto e sua expressão era serena e fazia Lily ter a sensação de que nada no mundo poderia ser melhor do que aquela noite.
Lily olhou para cama e mexeu nas coisas. Havia uma segunda pele que podia ser utilizada como calça legging, uma blusa de gola alta e manga longa esverdeada e uma camiseta preta com tecido transparente e desenhos de estrela.
— Não precisava, Abby — Lily tocou no tecido das roupas e sorriu. O brilho em seu olhar foi agradecimento suficiente para a mulher que virou a garota de costas e a empurrou para o banheiro com as roupas na mão.
— Precisava sim. Amanhã é Natal. É bom ter uma roupa nova — Abby disse enquanto esperava Lily sair do banheiro. Davis não demorou muito e logo estava de volta, com as roupas novas e um sorriso grande no rosto — Ficou ótimo, querida.
Lily pulou na cama, dobrando suas roupas para devolver para dentro de sua mala. Abby puxou mais uma coisa de dentro da sacola. Um pequeno retângulo de papelão segurava dois pequenos brincos com pingentes de sapinho.
— Abby.... — Lily pegou os brincos, os encarando por alguns momentos antes de colocá-los nos únicos furos que tinha na orelha. — Eu amei...
Lily se esticou para abraçá-la, apertando a enfermeira até que sentiu os próprios braços cansarem. Quando se afastaram, Abby colocou um dos lados da franja de Lily atrás de sua orelha, a olhando, com um sorriso sereno.
— Sabe… Eu percebi que você se deu bem com os meninos— Abby disse e Lily cruzou as pernas na cama.
— Você acha? — Lily caiu na cama, ficando de lado e Abby riu. —Não acha que eu passei vergonha hoje? Com os três?
— Lily, os três adoraram você. Eu tenho certeza. Principalmente Kevin.
— Não sei. Andrew pareceu me odiar e depois pareceu me odiar um pouco menos — Lily resmungou, fazendo um bico com os lábios.
— Conheço ele há quase 20 anos e às vezes ainda acho que ele odeia todo mundo. Ele é daquele jeito, mas não se engane, ele iria daqui ao além para proteger todos nós. E agora você é parte da família.
— Até o final dessa semana.
— Lilian, já conversamos sobre isso, você pode ficar se quiser. Eu quero que você fique — Abby suspirou, fazendo carinho no cabelo dela.
— Eu tenho certeza que alguma coisa vai acontecer e eu não vou poder ficar. Vai que a assistente social muda de ideia. Vai que você muda de ideia — Lily cobriu o rosto com as mãos e Abby se abaixou para beijar o topo de sua cabeça.
— Eu não vou mudar de ideia, meu bem. Eu prometo— Abby levantou da cama — Quando você quiser descer, acho que os meninos querem usar o banheiro também — completou e saiu do quarto.
Lily sai ao mesmo passo que os três entram. Logo Neil estava sentado na cama de casal que ficava centralizada no meio do quarto de Kevin. No chão, ao canto da parede, repousava um colchão de ar de solteiro, esperando para ser enchido. Não tinha muito de Day naquele quarto, era um simples cômodo de visitas exceto pela mala grande e aberta em cima de uma cadeira, mas, tinha recebido esse nome já que todas as vezes Kevin dormia ali.
“We are never ever ever getting back together”
A voz de Kevinlogo começa a ecoar de dentro do banheiro por cima da de Taylor Swift, fazendo Neil segurar a risada. Ele também estava murmurando a letra, mas encarava de forma desatenta a parede do quarto. Andrew entrou alguns minutos depois e só então que Neil percebeu que ele tinha sumido por algum tempo. Chegou para o lado, dando espaço para que ele sentasse e o olhou.
— Onde você estava? — perguntou, ao invés de cumprimentá-lo.
— Fui lá fora, mas já voltei — Andrew jogou as chaves do carro para Neil que não conseguiu pegar no ar, mas depois as pegou do colo e guardou no bolso — O que está fazendo?
— Enchendo aquele colchão — Neil apontou.
— Então... não deveria estar... não sei... enchendo o colchão? — Andrew chegou um pouco mais para trás, deitando no colchão, apoiado nos cotovelos.
— Não consegui encaixar as peças — Neil deu de ombros e deitou ao lado de Andrew. Os dois ficaram em silêncio enquanto encaravam o colchão, decidiram, sem precisar dizer em palavras, que esperariam Kevin.
Day provavelmente iria ver que os dois não tinham feito nada, se irritar com a demora e fazer sozinho. Neil se virou para Andrew e abraçou sua cintura, apoiando a cabeça em seu peito, enquanto sua perna se entrelaça à dele lentamente.
— Nós temos que conversar com ele, Drew. — Neil aproximou o rosto de Andrew, murmurando as palavras, como se Kevin pudesse ouví-los. A afirmação de Josten foi respondida com um beijo.
Andrew deslizou uma das mãos no abdome de Neil, as pontas dos dedos tocando cuidadosamente a pele dele por baixo do casaco. A mão de Josten encontrou a que Andrew usava para se apoiar no colchão e seus dedos se entrelaçaram, o beijo tomava mais liberdade e eles esquecem cada pequena discussão e discordância das últimas horas.
O consentimento dos dois era silencioso, estavam tanto tempo juntos. Um mero "sim ou não?" perdeu a frequência, se tornando algo presente, mas inaudível. "Sim ou não" era simbólico, mas quase 15 anos juntos tornaram a pergunta obsoleta. Eles sabiam até onde podia ir e se não pudessem falariam.
— Kevin vai sair do banheiro a qualquer minuto — Neil sussurrou, os lábios de Andrew praticamente colados aos seus.
— Talvez ele queira se juntar a nós — Andrew murmurou. Neil entendeu que era uma brincadeira, mas também sabia do fundo de verdade.
O barulho do chuveiro ainda soava forte do lado de dentro do banheiro. A caixa de som improvisada de Kevin espalhava outra música da Taylor Swift. Wildest dreams.
" Say you'll remember me standing in a nice dress
Staring at the sunset, babe
Red lips and rosy cheeks
Say you'll see me again
Even if it's just pretend"
As mãos de Neil caminharam pelos braços de Andrew com cuidado. Ele sempre tinha cuidado, mesmo que soubesse que Andrew poderia quebrá-lo se quisesse, era bom, por um troco, tocá-lo como se ele fosse fina porcelana. Repousou os dedos nos fios loiros, enrolando o indicador na parte de trás, como um carinho. Neil murmurava a música para irritá-lo, descendo a mão para fazer carinho em seu rosto, como uma dedicatória.
— Eu te odeio — Andrew murmurou, uma brincadeira velha — Eu te odeio muito.
Mas Neil sabia que ele amava. Amava Neil e amava aquele estúpido vício dele e de Kevin com músicas de romance clichê. Um sorriso cresceu no rosto de Neil que parou de cantar apenas para beijá-lo novamente. O chuveiro desligou e os dois se afastaram, apenas o suficiente para Andrew ficar com a cabeça apoiada no peito de Neil.
Kevin abriu a porta e mal olhou na direção da cama antes de revirar os olhos.
— Estamos na faculdade tudo de novo... — ele resmungou, indo pegar uma roupa dentro de sua mala, uma ponta de ciúme em sua voz. Ele olhou para o colchão vazio e revirou os olhos — Sério, Neil? Você não pôde nem encher o colchão que eu vou dormir, sendo que vai roubar a minha cama?
—Você poderia dormir do meu lado — Neil murmurou, as mãos fazendo carinho no cabelo de Andrew — Eu fico no meio e Drew na outra ponta.
— Nem fodendo… — Minyard interviu — Olha o tamanho dessa cama e olha o tamanho do Kevin. Não tem espaço para nós três. Se vocês dois dormirem na cama, eu vou dormir no colchão de ar. Então é melhor encher. — Andrew soltou o corpo ao lado de Neil.
Kevin ainda olhava para os dois, atônito, como se Neil não tivesse acabado de sugerir que os três dormissem juntos, como se Andrew não tivesse sugerido que Neil dormisse com ele. Ele balançou a cabeça e foi até a mala, pegando uma roupa e voltando até o banheiro. Andrew se virou para Neil:
— “Você poderia dormir do meu lado” — zombou.
— O que? — Neil sussurrou de volta, sem entender e Minyard revirou os olhos.
— Você é patético, Josten — Andrew murmurou, segurando o colarinho de Neil e viu um pequeno sorriso surgir em seus lábios antes de puxá-lo para outro beijo.
Quando Kevin saiu novamente do banheiro, Neil estava trocando de blusa do outro lado do quarto e Andrew havia finalmente cedido e enchia o colchão de ar com certa facilidade. Os três deixaram o quarto sem fazer nenhum outro comentário pejorativo ou subliminar.
A mesa de jantar já estava pronta para seis pessoas. A decoração não havia mudado muito desde a hora do almoço e alguns dos pratos eram sobras. Porém, ao invés de os seis se sentarem, ficaram em pé conversando em cantos diferentes. Lily teve sua vez com todo mundo.
Ela contou a Neil sobre a conversa que havia tido com Andrew sobre os gatos e os dois engataram em uma conversa longa e extremamente fora de contexto sobre animais jogando Exy. Andrew e Neil nunca pensaram que seria tão simples conversar com uma garota de 14 anos. Lily tinha um gosto especial por coisas antigas, então eles conseguiram encontrar diversas coisas diferentes, mas comuns aos gostos dos três.
Com Kevin não era igual, toda conversa com ele tendia a acabar em Exy. Não porque ele não soubesse falar sobre outra coisa (ele aprendeu a ser sociável nos quinze anos que passaram), mas porque Lily esperou sua vida toda para ter alguém que tivesse o mesmo amor que ela tinha por aquele esporte, tornando quase impossível que sua cabeça se desfocasse daquele assunto sempre que olhava para ele.
Em certo momento, Wymack se juntou à conversa e Lily conseguiu perceber facilmente o quanto os dois eram parecidos. Era engraçado como os dois ficavam em pé parados na mesma posição quando estavam falando e como gesticulavam com os braços quando se engajavam em determinado assunto.
— Quando começam os treinos? — Wymack perguntou em determinado momento, segurando um copo de whiskey em uma das mãos e um dos pequenos salgados de Abby - que ela fizera questão de obrigar ele a experimentar.
— Depois do ano-novo — Neil respondeu. Ele estava em pé ao lado de Kevin, o que o fazia parecer um pouco menor do que ele realmente era.
— Me lembre de mandar uma cesta de ano-novo para o treinador do time, porque aguentar vocês três. juntos, no mesmo time… Ninguém é pago o suficiente para isso. — Wymack disse colocando o copo na boca e tomando um gole longo.
— O que tem vocês três juntos? — Lily se intrometeu, segurando três dos salgados de Abby em uma das mãos.
Kevin e Neil riram e Wymack revirou os olhos, se lembrando de todos os treinos fora de hora, todas as invasões em seu apartamento, as brigas, os ataques de cólera especiais. Lily poderia entender tudo isso no futuro, caso convivesse mais com os três, mas por enquanto, nenhum deles iria explicar.
Depois que eles acabaram de jantar, Kevin, Andrew, Neil e Lily trocaram as tarefas que tinham feito mais cedo. Kevin e Neil ficaram com a louça, enquanto Andrew e Lily tiravam a mesa. Eles não demoraram muito para acabar. Andrew pigarreou para chamar a atenção de Lily, enquanto enfiava uma das mãos no bolso.
— Eu sei que é meio em cima da hora. O Neil comentou que você colecionava aquelas cartas de jogadores e eu tinha uma guardada no carro… Então se você quiser ficar com ela… — ele tirou uma pequena carta do bolso com a mesma estampa azul e vermelha na parte de trás.
Lily caminhou até ele, um pouco confusa, tanto pela fofoca que Neil tinha feito sobre suas cartas, quanto pelo fato de que Andrew Minyard estava lhe dando algo de presente. Ela pegou a carta das mãos dele e encarou a parte da frente.
— A mais nova adição do comitê. Robin Cross — Andrew disse, enquanto Lily encarava o rosto sorridente de Robin. Os fios pretos lisos caindo sobre o uniforme azul escuro — Ela mesmo me deu essa, mas eu não uso para nada, então estava prestes a virar um porta-copos.
Lily abriu a boca ofendida com a possibilidade daquela raridade ser usada como porta-copos. Ela aproximou o pequeno card do peito como se o abraçasse e disse, séria.
— Vou guardar para sempre, eu prometo. Obrigada.
Andrew esboçou um sorriso e Lily se virou para subir para o quarto, indo guardar sua mais nova aquisição, e secretamente favorita, junto das outras.
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[ O Capítulo normal acaba aqui. O que segue é uma ligação do Facetime entre Aaron e Andrew feita mais tarde naquela noite. ]
— Ei. Feliz Natal — Andrew disse, esperando que Aaron o conseguisse ouvir em meio à uma gritaria do outro lado da ligação. O barulho foi diminuindo conforme Aaron se afastava do cômodo que estava. Ele fez uma cara confusa e pediu para Andrew repetir. — Eu disse Feliz Natal.
— Ah, Feliz Natal para você também. Espera aí — a câmera foi apontada para cima e a Andrew só conseguiu ouvir a voz de Aaron — Luci, o papai já vai. Eu estou conversando com o seu tio. Você pode esperar um minutinho?
— Se você estiver ocupado — Andrew pigarreou — Eu posso ligar mais tarde.
— Não. Tá tudo bem. É que eu vou sair para trabalhar daqui a pouco e a Kate resolveu dar os presentes das crianças mais cedo — Aaron voltou a aparecer na tela — Sabe como é, crianças e giz de cera…
— Eu definitivamente não sei. Como eles estão? Os dois?
— Como se estivessem ligados no 220 o tempo todo. Sorte que ano que vem vão poder ir para a escola. Eddie cismou que vai desenhar dinossauros de canetinha em todas as paredes da casa, mesmo eu falando mil vezes que a canetinha não “sai se passar um pano” — Ele disse e Andrew sorriu minimamente — Como está, Neil? E Kevin? — Aaron fez uma cara sugestiva para o último nome e Andrew revirou os olhos.
— Não faça eu me arrepender de te contar as coisas, Aaron — Andrew suspirou e Aaron fez uma careta, rendido — Eles estão bem. Você ligou para o Nicky?
— Puta que pariu! — Aaron exclamou, mas Andrew não teve tempo de falar nada, já que começou a rir ao ouvir um fino “puta que pariu” exclamado no fundo da ligação em uma voz bem fininha — Droga, droga… Kate vai me matar. Luci, querida, porque não esquece que eu disse isso?
Andrew ouviu o som de passos e então Aaron se abaixou e uma garotinha de seis anos com cabelos ruivos e olhos cor de mel apareceu na tela ao lado dele. Andrew acenou. Ele podia ter odiado Kate no começo, podia ter uma relação péssima com Aaron quando estavam na faculdade, mas nada no mundo mudaria o fato de que ele faria tudo e muito mais pelos dois sobrinhos.
— Fala “oi” para o seu tio — Aaron disse e Luci mandou vários beijos antes de murmurar um sorridente “oi, tio Drew”.
— Oi Lulu — Andrew não conseguiu evitar sorrir de volta.
— Lulu é um péssimo apelido para Lucille — Aaron murmurou depois de colocar a garota no chão.
— Não é pior que Ari para Aaron — Andrew rebateu — Nicky vai te matar por ter esquecido de ligar para ele. Boa sorte, amanhã.
— Você não quer que eu tenha sorte… — Aaron adivinhou e Andrew deu de ombros.
— Ninguém mandou esquecer de ligar para o seu primo no Natal.
— Eu tive que lidar com sogros e dois filhos ao mesmo tempo. Você acha que-
— Feliz Natal, Aaron — Andrew desligou a ligação, sem esperar o irmão acabar de falar, e colocou o celular dentro do bolso da calça. A porta da sala abriu e Neil enfiou a cabeça para o lado de fora da varanda com um sorriso no rosto — Eu já desliguei — O sorriso de Neil murchou.
— Eu queria ver os gêmeos.
— Por que quando vamos visitar você não é tão bem humorado assim com as crianças?
— Eu gosto de vê-las com uma distância segura, Drew. Você sabe o quanto eu levo jeito para cuidar de gente em miniatura... — Neil abraçou a cintura de Andrew quando ele entrou.
— Seria melhor se não as chamasse de ‘gente em miniatura’ para um começo — disse e Neil riu, ele com certeza não faria isso.
Chapter 8: The First Drop of Hope
Notes:
Esse capítulo serve para esclarecer algumas coisas sobre a Lily. Eu espero que gostem, porque ele não estava na primeira versão, então para quem está relendo >> ESSE É NOVO <<.
Obrigada para quem está apoiando minhas coisas<33
(Eu não reli ou editei, porque quero focar em acabar a história. Gramática perfeita é pra quem tem tempo de reler e eu quero só liberar todas as ideias que estão presas dentro de mim e compartilhar com vocês)
Chapter Text
Não era o primeiro Natal que Lily acordava de um pesadelo e provavelmente não seria o último. Os rostos familiares a seguiam não importava o quão longe ela tentasse fugir. Seu maior talento era incomparável à capacidade de seus segredos de assombrar seus dias e noites. As vezes ela enxergava os rostos deles na porta de uma sala de aula, passando por ela na calçada, ou a observando nas arquibancadas durante os jogos. Não importava o quanto certa ela estava de que nunca mais os veria, eles continuavam a aparecer.
Seus pais, seus tios, aqueles homens que frequentavam sua casa todo mês. Que sentavam na mesa do jantar e sorriam fazendo piadas que os outros não conseguiam rir. Se fazendo familiares nos cômodos até mesmo no dia que chegaram com as armas. Às vezes, se Lily olhasse rápido demais para o chão, ainda conseguia ver as poças de sangue sob seus pés. Quando ela pensava em seus tios, seu peito ainda pesava com a decepção que os dois sentiam com sua existência. A culpa que ela carregava apenas por existir.
Lily talvez nunca conseguisse deixar tudo para trás. Matar o que já estava morto era impossível, então remoer tudo era inevitável. Ela só não podia deixar ninguém saber.
Se esconder entre os cobertores e tentar voltar a dormir era inútil. Ficaria tanto tempo se revirando de um lado para outro que era mais fácil levantar, comer uma torrada silenciosamente e fingir que estava cochilando até mais alguém dar sinal de vida.
O rosto familiar que a encontrou assim que ela pisou na cozinha carregava uma expressão preocupada que pinicava na nuca de Lily, um desconforto que ela desejava se acostumar. Abby estava raspando a frigideira, deixando as últimas migalhas de ovo mexido caírem em cima da travessa, mas seus olhos estavam grudados no rosto dela, analisando seus próximos passos.
— Pesadelo — Lily explica, tirando as coisas de cima da bancada para abrir espaço. Abby assente sem falar nada. Ela já sabe o suficiente sobre os pesadelos natalinos de Lily. Ela nunca pergunta sobre o que se tratam, só que acontecem — Sobre o dia trinta…
— O que tem dia trinta? — Abby parece genuinamente confusa. Ela abre o freezer e puxa uma bandeja, antes de soltá-la em cima da bancada e ir atrás do óleo.
— Você falou que ia ver seus pais. Vocês estão planejando voltar quando? Meus treinos da escola voltam amanhã e aí param de novo para o ano-novo e começam dia 2. Se vocês forem voltar depois disso, eu só queria saber se você poderia me explicar o caminho até o estádio, para eu ir andando — Lily coloca uma pilha de pratos em cima da mesa e apoia os braços na bancada. Kevin passa atrás dela para chegar no filtro de água. Deus sabe o que tinha feito com que ele acordasse tão cedo, mas ele parecia já pronto para o dia todo, enquanto Lily e Abby ainda estavam em seus pijamas.
— Que? — Abby vira para Lily, as sobrancelhas franzidas, depois abre os olhos colocando a mão no rosto — Eu esqueci completamente, Lils. Eu só volto a trabalhar no dia 10, os treinos de férias vão ter que ficar para o verão.
— Eu não posso perder os treinos.
— Espera, você realmente achou que eu ia te deixar aqui e ir visitar meus pais? — Abby balança a cabeça, tentando se livrar dos absurdos daquela frase — Não precisa responder. Eu não te deixaria sozinha aqui por duas semanas, Lily. É claro que você vai junto.
— Mas os treinos… Eu ia perder mais de uma semana — Lily encara o sorriso de Abby sem entender. Dez dias sem treinos era o pior cenário possível — Eu sei me virar sozinha e eu posso ficar na casa do Noah, qualquer coisa — uma mentira distante, já que ela acabaria dormindo no vestiário ou na sala de Abby de qualquer forma.
— Noah nem está aqui, Lily. E você pode saber se cuidar, mas agora é minha responsabilidade cuidar de você, então, você vai junto com a gente. Não vai te matar perder alguns dias de treino — ela cruza os braços, notando a mudança de tom da discussão.
— Vai sim — Lily sai da cozinha sem bater os pés ou a porta, mas é isso que ela tem vontade de fazer. Morar com a enfermeira do time deveria ser um benefício para nunca faltar ou atrasar para os treinos. Aquilo era literalmente o pior cenário possível. Antes que ela pudesse raciocinar, sua raquete estava em uma das mãos e ela estava fora da casa.
Ter nascido em Charleston, na Virgínia Ocidental não tinha sido suficiente para fomentar o amor de Lily por Exy. Muito menos seu vício. Seus pais um dia haviam sido Corvos. Sua relação com o esporte era baseada no mesmo amor não-saudável que seus pais nutriam pelo esporte que jogavam na faculdade. Saber que teria que passar duas semanas sem treinar era pior do que dormir no vestiário durante o inverno, ou sentir a visão ficar preta por pular o almoço para poder treinar.
Atrás dela, os gritos ofegantes de Kevin, chamando seu nome, eram quase impossíveis de ignorar. Ele demora um pouco para desistir, mas Lily ainda consegue ouvir os passos dele sob a fina camada de neve, então ela tranca a porta da quadra assim que passa para o lado de dentro.
— Qual é, Lily? Eu não tenho nada a ver com o seu chilique… — ele se apoia na grade e ela finalmente olha para ele de longe. Segurando outra raquete e um moletom nas mãos, fazendo com que ela percebesse que estava apenas de pijama — Se você fala que vai deixar eu te treinar, eu pelo menos preciso conseguir ver você.
Lily está chutando a neve para os cantos da quadra, fingindo não ouvir. Talvez fosse melhor não se apegar a Kevin, ou a Abby, ou a qualquer um deles. Se ficar ali significaria ficar sem jogar, talvez seu destino fosse continuar sozinha para o resto da vida. A porta da quadra se abre e Kevin comemora suas habilidades de destrancar a manivela estando do lado de fora.
— Pode ficar em silêncio, mas eu preferiria que fosse fora da terra. Se você morrer de frio não vai poder entrar para a seleção — ele joga o casaco na direção do ombro de Lily e é patético o quanto de força ela faz para segurar um sorriso quando ele acerta. A mira dele era infalível? Ela veste o casaco, permitindo que suas bochechas fizessem o que queriam, mas depois fecha a cara novamente, ressurgindo pela abertura.
— Do que adianta você me treinar se eu vou ficar mil anos parada? Não vai adiantar nada — Ela joga a bola na direção dele, tentando acertar seu peito, mas ele desvia e pega com a raquete, jogando de volta na rede dela — Eu não pedi p’ra você vir atrás de mim. Você nem devia estar acordado ainda — ela joga de novo, um pouco mais rápido, ele aceita a bolada e deixa cair no chão. Lily suspira exageradamente antes de revirar os olhos e ir se posicionar perto do gol.
Kevin segue para o meio da quadra. Ele tenta desviar sempre que Lily chega perto para bloqueá-lo. Só o suficiente para simular um ataque, afinal ter quase duas vezes o tamanho dela a faria cair no chão sem proteção com o mínimo esforço. Ela se vira para fora, porque são as regras da escola. Virar para dentro, em grande parte das vezes machucava o atacante e nenhuma escola queria explicar seus adolescentes machucados. Porém, depois de Kevin conseguir desviar dela quatro vezes, Lily se irrita e gira para o outro lado e Kevin por reflexo e pelo costume de jogar com proteção, vira o braço para o mesmo lado e empurra ela com o ombro, a fazendo deslizar levemente no que restava de neve e cair no chão.
— Puta que pariu — ele solta a raquete e vai ajudar ela a se levantar — Que porra foi essa? Você não sabe que tem que ir para fora, caralho?
Os passos de Kevin, em sua direção, faziam o montante embaixo de suas mãos vibrarem. Ela encolhe as pernas na direção do abdome e cobre o rosto com os braços. Quando ele para de andar, só sobram as batidas rápidas de seu coração pulsando em seus ouvidos. Ela abaixa os braços e por um momento Kevin é Tia Jackie. Com aquela pinta enorme perto dos lábios e o cabelo curto cheio de cachos feitos com babyliss. Ela fecha os olhos e quando os abre novamente só há Kevin Day e a expressão mais nauseante que ela já tinha visto. Ele estava preocupado?
— Você se machucou? — ele pergunta e um balanço de cabeça é suficiente como resposta, então ele volta a se aproximar devagar, a puxando para cima pelos braços — Vai beber uma água. Tira cinco, eu vou tentar dar uma limpada aqui na quadra.
Lily corre na direção do bebedouro, escondido perto do salão de festas do condomínio. Ela joga um pouco de água no rosto, tentando acordar, mas só é suficiente para jogá-la mais fundo nas memórias. Tudo que sua mãe um dia fora, sua tia Jackie era o oposto. Era impossível que as duas fossem irmãs, tirando pelas feições parecidas e o sorriso. Lily gostava de agradar a tia Jackie, apenas porque a fazia ver um pouco de sua mãe ali. Até a mulher se tornar impossível de agradar. Os sorrisos saudosos se tornaram lembranças sádicas de raquetes, socos e queimaduras. Era inevitável que ela tivesse que fugir.
— Onde você aprendeu a bloquear daquele jeito? A NCAA e as escolas tornaram isso proibido há muitos anos — Kevin pergunta e Lily agradece pelos dois estarem ignorando o que tinha acontecido.
— Minha mãe me ensinou a jogar. Ela só me ensinou desse jeito. Disse que era assim que eles jogavam na Edgar Allan — Lily pega sua raquete do chão quase sem neve do chão. Agora que o chão está em seu tom escuro novamente, Kevin parece ainda mais branco, mas quando ele começa a tossir, sua pele parece pálida — Você jogou lá, né? Desculpa, eu fiquei sabendo sobre as coisas com Riko e sua mão… Eu não devia ter falado nada.
— Quem são seus pais? — ele pergunta, mas parece estar usando suas últimas palavras antes de desmaiar, deixando Lily quase com medo de responder.
— Jessica e William Davis… Eu não sei se vocês jogaram juntos. Ela entrou quatro anos antes de você, mas teve que trancar a faculdade no quinto ano porque ficou grávida — Lily não consegue entender porque está falando todas essas coisas que nem Abby chegou a saber, mas agora que começou, não consegue parar — Ela e meu pai morreram quando eu tinha uns sete anos.
Kevin demora um pouco para assimilar os nomes e história. Ele acha que mais de sete anos de terapia seriam suficientes para ouvir essas coisas sem ter uma crise de ansiedade, mas nem a reunião pela manhã tinha sido suficiente para que ele não sentisse vontade de vomitar ao fazer as contas sobre a idade dela. Jess e Will Davis eram só mais um dos antigos corvos na lista extensa de suicídios após a morte de Riko Moriyama. A consequência dos atos das raposas estavam finalmente ali para encontrá-los e tinham o rosto de uma garota adorável de 14 anos.
Ele finge olhar as mensagens em seu celular e mal consegue ver as horas, sua mão tremendo em volta do celular.
— Abby quer que voltemos para casa. Vai chover — ele nem olha para o céu aberto, muito menos para o rosto de Lily quando fala. Os dois seguem em silêncio pela rua. Kevin não quer pedir desculpas, porque isso teria que fazê-lo explicar tudo que tinha acontecido em seus primeiros anos de faculdade. Mesmo assim, era torturante pensar que Lily estava vivendo um inferno em casas adotivas, porque seus pais haviam tirado a própria vida. E a culpa de tudo isso era a boca grande das raposas.
Neil abre a porta depois que Lily toca a campainha. Ele ainda está de pijama, os fios acobreados bagunçados para o mesmo lado e um pequeno sorriso no rosto, assim que seus olhos se encontram. Os dois passam e Kevin segue Lily na direção da sala, abanando a presença de Neil em suas costas, quando percebe que está sendo seguido.
— Podemos conversar? Sobre o que aconteceu na quadra? — ele podia não conseguir se desculpar pelo resto, mas disso ele conseguia falar. É a vez dela ficar pálida, mas Kevin faz questão de sentar no sofá, ficando um pouco mais baixo que ela —Eu sei que é difícil confiar em um gigante meio mal-humorado, principalmente um cujo emprego é empurrar pessoas e correr para cima delas. Às vezes eu xingo e me exalto com as coisas, mas eu nunca machuquei ninguém. Não vou começar com você. Abby te tirou daquele inferno que você estava para te manter em segurança. Uma promessa dela é uma promessa minha também, você é família agora, Lily — ele suspira, fazendo uma pequena pausa — Já me machucaram demais nessa vida para eu achar que essa é a solução dos meus problemas. Aquele movimento é ilegal. Eu reagi por reflexo, só fiquei puto por medo de eu ter te machucado. Eu não ia…
É uma surpresa quando Lily praticamente pula em cima dele, o abraçando. Ele só tinha visto ela abraçar Abby poucas vezes, então aquilo é novo para os dois. Kevin apoia as mãos nas costas dela e respira fundo, um pouco aliviado.
— Chega — ela murmura algum tempo depois, tentando se desvencilhar de Kevin, suas bochechas novamente com cor. Ela limpa a garganta, o fazendo rir — Obrigada por ter falado esse monte de coisas. Não precisava. Eu sabia que no fundo você era um grande bebezão sentimental — ela dá de ombros e o Day revira os olhos quando ela sai da sala saltitando na direção da cozinha, o deixando apenas com um fofoqueiro plantonista parado com a cabeça para o lado de dentro do cômodo.
Abby está fazendo o almoço de Natal, quando seu olhar alcança Lily é logo desviado. Ela corta os dentes de alho com um pouco mais de força e suspira. A garota para ao lado dela, apoiando a cintura na pia. Ela finge procurar algo nos bolsos do casaco e então achar algo. Quando ela tira, suas mãos estão em formato de coração, um sorriso forçado estampado no rosto. Abby não consegue segurar a risada.
— Me desculpa — Lily solta os braços ao lado do corpo.
— Você vai estar desculpada se descarregar a lava-louças enquanto eu acabo de fazer a comida — Abby abre a máquina com um dos pés e aponta as coisas na parte de dentro com a faca — Eu conversei com os meninos. Eu sei que você sabe se cuidar, mas eu não conseguiria me perdoar se te abandonasse aqui em casa sozinha e o David não conseguiria te perdoar se a casa explodisse por acidente. Eu conseguiria, mas ele só tem um escritório para guardar aquela pilha de papéis de 1999, então precisa da casa inteira — ela brinca — De qualquer forma, eu não conseguiria deixar você aqui sem ninguém, mas os meninos vão passar o ano novo sozinhos e eles moram lá perto do Centro Esportivo, então se você quiser fi…
— Eu quero! — Lily salva o prato que estava segurando antes que derrubasse e corre para o lado de Abby — É sério mesmo?
— É sério. Vai ser só até eu voltar, depois vou marcar com a sua assistente social para assinarmos os papeis e aí acabou. Você não vai poder ficar longe de mim nem por um dia, até o juiz determinar que eu estou apta para te adotar de vez. O que deve levar uns seis meses. Então vai ter que ir para onde eu falar que vamos — Abby cruza os braços, colocando a faca de lado — Está ouvindo? — ela pergunta, porque Lily ainda está murmurando agradecimentos por deixá-la ficar.
— Ouvi tudinho — Lily pula em Abby e a aperta, assim que ela confirma que não está segurando nada afiado. Ela sai correndo da cozinha, tentando achar Andrew e Neil para agradecer a eles também. Do lado de fora da cozinha, Lily para, tentando absorver todas as informações.
A felicidade das notícias é completamente abafada pelo barulho das mentiras que seguiam Lily por onde quer que ela fosse. Os rostos que a assombram seriam a constante maldição de não contar toda a verdade para as pessoas dispostas a amá-la. E ela teria que aprender a conviver com isso se a consequência de manter segredos seria a segurança dos outros. Era fácil se acostumar com os pesadelos quando se teria um abraço quente para correr quando acontecessem.
Ela se permite sorrir novamente até chegar na sala e encontrar Neil, Andrew e Kevin sentados na sala. Kevin não olha em seus olhos e prefere encarar o chão. Andrew tem o mesmo olhar curioso de todas as outras vezes que se encontraram e Neil está com a mão no ombro do Day, como consolo. Lily sabe que é o assunto, mesmo que eles não precisem dizer. Ela para na frente de Kevin e empurra o ombro dele, que cai no encosto do sofá dramaticamente, aceitando o empurrão.
— Alguma coisa que é dita para você não chega neles dois? — ela pergunta ao mesmo tempo indignada e sem surpresa.
— Não — Andrew e Neil respondem ao mesmo tempo e Lily apenas se joga no sofá. Talvez ela devesse recusar o convite dos intrometidos e ficar sem treinar por duas semanas, seria melhor do que saber que tudo que ela falasse chegaria sempre nos três. Neil senta ao lado dela e Andrew do outro lado — Está apertado — ela murmura, mas nenhum dos três se mexe.
Andrew é intimidador e silencioso a maior parte do tempo. Kevin é dramático e calculista em todas as oportunidades que encontra. Neil é imprevisível. Os três juntos parecem capazes de fazer a vida de qualquer um o próprio inferno. Lily não consegue se sentir pressionada, muito menos vulnerável. Ela tira uma almofada que está incomodando suas costas e joga para cima, acertando a cabeça de Andrew, apoia a cabeça no ombro de Neil e encolhe as pernas para cima do sofá, empurrando Kevin para o lado. Ele merece, por ser um fofoqueiro.
— Abby falou que vocês conversaram com ela — ela começa a falar, os olhos fechados — Sobre o ano-novo. Foi legal.
— O que tem o ano-novo? — Kevin pergunta, fazendo Lily se questionar se apenas o que ela contava para Kevin chegava nos dois, mas o que era dito aos dois nunca chegava em Kevin.
— Nosso apartamento é perto da escola, Lily não queria perder os treinos. Falamos para Abby que ela podia ficar lá em casa durante essas semanas. A convivência vai ser inevitável já que Abby vai realmente adotá-la, estamos fazendo nossa parte — Neil dá de ombros e Kevin abre a boca, gesticulando rápido com os braços, tentando formular alguma frase — Que?
— Vocês são impossíveis. Eu falei isso a semana inteira e é só a Abby abrir a boca que vocês de repente adquirem outra personalidade — Kevin ameaça ficar em pé, mas logo depois cruza os braços. Lily teve certeza nesse momento que o Day sempre era o último a saber de tudo. Por trás dela, Neil dá um leve tapa na nuca de Kevin — Ei!
Até Andrew ri. Há uma nostalgia pelo jeito que os três se olham, mas Lily se diverte mesmo sem entender do que estão verdadeiramente rindo. Abby os chama para o almoço poucos minutos depois.
O primeiro almoço de Natal de Lily Davis na casa de Abigail Winfield é diferente dos outros que virão pela frente, mas é o mais especial, já que é o primeiro e o último que os seis passam juntos, só eles. Ela esquece todos os pesadelos fora da sala de jantar. Não é só ela que esconde segredos, mas naquele momento nada mais importa. Ela lutaria para ficar ao lado deles. Para que sua luz sempre chamasse atenção apenas daquelas seis pessoas, de mais nenhuma outra. Kevin sorri para ela do outro lado da mesa e seu sorriso de volta é genuíno. Finalmente se sentindo em casa.
Chapter 9: There's a First for Everyone
Notes:
Não façam muitas contas com a idade dos personagens, porque eu desisto da logistica. Explicações: Lily nasceu quando Kevin tinha 18 anos (três anos antes de TSC). Eles morreram no ano que se passa TSC, o seja, a Lily tinha três anos. Suponham que ela aprendeu exy com as memórias da mãe dela ou com a mãe dela aos três anos. É isso fml.
Esse capítulo está gigante e eu espero mesmo que vocês curtam. Daqui pra frente só pra trás :)
Chapter Text
Kevin não consegue entender o motivo de Neil e Andrew falarem com Abby por trás de suas costas. Ele sente que está sendo observado o tempo inteiro, como se fosse feito de porcelana e pudesse quebrar a qualquer momento. Como se qualquer coisa fosse acontecer e ele fosse encher a cara para compensar os últimos anos. O Day já planejava falar com Abby sobre ficar com Lily no feriado depois de ver a reação da garota na cozinha. Ter sido passado por cima era ao mesmo tempo revoltante e curioso.
Do lado de fora, Andrew acendeu o segundo cigarro. O Natal solitário das raposas havia chegado ao fim, Kevin estava apoiado ao lado da porta, assistindo Neil carregar o carro com todas as sobras de comida que Abby havia conseguido despachar. No final, Abby havia decidido ir mais cedo visitar seus pais, com a promessa de que ligaria todos os dias para ver como Lily estava e de que voltariam um pouco antes do planejado. Então os dois carros estavam sendo carregados ao mesmo tempo. Assim que a entrada da casa fica vazia, Andrew abaixa o braço que segura o cigarro.
— Você vai acabar de contar o que Lílian te falou, sobre os pais dela? Ou vai ficar guardando segredo, porque ela te deu um soco no ombro? — ele não esboça expressão e nada além de monotonia. Apesar de Lily ter comentado, ele não tinha contado a história inteira para os dois. Tudo que tinha dito era que Lily havia contado algo sobre seus pais, o resto da conversa havia sido interrompida pela chegada surpresa da garota.
— Pergunta para ela, ué. Como ela disse, eu não tenho que ficar fofocando sobre a vida dela com vocês — ele dá de ombros. Já haviam passado por cima dele para falar com Abby e agora queriam saber sobre uma conversa particular dele e de Lily. Em algum outro momento, ele contaria, mas estava puto demais com os dois para abrir a boca.
— Não acredito que você está com ciuminho porque ela vai ficar na nossa casa — Andrew ri e joga a bituca na rua — Kevin Day, você é patético. Neil que teve a ideia, ele disse que não era nada mais justo a Lilian passar o feriado na nossa casa depois dos vários anos que passamos na casa deles. Não tem nada a ver com você. Cuidado, esse seu ego enorme vai acabar empurrando as pessoas para longe.
Lily coloca a cabeça para fora, assim que Kevin entra na casa, pisando duro. Ela está segurando uma mochila de lona e uma raquete. Ela espera não ser o motivo da irritação dele, mas mesmo assim, antes de entregar suas coisas nas mãos de Neil, ela hesita.
— Vocês tem certeza? Eu posso ir com a Abby se for atrapalhar vocês. Não é porque ela está carregando esse peso que todo mundo tem que se meter — ela abraça as coisas em frente a seu peito, escolhendo um dos porta-malas abertos para colocar suas coisas. Neil estende os braços, facilitando a escolha dela e pega as coisas de suas mãos — Tudo bem mesmo? — Andrew não responde a pergunta, mas tira uma chave do bolso e coloca na mão de Lily. É Neil que explica.
— Essa é nossa e essa é a do Kevin, fica logo na frente. Para você poder circular onde quiser. Os apartamentos só tem um banheiro, às vezes fica lotado. É melhor irmos logo, King e Sir não podem ficar tanto tempo sozinhas se não Andrew começa a surtar — Neil comentou, assim que ouviu Wymack fechando o porta-malas.
— Tudo bem, querido — Abby está ao lado do cabideiro, pendurando dois casacos em cima dos braços — Neil, eu já disse que pode trazer as duas quando quiser.
— Elas fazem muita bagunça, Abby. E o treinador tem alergia. Não seria uma ideia boa — Neil abre o porta-malas de Kevin assim que as luzes do carro dele ascendem, perfeitamente a tempo dele chegar com sua mala e colocar para dentro, junto com as coisas de Lily. A sincronia dos dois era bizarra, talvez os anos jogando juntos refizeram os caminhos de seus neurônios.
— Vocês que sabem, afinal nada que uma loratadina não resolva — Abby para ao lado de Lily e a envolve com os braços, beijando seu rosto algumas vezes antes de soltá-la, algo que ela só permitiria vindo da enfermeira — Se comporte, nada de pensar em fazer qualquer coisa escondida. Eu te conheço, eu sei que essa sua cabecinha gosta de fabricar ideias mirabolantes. Se precisar de qualquer coisa fale com os meninos. Se precisar de mim, me ligue. Eu vou te ligar todo dia de noite, mesmo assim. Nada de pular refeições, dormir no vestiário, fugir — Abby respira fundo, sua sobrancelha treme antes dela voltar a falar — É sério, Lily. Eu falei muito sério quando falei sobre adotar você. Não é pra você sair correndo na primeira dificuldade, porque dessa vez é para sempre. Eu não qu-
— Eu prometo que vou me comportar, Abby. Eu só quero jogar, não vou arrumar confusão e muito menos fugir — Lily olha para a rua. Só as duas ainda estão ali, todos os quatro dentro de seus devidos carros. Ela suspira — Falando sério, Abbs. Quando eu fugi de casa, sem planos de voltar, você veio atrás de mim. Todas as outras vezes que eu saí pela sua porta, você não foi atrás, porque tinha certeza que eu ia voltar. Você sabia que não estava errada. E de qualquer forma, se achar que eu não vou voltar, pelo menos você vai ter a certeza que Kevin vai ter corrido atrás de mim. Eu estou literalmente sendo perseguida. Ele não me deixa em paz.
— Kevin é cego para muitas coisas, mas não para talento. Ele sabe o que vê, vai ser difícil desistir de você. Vai lá. Até daqui alguns dias, minha pestinha — ela vira para trancar a porta e deixa Lily correr na direção do carro de Kevin. Os dois iriam juntos, para ninguém ir sozinho — Lils — ela chama uma última vez antes de entrar no carro — Eu amo você.
Ela para, com a porta aberta, sem conseguir dizer que também a ama. Tudo que ela consegue fazer é sorrir, acenar e afundar no banco do passageiro, se enfiando dentro do próprio moletom, evitando o olhar curioso de Kevin e ignorando qualquer pergunta que ele tivesse para fazer. É só minutos depois, quando o carro está parado em um farol que ela sai de seu casulo.
— Boa noite, borboleta — Lily boceja em resposta, teria continuado ali se não fosse pelo fato de que estava quase cochilando — Dorme um pouco. Já são quase duas horas. Eu te chamo quando chegarmos. Está bastante trânsito por causa do Natal.
— Não estou com sono — ela responde, mesmo que a resposta seja visivelmente mentira.
— Não. Seus olhos estão quase fechando, porque tem uma entidade os puxando para baixo e te hipnotizando para cair no sono — Kevin olha para ela rapidamente antes de acelerar em resposta ao verde do sinal — Dorme um pouco, você não vai perder nada, pode acreditar.
— O que você tem contra espíritos?
— O que você tem contra obedecer as pessoas?
— Você está mandando eu dormir? Uau, é assim que vai ser? Cinco minutos com a responsabilidade e você já vira um tirano — Talvez seja o horário, mas a brincadeira dela não é levada de modo divertido, seu sono estava atrapalhando suas habilidades humorísticas. Lily consegue ouvir Kevin revirando os olhos.
— Eu não lembro de você ser tão chata assim antes. Sair de perto da Abby te mudou drasticamente como pessoa — ele para novamente, com o trânsito era fácil olhar para Lily quando falava alguma coisa. É só assim que ele percebe a pequena mudança na expressão dela — Você está repensando se deveria ter ido com ela, não está?
Lily cruza os braços, virando o corpo na direção da janela. Como podia não repensar? Se Abby estivesse certa e algo acontecesse e sua resposta fosse fugir. Seria o fim completo de sua relação com ela, com David, Kevin, Neil, Andrew. Não deveria ser tão difícil ficar quando ela se sentia tão amada, mas se ela escapasse das mãos deles por meio segundo que fosse. Teria outra chance? Se ela errasse, se descobrissem seus segredos, suas mentiras. Será que ela realmente teria outra chance com eles? Ou desistiriam dela também.
— Vocês não me conhecem — ela diz sem conseguir encarar Kevin — As pessoas às vezes gostam de assumir que coisas aconteceram, mesmo que elas não tenham acontecido. Se algo acontecer, vocês não teriam motivo para acreditar na minha palavra…
— Lily Davis. 14 anos? É isso? 14? — ele vê Lily assentir e continua — Bom, 14 anos. Seus pais morreram . Eles eram Corvos, Jess e Will Davis. Você estuda na escola em que Abby trabalha há dois anos, porque ela deu lugar a uma ex-aluna das Raposas que queria trabalhar em Palmetto. Você é backliner do time da escola. Gosta de sorvete de chocomenta. É horrível no videogame. Pela sua cara quando Neil mencionou as gatas, você não gosta muito de animais. Você é bem mais inteligente que outras garotas de 14 anos. Sabe cozinhar. Você é uma das pessoas mais viciadas em exy que eu conheço e é a maior fã que existe do jogador Kevin Day. Alguma dessas coisas é mentira?
— Não. Isso não significa que você me conhece. Só significa que não estava com a cabeça na lua durante essa semana — Lily respira fundo e depois solta.
— Isso não era para dizer que eu te conheço. Estou dizendo que em tudo que me contou e que eu vi, não houve mentira alguma. Não tenho motivos para desacreditar do que você fala. Nem eu, nem Neil, nem Andrew. Eles não podem prometer, mas eu posso, não vou desacreditar da sua palavra se você prometer que vai sempre falar a verdade para mim — o carro vira em uma rua não tão clara, um prédio alto, cheio de janelas, porém com uma aparência velha é onde entram os dois carros. Lily abre a janela para ver, mas depois se vira na direção de Kevin, mordendo o interior da bochecha.
— Eu prometo. Não vou mentir para você — ela ergue o dedinho e sorri quando Kevin entrelaça o seu ao dela, apertando de leve — Se eu tivesse idade faria um contrato, mas isso vai ter de ser suficiente — ela murmura satisfeita, por enquanto.
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Era surpreendentemente fácil dividir o apartamento com Andrew e Neil. Lily conseguiu se estabelecer no quarto de visitas de forma confortável e passava a maior parte do tempo fora da quadra com a porta entreaberta e a janela fechada para que as gatas pudessem entrar tranquilamente. Ela tinha descoberto não ter tanto medo delas quanto imaginava e menos ainda da cachorrinha de Kevin, que gostava de pular nos outros três, mas sentava confortavelmente no colo de Lily, enquanto ela adiantava suas leituras da aula de inglês avançado. Por enquanto, ela mantinha todas suas coisas agrupadas no canto do armário, ocupando a menor quantidade de espaço possível, mas cada dia novo, algo preenchia a casa com sua presença.
Os dias haviam sido parecidos. De manhã, ela ficava lendo algum dos livros da estante de Andrew - que ela descobriu que tinha um ótimo gosto literário, o que havia escolhido primeiro era “Grandes Esperanças”. De tarde, Kevin vinha buscá-la para o treino e os dois conversavam durante todo o caminho a pé. Na maioria das vezes, o assunto era exy, era o que sabiam melhor e não se cansavam nunca. Porém, às vezes, eles descobriam coisas novas e se empolgavam igualmente. Principalmente depois de pedir a Kevin para ensinar um pouco de francês. Ele ensinava palavras e comemorava sempre que ela acertava a pronuncia de uma delas. De noite, os quatro jantavam juntos e então Lily ia ver uma partida de exy no apartamendo de Kevin ou ele voltava para o seu apartamento sozinho e Lily ficava na sala com Neil e Andrew, esgotando a coleção de jogos de tabuleiro que eles tinham no armário.
— Scrabbles, pelo amor de deus. É o único que eu sei jogar, aí vocês não precisam me explicar — Lily suplicou na primeira vez que foram escolher, em frente ao armário de jogos. Era sua última tentativa em sugerir um deles. Todos os outros haviam tido como resposta: Esse é muito demorado. Muito complicado de explicar. Você não vai gostar desse. Então ela havia decidido escolher um que conhecia, mesmo que não fosse boa. Mesmo assim, tinha escolhido errado.
— Esse está em russo — Neil comentou, envergonhado. Lily revirou os olhos, desistindo e Neil apoiou uma das mãos no ombro dela — Tudo bem, você ganhou, a gente escolhe — Ele acabou pegando um jogo de cartas chamado: Taco Gato Cabra Queijo Pizza, em que eles tinham que bater na carta conforme a ordem que ela aparecesse. Era simples de jogar e os três se viram rindo juntos por quase toda noite.
E então, os dias antes do ano-novo passaram rápido. Lily quase não viu o ano-novo chegar. Já era dia 31 de dezembro. Andrew e Neil tinham acordado mais cedo que o normal e quando Lily saiu do quarto, os dois estavam sentados na escada de incêndio conversando algo que ela não conseguia ouvir. Ela preferiu não interromper e se dirigiu até a geladeira, pegando um potinho de iogurte e uma colher na gaveta. Era o melhor iogurte do mundo. E Lily tinha certeza disso porque todos os dias de manhã comia uma caixinha e nunca se sentia enjoada.
— Bom dia — Neil se esquivou na ilha da cozinha, depois de entrar e Lily levantou o olhar. Ela ainda não tinha se acostumado com aquela conversa fiada pela manhã, então ficou esperando ele continuar — Dormiu bem?
Lily assentiu, mas continuou esperando. Dessa vez, Neil não ficou para continuar a conversa, apenas pegou uma sacolinha de plástico na gaveta embaixo da pia e saiu da cozinha. Lily mergulhou a colher no iogurte mais uma vez, ainda meio confusa com aquele diálogo sem propósito, mas logo esqueceu o assunto ao perceber que tinha chegado à geleia de mirtilo que ficava no fundo do potinho de plástico, sua parte favorita.
Andrew chegou logo em seguida, mas ele não falou nada, ao contrário de Neil, ele parecia ter o mesmo apreço que Lily por conversa fiada. Os dois se olharam, acenaram brevemente com a cabeça e ele saiu novamente, depois de sacar uma tesoura da gaveta. Lily terminou seu iogurte em silêncio, descartou o copinho e lavou a colher. Ansiosa pelo dia seguinte, em que poderia comer outro.
Alguns metros de distância, em seu apartamento, Kevin Day terminava seu próprio copinho de iogurte. Era light e praticamente sem gosto, o que fazia com que não tivesse quase caloria alguma, mas Kevin gostava dessas coisas sem graça. Seu celular começou a tocar e ele quase jogou o pote na pia e a colher no lixo, mas os trocou assim que percebeu. Era Jean. Ele atendeu meramente por curiosidade.
— Theodora me ligou — Jean disse, ao invés de “alô”
Kevin ficou em silêncio, engasgado nas próprias palavras. Ele não sabia exatamente o que esperava daquela ligação repentina, mas definitivamente não era isso. Kevin não respondeu, esperando Jean continuar.
— Ela disse que tentou te ligar algumas vezes, mas que ficava caindo na caixa postal. Ela provavelmente vai tentar por outro número.
Claro, porque Kevin havia bloqueado o número dela assim que ela saíra do apartamento. A voz de Jean parecia estar vindo do viva-voz do carro e por um breve momento Kevin imaginou que ela estaria ali com ele, ouvindo as próximas palavras dele. Então ele continuou quieto.
— Kevin? Você está ouvindo? — Jean perguntou, batucando no volante, próximo demais ao microfone. Kevin tentou responder, mas o som não saiu, então Jean continuou — Bom, eu estou indo buscar a Mari no balé, não posso ficar três horas na ligação esperando você processar. Faça com essa informação o que você quiser, mas se quer minha opinião: 15 anos de terapia diriam para você não retornar as ligações. E se for fazer merda, pelo menos mande ela parar de acabar com as minhas férias.
— Eu não vou atender — ele consegue falar mais nada relacionado ao assunto, mas a familiaridade da voz de Jean consegue fazê-lo soltar o peso de seus ombros — Lembra dos Davis?
— Que? — Jean questiona logo após um som agudo da buzina — Vai se foder. A máxima aqui é 20, putain — ele pausa — Davis? A que perdeu a bolsa no último ano. Lembro, porque?
— Não sei se você andou falando com Abby. Eu não sei nem se deveria ser eu a te contar isso, mas uma hora ia circular. A filha deles, Lily. Abby vai adotá-la. Eu não acho que ela sabe que é ela mesmo — Kevin está se embolando nas palavras. Não há jeito melhor de explicar. Jean parece ter entendido, porque fica em silêncio fazendo as contas.
— Você acha que eles… — Jean respira fundo e a porta do carro é aberta, ao passo que ele muda para o francês — Oi, meu amor. Como foi a aula?
— Meh. A professora ainda me odeia — o inglês quase silencioso de Marienne Knox-Moreau mal chega no microfone, mas o apartamento de Kevin está silencioso demais para abafar o som — Oi, Kevin — ela deve chegar mais perto do volante, já que sua voz aumenta significativamente de volume.
— Oi, Mari — ele sorri e respira fundo, aquela conversa havia acabado mesmo que os dois tivessem mais o que dizer. Pensar em Marienne levava sua mente automaticamente à Lily de agora. Seu passado pouco relevante quando se tratava da garota que estava passando o feriado com eles — Vocês deviam vir visitar no verão, a Mari ia gostar de conhecer a Lily.
— Vou ter que ver com o Jean — ele resmunga, mas é praticamente um sim — Eu vou desligar agora, resolva seus problemas sozinho a partir de agora. Não vou ser intermediário de ninguém — ele se despede, mas Kevin ainda consegue ouvir um pouco da conversa que se segue antes de desligar — Se você quiser, podemos procurar outra escola. Seu pai insiste que é possível conquistar todo mundo com a força do sorriso, mas às vezes é mais fácil mandar os outros se f-
A ligação beepou para indicar que havia terminado e Kevin colocou o celular em cima da bancada. Assim como Jean havia previsto, o celular tocou, logo em seguida. Número desconhecido. Betsy provavelmente daria um bom sermão em Kevin se ela soubesse que ele pegou o telefone sem hesitar e atendeu.
— Aqui é o Kevin.
︶⊹︶︶୨୧︶︶⊹︶
Neil Josten enfiou a mão na sacolinha plástica antes mesmo de entrar do lado de dentro do quarto. As janelas estavam todas abertas, então ele fechou a porta e caminhou com cuidado para dentro. A cama de casal que ele e Andrew dividiam ainda estava bagunçada, mas o olhar atento de Neil estava dirigido para o outro lado.
Neil se aproximou com cuidado da janela que ficava ao lado da televisão, observando os resquícios da batalha que havia sido travada ali um pouco mais cedo. Um tênis caído ao lado da mesa de cabeceira, o elástico solto do lençol, a latinha de inseticida jogada no chão, vazia.
Era seis da manhã. Eles não planejavam acordar por outras duas horas, mas Neil teve que levantar da cama para desligar o aquecedor, porque já conseguia sentir suas costas suando contra o colchão. O plano era simples, desligar o aparelho da tomada, abrir uma frestinha na janela e voltar a deitar antes que Andrew percebesse que ele havia saído.
Era um plano tão simples, mas que deu errado em todos os seus passos. Neil tropeçou no fio do aquecedor, se debruçando na cama para não cair no chão e o fio saiu voando da tomada, batendo contra o piso com um barulho alto que acordou Andrew. Neil mal teve tempo de se desculpar, porque quando abriu a janela, uma barata, do tamanho do tamanho de duas pilhas AA entrou voando e pousou na parede contrária à janela.
— Nem fodendo — os dois disseram ao mesmo tempo. Andrew sonolento e Neil frustrado.
— Se vira — Andrew murmurou antes de cobrir as pernas e a cabeça, fazendo um casulo com o cobertor.
Neil tentou se virar, jogou o sapato na barata o que a fez voar na direção dele e depois tentou com o inseticida, espirrando na parede e abrindo todas as janelas até desistir e jogar a lata de metal na direção do bicho. Ele acertou, mas quando voltou para perto da cama, ao invés de receber um agradecimento de Andrew, recebeu uma almofadada no rosto.
— Você vai acordar a Lily, seu idiota — Andrew resmungou, voltando a tampar a cabeça.
Neil se abaixou, recolhendo a barata morta e as outras coisas jogadas. Ele aproveitou para fechar as janelas e arrumar a cama, saindo do quarto apenas depois de deixar tudo mais organizado do que antes. Lily tinha dito que dormira bem, o que o fez se sentir menos culpado por ter feito tanto barulho, tão cedo. A realidade era que a presença dela era tão silenciosa que às vezes ele esquecia que ela estava ali.
Era estranho, porque também era difícil imaginar não vê-la na mesa durante o jantar, ou deitada no sofá brincando com os gatos. Era como se ela tivesse momentos no dia.
Neil podia marcar os momentos do dia pelas pessoas à sua volta.
Quando acordava, era o momento de Andrew apoiar a cabeça em seu ombro, em um pedido silencioso para que eles dormissem um pouco mais. Quando ia tomar café, era o momento de Lily comer o mesmo iogurte de mirtilo, apoiada na bancada da cozinha, de vez em quando em silêncio, de vez em quando cantarolando uma música antiga que Neil tinha certeza que havia sido lançada antes dela nascer. Quando ia jantar, era o momento de Kevin se sentar na ponta da mesa, como se morasse ali, e contar sobre o quão ridícula uma mulher de idade havia sido ao confrontar o caixa do mercado que ele frequentava.
E Neil não conseguia se imaginar sem nenhum daqueles momentos. Ele queria essas coisas no seu dia a dia. Ele queria a companhia. Mesmo quando Andrew se esconde nas cobertas ao invés de ajudá-lo a matar uma barata voadora. Mesmo quando Lily responde suas perguntas da maneira menos simpática possível. Mesmo quando Kevin resolve ignorar todas suas ligações na última meia-hora. Ele ainda quer que todos estejam ali. E eles estão.
Andrew passa por ele e pega a sacolinha plástica de suas mãos, juntando com outras coisas para jogar no lixo que ele já estava segurando — Eu levo pra você. Tem café novo na garrafa.
Neil entra na cozinha para pegar seu café e Lily está sentada do outro lado do balcão, lendo o jornal como uma adulta e quando Neil sorri para ela, ela sorri de volta.
— Eu estava pensando… Você faz uma daquelas tranças de novo em mim? Eu não sei fazer direito sozinha — ela pergunta, Neil assente e seu celular logo começa a vibrar dentro do bolso.
Quando ele vê o nome de Kevin na tela, ele tem certeza: eles também querem estar ali. Ele enche uma caneca na jarra que Andrew havia deixado no balcão e atende o telefone um pouco antes de ir na direção da escada de incêndio. Se sentando nos degraus de metal confortavelmente.
— E ai? — Neil perguntou, depois que a ligação conectou.
— Foi mal, eu estava em outra ligação, só consegui ver as suas agora. Alguma emergência? Aconteceu alguma coisa com a Lily? — Kevin perguntou, porque o conhecia. Neil nunca ligava mais de uma vez seguida.
— Não, só precisava que você me ligasse antes de sair de casa. Andrew precisa que você compre algumas coisas antes de vir para cá, imaginei que você não fosse olhar suas mensagens hoje, por isso liguei — Neil respondeu, porque o conhecia. Kevin nunca olhava o celular em datas comemorativas.
— Theodora me ligou — Kevin confessou antes que Neil pudesse continuar o assunto. Os dois ficaram em silêncio até que Kevin continuou — Eu vou tentar ligar para Robin primeiro, aí passo no mercado.
— Kev…
— Não. Eu não vou deixar isso me afetar. Eu estou arcando com as consequências das minhas próprias ações. Eu não posso deixar acontecer de novo, tem coisas demais que dependem de mim para eu deixar ela me estragar. Só estou te contando, porque… — Kevin suspirou, ele não sabia exatamente o por quê, mas tinha um palpite justo — … eu acho que precisava ouvir sua voz.
Neil engasgou no silêncio com a confissão de Kevin e não conseguiu falar. Eles ficaram mais um pouco em silêncio, até que Kevin suspirou.
— Você ainda está aí?
— Sim — ele respondeu, apenas porque não queria que Kevin desligasse. Se sentia estúpido por não ter conseguido pensar em nada para falar. Neil Josten sempre tinha algum comentário sobre tudo, mas ao ser pego de surpresa, suas palavras ficaram presas na garganta, se embolando até que ele finalmente conseguisse formar uma frase inteira. Kevin havia contado sobre sua noite com Thea alguns dias antes. Ele e Andrew não poderiam ter se importado menos com a revelação se tivesse sido qualquer outra pessoa. E o sexo era irrelevante. Os três não estavam juntos para ter sido uma traição. A verdade que preocupava era outra. Thea era facilmente a ruína de Kevin e o nome dela sempre era como uma nuvem escura de chuva cheia de trovões — Vem pra cá, se quiser deixar o mercado para depois. Lily e Andrew estão fazendo palavras cruzadas. As gatas estão com saudade da Ellie.
— Não, eu vou lá agora. Não tem problema — Neil não tem tempo de protestar já que a ligação desliga.
— Renunciar à soberania, com sete letras — Lily anunciou. Ela estava sentada no balcão da cozinha, com o jornal na mão, tentando resolver a cruzadinha na parte de trás do New York Times.
Esse costume tinha começado dois dias antes, mas não tinha começado com Lily e sim com Andrew. Os dois estavam sentados na sala de manhã. Lily estava lendo o final de “O Grande Gatsby” e Andrew estava sentado do seu lado lendo o jornal. Eles estavam no mesmo silêncio constrangedor que já durava minutos, mesmo que os dois estivessem ocupados com suas próprias coisas. Era como se eles quisessem conversar, mas nenhuma palavra fosse boa o suficiente para iniciar um assunto. Até que Andrew falou: “Palavra com cinco letras, sinônimo de mexerico.”
Lily abaixou o livro, confusa — Hum? — ela perguntou, mas apenas porque ainda estava processando o que ele havia dito — Fofoca tem seis, Intriga tem sete. Boato? — Lily fechou o livro e se sentou ao lado de Andrew, observando ele escrever a palavra com cuidado no papel.
Os dois terminaram as cruzadas com rapidez e quando chegou o dia seguinte, eles sentaram juntos no sofá sem precisar de convite. Era bom poder conversar sem precisar pensar em um assunto. Era uma rotina boa e os dois gostavam de compartilhar aquilo juntos.
— Abdicar. Me passa o sal — Andrew pediu, de volta naquela manhã, esticando o braço para Lily. Ele estava do outro lado da bancada, cozinhando algo que Lily não tinha ideia do que era, mas que estava com um dos cheiros mais gostosos que ela já havia sentido. — 15. Horizontal.
— Prevenido. Sete letras — Lily entregou o sal para ele e voltou a escrever no jornal — Já sei. Avisado. A-VI-SA-DO — Os dois continuaram com aquilo por mais alguns minutos, até que Lily já não precisava mais da ajuda. Ela finalizou as letras que faltavam e levantou o olhar — Próxima. 02. Vertical. Três letras. Kevin Day vai vir dormir aqui hoje?
— Sim — Andrew virou para ela, por um momento preocupado de que aquela questão realmente estivesse ali. O jornal fala demais sobre a vida de atletas famosos. Ele percebe a brincadeira e se apoia no mármore, de frente para Lily — Três letras. Você se importa de dormir na sala? — Andrew respondeu à brincadeira dela, a fazendo sorrir. Ele se virou de volta para o fogão, contentado com a reação dela.
— Não. O sofá é confortável, eu não me importo. Posso dormir tarde hoje? Três letras. Entre parênteses: súplica — Lily se apoiou no balcão, se esticando para frente, segurando as mãos juntas e comemorou quando ele assentiu.
— Pode, mas vai dormir mais cedo ainda amanhã. Você ficou aqui para ir para os treinos, se faltar em algum a Abby vai te matar. Me passa o alecrim ali no armário de temperos — Andrew pediu e os dois assistiram Neil pular para dentro do apartamento, enquanto Lily abria o armário ao seu lado.
Kevin chegou no mercado dez minutos depois de sair da ligação com Neil. Tudo estava ecoando em sua cabeça de maneira nada confortável. Primeiro a ligação com Thea. Ele se arrependia profundamente de ter atendido, deveria ter ouvido as palavras de Jean e ignorado o número desconhecido assim que apareceu.
— Ei, Kev. Desculpa te ligar, assim do nada. Você está bem? — ela havia dito logo de início. Kevin foi educado na ligação, mas só foi entender o que ela realmente queria, quando seu tom se tornou um pouco mais ácido do que o normal e ele questionou se o namorado dela não acharia estranho que ela estivesse ligando para ele. Além de transa casual, ele também era amante.
— Ah, não. Nós terminamos faz um tempinho. Eu tive que contar para ele o que aconteceu…
Depois disso Kevin parou de ouvir completamente e todas suas respostas foram apenas automáticas. Muitas sessões de terapia o fizeram perceber que sua relação com Theodora não era exatamente a mais saudável. Ela sabia manipular bem as palavras e Kevin achava que a conhecia o suficiente para não se deixar levar e mesmo assim estava sempre descontente e desconfortável. Porém ele só entendeu realmente anos depois, quando os dois já estavam casados. Então eles se separaram. Kevin precisou de muitas outras sessões de terapia para perceber que estava completamente apaixonado por Andrew e Neil. Provavelmente, ela entendeu que se Kevin tinha bloqueado seu número era porque não queria que ela ligasse, mas sua insistência já estava se tornando patética.
Kevin ficou atordoado depois da ligação, ele só conseguia pensar em abrir o pequeno armário de bebidas que ficava no corredor e esvaziar uma por uma, até sua cabeça zunir o suficiente para que ele não lembrasse de nenhuma das palavras de Thea. Ao invés disso, ele se fechou do lado de fora da varanda e ligou para o primeiro contato nos seus favoritos.
E então, algum tempo depois estava ali, na fila do caixa, esperando sua vez de passar as compras. Alguns ingredientes que Andrew havia pedido e doze caixinhas de iogurte de mirtilo que ele esperava que não fosse para nenhum dos dois.
A ficha cai mais lentamente do que ele esperava. Os iogurtes provavelmente eram para Lily. Antes de chegar sua vez, ele também puxou dois saquinhos de bala de gelatina de uma prateleira e colocou em sua cesta. Lily não merecia aturar um pingo de seu mau-humor e se tinha algo que o faria mais do que feliz naquele momento seria ver ela feliz.
Neil abriu as janelas da sala logo depois de colocar a grade no corredor para as gatas não passarem. O apartamento estava abafado por causa do uso contínuo do forno e nenhum deles se incomodava de ficar de casaco na sala. Kevin tinha chegado há algumas horas e estava sentado no tapete da sala de um lado da mesa centro, disputando uma partida de damas com Lily que parecia mais empolgante do que uma partida de truco entre dois homens de meia-idade.
Os dois gritavam e jogavam peças uns nos outros, esporadicamente derrubando o tabuleiro e tendo que começar tudo de novo. Era competitividade demais para apenas duas pessoas, mas na visão de Neil, era mais do que suficiente para que eles estivessem se divertindo.
Na cozinha, Andrew ajustava o forno uma última vez, antes de ir arrumar a mesa.
— Ei… — Neil avisou antes de envolver a cintura de Andrew com os braços — O Kevin parece mais tranquilo do que antes.
— Se você acha — Andrew disse, indiferente, arrastando as pontas dos dedos por dentro das mangas do moletom de Neil, que apoiou o queixo em seu ombro.
— Eu acho — Neil girou Andrew para ficar de frente para ele, se apoiando na bancada — Acho que ele está melhor do que quando conversamos. Sabia que você está ridiculamente atraente usando o casaco que você ganhou de presente da Dan — ele disse, mas Andrew revirou os olhos — É sério — Neil encostou o indicador embaixo do queixo de Andrew, fazendo menção de virar seu rosto e quando os dois se encararam, Neil apoiou as mãos no mármore.
Andrew aproximou o rosto, o suficiente para sussurrar: — Sim ou não ? — as mãos já caminhando na cintura de Neil ,até alcançar seu moletom e depois sua camiseta, eram a cereja do bolo. Por fim, os dedos gelados de Andrew tocaram sua pele o fazendo mexer um pouco a cintura. Até que Kevin aparecesse ao lado dos dois, destoando em altura, se esticando para pegar uma taça no armário em cima deles. Andrew se afastou, olhando para o chão, apenas para não tropeçar, enquanto Neil olhava para cima, curioso com Kevin e talvez com um pouco de desejo. Em um outro momento, Neil provavelmente envolveria os cordões do casado de Day nas pontas dos dedos e o puxaria para baixo para beijá-lo.
— Tem criança na sala — Kevin murmurou, colocando as duas taças em cima da bancada. Nenhum dos dois conseguiu entender se a fala de Kevin era séria ou se tinha um fundo de ciúme, mesmo assim, eles se afastaram. Andrew foi checar o forno e Neil deu a volta na ilha da cozinha, se alojando em cima de uma das banquetas. Foi então que ele viu os dois copos.
— Você não vai beber, né? Nem tem álcool aqui — Neil questionou, em um tom afirmativo. Kevin tinha anos demais sóbrio para perder tudo por causa de uma taça de vinho em uma noite de ano-novo — Kev, eu sei que a ligação com a Thea po-
— Neil, eu não sou idiota. Por mais surpreendente que soe. Eu não vou jogar todo meu trabalho fora. Eu acabei de completar quatro anos. E tem a Lily. Que inclusive, se te interessa tanto, é o motivo de eu ter pego esses copos — Kevin abriu a geladeira e se abaixou até alcançar uma garrafa de vidro de suco de uva na parte de baixo — Ela disse que nunca bebeu em uma taça antes, enfim, não vou me explicar para você. Para de me encher.
Kevin encheu os copos e voltou para sala, seu rosto se desmanchando em um sorriso assim que seu olhar encontrou o de Lily novamente. Neil observou de longe, passando a mão no próprio rosto.
— Você fala demais — Andrew disse, tirando a comida do forno e colocando em cima do descanso na bancada — Vem comer — ele disse para Neil e depois inclinou a cabeça — Jantar — ele disse, mais alto, na direção da sala.
— Eu não acho que ele é idiota de verdade — Neil sussurrou.
— Eu acho. Vocês dois — Andrew deu de ombros, esperando os três se sentarem para jantar.
Chapter 10: First: The News
Summary:
:D writing spree? writing spree <3
Chapter Text
A mesa de jantar da casa de Andrew estava quase vazia. Haviam alguns potes de plástico empilhados em um canto, todos pratos usados já tinham sido tirados e não havia mais sinal algum de Andrew e Kevin. Na frente da pia, Neil e Lily esvaziavam e enchiam a máquina lava-louças de maneira dinâmica. Não faltava muito para a meia noite, então só restava ficar esperando.
— Kevin está estranho… — Lily comentou, tirando uma caneca laranja de dentro da máquina e a colocando dentro do armário. Ela tinha percebido logo depois de ele chegar. Ele olhava para Neil ou Andrew e seu olhar ficava perdido por alguns segundos. Ou uma notificação chegava em seu celular e ele desaparecia no corredor por vários minutos.
— Ele só teve um dia longo. Nada que você precise se preocupar — Neil disse com uma certeza duvidável, enquanto passava água em um prato e o encaixava entre os outros sujos — Vocês não estavam jogando damas? Ele estava de boa.
— Ele estava perdendo miseravelmente para mim nas damas, isso sim. Tem alguma coisa a ver comigo? — a pergunta estava presa na sua garganta desde que havia brotado em sua cabeça. Lily não tinha pensado que sua presença poderia cansar os três, principalmente por ser um curto espaço de tempo, mas se perguntava o tempo todo se cansaria Abby. O para sempre que ela tinha prometido seria real ou apenas mais uma promessa vazia?
Neil suspirou, apoiando as mãos na bancada, voltando a captar a atenção da garota. Ela fechou a lava-louça e se virou para sair, sem nem cogitar que Neil talvez estivesse organizando suas próprias palavras para responder sua pergunta. Aquela conversa não era responsabilidade dele, afinal.
— Lily, espera. Olha….
— Tudo bem. Não tem problema, eu sei que…
— Você não sabe, Lily, é que… — ele tentou explicar novamente, antes de ser mais uma vez interrompido por Lily.
— Eu sei, sim, e…
— Que tal você deixar eu falar, primeiro? — a pergunta de Neil saiu com menos paciência e mais volume do que ele gostaria, e ele não se orgulhou nem um pouco do que veio depois — Se você conseguir fazer o enorme sacrifício de não discutir comigo por cinco segundos, talvez a gente consiga ter uma conversa normal. Eu sei que a sua cabeça produz um monte de merda por causa das coisas que aconteceram antes, qual não? Mas se você não deixar os outros falarem, vira uma bola de neve de merda, Lily. Acaba deixando todo mundo puto ao seu redor. Não é atoa que…
A ironia nas palavras de Neil fez o mesmo trabalho de calar a boca de Lily quanto a expressão dela fez com ele. Era a primeira vez que ele falava daquele jeito com ela e não seria a última. Neil Josten nunca teve o controle da própria língua. Mas quando ela deu um passo para trás, quase batendo as costas na ilha da cozinha, algo no estômago dele se torceu e o afogou em arrependimento, sabendo que tinha passado dos limites. Lily limpou a garganta, arrumando a trança recém feita por cima dos ombros e piscou algumas vezes, abrindo a boca para falar mas desistindo, pensando nas palavras de Neil.
— Escuta — ele é mais rápido, com medo de que ela saia, sem deixar ele terminar — Eu só ia dizer, que se quer saber o que aconteceu com Kevin, é melhor perguntar a ele. Não é assunto meu para contar — Neil fecha os olhos depois que ela sai. Se o arrependimento não o matasse, as memórias que transbordaram depois iriam.
“Kevin!” Neil bateu na porta decorada do quarto de hotel várias vezes sem resposta. Quando desistiu, correu até o primeiro carrinho de camareiro no corredor e roubou a chave que abria todas as portas, deixando o cartão cair no chão assim que o verde aparece.
Mal parecia um quarto de hotel de verdade. Parecia um apartamento. Um apartamento gigante e descuidado. Havia roupas jogadas por toda parte. As grandes janelas iluminavam o ambiente completamente, deixando cada pedaço do carpete manchado a mostra. A cama de casal no centro do quarto também estava revirada, ao lado do pequeno bar/cozinha. Quando o olhar de Neil alcançou as garrafas vazias, seu corpo endureceu.
“Kevin?” Neil deu a volta da cama, mas quando finalmente encontrou Kevin, não sentiu nem um pouco de alívio. Seu coração parecia bater no próprio ouvido. “Que porra aconteceu, Kev?”
“Nada, aquela filha da puta daquela garrafa caiu no chão e eu…” Ele não precisou terminar de falar, Neil já tinha entendido e conseguia muito bem ver o sangue escorrendo das mãos de Kevin para a pia do banheiro. O mesmo líquido avermelhado que marcava os pedaços de vidro transparentes espalhados no chão.
“Sai daí. Senta na cama. Deixa eu fazer essa porra desse curativo.” Neil foi atrás da toalha e da pequena necessaire que Kevin provavelmente teria dentro da mala “Que merda você 'tá fazendo com você mesmo Kev?”
Neil se abaixou, analisando o rosto do Day. Seus sentidos estavam atordoados. Neil conseguia sentir o cheiro forte de álcool, ver os olhos avermelhados de Kevin, ouvir sua voz rouca e arrependida, tocar as pontas machucadas de seus dedos. Ele também conseguia ver o cansaço, o pedido por perdão. Seus olhos pediam a ajuda que sua voz não conseguia traduzir.
Neil fez o curativo cuidadosamente. Ouvindo o silêncio de Kevin. Se aliviando aos poucos da preocupação exorbitante que sentira quando passara por aquela porta. Podia ser bem pior. Neil sentou na cama ao lado dele, apoiando uma das mãos em seu pescoço para puxá-lo para perto, fazendo com que ficasse com a testa apoiada em seu ombro e os olhos fechados.
“Eu preciso de você.”
De todas as pessoas daquela casa, brigar com Neil era o último cenário na imaginação de Lily. Não havia sido um grande conflito, mas era o que tinha a deixado mais chateada. Ela teve vontade de sair pelos fundos do prédio e escapar para o estádio, mas tinha prometido para Abby que não o faria. Sua outra opção é escapar para o apartamento de Kevin e ficar sozinha um pouco. Faltava mais de uma hora para que sentissem sua falta e ela ainda poderia matar a saudade de Ellie.
Lily descobriu rapidamente que não estava sozinha. Primeiro a porta destrancada e depois as pernas de Kevin penduradas para fora do sofá na direção da entrada. Ela pensou em voltar, mas já tinha feito barulho e agora o Day estava sentado encarando ela com uma expressão confusa. Algo no rosto dele parecia errado, mas talvez ele só tivesse uma daquelas caras.
— Eu posso sair se você quiser. Achei que estaria vazio — ela diz, sem perceber o tremor em sua voz, enquanto fecha a porta e caminha na direção do sofá. Se ele pedisse, ela iria embora, mas a última coisa que queria era voltar a encarar Neil ou explicar para Andrew o que tinha acontecido.
— O que aconteceu? — A expressão de Kevin volta ao normal. Aquela ela reconhece. Antes estava melhor, qualquer coisa era melhor do que Kevin Day preocupado. Então porque Lily não consegue mentir?
— Aparentemente a culpa é minha de todo mundo estar sempre puto comigo — ela ri, sem querer — Por que você está aqui sozinho? — seu desespero em mudar de assunto é quase perceptível.
— Você irritou o Neil? Ele fala bosta quando se irrita. Parece que se ele se segurar, explode. Não leva a sério, ele logo esquece — ele diz desproporcionalmente despreocupado. Se fosse tão fácil ignorar, ela estaria menos chateada — Vim colocar comida para a Ellie e aproveitei para ligar para Robin — ele mostra a ligação recente e Lily bate o olho nas diversas ligações perdidas embaixo. Ela não precisa mencionar, já que assim que ele percebe que ela estava olhando, ele puxa o celular — Vou mandar uma foto nossa para ela. Ela está doida para te conhecer, mas foi visitar os pais do namorado.
O surto Robin Cross havia passado há poucos dias. Agora Lily estava apenas tentando ser casual com todo assunto. Deixar para surtar no dia que a conhecesse. Kevin liga a câmera do celular e Lily sorri sem usar as bochechas, fazendo um sinal de paz com os dedos. Tirando Kevin, ninguém tinha tirado tantas fotos dela antes, então ela simplesmente tentava copiar as poses que via as garotas da escola fazendo.
— Eu não quero soar sentimental, mas vai ficar chato aqui depois que você for embora — ele murmura, enquanto envia a foto no chat de Robin.
— Por que você vai sentir minha falta? Ou por que vai ser obrigado a lidar com seus sentimentos? Por Andrew e Neil? — Lily ri da cara de surpresa dele e das tentativas ridículas de negar. Poucas horas no apartamento deles e ela tinha percebido a órbita dos três. Ela tinha visto o clima entre eles quando Kevin fora buscar as taças para os dois, mesmo sem conseguir ouvir a conversa, via os corações flutuando entre eles — Qual é? Vocês acham que são espertos?
— Você está enfiando o nariz onde não foi chamada, Lily. Cuidado — ele avisa, o sorriso desaparecendo de seu rosto. Ele fica em pé e coloca o celular no bolso — Vamos voltar. Jajá vai dar meia noite.
— Pó, pó, pó — ela imita uma galinha e tenta não se arrepender quando recebe um olhar mortal de Kevin — Você é um franguinho. Eles têm coragem de demonstrar o quanto gostam de você, mas você não dá um passo para ir atrás. A vida é só uma, eu estou me forçando a acreditar que Abby não vai desistir de mim. Se force a acreditar que eles não vão desistir de você. É como você disse, eu vou ser parte da família. Neil pode falar o que quiser, eu também. Não é assim que funciona?
— Não — Kevin abre a porta — Neil estava certo, você realmente sabe como deixar todo mundo puto — ele sai no corredor e deixa a porta aberta, mas não a espera. Quando Lily tranca a porta, Kevin já está no apartamento de Neil e Andrew.
Se arrepender do que ele tinha dito era difícil. Lily estava certa apesar de tudo, ela só não tinha o direito de se meter assim. Na sala, ele olha os dois na varanda, dividindo o mesmo cigarro como se aquilo não fosse a coisa mais podre do mundo. Como se não fosse a coisa mais atraente. Seu celular treme e ele se obriga a olhar apenas para se distrair dos dois. A mensagem de Robin dizendo que Lily é adorável não só o obriga a sorrir quanto a ver outra ligação silenciada na barra de notificações. Ele pode ter desperdiçado sua vida ignorando o que sentia e se contentando com o amor manipulador de Theodora, mas se só tinha uma vida, não seria melhor viver o resto dela com os dois?
Ele pula a janela que dá para a saída de incêndio com facilidade e respira fundo. Andrew está apoiado contra o corrimão, olhando para a rua, mas Neil está na frente dele. Apenas um azul chama sua atenção em uma manhã ensolarada e não é o céu. Kevin fecha a janela atrás dele e desvia o olhar para a nuca raspada de Andrew.
— Você ‘ta bem? — Neil pergunta segurando o pescoço de Kevin e o puxando para baixo, olhando fundo nos olhos dele — ‘Ta passando mal?
— Não — ele se afasta, desviando o olhar — Eu ‘tô bem. Me solta. Eu só vim falar um negócio.
— Falar o quê, porra? Desembucha — Andrew vira na direção dele — Parece que viu um fantasma? — ele revira os olhos — De novo com aquela porra de assombração? Caralho, Kevin, supera.
— Cala a boca, Andrew. Eu não sei como falar, porra. Vocês não falam essas coisas. Eu não sei por onde começar. Sua declaração para o Neil foi a porra de um “Eu te odeio, mas não quer dizer que eu não te chuparia”, eu não vou compactuar com essa nojeira — Kevin só percebe que suas mãos estão suando quando ele as esfrega no rosto, o tremos sutil é pouco incomodo, mas ele ignora — Eu …
— Que merda você tá fala-? — Neil resmunga, mas dessa vez leva uma cotovelada de Andrew que parece finalmente satisfeito.
— Essa é a pior declaração que eu já ouvi na minha vida — Andrew está rindo demais para a situação e Kevin realmente o odeia naquele momento.
— Que declaração? — Neil franze as sobrancelhas, mas depois as ergue na direção de Kevin — Meu deus! Você estava tentando fazer um discurso?
— Vocês são péssimos. Eu vou me matar na frente dos dois. Dá licença — Kevin tenta abrir espaço entre os dois, fingindo que vai se jogar da escada, mas Andrew segura o braço dele e Neil o puxa pela camiseta, juntando a boca na dele ao mesmo tempo que os fogos do ano-novo começam a estourar do lado de fora.
Ele ainda se lembra da sensação do vestiário. Está impresso em sua mente e não importa o tanto que ele se force a esquecer, continua sendo assombrado. Aquilo consegue ser novo, velho e confortável ao mesmo tempo. A mão de Andrew escorrega para a cintura de Kevin e quando os dois finalmente se beijam, Neil não consegue se prender apenas no pescoço de um dos dois.
— Feliz ano-novo.
Os sussurros de Neil e Kevin se misturam aos sons do lado de fora e eles trocam um último selar antes de pular de volta para o apartamento, onde quase não é surpresa que Lily esteja cochilando no sofá, embaixo de uma pilha de cobertores. Kevin leva ela até o quarto de hóspedes e encosta a porta, Andrew apaga as luzes e tranca a porta, enquanto Neil coloca as gatas no quarto de casal. O consenso é silencioso quando os três se dirigem para o apartamento de Kevin.
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Lily bateu várias e várias vezes na porta do quarto de Neil e Andrew, mas ninguém estava respondendo. Foi só alguns minutos depois que ela percebeu que eles não estavam no apartamento. Os miados de Sir tinham começado há poucos minutos, mas tinha sido o suficiente para angustiar o peito de Lily que queria apenas pegá-la no colo e fazê-la ronronar o quanto antes.
Tendo certeza que os dois não estavam, Lily abriu a porta do quarto. Sir passou correndo por suas pernas e ela se virou para ir atrás da gata. Lily correu pelo apartamento e alcançou Sir quando ela pulou no sofá. Ela puxou um dos brinquedinhos que estavam no chão, jogando longe para ver a gatinha pegar.
Lily olhou o relógio, eram apenas 10h. Não acreditava que tinha perdido o ano novo. A última coisa que tinha visto era Kevin fugindo dela para o lado de fora. Ótima forma de começar o ano. Neil não se importava o suficiente para pedir desculpas. Kevin a odiava por ser intrometida. Andrew provavelmente a odiava por extensão. Havia exatamente uma semana que estava com eles e já tinha conseguido irritar todo mundo.
Lily fechou as janelas da sala e foi atrás de King para brincar com as duas na tentativa de deletar seus neurônios até conseguir para de pensar. Lily jogava os brinquedos, esperando que elas pegassem e recebia de volta alguns arranhões carinhosos e lambidas ásperas, que a faziam conversar sozinha e gargalhar pela companhia animal.
Quando Andrew e Neil entraram pela porta, carregados com compras, a cena que encontraram era caoticamente adorável. Lily estava deitada no sofá, assistindo televisão, King e Sir deitadas em sua barriga e o sofá completamente desprovido de almofadas, que agora estavam espalhadas pelo chão junto com os brinquedos de gato.
— Chegamos! — Neil anunciou enquanto cruzavam o cômodo compartilhado para chegar na cozinha.
— Ah, oi. — Lily quase caiu do sofá ao levantar com cuidado para não atrapalhar as gatas — Desculpa a bagunça, eu já vou arrumar.
Lily começou a juntar as almofadas com rapidez, tentando colocar as coisas da maneira mais organizada possível de volta no lugar certo. Andrew se ocupou em guardar as compras, enquanto Neil caminhou até a sala para abrir as janelas da parte de cima, onde os gatos não alcançaram. Pelo visto, os dois estavam se ignorando. Lily só levantou do sofá novamente quando percebeu a dificuldade de Neil em alcançar as janelas.
— Pode deixar, eu abro. Fechei as outras por causa dos gatos. Nem pensei em abrir as de cima…
— Valeu. Desde quando você ficou tão alta? — Neil perguntou, balançando a cabeça e então olhou para o rosto de Lily. Talvez eles só teriam que ignorar a situação. O Josten passou tempo demais analisando o rosto da garota que só então se olhou no reflexo da janela. Além do cabelo bagunçado, preso em um elástico por apenas dois fios de cabelo um pouco emaranhados, Lily estava com um pequeno arranhão na bochecha, um pouco vermelho e inchado que ela nem havia reparado estar ali.
— Você se machucou? O que aconteceu? — Ele esticou as mãos para tirar o cabelo de Lily da frente, que se inclinou, virando o rosto para ele ver melhor.
— Deve ter sido a King por acidente. Nós estávamos brincando. Ela deve ter me arranhado e eu nem percebi. — Lily piscou, balançando a cabeça e Neil se afastou, pressionando os lábios. — Não está doendo.
— Se precisar, posso passar uma pomada... — ofereceu, mas Lily negou com a cabeça.
— O que aconteceu? — Andrew perguntou, ainda na cozinha.
— Nada... — Lily respondeu antes que Neil pudesse falar alguma coisa — a King me arranhou sem querer. A culpa foi minha, eu que estava enchendo o saco dela. Cadê o Kevin? — ela voltou a juntar as almofadas.
— Eu vou levar ela para cortar a unha. Já está na hora — Andrew falou e o barulho das sacolas parou, uma das gavetas foi aberta e logo fechada, fazendo Lily imaginar que ele estava anotando em algum lugar para não esquecer — Ele saiu, volta daqui a pouco.
Neil voltou para a cozinha e foi ajudar Andrew com as compras. Lily acabou de arrumar o sofá e desligou a televisão, nenhuma das notícias parece interessante. Ela já não aguentava mais ouvir sobre as nevascas que estavam cobrindo as estradas.
— Lilian, foi você que abriu a porta do nosso quarto? — Andrew perguntou, com os braços apoiados na bancada da cozinha. Neil parado ao seu lado, também esperando a resposta.
Lily piscou algumas vezes. Era uma pergunta tão simples, mas que trazia memórias tão ruins. Ela tentou examinar a expressão de Andrew. Ele sempre estava com a mesma cara, então era difícil saber se ele estava bravo com alguma coisa. Lily calculou pelo menos cinco vezes tudo que tinha feito. Ela tinha apenas aberto a porta para Sir sair e depois foi para a sala, nem chegara a entrar no quarto.
— Hum? — Lily murmurou, subindo as pernas para a cadeira.
— Eu tinha fechado ontem de noite. Você abriu? — ele perguntou novamente.
Os míseros segundos em que os três ficaram se olhando pareceram séculos para a garota. Ela finalmente criou coragem para responder quando teve certeza absoluta que não tinha feito nada de errado.
— Foi... A Sir estava presa lá dentro. Eu abri para deixar ela sair. Foi só isso. Eu juro que nem entrei lá dentro... — ela respondeu com a voz um pouco fraca.
— Viu, Neil? — Andrew se virou antes de ouvir tudo que ela havia falado — Eu te falei que gatos não aprendem a abrir portas magicamente — ele saiu, indo na direção do quarto.
Lily nem tinha percebido que estava prendendo a respiração até soltar um suspiro aliviado, tentando processar o que havia acabado de acontecer ali. Ela apertou uma almofada contra o peito, sentindo seu coração bater contra o tecido. Quando finalmente o acalmou, Lily foi até a sala e pulou a janela que dava para a escada de incêndio e se sentou nos degraus, olhando para o lado de fora.
Ali era um dos poucos lugares em que seu medo de altura não atrapalhava o seu aproveitamento da vista. Ela gostava de observar as pessoas andando pelas ruas como se tivessem algo muito importante a ser feito ou carregando tanta coisa que poderia ser facilmente colocada em uma mochila e depois derrubando tudo pelo caminho, enquanto outras pessoas paravam para ajudar.
— Lilian — Andrew chamou, abrindo uma pequena fresta do vidro — Você viu o celular do Neil? Ele falou que tinha deixado na cabeceira da nossa cama, mas não estava lá.
— Não vi — ela segurou na haste de suporte do corrimão, seu coração estava saíndo do peito e pulando do parapeito. Talvez ela fosse vomitar seu iogurte em cima dos passantes.
— Tem certeza? Você entrou la, achei que pudesse…
— Eu não vi. Não vi — ela o interrompeu — Eu juro que não mexi em nada enquanto vocês estavam fora. Eu nem entrei no quarto de vocês. Juro mesmo. Eu só abri a porta para a Sir sair e depois fui direto para a sala. Eu não fiz nada de errado — fez uma pausa, murmurando — você tem que acreditar em mim — completou, mais para si mesmo do que para Andrew.
Lily percebeu seu tom de voz poucos segundos depois de falar. Andrew pulou para fora do apartamento, depois de gritar “A Lily também não viu. Se vira.” para o lado de dentro. Ele se sentou ao lado dela, fechando um pouco o vidro antes e respirou fundo, olhando para o outro lado da rua.
— Neil comentou que vocês discutiram ontem — Andrew se inclina para trás, se apoiando nos cotovelos, contra o metal frio — Eu não vou me meter no meio de vocês.
— Então porque está aqui? Falando disso? — ela se inclina contra a parede e cruza os braços — Você deve ter mais o que fazer.
— Você não está cansada de fugir?
— Eu não estou indo para lugar nenhum. O que te importa de qualquer forma? Depois que Abby voltar, só vão precisar me ver em festas de família. E depois que eu me formar, nem precisam mais me ver — Lily não sabe de onde vem tudo aquilo, mas percebe o peso das palavras de Neil agora. A grande bola de neve de merda. E o pior é que ela não conseguia parar — Você nem gosta de mim. Está fazendo isso porque o Neil pediu e agora nem ele me suporta mais. Vocês logo vão estar livres. E você vai poder agradecer por não ter tirado nem um pouco de tempo para me conhecer.
As dúvidas de Andrew sobre seu gosto por Lily haviam sido resolvidas há alguns dias. Ver a dinâmica dela com Neil e Kevin tinha sido suficiente para saber que ela seria uma boa adição à casa de Abby. Porém é nesse momento que ele entende que não gosta dela somente pelo jeito que age com os dois, mas que ele realmente gosta dela do jeito que ela é. “Você e o Neil precisavam de ajuda para sobreviver. Eu estava disposto a garantir isso. Você não conhece ela direito, não sabe do que ela precisa…” , ele havia dito no Natal. Kevin havia perguntado se ele sabia. Agora ele podia responder aquela pergunta, mas odiaria admitir que Kevin estava certo. Kevin precisava de um motivo para viver, então Andrew lhe deu Neil. Neil precisava de alguém que o pedisse para ficar, então Andrew lhe deu suas chaves. Lily não precisava que implorasse para ela ficar, mas sim que fossem atrás dela quando ela tentasse fugir.
— Você pode ir embora agora se quiser. Eu não vou contar para ninguém — Andrew fica em pé — Aproveite que Neil foi buscar o Kevin. Ele vai demorar um pouco p’ra voltar. Se me falar para onde quer ir, eu compro a passagem, alugo uma casa para você bem longe daqui até você fazer dezoito.
— Você não está falando sério? Você faria tudo isso para se livrar de mim? — Lily pensa em ficar em pé, mas acha que vai acabar vomitando — Depois de todos esses dias? Você está realmente se ouvindo?
— Estou sim. Você pode ir se quiser, Lilian. Eu não vou te parar, ninguém vai. É inútil — Andrew respira fundo, porque é ridículo a dor que ele sente no peito ao ver as lágrimas se formando embaixo dos olhos dela. Ele se levanta do chão, ficando sentado. Lily vira o rosto na direção da rua, afundando o nariz na manga do casaco — Mas tem que ser nas minhas condições, porque eu preciso saber onde você vai estar quando eu for atrás de você — ela não fala nada, mas vira seu olhar de volta para Andrew — Lily, eu vou atrás de você na puta que pariu se precisar. Você pode fugir, pode gritar com todo mundo dessa casa, mas você é uma raposa agora e pode ser uma notícia nova para você, mas eu sou um homem de palavra. E se estou dizendo que vou ir atrás de você é porque toda vez que você fugir, eu vou estar sempre atrás. Bom, pode ser outra raposa mas sempre vai ter alguém. Você entendeu?
— Sempre é muito tempo.
— É o tempo que temos — Andrew fica em pé e ajuda ela a se levantar — Vai lá para dentro, eu vou pedir comida daqui a pouco. Chega de cozinhar.
Lily pula a janela torcendo para não cair para o lado de dentro. Como Andrew havia mencionado, Kevin demora um pouco para chegar, então ela tem tempo para processar a conversa com Andrew. É impossível acreditar no que ele havia dito completamente, mas ela promete para si mesma que vai se esforçar. Mais tarde, Neil aparece sozinho na porta, ele vai direto para a sala e liga a televisão, apenas mais coisas sobre as nevascas, então ele logo desliga.
— O que você ia falar? Ontem? “Não é atoa que…” — ela pergunta, enunciando as palavras que estavam presas em sua cabeça desde então.
— Não é atoa que todo mundo pisa em ovos quando você está perto — ele assume, mas logo se corrige — Não é verdade. Você não precisa querer falar sobre nada com a gente. E não é culpa sua querer se defender quando alguma coisa acontece. Eu exagerei — Neil não sabe o que falar. O que ele queria falar era que se importava com ela, que ficava irritado quando ela assumia que era a origem das coisas ruins na vida dos outros e acabava falando besteira. Também queria dizer que sentiria saudade quando ela fosse embora e que seria estranho passar os momentos do dia sem ela. Tudo que conseguiu falar foi — Se eu pudesse voltar no tempo, pediria para você passar o ano-novo com a gente todas as vezes. Kevin está querendo falar com você.
Lily não aguentava mais outra conversa emocional, mas foi até o apartamento de Kevin mesmo assim. Ela quase caiu para trás ao ver Kevin, parado em frente a televisão, vestido em seus pijamas e arquinho de cabelo, segurando uma caneca de café, enquanto encarava a televisão. Finalmente algo digno de seus olhos. O jogo de exy estava praticamente ao vivo.
— Jesus amado! — Ela colocou a mão no peito indo se sentar entre algumas almofadas — Você só se veste que nem uma pessoa normal quando Neil e Andrew estão aqui? Achei que estávamos sendo atacados por zumbis.
— Você está ficando folgada demais comigo, Davis — ele a encarou e quando conseguiu mudar de canal, foi se sentar ao lado dela — Hoje é meu dia de folga.
— Folga do que? É o primeiro dia do ano — Lily abraçou uma das almofadas.
— De tudo… Do meu pai, do Andrew, do Neil, das outras raposas. — ele respondeu e olhou para ela — De acordo com o meu calendário, estou oficialmente de férias.
— De mim? De Exy?
— Não preciso de folga de Exy. Nem de você.
— Você costuma ter câimbras? — Lily soltou a pergunta, um pouco fora de contexto.
— Que? Por que?
— Você não para nunca…
— Eu faço o que preciso fazer para ser o melhor. Mas sim, às vezes eu tenho câimbras.
— Eu quero ser a melhor — Lily comentou, olhando para a televisão. Kevin conseguiu ver o brilho real em seus olhos, ele esboçou um sorriso e ela continuou — Mas eu não quero ter câimbras.
Kevin riu e balançou a cabeça. Os dois conversaram sobre o time da escola de Lily por um tempão, o que foi ótimo. Se Lily tivesse que pensar mais um pouco em como se sentia ali com os três, acabaria explodindo. Kevin queria entender como ela treinava para conseguir melhorá-la do jeito mais produtivo possível, não adiantava remoer a discussão de antes se no fim ela estava certa. O resto da tarde passou calmamente. Os dois almoçaram o que Andrew havia pedido sozinhos, já que Kevin estava falando sério sobre estar de férias dos dois. Ela jura que em algum momento o ouvira chamando de “despedida de solteiro”, mas deve ter sido apenas uma piada sem graça.
E então a noite caiu.
A sala estava escura e silenciosa. Kevin havia abaixado o som da televisão quase completamente ao ver que Lily havia pegado no sono e agora assistia um filme legendado que passava. Ele esticou um pequeno cobertor por cima da garota e esticou as pernas no estofado. Rolando suas mensagens com Robin, algo o incomodava. “Cuidado, vai acabar se apegando tanto a Lily que vai querer roubá-la de Abby”, ela havia dito mais cedo.
Kevin só havia pensado em ter filhos durante seu namoro com Thea. Depois que o assunto com os Moriyama havia se resolvido de certa forma. Mas a liberdade de poder estar sozinho se tornara tão atraente que ele havia deixado o pensamento de lado. Até conhecer Lily. Ele não sabia exatamente o que sobre ela tornava tudo tão fácil, mas era como se ela fosse exatamente o que faltava em sua vida. O sorriso bobo em seu rosto foi interrompido por seu celular tocando. Ele nem percebeu que horas eram, quase 22h, mas o número desconhecido em sua tela chamou atenção e ele atendeu. Uma voz calma soava do outro lado da ligação.
— Senhor Day? Você é o contato de emergência de David Wymack e Abigail Winfield, essa informação procede?
A partir daí, as informações ficaram um pouco borradas. Ele guardou o celular no bolso e parou na frente do sofá. Lily estava sentada, o cabelo amassado para um lado e a expressão confusa.
— Pega suas coisas, nós precisamos ir. Meu pai e Abby estão no hospital.
Chapter Text
Os bancos de couro do carro de Kevin eram frios. O clima do lado de fora não ajudava em nada. A nevasca ainda não havia cessado . Lily entrou no banco da frente e colocou o cinto. Não tinha falado uma palavra desde a assustadora fala de Kevin. Ela colocou o cinto de segurança e abaixou as mangas da blusa para que lhe cobrisse as mãos. Kevin entrou do outro lado e ligou o motor, apenas para ligar o aquecedor primeiro. Ele olhou para Lily por alguns segundos e pela primeira vez em quase duas semanas, não tinham o que dizer. Ele se virou para frente, mudando a marcha para poder dar ré.
Lily achava que ia vomitar a qualquer momento. Tinha uma dor estranha em seu peito. Ela respirou fundo para não passar mal. Inspirando e expirando silenciosamente, enquanto olhava para o lado de fora do carro. Pedir para Kevin parar o carro foi inevitável. As ruas estavam vazias, então achar um lugar livre foi fácil. Logo que ela desceu, ele abriu a porta e foi atrás dela, segurando seu cabelo para longe de seu rosto.
— Me desculpa — ela pede, tentando driblar o tremor de sua voz.
— Eles vão ficar bem, Lily. Eu tenho certeza… — a mentira tinha saído fácil demais, mas não era isso que preocupava a garota. Se Abby não estivesse bem, Lily teria que ir embora e nem ele, nem Andrew e nem Neil conseguiriam achá-la, não importa quantos sinais de fumaça ela tentasse dar.
— Quer que eu ligue para o Andrew e para o Neil? — ela tenta mudar de assunto, voltando para dentro do carro. Ela não conseguiria confessar o que estava pensando nem que a ameaçassem com dez facas. E o bolo preso em sua garganta só ia desaparecer quando ela se deixasse chorar em uma das cabines do banheiro do hospital meia hora depois de chegarem. Kevin assentiu e Lily alcançou o celular dele no porta copos do carro. Foi Andrew que atendeu:
— Kevin?
— É a Lily.
— O que aconteceu? Kevin está bem? Vocês estão bem? — Neil perguntou ao fundo e ela percebeu que estava no viva voz. — Lily? Por que vocês estão me ligando se estão no apartamento da frente? — ele perguntou mais uma vez a fazendo perceber que tinha ficado em silêncio.
— Sim, ele está. É... — engoliu em seco, talvez se proferisse as palavras elas se tornassem verdade, mas o fez mesmo assim — É a Abby e o Wymack. Teve... Teve um acidente. Nós estamos indo para o hospital, agora, levaram eles para lá.
— Nós estamos indo — Andrew respondeu e desligou o telefone.
— Eles estão vindo — ela repetiu e colocou o celular de volta no lugar e se virou para o outro lado, se encolhendo no banco e olhando pela janela.
Kevin estacionou o carro e os dois saíram em disparada para a recepção. Apesar de estar de casaco, ainda usava seu pijama que não era muito bom para proteger do vento gelado e suas pernas tremiam um pouco. Ela parou ao lado das portas automáticas da entrada e fez um movimento para Kevin para que ele entrasse primeiro.
Lily odiava os hospitais. Odiava médicos e seu costume horrível de não dar ouvidos a ninguém que tenha menos de 18 anos. Odiava o clima dos corredores, os sussurros e murmúrios mal informados. Odiava a comida horrível da cafeteria. E mais ainda odiava que esses lugares sempre acompanhassem uma história horrível.
Ela ficou parada no frio por pelo menos 20 minutos. Até ver o carro de Andrew entrar em uma das vagas em frente ao hospital e algum tempo depois Neil e Andrew sairem dos bancos da frente, caminhando até a porta. Eles pareceram ver Lily, mas não fizeram nada até estarem perto o suficiente. Lily apontou para o lado de dentro, avisando que Kevin já tinha entrado e Neil seguiu através da porta depois de uma comunicação silenciosa entre os dois. Andrew não se moveu, esperando Lily se virar para entrar, até que ela disse, fazendo menção de se sentar em uma pequena muretinha:
— Pode ir, eu vou ficar aqui.
Andrew puxou um maço de cigarro do bolso de trás da calça e se sentou ao lado dela antes de colocar um na boca e acender. Ela ficou em silêncio. Não sabia se estava esperando que Andrew falasse alguma coisa, mas também não sabia o que ele queria ficando ali parado ao lado dela.
— Eu também não gosto de hospitais — ele disse finalmente, sem olhar para ela — Mas ficar aqui fora sozinha nesse frio não vai ser melhor do que ficar sentada na sala de espera com outras três pessoas. E se estiver pensando em fugir preciso que me fale para onde vamos.
Lily ficou um pouco confusa com a primeira afirmação. Não sabia como ele tinha lido sua expressão tão facilmente, mas também resolveu não perguntar. Ela ficou em silêncio. Não queria fugir, mas logo mais não teria para onde ir. Lily se lembra da única vez que estivera em um hospital antes. Quantas vezes ela tinha dito que o braço quebrado não era por culpa de uma queda acidental e quantas vezes o médico havia rido da cara dela.
— Eu não quero entrar, mas você pode ir — Lily apontou para o lado de dentro e envolveu as pernas com os braços, afundando o rosto nos joelhos.
— Olha, Lilian, pode não parecer, mas eu sei melhor do que deixar uma criança de 14 anos sozinha no frio — ele disse, colocando o cigarro na boca novamente.
— Sabe disso, mas não sabe que fumar perto dos outros é tão pior quanto se os outros também estivessem fumando. E outra, hoje de manhã você falou que ia me pagar uma passagem de ônibus para eu fugir de casa, você não é um bom adulto. — Lily ergueu as sobrancelhas e Andrew revirou os olhos, mas só apagou o cigarro quando chegou na metade — Pode entrar, eu vou ficar aqui. É sério, não tem porque eu entrar — ela disse, quando ele levantou.
— Não. Infelizmente, eu sou mais velho que você e nossa conversa foi figurativa. Infelizmente, você não tem opção. Então você vai entrar, quer sim, quer não — ele estendeu um dos braços, apenas fazendo menção à guiá-la até o lado de dentro, mas não chegou a tocar em suas costas. Lily hesita antes de passar pelas portas e quando sente que vai entrar em pânico, as mãos de Andrew acham a sua e seus pés estão no chão de novo.
O hospital estava praticamente vazio, já estava tarde então a maioria das pessoas que estavam ali estavam acompanhando alguém ou esperando por alguém. Kevin estava parado ao lado do balcão da recepcionista. Neil estava ao seu lado com uma das mãos apoiada em suas costas, tentando acalmá-lo. Andrew e Lily caminharam até lá com certa calma, Day já estava atraindo atenção demais.
— Abigail Winfield e David Wymack — Kevin repetiu, logo que os dois se aproximaram.
Andrew e Neil se encararam em uma curta conversa silenciosa. A recepcionista parecia digitar algo no computador, mas ela não respondeu a fala de Kevin. Neil deu um passo para o lado e olhou na direção de Lily, tentando ver se ela estava bem. Era óbvio que ele havia tentado receber informações algumas vezes, mas ninguém parecia dizer nada.
Neil se aproximou de Kevin e murmurou alguma coisa antes de puxá-lo para baixo, segurando no tecido de seu casaco, abraçando sua cintura e deixando que Day afundasse o rosto em seu pescoço, retribuindo. Lily ficou parada ao lado dos três enquanto eles conversavam, mas ela não conseguia distinguir as palavras. Sua cabeça ficou bagunçada por alguns momentos.
Ela não conseguia lidar com a possibilidade de Abby não estar mais viva. Seus pensamentos eram egoístas e dolorosos. Se Abby não estivesse ali, ela ia ter que voltar para o sistema de adoção. Será que aquilo era culpa sua? Será que era culpa sua não poder ter nada de bom? Uma voz quebrou seu fluxo de pensamento.
— Por Deus, acabei de ficar sabendo o que aconteceu. Que bom que vocês estão aqui — uma mulher com longos fios ruivos apareceu em um dos corredores e foi dar um abraço em Kevin e Neil. Ela explicou toda a situação da forma que sabia, mas Lily não conseguiu se fazer ouvir. As palavras “acidente”, “cirurgia”, “desacordada”. Era informação demais. Tudo que ela conseguia entender era que ninguém tinha morrido, o que tinha que ser mais do que suficiente.
Lily balançou levemente a mão de Andrew, para lhe chamar atenção e avisou que ia até o banheiro. Ela caminhou por um extenso corredor até não conseguir enxergar mais o caminho. Viu uma placa que indicava o banheiro feminino e apenas entrou, antes de se trancar em uma das cabines. Ela finalmente se deixou chorar, como se um nó em sua garganta estivesse se desfazendo.
No fundo ela sabia que não devia ter criado tantas expectativas, que pessoas como ela não podiam se dar ao luxo de sonhar tanto. E acima de tudo se sentia egoísta de estar pensando em si mesma com tudo aquilo acontecendo. Tudo que ela sempre sonhou, arrancado de suas mãos de uma hora para outra, como se não significasse nada. Duas batidas na porta a fizeram tomar um susto e limpar as lágrimas, tão rápido que quase enfiou o dedo no próprio olho. Ela levantou da privada e deu descarga como se fingisse estar usando a cabine.
— Desculpa, eu já vou — Lily, limpou o rosto na manga da blusa de lã e abriu a porta.
— Eu não quero usar o banheiro, só perguntar se está bem. Parecia estar engasgada ou alguma coisa assim.
Lily reconheceu a voz imediatamente e quando olhou para a pessoa em sua frente, sua expressão relaxou um pouco. Noah Kizumi estava parado na frente da porta do banheiro, com as mãos apoiadas nas rodas de sua cadeira. Ele estava usando um moletom preto. Sua expressão passou de preocupada para perplexa para preocupada novamente.
— Davis... Que porra você tá fazendo aqui? — Noah perguntou, atônito.
— Que porra você está fazendo aqui, Kizumi? — o tom de Lily passou de confusão à preocupação.
Apesar de não falarem muito sobre suas vidas pessoais, os dois se conheciam e por mais que a cabeça de Lily estivesse ocupada com mil coisas diferentes, Noah e hospitais nunca eram um bom sinal, principalmente naquele horário. Ela até imaginou que ele estivesse ali por Abby, mas não faria sentido, tinha acabado de acontecer, então sua preocupação aumentou um tom a mais.
— Virose de fim de ano. Nada demais. — ele a tranquilizou — Por que você estava chorando? Por que você está aqui? Tá tudo bem?
— Eu 'tô bem— ela disse, finalmente, tentando desviar dele para sair da cabine. Noah se afastou e depois a seguiu até a pia.
— Você sempre costuma chorar no banheiro de hospitais quando está se sentindo bem? — ele perguntou. Lily ligou a torneira e jogou água fria no rosto, pegando um pouco de papel para secar. Noah ficou se mexendo para frente e para trás como se esperasse algum tipo de interação.
— Sim, Kizumi. É meu hobby favorito — disse e suspirou, enquanto secava o rosto — Não sabia? — fez uma pausa — Me erra, vai.
— Você parecia estar morrendo, como eu ia continuar minha vida sabendo que deixei alguém morrer sem fazer nada sobre o assunto? — ele perguntou, nitidamente nada abalado pelo comentário.
— Poderia ter chamado uma enfermeira para salvar minha vida — Lily resmungou, se olhando no espelho.
— Ia demorar muito. Você ia se afogar antes dela chegar.
— Eu não estava me… — Lily respondeu e cruzou os braços — Saí da minha frente, vai. Você não precisa falar comigo fora da escola. Caridade tem lugar.
Lily se odiava por estar dispensando-o assim, mas sua mente já tinha se configurado para os próximos acontecimentos. A agente social ia aparecer a qualquer momento e levá-la para qualquer canto, talvez nem conseguisse verificar se Abby estava bem e nunca mais ia ver nenhum deles novamente.
— Ei, ei. Eu só estava tentando ajudar. — Noah ergueu os braços e Lily deu a volta nele para ir para fora — Conta para o seu best o que te aflige, Lilyzinha — Lily revirou os olhos antes de sair do banheiro, batendo a porta quase na cara dele. Talvez ela deveria se trancar dentro da cabine para sempre — Não, sério. O que foi? Que caridade?
Lily seguiu pelo corredor e logo percebeu que estava sendo seguida.
— Sua mãe não te deu educação, não? Bater a porta na cara dos cadeirantes é muito feio. — Noah continuou atrás de Lily que decidiu nem apertar o passo.
— Não. Ela está morta, não lembra?
— Mas você tinha uma. E a Abby não está te dando educação?
Lily parou de andar e Noah quase bateu as rodas de sua cadeira nas pernas de Lily. A expressão dela fechou automaticamente e todo o aperto que sentia no peito voltou em forma de lágrimas. Ela enfiou o rosto nas mangas do casaco. Noah deu a volta, parando em sua frente.
— O que foi? Vocês brigaram? Lílian, eu juro por deus, suas habilidades comunicativas me surpreendem toda vez. O que aconteceu? — Noah, perguntou mais uma vez, tentando encaixar os fatos que sabia.
— Ela e o treinador… — Lily fez uma pausa, longa o suficiente para que Noah finalmente entendesse o que estava acontecendo, ou para que ela tivesse forças de engolir seu choro novamente — eles sofreram um acidente de carro.
— Kevin já sabe disso? — ele suspirou, sua expressão normalmente leve e brincalhona agora pesava como um grande saco de pedras. Lily inclina a cabeça, confusa— Vamos atrás da minha mãe, ela estava na cafeteria me esperando. Katelyn estava de plantão aqui, então imagino que Andrew e Neil também já saibam.
— Que?— Lily se afastou e deu alguns passos para trás, mas Noah segurou sua mão, antes que ela pudesse ir para mais longe — Noah, como você conhece eles? Nem eu sabia direito que Abby é casada com o pai do Kevin até esse feriado. Que porra você está falando?
— Lily, minhas mães eram raposas. Eu achei que soubesse… — ele faz uma pausa e balança a cabeça — Eu falei que conhecia Abby antes da escola antes. Ela foi trabalhar lá, porque eu estudava lá. Como assim, Lily?
— Que? — ela repete — Você nunca me contou isso, Noah? Você nunca fala sobre a sua vida e eu nunca falo sobre a minha. Era nossa regra silenciosa. Como eu ia saber?
— Que porra de regra silenciosa, Lily? Eu não estava escondendo nada. Você nunca perguntava detalhes, achei que não queria saber — Noah agita os braços, soltando Lily — Vamos achar minha mãe. Namoral, não acredito que você não ligou os pontos quando eu te contei que meu sobrenome era Walker-Reynolds… Deus amado.
Os dois foram juntos à cafeteria. Era um ambiente amplo com várias mesas redondas. Alguns posters conscientizantes estavam pregados nas paredes. Lily tirou algumas cadeiras do caminho para abrir caminho para Noah. Ela não esperava conhecer mais nenhuma raposa depois de Neil, Andrew e Kevin, mas ali estava.
Renee Walker estava sentada em uma das mesas, um copo do que parecia ser chocolate quente em sua frente. Ela usava uma blusa de lã preta, de gola alta e uma calça cinza xadrez. Sua corrente com pingente de cruz estava pousada em seu pescoço, sintilando o reflexo das luzes brancas do hospital. Ela se levantou imediatamente quando os viu. Um sorriso doce e penoso surgiu em seu rosto. Ela já sabia quem era Lily e mais ainda, sabia sobre Abby e David.
— Noah, que bom que encontrou a Lily. Andrew me mandou mensagem para a procurarmos no caminho. — Ela sorriu antes de oferecer um abraço a Lily, que acabou aceitando para não parecer mal-educada — É um prazer te conhecer. Eu sou a Renee. Como você está, querida?
— Estou bem — Lily respondeu de forma automática e prendeu o cabelo atrás do pescoço, ficando em pé ao lado de Noah.
— Por que vocês dois não ficam aqui, enquanto esperamos os três virem para cá? Eu vou comprar mais chocolate — Renee sacou o celular de dentro do bolso de sua calça, antes de beijar o cabelo de Noah e sair andando na direção da bancada do caixa.
Lily puxou mais três cadeiras antes de se sentar e ergueu os pés, apoiando a parte anterior de suas pernas na mesa. Ela conseguia ouvir a voz de Noah ao seu lado, mas não processava nenhuma das palavras que ele estava dizendo. Queria que Kevin chegasse logo e dissesse que estava tudo bem. Que Abby estava bem. Hospitais não traziam boas notícias. Essa era a falácia do ser humano. “Seu braço vai melhorar, mas vai ter que ficar alguns meses sem jogar” não era a boa notícia que os médicos achavam que era.
Renee voltou alguns minutos depois com cinco copos. Lily não entendia a facilidade que ela tivera para carregar tudo aquilo ao mesmo tempo, mas também não questionou.
— Então, você e o Noah se conhecem da escola? — Renee perguntou, colocando um copo na frente de Lily.
— Aham, temos algumas aulas juntos, mas normalmente nos encontramos só nos corredores e intervalos. A Lily não faz muita coisa fora da escola, achei que não adiantava chamar ela para ir lá em casa — Noah respondeu, um pouco envergonhado.
— Minha casa tem algumas regras um pouco restritas, então eu realmente não poderia encontrar com Noah fora dos horários de aula — Lily completou, esquentando as mãos em seu copo. Não era culpa dele não querer convidá-la quando todo mundo na escola a conhecia como uma ladra.
— Tinha — Noah corrigiu, empurrando o ombro dela com cuidado — Tenho certeza que agora as coisas vão ser diferentes…
— Ou não… — Lily olhou na direção de Noah, mas o sorriso embaraçado de Renee foi o suficiente para fazê-lo ficar em silêncio.
E então os três não falaram mais nada sobre o assunto. Noah perguntou se sua outra mãe estava vindo e depois sobre os exames que ele tinha feito. Kevin e Neil estavam de mãos dadas quando chegaram perto da mesa. Os olhos de Kevin estavam vermelhos e a blusa de Neil possuía uma pequena mancha no ombro. Andrew vinha logo atrás deles e foi o primeiro a se sentar.
— Kate saiu para conseguir mais informações. Ele disse que os dois estão em cirurgia, mas que não sabe de mais nada. Já avisei que vamos estar aqui — Ele explicou para Renee e para Lily, mas olhava apenas na direção de Lily.
— Alli está vindo para cá. Robin e Dan estão presas em casa por causa da neve. Não falei para os outros ainda. É melhor esperar um pouco antes de falar alguma coisa. Ao menos até termos mais informações — Renee dividiu os copos que estavam em sua frente entre os três e esticou a mão por cima da mesa para segurar a de Kevin, que ofereceu a sua, quase de bom grado — Vai ficar tudo bem. Estamos orando por eles.
Kevin assentiu. Lily se encolheu um pouco na cadeira colocando seu copo na boca. Estava um pouco quente, então ela tomou pequenos goles, enquanto observava os adultos na mesa.
Meia hora se passaram parecendo dias. O movimento na cafeteria era mínimo e os suspiros e pequenas falas na mesa que Kevin, Andrew, Renee, Lily, Neil e Noah dividiam soavam cada vez mais cansados e deprimidos. Eles estavam tentando manter as esperanças com qualquer pingo de energia que lhes restava, mas quanto mais o tempo passava, menos informações tinham.
Allison se aproximou da mesa quase sem fazer nenhum barulho. Mais abraços e afirmações esperançosas foram lançados em todas as direções. Não durou muit. Allison e Renee logo se despediram. O combinado era de que iriam até em casa para que Noah e Renee pudessem dormir, já que passaram o dia inteiro ali e pareciam mais exaustos do que soavam, e mais tarde trariam roupas mais quentes para Kevin e Lily que estavam completamente despreparados para o frio que persistiria no dia seguinte.
Ofereceram a Lily que se juntasse a Noah durante a noite, apenas para descansar um pouco, mas ela prontamente recusou e a tentativa de Renee de insistir foi logo cortada por dois olhares que pareciam saber melhor. Andrew e Kevin garantiram que se Lily quisesse poderia ficar no hospital com eles e que se fosse necessário, poderiam ir até o apartamento de Andrew e Neil para dormir, já que era o mais perto. E assim, os três foram embora, deixando o silêncio envolver os quatro que haviam sobrado.
Neil ofereceu que eles voltassem à recepção e os quatro se sentaram nos sofás no canto da grande sala de espera. Lily e Kevin de um lado, contra a parede, e Neil e Andrew do outro, de frente para a parede. Os sofás não eram muito grandes, mas cabiam duas pessoas com facilidade. Neil apoiou a cabeça no ombro de Andrew e fechou os olhos, enquanto Minyard se ocupava em mexer no celular. Lily encolheu as pernas em cima do estofado, apoiando os braços em cima dos joelhos enquanto fazia duas tranças em seu cabelo, apenas para não ficar parada.
— Ei — Kevin sussurrou, virando o rosto na direção dela — Está com frio? — perguntou, mas não se importou com a resposta silenciosa de Lily e levantou, indo até o balcão principal.
Ela ficou encarando Kevin para ver o que ele estava fazendo e mesmo sem conseguir ouvir, viu a recepcionista, outra diferente daquela que estava lá quando eles chegaram, passar por uma porta automática e voltar com um pequeno tecido dobrado. Kevin pareceu agradecer e o sorriso dela foi tão grande que fez Lily se perguntar se ele tinha conseguido aquilo por simpatia ou por ser quem era. De qualquer forma, tinha sido eficiente e Kevin logo voltou para perto do sofá, entregando um cobertor para ela.
Lily abriu o tecido e o envolveu em suas costas, agradecendo. A esse ponto ela já tinha acabado as tranças e as deixado soltas sobre seus ombros. Lily fechou brevemente os olhos, mas depois os abriu novamente. Tinha recusado a oferta de ir dormir na casa de Renee, porque queria estar ali caso tivessem alguma novidade, se ela dormisse agora seria uma completa falta de educação. Ela tentou se manter acordada o máximo que conseguiu, mas aquele cobertor, aquele clima e todo seu cansaço não estavam sendo muito favoráveis.
“Lily, se você quisesse ir dormir, devia ter ido embora quando te ofereceram” “Kevin devia querer estar passando esse tempo com a família dele, Lily. Por que você não podia dar um tempo?”“Lily, você só está atrapalhando os três.” Seus sonhos gritavam com elas, mas ela não conseguia abrir os olhos. Só quando ouviu a voz dele que finalmente conseguiu acordar.
— Lily… — a voz de Kevin soou ao seu lado, mas Lily teve que piscar algumas vezes para prestar atenção — Você está quase caindo de sono… Neil falou que se quiser fica no carro com você, assim você pode tirar um cochilo. Não acho que vamos ter notícias tão cedo, então eu te chamo quando precisar.
— Não, eu ‘tô bem. Desculpa — Lily coçou os olhos rapidamente, arrumando sua postura no sofá — Não estou com sono.
— Lily... — Kevin suspirou e ela lamentou estar tão cansada a ponto de não conseguir ler a expressão dele — Dorme um pouco. Nem que seja aqui.
Os dois ficaram se encarando por alguns segundos até que Lily finalmente concordou. Ela se aninhou ao lado de Kevin apoiando a cabeça em seu braço e se enrolando no cobertor improvisado. Uma cadeira apareceu na frente de seus pés, junto com o rosto de Neil. Ela sentiu Kevin suspirando antes de envolvê-la com um dos braços e finalmente, após longas horas ela se sentiu segura. Lily fechou os olhos e demorou meros segundos para pegar no sono.
Kevin não saiu do seu lado por nenhum segundo. Nem quando Neil e Andrew saíram para fumar. Nem quando Neil ofereceu que eles trocassem de lugar para que ele também pudesse descansar um pouco. Ele também não levantou quando viu Kate se aproximando, porque Lily parecia tão confortável e Kevin queria dar a ela mais alguns minutos antes de lhe contar qualquer notícia que viesse pela frente.
Lily tinha feito tanta diferença em tão pouco tempo. Não só ele, como Andrew e Neil viam a injustiça que era aquilo. Mas só Kevin tinha visto perfeitamente o quanto ela amava Abby. E agora ela não estava ali e ele não sabia o que dizer. Não sabia o que dizer, porque elaborar palavras que criem esperança já é difícil o suficiente, mas fazê-lo enquanto se está com medo é quase impossível. E ele estava. Ele não queria perder seu pai. E não conseguia sequer imaginar como seriam as coisas caso isso acontecesse.
Quando ela se aproximou deles, Kevin respirou tão fundo que era como se todo o ar deixasse de existir e ele se esquecesse como devia respirar. Mas então, as palavras que ele ouviu o fizeram lembrar novamente.
— Eles vão ficar bem — foi tudo que Kevin conseguiu prestar atenção. Neil e Andrew ficaram atentos aos detalhes médicos, mas ao que tudo indicava, tudo ficaria bem. Eles podiam ter esperança. Kevin podia respirar de novo.
Ele pensou em deixar Lily dormir, mas tinha dito que a acordaria, então, mesmo com pena, o fez. A balançou devagar, apertando levemente seu braço e esperou até ver ela piscar os olhos de cores diferentes, lentamente, até se acostumar com a luz.
— Hm? — ela murmurou, esfregando os olhos e bocejando logo em seguida.
— A Kate disse que os dois já saíram da cirurgia. Estão na UTI por enquanto, então não podemos visitá-los, só depois que eles forem transferidos para um quarto. Mas eles estão bem e vão ficar bem — Andrew enunciou, se sentando em frente a ela, novamente ao lado de Neil — Pode voltar a dormir se quiser. Ainda está nevando, então não podemos sair daqui.
Lily piscou mais algumas vezes na direção de Andrew e depois voltou a olhar para Kevin. A expressão aliviada no rosto dele dizia que Andrew não estava mentindo. Lily sentiu um nó se desfazer em seu peito e o cansaço caiu em dobro em seus ombros. Um pequeno relógio na parede marcava quase quatro horas da manhã. Lily envolveu a cintura de Kevin com os braços, sem pensar muito, o abraçando e compartilhando do mesmo alívio que ele. Kevin retribuiu o gesto carinhoso e assim que os dois se soltaram, ela se arrumou no sofá para voltar a dormir.
Dessa vez, os dois deixaram o cansaço ganhar e pegaram no sono rapidamente. Neil e Andrew também não demoraram muito a ceder e se recostarem no outro sofá. Neil com a perna por cima da de Andrew e a cabeça deitada em seu ombro. Lily acordou novamente várias horas depois, com aquela sensação estranha de estar caindo de um lugar alto. Ela se levantou rapidamente quase batendo sua cabeça na de Kevin que para sua surpresa ainda estava sentado ao seu lado.
— Ai — ele resmungou depois do movimento rápido de Lily, se arrumando no sofá — A Renee trouxe roupas para você. Ela disse que não conseguiu achar suas coisas na casa da Abby, então pegou algumas coisas emprestado do Noah. Se você quiser ir se trocar.
— Falaram mais alguma… — Lily alcançou a pequena sacola com as roupas, mas foi interrompida antes que conseguisse prosseguir com a pergunta.
— Eles só estão deixando a família subir para visitar por enquanto. Eu estava esperando você acordar para subir. Neil e Drew vão sair para comer alguma coisa. Eles odeiam comida de hospital. Você deveria ir junto com eles, não lembro de você ter comido alguma coisa decente nas últimas seis horas — Kevin passou uma das mãos no cabelo antes de levantar. Lily assentiu, antes de correr na direção do banheiro para trocar suas roupas, deixando Kevin sozinho com Andrew e Neil — Abby tinha mencionado que a assistente social iria vir conversar com ela. Eu imagino que já devem ter avisado que ela está aqui.
— Kevin, se você está pensando em… — Andrew começou a falar, mas Kevin o cortou.
— Eu não estou pensando em nada, Drew. Mas se ela aparecer e ameaçar leva a Lily embora — Kevin se aproximou dos dois, tentando falar no tom de voz mais baixo que conseguia — Aí vou ser obrigado a pensar.
— Vamos dar um jeito depois, por agora, fica com o treinador e a Abby — Neil apoiou uma das mãos no braço de Kevin — Pode subir, nós ficamos esperando ela — completou e Day assentiu, indo na direção da recepção. Neil olhou para Andrew e os dois suspiraram quase ao mesmo tempo — Drew…
— Você conhece o Kevin, nada que eu falar vai mudar o que ele está pensando agora. Não adianta. Mas eu prefiro que ele não acabe na cadeia por causa de algum plano mirabolante. — Andrew balançou a cabeça, cruzando os braços e Neil apoiou a mão em seu ombro antes de beijar sua bochecha e se virar para caminhar para o lado de fora.
Lily voltou correndo alguns segundos depois, parando ao lado de Andrew, que virou para a saída sem falar nada. As roupas de Noah eram um pouco largas em seu corpo, mas eram suficientemente quentes para que ela não sentisse tanto frio quando saísse para o lado de fora do hospital. Neil sorriu para Lily e esperou que ela passasse por ele para apoiar as duas mãos em seus ombros e guiá-la na direção do carro.
— Do que você gosta de comer? — Neil caminhava no estacionamento, mas não parecia estar indo na direção do carro — Nós vamos em um iHop que tem aqui do lado.
— Eu não estou com muita fome, pode ser qualquer coisa — Ela respondeu, sem se incomodar com o peso de Neil em seus ombros — O que você vai pedir ?
— Hum… — Neil olhou para o lado pensativo — Panqueca de cranberry e baunilha. Apesar de que eu acho impossível que elas estejam melhores do que as de chocolate que o Andrew faz em casa — continuou, olhando para Andrew com um pequeno sorriso no rosto.
— Não vamos até em casa só para eu cozinhar para você, Neil, pode esquecer — Andrew rebateu, mas esboçava um pequeno sorriso no rosto.
— Valeu a tentativa — Neil deu de ombros e se abaixou ao lado do ouvido de Lily antes de murmurar — Acho que se você pedir, ele aceita.
Andrew olhou para Lily como se duvidasse que ela fosse pedir mesmo, então ela não o fez. Talvez em outra situação teria feito um esforço maior, mas já sentia estar dando trabalho demais para os dois apenas por estar ali. Ela virou o rosto para olhar para Neil e sorriu um pouco antes de dizer: — Cranberry e baunilha soam bem.
Os três entraram no restaurante e se sentaram na primeira mesa vazia próxima da janela. Lily se olhou no reflexo do vidro, percebendo que havia esquecido de se olhar no espelho enquanto ainda estava no banheiro do hospital e percebeu que as duas tranças que estavam em seu cabelo pareciam uma completa bagunça. Ela tirou os elásticos com cuidado, os colocando em cima da mesa e desfez o penteado com cuidado. Tentou dividir o cabelo em duas partes iguais, mas ficou difícil fazer um bom trabalho sem ter um pente e um espelho.
— Vira, deixa que eu te ajudo — a voz de Neil chamou sua atenção. Ela nem tinha percebido que Andrew havia levantado para fazer os pedidos — Quando eu estava na faculdade, a Allison me ensinou a fazer isso para poder ajudar a Robin. Já que ela também não sabia fazer.
Lily virou de costas para Neil e deixou ele repartir seu cabelo. Ele não tinha muito cuidado, o que fez ela sentir um pouco de pena de Robin, mas não reclamou, era… confortável. Ela mal se lembrava da última vez que alguém segurou em seu cabelo para algo que não fosse agressivo e agora já tinha deixado Neil fazer quatro tipos diferentes de penteado nela.
— Aprendeu a fazer trança, mas não aprendeu a jogar videogame — Lily brincou de forma provocativa.
— Prioridades, Lils. Nunca se sabe quando o Andrew vai deixar o cabelo crescer — Ele respondeu, dando de ombros.
— Nunca — Andrew apareceu atrás dos dois e se sentou do outro lado da mesa — Não com a premissa de que você vai ficar fazendo penteados no meu cabelo.
— Ia ficar legal, uma trança com algumas pedrinhas — Lily sugeriu e Neil tocou seu ombro para avisar que já havia acabado. Ela colocou o outro elástico que tinha sobrado em seu braço e virou para frente.
— Não dá ideia, Lilian. Neil não tem filtro nenhum e vai ficar me enchendo o saco até eu deixar o cabelo crescer de verdade — Andrew virou o olhar para ela e Lily olhou para Neil.
— Pensando bem, é meio ruim colocar o capacete para jogar com tanto cabelo. O melhor é ter o cabelo curto — ela sorriu e Neil semicerrou os olhos, como se tentasse entender se ela estava falando sério ou se era apenas por causa da fala de Andrew.
— E eu jogo no gol, não seria bom ter cabelo caindo no meu olho por acidente, né? — Andrew agradeceu a fala de Lily com o olhar e Neil apenas resmungou em conformação.
A comida não demorou muito para chegar e os três comeram até que ficassem satisfeitos. Lily comeu metade de sua panqueca e Neil não fez cerimônia alguma em comer o que ela não queria. Andrew encheu sua caneca de café tantas vezes que até a garçonete pareceu surpresa. Comeram em silêncio a maior parte do tempo e quando foram embora, Lily agradeceu aos dois por terem pagado tudo, mesmo não tendo responsabilidade nenhuma de gastarem dinheiro com ela, recebendo apenas um “Eu teria comido uma panqueca e meia, você estando ou não aqui, então não foi trabalho algum” de Neil.
Quando voltaram para o hospital, Kevin ainda não tinha descido, então voltaram a sentar na recepção. Lily ficava ansiosa a cada minuto que passava dentro daquele ambiente. Queria saber o que estava acontecendo com Abby, com Kevin. Como estavam as coisas e como elas iam ficar. De repente se pegou pensando na visita da assistente social que teria no dia seguinte.
Se tudo fosse como costumava, amanhã nesse mesmo horário ela estaria em um carro para sei lá onde e perderia qualquer tipo de contato com todos eles. Lily levantou do sofá, ficando em pé no meio de Andrew e Neil, que apenas chegaram para o lado, deixando que ela sentasse ali. Ela encolheu as pernas no sofá e abraçou os joelhos.
— Posso ver fotos das gatas? — Lily murmurou a pergunta para Neil que, por estar com o celular na mão, apenas abriu a galeria de fotos e entregou o aparelho na mão dela.
Andrew encarou Neil por trás dos ombros da garota. Já não precisavam de mais nenhuma conversa silenciosa para saber o que queriam dizer. Neil voltou a atenção para seu celular nas mãos de Lily. Ela encarava a foto de uma pequena gatinha enrolada em vários cobertores.
— Quando adotamos a King ela ficava se enrolando em tudo. Tinhamos que tomar um puta cuidado para acabar não sentando nela sem querer — Neil riu, mas Lily apenas deu um sorriso pequeno — A Sir prefere ficar empoleirada nos móveis. As vezes tenho certeza que vou chegar em casa um dia e ela vai estar andando pelas paredes.
— Eu sempre quis ter um gatinho — Lily devolveu o celular para Neil e bocejou antes de apoiar a cabeça na parte de trás do sofá — Será que o Kevin vai descer logo? Eu queria saber se… se tem mais alguma novidade. Não sei até que horas vou estar aqui amanhã.
— Você não vai a lugar algum, Lilian, já te falei. Eu vou mandar mensagem para ele — Andrew respondeu e Lily assentiu, sem muita atenção, bocejando novamente e fechando um pouco os olhos — Vou perguntar na recepção se você pode subir — Andrew levantou, mas Lily segurou a barra de seu casaco antes que ele se afastasse.
— Não. Não precisa. Eles disseram que é só família. Eu espero o Kevin voltar — Lily rebateu, mas Andrew apenas esperou que ela soltasse para ignorar sua fala e ir até o balcão.
— Lils, a Abby ia gostar de te ver, se ela já estiver acordada. E o Kevin ia gostar da companhia — Neil tentou encorajar, mas Lily apenas virou de costas para ele, sentando de lado e fechando os olhos.
Andrew voltou, mas Lily já tinha pegado no sono novamente. Ele fez menção de acordá-la, mas apenas para que ela deitasse com a cabeça no braço do sofá e as pernas na direção de Neil. Andrew sentou no braço do sofá ao lado de Josten e apoiou a cabeça sobre a dele.
— Eles disseram que é só a família por enquanto e não tem jeito nenhum de abrirem exceções. É mais fácil esperar Kevin voltar e ver se ele consegue alguma coisa. Esse hospitais são ridículos — Andrew suspirou e Neil envolveu sua cintura com o braço que estava mais perto dele — Pelo menos ela está dormindo.
— Como você faz isso?
— Como eu faço o que, Josten? Pedir informação? — fez uma pausa, mas não esperou a resposta — Falando com a minha boca. Você conhece melhor que ninguém — Andrew recostou o corpo no de Neil, apoiando seu peso nele.
— Sua boca ou a habilidade de falar? — Andrew deu de ombros, como se deixasse a resposta a critério de Neil — Mas não. Como faz isso com a Lily? Fala que não gosta dela na cara de Kevin e depois faz ela te defender mais de duas vezes seguidas…
— Eu nunca disse que não gostava dela. Eu não a conhecia. E você, tão bem como eu, sabe que essa semana mudou muita coisa. — Andrew olhou para Lily — E acho que ninguém nunca morreu por admitir que Kevin estava certo. Tem alguma coisa de diferente na Lilian e do mesmo jeito que eu nunca desistiria de você e do Kevin. Ele não vai querer desistir dela.
— Então você vai falar com ele. Para ele seguir com…
— Não. Ele é maluco, sabe se lá o que ele está planejando. Do jeito que ele vai querer escondê-la no porta malas até a mulher ir embora. Não vai rolar — ele balança a cabeça — Vamos arrumar outra solução.
Andrew estava do lado de fora do hospital com um cigarro na mão, quando a notificação de Kevin chegou. Dizia que ele ainda não tinha conseguido ver Abby, mas que Wymack já havia acordado e estava melhor do que os médicos fizeram parecer.
andrew:
“Lilian dormiu de novo.”
“Ela queria subir.”
kevin:
“Eu vou descer daqui a pouco, meu pai quer descansar e eu não comi nada ainda.”
“Eu vou tentar conversar com a recepção. A Kate não pode ajudar?”
andrew:
“Acho que ela já foi. Vou falar com o Aaron“
“Quando você descer, nós três precisamos conversar.”
“9-1-1.”
Chapter 12: The First Promise
Notes:
warning: capítulos com qualidade duvidosa, porque eu simplesmente sai escrevendo e fabriquei quatro no mesmo dia, mas eu me diverti muito escrevendo e não tenho beta então é sobres
Chapter Text
Lily Davis se lembrava perfeitamente do dia em que conheceu Abigail Winfield. Fazia dois anos. Ela ainda estava na sétima série e tinha acabado de se mudar para a Carolina do Sul. Os primeiros dias na escola nova não tinham sido nada agradáveis e Lily logo aprendeu que a melhor forma de passar o intervalo era se esconder em algum canto que não tivesse muita gente. Normalmente escolhia o banheiro. Lá era mais quieto e tinha menos chance de algum professor perguntar alguma coisa. Porém, naquele dia em especial todas as garotas da escola pareciam ter ocupado o lugar, não deixando nenhuma cabine desocupada.
Lily se esgueirou até a quadra. Seu lugar preferido na escola inteira. Ainda não tinha conseguido entrar no time, já que os tryouts haviam sido adiados, mas estava esperando ansiosamente para poder jogar e por enquanto só podia observar. Ela se sentou na arquibancada e tirou uma barrinha de cereal do bolso do casaco. A única coisa que tinha conseguido pegar do armário de Boris sem receber um comentário maldoso de Edith sobre seu pai ter adotado uma baleia. Abriu a embalagem com cuidado e quase deixou cair ao ouvir um barulho atrás de si.
Falando no diabo.
Edith ergueu uma das pernas e se sentou de frente para Lily, pegando a barrinha de suas mãos e jogando entre os bancos. Seus cabelos escuros balançavam com o vento fresco do outono e o sorriso em seu rosto era tão patético, mas Lily não podia fazer nada para tirá-lo dali.
— Eu disse que você precisa parar de comer tanto, porquinha. Vai passar uma imagem ruim para você se souberem que o caso de caridade do papai não tem o mínimo de senso como adolescente. Já não basta os comentários que eu tenho que ouvir sobre você não ter um celular, imagine se souberem que você come como uma porca? — Edith sorriu como se estivesse lhe fazendo um favor — Mas não precisa se preocupar, eu estou cuidando para que você tenha uma imagem boa — ela deslizou a ponta do dedo no queixo de Lily, deslizando a ponta de sua unha na pele da garota e levantando seu rosto.
— O que você quer, Edith? — Lily suspirou, guardando a embalagem vazia no bolso e virando o rosto para o lado.
— Umas amigas minhas vão para casa mais tarde. Então eu, como a boa irmã que eu sou, pedi permissão ao papai para que você pudesse ficar na escola, assistindo o treino do time de exy — fez uma careta e continuou — já que você quer tanto participar.
— Você queria uma desculpa para ninguém ter que me ver, então — Lily colocou as mãos nos bolsos e fez menção a se levantar, mas Edith apoiou as mãos em seus ombros, a abaixando.
— Não acha que eu mereço ao menos um obrigada?
— Vai achar alguém da sua idade para encher o saco, vai — Lily revirou os olhos, mas repensou sua escolha de palavras, assim que uma das mãos de Edith se enrolou em seu cabelo, a puxando para baixo, enquanto ela se apoiava para ficar de pé.
Então, depois, estava na frente de uma porta grande e branca onde se lia “Enfermeira Winfield”. Lily deu duas batidinhas com a mão direita, usando a esquerda para cobrir a parte de cima de sua sobrancelha. A porta se abriu e Lily deu um passo para trás. Abby estava usando uma calça jeans azul claro e uma blusa de lã rosa por baixo do jaleco. Seu cabelo estava preso em uma mistura de fios castanhos e brancos. E tinha o sorriso mais doce do mundo inteiro estampado em seu rosto.
— O que aconteceu? — Abby abriu espaço para ela entrar e fechou a porta.
Lily tirou a mão de cima de um pequeno corte, limpando o excesso de sangue com a ponta dos dedos. Ela ficou parada ao lado da porta sem falar, mas o olhar de Abby indicava que ela não faria nada, enquanto não ouvisse alguma coisa sair da boca de Lily. Mesmo assim, o sorriso em seu rosto não havia cedido, só havia um pouco de pena nele.
— Eu caí. Tropecei enquanto subia a arquibancada. Vim buscar um curativo. Tenho que voltar para aula — Lily murmurou, estendendo a mão limpa esperando.
— Por que não senta um pouco? Sou obrigada a dar entrada em qualquer aluno que venha aqui, para avisar o responsável — Abby se virou para ir até o armário no canto da sala e Lily se virou para ir na direção da maçaneta.
— Não, obrigada. Deixa quieto. Não foi nada, eu vou só lavar no banheiro, então. Não devia ter vindo aqui — e então saiu, correndo para o banheiro.
Não foi um grande encontro, mas Lily não conseguiu tirar da cabeça o sorriso e os olhos atenciosos da enfermeira da escola por uma longa semana. Quando finalmente chegaram os tryouts do time, Lily deu tudo de si para entrar na equipe da escola e quando conseguiu ser aprovada, teve que passar pela avaliação médica como todos os outros jogadores. Abby não comentou nada sobre o primeiro encontro das duas e Lily imaginou que ela não se lembrava, até poucos meses depois, quando Lily almoçava na sala de Abby em um dos dias antes do treino (porque ela não conseguia comer no refeitório e Abby tinha acesso ao microondas da sala dos professores, que era perfeito para esquentar o que ela trazia de casa), quando ela trouxe o assunto a tona.
— Da primeira vez que você veio aqui, você saiu correndo, quem ia dizer que quatro meses depois iriamos estar almoçando juntas? — Abby comentou, sorrindo, entregando um garfo de plástico na mão de Lily que agora estava com o rosto totalmente vermelho.
— Você lembra disso? — Lily abriu seu pote de plástico e dobrou as pernas na cadeira.
— Não tinha o que falar.
— Podia ter brigado comigo por ter saído correndo. Podia ter me enchido o saco. Não sei…
— Lilian… — Abby riu, balançando a cabeça — Eu não tinha porque falar nada, tenho certeza que teve seus motivos. Eu teria ido atrás de você se realmente fosse uma emergência médica, mas você e eu sabemos que você não veio até aqui só porque queria um band-aid. Você queria ajuda, só não estava pronta para receber.
— Eu não preciso de ajuda — Lily respondeu na defensiva.
— Você precisa acabar de almoçar. Vai dar o horário e você ainda não comeu nada — Abby apontou o almoço de Lily com seu garfo e voltou a comer.
— Eu não preciso de ajuda, Abby.
— Tudo bem, Lily. Então por que saiu correndo? — Abby questionou ao perceber que ela não comeria nada até encerrar aquele assunto.
— Você disse que precisava ligar para o responsável e eu não queria preocupar o meu. Foi só por isso — Lily encolheu as pernas e afundou o garfo na comida, antes de se levantar e ir na direção da porta — E eu não preciso de ajuda de ninguém. Sei me cuidar.
— Lily... — Abby tentou advogar antes de ela fechar a porta ao sair, mas desistiu e apenas aumentou o tom de voz para pedir: — Não esquece de terminar de comer…
Naquele dia, Lily foi terminar de comer nas arquibancadas. Abby foi atrás dela como em todas as vezes desde então. Era a única pessoa de toda a escola que não a tratava apenas como uma criança. E que se importava. Abby sempre se importou. Como no aniversário dela, que apesar de não ter contado para ninguém quando era, Abby fez questão de descobrir para lhe presentear com um livro novinho que ela precisaria para a aula de inglês. Abby a conhecia bem o suficiente para saber que aquele era o tipo de presente que Lily ia apreciar.
E então dois anos passaram voando. E de repente Lily não conseguia mais ver sua vida sem Abby. Ela não queria mais ver sua vida sem Abby. E agora, que estava ali, depois de quase perdê-la pela segunda vez. Nada mais passava em sua cabeça, além da fala de Abby, dois anos antes. Ela estava pronta para receber ajuda. Ela queria ajuda e queria ajudar. E enquanto subia sozinha naquele elevador do hospital até o quarto de Abby, todos os sentimentos que ainda estava segurando, se soltaram. Várias lágrimas escorreram por seu rosto, mas, sem fazer barulho, ela abriu a porta do quarto, caminhando até a cama no centro com calma.
O quarto não era muito grande e era bem silencioso. Só se podia ouvir o monitor de batimentos cardíacos. Lily se sentou na cama, ao lado de Abby, segurando sua mão com cuidado. A enfermeira dormia tranquilamente e apesar dos machucados em seu rosto e um dos braços enfaixados, Lily sentia que se ela estivesse acordada estaria com seu típico sorriso no rosto garantindo que tudo estaria bem logo.
— Oi, Abbs. Me deixaram entrar e falar com você um pouco — Lily coçou a ponta do nariz para se livrar das lágrimas — Se eu te disser que tive a melhor semana da minha vida com os meninos você acreditaria? Eu sei que se você estivesse acordada agora diria que está feliz de eu ter ficado com eles. Eu queria muito negar. Dizer que queria ter ido com você para estar ai no seu lugar com o braço quebrado. Eu sempre ia preferir me machucar no seu lugar, claro. Mas eu nunca teria conhecido eles assim. Eu sei que vou ter que ir embora agora, mas quero que você saiba que não é culpa sua ou de mais ninguém. Eu amo você e como tudo bom uma hora chega ao fim, chegou a hora de falar tchau.
Lily olhou para o rosto de Abby como se tivesse um pouco de esperança de que ela estivesse perto de acordar, mas tudo continuava igual. Disseram que havia sido apenas uma fratura no ombro, mas que ainda demoraria um pouco para que ela acordasse da anestesia, então tudo que Lily poderia fazer era continuar falando
— Obrigada por nunca ter perguntado sobre antes daqui. Eu não sei se consigo falar ainda. Obrigada por ter passado todos os almoços comigo e me mantido saudável. Obrigada por me ajudar a pagar as coisas da escola, eu sei que foi você no final. Por ter comprado meus doces todas as vezes. Obrigada por fazer esses dois anos valerem a pena — Lily sorriu e depois suspirou, apertando a mão de Abby — Parte de mim quer que você acorde antes de eu ir embora. Para me despedir, agradecer. Por me dar esperança. Mas eu não acho que consigo olhar para você e dizer adeus, assim. Eu não queria ter que ir embora. Eu queria sua ajuda, o tempo todo. Me desculpa, por demorar tanto para pedir. Acho que algumas coisas não mudam mesmo.
Um soluço escapou da garganta de Lily e ela percebeu que estava chorando de novo. Mas não se importou. Não tinha mais ninguém ali. Ela se inclinou, apoiando o rosto no pequeno espaço ao lado das pernas de Abby. E ficou ali até uma enfermeira bater na porta. Ela se levantou e foi sentar na poltrona ao lado da cama, a arrastando para perto, para que ainda conseguisse segurar a mão de Abby. Se tivesse que ir embora, ficaria ali o máximo de tempo possível.
— Lily, eu estava... — A voz de Kevin foi o que fez Lily levantar seu pequenos olhos inchados, ele se interrompeu e se aproximou da poltrona em que ela estava sentada, se abaixando na frente dela — Olha… — Kevin tentou elaborar alguma coisa para falar, mas Lily foi mais rápida e envolveu o pescoço de Day com os braços, afundando o rosto em seu ombro.
— Obrigada — ela queria dizer que era por tudo, pelo carinho, pelo cuidado, pelas canecas de chocolate quente improvisadas, pelas dicas de exy, pela companhia, pela disposição, mas não conseguia — Você é realmente incrível como falam na televisão.
Kevin a apertou em seus braços, deixando que suas pernas cedessem no chão, ao lado da cama. Ele não queria soltar, tampouco sabia o que falar. Respirou fundo, afagando seu cabelo levemente. Kevin via em Lily tudo de especial que Abby conhecia e não sabia explicar. Ele se via nela. Via Andrew. Via Neil. Não tinha como soltar. Ele não queria soltar.
— Eu não vou fingir que desconheço seu tom de despedida. Eu não estou mais na televisão, stalkerzinha. Não sou de mentira e não vou a lugar nenhum. Você não vai a lugar nenhum, se precisar eu vou atrás de você — Kevin soltou um suspiro e Lily se afastou, dando espaço para ele se levantar — Eu vim aqui te falar, Andrew e Neil vão voltar para casa, se quiser ir com eles. É melhor descansar em uma cama de verdade do que em uma poltrona de hospital.
— Posso ficar aqui? Não quero estar longe se a Abby acordar — Lily perguntou, evitando se prender as palavras dele e Kevin suspirou antes de assentir — Você vai embora?
— Não, vou ficar com meu pai. Ia revezar entre ficar com ele e com a Abby, mas se você vai ficar aqui posso tentar dormir um pouco — Kevin respirou fundo, passando a mão no rosto — Sobre amanhã, a sua assis…
— É, eu sei — Lily virou o corpo para o lado e Kevin achou melhor não falar mais nada — Boa noite, Kevin.
— Boa noite, Lily. Se precisar estou no final do corredor, à esquerda.
Dormir não foi tão fácil quanto Lily queria que tivesse sido. O barulho do ventilador era alto demais. A cadeira era pequena demais. E de hora em hora uma enfermeira entrava para verificar os sinais vitais. Porém segurar a mão de Abby era reconfortante o suficiente para que ela soubesse que estava segura por enquanto e podia dormir se quisesse. Foi o que fez.
Quando Lily acordou na manhã seguinte, as persianas já não cobriam mais a luz do sol e estavam praticamente escancaradas. Algumas vozes discutiam no quarto e Lily teve que esfregar os olhos para ver de quem se tratava.
— Eu vou deixar vocês conversarem. Volto mais tarde para resolver a questão dos quartos.
Por um momento, Lily achou que tinha visto Andrew parado do outro lado do quarto, mas o jaleco entregava que era Aaron. Ele acenou para ela, mas não ficou para conversar. Se conheceriam de verdade em outro momento. Depois que ele saiu, ela virou para ver com quem ele estava conversando, mas não viu Kevin por ali. Foi então que seu olhar encontrou a cama. Abby estava sentada, os olhos abertos e o sorriso.
— Ei, dorminhoca — ela abriu o braço que não estava enfaixado e Lily prontamente saiu correndo para o outro lado da cama para abraçá-la — Ei, ei, cuidado. Não pode apertar muito — Abby riu antes de encher o rosto de Lily de beijos, a fazendo rir.
— Desculpa — Lily se afastou, esfregando o próprio rosto para desembaçar sua visão — Abby, eu…
— ‘Tá tudo bem agora — Abby afagou a bochecha de Lily — Você não vai se livrar de mim tão cedo.
Lily abraçou Abby novamente como se quisesse confirmar que ela estava ali mesmo. Mas as mãos de Abby em seu cabelo e em seu rosto confirmavam que ela não estava sonhando. A porta do quarto abriu e Kevin colocou a cabeça para o lado de dentro. Ele ficou em silêncio por alguns segundos como se não quisesse atrapalhar, mas Abby fez um movimento com a mão para que ele se aproximasse.
— Lily, tem algumas pessoas lá embaixo que querem te ver. Você pode descer um pouquinho? — ele hesitou um pouco antes de se aproximar. Tinha passado a noite elaborando um plano que fora descartado em cinco minutos por Andrew que apareceu com uma proposta ainda melhor.
Lily virou o rosto para Kevin fazendo uma careta, sinalizando que estava claramente ocupada, mas Abby riu, dizendo para ela que fosse logo, assim outras pessoas também poderiam visitá-la sem exceder o limite de dois visitantes por paciente. Lily saiu do quarto um pouco contrariada e encontrou com Neil e Andrew no elevador. Ela desceu sozinha e Kevin ficou com os dois, os levando até o quarto de Abby.
Chegando no primeiro andar, Lily caminhou devagar até a recepção. Uma onda de pânico subiu por seu corpo. Será que aquilo era uma emboscada para falar com a assistente social? Será que a mandariam embora sem se despedir? Se essa fosse a questão, tudo aquilo que aconteceu na noite anterior era mentira? Será que tinha abaixado demais sua guarda?
O suspiro aliviado que soltou quando viu Noah deslizando na sua direção com os braços semi abertos foi com certeza audível. Lily abraçou o garoto com um pequeno sorriso, se arrependendo de todas as vezes que tinha o afastado antes. Saber que ele era uma das pequenas raposas realmente mudava tudo. Atrás dele, Renee e Allison acenaram levemente.
— Você já tomou café da manhã? Kev disse que você dormiu aqui no hospital também. Pobrezinha, deve estar exausta — Noah abraçou Lily pelo ombro e se deixou empurrar na direção da cafeteria — Andrew disse que não podemos sair do hospital com você hoje, porque… — ela pausou como se estivesse pensando.
— Por causa da assistente social — Renee completou segurando a mão de Allison — Vamos te comprar um chocolate quente da cafeteria já que não podemos sair.
— É isso. E o que quiser comer também. Crianças têm que comer bem — A Reynolds se manifestou e apertou um pouco os ombros de Lily e depois a soltou, colocando as mãos no bolso de seu casaco. Ela não se importou, as suas três raposas pareciam bem próximas das duas de Noah, então ela faria o esforço que precisasse para ser educada — Aliás, Noah conseguiu uma coisinha para você. É um presente de Natal atrasado — ele tirou um envelope do bolso e entregou na mão de Lily.
— Eu não posso aceitar.., — Lily balançou a cabeça, Noah prosseguiu.
— Abre antes. Você vai ver. Não é nada demais. Minha mãe está fazendo muita cerimônia — ele balançou a cabeça — A gente tinha conversado sobre isso um dia na escola e eu lembrei que tinha um desse lá em casa… Mamãe pensou que ia dar uma melhorada no seu dia, quer dizer… Depois de tudo que aconteceu.
Lily abriu o pequeno envelope enquanto caminhavam. Tirando um pequeno papel retangular de dentro. Era uma das cartas que ela colecionava, porém dessa vez era o sorriso de Danielle Wilds, a primeira líder de verdade das raposas. Lily levantou o olhar para Noah que podia ver seus pequenos olhos bicolores brilhando.
— Eu amei! — Lily parou de andar para abraçá-los novamente — Eu vou guardar, com certeza. Obrigada. Eu não acredito que você escondeu por dois anos que conhecia toda a seleção dos sonhos.
— Em minha defesa, estava tentando evitar que você passasse mal. Uma vez falei que fui ver o jogo com a minha mãe e você quase desmaiou imaginando o Kevin jogando.
Os três se sentaram em uma das mesas e Allison logo saiu para buscar o café da manhã improvisado. Lily dobrou os joelhos em cima da cadeira, observando seu pequeno presente. Era como se cada minuto que passava tornasse a despedida mais próxima e ainda mais difícil.
— Como a Abby está? — Renee perguntou, cruzando as pernas em cima da cadeira.
— Ela acordou agora de pouco. É a Abby. Se tivesse alguma coisa muito errada, eu não ia saber nem se quisesse. Mas ela parecia bem, na medida do possível — Lily tentou sorrir de modo tranquilizante, mas seu rosto não parecia querer acompanhar.
— Logo ela vai estar novinha em folha, você vai ver. Ela também é uma raposa — Noah tentou tranquilizá-la, apoiando uma das mãos em seu ombro.
Lily não queria falar que não estaria ali para ver, então apenas assentiu. Alli trouxe algumas coisas industrializadas para eles comerem. Lily gostava de estar com Noah, mais agora do que quando fingia que não eram amigos o suficiente. Se Lily tivesse que escolher um melhor amigo, definitivamente seria ele.
A refeição dura pouco e logo os quatro se dirigem para a recepção. Lily agradece pelas roupas e pela comida, apesar de ter tocado apenas no chocolate quente. Noah a convida para dormir em sua casa em um dia de jogo e eles se despedem assim que Renee avisa que Andrew está descendo. Antes que os três pudessem passar pelas portas duplas que dividiam o corredor da cafeteria da sala de espera, Lily viu, parada no meio da grande sala, Michelle Martin, com os braços cruzados.
Ela deu alguns passos para trás, trombando com um passante. Ela não pensa muito, porque seu corpo sabe o que fazer. Michelle ainda não a viu, mas se ela continuar parada vai acabar acontecendo. Lily passa por trás do balcão da recepção quase sem ser percebida e escapa por entre as portas antes de correr por entre os carros. Ela se encolhe ali e respira fundo. Só a sorte tinha feito com que sua mochila estivesse em suas costas naquele momento. Tudo nela havia a deixado pronta para fugir.
Quando ela consegue ver as costas de Michelle contra a porta, ela fica em pé. Deslizar entre os carros é fácil, o problema seria sair do estacionamento desacompanhada. Ao seu redor não tem nada além do guarda que permite a entrada e saída de carros. Ela abaixa novamente, se sentindo presa. Por baixo dos carros ela vê a sombra de passos se aproximando. Kevin Day, Andrew Minyard e Neil Josten, as estrelas mundiais de Exy estão parados ao seu lado e tudo que ela consegue é se enfiar dentro do próprio capuz e fingir que não está ali.
Andrew está parado atrás dos dois, um cigarro aceso. Neil se apoia em um dos carros para tirar a touca que cobre o rosto dela e Kevin simplesmente senta no chão em sua frente. Kevin, Andrew, e Neil, que disseram que ela não ia a lugar algum. Ou três completos desconhecidos que nem sabiam de sua existência até menos de um mês atrás.
— Me erra — ela puxa a touca de volta e se imagina entrando embaixo de um dos carros e desaparecendo — Por que vocês estão me perseguindo? Daqui 15 minutos não vão precisar mais olhar na minha cara nunca mais. Pode começar agora se quiser, é fácil, só fechar os olhos e se imaginar duas semanas atrás, quando vocês nem me conheciam. Daqui duas semanas não vão nem lembrar quem eu sou.
— Lily Davis, 14 anos. Backliner. Sua cor favorita é azul. Seus pais eram corvos — Kevin começa a falar com uma certeza perturbadoras, Neil e Andrew trocam olhares a menção dos pais de Lily, mas não falam nada — Você está no primeiro ano do ensino médio. Seu sorvete favorito é chocomenta. Seu jogador favorito é Kevin Day. Você gosta de Fleetwood Mack sem ter idade para isso. Você gosta de filmes velhos. E sabe falar dezesseis palavras em francês,
— Você gosta de acordar cedo e não dura dez minutos com os olhos abertos depois da meia noite. Você foi expulsa da sua outra casa, porque não tinha culhões para diferenciar quando você fala a verdade e quando mente para afastar os outros. Você gosta de livros clássicos e literatura. Você gosta de iogurte grego com mirtilo — Andrew conta nos dedos e depois coloca o cigarro de volta na boca.
— Minha vez? — Neil murmura, um pouco perdido, mas o olhar que ele recebe de Andrew e Kevin é o suficiente para ele tomar jeito — Lily, não tem como esquecer você. Não tem esforço que um de nós possa fazer que vá mudar o que eu sei. Eu sempre vou saber que você chegou e mudou tudo em casa. Eu posso falar mil coisas que eu sei sobre você, tipo que você gosta de usar meias de cano alto com desenhos, que seu cabelo acorda mais para o lado esquerdo, porque você dorme do outro lado. Eu sei que você fala mais que a boca quando fica nervosa ou quando está muito segura de si, mas tirando isso você é quieta. Você ama comida chinesa e odeia mexicana. Nada disso marca tanto quanto a sua presença
— Olha, Lils — Kevin volta a falar, depois de lançar um olhar aprovador para Neil — Eu fui conversar com a Abby depois que você desceu. Ela avisou para conversarmos com você com calma sobre tudo, porque você embaralha as coisas quando está com a cabeça quente, mas acho que ela esqueceu de mencionar que você também perde o filtro que conecta o seu cérebro com a sua língua — ele fez um gesto com a mão, apontando sua cabeça e sua boca — E ainda saiu correndo. Você e o Neil, sério. Façam terapia — ele diz encarando o ruivo que só dá de ombros.
— Eu estava falando sério. Eu vi a Srta. Martin na recepção. Eu sei como funcionam as coisas a partir daí. E não preciso de um olhar de consolação e uma promessa vazia — Lily abraçou os joelhos e suspirou, sem dar tempo para Kevin protestar — Então o que quer que seja o que você tem a me dizer. Pode esperar mais 15 minutos. E o resto da vida. Nada que vocês me falem agora vai mudar a situação. Essa grande declaração de amor não muda nada. Então se não se importa, pode ir embora. Eu prefiro me virar sozinha do que ir com ela.
— Se nos mandar embora, não vai ouvir o que eu tenho a dizer — Kevin apoia a mão no joelho dela, empurrando levemente para o lado.
— Eu sei o que você vai dizer. Você vai dizer que assim que a Abby melhorar, ela vai tentar contato de novo. E aí a Srta. Martin vai dizer que não é bem assim que funciona, porque eu vou estar em outro estado. Aí ela vai tentar por uns meses e desistir, porque não vale o trabalho. Eu sei como isso funciona. Eu já ouvi isso uma vez, só que agora eu sei melhor do que acreditar.
Kevin ficou em silêncio, fazendo Lily ter certeza de que ela tinha acertado. Ela afundou o rosto nas pernas que estavam dobradas e virou de costas para os três. Ela ficou quieta, esperando eles irem embora, mas nenhum dos três pareceu se mover.
— Você tem razão. Era isso que a sua assistente social queria que nós disséssemos para você — Andrew sentou do outro lado de Lily, passando por cima de Kevin e Neil ocupou o lugar vazio do outro lado dela— Mas acontece que você se meteu com pessoas com o temperamento um pouco mais complicado do que isso.
— É, nosso histórico de relações interpessoais não é que nem o das outras pessoas. Pode perguntar para a Abby e para o treinador. Já tiveram trabalho demais com nós três — Neil encosta nela e Kevin estica as pernas no espaço que sobra.
— Eu disse para você ontem que iria atrás de você onde fosse — Andrew comentou, olhando na direção dela.
— E eu te disse a mesma coisa — Kevin completou, fazendo com que ela levantasse o olhar na direção dos dois que estavam sentados no chão — É verdade que a Abby não pôde completar o processo de adoção e que se você tivesse que ir embora, ia ser a primeira prioridade dela assim que ela saísse do hospital. Mas não tem como saber quanto tempo demoraria e quais as condições. Eu não tenho dúvidas de que ela iria atrás de você até na Rússia se precisasse.
— Mas a gente também sabe que toda essa cena dramática de despedida não tem tudo a ver com ser realocada para outro estado. Lily, um mentiroso sempre reconhece o outro. Você não precisa falar agora o que está acontecendo, mas uma hora vai precisar contar, porque se eu tiver que te buscar na puta que pariu, eu vou, mas preciso saber o que você foi fazer lá. Você é criança, não ganha o benefício de não precisar explicar.
Lily puxou as mangas do casaco para segurá-las nas mãos e passou a lateral do braço no nariz para esquentá-lo. Ela aceita tudo que eles dizem, porque está hipnotizada por toda aquela conversa. No futuro tentaria se convencer de que era tudo mentira, mas por agora esse era o melhor cenário. Acreditar que eles realmente iriam atrás dela. Ela fica em pé e os três copiam o movimento.
— Eu vou falar com ela. Se eu tiver que passar o resto da vida esperando, pelo menos vai ser pela Abby e por vocês — ela aceita seu próprio destino, porque é mais fácil que discutir com eles. Ela mal dá um passo, quando Kevin segura seu ombro.
— Esperando? Lily, acho que você não entendeu. Nós estamos te adotando — ele aponta entre os três — Você não vai ter que esperar nada. Seu nome está embaixo do nosso em um documento que só falta assinar. Michelle precisa que você esteja presente.
Se todos os órgãos de Lily pudessem vomitar ao mesmo tempo, eles estariam o fazendo. Seu rosto está quase pálido quando Andrew a segura, mas volta a ter cor na mesma velocidade. Os três se olham confusos, mas depois voltam a atenção para ela.
“Você vai mesmo ser o trabalho de caridade de mais alguém, Lily?” “Ia ser ótimo para eles, se você aparecesse nos jogos como a coitadinha órfã que todos tiveram pena de largar mão. A publicidade ia estar nas alturas” “Você devia recusar. Não é como se você já tivesse feito alguma coisa para merecer uma família como essa” Lily pensa em bater a cabeça em um dos carros para parar de pensar, mas quando ela ergue o rosto, Kevin a ergue e apoia a cabeça em seu próprio ombro.
— Se você vomitar em mim, eu vou levar três dias para te perdoar. Estou avisando — ele resmunga e leva Lily para dentro do hospital. Nenhum deles precisou perguntar se ela tinha tomado café da manhã, então a cafeteria foi a parada obrigatória depois de passar pela recepção chamando o mínimo de atenção possível — Grandes responsáveis. Matamos a menina no primeiro dia.
— Eu não morri — Lily resmunga, mas está agradavelmente pendurada no ombro de Kevin, os braços parecendo um espantalho.
— Ótimo. O Zumbi sabe falar — Neil junta as mãos e se joga em uma das cadeiras, vendo Kevin colocar Lily, que está tentando segurar a risada, em uma das cadeiras — Melhor ainda, o zumbi está rindo da nossa cara — ele reclama, mas também está sorrindo. Todos estão, finalmente.
Chapter 13: The Second Chance
Notes:
Esse é o último capítulo antes do epílogo. Finalmente acabei de "editar". Eu to viciada neles quatro e em tudo que eu escrevi até agora. Eu espero muito que vocês gostem desse final e tenham aproveitado a jornada até aqui. Eu to muito feliz de ter acabado isso, principalmente porque minhas aulas vão começar e eu teria que abandonar a fanfic. E segundo, porque estou muito animada pra segunda temporada. Quero escrever ela com bastante calma e colocar todo meu amor.
Obrigada pra quem leu até aqui. Eu amo vocês
Obrigada pro meu amor também. Que leu todos os capítulos e me xingou em todos <333
Chapter Text
As manhãs na casa de Abby traziam o silêncio e o cheiro amargo de café. É uma surpresa agradável descer as escadas e ouvir os sussurros escapando pela fresta da porta da cozinha, por isso Lily tenta não ser percebida. Em qualquer outra data, naquele mesmo horário, a garota tomava seu café da manhã sozinha. Wymack, já na PSU lidando com as confusões que se armavam por lá. Kevin, longe de querer acordar. E Abby, já no centro esportivo da escola. Nessa manhã, tudo estava diferente. Assim que chegou perto da porta, Lily parou, ouvindo com cuidado.
— É só uma criança, David — Abby estava sentada em uma das banquetas, segurando uma caneca e Wymack estava no fogão, com uma espátula nas mãos.
— Abby... Eu já te disse que não precisa se justificar. Eu acho que você tomou a decisão certa. De qualquer forma, eu prefiro ser avô. Só a parte legal, sem precisar dar sermão. Já estou velho demais para bater boca com adolescente— ele diz, olhando para Abby. Ignorando todos os arranhões, ele beija a têmpora dela e a porta finalmente abre.
Lily não sabia o contexto exato da conversa, mas não teve dúvidas que se tratava dela. Ela só não tinha certeza se era algo bom ou não. O sorriso de Abby cresceu ainda mais quando ela passou pela bancada e se sentou ao lado dela. Wymack ofereceu um pouco do que estava cozinhando, mas Lily negou, parecia uma poça de óleo.
— A Srta. Martin vai chegar daqui a pouco, junto com Andrew e Neil e vamos poder conversar... — Abby pigarreou e Lily percebeu de forma automática que ela estava querendo falar algo que não era exatamente dócil. — Eu, David e os meninos conversamos tamb… — ela continuou, ainda tentando amaciar a discussão.
— Você pode falar a parte chata primeiro — Lily interrompeu.
— Não tem… — ela começou, mas desistiu — Bom, hm, eu e você sabemos que às vezes você tem a língua um pouco afiada. Então, porque não me deixa conversar com a assistente social primeiro? Quero que os papeis saiam assinados hoje - ela afirmou mais uma vez.
— ‘Tá. — se rendeu — Pode falar com ela primeiro. Mas eu juro, pela minha vida, que se ela me chamar de ladra de novo, eu vou colocar fogo no carro dela — Lily resmungou e viu o sorriso de Abby fraquejar — É brincadeira, não vou colocar fogo no carro dela.
— Claro que não vai, querida — Abby beijou o topo de sua cabeça, a fazendo abrir a boca.
— Abby!! Acha mesmo que eu teria a capacidade de colocar fogo em um carro? Pelo amor de deus, eu ainda tenho honra. — Lily completou e as duas riram, até Wymack exibiu um pequeno sorrisinho. Os três sabiam, definitivamente, que Lily com certeza seria capaz de colocar fogo em um automóvel se isso provasse que ela estava certa em algum argumento. Lily levantou da bancada e foi para a sala. Ainda tinha algum tempo até a assistente social chegar, então aproveitou para fazer o que Kevin havia lhe ensinado há pouco tempo: se distrair com partidas de Exy na internet. Ela ligou a televisão e colocou em um dos canais de esporte.
Neil e Andrew chegaram um pouco depois, junto com uma garota alta com fios pretos que chegavam em sua cintura, Robin Cross. Lily tinha certeza. Os três fugiram para a cozinha sem nem perceber a presença de Lily na sala, o que provavelmente indicava que eles estavam atrasados. Ela logo entende o motivo, ao ouvir um segundo carro parando na garagem. Kevin vai abrir a porta da sala e Lily espera alguém encostar a da cozinha, antes de ir se esconder do lado de fora do cômodo.
— Srta. Martin. É um prazer revê-la — Abby começa, apontando o lugar vazio na mesa de jantar, ao lado dela e de outra cadeira vazia. Ela e Wymack ocupam as pontas. De um lado estão suas três raposas e no canto que sobra Robin está com as pernas cruzadas. Seria mentira se ela estivesse mais ansiosa para ver os papeis do que estava para conhecer Robin Cross, mas as duas coisas teriam que esperar.
Michelle Martin tinha um sorriso desagradável no rosto. Lily odiava o quanto ela se esforçava para parecer simpática. E seu terninho azul contribuía menos ainda para sua imagem. Ela tirou algumas pastas de dentro de sua bolsa e as colocou em cima da mesa. A assistente social nem precisou começar a falar para colocar Lily no modo defensivo. Ela parecia pronta para rebater qualquer comentário que fosse direcionado a seu nome. Por um momento, Lily também teve vontade de fugir. Sair pela janela, trocar de nome e desaparecer completamente, apenas para não ter que lidar com aquele momento.
— Espero que saibam o quão incomum são as circunstâncias. Já é difícil encontrar um ou dois guardiões que aceitem a adoção logo de cara. Três é ainda mais incomum. Eu preciso lhes informar de todas as ocorrências na última casa de Lilian. Preciso que tomem nota da ficha dela, dos boletins escolares e carteiras de vacinação. Bem como documentos e outros comprovantes de residência — Michelle separa cada papel conforme fala. Kevin está roendo a ponta das unhas, mas está prestando atenção como os outros. Andrew parece entediado, porém sua expressão muda quando seus olhos encontram os dela. Lily tenta se esconder, mas ele dá de ombros, mostrando que não vai dedurá-la — A estadia dela na última residência dela foi interrompida pelo roubo de 700 dólares da família White. Apesar da devolução, a quebra da confiança fez a família optar por não seguir com os processos adotivos vigentes.
— Isso é completamente inútil — Andrew apoia a mão na mesa, cortando a visão dela — Eu não quero saber da vida dos outros. Muito menos mentiras dos outros. Não sou fofoqueiro.
— Andrew, querido. Vamos só ouvir o que ela tem a dizer — Abby respira fundo e Lily sente um nó agradável no estômago — Sinto muito, Srta. White. Pode continuar.
— Lilian admitiu culpa aos eventos. Em outras moradias houveram reclamações sobre seu comportamento irritadiço, dificuldade de trabalho em equipe, dificuldade de socializar e frequentes desaparecimentos — Michelle parece estar testando os três, como se implorasse para que eles desistissem. A bronca de Abby havia sido suficiente para calar Andrew, porém Neil não havia prometido nada.
— As outras moradias tentaram tratar ela com carinho? Ouvir o que ela precisava e dar uma equipe para ela trabalhar? — ele pergunta e a expressão de arrependimento de Abby é visível. Ela havia pedido para Lily não se envolver, mas esquecera de falar com as três maiores ameaças — Vocês sempre dizem que o Estado está do lado das crianças, mas quando chega a hora de defendê-los, vocês são os primeiros a apontar que a culpa é deles. Cadê a defesa dela agora? Você devia ter tentado proteger ela, mas está aqui perdendo seu tempo para tentar nos fazer mudar de ideia. Assim você pode garantir que vai colocá-la em algum outro lugar no fim do mundo, só para garantir que outra pessoa vai cometer esses abusos de poder absurdos que garantem que a vida dela continue sendo tão podre quanto a sua.
— Neil Josten, chega disso! — Abby raramente levanta a voz, mas quando ela faz todos se movem na cadeira desconfortavelmente — Olha, Michelle. Certo? Michelle, eles três têm a mesma cabeça quente que a Lily. Não é atoa que eu acredito que são os responsáveis ideais para ela, porque eu não tenho dúvidas de que eles a defenderiam no que quer que ela precise. Espero que possa desconsiderar o comportamento fervoroso deles para dar continuidade ao processo.
— Essa foi realmente uma demonstração fervorosa. Eu vou relevar, porque acredito que a espera tenha deixado os senhores impacientes. Foi difícil arrumar uma data adequada com as nevascas e o prazo era realmente limitado. Bom, prosseguindo. Aqui estão os boletins, nada a mencionar — ela arrasta alguns documentos e Kevin ri quando chegam em suas mãos.
— Nada a mencionar? Ela só tem notas altas em quase todas as matérias — Kevin balança a cabeça, mas o olhar que ele recebe de Abby é tão severo que ele repensa o que vai falar — Isso é ótimo, claro.
— Ótimo, claro — ela repete e suspira — Esses são os documentos dela, certidão de nascimento e carteiras de vacinação. Eu preciso dos documentos dos três, bem como o comprovante de união estável e de renda conjunta — ela faz uma careta, mas disfarça rapidamente — Os documentos da testemunha e os documentos de certificação da assistência social.
Abby entrega a pilha de papeis em seu colo para a mulher e as assinaturas começam a ser distribuídas ao redor da mesa. É só então que Lily percebe que estava segurando a respiração, ela solta o ar com tanta força que metade da mesa olha na direção dela. Sem querer chamar mais atenção, ela vai até a porta, puxa sua raquete e abre a porta da frente, saindo sem fazer barulho. Uma neve fina cobria o gramado da frente e Lily só estava usando uma fina blusa de lã. Ela não se importa e começa a jogar a bola para cima e pegar com a rede.
O tempo passa rápido demais e ela quase não consegue se esconder antes de a porta da frente se abrir. Ela observa as costas de Michelle entrarem no carro e irem para longe e pensa em gritar, porém quando ela abre a boca é outra pessoa gritando. Várias pessoas. Lily se esgueira para a porta da frente, Robin está bloqueando a entrada e quando ela tenta desviar, a garota se move para impedir.
— É melhor você esperar um pouco — ela murmura cuidadosamente. Lily não sabe se surta por estar na frente dela ou tenta derrubá-la. Kevin falava sempre dela e Lily a via na televisão em todos os jogos. Era inevitável admirá-la. Porém haviam coisas mais importantes que a formação de uma linda amizade, então ela finge ir para um lado e se enfia pela lateral do corpo dela, correndo para a cozinha.
Kevin está gesticulando com o corpo inteiro, ainda em pé atrás de onde estava sentado. Abby não se levantou, o rosto fundo em uma das mãos. Andrew está do outro lado do balcão enchendo um copo com água e Neil está na frente dela, ainda de costas, gritando de volta na direção de Kevin.
— Não importa, Josten. Às vezes, você tem que ficar com essa porra dessa boca calada. A mulher estava quase rasgando a merda do papel na sua cara para você deixar de ser tonto — Kevin quase parte para cima dele, mas quando vê Lily, ele apenas muda para o francês — Você precisa pensar nos outros agora. Quase que você joga tudo no lixo, porque não consegue descobrir a hora de calar a boca.
— Eu não me arrependo de nada. E quer saber, você teria aberto esse seu bocão também se Abby não tivesse praticamente te ameaçado com uma faca por debaixo da mesa. Figurativamente — ele diz, quando Abby ameaça abrir a boca para se defender. Ele não entende a mudança de língua, então não faz esforço e continua em inglês — Eu nunca vou perder a chance de defender alguém que eu me importo e que está sendo claramente colocada para baixo na minha frente. Já fiz isso por você, já fiz isso pelos outros e vou fazer isso pela Lily todos os dias — Neil vira na direção dela, mas antes que ele fale alguma coisa, ela o abraça. Logo depois de ele envolver um dos braços ao redor das costas dela, ele ergue uma das mãos na direção de Kevin, mostrando o dedo do meio.
— Vai se foder, Neil — Kevin devolve, sem se importar com o volume de sua voz — Fica aí debochando, depois vai vir chorando quando o nome Lily Day estiver na televisão e ninguém se lembrar do Josten.
— Vai ser só Lilian Davis por enquanto — ela senta em uma das cadeiras perto de Abby — E se um dia eu for colocar mais alguma coisa, não vai ter Day, porque seu ego ocupa tanto espaço no mundo que não sobra lugar no meu nome.
— Você nunca acerta, né, Day? — Andrew bate nas costas dele e senta na frente de Lily, empurrando os papeis assinados na direção dela. Todas as folhas apresentam os três responsáveis legais e co-pais de Lily. Andrew Minyard, Kevin Day e Neil Josten. Em outra ela vê o prazo temporário de seis meses e seu olhar desesperado encontra imediatamente o olhar calmo de Andrew — É só uma formalidade. Ninguém vai mudar de ideia. Se quiser, pense que é seu prazo para decidir a ordem do seu sobrenome.
— Lilian Davis Day Josten-Minyard. Com hífen. Se o Kevin me irritar o Day vai ser mudo — Lily coloca as pernas em cima da cadeira e apoia a cabeça nos joelhos, olhando para Abby — Todos os meus filhos se chamarão Winfield, Abby. Eu prometo. Winnie. Field. Eld. Weinfeld. Winifred. Todos eles serão em homenagem a você.
— Não precisa, meu amor. Estou feliz que você também está feliz — a expressão dela relaxa, agora que a confusão foi finalmente interrompida. Abby aperta a bochecha de Lily e pensa em se levantar, mas como se sua mente tivesse sido lida, um prato com várias fatias de melão aparecem cortadas na frente de Lily. Abby aturaria a briga que fosse necessária, porque no fundo sabia que tudo não poderia estar mais certo.
— Robin foi embora. Ela precisava buscar o Daka no aeroporto — Neil senta ao lado de Lily, deixando uma cadeira vazia no meio dos dois — Marquei de jantarmos com eles, algum dia desses. Eles querem conhecer melhor a Lily. Ela está achando que é madrinha dela só porque foi testemunha do contrato. Pst… — ele balança a cabeça. No balcão, Kevin puxa o celular do bolso e Lily consegue prever as mensagens que ele deve estar mandando para ela naquele momento.
— Então… União estável — Abby comenta, batucando a ponta dos dedos na mesa — Era só para a documentação, ou… — Lily nem percebe mas está quase em cima da mesa, observando os três com curiosidade. Dependendo da resposta, ela podia enviar seu currículo para a central dos cupidos e depois esfregar sua carta de aprovação na cara de Kevin.
— Ainda estamos decidindo. Mas ia facilitar os documentos, trocamos nossos dois apartamentos por uma das coberturas do nosso prédio. Assim facilita para todo mundo e ainda ganhamos uma piscina de brinde — Andrew dobra as pontas de um dos papeis enquanto fala — Vão liberar o apartamento em um ou dois meses, mas já pegamos a documentação.
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— Tudo bem, eu vou te dar três chances de acertar — Kevin Day virou o olhar rapidamente para Lily e depois voltou a encarar a rua.
Os dois estavam dentro do carro havia pouco menos de vinte minutos. As estradas estavam lotadas por causa da volta às aulas. Os carros apareciam de todos os cantos e se alojavam uns entre os outros, ocupando cada centímetro de asfalto da via expressa. O apartamento não ficava tão longe da casa de Abby, mas aquele trânsito triplicaria o tempo que eles demorariam para chegar.
Lily estava no banco da frente, com as mãos grudadas nas pequenas saídas do aquecedor, tentando esquentá-las. Ela estava usando um gorro colorido por cima do cabelo ondulado, presente de Noah. Ele tinha lhe entregado o presente logo no primeiro intervalo de aula que os dois se viram, já que com os novos horários de Lily, não almoçariam juntos. Kevin gostava de buscar Lily para ir treinar, então ela passara a almoçar em casa antes do treino e o conversível dele não era exatamente equipado para uma cadeira de rodas.
Fazia pouco mais de dois meses desde que Kevin, Andrew e Neil haviam assinado a guarda de Lily. Não havia acontecido muito, desde então. A mudança para o apartamento não havia começado e as palmeiras haviam perdido seu primeiro jogo contra Brighton, então todos os treinos eram inúteis, já que estavam eliminados do Inter-Escolas. Agora que Abby e David estavam aptos para tarefas diárias, ir visitá-la se tornou menos frequente, o que significava que também não via nenhuma das outras raposas. A parte menos entediante se tornara fazer a tarefa de literatura enquanto lutava para Ellie não comer um pedaço de seu livro antes de ela acabar a frase.
— Me falaram que você precisa desligar o carro se estiver no meio da rua, para não ser intoxicado com monóxido de carbono, sabe.. — ela esfregou as mãos, ignorando a fala dele.
— Se eu desligar o carro, você vai ficar sem aquecedor — Kevin apoiou as duas mãos no volante e se inclinou para frente, se alongando — Vai, três chances. Se errar todas eu ganho.
— Esse jogo é injusto, você estava lá. Já eu, tenho que caçar na minha memória — Lily soltou as mãos no colo e aproximou o rosto do aquecedor. Kevin ainda a olhava, esperando — Tá bom. USC Trojans. Foi o jogo que mandou vocês para a final.
— Você não precisava de três chances — Kevin fez uma careta e apoiou a cabeça no encosto. Lily tinha um sorriso travesso e orgulhoso no rosto.
— Claro que não. Essa pergunta foi ridícula. Esse jogo é ridículo e já está virando um Quiz do Kevin Day, ao invés de um jogo de perguntas sobre Exy — Lily apertou as próprias bochechas como se tentasse fazer o ar quente passar para dentro delas — Vamos jogar outra coisa. Hum, eu espio com o meu olhinho uma coisa azul.
— Você está de brincadeira — Kevin balançou a cabeça, dispensando o comentário dela com uma das mãos — Eu tenho mais uma. Quantas medalhas os Estados Unidos ganharam nas Olimpíadas do ano passado, de Tokyo?
— 114. Kevin, essas perguntas são ridiculamente fáceis, desiste — Lily revirou os olhos e bocejou, se afastando do aquecedor para deitar a cabeça no vidro — Eu já disse que sei coisas demais sobre você. Capaz de eu acertar até qual é seu cantor mais escutado do seu Spotify, se bobear.
Kevin encarou Lily por alguns segundos e tirou o celular de dentro do bolso, abrindo seu Spotify. Graças ao final de ano e ao Spotify Wrapped, ele logo conseguiu abrir sua retrospectiva. Ergueu o olhar para a garota ao seu lado, como se a desafiasse a falar alguma coisa. Lily apenas deu de ombros e disse:
— Taylor Swift.
— Impossível — Kevin soltou o telefone no porta copos e suspirou — É, eu desisto, você é minha fã número um. Sabe mais de mim do que eu mesmo. A vitória é toda sua.
— Você é previsível demais — Lily riu, colocando as mãos embaixo das pernas como última tentativa de esquentá-las — Você sempre escuta a mesma playlist quando vai tomar banho e pelo menos um quarto dela são músicas da Taylor Swift.
Os carros começaram a se mover lentamente na frente deles e Kevin voltou a dirigir devagar, parando alguns metros na frente. Ele se encostou mais na poltrona, esticando os braços e olhou para Lily.
— Tudo bem. Já que você sabe tudo sobre mim. Vamos falar de você. Qual é o seu cantor mais escutado no Spotify?
— Primeiro: eu não tenho Spotify. Não tenho celular. E segundo: Se eu fosse escolher alguém seria uma banda inteira. Eu gosto de Ella Fitzgerald, Fleetwood Mack, Kate Bush — Lily virou o corpo um pouco para o lado na direção dele.
— Kate Bush? Você tem o que: 25 anos? Crise de meia idade? — Kevin balançou a cabeça na direção dela e depois acelerou o carro, andando mais alguns metros antes de parar.
— 14 e bom gosto. E eu gosto de outras coisas também. Eu sou bem eclética — Lily respondeu falsamente orgulhosa, sem vontade alguma de mencionar que não conhecia quase nenhum dos cantores novos.
— Qual a matéria que você mais gosta na escola? — Kevin mudou o assunto, percebendo a sutil mudança de expressão, Lily apenas agradeceu internamente por não precisar prosseguir o assunto sobre cultura atual.
— Matemática ou Literatura — Lily olhou para Kevin e prosseguiu antes que ele pudesse resmungar alguma coisa — Não adianta fazer essa cara para mim só porque eu sei que você é formado em História. Acontece que eu sou péssima nessa matéria e não tem deus nesse mundo que consiga me ajudar.
— Eu posso te ajudar se você precisar. Eu não me formei a tanto tempo atrás. Pelo menos é História. Se seu problema fosse com matemática não ia conseguir ajuda do Neil nem que ele fizesse a faculdade inteira de novo. Ele não tem muita paciência — Kevin murmurou apesar de os dois estarem sozinhos dentro do carro — Eu tenho certeza que Robin já saiu chorando de uma das sessões de estudos deles. Não fala que eu disse isso, mas provavelmente é verdade.
Lily abriu a boca e ficou em silêncio, um pouco em choque, mas logo em seguida riu, assentindo com a cabeça. Lily tinha assistido muitas entrevistas dos três e assistido muitas mais discussões na sala de jantar, então era fácil acreditar que aquilo havia acontecido. Talvez fosse melhor não pedir sua ajuda relacionada aos conteúdos da escola. Porém ela não sabia se pediria ajuda a Kevin também. Ele tinha sido bem paciente nos pequenos treinos na casa de Abby, mas era apenas paciência de iniciante, não sabia se ele continuaria bonzinho daquele jeito.
— Eu sei que já falamos sobre isso, mas eu vou retomar. Vamos jantar com Abby no…
— No dia 8. Eu e você vamos fazer minha matrícula na Brighton — ela sentiu seu corpo arrepiar — Vamos pegar o bolo na confeitaria, passar para buscar minha raquete nova e os uniformes e ir direto para o apartamento novo — Lily respirou fundo, retomando o fôlego — Eu sei, eu sei. Você me falou umas 15 vezes hoje de manhã.
Lily sorriu, mas se sentiu mal por ter falado daquela maneira. Ela sabia que ele estava se esforçando e ela ao mesmo tempo queria dar a menor quantidade de trabalho possível aos três e prestar atenção no que eles diziam era o mínimo que ela podia fazer por enquanto. Porém, ela ainda era adolescente e seu orgulho falou um pouco mais alto e ela apenas virou na direção da janela, sem falar mais nada. Kevin também ficou em silêncio, prestando atenção no caminho.
Não muito longe dali, Neil Josten subia pesadamente os degraus de uma pequena escada de metal, se dobrando para alcançar a parte de cima de um grande armário de madeira. Ao seu lado, Andrew Minyard segurava o suporte da escada para que ela não virasse para trás, intercalando entre o suporte e ajudar Neil a tirar as coisas de dentro do armário.
— De onde veio tanta coisa? — Neil perguntou, entregando uma caixa de plástico cheia de blusas de lã dobradas.
— 10 anos de presentes de Natal da Bee, acho — Andrew pegou a caixa das mãos dele e colocou em cima da cama. Eram blusas demais. Neil olhou para a caixa e Andrew colocou uma das mãos na frente do rosto dele para cortar o contato visual — Se você encostar nessas blusas, eu te mato.
— Você não tem tantos braços para caber em tantas blusas, não faria mal nenhum…
— Você vai mesmo continuar essa frase? Em cima de uma escada? Que eu estou segurando? — Andrew segurou com as duas mãos no ferro, fazendo menção a empurrá-la. Neil apenas segurou a alça na parte de cima — Foi o que eu pensei….
Neil voltou a mexer dentro do armário, tirando uma caixa de papelão com alguns cadernos. Ele abriu um pequeno sorriso passando-a para Andrew que revirou os olhos assim que viu a capa do caderno que estava na parte de cima: “Turma de 2011 - PSU”.
— Isso a gente poderia…
— Não mexe nas minhas fotos — Neil fez uma cara séria e Andrew ergueu os braços, pegando a caixa e colocando em cima da cama — Onde vamos colocar tudo isso? Não vai caber tudo no nosso quarto. E Kevin não quer que o outro quarto vire depósito, porque ele está com medo de nós três brigarmos e alguém ter que dormir na sala.
Neil desceu da escada devagar e envolveu os braços na cintura de Andrew, apoiando a cabeça em seu ombro. Os dois olharam ao redor do quarto, as várias coisas espalhadas que tinham sido tiradas dali para levar até o novo apartamento. A maioria eram uniformes antigos e brinquedos de gatos, mas ainda havia algumas roupas e objetos antigos separados em caixas bem organizadas amontoadas em alguns cantos.
— Kevin vai levar algumas coisas para a garagem. O resto vai metade para o nosso quarto e o que sobrar Kevin se vira para guardar embaixo da cama no outro quarto. Matar não vai. E se precisar a gente coloca fogo em tudo e explode a casa— Neil colocou as mãos dentro do bolso do moletom de Andrew e respirou fundo.
— Não.
— Não o que? Eu não vou colocar fogo na casa — Neil balançou a cabeça, confuso, soltando Andrew para que ele pudesse virar de frente.
— Você está surtando sobre as coisas da Lily. E se você começar a surtar, eu vou começar a surtar. Eu consigo manter minha cara de paisagem, mas não por muito tempo se você estiver colapsando do meu lado — Andrew segurou o rosto de Neil com as duas mãos pressionando suas bochechas — Não tem porque nada dar errado, Neil.
— Mas, Drew, e se ela…
— São três adultos, de um lado, e uma adolescente, do outro, Josten. Se recomponha.
— Você está nervoso também — Neil sorriu, aproximando o rosto para beijá-lo. Andrew retribuiu, ficando com o rosto vermelho pela troca de calor — Vamos ficar bem. Não importa que não tenhamos nenhuma experiência com crianças.
— Renee, Alli, Matt, Dan e Jean fazem parecer fácil e todos eles têm adolescentes. Vamos ficar bem, não é como se fossemos ter dois Eddies aqui — os dois se olharam com um pequeno sorriso nervoso, como se cuidar de uma adolescente pudesse ser pior do que uma criança hiperativa. Em seguida, os dois voltaram a focar em tirar aquelas coisas do quarto, levando para outros cantos da casa.
Dentro do carro de Kevin, o silêncio embaraçoso não se prolongou muito. Lily se inclinou novamente para perto do aquecedor do carro, respirando fundo. Estavam finalmente chegando e Lily conseguia sentir a sua ansiedade crescendo cada vez mais. “Quando eles perceberem o trabalho que você dá vão te devolver para Abby imediatamente, isso se ela ainda te quiser” “Mais um dia, mais um guardião para decepcionar com as notas e o comportamento arisco” “Aposto que as gatas não gostam de você.”
— Me faz outra pergunta — ela pediu, sentindo a sua respiração acelerar levemente. Kevin a olhou confuso, virando o rosto rapidamente, sem entender muito bem — Do jogo. Por favor, qualquer coisa — ele não olhou para ela dessa vez, apenas assentiu, enquanto pensava em alguma coisa.
— Medalha de prata de Exy das Olimpíadas de 2020?
— Japão.
— Medalha de bronze?
— Itália.
— Goalies escalados para o comitê olímpico das Olimpíadas de Paris em 2024? — Kevin perguntou, vendo o portão do estacionamento do prédio abrir para que ele pudesse entrar com o carro. Lily sorriu, arrumando a touca em sua cabeça.
— Andrew Minyard e Robin Cross.
— Strikers principais?
— Neil Josten e… — Lily fez uma cara pensativa, enquanto Kevin estacionava — Nossa, estava na ponta da língua, acho que não vou conseguir lembrar — disse, batendo levemente o indicador em sua têmpora — Eu acho que ele entrou de férias recentemente. Que estranho, eu nunca me esqueço dos nomes dos jogadores. Acho que ele não deve ser muito importante.
— Tá bom, palhacinha. Pode descer do carro e pegar suas coisas lá atrás — Kevin revirou os olhos e abriu a porta, saindo do carro.
Lily virou para abrir sua porta, enganchando as pontas dos dedos no puxador, mas quando movimentou o braço, nada aconteceu. Ela tentou mais uma vez e nada, a porta de Kevin bateu atrás dela, fazendo um curto barulho.
— Ei! Você esqueceu de destrancar a minha! — Lily resmungou, olhando para ele do lado de fora. Kevin deu a volta no carro para abrir o porta malas e Lily bateu algumas vezes na janela. — Ei! Kevin! — Ela disse um pouco mais alto para chamar sua atenção e depois suspirou, soltando o corpo no banco.
— Acho que não estou esquecendo nada importante — ele disse e Lily conseguiu ouvir facilmente pela janela aberta do banco do motorista.
Day fechou o porta-malas e se virou para ir na direção do elevador, não muito rápido. Lily pulou para o banco do motorista e olhou para Kevin se afastando, o espaço aberto da janela era pequeno demais para passar. Ela sorriu levemente antes de bater com a mão na buzina várias vezes, até ouvir o carro sendo destravado. Ela puxou o abridor da porta do motorista e pulou para fora do carro, fechando a porta e correndo na direção de Kevin. Ele estava pedindo desculpas pelo barulho a um dos moradores quando Lily se aproximou, colocando as mãos nos bolsos.
— Essa rainha tatuada na sua bochecha é de “rainha do drama”, né? — ela perguntou, tentando pegar sua mochila das mãos dele, mas parou depois que ele a colocou no ombro.
— Devia ter te deixado lá dentro — ele disse e ofereceu uma das mãos para ela segurar, parando em frente ao elevador.
— Prender crianças indefesas em carros fechados é crime, sabia? — ela disse, pegando a mão dele com cuidado. Estava mais fria que a dela, provavelmente por ter ficado tanto tempo no volante.
— Você não é criança. Nem indefesa. E o carro não estava fechado, era só abrir por dentro. E a janela estava aberta — ele disse e a guiou para dentro do elevador, assim que a porta abriu.
— Não dá para abrir por dentro — Lily balançou a cabeça como se aquilo fosse óbvio e observou Kevin apertar o andar no elevador.
— Tem um pino no puxador. É só empurrar para o lado. E do lado do motorista tem um botão que destrava todas as portas — Ele disse e a expressão meio atônita de Lily o fez balançar a cabeça — Depois eu te mostro onde fica.
Lily assentiu e os dois esperaram o elevador abrir novamente. As portas se separaram dando visão a um pequeno hall que seguia para dois corredores. Kevin seguiu para a direita e caminhou até a última porta no final. A porta era bem mais alta do que o comum e diferente das que ela estava acostumada, não tinha nenhum tapete no chão.
Lily olhou para Kevin, um pouco nervosa, mas ele estava ocupado demais arrumando seu cabelo com a mão livre para notar. Os dois ouviram um pequeno barulho de chaves do outro lado e a porta se abriu. Neil estava parado do outro lado, com um sorriso calmo no rosto, que Lily sentiu um pouco de inveja. Kevin soltou sua mão e empurrou seus ombros levemente para que ela se movesse.
— Nós dois ainda não acabamos de arrumar o seu quarto, mas o teto está pronto e a sua cama chegou — Lily havia se perdido por alguns segundos, olhando ao redor do apartamento e só voltou a prestar atenção depois que Neil se dirigiu a ela — Vem, vou te mostrar e quando quiser, pode começar a subir com tudo.
A sala e a cozinha eram fáceis de ver, já que ficavam no mesmo cômodo logo na entrada. Ao lado da cozinha, uma porta discreta dava em uma lavanderia grande. Ao lado da sala, uma escada dava em um pequeno corredor com três portas, o quarto de Andrew, Neil e Kevin, um banheiro e um quarto quase completamente vazio com uma janela no fundo, um lustre com planetas e uma cama de solteiro em um dos cantos.
— Não sei se é do tamanho que você estava esperando, mas podemos ir mudando se precisar — Neil apontou para o lado de dentro e tirou uma última caixa de cima da cama — Até voltarem suas aulas acho que conseguimos arrumar uma mesa para você colocar aqui dentro.
Lily pegou sua mochila no ombro de Kevin e caminhou até a cama, se sentando no colchão ainda sem lençol. Andrew apareceu atrás de Neil, murmurando alguma coisa que Lily não prestou atenção e passou por entre os dois. Ele estava segurando um jogo de cama com as duas mãos e colocou-o do lado de Lily.
— Então, o que acha? —Kevin chutou de leve a ponta da cama, erguendo as sobrancelhas em curiosidade — Você pode decorar como quiser e também você vai precisar de mais rou… — a luz cai no meio da frase de Kevin.
O apartamento inteiro fica escuro e Lily não consegue ver mais nada. Como reflexo, ela senta em cima das pernas e se encolhe com os olhos fechados. Saber que Edith ou Tia Jackie não estavam ali não era suficiente para que ela não fosse assombrada pelos resquícios de memória, porém dessa vez havia algo diferente. Começou com a mão de Andrew encontrando a sua. Lily se forçou a respirar fundo, porém quando algo encostou em seu tornozelo, seu reflexo foi chutar a primeira coisa que apareceu em sua frente. Kevin grunhiu de dor e Lily ouviu algo quebrando, alguém tropeçando em algo e por fim um barulho estridente de madeira. Só então alguém pensou em ligar a lanterna do celular.
Sir ao seu lado, explicando o que ela tinha sentido no tornozelo. Kevin curvado por cima de si mesmo, reclamando de dor enquanto segura a própria barriga, onde Lily havia chutado. Um copo de vidro espalhado no chão perto de uma bolinha rosa de cachorro e Neil quase em cima da cama com uma das mãos no chão. Ao seu lado, sua raquete, rachada no meio, largada no chão. Os quatro estão estáticos. Kevin está encarando a raquete, sem saber o que falar, Andrew está encarando Neil, sem se mexer. Lily só entende o motivo do silêncio, porque já viu Abby fazer aquelas expressões muitas vezes. Ela decide se mover primeiro, mas ao invés de ir atrás da raquete ela ajuda Neil a se levantar. Assim que ele fica em pé, Kevin puxa uma de suas mãos na direção dele.
— Vai lavar, qualquer coisa chama — ele murmura ligando a lanterna do próprio celular. Kevin troca um olhar rápido com Andrew que aperta levemente a mão de Lily antes de ir atrás do Josten. Os quatro sabem que ele não se perdoaria se continuasse ali mesmo depois de ver os filetes de sangue se formando em sua palma. Aquele olhar rápido indica também que Kevin deveria ficar. É a escolha pertinente, já que a primeira coisa que Lily faz quando só sobram os dois é ir atrás da raquete, sem se importar com o que estava no caminho — Ei, ei — ele segura a garota praticamente no ar, a empurrando de volta para cama.
—Não, não, não. Me solta, porra — ela se debate quase tão forte quanto grita, porém não está tentando acertá-lo, então Kevin a carrega para o lado de fora do quarto — Kevin, eu juro por Deus que se você não me soltar, eu vou gritar tão alto que o prédio todo vai ouvir. Vão chamar a polícia e me levar embora.
— Grita, então, se acha que alguém vai se importar mais com isso do que eu vou me importar se você voltar lá dentro e se machucar também — Kevin segura os ombros dela, tentando bloquear a visão dela do lado de dentro do quarto.
— Também? Neil se machucou? — a ficha começa a cair em partes. Ela se afasta devagar da porta e vira na direção do banheiro, procurando a outra lanterna e só encontrando as sobrancelhas franzidas de Kevin — Eu achei que ele tinha sujado a mão de merda de gato, sei lá, porra. Cadê eles?
Ela ameaça sair andando no escuro, mas Kevin só demora para segui-la, porque chama Sir para fora e depois fecha a porta antes de descer as escadas. Andrew e Neil estão na cozinha, aproveitando a fraca luz da lua e o kit de primeiros socorros. Lily enfia a cabeça entre os dois e fica ali alguns segundos sem falar nada, até formular algo em sua cabeça.
— Me desculpa — ela murmura, meio sem jeito — Eu acho que a culpa foi minha. Hm… — ela hesita, porque o pensamento de ser culpada por ter machucado Neil era bem pior que a culpa de ter quebrado sua raquete favorita — …foi sem querer. Eu não chutei o Kevin e o copo dele de propósito. Eu só me assustei com a Sir. Não estou tentando colocar a culpa nela. Nem tirar de mim. Eu só estou querendo dizer que não foi minha intenção.
— Ninguém está culpando você, Lily — Neil seca a mão no pano de prato, mas espera Andrew espirrar algo em sua palma antes de se afastar dele — Ta tudo bem, eu que tropecei na bolinha da Ellie igual um idiota e depois tentei me segurar na raquete. Esqueci que a sua ainda é de treino. Eu que devia pedir desculpas, acho que você tinha dito que foi presente.
— Foi, — ela engole em seco porque está prestes a dizer a verdade mais dolorosamente necessária que já precisaria contar — mas não tem problema. Se impediu que você se machucasse mais, eu não me importo.
— Podia ter dito isso antes de me dar oito cotoveladas na costela — Kevin resmunga, mas não recebe nenhum olhar de apoio, então ergue os braços em desistência. No mesmo momento, a luz volta e ele aproveita a deixa — Eu vou limpar lá em cima.
Lily só sobe as escadas depois de garantir que Neil estava realmente bem, o que leva uma hora e dezoito “Tem certeza?”s. Ela bate na porta do próprio quarto, ainda não acostumada à estranheza de poder chamar aquilo de seu. Sua cama agora está no meio do quarto e Kevin está no espaço entre ela e a parede. Ele está com uma chave de fenda em uma das mãos parafusando quatro ganchos na parede, onde antes estavam buchas vazias.
— Hé, mon chou— sua voz sai baixa, enquanto ele está concentrado. Lily demora um pouco para entender as palavras, mas depois cruza os braços, jogando o corpo na cama.
— Estava demorando para você resolver me chamar de alface — demora um pouco até a expressão confusa de Kevin chegar em seu rosto, mas ele abana a fala dela com uma das mãos assim que vê o meio sorriso no canto de sua boca.
— É figurativo. Meu amor, meu bem, minha querida. Tanto faz — ele passa para o próximo furo e Lily tenta adivinhar o que ele está fazendo que não pode esperar até o dia seguinte. No canto do quarto, ela sabe que sua raquete está encostada contra a parede, mas evita olhar para ela a todo custo.
— Abby já me chama de querida. Meu bem é blergh — ela mostra a língua e abre os braços em cima do colchão — Meu amor, é para quando você ama alguém. Meu pequeno alface é mais cabível na nossa relação. Você me conhece há dois meses. É o tempo suficiente para nascer um alface, mas não um amor — Lily está falando da boca pra fora. Ela podia bater boca o dia inteiro com Neil, zombar do tom monótono de Andrew todas as vezes que a irritava e teimar todas as sugestões e ordens de Kevin, mas não conseguiria passar um dia sequer longe dos três. Se isso que ela sentia por eles não era amor, só podia ser um alface bem idoso.
— Discordo completamente. Meu amor cabe em todos os contextos que eu quiser encaixar. “Meu amor” pode ser a causa da minha morte se eu decidir chamar Andrew assim, por exemplo. Por outro lado, se eu chamar Neil de “Meu amor” é capaz de eu ganhar um pouquinho mais que um beijo — ele dá de ombros e pega mais um gancho em cima da cama.
— Que nojo. E você pode estar assinando sua sentença de morte, mas não muda o contexto. Eles são ‘tes chous’, seus amores, eu sou ‘ton chou’, seu… alfacinho — Lily dá de ombros, assistindo Kevin colocar o último parafuso na parede.
— Lily, pode acreditar, se eu não te amasse, não teria passado a última hora pregando ganchos na sua parede para pendurar uma raquete quebrada — Kevin desvia do colchão para pegar os dois pedaços da raquete. Ele coloca cada pedaço por cima dos quatro ganchos e então sorri satisfeito — Não vai ter mais espaço para as prateleiras, mas eu achei que você ia preferir assim — ele faz uma pausa — Mon chou.
— Você está falando da boca para fora — ela quase sussurra, decidindo se fica mais surpresa com a declaração de amor falada ou a em sua parede.
Ela não tira os olhos da raquete quando a porta abre, ou quando Neil e Andrew passam para o lado de dentro. Não consegue se importar nem o suficiente para fazer uma careta, quando a empolgação de Neil o faz beijar Kevin rapidamente, menos ainda com a sutileza de Andrew que pousa a mão por cima da dele, um pequeno olhar de aprovação, logo que os três sentam na cama ao redor dela. A única coisa que faz ela tirar os olhos da parede é o pequeno mar azul-esverdeado em sua frente, a encarando.
— Que foi, porra? — ela pergunta, tentando segurar o próprio sorriso, se sentindo encurralada no melhor sentido possível — Parem de me olhar assim. Eu gostei, tá bom? Eu amei na verdade. É a coisa mais legal que já fizeram por mim. É isso que você quer ouvir? — seu tom a faz parecer brava, mas ela provavelmente é a pessoa mais feliz do mundo naquele momento — É verdade. E quer saber, eu posso ser só um um alface p’ra vocês três, mas pra mim não. Eu amo vocês e eu tenho medo que vocês vão cansar de mim e me devolver p’ra sei lá onde. Mas eu amo vocês três mesmo assim. Principalmente você — ela empurra de leve o braço de Kevin.
— Eu também amo você, mon chou — Kevin segura o rosto dela com uma sutileza exagerada para se inclinar e beijar sua testa. Antes de se afastar, ele encosta a testa na dela e se traduz: — Meu amor.
Lily não precisa que Neil ou Andrew falem alguma coisa, porque mesmo sem saber explicar o motivo, sabe que o amor deles é um pouco diferente. Afinal, nunca tinha visto os dois falando as três palavras em voz alta desde que os conhecera. Ela sabe também que eles pouco se importam se o coração dela tem um pouco mais de espaço para o Kevin, porque no final do dia serão sempre os quatro juntos. Mesmo assim, quando ela olha no rosto dos dois, escorados um no outro logo em sua frente, Neil segura uma de suas mãos e coloca em seu rosto, em cima de onde um dia havia estado um número III e agora carregava apenas uma cicatriz ainda um pouco elevada e beija sutilmente a palma de sua mão. Ela já se sente perfeitamente satisfeita, porém Andrew, a cabeça apoiada contra o peito do Josten , segura uma das mãos no ar com os dedos do meio fechados. Lily poderia não ser a poliglota que os três eram, mas ela reconhece o sinal.
Várias vezes durante o dia, via os dois trocando mensagens curtas no que ela havia entendido ser ASL. Quando Andrew passava do outro lado do cômodo, Neil levantava uma das mãos na direção dele antes de continuar conversando. Ou quando Neil decidia dormir mais cedo, Andrew se despedia e Neil retribuía com o mesmo sinal. Agora ela finalmente entendia. “Eu amo você”.
Ela copia o gesto com as mãos e acaba recebendo ajuda de Kevin para colocar os dedos na posição certa. Lily sorri, porque ela ama suas raposas e eles a amam de volta.
Chapter 14: Epilogue
Notes:
Epiloguinho pra dar um fogo para a próxima temporada !!!!! Não odeiem a Lily, ela não viveu aftg.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Lily Davis tenta respirar fundo, mas não tem tempo de recuperar o ar escapando de seus pulmões. Suas pernas a impulsionam para frente e seu corpo bate de frente em outro. Ela não consegue pensar em nada além da bola. Ao seu redor, os outros jogadores travam seus próprios embates. Em outro momento, ela estaria no lugar da pessoa em sua frente, mas tudo era diferente agora. Quando o sinal toca, indicando o final da partida, o corpo de Lily desmancha no banco.
Ela tenta ver o placar, mas sua visão está embaçada. Descobrir que precisaria de óculos já era ruim o suficiente, mas ter que jogar sem eles era pior ainda. Ninguém está comemorando o resultado. O placar é desimportante. Aquele jogo serve apenas como fachada para escolher os melhores. Brighton precisa de novos jogadores e nunca escolhem nada além dos melhores. Lily espera até ouvir seu nome ser chamado, então levanta e pega suas coisas, indo na direção do vestiário.
— Ei, Lils, foi incrível. Sete gols é coisa para caralho — David Wymack, o homem com a prancheta e um sorriso encorajador faz um joia com uma das mãos e Lily tem vontade de dar meia volta. Apenas um sorriso educado e ela segue para os vestiários.
Lily não se sente incrível. Sua mão formiga quando ela cumprimenta uma das jogadoras do último ano da Brighton. Seu melhor sorriso ainda parece torto à reação dela, mas Lily não está preocupada com o placar ou com seu nome sendo chamado. As comemorações ao seu redor reviram seu estômago, mas só quando ela ouve seu nome sendo chamado no corredor é que as lágrimas sobem para seus olhos. Ela fecha a porta do vestiário e vai até seu armário. SEU armário. Seu nome sendo chamado ainda ecoa no fundo de sua mente.
Lily tenta ignorar a visão de Abby, acenando e mandando beijos na direção dela. Kevin aplaudindo com aquele sorriso orgulhosamente tosco. Andrew e Neil com linhas esguias nos lábios, balançando as mãos em aplausos silenciosos, resquícios das aulas de ASL que faziam juntos. Comemorando algo sem mérito. Seu nome sempre iria ser chamado. Não importava quantos gols ela fizesse, quantas fintas usasse. Não tinha mérito algum em comprar sua vaga, muito menos em comemorá-la.
Ela não presta atenção quando Abby e David pedem desculpas por não poder almoçar com ela para comemorar e não se importa quando Neil e Andrew sugerem alguns nomes de restaurantes para o almoço. Nada daquilo muda a sensação de impostora que ela sente. Ela só volta a ouvir quando Kevin corrige sua performance. Ele é o único que parece entender que toda aquela peça não passava de encenação.
O civic está parado no canto do estacionamento. O conversível de Kevin havia sido votado como inapropriado meses atrás. Lily entra no banco de trás com Andrew, Neil atrás do volante e Kevin de passageiro. Sempre que os três iam juntos para algum lugar, Neil ou Andrew dirigiam e Lily ficava atrás do motorista, na diagonal de Kevin, para que as duas matracas pudessem se olhar enquanto discutiam. Lily já estava no seu lugar, raquetes e mochila no porta-malas, mas Neil não parecia interessado em se mover.
— Eu vou ir a pé — ela murmura, mas assim que sua mão toca a maçaneta, há um barulho e Lily consegue ver a ponta do dedo de Neil sob o botão que tranca as portas. Mesmo assim ela puxa várias vezes apenas para irritar os três. Quando Kevin ameaça falar algo ela puxa mais uma vez e então outra, até estar convencida que ele desistiu.
Andrew está com a cabeça apoiada no encosto. Os olhos fechados e as mãos batucando levemente nas pernas. Lily já tinha visto, em mais de uma ocasião, Andrew apontando uma faca na direção de Kevin ou dando uma cotovelada no diafragma de Neil, mas ela sempre ganhava o silêncio. De certo modo, ela preferia a faca. Lily fica de joelho no banco e se dobra por cima dos bancos, tentando alcançar suas coisas no porta-malas. É nesse momento que Neil decide ligar o carro. Ele acelera e freia rapidamente, as coisas dela voam para longe e ela cairia para trás, se não fosse o braço de Andrew em suas costas. Ela volta a sentar e cruza os braços.
— O que vocês querem que eu diga? — Kevin era o único que estava olhando na direção dela. Andrew estava com os olhos fechados novamente e Neil só conseguia vê-la pelo reflexo do retrovisor — Eu falei que não queria ter vindo. Eu vim. Eu falei que não queria ter jogado. Eu joguei. Eu fiz tudo que vocês queriam, o que tem de errado? — Lily encolhe as pernas no banco e apoia a cabeça nas pernas.
— Não é possível, Lily. Você deve estar se fazendo de tonta — sem surpresa alguma, é Kevin que explode — As regras da escola alegam que todos os alunos sob bolsa de esporte tem que fazer o teste junto com os outros concorrentes. Aquela escola é cara para porra, você precisa da bolsa, não dá pra ficar fazendo só o que te dá na telha.
— Eu ganhei a bolsa há semanas. Eu ter ido jogar foi totalmente fachada, não fazia diferença nenhuma, eles só queriam me mostrar por causa do seu nome — ela dá de ombros. Neil está finalmente dirigindo para algum lugar — E ainda por cima, na frente de todo mundo do time.
— Bem-vinda ao mundo real, docinho. Você tem nome, aprenda a lidar com ele. Tem coisas que a gente precisa fazer mesmo não querendo. E ainda colocar um sorriso no rosto — a ironia no tom de voz de Kevin consegue irritar não só Lily, que nem espera Neil desligar o carro para abrir a porta, quanto Andrew que faz questão de dar uma joelhada no banco antes de sair.
— Você é um falido, cara. Vai se tratar — Lily resmunga assim que a porta de Kevin abre — Está descontando em mim o fato de que a sua agente de PR proibiu os três de estarem juntos abertamente. Eu não tenho nada a ver com a vida amorosa de vocês, mas espero que estejam felizes. Minha vida social acabou agora que o sobrenome Day está estampado na minha cara. Eu já tinha certeza que só tinha conseguido a bolsa por causa do seu nome, mas agora todo mundo vai saber também.
Apesar de morarem no último andar, Lily abre a porta das escadas e sai correndo nos degraus, deixando os três esperando o elevador sozinhos.
— Eu vou pedir o almoço — Kevin tira o celular do bolso, esfregando o rosto com a mão livre.
— Se quiser, eu pago. Fiquei sabendo que você está falido… — Neil só para de dar risada quando Kevin responde com um soco em seu braço — Ai! Você precisa aprender a ficar quieto igual o Andrew. Ela nunca humilha ele — ele aponta para o Minyard que apenas dá de ombros.
— Vocês dois se humilham sozinhos — Andrew entra no elevador sem esperar os outros dois e se apoia contra o espelho — Precisam esperar ela esfriar a cabeça. Ser escolhida como MVP é desimportante se o time que ela estava perdeu. Principalmente um jogo que ela não queria jogar. Chamaram ela por causa do nome dos pais dela e ainda a obrigaram a carregar um time inteiro. Ela provavelmente acha que passou vergonha na frente da escola inteira e você falando de responsabilidade. Lilian devia ter te humilhado mais.
— Era p’ra você estar do meu lado. Estava todo mundo puto até dez minutos atrás — Kevin ergue os olhos do celular e ergue as mãos, balançando a cabeça — Você é do contra, porra?
— Eu não disse que ela está certa. Uma coisa é pensar tudo isso. Outra coisa é descontar em todo mundo, principalmente na Abby e no treinador — Andrew solta um pouco de ar pelo nariz e sai do elevador ainda balançando a cabeça. Os três tinham mais de 15 anos de experiência em brigar, mas quando se tratava de Lily, a única certeza que tinham era que pareciam estar fazendo tudo errado.
Lily demora mais um pouco para chegar no apartamento, depois da metade dos andares, tinha decidido chamar o elevador, o que acaba demorando ainda mais. Quando ela entra no apartamento, apenas Ellie vem recebê-la. Ela senta no chão, com as costas na porta, e puxa a filhote de golden não-mais-tão-pequena para o colo, se sentindo satisfeita com as lambidas que recebe no rosto. Seu celular treme dentro da mochila e ela pega, ainda pouco acostumada a receber coisas durante o dia.
abby:
Vamos comemorar outro dia?
lily:
não to com muita vontade
pode ser afogar as mágoas?
abby:
Nem pensar.
Ano passado você estava chorando por não ter conseguido a bolsa.
E agora está não só dentro do time, como dentro da escola.
É uma coisa boa, meu amor.
lily:
eu não queria que fosse desse jeito
eu quero conseguir as coisas sozinha
ano passado o treinador não estava na escola
ano passado eu não morava com kevin day
Lily desliga o celular e o coloca de lado, porque cada palavra que ela digita torna a situação ainda mais real. Ellie corre para dentro da casa para investigar a origem do barulho que vem de um dos quartos e Lily toma coragem para sair de perto da porta. Ela sobe as escadas na direção de seu quarto, mas acaba dando a volta e entrando no escritório. Nas paredes, os quadros pendurados contam a história das raposas, uma a uma, jogo a jogo.
Ela sobe na cadeira giratória e abre o computador de Kevin, segurando as bordas com cuidado. Lily não tenta esconder a careta que se forma em seu rosto quando ela vê pela milésima vez as fotos que Kevin escolhe como descanso de fundo. A maioria são lugares históricos, outras são fotos dos quatro, mas a que está na sua frente é só uma foto dele jogando. O ego do homem. Não era atoa que ele não percebia a influência do próprio nome nos outros.
Antes que ela consiga apertar alguma coisa, um par de vozes surge no corredor e Lily se enfia embaixo da mesa, sem se preocupar em fechar o monitor. Ela ouve Neil e Kevin discutindo sobre seus treinos no corredor, passes e jogadores novos que não a interessam. Ela espera os dois descerem as escadas e volta a se sentar. Ela não está fazendo nada de errado, mesmo assim sente que está invadindo um espaço que não é dela. Se esgueirar é quase inevitável.
Lily coloca a senha no computador e abre seu próprio e-mail. Por ser recente, só tinha algumas mensagens de Noah e encaminhamentos da escola. Ela não perde tempo lendo, seu indicador desliza em cima do mousepad e abre os e-mails arquivados, antes que ela consiga abrir, uma notificação aparece no canto da tela
Jackie Davis
[E-mail sem assunto]
Querida Lílian,
Que bom que você escolheu aparecer no jogo hoje. Foi ótimo te rever depois de tanto tempo e ver que não saiu de forma. Depois da sua escapadela três anos atrás, eu tinha certeza que ia ter que te caçar por aí para garantir que você retomasse seu porte físico. É ainda mais satisfatório saber que seu vício facilitou o meu trabalho. Afinal, só você conseguiria caçar Kevin Day do outro lado do país e convencê-lo a adotá-la. Falando nisso, espero que um dia me explique como falsificou tantos documentos para chegar aí. É realmente impressionante que tenha conseguido tudo sozinha.
Fiquei satisfeita com o que vi, mas não pense que pode descansar agora que não estamos mais juntas. Quando seu aniversário chegar, eu vou estar te esperando. A dívida tem que ser paga. E se você pensar em falhar, lembre que eu vou saber onde te encontrar. Você fez questão de tornar tudo bem mais fácil quando decidiu brincar de “papai e filhinha” com uma figura pública.
Tia Jackie
Lily fecha o e-mail depois de ler pelo menos três vezes seguidas. Seu coração quase abafa o som das batidas na porta. Ela arquiva a mensagem e fecha o computador com as mãos tremendo levemente. Kevin não parece perceber, porque ele está com um sorriso cuidadoso no rosto e aponta para fora com o polegar assim que seu olhar cruza com o de Lily.
— O almoço chegou. Você quer comer aqui ou lá na mesa? — o cuidado de Kevin ao formular a pergunta é suficiente para Lily ganhar tempo de afogar o que quer que estivesse sentindo e descer as escadas ao lado dele, na direção da cozinha — Eu não quero ficar brigando com você toda vez que discordamos de alguma coisa, Lils — ele suspira, parando alguns degraus abaixo dela.
— Tudo bem. Não precisamos brigar — ela tenta passar reto ao lado dele, mas o Day usa seu corpo para bloquear a passagem dela. Os dois ficam alguns minutos se encarando, até que o mais velho desiste e a deixa passar.
Kevin tem vontade de bater a cabeça na parede sempre que não sabe o que dizer. Principalmente quando ele tem que admitir que é o problema. Abby, Andrew e até mesmo Neil conseguem lidar com qualquer situação melhor que ele, o que é injusto quando sente que ama mais a garota do que os três juntos. Kevin se senta nas escadas assim que ela o deixa sozinho e se apoia nos cotovelos, respirando fundo. Seu celular vibra no bolso de trás da calça e ele consegue prever a pilha de problemas antes mesmo de verificar a mensagem. A notificação do e-mail não aparece por inteiro, mas ele sabe o conteúdo apenas pela pré-visualização.
- Finance & Enterprise
Atualização de Políticas Internas
O seguinte evento foi atualizado. Confraternização de Associados - Exy Sábado, 28 dezembro, 2024 11:50 AM - 12:30 PM Localidade: NY, 282 Ne…
Kevin quase esfrega o próprio celular no rosto. Ele olha na direção da cozinha e tenta ver se Neil recebeu a mesma coisa, mas só consegue ver o movimento breve dos fios ruivos enquanto Neil tira as embalagens de comida de dentro do pacote. Ele escorrega um degrau e pega impulso para ficar em pé.
︶⊹︶︶୨୧︶︶⊹︶
Lily está fingindo dormir há tanto tempo que acredita ter pego no sono pelo menos três vezes. É o único jeito de evitar a briga inevitável que a espera assim que abrir os olhos. Logo depois de almoçar, Lily havia tomado banho e deitado no sofá. Andrew foi chamá-la para conversar, mas ela fechara os olhos de maneira tão convincente que ele nem tinha pensado em chamar duas vezes.
Os três, então sentaram em sua volta, discutindo novamente os treinos e a viagem de final de ano para Nova Iorque. Lily estava mais animada que os três para o passeio. Seria a primeira vez que veria uma partida de Exy do time da Carolina do Sul e finalmente conheceria o resto das pessoas em suas cartas. Laila, Catalina, Jeremy e Jean. Ela não falava muito da viagem, porque parecia abalar os três de um modo que ela não entendia. Mesmo assim ela gostava de ficar pesquisando lugares para visitar e desenhando os prédios que via nas fotos. Apesar de tudo seria sua primeira viagem com eles, o que só tornavam as coisas mais especiais.
— Bom dia, dorminhoca — Neil afaga os cachos dela e só então Lily percebe que está usando a perna dele como travesseiro. Talvez ela tenha dormido por mais de trinta segundos.
Lily senta no sofá, esfregando as bochechas com a palma das mãos. A cena em sua frente a faz pressionar os lábios e logo desviar o olhar. O sofá da sala é um pequeno “L”. Andrew está sentado na quina, os pés por baixo do próprio quadril e o corpo virado na direção de Neil que está com as pernas cruzadas para ela conseguir ficar deitada, porém virado na direção oposta. Por fim, Kevin está deitado ao lado de Andrew, a cabeça contra seu peito e os dedos do Minyard entre os fios pretos, um carinho lento. O nariz dele está levemente vermelho e entre os três se esconde um pequeno rolo de papel.
Kevin esfrega o rosto com as duas mãos quando a vê se mexer, mas antes que alguém fale mais alguma coisa, Lily dá a volta em Neil e se enfia no pequeno espaço entre ele e Andrew, encostando os joelhos contra o peito. Os três se movem apenas para que ela consiga se arrumar.
— Eu sonhei a minha vida toda em conhecer vocês e agora parece que eu estou estragando tudo — Lily se arrepende automaticamente de ter falado, porque os três começam a se mexer e ela leva duas joelhadas acidentais na costela. Ela se arruma novamente, mas agora Kevin está sentado na ponta do sofá, as pernas de Andrew esticadas atrás dele e Neil com uma das pernas dobradas. Neil e Kevin protestam, mas Andrew só parece aliviado de poder se esticar.
— Lilian, ninguém vai se matar porque você foi grossa por dez minutos — Andrew fala, cortando os dois — Eu sou assim o dia inteiro e você ainda tenta me abraçar quando acha que eu estou triste. Desnecessário, inclusive.
— Lily, ninguém aqui achou que você ia ser tranquila e simpática o dia inteiro. Andrew está certo, eu não vou me matar porque você me chamou de falido — Kevin apoia a mão na perna de Andrew e desliza uma das pernas, encostando o joelho no pé de Lily.
— Então você não estava chorando? — ela coça o nariz e empurra o joelho dele para longe, de um jeito brincalhão.
— Ah, não. Eu estava. Mas eu me achar um lixo como pai não tem nada a ver com a sua performance como filha — ele volta o joelho onde estava antes e quando sente a mão de Andrew em sua cintura, levanta, abrindo espaço para Andrew sair.
Antes de se empurrar para fora do sofá, Andrew respira fundo e segura a cabeça de Lily para beijar seu cabelo. Um tipo de agradecimento pelas vezes que ela achou que um abraço resolveria seu humor arisco. Neil faz o mesmo, pegando a mão dela e beijando a parte da palma, repousando a ponta de seus dedos em sua bochecha, sem se importar com suas cicatrizes. Ele a deixa segurar seu rosto brevemente antes de ir atrás do Minyard na direção da varanda. Algumas conversas devem ser particulares.
Kevin volta a sentar, dessa vez ocupando o lugar de Neil. Ele puxa Lily para perto pelo ombro, deixando que ela ficasse com a cabeça apoiada em seu peito. Ela não conseguia falar alguma coisa. Era a primeira vez que Kevin se referia a ela como filha e a si mesmo como pai e Lily não sabia como se sentir. Na verdade ela sabia, mas estava sendo consumida pela culpa de ter ficado tão feliz com essas palavras, quando seus pais estavam em algum lugar embaixo da terra.
— Nós não precisamos conversar sobre o que aconteceu. Duvido que vamos chegar em alguma conclusão que seja boa para os dois, mas eu sinto muito por não ter te ouvido antes — ele apoia a bochecha no topo da cabeça dela e deixa Lily enrolar os braços ao redor de sua cintura. Tortos e confortáveis — Você precisa me falar se alguma coisa estiver acontecendo, tá bom? — por um momento, Lily se lembra do e-mail e estremece, porém ele continua — Abby e Andrew falaram que você acha que a sua bolsa é mérito nosso. Lily, Wymack mal teve voz na decisão, seu nome apareceu por conta dos tryouts do ano passado. E eles só souberam meu nome no dia da matrícula, porque você é menor de idade e precisa de um responsável. Eu sei que te chamaram hoje pelo marketing, mas a bolsa. Não tem nada a ver com isso. Você ganhou sozinha.
— Verdade? — ela arruma a postura, se afastando um pouco dele — Você não falou com o diretor?
— Falei, mas não sobre você. Ele queria que eu fosse ver o time um dia, apontar algumas coisas, mas eu recusei. Eu não tenho tempo e meu pai me treinou, então ele sabe bem o que faz. E outra, eu não vou me meter no jogo dos outros. Só me interessa o seu — Kevin tira o cabelo dela do rosto e respira fundo — E só o jogo. Eu não quero me meter na sua vida. Suas conquistas são só suas e as minhas são nossas, tá bom?
— Então não preciso mais ir em jogos para marketing?
— Você me entendeu errado. Você precisa e vai. Mas, isso é conversa para outra hora, quando você quiser me xingar de novo. Por agora, eu cansei de ser humilhado — Kevin estica as pernas por cima do sofá e envolve Lily com um dos braços.
— Você não é um lixo como pai — ela murmura em um francês enferrujado, se apoiando nele. Nesse momento, Neil e Andrew voltam para o lado de dentro, ocupando os lugares vazios do sofá — Vocês são ótimos pais. Os três. Eu não mudaria quem vocês são. Amo vocês exatamente desse jeito. Raposas — Lily olha para os três e dá de ombros. Suas Raposas, ela diz em sua mente.
— Você também é uma raposa, Lily. E quando se formar na PSU vai ter uma prateleira de fotos logo ao lado da nossa — Neil sorri imaginativo, mas sua expressão fecha quando Lily fala novamente.
— Ah, não. Eu… — ela limpa a garganta um pouco sem graça — Eu tenho uma vaga reservada na Edgar Allan desde que eu nasci.
FIM.
Notes:
Segunda temporada: não vou especular muito o plot, porque já percebi que vou mudar tudo, mas saibam que
Warriors (musical)/ The Warriors (1979) meets Epic: the musical / The Odyssey
lavi (Guest) on Chapter 1 Sun 26 Sep 2021 01:30AM UTC
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bobofrog64 on Chapter 1 Wed 29 Sep 2021 05:44AM UTC
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lnpneedpeace on Chapter 1 Wed 03 Nov 2021 04:20AM UTC
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omensfoundinalcohol on Chapter 1 Fri 16 May 2025 02:41PM UTC
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NanaMinyard on Chapter 2 Sat 25 Sep 2021 03:50PM UTC
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spacetravelero1 on Chapter 7 Tue 18 Jan 2022 03:28AM UTC
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phiatddm on Chapter 8 Sun 31 Oct 2021 03:20PM UTC
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minyardhell on Chapter 8 Wed 29 Jan 2025 02:55AM UTC
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lnpneedpeace on Chapter 9 Thu 11 Nov 2021 11:52PM UTC
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roszpunka (Guest) on Chapter 10 Wed 29 Jan 2025 09:36PM UTC
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Roszpunka on Chapter 13 Fri 31 Jan 2025 09:02PM UTC
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Ally (Guest) on Chapter 13 Sat 08 Feb 2025 02:35AM UTC
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Roszpunka on Chapter 14 Fri 31 Jan 2025 09:12PM UTC
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Alícia vigor (Guest) on Chapter 14 Tue 04 Feb 2025 03:21PM UTC
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ally (Guest) on Chapter 14 Sat 08 Feb 2025 03:07AM UTC
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