Chapter 1: 01 ── Prólogo
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1 mês antes do capítulo um : Mad Max
Elijah Jones teve que voltar para Hawkins, Indiana após a morte da mãe. Foi um dos primeiros momentos em que sentiu o chão ceder sob seus pés, como se a própria terra quisesse engoli-lo ── e, por um instante, ele desejou que quisesse mesmo. Enterrar-se ao lado dela parecia menos doloroso do que voltar para sua cidade natal sem ela.
O caminho de volta para casa ── ou para o que agora restava dela ── era desconfortável, quase irrespirável. A mudança aconteceu cedo demais, como se o tempo tivesse sido empurrado ladeira abaixo. Ainda não havia se passado três semanas desde que ela morrera, e já partiam da casa ── queimada, calada ── levando os restos do que fora a vida deles, e o que se comprasse às pressas, tentando ocupar os espaços do que se perdeu.
De tempos em tempos, uma pergunta sussurrada ou um diálogo arranhado quebrava o silêncio dentro do carro, apenas para deixá-lo ainda mais denso. As palavras não servem de consolo. Pairavam no ar como fumaça, como cinza ── sem pouso, sem sentido.
Hawkins, Indiana ── 1984, 12 de setembro
De volta à cidade natal, Elias se apresentou na propriedade no banco traseiro do carro, como se o simples gesto de abrir a porta pudesse soltá-lo de um feitiço antigo. Não queria descer ── não ali, não diante daquela casa que um dia chamara de lar. Ainda não tinha vendido aquilo anos atrás? A simples visão da fachada causava arrepios, como se as paredes guardassem sugestões de um passado que ele preferia esquecer.
Ainda na mesma semana, ele teria que enfrentar a Hawkins Middle School ── seu primeiro dia numa escola onde todos já sabiam seus lugares. Ele seria o novo, o deslocado, o que chegou tarde demais. Incrível, pensado, com um misto de ironia e resignação.
Durante uma tarefa repetitiva de carregar caixas para dentro de casa, a irmã mais velha fez um passeio pela cidade com os dois irmãos. Haviam se passados cinco anos desde que aquele deixou lugar para trás ── quem sabe o tempo não o tinha transformado? Mas isso é um pouco importante agora. Já estavam no carro, afastando-se da casa e do pai que ficava à porta, enquanto as ruas familiares se abriam diante deles como um velho filme empoeirado.
Do lado de dentro, os olhos grudados na janela captavam fragmentos de vida: passantes apressados, garotos pedalando sob o sol da manhã da tarde... Tudo parecia inalterado, como se o tempo tivesse apenas cochilado em silêncio.
── Não mudou tanto assim! Apenas umas coisas ali e aqui.. Vocês não acham? ── murmurou Evellyn, a irmã, com um sorriso tênue, como se suas palavras fossem uma tentativa de convencer a si mesma.
Em resposta à irmã, o garoto do meio, Adam, limitou-se a um leve cantarolar, como se suas palavras fossem levadas pelo vento. Não era preciso dizer nada ── ele estava tão à vontade, ou tão alheio, quanto Elias no banco de trás. Ambas perguntaram enviar o mesmo desejo silencioso: aquele abandonar passeio e se jogar nos colchões improvisados que, por ora, fizeram as vezes de camas. Seriam seus refúgios até que as decorações se erguessem e um quarto, de fato, existisse.
── Podemos ir para casa? Já vimos a cidade toda. Não aguento mais ficar aqui dentro ── resmungou Elias, afundando no assento, os olhos exaustos de seguir, pela milésima vez, ou vai e vem de desconhecidos pela calçada.
A cidade, antes envolta em uma névoa de curiosidade, agora parecia apenas um cenário enfadonho. Gente indo, gente vinda, mochilas pendentes dos ombros, estudantes retornando da escola como sombras de uma rotina que ele conhecia bem demais.
Tudo o que Elijah queria, no fundo, era deixar aquele garoto de cabelos desgrenhados e pontas de queimadas ── ele mesmo ── voltar para casa e apodrecer em seu quarto, à espera do dia seguinte... e do retorno ao inferno escolar.
1984, 14 de setembro
Primeiro dia de aula ── e, para infelicidade de Elias, ainda longe de ser o último. Enquanto caminhava rumo ao prédio escolar, murmurava preces silenciosas a Deus, ou a qualquer entidade que porventura estivesse ouvindo, pedindo apenas uma coisa: que aquele ano não fosse um tédio completo.
Logo ao atravessar a entrada principal, deu de cara com o diretor da escola, que o aguardava pessoalmente. Aquilo, definitivamente, não era um bom sinal. Os olhares invejados dos alunos que passavam em grupos rumo às suas salas só tornavam tudo ainda mais desconfortável. Elijah era o estranho no ninho ── o novo, o deslocado, o alvo fácil.
Para piorar, teria de ser escoltado até a sala pelo próprio diretor. Talvez fosse um protocolo para aqueles que atrasaram no calendário escolar? O homem seguiu ao lado do garoto pelo extenso corredor, até parar diante de uma porta entreaberta. Era ali, ao que tudo indicava, que Elias passaria nas próximas semanas, talvez meses. Sr. Clarke, o professor responsável pela disciplina de Ciências.
Com um gesto gentil, embora um tanto imposto, o diretor pousou a mão nas costas de Elijah e o impulsionou suavemente para dentro da sala. Para o garoto, aquilo pareceu um empurrão ── discreto, mas indelicado. Ainda assim, não havia muito o que fazer.
── Ah, esse aí deve ser o nosso novo aluno, certo? ── disse o Sr. Clarke, erguendo os olhos do quadro e lançando um olhar curioso para o garoto e o diretor à porta.
──É sim. Todo seu ── disse o diretor, acenando brevemente para o Sr. Clarke antes de sair pela porta, deixando Elijah sozinho, à mercê de uma sala cheia de olhares curiosos. Estar ali, de pé diante de desconhecidos, era exatamente o que ele não queria.
── Tudo bem... ── murmurou Sr. Clarke, com uma risada nervosa escapando pelos lábios. Seu olhar percorreu a sala até coberta em um garoto na primeira fileira, de bonés e cabelos cacheados. Fez um gesto leve em sua direção e forçou um sorriso. ── Dustin, rufem os tambores, por favor.
Naquele instante, Elijah sentiu-se como se estivesse prestes a ter uma alma sugada pela atmosfera desconfortável da sala.
O garoto ── que, aparentemente, era Dustin ── fechou o livro à sua frente com um estelo e começou a bater na mesa como se tocasse uma bateria imaginária.
── Turma, por favor, considere como boas-vindas ao nosso mais novo passageiro, vindo diretamente do Colorado, que agora embarca nesta grande viagem chamada curiosidade... ── anunciada, com uma teatralidade estranhamente improvisada. Dava para notar que Elijah cometeu tudo aquilo um tanto... esquisito. Como seriam as aulas com aquele professor?
── Elijah! ── finalizou, fazendo um gesto exagerado com as mãos, quase como um espetáculo de circo. O nome ecoou pela sala no exato momento em que a batucada cessava.
Elijah apenas franziu a testa, desconcertado. Seus olhos passearam pelos rostos diante dele. Tudo o que queria naquele instante era encontrar um lugar, se encolher e desaparecer.
Reconheceu alguns rostos ── talvez fossem os mesmos garotos que viram de bicicleta durante o passeio pela cidade. Ou talvez fosse apenas impressão. Coisa da sua cabeça.
Encontrou, enfim, uma carteira vaga. Não era nem na frente, nem no fundo. Perfeito. Sentou-se ali mesmo, como aquele assento representasse uma trégua ── por menor que fosse ── naquele começo de tormenta.
Recreio. Finalmente. Um sopro de paz depois de horas arrastadas. Mas, antes de alcançar o ar fresco lá fora, Elias ainda atravessava o corredor ── um túnel barulhento, povoado por vozes altas, passos apressados e olhares que escaneavam tudo. Ele odiava aquilo.
Passou por entre os grupos com os ombros encolhidos e o olhar preso ao chão. O sanduíche meio amassado, escondido no bolso do casaco, era um lembrete de que ninguém acordava cedo o bastante para prepará-lo. Sem orgulho, mas com bastante fome.
Já quase fora do prédio, esbarrou em alguém ── leve, como se tivesse encostado numa cortina.
── Foi mal ── murmurou, levantando os olhos por reflexo.
Do outro lado, um garoto franzino o observava com surpresa e gentileza. Tinha o cabelo castanho escuro, liso e caindo perto dos olhos, e uma expressão silenciosa, como se estivesse sempre prestes a desaparecer.
── Tudo bem ── respondeu o garoto com um sorriso quase tímido. ── Ei.. Você é novo, né?
Elijah concordou, um pouco sem jeito.
── Sou o Will... Will Byers.
O nome soava familiar. Talvez sussurrado nos corredores, talvez considerado em voz baixa pelos professores. Mas havia algo mais ── um peso invisível sobre aquele garoto, algo que Elijah reconheceu.
── Elijah. Elijah Jones.
Ficaram em silêncio por um instante, num daqueles momentos em que o mundo parece dar uma trégua.
── Tá indo lá pra fora? ── Disse Will, apontando com a cabeça em direção à porta.
── É. Eu é esse glorioso sanduíche de presunto e caos ── disse Elijah, tirando o lanche do bolso e erguendo-o como um troféu de fracasso.
Vai riu baixinho.
── Quer sentar com a gente? Meus amigos ficam sempre perto da cerca, ao lado da quadra. Eles são... meio esquisitos. Mas não bom sentido.
Elijah hesitou. Mas esquisitos no bom sentido pareciam, de algum modo, certo.
── Por que não?
Saíram juntos para o pátio. O céu nublado de Hawkins parecia mais baixo que o normal, o ar úmido carregando o cheiro de folhas e coisa alguma indefinida ── um eco no vento. Mas, por ora, tudo parecia suportável.
O pátio era uma colcha de filhos: gargalhadas, mochilas sendo arrastadas, bolas quicando sem concreto. Elijah silêncio Will em silêncio, desviando de pessoas como se fosse um intruso num mundo que não lhe pertencia.
Perto da cerca enferrujada, um grupo se destacou. Não por serem populares, mas pelo modo como existiam juntos, como se compartilhassem algo invisível.
Will acenou. Três garotos levantaram os olhos.
O primeiro ── de cabelo castanho claro e um sorriso tão refinado quanto seus comentários ── foi quem falou:
── Ei, Will! Esse aí não é o novato?
── É. Elijah. Ele entrou na nossa sala, veio do Colorado ── disse Will, se voltando para ele com um pequeno incentivo no olhar.
── Colorado? Montanhas, ursos e tudo mais? Já viu um urso por perto? — brincou o garoto, estendendo a mão. ── Dustin.
Elijah apertou a mão dele.
── Não. Mas vi meu vizinho tropeçar pelado no gelo. Acho que isso é conta.
Dustin caiu na risada, visivelmente satisfeito.
── Ganhou pontos ── comentou o garoto mais alto, cabelos escuros e olhos que observam o mundo com intensidade constante. ── Mike. Bem-vindo.
Mike disse as palavras como um cumprimento automático. Havia algo contido ali, como quem observa antes de se aproximar.
Elijah apenas concordou.
O terceiro garoto ── de postura firme, cabelo raspado e olhar desconfiado ── cruzou os braços. Será adiantou:
── Esse é o Lucas. Ele demora um pouco pra se acostumar com gente nova. Mas quando se acostuma... boa sorte, ele vai implicar contigo pra sempre.
── Só implico com quem vale o esforço ── disse Lucas, sem sorrir, mas com um brilho irônico nos olhos.
Elijah soltou uma risada curta. Não era bem acessível, mas era o início de alguma coisa.
Sentaram-se junto à cerca, os outros retomando uma conversa sobre filmes de ação que Elijah tentou acompanhar. Havia uma linguagem própria entre eles ── frases truncadas, piadas internas, códigos que ainda eram indecifráveis. Mas Will, sentado ao seu lado, ocasionalmente traduzia com olhares ou comentários murmurados.
── Eles são um pouco caóticos ── disse Will, em tom baixo. ── Mas são os melhores.
Elijah mordeu o sanduíche e assentiu.
── Percebi.
Por um momento, tudo parecia calmo. Ninguém sumia, ninguém gritava. As sombras não estavam em lugar.
Mas o silêncio dele era inquieto.
O sinal da última aula soou como um suspiro coletivo. Elijah guardava os livros devagar, sem pressa de voltar para casa. As caixas ainda fechadas no quarto pareciam pesadas demais para mexer.
Will apareceu ao lado, silencioso como sempre.
── Vai direto pra casa?
── Bem.. Acho que sim.
Caminharam juntos pela saída lateral. As árvores ao redor balançavam sob a brisa fria, sussurrando como se soubessem mais do que deveriam.
Depois de um tempo, Will falou:
── Você não gosta muito daqui, né?
Não era julgamento. Era constatação.
Elijah chutou uma pedra e deu de ombros.
── Não é isso. É só que... tudo aqui é quieto demais. Mas não do jeito bom.
Will olhou para ele, atento. Seus olhos, profundos e melancólicos, pareciam entender mais do que dizia.
── Como se tivesse alguma coisa... debaixo da superfície?
Elijah parou, encarando-o por um segundo mais longo.
── Exatamente isso.
Will mordeu o lábio inferior, pensativo. Depois disse, baixo:
── Você não tá errado.
E naquele silêncio, os dois se entenderam. Sem muitas palavras, sem garantias. Mas com algo compartilhado. Um pressentimento. Uma cicatriz parecida.
O céu de Hawkins já havia mergulhado num azul profundo quando Elijah seguiu a pé para casa. O frio começava a morder as pontas dos dedos e o vento assobiava por entre as árvores, carregando o cheiro metálico da cidade ── asfalto, folhas secas, lembranças queimadas.
O caminho era curto, mas o silêncio fazia parecer mais longo. Um silêncio que, para ele, nunca era apenas silêncio.
À distância, via as luzes acesas da casa velha que agora chamavam de lar. Uma estrutura modesta, com a pintura descascando e um alpendre de madeira que rangia a cada passo. Mas por dentro, ainda cheirava a papelão, mofo e memórias que não lhe pertenciam.
A porta da frente estava encostada. Elijah empurrou devagar, entrando em um ambiente morno, iluminado apenas pelas luzes fracas da cozinha. Adam estava no sofá, controlando a TV com preguiça, e Evellyn, sentada ao lado, rabiscava algo num caderno.
── Opa, o andarilho voltou ── disse Adam, sem desviar os olhos da tela.
── Sobreviveu ao primeiro dia? ── perguntou Evellyn, erguendo uma sobrancelha.
── Ainda tô decidindo se vale a pena ── respondeu Elijah, jogando a mochila ao pé da escada.
A casa exalava uma quietude desconfortável. O tipo de silêncio que vinha não da paz, mas da ausência. O pai não estava ── o que não era surpresa. Provavelmente ainda preso no trabalho, ou trancado no quarto com os próprios fantasmas. Elijah mal se lembrava da última vez que trocaram mais do que duas frases sem que o ar entre eles parecesse pesado demais.
Subiu as escadas devagar, sentindo o piso ranger sob seus pés. O quarto ainda estava em transição ── colchão no chão, caixas encostadas nas paredes, algumas roupas espalhadas como se recusassem a criar raízes ali. Mas havia uma coisa que era só dele: a janela. Alta, com vista para o bosque atrás da casa. O mesmo bosque onde, às vezes, ele jurava ver algo se mover quando todos dormiam.
Sentou-se na beira do colchão. O sanduíche meio comido ainda estava no bolso da jaqueta. Jogou-o na lixeira.
Fechou os olhos.
No escuro, Elijah não via apenas lembranças.
Via fumaça.
Via chamas.
E via ela.
E naquele momento, senti como se pudesse sentir algo queimando dentro de si. Algo que saiu do controle.
Abra os olhos, ofegante. O ar no quarto parecia mais quente. As pontas dos dedos latejavam. E a lâmpada do teto ── brilhava mais forte.
── Não agora ── sussurrou.
Se disse e foi até a janela. Olhou lá fora.
O bosque estava quieto. Mas, por um instante, ele pensou ter visto algo entre as árvores. Não há sombra. Não é um animal.
Algo... parecido com ele.
Ou com o que ele costumava ser.
No andar de baixo, Evellyn riu de algo que Adam disse.
E naquele momento, Elijah encontrou um ponto de ancoragem. Por mais que houvesse um mundo inteiro tentando puxá-lo de volta para o que veio antes, ele não estava sozinho agora.
Mas sabia, com a mesma certeza que sentiu o calor na palma das mãos, que o passado ainda o espreitava. E que Hawkins — essa cidade sufocada de segredos — não o deixaria esquecer disso.
Já era hora de dormir.
Chapter 2: 02 ── Aquilo que queima por dentro
Notes:
Prevê aviso antes da leitura do capítulo!!
Esse capítulo contêm pequenas cenas de Bullying e de luto.
Eu to com muita vontade de ir mais pra frente no tempo pra chegar logo no primeiro EP da segunda temporada. Quero escrever sobre a Max logo e todas as coisas estranhas que estão por vim.
Dito isso, boa leitura!
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1 mês antes do capítulo um : Mad Max
1984, 18 de setembro
O fogo vinha primeiro.
Chamas lambendo paredes que não existiam, corredores que se dobravam sobre si mesmos. O chão tremia, e Elijah corria sem saber de quem ou de quê. A fumaça era espessa, viva. As vozes não tinham rostos. Apenas ecos:
── Elijah...
Uma silhueta surgia através da fumaça, braços abertos, contornos femininos. Mas o rosto... sempre desfocado. Sempre longe.
E no fim, sempre aquilo. A sensação de estar sendo observado. Como se algo estivesse logo atrás dele, prestes a tocá-lo.
Ele acordou ofegante.
O quarto estava escuro, mas não frio. O ar estava pesado, abafado. O lençol grudava na pele. Quando encostou a mão no rosto, ela estava quente demais ── como se tivesse dormido com febre. E, por um instante, jurou sentir cheiro de fumaça.
Era o terceiro sonho em uma semana.
E cada vez, aquilo queimava mais fundo.
Elijah ficou parado na porta do seu novo quarto, os olhos percorrendo as bordas das caixas ainda meio fechadas e o contorno de uma fotografia colada na parede. O ar tinha um cheiro leve de poeira e algo mais antigo — como memórias esperando para se acomodar de novo. Ele passou a mão pela mesa de madeira gasta, a superfície fria e áspera sob os dedos.
Lá fora, o vento empurrava contra as janelas, fazendo os vidros tilintarem com uma insistência silenciosa. A casa parecia grande demais, vazia demais. Em algum lugar além das paredes, ele achou que ouviu um rangido suave, como se a própria casa estivesse se ajeitando — ou talvez fosse outra coisa.
Lá embaixo, vozes murmuravam — o tom grave de Adam, a risada cortante de Evellyn —, mas soavam distantes, como se viessem por uma névoa grossa. Elijah engoliu em seco, tentando agarrar a sensação de que talvez, só talvez, aquele lugar ainda pudesse ser um lar.
Ele se jogou na cama, o colchão afundando sob seu peso. O olhar se fixou na foto colada na parede: uma mulher sorridente, com olhos cheios demais de luz, cheios demais de esperança. Por um instante, Elijah estendeu a mão, como se pudesse tocar o passado através do vidro.
No café da manhã, a conversa foi educada, mas curta. Adam falava em frases curtas, Evellyn preenchia o silêncio com uma energia nervosa. Elijah comeu devagar, o gosto dos ovos sem graça na boca.
Na escola, as coisas não estavam exatamente fáceis... mas estavam diferentes.
Dustin falava demais, Lucas sempre discutia com ele, Mike era intenso.. E distante? Mas Will era diferente. Não forçava perguntas. Não esperava respostas. Simplesmente... estava ali.
Mais tarde, os corredores da Hawkins Middle School o engoliram inteiro. As conversas, os passos apressados, as risadas repentinas — tudo parecia alto demais, rápido demais. Elijah se movimentava quieto, tomando cuidado para ficar nas bordas.
Ele viu Will perto do armário, sozinho no meio do caos. Os olhos deles se encontraram por um instante, um lampejo de reconhecimento, talvez de entendimento. Will assentiu uma vez, um cumprimento silencioso.
Entre as aulas, Elijah ouviu pedaços de conversa, vozes como ondas que quebram e recuam. Captou palavras — festa, feira de ciências, noite de jogos —, mas nenhuma delas o alcançou de verdade.
Era a terceira aula, ou talvez já fosse a quarta. O tempo, ali, não era bem-vindo.
A biblioteca respirava poeira e silêncio. Não o silêncio vazio das manhãs preguiçosas, mas um silêncio carregado, como se as paredes tivessem testemunhado segredos demais e agora repousassem sobre eles. A luz entrava filtrada pelas janelas altas, quebrada pelas linhas tortas das persianas, pousando sobre os livros como se tivesse medo de perturbar o lugar.
Will estava sentado no chão, encostado entre duas estantes esquecidas. O caderno aberto no colo e o lápis entre os dedos dançavam numa coreografia que não exigia pressa ── desenhava como quem procura sentido nos contornos. Traços escuros, hesitantes, profundos. Criaturas que talvez vivessem só dentro dele... ou em algum lugar mais real do que gostava de admitir.
Do outro lado da sala, Elijah se encolhia sob o próprio moletom, como se o tecido pudesse protegê-lo do mundo. Os joelhos contra o peito, os olhos vagando por entre as rachaduras da parede. Tinha o ar de quem carrega perguntas demais para tão pouca idade ── e respostas que queimam antes de se tornarem palavras.
A voz de Will cortou o ar como um fio de fumaça.
── Você desenha?
Elijah demorou a responder, como se o verbo pesasse mais do que devia.
— Não. Já tentei... mas sempre sai errado. Meio... distorcido. Como se minha mão não soubesse o que minha cabeça sente.
Will assentiu levemente, sem ironia, sem julgamento. Apenas entendimento.
── Às vezes o que sai torto é o mais verdadeiro.
Elijah deu um sorriso de um lado só, sem humor. Aquele tipo de sorriso que vem depois de muita coisa engolida.
── É, bom... tenta dizer isso pra minha professora de artes. Acho que ela me deu um trauma com giz de cera. ── falou em um tom sarcástico
Will ri baixinho. É um som raro, quase secreto. Elijah parece um pouco surpreso ── e talvez, só talvez, um pouco satisfeito por tê-lo feito rir.
Will virou o caderno em silêncio, oferecendo o desenho. Elijah hesitou por um instante, depois se levantou devagar, como se temesse quebrar o chão, se abaixa ao lado de Will, os ombros quase se tocando. Olhou.
A criatura no papel era feita de sombra e ausência. Altiva, com olhos sem cor e mãos que se desmanchavam como fumaça. Um monstro, talvez.
── É bonito.. Mas assustador ── murmurou Elijah. ── E um pouco.. Solitário.
Will não respondeu de imediato. Seus olhos, fundos e calmos, permaneceram sobre o desenho.
── Às vezes acho que eles só querem ser ouvidos. Mesmo quando ninguém quer escutar.
Elijah encostou a cabeça na parede, o olhar distante.
── Ou talvez... só queiram sumir. Mas do jeito certo. Sem barulho. Sem alarde.
Um silêncio denso se seguiu. E, nele, nenhuma urgência. Apenas dois garotos que, por um instante, não precisavam fingir que estavam bem.
Elijah olhou mais perto, se aproximou. Esperava não está tão perto e invadisse o espaço do outro. ── Ou talvez.. Ele não saiba o que fazer com o que sente. ── murmurou ── Tem gente que explode. Gente que implode..... Gente que incendeia tudo.
Will olha pra ele, com aquele olhar quieto e gentil que não força perguntas. Ele não entende tudo — mas entende o suficiente.
── Você é tipo isso?
── Não sei o que eu sou.
O relógio da biblioteca faz um "tic". E depois outro. A terceira aula começa, em algum lugar longe demais pra importar.
── A gente perdeu a aula? ── Will perguntou. Suave.
Elijah, sem olhar para ele, disse ── Provavelmente. E a próxima também, se a gente continuar aqui. ── Will deu de ombros, quase como uma decisão que tomou por impulso.
── Talvez a gente precise disso mais do que de química hoje.
Elijah sorri, pequeno, como se isso doesse um pouco. Ele olha ao redor ── livros empoeirados, uma luz cinza filtrada pela janela, e o som da escola vivendo sem eles.
── Você sempre foi assim? ── Elijah perguntou, quase como quem teme a resposta.
── Assim como? — devolveu Will.
── Quieto. Gentil com o silêncio.
Will olhou para o teto como se procurasse palavras entre as telhas.
── Depois do ano passado, eu começei a não gosta do barulho. Me dava dor de cabeça. Ainda dá, às vezes. ── Ele parou por um minuto ── Então eu aprendi a ficar onde é calmo. Onde dá pra respirar.
Elijah fechou os olhos por um instante. Respirou fundo, como se quisesse guardar aquele momento em algum lugar seguro da memória.
── Você é estranho, Will.
── Você também, Elijah.
O tempo se arrastava como poeira ao vento. O som do mundo lá fora — passos, campainhas, risadas abafadas ── parecia longínquo, quase irreal.
E então vieram os passos.
Firmes, impacientes. Aproximando-se rápido. Elijah se encolheu sem perceber, o corpo enrijecido como quem espera a explosão. A maçaneta girou com força.
A porta se abriu com um rangido seco.
Sr. Clarke surgiu com a expressão de quem esperava encontrar bagunça e encontrou, em vez disso, algo que não soube nomear.
── Will? Elijah?
Os dois se levantaram instintivamente. Havia uma vergonha muda em seus rostos, como se tivessem sido apanhados roubando silêncio.
── Vocês estão aqui desde quando?
Will hesitou, depois falou, calmo:
── Desde a segunda aula. A gente... só perdeu a noção do tempo.
Sr. Clarke os encarou por alguns segundos. O olhar pousou no caderno aberto, nos traços sombrios, nas mãos inquietas de Elijah. Respirou fundo.
── Isso vai pra diretoria, vocês sabem.
Elijah abaixou a cabeça, os olhos no chão.
── A gente só queria um lugar quieto.
Houve um instante em que o professor pareceu ver. Não entender completamente, mas... vislumbrar. Como alguém que avista uma sombra entre as árvores e sabe que há mais do que olhos alcançam.
── Só avisem da próxima vez. ── disse por fim, mais suave. ── Não quero achar vocês sumidos de novo.
Fechou a porta devagar. E o silêncio voltou. Dessa vez, menos leve.
── Acha que ele entendeu? ── perguntou Elijah, ainda olhando para a porta.
── Não tudo ── respondeu Will. ── Mas o suficiente.
Eles se sentaram de novo. As vozes do mundo os chamavam do outro lado da parede, mas ali, por mais alguns minutos, o tempo se esqueceu deles.
E quando Will voltou a desenhar, Elijah observou em silêncio. Dessa vez, mais perto.
O silêncio pode ser abrigo. Mas também é uma porta trancada por dentro.
Depois que o professor saiu, não houve pressa.
Will continuou desenhando com a mesma calma delicada de antes, mas seus traços estavam mais soltos agora ── como se algo dentro dele tivesse sido destravado. Elijah o observava com atenção silenciosa, as mãos ainda meio escondidas dentro do moletom, como se não confiasse nelas.
Quando decidiram sair, os corredores estavam quase vazios. A terceira aula já caminhava para o fim, e o som abafado das vozes nas salas fechadas soava como um mundo do qual estavam temporariamente exilados.
Elijah andava um pouco atrás de Will, os ombros curvados, o olhar inquieto. Sentia-se... fora de si. Não pelo tempo que haviam passado escondidos, mas porque aquele silêncio, aquela troca, aquela calma... tinha aberto alguma coisa. Como uma porta que ele costumava manter bem trancada.
A calma também doía. Porque era rara. Porque era perigosa.
Will lançou-lhe um olhar de canto quando viraram o corredor principal, onde o sol batia com força contra os azulejos desbotados.
── Quer que a gente finja que se perdeu ou que foi chamado na enfermaria?
Elijah ergueu uma sobrancelha. ── Qual versão você acha mais convincente?
Will deu um meio sorriso.
Mas antes que pudessem chegar à sala, a porta se abriu. E de dentro, um rosto os esperava com braços cruzados e a expressão de quem já decidira não acreditar em nada que dissessem.
Sr. Patterson. Professor de química. Alto, impaciente, com a voz sempre num tom acima do necessário.
── Ah, que ótimo. As estrelas do dia. Onde estavam, Jones e Byers? ── A voz saiu com escárnio, para que todos ouvissem.
Alguns alunos se viraram. Um deles riu.
Elijah congelou. Não pelo sarcasmo. Mas pela risada. Alta. Debochada. Como uma faca sendo girada.
O barulho atravessou seus ouvidos como uma explosão. Seus olhos piscaram rápido. O mundo ficou mais claro por um segundo — claro demais.
Will, ao lado, sentiu. Viu o corpo de Elijah enrijecer, como se estivesse segurando algo por dentro.
── Nós.. Tínhamos permissão, senhor ── Will tentou, educado. Mas o professor já estava de costas, jogando por cima do ombro:
── Claro que tinham. Entrem. Vamos ver se conseguem pelo menos fingir que prestam atenção hoje. Vou voltar daqui alguns minutos ── O professor disse, saindo da sala de aula. Talvez tinha algo pra fazer lá fora?
Elijah não se mexeu. O sangue pulsava nas têmporas. O barulho ainda ecoava — a risada, a porta batendo, o tom sarcástico.
Ele tentou respirar. Tentou mesmo. Já estava andando sem perceber, indo pro seu respectivo lugar.
Mas então veio outro comentário, de algum garoto ao fundo:
── "Talvez eles estivessem namorando no depósito..."
Mais risos.
O som entrou nos ouvidos e foi direto ao peito, onde o calor crescia como uma fogueira mal contida. Elijah fechou os olhos.
E então ── estalo.
A lâmpada acima da porta começou a brilhar mais do que de costume.
E depois explodiu.
Vidros estouraram com um pop seco, espalhando estilhaços miúdos no chão encerado. Um grito ao fundo. O corredor inteiro ficou em silêncio.
Will se virou para Elijah, rápido. Os olhos do garoto estavam arregalados. Assustados. Não com os outros ── com si mesmo. Um líquido vermelho saia do seu nariz. Sangue. Isso não deveria ter acontecido, mesmo se tivesse sido acertado pelos cacos de vidro, certo?
── Elijah... ── Will disse baixo. Um sussurro.
Mas Elijah já estava recuando um passo. As mãos cerradas dentro das mangas. O antebraço servindo como lenço pra limpar o nariz. O ar ao redor dele parecia... mais quente. Levemente ondulado, como num dia de verão, embora o corredor estivesse frio.
Sr. Patterson entro na sala com os olhos arregalados. Ele deveria ter ouvido?
── O que foi isso?! Alguém viu? Foi você?
Os olhares se voltaram para Elijah.
Ele não respondeu. Só estava ali. Exposto. Aberto. E pela primeira vez, em muito tempo, visível demais.
Will deu um passo à frente. Não disse nada, mas se colocou ao lado dele. Era um gesto pequeno, mas cheio de peso.
Elijah queria correr. Parte dele precisava correr.
Mas, por algum motivo ── talvez por Will, talvez pelo susto, talvez pelo cansaço de fugir ──, ficou.
Sr. Patterson olhou para ambos, depois para a lâmpada destruída.
── Direção. Agora.
Will assentiu. Elijah não se mexeu.
── Elijah? — Will disse baixo.
Os olhos dele finalmente se moveram. Encontraram os de Will.
E então, sem dizer nada, Elijah andou. Como quem pisa em cacos invisíveis. Como quem sabe que algo dentro de si está rachando ── e já não sabe como esconder as frestas.
Naquela noite, seu pai chegou em casa batendo a porta com força demais.
Elijah estava na sala, mexendo numa fita cassete velha que pegara com Dustin. O pai entrou já falando:
— A escola ligou. Faltou duas aulas hoje.
Elijah continuou mexendo na fita, sem olhar pra ele.
— Tem alguma coisa errada, Elijah?
Nada. Silêncio.
— Você não fala com ninguém. Quase não come. E agora isso... Você precisa parar de agir como se o mundo inteiro fosse culpado.
Elijah levantou os olhos. A voz saiu baixa, mas carregada.
— E você precisa parar de agir como se ela nunca tivesse existido.
Silêncio. Um tipo de silêncio que cortava.
— Chega. Não vou discutir.
— Claro. Você nunca discute. Você só some.
Foi rápido.
A lâmpada da sala começou a brilhar mais forte
A luz se apagou. E por um segundo, só havia a respiração de Elijah, rápida, descompassada.
Na parede, o quadro da mãe deles começou a escurecer nas bordas. Um círculo de queima lenta se espalhava ao redor do porta-retrato. O cheiro de fumaça era real agora.
— Elijah...? — Deu um passo à frente, mas o garoto recuou.
Ele fugiu pro andar de cima. Se trancou no quarto. As mãos tremiam. O ar parecia pesar toneladas.
Mas antes que pudesse respirar fundo, ouviu um som vindo da janela.
1984, 2 de outubro
Fazia semanas desde a explosão da lâmpada no corredor. Desde o vidro estalando no teto como uma ameaça. Desde aquele brilho quente por trás dos olhos que Elijah ainda fingia não sentir.
Só que ele sentia.
Sentia o tempo todo.
A temperatura ao redor dele parecia... errada. Nas manhãs, o vapor do chuveiro demorava mais pra ir embora do espelho. Os cobertores pareciam transpirar calor mesmo com a janela aberta. Às vezes, quando ele tocava a maçaneta do quarto, ela parecia quente demais ── como se tivesse ficado horas ao sol. Mesmo nos dias frios de Hawkins.
Elijah fingia não notar.
Fingia tão bem que quase acreditava.
Mas o mundo à volta começava a denunciá-lo.
E talvez. Só talvez, a mudança de temperatura estivesse fazendo seu nariz sangrar mais no passa dos dias? Quem ele queria enganar.
Ele limpava o sangue rápido, antes que Evellyn visse.
Nos primeiros dias, achou que era coincidência. Cansaço. Pressão baixa. Mas agora, já não parecia só isso. O sangue vinha como um lembrete ── pequeno, insistente ── de que alguma coisa estava errada. Dentro dele. Ao redor. Na própria casa, talvez.
Na escola, fingia normalidade. Passava pelos corredores como um fantasma bem comportado, sem deixar rastros. Mantinha o capuz abaixado, o olhar distante, e os fones de ouvido sempre no volume mínimo ── só o bastante pra abafar o barulho do mundo. As vozes dos outros pareciam sempre altas demais, vivas demais. Eram como luzes fluorescentes rangendo sobre a pele. E ele... ele só queria ficar invisível.
Mas até isso começava a falhar.
No último ensaio de ciências, a lâmpada do projetor piscou três vezes antes de estourar. Todo mundo achou que era velha. E Elijah fingiu rir junto. Mas ele sabia. Sentiu o calor roçar a nuca segundos antes do estalo. Sentiu aquela pressão no peito ── como se o ar ficasse pesado demais, denso demais pra um pulmão de treze anos.
Will foi o único que olhou pra ele tempo demais.
Não disse nada. Só olhou.
Mas o olhar de Will Byers era como silêncio preso num frasco. Dizia tudo sem dizer nada.
Desde então, Elijah evitava passar muito perto dele. Evitava ficar sozinho na biblioteca, no refeitório, nos corredores entre uma aula e outra. Ainda não confiava em ninguém. Ainda não sabia se podia confiar. E havia algo nos olhos de Will que o deixava exposto. Como se ele visse mais do que deveria. Mais do que era seguro.
1984, 3 de outubro
Na manhã de quarta, Elijah saiu de casa mais cedo.
Vestiu o casaco azul desbotado, amarrou os cadarços dos patins com força demais, e desceu a calçada com a respiração presa na garganta. O frio cortava a pele como uma promessa de silêncio. E ele se agarrou àquilo ── ao barulho das rodas no asfalto, ao vento no rosto, à sensação quase boa de se mover rápido demais pra pensar.
Hawkins parecia mais vazia quando vista sobre rodas.
As casas passavam como lembranças desbotadas. As cercas de madeira. As caixas de correio tortas. Os postes com lâmpadas queimadas. Tudo parecia carregado de uma estranheza familiar. Como se o mundo inteiro estivesse em pausa, esperando que algo ── ou alguém ── quebrasse o silêncio.
E por um instante, Elijah quis queimar tudo.
Só pra ver o que aconteceria. Só pra não sentir mais aquilo.
A coisa quente atrás dos olhos.
O zunido agudo dentro da cabeça.
A lembrança de uma noite que ele não conseguia esquecer, por mais que tentasse. As chamas. O cheiro de fumaça. O som abafado de gritos que talvez fossem dele mesmo ── ou da mãe, ele nunca soube distinguir.
Mas não. Ele não ia pensar naquilo.
Ainda não.
A escola apareceu no horizonte como uma prisão pintada de bege. E por um segundo, Elijah quase voltou.
Quase girou os patins e foi embora, sem olhar pra trás.
Mas Evellyn ia perceber. Adam também. E o pai... bom, talvez nem notasse.
Então ele seguiu. Engoliu o medo como se fosse saliva amarga, passou pela entrada lateral, e parou os patins bem na calçada, ao lado da grade velha. Retirou-os com os dedos frios e trocou pelos tênis gastos que trazia na mochila. O ar estava mais quente ali, mais pesado. Mas ele fingiu não notar.
Assim como fingiu não ver Will, encostado no tronco de uma árvore, o olhar fixo nele.
Como se já soubesse o que Elijah não ousava dizer.
Will não se moveu quando Elijah se aproximou.
Ficou ali, encostado na árvore, com a mochila pendurada num ombro só e os olhos escuros presos nele como se observasse um animal arisco. Elijah desviou o olhar, fingiu amarrar o tênis. Mas sabia que não ia adiantar.
Will era como ele.
Talvez não nessas coisas ── talvez nem um pouco ──, mas no silêncio. Na maneira de sentir demais e dizer pouco.
── Ei ── disse Will, baixo, como se não quisesse assustá-lo.
Elijah respondeu com um aceno quase invisível, puxando a alça da mochila com força.
── Você viu o que aconteceu com o projetor, né?
Ele congelou.
── Que... que projetor? ── a voz saiu baixa, tensa.
Will ergueu uma sobrancelha, paciente.
── O da aula de ciências. Terça. A lâmpada não queimou. Você sabe disso. E eu também.
O coração de Elijah deu um salto que ele fingiu ignorar. Estava ficando cansado de fingir. Mas não sabia fazer outra coisa. O que ele diria? "Sim, fui eu, mas não quero que seja. É como queimar sem querer"?
── Deve ter sido coincidência ── respondeu, dando de ombros. ── As coisas aqui sempre quebram.
Will não retrucou. Não apertou. Só observou.
Por um instante longo, Elijah quis que ele gritasse. Quis que reagisse, qualquer coisa. Mas o silêncio de Will era mais afiado que um berro. E ele sabia disso. Sabia usar.
Elijah segurou o ar nos pulmões como se aquilo pudesse proteger seus segredos. Mas assentiu. Um gesto quase imperceptível. Quase um reflexo.
Foi o bastante.
Will sorriu de leve, e juntos seguiram para dentro do prédio, o som dos passos ecoando nos corredores ainda meio vazios. Até que a calmaria acabou com uma voz alta demais para aquela hora da manhã.
— Aí vem o cara novo e o Will, juntos! Isso vai ser divertido. — Era Dustin.
Ele surgira de lado, com o boné virado pra trás e uma mochila lotada de bugigangas balançando nas costas. Lucas veio logo atrás, mastigando alguma coisa. E Mike... Mike os seguia mais calado, como se quisesse estar em outro lugar. Elijah sentiu o olhar dele como um peso nos ombros.
── A gente só tá indo pra sala ── murmurou Will, calmo.
── Claro, claro. Só achei curioso, sabe? O garoto misterioso finalmente interagindo com alguém. ── Dustin sorriu, mas o tom era genuinamente curioso, não maldoso. ── A gente tava apostando em quantos dias você ia demorar pra fugir da gente.
Elijah franziu as sobrancelhas, sem saber se era uma piada ou provocação. Estava prestes a responder quando Lucas interrompeu:
── Deixa o cara em paz, Dustin. Você fala demais. ── E então, pra Elijah: ── Você anda de patins, né?
── Às vezes.
── Legal. Rápido, prático. Meu primo tentou aprender e quebrou o dente.
── Ok, ninguém perguntou isso ── resmungou Mike, finalmente falando. O tom não era agressivo, mas tinha aquele tipo de irritação contida que Elijah conhecia bem: a de quem sente que alguém está invadindo um espaço que antes era só seu.
Ele não respondeu. Só olhou Mike por um instante — olhos castanhos, expressão fechada, aquela frieza desconfiada. Era como se qualquer nova presença fosse uma ameaça ao que já estava construído.
── Vamos entrar? ── sugeriu Will, mudando de assunto.
Dustin e Lucas seguiram primeiro, tagarelando sobre alguma partida de arcade. Mike veio atrás, mas não olhou pra Elijah.
E Elijah... ficou por um segundo parado na entrada, os dedos suando dentro das mangas do casaco. Sentia o calor familiar roçar a nuca de novo. Como uma chama ansiosa. Como uma coisa viva.
Ele respirou fundo.
E entrou.
Sabia que aquela manhã ia ser longa.
O intervalo chegou devagar, como tudo em Hawkins.
As pessoas saíam das salas como se estivessem voltando de uma tempestade, rindo alto, empurrando carteiras, arrastando mochilas. Elijah preferia ficar. A biblioteca era o único lugar onde o tempo parecia andar do jeito certo. Devagar. Em silêncio.
Ele se escondeu ali. Entre as estantes altas e os livros empoeirados. Sentou no chão, encostado na parede mais afastada, fingindo ler um manual técnico de astronomia. Não queria comer. Não queria falar. Só queria... parar de sentir tanto.
── Esse livro é chato ── disse uma voz baixa, e Elijah quase pulou de susto.
Will estava ali, de novo. Sentado do outro lado da prateleira, de pernas cruzadas, o queixo apoiado nos joelhos. Tinha uma expressão tranquila, quase sonolenta, como se estivesse acostumado a existir naquele lugar sem fazer barulho.
── Eu gosto de astronomia ── murmurou Elijah, defensivo.
Will sorriu. Um daqueles sorrisos pequenos, sem dentes, como quem respeita os muros dos outros.
── Eu também. Só não gosto do jeito que explicam. Parece... vazio, sabe?
Elijah fechou o livro devagar, ainda com os dedos entre as páginas.
── É tudo número e distância. Mas ninguém fala sobre como deve ser... estar lá. No escuro. No silêncio.
Will concordou com a cabeça, olhando para o alto, como se visse além do teto da biblioteca.
── Eu costumava desenhar isso. Planetas. Estrelas. Gente perdida no espaço. Às vezes ainda desenho, mas agora tudo que sai é escuro.
Elijah olhou pra ele, sem dizer nada.
— Depois do que aconteceu comigo... eu comecei a ver as coisas diferente. Como se o mundo real não fosse mais tão real assim. ── Will passou os dedos pelo tênis, distraído. ── Como se tivesse sempre alguma estivesse observando.
Elijah sentiu o corpo inteiro ficar tenso. Como se aquelas palavras abrissem alguma fresta esquecida dentro dele. Ele queria saber o que aconteceu ano passado, mas séria insensível perguntar isso logo pra quem parece mais afetado.
── Eu... ── começou, mas parou.
Will esperou. Ele não pressionava. Só oferecia espaço.
── Você acha que a gente muda depois? Depois de... ver coisas que os outros não veem?
Will encarou o chão, pensativo. Depois, respondeu:
── Talvez.. É por isso que a gente vê. Porque já era diferente antes de acontecer. Eu acho..
Elijah ficou em silêncio. As palavras de Will pareciam acender alguma coisa ── um tipo de entendimento silencioso que ele nunca tinha sentido com ninguém antes. Nem com Evellyn. Nem com Adam. Nem com a mãe, mesmo antes do fogo.
── Eu não quero ser diferente ── sussurrou. ── Mas tem algo... queimando em mim o tempo todo.
Will não perguntou o que era. Não perguntou se era metafórico ou literal. Só estendeu a mão devagar, como se a presença dele já bastasse.
── Eu também sinto. De outro jeito, talvez. Mas entendo.
Eles ficaram ali, por um momento que parecia suspenso no ar.
No fundo da biblioteca, um ventilador velho girava devagar. A luz da janela era cinza e suave. E o mundo, por um instante, parecia menos pesado.
Will apoiou a cabeça na parede, os olhos fechados.
── Você não precisa contar nada agora. Mas se um dia quiser... eu tô aqui.
Elijah assentiu, apertando os dedos nas laterais do livro.
Talvez, pela primeira vez, sentisse que alguém não queria nada dele. Só... ficar.
E isso era mais do que ele esperava.
A próxima aula parecia arrastar os minutos como se o tempo estivesse com preguiça.
Ciências outra vez. O Sr.Clarke falava sobre reações exotérmicas com entusiasmo suficiente para acordar os mortos, mas nem isso salvava o ambiente carregado da sala. O ar parecia mais denso. Ou talvez fosse só a cabeça de Elijah latejando outra vez.
Will sentava ao lado dele ── bem, Elijah sentava uma cadeira atrás, mas era praticamente do lado. Naturalmente, como se já fosse um hábito. E talvez fosse. Pelo menos agora Elijah não se sentia flutuando no vácuo. Ainda assim, sentia olhares. Pequenos, discretos. Como farpas invisíveis cravadas nas costas.
Mike estava do outro lado, mas virava de vez em quando, rápido demais pra parecer inocente.
Dustin e Lucas pareciam menos atentos a isso — falavam baixo, anotavam rápido, discutiam algo sobre uma experiência que queriam testar na aula prática. Mas Mike... Mike parecia preso em alguma coisa. Observava Elijah como se estivesse montando um quebra-cabeça. E não era o único.
Do outro lado da sala, dois garotos, talvez um pouco mais velhos, cochichavam entre si desde que Elijah entrou. Um deles — Troy, se Elijah lembrava direito — usava o mesmo casaco desde que o viu pela primeira vez, e já tinha empurrado três pessoas no corredor esse semestre. O outro só ria de tudo. Não tinham nome fixo. Eram o tipo que a escola inteira conhecia, mas ninguém queria conhecer.
── Ele tá com medo da lâmpada ── sussurrou Chris, alto o bastante pro grupo da frente ouvir.
Algumas risadas abafadas ecoaram.
Elijah fingiu não ouvir. Mas Dustin notou. Franziu o cenho, encarando o canto da sala.
— Ei, Troy — disse, sem levantar a voz. — Você não cansa de ser idiota?
Troy fingiu espreguiçar, sorrindo com a língua entre os dentes.
── Só tô dizendo. Do jeito que esse moleque olha pra lâmpada, parece que ela vai explodir de novo.
Mais risos.
O coração de Elijah apertou. Suor frio na nuca. A lâmpada da sala parecia mais brilhante que antes. Uma vibração no ar ── sutil, mas presente ── começou a pulsar nos ouvidos dele, como um zumbido surdo.
Will tocou levemente o braço dele. Como se dissesse: Calma. Fica aqui. Respira.
Mas estava ficando difícil.
A caneta de Elijah tremia nos dedos. O calor subia pelas palmas das mãos, pelas orelhas, pelo peito. Algo nele se expandia, como um grito engasgado. Ele fechou os olhos por um segundo. Só um.
── Tá com calor, garoto novo? ── zombou o outro rapaz. ── Ficou com febre de tanto andar com esses ai?
Elijah sentiu.
Sentiu mesmo.
O calor de verdade agora. Como se as pontas dos dedos estivessem prestes a acender. Como se a luz ao redor começasse a vibrar, a ondular, como miragem no asfalto quente. O cheiro metálico do sangue chegou antes que ele percebesse ── escorrendo devagar pelo nariz.
Nesse momento, se ouviu alguém chamar o professor ── achava que era uma garota por conta da voz.
── Professor ── chamou, sem hesitar. ── O Elijah tá sangrando.
A sala silenciou por um instante. Clarke correu até eles, pegando lenços de papel e guiando Elijah pra fora da sala com cuidado.
── Vamos à enfermaria. Isso pode ser sinusite. Ou só o ar seco... — dizia, tentando soar calmo. Mas Elijah via a preocupação nos olhos dele.
Ele não olhou pra ninguém ao sair. Mas soube.
Soube que todos estavam olhando.
Soube que Mike, principalmente, o observava com aquele olhar que já não era só desconfiança.
A casa parecia quieta demais quando Elijah entrou.
A porta rangeu como sempre, e a madeira do piso da sala estalou sob seus passos. O cheiro familiar de sopa requentada e spray de limpeza pairava no ar, mas havia algo... diferente. Como se a casa estivesse em espera, respirando devagar.
Ele largou a mochila perto da escada e subiu direto pro quarto, sem tirar os patins da sacola. Ainda sentia a cabeça latejando, como se algo vibrasse sob a pele, querendo sair. Trocou de roupa com movimentos automáticos, evitando o espelho, evitando olhar demais nos próprios olhos.
No banheiro, lavou o rosto. A água estava morna, mesmo com o registro girado todo pro frio.
Ótimo, pensou. Agora até a casa tá mentindo pra mim.
Quando saiu, Evellyn estava sentada no sofá da sala, uma xícara fumegante nas mãos, os cabelos presos de qualquer jeito. Não olhou imediatamente. Deu espaço. Mas Elijah soube, no instante em que pisou no último degrau da escada, que ela sabia. Ou pelo menos... suspeitava.
── Teve um dia difícil? ── perguntou ela, sem virar.
Ele hesitou, depois deu de ombros.
── Normal.
Ela sorriu de leve, um daqueles sorrisos tristes que jovens-adultos fazem quando sabem que a verdade tá sendo escondida, mas decidem deixar pra depois.
── A escola ligou ── disse, por fim. ── Sobre o sangramento.
Ele ficou parado, tenso.
── Eu tô bem.
── Eu sei. ── Ela olhou pra ele agora. Os olhos escuros, atentos, cansados de um jeito que só irmãos mais velhos conseguem ser. ── Mas também sei quando você mente. Você sempre olha pro chão quando mente.
Elijah desviou o olhar, óbvio.
Evellyn deu um suspiro longo, colocando a xícara na mesinha. O vapor subia como fumaça fantasma.
── Aconteceu de novo, né?
Ele não respondeu.
── Elijah...
── Foi só... calor. Mudança de temperatura ── murmurou, quase inaudível. ── Só isso.
Ela se levantou devagar, caminhando até ele com passos curtos, cuidadosos. Como quem se aproxima de um bicho assustado. Quando parou na frente dele, ergueu uma das mãos, sem tocar.
── Tá ficando mais forte? Tá dando febre?
Elijah mordeu o lábio, segurando o choro. Tinha prometido a si mesmo que não ia chorar mais por isso. Que controlar o medo era o mesmo que controlar o fogo.
Mas estava falhando. Em ambos.
── Eu tento segurar ── sussurrou. ── Juro que tento. Mas... quando ficam rindo, quando olham como se eu fosse uma coisa errada... parece que... parece que o calor começa a crescer sozinho.
Evellyn se aproximou, enfim tocando os ombros dele com cuidado.
── Não é culpa sua. Nada disso. Você passou por coisa demais. E agora... agora tá voltando. De um jeito ou de outro.
── Eu não quero ser isso. Eu não quero...
Ela o puxou num abraço curto, apertado. Elijah hesitou por um segundo, depois cedeu. Encostou o rosto no ombro dela, o peito tremendo.
── Você não é isso, Lijah ── sussurrou. ── É só um garoto. Um garoto bom. Que viu coisas que ninguém devia ver. Que carrega fogo demais pra idade que tem.
Ele fechou os olhos. Por um instante, o mundo pareceu silencioso de novo.
Mas no canto da sala, a lâmpada piscou.
Uma.
Duas.
Três vezes.
Evellyn a notou.
Mas não disse nada.
Só apertou o irmão com mais força.
Chapter 3: 03 ── Lâmpadas quebradas
Notes:
Prevê aviso antes da leitura do capítulo!!
Esse capítulo contêm pequenas cenas de Bullying e palavras de baixo escalão
O lado ruim de fazer a história do personagem antes de escrever a fic, é que eu to pensando em coisas que só vão acontecer lá pra quarta temporada
Eu só quero escrever o primeiro episódio logo
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
20 dias antes do capítulo um : Mad Max
1984, 7 de outubro.
A noite chegava mais cedo no outono, como se os dias se cansassem depressa, exaustos de si mesmos. Em Hawkins, as árvores balançavam suas folhas secas com uma paciência indecifrável, e a casa dos Jones parecia respirar quieta sob a escuridão crescente. Lá dentro, o silêncio era quase físico ── espesso, cheio de presenças não ditas.
No quarto do andar de cima, Elijah se remexia na cama, encolhido de lado. Os olhos entreabertos encaravam a janela com um vazio denso, imóvel, como se esperasse que algo acontecesse ── ou que não acontecesse. Era uma daquelas noites em que o silêncio dizia coisas demais.
A primeira faísca veio com o cheiro. Um rastro tênue de fio queimado ── elétrico e doce, como plástico derretendo. Elijah apertou os olhos, virou-se de costas e prendeu a respiração. Mas a dor não demorou: começou como uma pressão atrás dos olhos, depois um calor denso, que subia pelo peito até prender na garganta. O travesseiro debaixo de sua cabeça parecia quente demais. E então, num estalo seco, a lâmpada do abajur piscou.
Uma, duas vezes.
Depois, explodiu em silêncio.
Os estilhaços se prenderam à cúpula de tecido, trêmulos, enquanto a escuridão se fechava ao redor dele como uma cortina.
No corredor, o assoalho rangeu com passos apressados. A porta se abriu antes mesmo que Elijah pudesse pensar em esconder qualquer coisa. Benjamin estava ali ── ainda com o uniforme de trabalho, as olheiras fundas e o rosto tenso iluminado apenas pela luz fraca do corredor.
── Que diabos foi isso? ── perguntou, a voz mais baixa do que o habitual.
Elijah estava sentado na cama. O punho fechado sobre a colcha, o nariz levemente manchado de vermelho. Não respondeu de imediato. Apenas encarou o pai, imóvel.
── Você... quebrou isso? ── insistiu Benjamin, agora franzindo o cenho, os olhos fixos na lâmpada destruída, no cheiro de queimado, no filho pálido como giz.
── Tive um pesadelo ── murmurou Elijah, num fio de voz. ── Me levantei de repente. Acho que bati no abajur. Foi sem querer. Desculpa, pai.
Benjamin permaneceu parado, estático por mais alguns segundos. Não entrou. Não questionou mais. Também não pareceu acreditar. Apenas fechou a porta com lentidão, como quem decide que é melhor não saber.
O silêncio voltou como uma onda surda. Elijah se deitou outra vez, o peito arfando. As faíscas haviam cessado por dentro ── mas o calor permanecia. Um calor sem nome.
No corredor, Benjamin permaneceu encostado à parede por um momento. O olhar perdido em algum ponto do escuro. Não sabia dizer o porquê, mas aquele cheiro de queimado o inquietava como uma memória que não conseguia acessar.
Não estava piorando. Ou, pelo menos, era o que Elijah dizia a si mesmo. Pelo contrário: aquilo vinha se tornando mais raro, como se adormecesse devagar dentro dele. O problema era quando escapava. Porque vinha como uma ventania súbita, desgovernada, quebrando tudo por onde passava. Talvez fosse culpa da cidade. Hawkins o deixava inquieto. Nervoso. E, com isso, as rachaduras se abriam ── pequenas, quase invisíveis. O bastante para que aquilo, lá dentro, encontrasse uma brecha.
1984, 8 de outubro
O dia seguinte veio com o céu baixo, carregado. Na escola, havia o tipo de clima que fazia o diretor manter as luzes da recepção acesas o dia inteiro. E ainda assim, as lâmpadas pareciam cansadas, zumbindo em intervalos esquisitos, piscando sem motivo. Alguns alunos riam disso no corredor, outros só reclamavam.
O corredor da escola parecia mais estreito do que de costume. Como se Elijah ocupasse espaço demais. Como se seu corpo inteiro dissesse "estranho" em voz alta, mesmo quando ele tentava desaparecer entre os armários.
Os boatos voltaram a rodar. Vozes sussurradas atrás das portas dos banheiros, nos intervalos das aulas de biologia. Nada que ele não tivesse ouvido antes ── que morava com fantasmas, que falava sozinho, que passava tempo demais com o "garoto zumbi". Que talvez gostasse de um jeito diferente do Will Byers.
Ele aprendeu a ignorar. Ou, ao menos, fingir que ignorava.
── Hawkins tá com problema de energia ou é só essa escola que é podre? ── disse Dustin, encostando em seu armário com um suspiro dramático.
── Não é a cidade ── murmurou Lucas, fechando o próprio armário com força. ── Minha casa tá normal.
Mike demorou alguns segundos para responder. Estava quieto, os olhos vagando pelo fundo do corredor onde Elijah passava sozinho, os ombros meio curvados e os fones de ouvido pendurados no pescoço. Ele parecia distraído. Ou talvez apenas... distante.
── Ei, vocês perceberam? ── Mike disse, baixo. ── As luzes ficam mais forte sempre que ele passa perto.
── Hã? ── Dustin arqueou uma sobrancelha. ── De quem? O Elijah?
Mike assentiu.
Lucas soltou uma risadinha curta, sem humor.
── Ah, qual é, Mike. Ele só... tem cara de quem atrai problema, não quer dizer que ele seja uma lâmpada ambulante.
── Não é isso, é só... ── Mike hesitou, o olhar ainda fixo. ── Isso aconteceu na biblioteca. E ontem também, na sala de ciências. E sempre perto dele.
Dustin cruzou os braços.
── Ok, mas... luzes brilhando mais forte? Isso não prova nada. Pode ser sorte. Ou azar, sei lá.
Mike desviou o olhar por um momento, como se não soubesse se deveria dizer o que pensava. Depois encarou os amigos.
── E o nariz? Vocês viram? Sangra às vezes. Do nada.
Um silêncio caiu entre eles.
Lucas olhou para o lado, incomodado. Dustin mordeu o lábio, nervoso.
── Tá... isso é meio esquisito. Talvez ele só esteja doente?
Mike não respondeu. Só deu de ombros, como se também não tivesse certeza. Um silêncio se estendeu por mais tempo do que o normal. Até que Dustin quebrou:
── Talvez... a gente devesse observar mais. Só... observar. Sem falar nada.
── E se for só coincidência? ── Lucas insistiu.
── E se não for? ── Mike rebateu, calmo.
Do outro lado do corredor, Elijah abriu o armário, pegou um caderno e olhou para trás, sentindo uma pontada de incômodo. Não soube explicar, mas jurou que alguém o observava.
Os três garotos desviaram o olhar ao mesmo tempo.
O porão dos Wheeler tinha aquele cheiro familiar de poeira, plástico velho e uma leve lembrança de graxa, mas naquela tarde parecia mais abafada do que o normal. Talvez fosse o silêncio. O jogo de D&D continuava montado, as miniaturas alinhadas sobre o tabuleiro, mas ninguém jogava fazia pelo menos vinte minutos. Só os dados girando soltos entre os dedos de Dustin, numa ansiedade contida.
── Alguém viu o que aconteceu com a luz no corredor hoje? ── murmurou Lucas, finalmente, quebrando o peso no ar.
Mike parou de tamborilar na mesa. Olhou devagar para ele.
── No segundo andar?
Lucas assentiu. ── Ficou mais brilhante bem na hora que ele passou. Igual aquela vez perto do laboratório de ciências. E... também semana passada, quando ele encostou no armário de metal perto da sala dos professores. A lâmpada tremeu. Eu juro que tremeu.
Dustin largou os dados. ── Cara, isso é real. Não é só coisa da sua cabeça. Eu vi também. E teve o nariz.
── Denovo?
── Aham. Ele sangrou um pouco do nariz na aula de ciências. Bem no fim. Ninguém percebeu porque ele limpou rápido. Mas eu vi. É tipo... igual a...
Ninguém completou a frase.
Will olhava para o tabuleiro com os olhos levemente desfocados, como se estivesse em outro lugar. As mãos dele estavam unidas entre os joelhos. Apertadas.
── Vocês acham que... ── Mike começou, mas a voz morreu na metade. Respirou fundo. ── Que ele poderia ser como ela?
Lucas mexeu no cadarço solto do tênis com distração.
── Não sei. Mas ele tem aquele jeito, sabe? Calado, estranho. Parece que tá sempre ouvindo alguma coisa que a gente não escuta. Tipo a El. Antes de confiar na gente. Nos primeiros dias
Dustin olhou para os outros.
── E se ele tiver... tipo... alguma marca? Alguma cicatriz ou coisa assim?
── Que tipo de marca?
Dustin hesitou, mordeu o lábio.
── Sei lá... A onze tinha uma tatuagem no pulso, não é? Se ele fosse igual ela, ele deveria ter uma igual, né?
Mike ficou pensativo. ── Ninguém nunca viu ele de camiseta curta? Nem no calor. Ele vive escondido no moletom. E ele nunca joga basquete, nem participa de aula de educação física. Tá sempre com bilhete do diretor.
Will engoliu seco, mas não disse nada.
── Talvez... ── Lucas começou, hesitante ── a gente possa observar melhor. Sem invadir nada. Só... prestar mais atenção.
Dustin já começava a se empolgar. ── Ou montar um experimento. Um teste. Tipo... científico. Disfarçado.
Mike ergueu uma sobrancelha.
── Que tipo de teste?
── Tipo... deixar uma lâmpada velha numa caixa, e ver se ela brilha quando ele passa perto. Ou colocar um walkie-talkie ligado dentro do armário e ver se dá interferência quando ele estiver por perto. A On fazia isso, lembra?
Lucas assentiu, os olhos brilhando. ── A gente podia até anotar tudo. Fazer um gráfico. "Teoria das luzes". Ou "Teoria do Efeito Elijah".
Will suspirou quase imperceptivelmente, mas todos os olhos voltaram para ele.
── Isso é idiota — murmurou Will, finalmente, sem levantar a cabeça. ── Eu só acho que vocês estão paranoicos. Não tem nada demais.
Dustin o observou com uma expressão meio culpada, meio curioso.
── Ei, Will... você.. Passou mais tempo com ele do que a gente. Se souber de alguma coisa...
── Eu não sei. ── A resposta veio quase rápida demais. Ele acrescentou, mais baixo: — E se soubesse... não sei se contaria.
Os garotos se entreolharam, sem saber exatamente como reagir. Nenhum deles parecia bravo. Só mais... atento agora. Como se cada palavra de Will fosse uma peça num quebra-cabeça que até então ninguém sabia que estavam tentando montar.
Mike, ainda mais calado que o normal, voltou os olhos para o dado em sua mão.
── E se for verdade? ── disse, quase num sussurro. ── Se ele for como ela... Será que tem gente atrás dele também?
── Se tivesse.. por que ele viria pra Hawkins?
Lucas olhou para a escada que dava para a porta, como se esperasse ouvir alguém batendo na porta. Dustin não disse nada. Will apertou os dedos sobre o tecido da calça jeans, olhando fixamente o tabuleiro.
Ninguém respondeu.
Mas todos sentiram que algo estava mudando.
A noite havia pousado em Hawkins como uma camada espessa de silêncio, cobrindo os telhados com um frio súbito e um vento que sussurrava entre as árvores como se carregasse segredos antigos. Atrás da galpão da família Jones ── um amontoado de tábuas gastas, latas de tinta e ferramentas esquecidas ── havia um pequeno espaço entre a cerca e a parede dos fundos. Era o tipo de canto onde ninguém costumava ir. E era exatamente por isso que Elijah estava ali.
O chão era de terra batida, coberto por folhas secas que farfalhavam com qualquer passo. Ele se agachou, os joelhos tocando a poeira. Os dedos estavam tremendo. Não de frio ── ou não só de frio. Havia um tipo diferente de tensão ali, como eletricidade estática sob a pele.
Na palma da mão, uma folha de carvalho ── dourada, quebradiça, esquecida pelo outono ── tremulava entre os dedos de Elijah.
Ele a observava como se fosse feita de vidro fino. O silêncio ao redor pesava, denso, quase cúmplice. Pela primeira vez em dias, não havia passos atrás da porta, nem sussurros de escola, nem olhares desconfortáveis que o julgavam. Só ele. Ele e aquilo que ainda não tinha nome.
O silêncio ao redor pesava como chumbo.
Respirou fundo. O ar noturno entrou frio, mas algo por dentro esquentava ── como se houvesse uma fornalha viva logo abaixo do esterno.
── Vai... ── sussurrou para si mesmo.
O vento balançou levemente a copa das árvores. Um cachorro latiu ao longe. A casa dormia. Mas dentro dele, nada parecia repousar.
A folha começou a escurecer nas pontas. Primeiro, só um leve bronzeado seco, depois, pequenas rachaduras que se espalharam como veias negras.
E então... fogo.
Começou nas pontas dos dedos ── não uma labareda, mas um calor denso, pulsante, como sangue fervente debaixo da pele. A chama brotou quase sem aviso, crepitando tímida e viva, e Elijah sentiu quando ela deslizou da pele até a folha, como se fizesse parte dele. Não era controle. Não ainda. Era instinto.
O fogo lambeu a folha com delicadeza cruel, iluminando o rosto dele por um segundo. Os olhos brilharam no escuro ── não de medo, mas de algo mais antigo. Mais fundo.
A chama morreu tão rápido quanto nasceu. Restou só a fumaça ── espessa, amarga, familiar. Um rastro cinza subindo em espirais, sumindo no céu sem estrelas.
Elijah abriu a mão devagar. A folha agora era pó.
Ele inspirou bruscamente, o peito subindo com esforço. Um calor denso se espalhava pelas costelas, como se o mundo inteiro tivesse encolhido ao redor do seu coração.
Mas o nariz não sangrou.
Não dessa vez.
As mãos, no entanto, ainda vibravam ── vermelhas, sensíveis demais. O calor nelas parecia querer continuar, se expandir, encontrar outra coisa para consumir.
Abaixou a cabeça, os cabelos caindo como uma cortina escura sobre o rosto. Os dedos se fecharam em punhos, prendendo o calor como se fosse possível trancá-lo ali dentro. Conseguia controla o que vinha das sua mãos, mas não o que não podia sentir.
Atrás dele, o galpão lançava uma sombra longa no chão. À frente, o quintal parecia deserto, imóvel. Mas Elijah não sentia solidão. Sentia outra coisa. Como uma espera. Como se algo estivesse prestes a acontecer ── dentro dele, ou fora. Talvez os dois ao mesmo tempo.
Acima, o céu parecia vazio.
Mas, por dentro, Elijah queimava.
Os olhos brilharam no escuro ── não com medo, nem orgulho, mas com um cansaço antigo, de quem carrega algo que nunca pediu. A folha virou pó entre seus dedos, cinza fina, esfarelada pelo vento. Elijah permaneceu ali, imóvel, como se a própria noite estivesse prendendo a respiração com ele.
No silêncio que se seguiu, só o som distante de um carro passando pela estrada principal. Nenhuma luz acendeu na casa. Nenhuma porta rangeu. Mas, por dentro, Elijah sentia como se algo estivesse se movendo ── lento, subterrâneo, prestes a acordar.
Fechou os olhos. As pontas dos dedos ainda ardiam, mas o calor não machucava. Era familiar. Quase... íntimo. Como uma voz que ele conhecia, mas não sabia de onde.
Quando voltou para dentro, os pés sujos de terra e as mãos metidas no bolso do moletom, encontrou o corredor escuro e silencioso. As paredes pareciam mais estreitas, como se a casa respirasse devagar demais. Mas ele não esperava encontrar ninguém acordado.
Foi só quando passou pela porta entreaberta da sala que viu. O pai. Sentado na poltrona, o corpo inclinado para frente, uma garrafa pela metade esquecida na mesinha. Benjamin não disse nada quando os olhos se cruzaram. Nem Elijah. Só o ruído baixo da televisão ligada sem som, exibindo imagens estáticas de um filme de faroeste antigo, iluminava os contornos dos dois.
O pai o observou por um momento que pareceu longo demais.
── 'Tava lá fora? ── perguntou, a voz rouca, atravessada de cansaço.
Elijah hesitou. Depois assentiu. Só isso. Nenhuma justificativa.
Benjamin deu um suspiro lento, depois recostou a cabeça no encosto da poltrona.
── Fecha a porta da frente. Tá frio.
E foi só. Nenhuma pergunta. Nenhuma bronca. Nenhuma tentativa de entender. Como se ambos soubessem que havia um limite para o que podiam dizer um ao outro. Como se, naquela casa, os silêncios tivessem virado forma de sobrevivência.
Elijah subiu as escadas com passos leves, os ombros curvados e o coração ainda em brasa. Quando se jogou na cama, com o rosto virado para o travesseiro quente, os olhos demoraram a se fechar.
Naquela noite, sonhou com grandes chamas deslizando por paredes brancas. Com números riscados no vidro. Com a mãe. A imagem dela chamuscada nos cantos da memória, como uma fotografia queimada nas bordas.
E, ao acordar, havia sangue seco embaixo do nariz.
1984, 9 de outubro
Na manhã seguinte, Hawkins acordou sob uma garoa fina, o céu engolido por nuvens espessas e os fios de eletricidade estalando fraco, como se até eles estivessem com sono. Elijah saiu mais cedo que o normal, os patins nos pés, a mochila apertada nas costas. O vento cortava o rosto como navalha e o walkman pendurados no pescoço nem tocavam música ── estavam lá mais como armadura do que distração.
Ele patinava rápido. O casaco aberto atrás dele, os olhos atentos à calçada molhada, os pensamentos presos nas faíscas da noite anterior. A imagem da folha queimando ainda dançava atrás das pálpebras. Aquilo não deveria acontecer. Não de novo. Não assim.
As rodas dos patins deslizaram pela calçada da escola, e o primeiro sinal de alerta veio com a porta principal: uma lâmpada estourada pendia do teto, ainda oscilando levemente.
No corredor, a tensão era visível. Não nos professores. Não na diretora. Mas nos garotos do clube ── especialmente Mike, que o seguiu com os olhos como se carregasse uma dúvida presa na garganta.
Will também estava ali. Mas não olhava para Elijah como os outros. O olhar dele parecia... diferente. Uma mistura silenciosa de preocupação e algo mais que Elijah não sabia nomear. Eles se encararam por um instante rápido. E bastou. O tempo pareceu escorregar.
── A lâmpada perto da sala dos professores apagou hoje cedo — murmurou Dustin, mais tarde, já no porão dos Wheeler. — Não foi só isso. O rádio do zelador travou. Começou a chiar feito louco quando ele passou perto da cantina.
Mike cruzou os braços. ── E a televisão da sala de vídeo também. Piscou, depois saiu do ar. Eu vi. Foi no exato momento que ele entrou.
Lucas parecia dividido entre ceticismo e tensão.
── Gente... a gente precisa tomar cuidado com isso. Não é como se a gente estivesse falando de qualquer pessoa.
Will estava mais quieto do que o normal. Tinha os dedos entrelaçados sobre os joelhos, as unhas fincando na pele sem perceber.
── Eu acho... ── ele começou, baixo ── que ele sabe que vocês estão observando.
Os outros viraram para ele.
── Como assim? ── Mike perguntou.
Will ergueu os olhos devagar.
── Ele me olhou hoje. Não como quem desconfia. Como quem já sabia.
Dustin engoliu em seco. Lucas passou a mão no rosto.
Mike abaixou o olhar.
── Então... o que a gente faz?
Will respirou fundo. ── Nada. Por enquanto. Se ele quiser contar, vai contar. Se não... é melhor não empurrar.
Os outros assentiram, um por um. Mas a dúvida ainda estava lá, invisível, crescendo como uma rachadura sob os pés.
E naquela noite, antes de dormir, Elijah ficou em pé diante do espelho do banheiro, encarando a si mesmo por longos minutos. Os olhos levemente vermelhos. A cicatriz fina na base do pescoço. Os dedos ainda com traços de fuligem.
Ele respirou fundo, desligou a luz, e deixou o espelho escuro para trás..
1984, 10 de setembro
O ventilador de teto girava com uma lentidão quase cruel, como se tivesse sono, preguiça ou pena dos alunos que ficavam presos ali depois das aulas. O ar era morno, cheio de partículas invisíveis de poeira dançando entre os raios de luz que entravam pela veneziana. A sala tinha cheiro de fita VHS, papel amarelado e cola velha.
Will estava com as pernas dobradas embaixo da mesa, desenhando com a cabeça baixa, um canto da boca levemente sujo de biscoito. Lucas e Dustin discutiam sobre quantos dados seriam "estatisticamente viáveis" para um encontro com um monstro de três cabeças. Mike estava inquieto, os olhos saltando do livro para Elijah, de Elijah para a janela, da janela para a porta, da porta para o livro.
Elijah percebeu.
Não era como se eles dissessem algo. Não havia cochichos. Mas a mudança estava ali ── fina, afiada, sutil.
Ele estava encostado na parede, sem se sentar, mexendo distraidamente numa bobina de filme 8mm que alguém deixara esquecida num canto. O reflexo do metal girava na palma da mão dele em círculos vagos. Lentas espirais.
── Aquele dia... ── Mike começou, num tom que parecia querer parecer casual ── ...quando a lâmpada quebrou no corredor... você tava lá, né?
Elijah não olhou para ele de imediato. Sentiu o metal gelado da bobina vibrar entre os dedos. Por um instante ── só um ── o som do ventilador pareceu distorcer. Como se tudo estivesse um pouco... torto.
── sim ── respondeu, sem alterar o tom.
Virou o rosto, finalmente encarando Mike. O olhar era direto, mas sem agressividade. Apenas... cheio de silêncio.
Mike engoliu seco. Tentou disfarçar mexendo nos papéis.
── É que... foi meio esquisito. Parecia que ela... estourou sozinha. Tipo, do nada. E você...
── Seu nariz sangrou um pouco ── completou Lucas, encarando Elijah de soslaio.
── Eu vi também ── disse Dustin, mais cauteloso. ── Não foi muito. Mas foi estranho.
Will levantou os olhos do desenho, mas não disse nada. Ele parecia inquieto, como se esperasse algo pior acontecer.
Elijah respirou fundo. Por dentro, uma parte dele queria levantar e sair andando. Outra parte queria gritar, ou rir, ou deixar que alguma coisa explodisse de verdade, só pra provar um ponto.
Mas ele apenas baixou o olhar para a bobina nas mãos.
── É normal. Sangrar pelo nariz. Não é um crime ── disse, com um tom seco. Mas contido.
Mike hesitou.
── Ninguém tá dizendo que é um crime ── respondeu.
O silêncio que se seguiu foi longo o suficiente para parecer eterno.
Foi Will quem quebrou, a voz quase um sussurro:
── Eles só... estão curiosos. Não é por mal.
Elijah se enrijeceu, mas não respondeu. Por dentro, sentia o calor subir. Não como raiva ── ou não apenas isso. Era algo mais antigo, mais fundo. Uma memória sem forma. Uma coisa que crescia no estômago e subia pela garganta quando se sentia observado demais.
Ele sabia como era esse tipo de olhar.
Já o tinham olhado assim antes.
Na casa de acolhimento.
Na rua, quando cochichavam.
Na escola antiga, quando o vidro do bebedouro rachou e ninguém acreditou que tinha sido um "acidente".
Agora aqueles meninos ── aqueles garotos meio nerds, meio valentes, meio perdidos,os esquisitos ── estavam olhando igual.
Não com ódio. Mas com... dúvida. Como se ele fosse um enigma. Uma equação errada. Um detalhe fora de lugar num jogo de tabuleiro.
Elijah largou a bobina sobre a mesa. O som do metal girando contra a madeira ecoou mais do que deveria.
── Se vocês tão tentando descobrir alguma coisa sobre mim... ── ele disse, calmo, mas afiado ── ...boa sorte.
Virou-se e saiu da sala antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa.
Só quando estava no corredor, longe o bastante para não ouvir mais o som do ventilador, foi que percebeu que os dedos dele tinham deixado marcas na bobina de filme.
Pequenas queimaduras escuras.
Quase invisíveis. Mas lá.
O som da porta batendo ainda ecoava fraco, abafado pelo zumbido do ventilador. Nenhum deles falou por um bom tempo. Will mordia o lábio, as mãos tremendo levemente enquanto segurava o lápis, como se tentasse se agarrar à folha à sua frente para não sair correndo atrás de Elijah.
Mike foi o primeiro a se mover.
── O que foi isso...? ── murmurou, mais pra si mesmo do que pros outros.
Ele se aproximou da mesa onde Elijah estivera mexendo na bobina de filme. O metal ainda girava devagar, a luz tremeluzente da lâmpada refletindo nos sulcos circulares. Era uma bobina comum. Pelo menos à primeira vista.
Mike estendeu a mão, mas hesitou. Então Lucas chegou mais perto, impaciente.
── Deixa eu ver isso.
Ele a pegou com cuidado, mas a largou quase no mesmo instante, franzindo a testa.
── Meu Deus, esse negócio tá queimando.
── queimando? ── Dustin repetiu, se aproximando. ── Tipo... Tá quente?
Lucas entregou a bobina pra ele, e Dustin passou os dedos cautelosamente sobre a borda. Não era o tipo de calor que vinha de exposição ao sol. Era localizado, estranho. Como se tivesse saído direto de um forno e esfriado rápido demais, deixando um resquício. Um calor seco.
Na parte interna da bobina, onde os dedos de Elijah haviam se apoiado, havia três marcas de coloração diferente. Como pequenos rastros de ferrugem, só que mais profundas, mais densas, quase fuligem. Não pareciam ter sido causadas por atrito ou sujeira. Eram... queimaduras.
── Isso são.. queimaduras? ── perguntou Dustin, virando a peça para os outros verem.
Will se aproximou, e seu rosto ficou pálido.
── Ele não tava com nada quente na mão.
── Nem um isqueiro — disse Mike.
— Nem fósforo. Nem fogo. Nem nada.
── E tipo, ninguém nem fuma aqui ── completou Dustin, o olhar fixo nas marcas.
Silêncio.
As três marcas estavam perfeitamente posicionadas, como se três dedos tivessem pressionado o metal com força o bastante para... derreter.
Lucas foi quem disse o que todos pensavam, mesmo tentando soar cético:
── Isso não é normal.
Dustin assentiu, devagar.
── Vocês lembram da Onze? ── murmurou ele. Os outros se entreolharam.
Will baixou a cabeça.
── Não é a mesma coisa ── disse Lucas, a voz abafada. ── Não é justo comparar. Ela não queimava as coisas desse jeito.
Mike se encostou na parede, cruzando os braços.
──Talvez não. Mas...
Ele olhou para a bobina ainda na mão de Dustin. O metal esfriara, mas as marcas estavam lá, firmes, feias, silenciosas.
── A gente não sabe se ela podia fazer isso. — completou.
Lucas bufou, incômodo.
── A gente nem sabe o que a gente tá dizendo. Pode ser outra coisa. Vai ver ele só é... sei lá. Esquisito.
── E esquisito agora queima metal com os dedos? ── disse Dustin, arqueando as sobrancelhas.
Will não disse nada.
A verdade era que algo dentro dele já sabia. Ou talvez pressentisse. Não exatamente medo. Não ainda. Mas um arrepio persistente, como um fio solto encostando na pele.
O tipo de sensação que se tinha quando as coisas começavam a mudar. Quando algo vinha à tona.
E esse algo tinha nome.
Elijah.
Notes:
O primeiro episódio ta chegando, eu só quero escrever a segunda temporada logo que é menos coisa pra eu pensar e só escrever um bocado de cenas
Fato interessante: Eu me inspirei na Carrie White de Carrie, a estranha pra fazer o Elijah, e decidi que, um dos filmes favoritos dele seria Carrie ── a versão de 1976, óbvio. O problema é que no início do filme, tem uma cena de nudez explícita do corpo feminino, então, tecnicamente ele já viu nudez do sexo oposto (mesmo que seja por pouco tempo, já que a Evellyn tampou os olhos dele até a cena acaba).
Chapter 4: 04 ── Cinzas
Notes:
Prevê aviso antes da leitura do capítulo!!
Esse capítulo contêm cenas que descrevem queimaduras.
Fiz esse capítulo curtinho já que não to muito afim de escrever esses dias, e to sem ideias para capítulo
O próximo capítulo já começa no primeiro episódio de Stranger things s2, a Max jajá chega
Chapter Text
2 dias antes do capítulo um : Mad Max
1984, 25 de outubro.
A tarde se derramava pelas janelas com um dourado morno e preguiçoso, daqueles que fazem o tempo parecer mais lento, como se o mundo, por um momento, decidisse descansar. A sala estava mais vazia que o habitual ── alguns alunos já haviam ido embora, outros fingiam estudar enquanto esperavam o momento certo para partir.
O ventilador de teto girava devagar, arrastando o ar com a lentidão de quem não tem pressa de nada. A poeira dançava nas faixas de luz como pequenas estrelas sonolentas, suspensas entre o silêncio e o cansaço.
Will permanecia com as pernas dobradas sob a cadeira, a cabeça baixa, concentrado num desenho que parecia nunca terminar. Uma casquinha de biscoito ainda teimava num canto da boca, esquecida ali havia tempo demais. O lápis ia e vinha, criando formas que se confundiam entre criaturas e memórias ── ou talvez sentimentos disfarçados.
Dustin e Lucas murmuravam entre si, discutindo sobre quantos pontos de dano um escudo de energia deveria absorver. Gesticulavam com os dedos e trocavam fichas de personagem como se ainda estivessem completamente imersos no jogo. Mas havia algo fora do lugar. Como uma música tocando desafinada ao fundo.
Mike estava sentado perto da janela, brincando com um dado de vinte lados, jogando-o para o alto e deixando-o cair na palma da mão, sem prestar muita atenção em nada.
Era uma tarde comum ── e, mesmo assim, todos sabiam, de algum modo, que alguma coisa havia mudado.
Elijah não estava com eles naquele dia.
E embora ninguém tivesse comentado, sua ausência estava presente. Sutil, mas sentida. Não era incômodo, nem exatamente preocupante. Era só... perceptível.
Como o silêncio que permanece no ar depois de uma música que já terminou, mas ainda pulsa dentro do peito.
── Será que ele vai voltar? ── perguntou Dustin de repente, sem desviar os olhos do escudo que rascunhava no papel.
── Ele sempre aparece do nada ── disse Lucas, dando de ombros. ── Vai ver só quis um tempo sozinho.
── Acho que a gente assustou ele ── murmurou Dustin, ainda olhando para o teto, como se procurasse ali uma resposta.
Will continuou desenhando, mas o traço endureceu. A figura em sua folha era uma silhueta curvada contra o vento, o capuz escondendo o rosto. Ao redor, folhas flutuavam em espirais, como se o ar ali tivesse vontade própria.
── Ele não é do tipo que se assusta fácil ── disse por fim, sem levantar os olhos. A voz era baixa, contida, mas o silêncio entre as palavras deixava escapar algo mais: dúvida, talvez. Ou saudade.
Mike soltou um suspiro curto e voltou o olhar para os outros, irritado. ── Talvez ele tenha entendido que não era pra ficar se enfiando onde não foi chamado ── disse, com mais acidez do que pretendia.
── Ou talvez não... ── murmurou Will.
Mike virou a cabeça em sua direção, como quem finge não ligar, mas ouve cada sílaba.
── Você tem falado com ele?
Will hesitou por um instante, o lápis ainda preso entre os dedos.
── Não muito.
Dustin assentiu, pensativo. Brincava com uma ficha de personagem entre os dedos, girando-a lentamente.
── E se a gente fizer alguma coisa? Tipo... um convite? Trazer ele de volta pro grupo de verdade.
Mike virou o rosto na hora, franzindo a testa como se Dustin tivesse acabado de sugerir adotar um demogorgon de estimação.
── Um convite? ── repetiu, sarcástico. ── Vocês tão falando como se ele fosse... um hóspede. Ou sei lá.
Lucas ergueu uma sobrancelha, desconfiado.
── Sério isso, Mike?
── O que foi? ── disse ele, erguendo as mãos. ── A gente mal conhece o cara. Ele mal olha na nossa cara. Fica parado nos cantos feito um... sei lá, um corvo. E agora a gente tem que montar uma festinha de boas-vindas?
Dustin deu um risinho breve, mais por nervoso do que por achar graça. Mike não riu. Seus olhos voltaram para a janela, como se o mundo lá fora fosse mais simples que a conversa ali dentro.
── Eu só acho ── continuou ── que se alguém não quer estar aqui, a gente não precisa forçar.
Will não respondeu, mas o lápis riscou o papel com força demais, deixando uma marca mais escura que o resto.
Dustin o observou por um segundo, depois virou-se novamente para Mike.
── Às vezes as pessoas não sabem como pedir pra ficar.
Mike não retrucou. Mas o silêncio que se seguiu carregava a rigidez de uma negação que não sabe onde se firmar.
Lucas cruzou os braços, incômodo.
── Ele nem conhece a gente direito. Também não é como se fosse fácil entrar no nosso grupo.
── Ele nem tenta ── rebateu Mike.
Will abaixou os olhos mais uma vez. O desenho agora mostrava a mesma figura de antes, de costas, envolta por vento e folhas. Mas uma das folhas, sem querer, começava a pegar fogo. Um traço vermelho-escuro, quase invisível, crescia no papel.
Ele soprou o desenho com cuidado, como se isso pudesse apagar o que havia surgido sem ser chamado.
── Acho que ele só precisa de tempo ── disse, quase num sussurro.
Ninguém respondeu.
O silêncio que caiu depois não era exatamente desconfortável, mas havia algo entre as frestas. Uma poeira que entrava mesmo com as janelas fechadas. Algo que já estava ali antes mesmo de ser nomeado.
Lá fora, o céu começava a escurecer. As sombras se alongavam pelo chão da sala, esticando-se até a cadeira vazia no canto. A mesma onde Elijah costumava se encostar, em silêncio.
E, embora ninguém dissesse em voz alta, todos sabiam: ele fazia falta.
Só que admitir isso...
era outra história.
O banheiro da escola cheirava a umidade antiga, revestido por um silêncio abafado que parecia mais denso do que o ar. As paredes suavam em tons acinzentados e frios. O tempo ali dentro corria devagar, como se cada segundo tivesse o peso de uma lembrança que se arrastava.
Diante do espelho, Elijah mantinha o braço dobrado contra o peito. A manga da blusa puxada até o cotovelo. Os olhos fixos no próprio pulso, como quem observa algo que não quer, mas precisa encarar.
A tatuagem ainda estava ali.
Cravada na pele como ferro quente em madeira.
Tinta antiga. Crua.
Feita para marcar, não para enfeitar.
Mais do que um número.
Um lembrete.
Passou a ponta do dedo sobre ela ── sem pressionar, quase sem tocar. O gesto foi leve, mas mesmo assim, um arrepio percorreu seu braço como um fio elétrico silencioso.
Era como se a pele soubesse. Como se a tinta pudesse sentir que algo estava por vir.
Ele conhecia as regras do corpo. Sabia que queimaduras, às vezes, tinham o poder de apagar. Que um único ferimento, no lugar certo, podia borrar os traços, dissolver as linhas, arrancar do mundo a forma de uma história marcada na carne.
Era isso que aquela marca era:
uma história. Ou pior ── um destino.
E ele não queria carregar nenhum dos dois.
Se desejava cortar o passado, precisaria destruir a âncora que o mantinha preso a ele.
Eliminar a assinatura silenciosa que o ligava a algo que ninguém mais podia ver. Apagar. Apagar de verdade.
Ele queimaria aquela tatuagem até que seu significado se tornasse irreconhecível. Até que os contornos se perdessem, até que o que um dia o definiu se desfizesse em algo sem nome, sem número. Sem voz.
Apenas cinzas. Onde antes havia um número.
Elijah puxou a manga da blusa de volta, cobrindo o pulso com cuidado. Depois respirou fundo, como quem se prepara para mergulhar.
E saiu do banheiro sem olhar para trás.
Naquela noite, o porão da casa dos Wheeler parecia mais frio do que de costume. Não era apenas o ar ── era o tipo de frio que se espalha pelas paredes, que se acumula no chão e nas coisas, como se o próprio ambiente soubesse que algo estava mudando.
As luzes de Natal, ainda penduradas nas prateleiras de madeira, tremeluziam em intervalos irregulares. Um ou outro piscar mais demorado parecia coincidência demais. Como se alguma presença silenciosa estivesse atravessando os fios, distorcendo o tempo, fazendo o lugar respirar de outro jeito.
Mike estava sentado no chão, pernas cruzadas, cercado por um emaranhado de anotações antigas, mapas do clube de D&D e folhas rabiscadas com desenhos que pareciam mais confissões do que estratégias. Os dedos dele apertavam uma ficha gasta, mas os olhos estavam longe dali.
Dustin, recostado no sofá com os braços cruzados, o observava em silêncio, sem saber ao certo se devia interromper ou esperar.
Lucas andava de um lado para o outro, o tênis rangendo levemente no tapete. A inquietação se acumulava nos ombros, nos punhos fechados, no ritmo dos passos.
── Isso já passou dos limites ── disse ele, enfim, parando. A voz soou mais alta do que queria. ── Ele não é um experimento de laboratório.
Mike não levantou os olhos.
── Você não viu o que a gente viu.
── Eu vi, Mike — disse Lucas, virando-se para ele. ── E não tô dizendo que ele não é estranho. Tô dizendo que ficar caçando prova como se ele fosse um rato de teste não vai ajudar em nada.
── Ele queimou metal, Lucas ── disse Dustin, sem levantar a voz, mas com firmeza. ── Com os dedos. Você tem ideia do que isso significa?
Lucas passou a mão no rosto, frustrado.
── Talvez fosse um truque. Alguma reação. Vai ver era a bobina que já tava velha. Ou... sei lá. Coincidência.
Dustin soltou um suspiro leve, como quem já esperava a resposta, mas ainda assim se decepcionava.
── Que tipo de coincidência aquece um pedaço de metal até ele deformar?
O silêncio que se seguiu não foi acusador, apenas pesado. Como se ninguém ali soubesse exatamente o que estava tentando defender.
── Talvez... ── continuou Dustin, mais devagar, como quem pisa em gelo fino ── talvez ele nem saiba o que está acontecendo com ele.
Lucas estreitou os olhos.
── A Onze nunca queimou nada. Pelo menos não assim.
── A gente não sabe disso ── rebateu Dustin. ── A gente viu ela fazer um monte de coisas. Mas nunca tudo.
Foi então que Mike ergueu o olhar. Havia algo diferente em seu rosto — não raiva, não exatamente medo. Algo mais próximo de obstinação. Ou desconfiança.
── Vocês acham mesmo que é só... coincidência? ── perguntou, com a voz baixa. ── Que ele apareceu justo agora? Que a gente viu o que viu? Que Will...?
A frase se partiu no meio.
O nome ficou solto no ar, como uma faísca no escuro. Will não estava ali. E mesmo se estivesse... talvez aquilo fosse uma ferida que ainda não podia ser tocada.
Dustin abaixou o olhar. Lucas desviou.
E ninguém respondeu.
O silêncio, naquele porão, pesava como neve.
Frio, espesso, sem pressa para derreter.
Naquela noite, a casa parecia conter a respiração.
O corredor era escuro, o relógio da sala engasgava nos segundos, e tudo ── absolutamente tudo ── parecia suspenso. O pai havia saído. De novo. Sem destino, sem horário, sem aviso. Adam dormia no quarto ao lado, os braços soltos sobre o lençol. Evellyn ouvia música na caixa de som, o corpo balançando em outro mundo, inconsciente do que acontecia atrás da porta trancada do banheiro.
Elijah acendeu uma vela. A luz elétrica funcionava, mas ele não a queria. Era necessário que fosse assim ── escuro, íntimo, ritualístico.
A chama tremia devagar, projetando formas distorcidas nas paredes de azulejo, como se a casa tivesse olhos e não quisesse ver.
Ele sentou-se no chão, cruzando as pernas como quem se prepara para um sacrifício.
Com cuidado, desenrolou o pano do pulso. A pele estava fria, mas viva. O número ainda estava ali.
Pequeno. Cru.
Feito para durar.
Aquela não era uma tatuagem. Era uma sentença. Uma cicatriz escolhida por outros.
Ele passou os dedos ao redor, sem tocar. Só perto o suficiente para sentir o calor que não existia ── ou talvez existisse demais.
Respirou fundo. E mordeu o pano que havia dobrado para si mesmo. Sabia que gritaria. E que não podia.
Então o fez.
Pegou o clipe de metal desdobrado, o mesmo que usava para segurar papéis. Agora, era outra coisa. Agora, era um instrumento.
Aproximou-o da chama. Lenta. O metal demorava a escurecer. O tempo esticava como pele prestes a rasgar.
O cheiro veio primeiro. Um gosto metálico no ar, seguido de algo ácido, denso, velho.
Quando o ferro se tingiu de vermelho-escuro, Elijah encostou-o na carne.
O som foi abafado, mas nítido. Carne viva se rendendo ao metal. Não houve explosão. A dor não gritou ── ela rastejou.
Subiu pela pele como uma lembrança quente demais, atravessando o pulso, o braço, a garganta. Ele rangeu os dentes no pano. Os olhos apertados ardiam. Mas não chorou.
Era uma dor controlada.
Escolhida.
Dirigida.
Diferente daquela que o rasgava por dentro desde sempre. Pressionou de novo. Mais forte.
Uma bolha subiu na pele. O cheiro mudou. Agora era de coisa morta, queimada, uma mistura de sangue e plástico.
Mas ele não parou.
Só quando as mãos começaram a falhar.
A pele latejava. Inchada. O número ainda estava lá ── mas deformado. Como se tivesse sido visto debaixo d'água. Um eco, não um nome.
O pulso tremia.
Elijah apagou a vela com dois dedos.
O escuro caiu como um pano pesado.
E no breu do banheiro, só restava o cheiro ── queimado, amargo, definitivo.
Ele ficou ali. Sem falar. Sem se mover. O pano agora encharcado de saliva e medo. As mãos dormentes. O peito... estranho.
Porque o que sentia não era alívio.
E nem era culpa.
Era algo entre os dois.
Um vácuo.
Talvez... liberdade.
Talvez... vingança.
Ou só o gosto de ter feito o que ninguém mais faria por ele: cortar, com fogo, o fio que o prendia ao que o criaram para ser.
Ele sorriu.
Chapter 5: 05 ── Mad Max
Notes:
Prevê aviso antes da leitura do capítulo!!
Daqui em diante, os capítulos terão spoilers da segunda temporada de stranger things.
Eu sinto que minha escrita deu uma mudada, já que eu vou começar á escrever os episódios da série e vou pular algumas etapas que eu fazia antes pra ser mais rápido. É meio difícil já que eu to escrevendo isso em duas línguas, então, é complicado.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Capítulo um: MadMax
1984, 28 de outubro
── Ei, você já foi no fliperama daqui? ── Elijah estava fazendo ovo frito na cozinha enquanto sua irmã, Evellyn, ficava encostada na divisão da cozinha e da sala. Ela vinha querendo que seu irmão saísse mais de casa, e também no Halloween.
── Ainda não.. Acho que eu nem vi o fliperama ── Ficava fazendo movimentos de vai e vem na frigideira, queria que fosse mais rápido. Elijah estava morrendo de fome e definitivamente não queria esperar tanto.
── Eu tô pensando em ir lá agora, o Adam não tá afim de ir e, seria legal passar um tempo com meu irmãozinho ── Ela obviamente não deixaria ele em paz.
── Você não tá velha demais pra fliperamas? ── Disse antes de levar um tapa na lateral da cabeça ── Qual foi!
── Você vem. Termina seu ovo ai, e vai se arrumar. Você tem 20 minutos, Lijah ── Eve falou enquanto pegava suas chaves do balcão e saia da cozinha, deixando o moreno totalmente sozinho.
20 minutos. Ótimo. Em 20 minutos teria que espera a comida, comer e se arrumar pra ir para um fliperama que nunca viu na vida, e a comida ainda estava crua.. Elijah desligou o fogão e colocou uma mão embaixo da frigideira, focando totalmente no calor da mão e no fogo do fogão. Esquentar, queimar e fogo.
Fogo saia diretamente da mão dele. A luz brilhava cada vez mais forte, talvez estava aumentando a temperatura até demais, quantos graus deveria aumentar pra aquela porcaria de ovo ficasse pronto em menos de 4 minutos?
Ficou pronto. Ele sorriu ao ver que tinha conseguido. Elijah estava treinando pra manter o controle e ser mais normal, talvez fazer um ovo com a pirocinese fosse uma ótima ideia de teste! Que claramente ele não tinha pensando em fazer antes. Pegou um garfo e comeu direito da frigideira, saindo correndo pro seu quarto antes mesmo de terminar de comer.
***
── Ei, eu vou estacionar e você já pode ir entrando, a gente se encontra lá dentro, meu bem ── Evellyn deu um tapinha no ombro do Elijah antes de deixar ele na frente do fliperama. Cara, como ele queria estar em casa.
O garoto andou do carro, que já não estava mais lá, até dirige à porta lateral ── que parecia ser a entrada, ou a segunda entrada?
Elijah parou de repente quando um garoto de cabelos castanhos.. ── Parecia.. O Will? ── saía pela porta. Ele parava do lado, parecia está em transe ou algo do tipo. Seguiu o garoto com o olhar e caminhou lentamente ao lado dele. Parecia fascinado por alguma coisa. Ele olhava fixamente para o céu enquanto seus olhos reviravam ligeiramente. Fascinado ou assustado?
O moreno se posicionou na frente do Will e colocou as mãos em seus ombros.
── Will? V-você tá bem? Tá me ouvindo? ── Deu uma leve sacudida nos ombros dele, o que pareceu funcionar, já que parecia que tinha feito o Will voltar a realidade. Ele cambaleou um pouco para trás, olhou ao redor e depois para o Elijah.
── Ah.. Hã? Elijah? ── Ele se afastou lentamente. Brincava com os dedos e cutucava as unhas. O garoto parecia pálido e tinha mais olheiras do que se lembrava. Parecia... distraído com algo.
── Ei, Will! ── Um garoto alto e magro ── Mike, correu do fliperama até Will. Parou ao lado dele e passou o braço pelo pescoço, como um quase abraço, talvez? ── Você está bem? ── perguntou, ignorando totalmente a existência do Elijah.
Will olhou para Elijah e depois para o Mike. ── É... eu só achei que tinha visto alguma coisa ── murmurou. Voltando o olhar para o outro, sorrindo, um sorriso bonito. ── Ah.. Obrigado, Elijah
── Sem problemas.. Will ── respondeu sorrindo de canto, fazia duas semanas que não falava com ele afinal. Talvez, uma pequena vontade de falar com o grupo tenha aparecido? Elijah estava pronto para falar mais alguma coisa com eles, antes de ser interrompido no começo.
── Tá, tá. A gente, tem que ir, tabom?
── Mike!
── Vamos, Will, é a sua vez no Dig-Dug. ── Ele começou a puxá-lo para longe. Will se virou para e, rapidamente abriu um sorriso triste e acenou com o braço livre.
Elijah acenou de volta e retribuiu com um sorriso discreto. Até que decidiu se aproximar ── Ei.. Posso jogar com vocês? ── disse um pouco desconfortável, a culpa não era dele que era tão ruim na socialização, né? ── Eu não to muito afim de.. Ficar com a minha irmã.
Os dois já tinham virado pro moreno, e Will deu uma olhada pro Mike, que definitivamente não gostou da ideia, antes de dizer:
── Claro, porque não?
1984, 30 de outubro
Aula de Ciências. O Sr. Clarke. E uma boa cochilada enquanto o professor explicava sobre.. Cérebros? O Elijah cochilou antes de identificar o que a aula era sobre ── e ele definitivamente não queria saber sobre. E para sua defesa, ninguém estava afim de saber disso.
Até que a porta foi aberta, o que fez Elijah acordar do cochilo, ── e xingou a maldita pessoa que abriu aquela porta ── o diretor apareceu junto de uma garota ruiva, e ele a empurrou, fazendo-a cambalear um pouco para a frente e entra na sala.
── Ah, deve ser a aluna nova. ── O Sr. Clarke voltou sua atenção para a porta. Dois alunos novos em menos de 3 meses? Parabéns, Hawkins.
── É a própria. É toda sua. ── O diretor acenou para o Sr. Clarke e saiu do lugar, deixando a ruiva na frente da turma. A garota tentou se afastar e ir para algum canto da sala, mas o Sr. Clarke a segurou antes que conseguisse chegar a um lugar vago.
── Opa, espera aí. Não vai se safar tão fácil. Vem pra cá. Não seja tímida! ── Ele riu. Olhou para a menina e depois para o Dustin. Fez um leve gesto e sorriu. ── Dustin, tambores. ── Elijah abaixou a cabeça e suspirou. Aquilo de novo não.
Dustin suspirou e fechou o livro, começando a tamborilar na mesa. ── Turma, deem as boas-vindas para ela que veio da ensolarada Califórnia, a nova passageira na nossa viagem de curiosidade, Maxine! ── Ele fez um pequeno gesto de mãos de jazz apresentando a garota, Maxine, no momento em que Dustin terminava de tocar bateria. Ele esperava que a turma batesse Palmas ou oque?
── É Max.
── O quê?
── Ninguém me chama de Maxine. É Max. ── Ela parecia incomodada quando o professor chamou ela de Maxine. Uma coisa pra se guardar se for conversar com a Max.
── Bem vinda á bordo, Max!
Quando Max foi liberada da apresentação e deixada ir, Elijah viu o grupo se virar para ver a Max caminhando em direção ao lugar dela. No fundo. Eles pareciam estar em choque? Ou surpresos.. Ele perdeu alguma coisa que envolvia a Max? Talvez.. Mas não queria se sentir perdido, então decidiu se virar para ela do mesmo jeito dos outros.
Talvez desse jeito ele veria o que tinha perdido? Que burrice.
***
Will, Mike, Dustin, Lucas e Elijah observavam Max andando de skate pelo asfalto, ela parecia não saber ── ou não se importar dos novos observadores que ela ganhou no primeiro dia de escola.
Os meninos encostaram o rosto no portão de metal para ver a garota. Bem, todos, exceto Mike.
── Não tem como ela ser Mad Max ── reclamou Mike. Ele estava ficando cansado de ver uma garota idiota que não conhecia. Para ser sincero, não queria ter nada a ver com ela.
── É, garotas não jogam videogame. ── Will interrompeu. Todos pareciam interessados em descobrir quem era Mad Max. Mas tinha uma pessoa entre eles que não sabia nem quem ou o'quê era Max Max.
── Calma.. Quem é Mad Max? ── Elijah perguntou enquanto continuava a observar a "tal garota que poderia ou não ser a Mad Max".
── Alguém que conseguiu bater o meu recorde no Dig-Dug ontem! ── a resposta do Dustin era pra fazer sentido pro moreno? Talvez.
── E mesmo que jogassem, não dá para fazer 750mil pontos no Dig-Dug. Isso é impossível! ── Mike continuou reclamando. Ele estava realmente cansado disso.
── O nome dela é Max ── argumentou Lucas.
── E daí? ── Mike retrucou. Lucas se virou para olhar para Mike com uma expressão estranha e confusa, como se o Mike tivesse feito uma pergunta estúpida.
── Como assim? Quantos Max você conhece? ── Ele voltou o olhar para a ruiva, sem querer perdê-la de vista.
── Eu sei lá! ── resmungou Mike, também olhando pelo portão para ver o que estava acontecendo. Nada.
── Zero! Você conhece zero. ── Os dois garotos irritados são interrompidos por Dustin.
── é, e ela aparece na escola um dia depois que alguém com o mesmo nome bater nosso recorde. Como assim? Tá brincando? ── Dustin falou ainda sem tirar os olhos da garota. Estavam parecendo stalkers.
── Exato! Ela só pode ser Mad Max. Só pode ser ── disse Lucas, esperançoso. Ele estava realmente determinado a fazer amizade com Max e provar que Mike estava errado.
── E vocês não sabem se ela pode não ser Mad Max. É meio que 50% de chance de ser ou não ser. ── Elijah disse quase concordando com a chance dela ser Mad Max.
── É. E ela anda de skate, então é bem maneira ── Dustin sorriu para si mesmo enquanto observava Max pegar seu skate.
── Maneira? Você não trocou uma palavra com ela! ── Mike olhou para Dustin, incrédulo. Como eles poderiam gostar dessa garota? E a El? Será que todo mundo simplesmente se esqueceu dela? Já não bastava o Elijah? A fala do garoto fez com que todos se virassem pra ele.
── Nem preciso, olhe para ela. Que droga! Perdi o alvo ── Dustin olhou para trás e viu que Max tinha sumido. Todos começaram a olhar em volta quando Will se afastou.
── Ah! Ali! ── disse ele saindo de perto dos outros e indo na direção da escada que levava à escola. Os cinco garotos observaram Max entrando na escola. Jogando algo na lata de lixo no caminho
Todos correram para a lata de lixo o mais rápido que puderam e começaram a vasculhá-la. Bem, Dustin fez isso. Os outros quatro tentaram bloquear a visão de todos da lata de lixo, mas, como de costume, todos receberam olhares estranhos das outras crianças que passavam. Principalmente de umas garotas que passaram bem na hora.
── Achei! Está aqui!! ── Dustin tirou a cabeça da lata de lixo e começou a desdobrar um pedaço de papel, enquanto os outros se aglomeravam ao seu redor. Parecia que tinham achado ouro no lixo da escola.
Quando ele desdobrou o livro completamente, os cinco meninos leram tudo ao mesmo tempo
Parem
de me espionar,
Esquisitos!
── Que merda. ── Dustin suspirou enquanto ainda observava o papel em suas mãos.
── Vocês são os piores stalkers que eu já vi. ── murmurou Elijah.
── William Byers? ── chamou o diretor ao virar a esquina, chamando a atenção dos garotos. E de mais um grupinho que estavam sentadas próximas deles ── Sua mãe chegou.
***
Elijah estava planejando encontrar Dustin e Lucas no fliperama, marcaram esse encontro para stalkear ── ou o que o Dustin gosta de chamar, observar a Max de longe sem ela saber que estavam a observando.
E agora estava olhando pra porta do fliperama, entediado, com dois outros garotos fazendo o mesmo. E, quem traria um binóculo para observar uma porta que não tá nem do outro lado da rua.
── Nenhum sinal dela? ── Perguntou Dustin.
── Nadica. ── Lucas estava usando o binóculo tentando achar um sinal de quem eles estavam procurando. E obviamente não estavam achando.
── O que eu faço? Minha mãe vai me matar ── Era a segunda vez que o Henderson verificava o relógio.
── Vá pra casa. Se ela vier, eu te ligo. ── Ele disse tirando os binóculos e olhando pro Dustin.
── É, Henderson, vai pra casa. ── Elijah abriu a boca depois de 20 minutos sem falar nada. Ele não queria ficar, mas não queria ir pra casa. Era a única coisa que ele podia fazer nessa tarde.
── Ah, tá, vai nessa. Vocês só querem se livrar de mim pra dar investida. ── Dustin sorriu descaradamente para Lucas, cutucando-o na lateral do corpo.
Elijah revirou os olhos e voltou a encarar o nada. Soltando um suspiro e murmurando: "Credo"
── Ah, porque você é uma ameaça, né? ── disse Lucas sarcasticamente.
── Lógico. Ela não vai conseguir resistir ao meu charme. ── Dustin então fez um dos barulhos mais estranhos que alguém podia ouvir. Era como um ronronar ou um tipo de rosnar muito esquisito.
── Nunca mais faça isso. Por favor, Henderson. ── Elijah reclamou. E Lucas virou o rosto enojado. Até que o Dustin virou a cabeça de volta pro fliperama
── Noroeste.
── O quê?
── Noroeste! ── Dustin falou com.. Surpresa? Os dois viraram a cabeça na direção em que o cacheado disse. Vendo um carro aparecer com música alta e um motor que enchia seus ouvidos.
A Max estava na janela.
── Eles estão brigando. Tão brigando! ── Lucas exclamou como se estivesse vendo um filme, e estivesse na melhor parte.. E como se o Dustin e o Elijah não estivessem vendo.
── Cara.. Estou vendo. Nem sei por que precisa disso. ── Dustin reclamou ── Nossa! Você é tão burro.
── Tá com problema de visão? ── Elijah falou enquanto observava Max sair do carro e gritar com o cara que estava dirigindo, batendo a porta e mostrando o dedo do meio para ele enquanto o carro voltava para a estrada. Isso trouxe uma visão conhecida de quando o moreno pegava carona com o pai.
Quando voltou à realidade, viu o Dustin e o Lucas correndo para dentro do fliperama. Eles nem esperaram pelo Elijah, sério, o quão obcecados eles estão com ela?
Finalmente alcançou Lucas e Dustin e os viu olhando através de um pequeno recorte em uma das divisórias da parede, espionando a Max.
── Ela é incrível ── Lucas disse se sentando junto de Dustin. O Elijah se sentou logo depois deles.
── É sim.. ── Dustin concordou.
── Mad Max. ── Disseram em união, como se eles tivessem planejado isso antes. E o Elijah.. Só ficou encarando mesmo. Era estranho.
── Ei, posso fazer uma pergunta? ── Elijah disse se virando pros garotos, que fizeram o mesmo. ── Duas..
── Vai lá ── disse Dustin, depois de trocar um olhar com o Lucas.
── Vocês vão parar de stalkear ela? E se continuarem, por favor não me chamem. ── Elijah parou por um segundo ── Vocês sabem porque chamam o Will de "garoto zumbi"?
Notes:
Como é possível eu ter demorado dois dias pra terminar um capítulo de 2mil palavras? Simples, eu tava assistindo Yellowjackets e desenhando pra postar na minha conta do tiktok
Inclusive, eu postei dois vídeos do Elijah lá, eles tão em inglês, já que eu uso aquela conta pra postar meus desenhos em geral (e umas coisas a mais). Qualquer coisa, é o mesmo nick que eu tenho aqui (IdiotMikael).
Mynkal on Chapter 5 Tue 22 Jul 2025 12:37AM UTC
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