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Nearly Almost Dead (But Not Quite)

Summary:

[Paranorman Au]

Neil estava acostumado com fantasmas, mas bruxas, zumbis e maldições já eram um pouco demais na sua opinião.

 

[Neil Josten, aos 12 anos de idade, estava acostumado com a presença constante dos fantasmas que assombravam a pacata cidadezinha de Palmetto – eram muitos para um lugar tão pequeno, e só ele conseguia vê-los e ouvi-los, o tipo de coisa que nunca fez bem para a reputação de qualquer pessoa.

Até que ele faz um amigo.

Ele realmente achou que as coisas estavam finalmente dando certo, mas aí seu tio morreu e a maldição da bruxa recaiu sobre a cidade mais uma vez. Com os mortos andando novamente entre os vivos, Neil é a única pessoa que pode salvar Palmetto da completa destruição]

Notes:

Essa fanfic faz parte do projeto Write In Your Style AFTG do Twitter, com o tema "Baby Foxes" (estabeleceram que era até 12 anos, então não me culpem por isso)! Essa obra foi inspirada principalmente pelo filme de animação em stop motion "ParaNorman" de 2012 (se você ainda não assistiu, assista, é muito bom)!

As palavras-chave usadas foram: morte (muitas vezes), intrínseco (uma vez), cama (umas duas vezes) e acredito que angústia e conforto combinem com a história também, então deixo aqui!

AVISOS: Essa história apresenta cenas de bullying, homofobia e trata bastante sobe morte, com algumas descrições de cadáveres e fantasmas não muito agradáveis (tanto por conta de acidentes, quanto por assassinato e suícidio), assim como menção aos pais do Neil e à mãe dos gêmeos, fiquem avisados. Mas não é nada muito pesado, eu acredito.

De qualquer forma, espero que gostem e peço desculpas adiantadas pelo francês de google tradutor!

(See the end of the work for more notes.)

Work Text:

 

 

"It says: 'live people ignore the strange and unusual". I myself am strange and unusual." - Beetlejuice (1988)

 

 

 

A palavra “aberração” estava escrita na porta do seu armário novamente naquela manhã.

Não era a primeira vez que isso acontecia, e certamente não seria a última; os insultos pareciam variar a cada semana, mas sempre estavam o esperando quando ele chegava na escola, sejam marcados em seu armário com tinta vermelha ou murmurados entre risinhos zombeteiros nos corredores.

Você sabe o que dizem sobre ele?

Ouvi dizer que ele é maluco!

É um mentiroso!

Ele só quer chamar atenção!

Esquisito!

No final, as palavras usadas não importavam, porque todas queriam chegar ao mesmo fato irrefutável: Neil Josten era e sempre seria uma aberração, porque a estranheza era uma coisa intrínseca à ele.

— De novo? — Kevin suspirou ao seu lado, olhando para a palavra pintada no armário como se ela o tivesse ofendido pessoalmente — Você deveria contar para o papai.

— Deixa quieto, Kev… — Neil murmurou, enquanto abria o armário e pegava o pano e o produto de limpeza com cheiro de limão que sempre deixava ali para situações como aquela, mas hesitou antes de começar o penoso trabalho de esfregar a tinta do metal laranja — Talvez eu devesse simplesmente deixar aí dessa vez. Não sei porque me incomodo em limpar, sendo que eles só vão escrever algo pior amanhã.

Dan bufou do outro lado de Neil, estendendo a mão: — Me dá isso aqui! — Ela pegou o pano e o produto da mão de Neil, começando a esfregar a tinta insistente do marcador. Não ia sair facilmente, nunca saía — Esses merdinhas! Se eu pegar quem fica fazendo isso, vou arrebentar a cara deles!

Neil não conseguiu evitar o pequeno sorriso diante da raiva justa dela e do claro descontentamento de Kevin. Os dois eram seus autoproclamados irmãos mais velhos desde que ele havia sido acolhido por David Wymack no ano passado, e toda vez que estava com eles, a vida parecia um pouco mais fácil, embora consideravelmente mais caótica. Eles haviam prometido cuidar de Neil, e faziam isso sempre que podiam, mas nem sempre estavam por perto para lidar com cada inconveniente que ele precisava enfrentar, ocupados com as tarefas aparentemente intermináveis do ensino médio e com seus respectivos compromissos depois da escola.

Neil era grato de qualquer forma.

— Você não está limpando direito! — Kevin resmungou, tentando pegar o pano da mão de Dan, o que, naturalmente, resultou em uma briga abafada e feroz para saber quem estava certo.

Os olhos de Neil vagaram pelo corredor, acostumado com a relação intensa de amor e ódio entre sua irmã e seu irmão, quando seus olhos pararam em uma figura que, de certa forma, parecia sempre estar em uma situação parecida com a de Neil.

Andrew Minyard estava limpando seu próprio armário do outro lado do corredor, a palavra “monstro” em marcador preto desaparecendo lentamente da porta metálica laranja berrante conforme ele a esfregava. Seu irmão gêmeo, Aaron, estava falando sem parar ao seu lado, parecendo irritado, mas os olhos de Andrew encontraram os de Neil imediatamente.

Neil desviou o olhar primeiro, pego de surpresa. As pessoas geralmente não gostavam de olhar em sua direção, muito menos olhar em seus olhos. Eles eram sinistros, ou pelo menos era isso que as pessoas costumavam dizer.

— Pronto! — Dan exclamou triunfante, tendo vencido a briga pelo pano e limpado o máximo possível da pichação maldosa do armário de Neil. Kevin parecia mais relaxado com isso também, mesmo que tivesse perdido a discussão. — Aqui, amigo, guarda suas coisas, nós te deixamos na sua sala.

Neil fez o melhor para sorrir para eles: — Obrigado.

Kevin bufou novamente, porque aparentemente era isso o que os adolescentes mais faziam segundo Wymack: — Não precisa agradecer, idiota. Agora vamos logo, já estamos atrasados!

Eles seguiram pelo corredor, mas quando Neil olhou para trás os gêmeos Minyard já tinham ido embora.



👻



Como tanto seus irmãos quanto Wymack precisavam ficar na escola durante à tarde, Dan e Kevin por conta de suas aulas e Wymack por conta do trabalho, Neil voltava para casa sozinho.

Em seu caminho para o bairro residencial tranquilo onde vivia, ele sempre passava em frente ao cemitério que dividia a cidade do bosque, e se a cidade como um todo estava cheia de fantasmas errantes, o cemitério era onde a maioria deles se concentrava.

Era o lugar onde Neil geralmente ia quando precisava conversar.

Ele parou em frente à entrada por um momento, deixando a tensão do dia escorrer para fora dele enquanto observava o arco de ferro fundido que dava acesso ao terreno verde cinzento do cemitério, as estátuas de raposas de cada lado da passagem parecendo animadas e brincalhonas como sempre.

— E aí, Neil, qual é a boa? — Max o cumprimentou assim que atravessou o arco O rapaz estava encostado contra o muro do cemitério enquanto fumava um cigarro – o mesmo cigarro que fumava há aproximadamente trinta anos, era importante ressaltar.

— O mesmo de sempre, Max. E como vão as coisas pra você? — Ele parou, ajeitando sua mochila.

Max suspirou, uma nuvem de fumaça sem cheiro escapando por seus lábios, bochecha rasgada e peito aberto, onde as costelas estavam sempre à mostra por baixo da jaqueta de couro surrada: — Ah, sabe como a morte é, né?

Neil franziu o nariz, divertido: — Sei bem. Enfim, se cuida aí. — Neil desejou, sorrindo quando Max riu alto.

— Se cuida você, garoto vivo, pra não acabar que nem eu! — Max alertou, como sempre fazia, mas nem mesmo a morte era capaz de conter seu bom humor.

— Vamos todos acabar como você um dia, Max, a morte é inevitável! — Ele falou novamente, como falava sempre que se encontravam.

Neil seguiu pelos caminhos sinuosos do cemitério, cumprimentando fantasmas conhecidos e ouvindo as fofocas que eles contavam sobre as pessoas da cidade com absoluta diversão.

— Você sabia que o dono da loja de instrumentos no centro está tendo um caso com a filha do prefeito? — Dona Emerald sussurrou para ele quando ele parou para falar com ela. Seu rosto azulado e translúcido se iluminava com um sorriso enquanto ela se apoiava tranquilamente em sua lápide. Ele disse que não estava sabendo, e ela bufou: — É claro que não sabia, você não pode atravessar paredes , queridinho! Mas é, vi os dois de namorico, e duvido que ela vá se casar com ele! Esses jovens de hoje em dia, vou te contar…

— É mesmo um escândalo, Dona Emerald! Me atualiza amanhã?

— Claro, docinho!

Ele andou mais um pouco.

— Ouvi falar que os Johnes estão indo à falência, rapaz! — A Sra. Vernon comentou em seguida, saltando direto da terra em outra parte do caminho — Que boa notícia, não é? Você devia dar um lance pelas terras deles, estou te avisando porque você é um garoto muito esperto!

— Obrigada pelo aviso, Sra. Vernon, mas eu só tenho doze anos, não posso comprar um terreno ainda! — Ele se despediu dela com um sorriso e um aceno, continuando seu caminho.

Entre várias pequenas conversas, Neil finalmente chegou ao seu destino, do outro lado do cemitério, onde o terreno, os mausoléus e túmulos começavam a se mesclar com o bosque. Perto do último mausoléu, onde apenas uma jovem triste se sentava solitária, havia um salgueiro chorão enorme, suas longas tranças de folhas caindo como um véu ao redor de um espaço limpo e verde na grama.

Neil se sentou contra a copa larga da árvore, esperando que a garota morta do mausoléu o visse. Seu nome era Jeanine, mas gostava que Neil a chamasse de Janie.

— Neil, você de novo. — Ela cumprimentou, se aproximando do salgueiro chorão. Haviam marcas de lágrimas em seu rosto ligeiramente translúcido, mas Neil não se preocupou. As marcas nunca sumiam. — Como foi seu dia?

— Melhor e pior do que poderia ter sido. — Ele deu de ombros, apoiando sua mochila contra a árvore. — E o seu?

— Não tive dia nenhum hoje. — Ela suspirou, flutuando suavemente até estar pairando sobre um dos galhos mais baixos da árvore — Fiquei na minha mente o tempo todo, lembrando.

— Isso te deixou triste?

— Sim, mas tudo bem, é uma tristeza boa, a de se lembrar de quem você era. — Ela suspirou novamente, mais lágrimas silenciosas escapando de seus olhos. Seus cabelos eram longos e claros, seu rosto era delicado e seu vestido branco era esvoaçante, as mangas longas escondendo a maior parte do que ela havia feito consigo mesma. Ela era linda, decrépita e solitária, mas era uma das únicas pessoas que pareciam entender Neil — Você parece chateado.

— Não estou. — Ele respondeu, mas não sabia se estava ou não mentindo. — Escreveram coisas ruins novamente no meu armário, mas estou acostumado.

— Estou acostumada com a morte, isso não a torna boa.

Neil desviou o olhar: — Não, não torna.

— Você quer chorar? Tudo bem se quiser chorar, não vou contar pra ninguém.

— Acho que não. Estou bem.

Ela o olhou com olhos que sabiam demais, apesar de ter morrido tão jovem: — Neil- — Mas sua voz foi cortada quando um uivo longo e agourento ecoou pelo bosque.

Neil levantou-se em um pulo, com o coração trovejando no peito. Quando olhou para cima, Janie não estava mais na árvore, e, lentamente, o cemitério todo parecia ficar mais desbotado. Tudo ao seu redor parecendo queimar como as bordas de um papel sendo consumido pelo fogo, faíscas e cinzas flutuando acima e abaixo dele enquanto pedaços da realidade desapareciam, dando lugar à uma versão mais sombria de si mesma.

Em segundos o mundo real desapareceu completamente. O sol dourado da tarde esfriou, o bosque caindo em uma semipenumbra que combinava mais com o final da madrugada.

Ele respirou fundo, olhando ao redor, mas sua mochila havia sumido também, e tudo que havia agora era o farfalhar das folhas nos topos das árvores, uma brisa gelada que o tocou quase como uma respiração. Não havia nenhuma pessoa, nenhum fantasma, nenhum túmulo.

Nada , nem vivo e nem morto.

Ali! — Uma voz gritou de repente, vindo de onde o resto do cemitério deveria estar. Neil se virou, seu coração acelerando com o medo gelado que o envolveu de repente, que era familiar e ao mesmo tempo estrangeiro.

Ao longe, sete figuras surgiram, carregando sete tochas acesas. Um dedo acusador se desprendeu de uma das figuras aterrorizantes quando ela gritou: — O demônio, a bruxa!

Neil não pensou em mais nada, simplesmente saiu correndo. O chão do bosque estava escorregadio com as folhas de outono caídas, mas ele não parou. Os galhos mais baixos das árvores arranharam seu rosto, alimentando com pontadas de dor o desespero que sentia. Ele podia ouvir as sete figuras sombrias correndo atrás dele, gritando, nunca parando de gritar.

Monstro!

Bruxa!

Aberração!

O bosque estava ficando cada vez mais denso, as árvores ficando mais próximas umas das outras à medida que se aprofundava na mata. Sua visão estava ficando turva, seus movimentos errantes quanto mais cansado ficava, e então ele não conseguiu pular uma raiz à tempo, tropeçando e rolando barranco abaixo.

Ele respirou fundo, tentando agarrar a terra seca em uma tentativa frágil de se firmar, a dor ecoando por todo seu corpo como um hematoma antigo. As folhas estalaram sob seus dedos, sua respiração rápida e dolorosa soando barulhenta demais na quietude da floresta. Por um segundo ele pensou que havia despistado seus perseguidores, mas quando levantou o olhar, um rosto brilhante e cruel, feito de raios e destruição, se insinuou sobre ele, gritando com uma voz de tempestade: — Os mortos estão voltando!

Neil gritou, desesperado, fechando os olhos com força; mãos agarraram seus ombros e ele se debateu, lutando com tudo que tinha enquanto sentia, de repente, algo áspero e firme contra suas costas. Ele abriu os olhos, encontrando um rosto muito diferente da calamidade de raios que havia visto apenas um segundo antes.

Era Andrew Minyard, e o mundo todo havia voltado ao normal.

— Josten! — Andrew gritou, o sacudindo mais uma vez. — Está tudo bem, você está bem! O que aconteceu?

— Andrew…? — Ele tremeu, olhando ao redor. Janie ainda estava no galho baixo do salgueiro, o olhando com olhos opacos e arregalados, e o sol do meio da tarde brilhava dourado no céu. Neil ainda estava sentado contra a antiga árvore, com a mochila ao seu lado, e percebeu que nem tinha se movido desde o início daquela estranha visão. — O que… O que foi isso? O que aconteceu?

Andrew franziu as sobrancelhas, a expressão tensa o fazendo parecer mais velho do que seus meros 12 anos: — Me diz você. Do nada você começou a hiperventilar e gritar enquanto olhava pro nada.

Neil estremeceu, o medo ainda rastejando como uma criatura nojenta sob sua pele: — Eu acho que vi alguma coisa…

Andrew ergueu uma sobrancelha, ainda segurando seus ombros, como se pensasse que Neil fosse sair voando caso não tivesse algo firme o mantendo no chão. Talvez ele estivesse certo, mas Neil não queria pensar nisso agora.

— Viu outra coisa além dos fantasmas? — Quando Andrew perguntou isso, o primeiro instinto de Neil foi se afastar. Ele já tinha gente o suficiente zombando dele por isso, não precisava aturar aquele tipo de coisa em seu lugar especial também.

Andrew o soltou facilmente, e Neil pressionou suas costas ainda mais contra a árvore, puxando seus joelhos para perto do peito como se isso pudesse protegê-lo de todas as coisas ruins do mundo.

— Não precisa zombar de mim… — Neil murmurou, se sentindo mais vulnerável do que gostaria, mais vulnerável do que geralmente era diante das provocações das outras crianças da escola. Ele não sabia o que tinha sido aquela visão, algo do tipo nunca tinha acontecido antes, e ele se sentia perdido, assustado de uma forma nova e sinistra. Nenhum fantasma havia conseguido despertar aquele terror em seu peito, nem os mais horríveis e mutilados deles.

Andrew bufou, sem se levantar de onde estava agachado ao lado de Neil, os rasgos em seu jeans abrindo ainda mais ao redor de seus joelhos. Ele não parecia se importar.

— Não estou zombando de você. Eu acredito. — Ele disse isso com absoluta certeza, tão firme quanto uma rocha centenária. Neil duvidou primeiro de sua própria mente por ouvir coisas que não foram ditas antes de sequer pensar em duvidar das intenções do garoto à sua frente, tão sério e imperturbável.

— Você… acredita? — Neil testou lentamente, mal conseguindo compreender isso. Nem mesmo seus irmãos ou Wymack conseguiam acreditar de verdade, mesmo fazendo de tudo para não demonstrar. Eles achavam que Neil era louco, como todo mundo, mas eram gentis demais para fazê-lo se sentir mal com isso. — Por que?

Andrew olhou para os lados rapidamente, quase como se estivesse garantindo que ninguém mais estava por perto para ouvir antes de suspirar e então murmurar: — Porque você continua falando com eles quando está sozinho.

Neil franziu a testa. Isso não era um motivo muito bom: — As pessoas dizem que eu sou louco. Clinicamente, digo.

Andrew deu de ombros, sua expressão meio entediada não se movendo um centímetro sequer: — As pessoas dizem que eu sou louco também.

Neil sabia disso, é claro, mesmo que as pessoas não falassem sobre Andrew com ele diretamente. Os sussurros sempre estavam lá, e as pessoas pareciam comentar sobre Andrew tanto quanto comentavam sobre Neil, falando sobre como sua mãe havia morrido em um acidente de carro muito suspeito, e como ele se metia em brigas violentas com alunos mais velhos do que ele o tempo todo. Diziam por aí que ele era um psicopata.

Diziam também que ele gostava de beijar garotos atrás da escola.

Neil nunca tinha beijado ninguém, então não sabia bem o que pensar.

— O que você está fazendo aqui? — Neil suspirou, sentindo-se derrotado agora que estava menos na defensiva. Ele apoiou o queixo nos joelhos ossudos, ignorando a pontada de desconforto que veio com a posição.

Andrew zombou, finalmente se sentando na grama, mas não se afastando mais do que aquilo: — O que você está fazendo aqui? Além de ter ataques de pânico, é claro.

Neil revirou os olhos: — Estava conversando com uma… amiga. — Ele olhou para cima, onde Janie ainda os observava atentamente. Ela sorriu um pouco com o termo que ele usou, mas, lentamente, se afastou, voltando para seu mausoléu. Neil a seguiu com o olhar antes de voltar para Andrew, apenas para encontrar o outro garoto já olhando para ele — Ela já foi. Não gosta muito de pessoas novas.

Andrew estreitou os olhos: — Você vem aqui toda tarde, praticamente. — Não foi uma pergunta, e Neil estava ficando cansado de saber tão pouco em comparação.

— E como exatamente você sabe disso? — Ele perguntou, soltando as pernas e cruzando os braços. Ele sabia que parecia irritado, porque raiva e frustração eram sentimentos que ele nunca havia aprendido a esconder inteiramente.

— Porque eu venho aqui toda tarde também. — Andrew explicou facilmente — Sempre te vejo conversando com os túmulos.

Neil sentiu seu rosto esquentando. Não era para Andrew ver isso – não era para ninguém ver isso, e a ideia de que estava sendo observado por sabe-se lá quanto tempo sem perceber fez sua pele inteira arrepiar.

— Eu-

— Não precisa ficar envergonhado. — Andrew foi rápido em revirar os olhos, se inclinando para trás e se apoiando nos braços esticados, tão casual e despreocupado, como se achasse a reação de Neil um exagero. — Nunca te vejo falando assim na escola.

Neil bufou uma risada baixa, surpreso tanto com Andrew quanto consigo mesmo, mas não conseguindo evitar o leve sorriso autodepreciativo: — Não tenho ninguém com quem conversar lá. Não sei se você sabe, mas ver fantasmas não é bem a chave pra uma vida social de sucesso.

— Você não devia se importar com o que eles pensam.

Neil torceu os lábios, toda diversão desaparecendo tão depressa quanto surgiu: — Não me importo!

Andrew o encarou em silêncio, seus olhos castanhos dourados se estreitando levemente, não de forma desacreditada, o que era um tipo de olhar ao qual Neil estava intimamente acostumado, mas de forma paciente, quase sábia, como se ele soubesse de algo que Neil não sabia.

— Tudo bem se você se importa, só estou dizendo que não deveria. Eles são uns babacas, e não valem seu tempo. — Andrew se impulsionou para cima com facilidade, limpando a grama das calças jeans pretas mas, ao invés de se virar e ir embora, ele parou ali por um momento, sua expressão saindo da neutralidade para algo quase pensativo.

Um momento depois, Andrew pareceu tomar uma decisão.

— Você gosta de filmes de terror?

Neil franziu a testa diante da mudança repentina de assunto, mas assentiu: — Hm, sim? Eu… gosto, por que?

— Estão reprisando Pânico no cinema no centro.

Neil não sabia bem o que dizer diante disso: — Ah, legal, eu acho…

Andrew franziu as sobrancelhas, como se estivesse irritado: — Eu conheço uma das pessoas que trabalha lá, ela sempre me deixa entrar pra ver filmes de graça.

Neil não estava entendendo o que Andrew estava esperando dele ali, e a incerteza o fez ficar repentinamente ciente do que a falta de contato social com outras pessoas da sua idade – ou que não estavam mortas , pelo menos – fez com sua habilidade de conversação.

Andrew bufou, olhando para cima por um segundo, como se pedisse forças aos céus. Quando ele olhou de volta para Neil, ele parecia determinado: — O que você está esperando? Vamos logo, podemos pegar a sessão das duas ainda.

Se Neil achou que não poderia ficar mais perplexo com a existência de Andrew Minyard, ele estava muito enganado!

— Eu? Você… O que? Você quer que eu vá ao cinema com você?

Andrew revirou os olhos: — Não, quero que você espere do lado de fora como um cachorro preso em um poste! É claro que é pra você ir ao cinema comigo, idiota!

— Oh, hm… — Neil tentou se situar, achando que nunca tinha tido um dia tão estranho, tudo sobre a estranha visão sendo relegado a segundo plano em sua mente — Certo, certo, okay! — Ele se levantou, pegando sua mochila e a ajeitando nas costas. Andrew não o esperou, se virando e seguindo para a entrada do cemitério. Neil foi rápido em segui-lo, mas não antes de se voltar para o mausoléu solitário perto do salgueiro e acenar para sua amiga — Tchau, Janie, até amanhã! — Ele se despediu, e não conseguiu segurar o sorriso quando isso não arrancou nenhum tipo de reação de Andrew.



👻



A pessoa que Andrew conhecia no antigo cinema no centro da cidade, perto da prefeitura, era uma garota mais velha que Neil já tinha visto na escola antes, no prédio do ensino médio.

Seu nome era Renée, e ela tinha cabelos coloridos e um sorriso tão tranquilo que nem parecia que ela estava prestes a deixar dois garotos de 12 anos se esgueirarem pela entrada dos funcionários para uma sessão de um filme que definitivamente não era para a idade deles.

— Andrew, que bom ver você aqui! — Ela sorriu para eles quando Andrew os arrastou para o quiosque de pipoca e doces além da bilheteria. Não havia ninguém esperando para ser atendido, e Renée fechou o livro que estava lendo quando eles pararam do outro lado do balcão. — E quem é seu amigo?  — Ela perguntou, como se realmente não soubesse que ele era o garoto esquisito que fala com fantasmas.

Era uma cidade pequena, afinal.

Neil ia falar que eles não eram amigos, prezando pelo bem da reputação já estremecida de Andrew, mas o outro garoto nem pareceu se importar com a confusão: — Esse é o Neil, ele vai entrar comigo hoje.

— Pânico? — Ela começou a separar alguns doces da vitrine no balcão.

— Sim, e o de sempre. — Andrew então se virou para Neil — O que você quer comer?

Neil agarrou as alças da mochila com mais força, enquanto Renée se ocupava pegando uma série francamente impressionante de doces atrás do balcão: — Hm, eu não trouxe nenhum dinheiro… — Ele parou de levar dinheiro para a escola quando as crianças mais velhas sempre davam um jeito de roubá-lo. Era até melhor ir comer na sala de Wymack durante o intervalo, menos chance de ser incomodado dessa forma.

Andrew revirou os olhos: — Não perguntei se você tem dinheiro, perguntei o que você quer comer. Gosta de doces?

— Não muito. — Neil admitiu, se sentindo contrariado com a ideia de aceitar aquele favor de Renée quando nem a conhecia. — Mas não preciso de nada, ela vai acabar se metendo em problemas desse jeito. — Ele sussurrou para Andrew, que apenas revirou os olhos para ele novamente, de forma mais dramática e enfática.

— Renée, quero uma pipoca grande e mais uma coca zero também. — Andrew pediu, puxando um montinho de dinheiro amassado do bolso de sua calça e o batendo no balcão como se estivesse fazendo uma declaração com o movimento.

— Andrew-

— Eu te convidei. — O loiro deu de ombros, como se não fosse nada, e como se isso justificasse qualquer coisa, mas seus olhos pareciam muito sérios quando olhou para Neil, o atravessando — Você deveria deixar as pessoas serem legais com você muito mais do que deixa elas serem horríveis, sabia disso?

Neil pensou em responder – provavelmente uma mentira sobre como ele não deixava as pessoas serem horríveis com ele –, mas fechou a boca rapidamente quando Renée retornou com uma sacola cheia de barras de chocolate e balas, dois refrigerantes grandes e um balde de pipoca com manteiga.

— Aqui estão seus lanches, garotos! — Ela entregou tudo rapidamente, pegando o dinheiro no balcão enquanto Andrew empurrava a pipoca e um dos refrigerantes para Neil antes que ele pudesse protestar. — Venham comigo, o filme vai começar em poucos minutos.

Sem ter como escapar daquela situação e do sentimento estranho que ameaçava se revoltar dentro dele enquanto encarava o balde de pipoca em seus braços, Neil seguiu Andrew e Renée para além do balcão de lanches, seguindo por uma porta vermelha com uma placa que dizia “Somente Pessoal Autorizado”.

A porta os levou até um corredor bem iluminado e simples, que parecia percorrer as entranhas do cinema local, e pararam depois de virarem dois corredores, ficando diante de uma porta preta simples com um 3 branco desenhado no centro. Renée abriu a porta para eles e indicou a escada que subia entre duas paredes vermelhas.

— Bom, você sabe o caminho a partir daqui. Tomem cuidado, e não façam muito barulho. — Ela avisou, os presenteando com mais um sorriso secreto e então, rapidamente, voltando pelo caminho pelo qual eles tinham vindo.

— Vamos logo. — Andrew começou a subir a escada, e Neil o seguiu, o que parecia estar se tornando um padrão entre eles.

A escada levava até um pequeno saguão bem ao lado da cabine onde um funcionário do cinema já estava se preparando para rodar o filme, e os dois se esgueiraram até a outra porta que levava até a sala de cinema em si.

Eles se acomodaram em silêncio, e quando não foram imediatamente abordados e jogados para fora, Neil relaxou, se deixando aproveitar um gole do refrigerante antes do filme começar. Não era nada que ele não tivesse visto antes nas antigas fitas cassetes de Wymack, mas Neil gostava particularmente de Pânico, e nunca era demais rever mais uma vez.

Ele gostava da maior parte dos filmes de terror, apesar do que seu passado sangrento e turbulento poderia sugerir. Seus favoritos iam de zumbis a demônios, percorrendo todo o caminho entre poltergeists e assassinos em série, mas Pânico era um dos mais divertidos, ajudado pelo fato de que não tinha nenhum fantasma tagarelando durante a sessão como havia em sua casa.

A cena inicial era uma das melhores partes em sua opinião, e ele não podia deixar de torcer para que Casey Becker sobrevivesse, mesmo sabendo que, como primeira vítima, ela estava fadada à uma morte chocante.

As reações de Andrew eram meio difíceis de ler, principalmente sob a meia luz que escurecia os fundos da sala. Como eles haviam se esgueirado pela última fileira e se acomodando bem embaixo da janelinha do projetor, sua visão parecia ainda mais prejudicada, então Neil se contentou em comer ainda meio hesitante sua pipoca. De qualquer forma, Andrew parecia mais contente com os doces do que com o filme em si.

No meio da sessão, quando a festa na casa do segundo assassino estava prestes a começar, as portas da sala se abriram com tudo, trazendo o eco de uma risada que Neil conhecia bem até demais.

Seth Gordon entrou na sala de cinema como parecia entrar em todo lugar: fazendo uma cena. Haviam muitos lugares vagos, sendo uma sessão no começo da tarde, e Neil e Andrew estavam bem escondidos onde estavam, mas ele não pôde deixar de se encolher ainda mais em seu lugar quando viu o grupo de amigos do idiota entrar logo atrás dele.

Seth era um valentão, por falta de uma palavra melhor. Ele tinha um problema com Neil desde que ele se mudou por conta da proteção à testemunhas, e encontrá-lo, seja na escola ou fora dela, era sinônimo de problemas se você, por acaso, falasse com fantasmas.

Droga, ele pensou, se perguntando o que diabos Seth estava fazendo ali, entrando na metade do filme ainda por cima.

Andrew, apesar de seu aparente desinteresse, olhou entre Neil e Seth com olhos estreitos, mas não disse nada.

Como Neil esperava, Seth e seus amigos não estavam ali para ver o que restava do filme, mas para arruinar a experiência de qualquer pobre infeliz que tenha achado que um começo de tarde garantiria uma sessão silenciosa, o que incluía basicamente Neil e Andrew, mas ele não estava prestes a mandar os adolescentes mais velhos calarem a boca.

Por sorte os adolescentes pareciam estar absortos demais em sua conversa indecorosa sobre as garotas da escola, e embora Andrew parecesse descontente com a presença deles, não parecia prestes a tomar uma atitude a respeito.

Vagamente Neil se lembrou das histórias sobre como Andrew venceu brigas contra garotos mais velhos antes, mas Neil não estava muito afim de testar a veracidade de tal boato, principalmente com Seth Gordon como oponente.

Andrew era legal, afinal – mais legal do que a maioria esmagadora das pessoas naquela cidade, e a primeira fora de sua pequena família ainda em construção que havia se dignado a olhar para Neil com algo além de desgosto ou pena.

Quando os créditos começaram a subir, com os monstros mortos, mas sempre ameaçando retornar para uma sequência eletrizante, Andrew começou a se levantar. Neil estendeu a mão por reflexo, querendo evitar que ele chamasse atenção de Seth nas fileiras da frente.

Sem um segundo pensamento, ele agarrou a manga do moletom de Andrew, o puxando levemente. O outro garoto o olhou imediatamente, algo quase surpreso em seu rosto.

Neil sentiu seu rosto esquentar, enquanto soltava Andrew: — Hm, nós conseguimos voltar pelo mesmo caminho que Renée mostrou? Eu só… — Seus olhos foram novamente para o grupo de quatro adolescentes na sala, que já começavam a se levantar, distraídos com suas conversas altas e ocasionais brincadeiras de luta espontâneas. Ele não sabia como terminar aquela frase, ou pelo menos não sabia se queria terminar. Parecia um tanto patético ficar tão nervoso com a perspectiva de cruzar o caminho de Seth Gordon quando ele cresceu vendo espíritos deformados e mutilados tentando escapar do porão de seu pai.

Céus, era ridículo quando ele foi assombrado por meses pelo espírito da própria mãe queimada após conseguir fugir da casa do Açougueiro de Baltimore.

Claro que não era como se ele tivesse medo de Seth, não quando conhecia o medo de verdade, mas a ideia de enfrentar suas palavras cruéis parecia demais naquele momento.

Talvez ele só não quisesse que Andrew escutasse aquilo tudo, toda a verdade sobre como Neil era fundamentalmente estranho , porque algo dentro dele – algo triste, pequeno e francamente patético – odiou a ideia de arruinar a primeira perspectiva de amizade que teve na vida.

Mas Andrew não o questionou, apenas pegou as embalagens vazias de doces, os copos descartáveis e o pacote vazio de pipoca antes que Neil pudesse se mover para ajudá-lo com o lixo e seguiu silenciosamente para porta lateral pela qual haviam entrado. Neil suspirou, aliviado quando a porta preta se fechou às suas costas, abafando totalmente a voz de Seth e seus lacaios.

Eles chegaram ao final da escada sem incidentes, e acenaram para Renée quando passaram pelo quiosque de lanches novamente. Eles estavam na calçada e Neil pensou que havia se livrado de um encontro particularmente desagradável quando a voz irritante e inconfundível de Seth gritou logo atrás deles.

— Ei, aberração!

E, sim, lá estava Seth, com aquele sorrisinho de escárnio enfurecedor.

Andrew parou no meio do caminho, porque é claro que ele parou, colocando as mãos nos bolsos do moletom e erguendo uma sobrancelha para o valentão. Neil quis segurá-lo de novo, o puxar para longe, talvez sair correndo com ele, mas seu novo-talvez-amigo provavelmente não apreciaria parecer um covarde junto com Neil.

— Desculpem! Acho que fica meio complicado saber com qual dos dois malucos estou falando quando uso a palavra aberração , não é? — Seth riu enquanto se aproximava com seus lacaios, um brilho maldoso em seus olhos escuros — Olha só gente, parece que o viadinho do Minyard e o garoto fantasma estão namorando! — Uma série de risadas acompanhou o comentário, e Neil mais sentiu do que viu a maneira como o olhar de Andrew endureceu, acompanhando a tensão repentina em seus ombros.

— Vamos embora, Andrew. — Neil tentou soar firme, mas Andrew não voltou a andar com ele, se movendo apenas para se virar e encarar Seth de frente. — Não vale a pena, vamos -

Mas Seth já estava se aproximando, se elevando sobre eles tanto em número quanto em altura: — O que foi, Minyard? Tá me encarando por que? Quer um beijinho? Eu não sou bicha que nem você e seu namorado maluco. Você devia escutar ele, aliás, e sair correndo como o covarde que você é.

No canto perto do acostamento, um espírito atropelado bufou, chamando atenção de Neil: — Que rapazinho desagradável… — Murmurou, as palavras enroladas por conta do rosto deformado da pessoa sem gênero discernível. — Falando isso quando vive beijando outros garotos nos becos perto do cinema…

Neil segurou um suspiro chocado com a informação jogada sem mais nem menos pelo espírito atropelado. Bom, Neil sempre sentiu um pouco que o valentão era mais um caso infeliz de auto aversão.

Mas então Seth estava na cara deles, um animal raivoso esperando apenas um movimento errado para atacar. A expressão de Andrew não se moveu um centímetro, e a falta de resposta pareceu enfurecer o valentão ainda mais.

Neil podia não conhecer Andrew há mais do que algumas horas, várias das quais ficaram em silêncio em uma sala de cinema, mas sabia que o outro garoto não iria recuar. Talvez os boatos sobre as brigas fossem verdadeiros, afinal, não que isso importasse muito para Neil além da necessidade de impedir que Andrew brigasse com cinco garotos mais velhos de uma vez no meio da rua.

Tudo que ele precisava fazer era chamar a atenção de Seth para si mesmo, e então fazer o que ele fazia de melhor – correr.

— Ei, Gordon! — Neil chamou, dando um passo à frente, sentido-se estúpido e destemido. — Não sei quantas vezes seus pais viciados te deixaram cair de cabeça no chão quando você era criança, mas isso não é desculpa para ser um babaca tão grande. — Ele cuspiu as palavras antes que pudesse se convencer de que era uma má ideia — Não que seja uma surpresa, é claro, todo mundo aqui consegue ver o quanto você se odeia. É patético, na verdade. Deve ser por isso que você é um homofóbico de merda, né? Não conseguiu fazer as pazes consigo mesmo depois que o papai descobriu que você gosta de beijar garotos atrás do cinema?

E normalmente esse era o momento em que Neil levava um soco por causa de sua boca grande – ele viu isso chegando na forma como o ódio e a humilhação tomaram conta da expressão de Seth –, mas dessa vez ele não foi atingido. Dessa vez, Andrew Minyard estava ali.

Tudo aconteceu muito rápido; em um segundo o joelho de Andrew esmagou as bolas de Seth e no outro, assim que Seth se curvou com um suspiro dolorido, o punho de Andrew colidiu com sua têmpora, o mandando para o chão.

Um momento depois a mão de Neil foi agarrada em um aperto firme, e eles saíram correndo.



👻



— Você é completamente louco! — Neil riu quando eles finalmente pararam em um bairro residencial tranquilo, suas respirações ofegantes. Andrew estava sorrindo, seus olhos castanhos brilhantes, e Neil não conseguiu segurar outra risada.

— Clinicamente? — Andrew perguntou, e ele parecia brilhar sob o sol da tarde.

Neil bufou, divertido: — É, clinicamente . — Ele se encostou em uma cerca, respirando fundo. — Como sua mão está?

Andrew deu de ombros: — Já esteve pior.

Neil não se contentou com isso, estendendo sua própria mão: — Me deixa ver. Ouvi dizer que dar um soco bem dado pode quebrar seus dedos.

— Não tenho nenhum dedo quebrado — Andrew revirou os olhos, mas colocou sua própria mão na palma estendida de Neil de qualquer forma. Os nós dos dedos estavam machucados, de um vermelho furioso contra a pele pálida, mas nenhum osso parecia estranho e não havia sangue.

Neil se forçou a soltar a mão de Andrew, mesmo que não quisesse: — Você tem um gancho de direita cruel, Andrew Minyard,

— E você tem uma boca e tanto, Neil Josten. — Andrew bufou, se encostando ao lado de Neil contra o muro — O que foi aquilo sobre ele ser gay?

Sorrindo de forma travessa, Neil sussurrou: — Você acreditaria se eu dissesse que um fantasma me contou?

Andrew não zombou dele, apenas o encarou daquela forma enervante, conhecedora: — Acreditaria.

Neil sentiu seu rosto esquentar novamente, seja pela novidade de ter alguém acreditando nele com tanta facilidade ou seja pela forma como Andrew não desviou os olhos dele quando disse aquilo.

— Bom, hm… — Ele limpou a garganta, desviando o olhar primeiro. Não havia muito para ver naquela rua, mas sua casa ficava perto dali. — Foi um fantasma, atropelado no acostamento. Disse que ele era desagradável e que não devia estar falando aquilo quando ele tem o costume de beijar outros garotos no beco atrás do cinema.

— Hm. — Andrew murmurou, parecendo pensativo. — Você acha que isso é um problema?

A pergunta pegou Neil de surpresa: — A hipocrisia? É, um pouco, sim.

Andrew suspirou, o olhando de forma nada impressionada: — Não a hipocrisia. Ser gay.

Neil franziu a testa: — Não é um problema ser gay, é um problema você ser um babaca porque não consegue aceitar isso sobre si mesmo.

— Então você não se importa? — Andrew insistiu, parecendo muito mais sério do que momentos atrás.

— Com pessoas sendo gays? Não , Andrew, não me importo, não é da minha conta. Não sei se você notou, mas eu não estou exatamente em uma posição ideal para julgar as pessoas por serem diferentes da maioria inquisidora dessa cidade.

Andrew pareceu considerá-lo por um momento, como se estivesse decidindo o que dizer a seguir: — Então tudo bem se eu for gay?

Neil não pôde deixar de ficar surpreso novamente, mas um sorriso mais suave se abriu em seu rosto quando percebeu que aquilo se tratava mais da insegurança de Andrew do que de qualquer outra coisa. Ele se sentiu repentinamente menos sozinho, se deparando com a ideia de que Andrew Minyard, imperturbável socador de valentões, se importava com o que Neil pensava: — Pensei que você não se importava com o que as pessoas pensavam.

Andrew bufou, mas sua voz estava baixa quando murmurou: — Você se importa.

— Não sobre isso. — Neil foi rápido em deixar claro. Ele não se importava com os boatos sobre Andrew beijando garotos mais do que se importava com os boatos sobre ele se metendo em brigas por aí.

— As pessoas vão falar. Seth vai dizer pra todo mundo que nos viu no cinema, e então vão começar a provocar você ainda mais. — Andrew estreitou os olhos, um toque de raiva colorindo suas palavras, como se ele quisesse começar uma briga – como se ele quisesse que Neil ficasse com raiva, como se esperasse que Neil caísse na real e empurrasse Andrew para longe.

Bom, não ia acontecer, não depois de eles terem jogado Seth Gordon no chão juntos. Não depois que Andrew o viu falando com o ar no cemitério e estendeu a mão ao invés de virar as costas.

Ao invés de dizer qualquer uma dessas coisas, porque era absurdamente sentimental para algo que nem era uma amizade ainda, Neil deu de ombros: — Você se importa se as pessoas acharem que estamos namorando?

Andrew franziu a testa, e quase parecia confuso: — Eu… Não sou eu o problema aqui.

— Bom, eu não sou o problema também, então… acho que não temos problema nenhum. — Neil sorriu, se desencostando do muro — Minha casa é perto daqui, quer ver minha coleção de filmes de terror?

Andrew o encarou por um longo momento, o olhando como se não conseguisse acreditar no que estava vendo, mas por fim ele acenou, suspirando pesadamente.

— Vamos ver se você tem um gosto melhor para filmes do que pra amigos, Josten.

Eles seguiram lado a lado pela calçada, e Neil não conseguia parar de sorrir enquanto repetia em sua mente a voz de Andrew os chamando de amigos.



👻



Neil tinha um amigo.

Cerca de dois meses tinham se passado, e Neil ainda tinha um amigo, o que era muito mais do que ele esperaria de sua até então tediosa vida como o garoto estranho da cidade. Não ajudava em nada o fato de Andrew ser simplesmente a pessoa mais legal do mundo!

Ele era engraçado, inteligente, adorava filmes de terror e não se importava que Neil falasse com fantasmas. Ele era o pacote completo.

Ele também não tinha medo de Seth – apesar de Gordon ter jurado os dois e morte depois do dia no cinema – e as pessoas na escola tinham medo o suficiente dele para evitar os sussurros maldosos, ou pelo menos evitá-los onde Neil podia ouvi-los.

Os armários vandalizados eram outra história, é claro, mas as pessoas sempre eram mais babacas quando tinham o anonimato do lado delas.

— Ugh, vocês são tipo almas gêmeas de bullying, ou algo assim. — Aaron resmungou, enquanto Andrew e Neil analisavam os prós e os contras de deixar a pichação dessa vez.

Aaron havia sido uma adição inusitada em toda a equação; ele e Neil não eram amigos, mas na maior parte do tempo parecia que Aaron e Andrew tampouco. Coisa de irmão mais novo , era o que seu amigo costumava responder toda vez que Aaron era um babaca.

— Cala boca, Aaron. — Neil resmungou de volta, suspirando e pegando o produto de limpeza em seu armário.

— É, cala boca, Aaron. — Andrew zombou, aceitando o pano extra que Neil mantinha em seu armário agora.

Aaron soltou um som ofendido: — Vocês estão me atacando por dizer a verdade! Sério, devíamos só mostrar essa merda pra Bee.

— Envolver os adultos só vai piorar as coisas, e nem sabemos quem continua fazendo isso. — Neil bufou, menos irritado com Aaron do com a situação em si.

— Não sabemos? — Aaron olhou dramaticamente para o outro lado do corredor, onde Seth e seus amigos idiotas estavam falando alto e sendo inconvenientes como sempre.

— Já temos problemas suficientes com Gordon, isso aqui não é nada demais. — Neil insistiu, porque lidar com pichações maldosas era melhor do que lidar com o garoto os perseguindo ativamente quando estivessem fora da escola. Até então eles estavam fazendo um bom trabalho em evitar tanto ele quanto seus capangas nas ruas, mas Neil não estava prestes a jogar mais lenha naquela fogueira, não importa o quanto Andrew o considerasse um agente do caos.

— Bom, o que você disser, Sr. “Viadinho Fantasma” — O sorriso de Aaron era provocador enquanto lia o insulto no armário laranja brilhante de Neil.

— O Sr. Viadinho Fantasma vai chutar sua bunda se você não ficar quieto, cópia mal feita! — Neil se voltou para a tarefa que tinha em mão, ignorando a risada alta de Aaron e o fato de que talvez ele não o detestasse tanto assim.

Neil continuou esfregando o armário até Andrew parar ao seu lado novamente: — Vamos ir embora logo, Bee fez lasanha ontem e temos que chegar antes do Matt se quisermos as sobras.

— Você não limpou seu armário direito — Neil apontou, as palavras “Monstro Queer” apenas meio desbotadas. Andrew deu de ombros, despreocupado.

— É uma perda de tempo de qualquer forma. — Explicou, como sempre fazia, apesar de sempre aceitar o pano reserva de Neil. — Agora pare de enrolar, aposto que vai ter outra calúnia escrita aí amanhã.

Neil suspirou, jogando suas coisas no armário e o trancando novamente. O sol estava escondido por nuvens cinzentas quando ele e os gêmeos saíram pelos portões da escola, e a perspectiva de passar uma tarde preguiçosa na casa de Andrew, entre sobras de lasanha e vídeo-games que ele mal sabia jogar era tentadora.

Eles estavam na metade do caminho, com Aaron reclamando sobre como Neil ia arruinar seu progresso no jogo quando o caminho deles foi interrompido.

— Neil! — O homem desgrenhado chamou, e o coração de Neil acelerou quando o reconheceu.

— Hm, tio Stuart, oi… — Ele cumprimentou, incerto, quando seu tio se aproximou. Ele não parecia muito diferente desde a última vez que o tinha visto, pouco mais de um ano atrás, quando o FBI achou que seria uma boa ideia deixá-lo com seu parente mais próximo antes de tentar a proteção à testemunhas. Naquela época seu nome ainda era Nathaniel Wesninski, e ele havia sido uma peça chave para a morte do próprio pai depois que o Açougueiro de Baltimore assassinou Mary Hatford. Stuart era irmão mais velho de sua mãe, não que eles tivessem qualquer contato antes dela morrer.

O que aconteceu foi que eles foram até Palmetto, no meio do nada da Carolina do Sul, e encontraram… bem, eles encontraram um homem que não tinha condições de cuidar de uma criança, e que vivia como um eremita alucinado em sua casa no topo da colina. Rapidamente o agente Browning decidiu que o melhor seria mudar o nome de Neil e deixá-lo sob os cuidados de David Wymack, ex-agente que havia escolhido se aposentar na cidade depois de um acidente em campo.

Foi assim que Neil ganhou uma família, irmãos mais velhos e tudo, mas foi também como ele passou a morar na mesma cidade que o irmão de sua mãe, que conseguia ser considerado mais maluco do que ele, se é que isso era possível.

Tio Stuart tossiu, um som seco, longo e dolorido que fez com que os três garotos se encolhessem um pouco: — Desculpe, desculpe, estou um pouco resfriado esses dias… — Ele explicou com a voz rouca, respirando com dificuldade — Neil, ainda bem que te encontrei aqui, nós precisamos conversar, é urgente-

— Eu não devia conversar com você. — Neil o interrompeu, nervoso. Ele não tinha medo de seu tio, sabia que ele não era uma ameaça, mas o homem sabia de coisas sobre as quais Neil não queria falar, coisas que Andrew e Aaron não precisavam saber, pelo menos não ainda. Cada uma dessas coisas ameaçavam se mostras na forma como seu tio o olhava, como se visse os resquícios de Mary e Nathan nele, e na forma como sempre hesitava um pouco quando ia dizer seu novo nome. — Browning e Wymack me disseram que era melhor a gente não manter contato, tio Stuart.

Seu tio bufou, esfregando os olhos como se estivesse tentando espantar uma dor de cabeça persistente: — Sim, sim, certo, eles disseram isso mesmo… — Ele deixou as mãos caírem, meio derrotado, mas não foi embora. — Olha, eu sei que não temos o melhor dos relacionamentos, ou, bem, qualquer relacionamento, mas eu preciso que você me escute, tudo bem? É um assunto de extrema importância!

Neil sentiu seu estômago torcer, se virando para Andrew enquanto torcia para não parecer tão desconfortável quanto se sentia: — Podem ir indo na frente, encontro vocês logo mais.

Ele viu a recusa no rosto de Andrew antes que ele pudesse abrir a boca, mas, surpreendentemente, foi Aaron quem falou, petulante: — De jeito nenhum!

Pela primeira vez, os gêmeos Minyard pareciam concordar com alguma coisa.

— Vamos ficar. — Andrew soou resoluto, firme como sempre. Neil não pode evitar aquele sentimento quente e pegajoso em seu peito, mesmo que definitivamente não quisesse ter aquela conversa com seu tio, seja ela qual fosse, na frente de seus amigos.

Bom, ele sabia que Andrew não iria sair dali sem Neil, e que não havia chance de Aaron sair de lá sem Andrew, então ele apenas suspirou e se voltou para seu tio, torcendo para que, o que quer fosse, não tivesse nada a ver com sua antiga vida: — Acho que podemos conversar… um pouco.

Tio Stuart não parecia muito ciente de toda a troca entre os garotos, mas soltou mais uma tosse dolorosa que o fez se curvar antes de recuperar o fôlego o suficiente para falar: — Neil, você já ouviu falar sobre a maldição da bruxa? — Ele perguntou, sua voz não mais do que um murmúrio áspero.

Neil franziu a testa: — Hm, sim, todo mundo na cidade conhece… — E isso era definitivamente um eufemismo; Palmetto havia sido construída ao redor daquela lenda macabra, usando a figura da bruxa pontuda e maldosa como jogada de marketing em cada comércio da cidade, perdendo, talvez, apenas para Salém, o que era ainda uma comparação injusta, considerando que ninguém com bom senso ia fazer turismo sobrenatural ali.

Em sua história, Palmetto havia enforcado uma única bruxa há cerca de 300 anos atrás, e nada de muito paranormal aconteceu no lugar desde então.

Quer dizer, nada além de Neil, mas ele nem ao menos havia nascido na cidade, apesar de sua mãe ser de lá, então dificilmente contava.

— Bom, bom , isso é muito bom. — Tio Stuart divagou, se apoiando no poste cinza logo ao lado quando pareceu perder o fôlego novamente. Agora que prestava mais atenção, Neil podia ver como ele estava pálido, suando frio — E os fantasmas? Ainda vê os fantasmas?

Neil se contorceu, cada segundo mais nervoso com o rumo daquela conversa. Ele não sabia que seu tio acreditava nele – na verdade, nem sabia que seu tio estava ciente dos boatos, vivendo isolado naquela colina.

De qualquer forma, Neil acenou com a cabeça lentamente: — Hm, sim, tio Stuart, ainda vejo os fantasmas. — Ele ignorou o olhar de leve descrença silenciosa de Aaron, se focando mais no claro alívio de seu tio e na completa falta de reação de Andrew, que encarava Stuart fixamente como se ele fosse uma criatura hostil.

— Isso é ótimo, ótimo mesmo. Porque vou te contar uma coisa, e você precisa acreditar em mim e fazer exatamente o que eu vou te dizer pra fazer, garoto, porque… — Ele parou por um segundo, hesitante, sua respiração pesada e ruidosa apesar de estar parado no lugar — Porque estou morrendo. Não vou durar muito tempo, e preciso passar essa tarefa pra frente enquanto ainda posso, ou todos vão sofrer as consequências.

Neil sentiu seu coração caindo no estômago: — O que? Você está morrendo? Mas tio Stuart-

Seu tio levantou uma mão pálida, o interrompendo com calma: — Não há nada que possa ser feito agora. Minha hora está chegando, e já fiz as pazes com isso. Agora, o que importa é que… — Seu tio se aproximou um pouco, mais sério e focado do que Neil já o havia visto antes — Eu vejo os fantasmas também. — A confissão foi sussurrada entre os dois, e por um momento foi como se o mundo todo parasse, como se não tivesse mais ninguém no mundo além deles dois.

— Você… — Neil ofegou diante daquela ideia absurda — Você os vê também…?

— Sim, Neil, eu os vejo. Os vejo desde que era pequeno. — Seu tio suspirou, jogando aquela bomba em cima dele como se não fosse nada — Acho que os vejo desde sempre, mesmo antes de me lembrar. E isso nos torna especiais, isso faz com que nós sejamos os únicos capazes de fazer o que precisa ser feito.

— O que é que precisa ser feito? — Um frio espectral o envolveu, guerreando com aquela sensação brilhante de saber que existia alguém como ele.

Não estou sozinho , era o que esse sentimento brilhante dizia, mas o frio da morte sussurrava outra coisa de forma perversa nos recessos de sua mente.

Os mortos estão voltando, os mortos estão voltando, os mortos estão voltando…

— A maldição da bruxa precisa ser detida mais um ano. — Seu tio disse as palavras com firmeza, dez pregos sendo marteladas em um caixão — Como precisará ser detida para sempre, e só nós podemos fazer isso. A nossa voz é a única que ela é capaz de escutar.

Aquele frio derreteu em uma poça de medo em seu peito, aquela visão que teve dois meses atrás o sacudindo como um pesadelo, aquele rosto de raios e rancor cuspindo palavras venenosas em sua direção enquanto a floresta se fechava ao seu redor.

Porque aquela não havia sido a única vez que teve uma visão.

Havia acontecido outras duas vezes; uma vez Neil estava em casa, sozinho, quando o mundo começou a queimar nas bordas novamente, e sua sala de estar deu lugar para uma sala de estar diferente, de frente para uma lareira antiga de pedra onde um fogo baixo queimava. Diante dele tinha uma garotinha, com não mais do que sete anos, com seus cabelos escuros e olhos cinzas enormes.

Ela estava respirando com dificuldade, encolhida no pequeno ninho de cobertores perto do fogo, e Neil sentiu uma dor terrível o atravessando, como se alguém tivesse perfurado seu peito com uma lança.

Na segunda vez ele estava na escola, e o corredor queimou para dar lugar à floresta, as árvores nodosas e escuras, o céu nebuloso e o chão coberto de folhas mortas. A visão só permitiu que ele olhasse por um momento para uma árvore especialmente alta em uma clareira no meio da floresta, onde uma corda havia sido pendurada, antes que o toque cuidadoso de Andrew o trouxesse de volta enquanto ele o afastava dos olhares e sussurros dos outros alunos.

A bruxa , ele pensou, mas não queria ouvir nada daquilo, não queria nem pensar naquelas visões horríveis.

— Não. — Ele disse, firme, desesperado. — Não sei do que você está falando. É só uma lenda estúpida, não é real .

— Você sabe que não estou mentindo, garoto, você- — Mas Stuart parou, seus olhos se estreitando levemente, como se tivesse tido uma epifania — Você viu, não viu? Viu as lembranças da bruxa, as visões.

Neil recuou um passo, negando com a cabeça veementemente apesar da mentira frágil: — Já disse que não sei do que você está falando! Você está me assustando!

— Neil! — Seu tio elevou a voz — Não minta pra mim! Você a viu, não viu? — Ele avançou, parecendo querer sacudir a verdade para fora dele, mas no mesmo momento, antes que Andrew e Aaron pudessem avançar contra o homem, uma quinta figura surgiu, se colocando facilmente entre Stuart e os três garotos.

— Ei, ei, cara, pra trás! — Matt, irmão adotivo mais velho dos gêmeos, ergueu uma mão, empurrando Stuart levemente para trás e arrumando a postura. Isso fazia com que seus ombros parecessem ainda mais largos, exibindo seu físico malhado de quarterback e deixando claro que era consideravelmente mais alto que Stuart também. Quando Stuart recuou, se apoiando pesadamente no poste, Matt olhou para eles por cima do ombro — Vocês estão bem aí, garotos?

As palavras ficaram presas na garganta de Neil, mas Aaron foi rápido em acenar, e Andrew segurou o braço de Neil, o puxando para perto e para longe de seu tio, sutilmente se colocando um pouco na frente dele enquanto acenava para Matt: — Estamos bem.

— Certo! — Matt sorriu pra eles, seus dentes perfeitamente retos e brancos brilhando contra sua pele escura e olhos simpáticos. Claro que ele não parecia tão simpático quando se voltou para Stuart — Acho melhor você seguir seu caminho, parceiro. Você certamente tem coisas melhores pra fazer do que incomodar garotos de 12 anos, e se não tiver, eu vou te dar outra coisa com a qual se preocupar. — A ameaça parecia mais perigosa com a forma como seu sorriso não sumiu nem por um segundo, e como sua voz permaneceu leve e alegre. — Estamos entendidos?

Apesar do claro descontentamento, Stuart bufou, arrumando suas roupas amassadas o melhor que pôde: — Não é preciso se estressar, rapaz. Eu já falei o que precisava. — Ele lançou mais um olhar pesado para Neil, um olhar que conhecia toda a verdade, sem qualquer tipo de subterfúgio ou enganação.

Olhos que viam Neil pelo que ele era, por sua história sangrenta e nome carregado de violência.

E assim tio Stuart atravessou a rua e sumiu por um beco sombrio, fazendo jus à sua reputação não muito lisonjeira.

Os quatro ficaram na calçada em silêncio por alguns segundos, certamente absorvendo a situação inusitada. Neil, pelo menos, estava se sentindo um pouco tonto.

Por fim, foi Matt que quebrou o silêncio, quando todos pareceram concordar sem palavras que Stuart não ia pular do arbusto mais próximo para assustá-los: — Afinal, quem era o esquisitão?

Aaron bufou: — O tio do Neil, quem mais?



👻



— Você não está bem. — Andrew constatou no final daquela tarde, horas depois de terem voltado para a casa dos Minyard-Dobson-Boyd para os videogames e restos de lasanha prometidos. Neil tinha insistido no fato de estar absoluta e perfeitamente bem quando se viu sob a atenção preocupada de Matt, mas sabia que Andrew o conhecia melhor, e que, diferente das outras pessoas, não aceitava desculpas frágeis apenas porque era mais fácil.

Agora, com os dois andando sozinhos até a casa de Neil para uma festa do pijama de última hora – mais porque não tinha jeito de Andrew deixá-lo caminhar sozinho pra casa, e porque Neil tampouco ia deixá-lo voltar sem companhia –, com o sol já ameaçando se pôr à oeste, ele sentia suas defesas caindo.

— Eu… — Mas ele não sabia bem o que dizer. Ficou repassando a conversa com seu tio a tarde toda, perdendo no videogame mais por desatenção do que falta de habilidade dessa vez, mas nada fazia sentido ainda. — Não sei bem como estou.

— Você ficou assustado. — Havia algo um pouco tenso na voz de Andrew, como preocupação, mas com mais raiva.

Neil pensou no misto nauseante de coisas que sentiu no começo daquela tarde, e assentiu.

— Fiquei, mas… não foi porque ele me assustou, foi porque… — Ele parou de andar, segurando as duas alças de sua mochila como se elas fossem bóias salva-vidas. Quando ele levantou seu olhar para Andrew, seu amigo havia parado também, e o encarava de volta intensamente — Foi porque eu a vi. Eu acho que vi a bruxa, Andrew , e não acho que foi só uma vez… Fiquei assustado porque talvez seja verdade…

— Aquelas visões que você teve. — Andrew concluiu facilmente — Com os ataques de pânico.

Neil assentiu, impossivelmente agradecido por Andrew sempre acreditar nele: — Eu a vi naquele dia no cemitério, quando nos conhecemos. Não sabia bem o que tinha visto até então, mas era… era um rosto , me dizendo que os mortos estavam voltando . Assim como na lenda.

— Então você realmente acha que pode ser verdade. — Não havia julgamento em Andrew. Nunca havia, pelo menos nunca direcionado à Neil. — Se você quiser investigar, tudo bem, podemos fazer isso, mas não quero que você vá falar com aquele homem sozinho.

Aquele calor intrusivo o invadiu novamente, mas Neil concordou: — Tudo bem, não vou e não sei se quero me envolver realmente nisso. — Neil deu de ombros, imaginando se ignorar a situação faria com que ela fosse embora. Tentou se consolar pensando que, talvez, seu tio só fosse meio pirado mesmo, com toda a história de bruxas e maldições, e que Neil era só meio pirado também. — Mas sabe… ele não é perigoso nem nada do tipo. Só é meio excêntrico.

Andrew bufou, agarrando umas das alças da mochila de Neil e voltando a andar: — Você é meio excêntrico. Aquele cara é perturbado.

Apesar de tudo, Neil riu: — A linha pode ser bem tênue, sabe.

— Não tão tênue assim. — Andrew revirou os olhos — De qualquer forma, o Halloween tá logo aí, e nós vamos pedir doces. Nem adianta fazer essa cara, você vai me ajudar! — Eles começaram a conversar sobre os seus planos para o feriado, a mão de Andrew o segurando durante todo o caminho até em casa.



👻



Neil não conseguia parar de pensar, aquela voz sombria e cheia de fúria o assombrando mais do que qualquer fantasma, e durante a noite, até as árvores pareciam sussurrar: os mortos estão voltando, os mortos estão voltando, os mortos estão voltando…



👻



Era 31 de Outubro e tio Stuart estava morto.

Foi uma constatação fácil de se fazer depois que encontrou o espírito dele – ainda pálido, cansado e nervoso – o esperando no banheiro masculino entre o terceiro e o quarto período, o que era uma droga por si só.

De alguma forma, ele parecia melhor do que da última vez em que Neil o viu, o que queria dizer muita coisa sobre o estado de sua doença – bom, pelo menos ele não estava mais tossindo desesperadamente.

Neil verificou cada uma das baias, garantindo que estava sozinho, antes de se voltar para o tio morto, com os olhos arregalados.

— Você morreu! — Neil acusou, se sentindo quase traído. Bom, ele sabia que seu tio estava morrendo, e não era como se eles se conhecessem muito, ou tivessem qualquer tipo de relação familiar, mas a noção de que a única pessoa naquele fim de mundo que poderia entender Neil e sua maldição completamente tinha simplesmente morrido menos de uma semana depois de Neil descobrir a verdade, o enfureceu um pouco. — Você está… morto, tipo, morto mesmo!

Stuart revirou os olhos: — É assim que a morte funciona normalmente, sim, e eu disse que minha hora estava chegando.

— Bom, eu não imaginei que chegaria tão rápido . — Neil cruzou os braços, indignado — Espera… O que você está fazendo aqui, afinal? — Ele perguntou, se sentindo repentinamente cauteloso. Não queria exatamente saber a resposta para aquilo, porque achava que sabia exatamente o que seu tio morto ia dizer.

— Bom, — Seu tio suspirou, flutuando levemente acima do chão, mesmo que ainda parecesse carregar um peso invisível nos ombros — Aparentemente você é meu assunto pendente, como era de se esperar.

— Não sou assunto pendente de ninguém, cai fora! — Neil odiou como sua voz tremeu. Ele tentou muito não pensar em seu tio e em toda aquela história de maldição nos últimos dias, e quase se convenceu de que podia quando nenhuma nova visão horrível o pegou de surpresa, apesar das visões que teve até então ainda o assombrarem um pouco. Afinal, é fácil ignorar coisas que não entendemos.

O problema, é claro, é que Neil entendia fantasmas até demais.

— Chega de fugir, garoto, você é o único que pode fazer isso! Eu preciso que você assuma meu lugar, Neil! Isso não é uma brincadeira . A cidade depende disso, e as pessoas que vivem aqui também; seus amigos, sua nova família. — Stuart flutuou para perto, translúcido e azulado, como se tivesse sufocado até a morte. — Se a bruxa acordar, tudo isso estará em perigo.

— Isso não pode ser real, isso- A bruxa- Isso é uma história de terror idiota! — Neil sabia que estava sendo irracional, embora nada na situação parecesse racional de qualquer forma.

Tio Stuart, morto , ergueu uma sobrancelha grisalha pra ele: — Uma história de terror idiota como fantasmas?

Neil franziu a testa, abrindo a boca para retrucar, mesmo sabendo que seu tio tinha um bom ponto. No final das contas, quem era Neil para determinar o que era ou não absurdo?

— Olha, — Neil respirou fundo, esfregando as mãos no rosto e tentando se recompor — Mesmo que isso seja verdade, você não pode simplesmente jogar isso em cima de mim assim! Eu não sei o que fazer, eu-

— Neil, se acalma! — Seu tio o interrompeu — Tudo que você precisa é ler o livro no túmulo da bruxa hoje, antes do pôr do sol, e acabou, tudo resolvido por mais um ano.

— E eu vou ter que fazer isso pro resto da vida?!

— Bom, sim , mas só no dia 31 de outubro, então você não precisa exatamente ficar preso nessa cidade miserável como eu! — Tio Stuart fez uma careta, como se estivesse repassando anos de vida desperdiçados em sua mente. Mas então seus olhos esbranquiçados pela morte se voltaram para Neil com uma intenção clara, com uma determinação que fez Neil querer recuar novamente — Você precisa me prometer, Neil! Você precisa prometer que vai ler o livro pra bruxa hoje, antes do pôr do sol!

A finalidade naquele pedido fez o coração de Neil acelerar. Ele pensou em Wymack, Dan e Kevin. Pensou em Aaron, Matt e na Sra. Dobson. Pensou até mesmo em Renee e seus sorrisos gentis quando o deixava entrar de graça no cinema.

Pensou em Andrew, seu primeiro amigo. Seu melhor amigo.

Pensou então naquela voz, e em sua ameaça raivosa e sussurrante, sua promessa de morte e destruição.

Antes que pudesse se impedir, acenou com a cabeça: — Eu vou… Eu vou fazer isso, tio Stuart, pode deixar. — Ele engoliu em seco, tentando controlar os nervos. Certo, ele já tinha feito coisas muito mais assustadoras do que isso; ele fugiu a pé da casa de seu pai enquanto ele matava sua mãe queimada. Ele expôs os crimes do Açougueiro para o FBI. Pelo amor, ele disse que Seth Gordon era um gay enrustido com pais viciados na cara dele .

Ele podia ler um livro em um túmulo.

Mas havia uma questão importante antes.

— Onde está o livro? — Ele perguntou, olhando para seu tio novamente e notando o absoluto alívio em seu rosto caído.

Stuart estendeu as mãos vazias: — Está nas minhas mãos!

Neil ergueu uma sobrancelha inquisidora: — Hm…

Tio Stuart bufou: — Não essas mãos! Minhas outras mãos, no meu corpo que já está começando a ficar com um cheiro estranho lá na minha casa.

Neil estremeceu com a ideia: — Você quer que eu invada sua casa e roube um livro do seu corpo morto?!

— Qual é, garoto! Você consegue! Te dou total permissão para queimar aquela carcaça velha se for preciso. Seja o corpo ou a casa, tanto faz! Tem uma chave reserva embaixo do gnomo mais feio do jardim, não tem como errar.

Neil sentia que ia se arrepender muito daquilo.

— Ugh, okay! Eu vou! — Ele gemeu, frustrado consigo mesmo e com o quanto estava sendo estúpido. Isso nunca teria acontecido se Andrew estivesse ali.

— Finalmente! — Tio Stuart suspirou, e aquele peso invisível pareceu, de repente, desaparecer. Foi quase chocante ver o rosto antes caído de seu tio ganhando cor e uma jovialidade inesperada, toda sua figura translúcida, azulada e pálida começando a descascar como pele morta, revelando um brilho quase dourado por baixo.

Neil já tinha visto isso antes, o momento em que um fantasma finalmente desencarnava, cada pendência resolvida. Mortes violentas normalmente não tinham tanta sorte, mas Neil viu alguns que conseguiram achar a paz apesar de tudo.

Em segundos, tio Stuart não estava mais lá, e Neil suspirou no banheiro vazio.



👻



— Espera aí! — Aaron entrou no caminho de Neil, mãos levantadas e sobrancelhas franzidas — Você vai mesmo até a casa do seu tio pirado porque falou com o espírito dele no banheiro da escola e prometeu cumprir a missão maluca de ler um livro mágico no túmulo de uma bruxa? — Ele resumiu, parecendo além de descrente. Quando Neil apenas o encarou, Aaron jogou as mãos para o alto, exasperado — Você só pode estar zoando com a minha cara, não é? Andrew! — Ele se virou para seu gêmeo que, ao contrário dele, parecia imperturbável. — Vamos, coloque um pouco de juízo na cabeça desse lunático! Você não vai deixar ele fazer isso, vai?

Andrew deu de ombros: — Eu não deixo Neil fazer nada, ele não é meu cachorro.

Aaron bufou: — Faça-me o favor! Você é o guarda-costas dele! Você é o cachorro! Tá na hora de guardar as costas dele, dele mesmo!

Neil suspirou: — Acho que você está exagerando. É só ler um livro em um túmulo, eu vou pro cemitério o tempo todo, estou acostumado a… bom, ler perto de túmulos, eu acho. — Neil estava ficando impaciente. O sol ainda estava alto no céu, brilhando forte depois de dias de nuvens pesadas e cinzas, como se zombasse dele. — De qualquer forma , pensei que você não acreditava em todo o lance dos fantasmas!

Aaron gaguejou um pouco, bagunçando o próprio cabelo com um movimento nervoso: — Eu- eu não acredito , okay? Mas também não… desacredito , completamente. Só acho muito estúpido você invadir a casa daquele maluco! No caso de você ser maluco e ele estar vivo, ele pode te atacar, e no caso de você não ser tão maluco e ele estiver morto, você vai estar encontrando um corpo! — Aaron pontuou cada frase com um movimento agressivo de mãos. — Pelo amor de Deus, eu não posso ser a parte sã desse trio de merda! — Ele indicou os três como se eles fossem cada uma ponta de um triângulo.

Andrew suspirou, levantando as duas mãos e as deixando cair com tudo nos ombros do irmão, o movimento chacoalhando Aaron com força, de forma firme e resoluta: — Aaron, para de surtar. Você vai voltar pra casa, e vai agir como se tudo estivesse normal, então vai garantir pra quem precisar ouvir que nós estamos bem, entendeu? Diga que estamos na biblioteca ou algo do tipo, ou no cinema vendo uma maratona de filmes de terror que você acha um saco. Não deve demorar muito, mas precisamos que você nos dê cobertura caso isso demore mais do que o esperado. Você pode fazer isso?

Aaron ficou em silêncio, mas não se desvencilhou do toque de Andrew, o encarando longamente como se procurasse uma garantia de que aquela loucura era a coisa certa a fazer.

Andrew se remexeu, impaciente: — Aaron, você pode fazer isso?

Por fim, Aaron concordou, sua postura desinflando como se ele fosse um balão murcho: — Eu posso, mas estou falando sério, se vocês morrerem ou forem presos, eu vou falar que não sabia de nada!

E assim um plano de ação foi formado.



👻



A casa no topo da colina parecia pender perigosamente, como se fosse deslizar morro abaixo a qualquer momento. A pintura azul estava descascando, e toda a construção carregava traços indiscutíveis de abandono, com a hera meio morta cobrindo uma parte significativa das paredes e do telhado inclinado e musgo verde escuro tomando conta da fundação.

— Esse lugar é sinistro. — Neil comentou, quando eles se aproximaram, garantindo que ninguém estava por perto. O lugar estava silencioso, quase silencioso demais , e ambos largaram suas bicicletas perto de um carro tão mal cuidado quanto na entrada da garagem.

— Diz o cara que vê espíritos deformados todos os dias. — Andrew brincou, talvez tentando deixar a situação menos tensa.

Neil poderia ter o provocado de volta, mas estava muito nervoso, então ao invés disso só conseguiu sussurrar: — Desculpe por atrapalhar nossos planos pro Halloween, e obrigado por ter vindo comigo…

Andrew parou, o encarando daquele mesmo jeito de sempre, e então estendeu a mão: — É claro que eu vim, não posso te deixar se meter em problemas sozinho. Eu nem gosto tanto assim de doces, de qualquer forma.

Neil aceitou a mão estendida, sentindo uma estranha segurança em ter Andrew ao alcance das mãos, um toque firme e quente que espantou um pouco do frio que já o ameaçava diante do que veria dentro daquela casa.

Claro, não seria a primeira vez de Neil vendo um corpo – na verdade, provavelmente seria muito melhor do que todas as outras vezes em que Neil viu um corpo.

Pelo estado do fantasma de seu tio, ele havia morrido de forma quase branda, sem violência ou pedaços faltando, o que era muito mais do que podia dizer das vítimas de seu pai.

Como seu tio disse, a chave reserva estava embaixo do gnomo de jardim mais feio da face da terra, e a porta se abriu facilmente para eles, quase convidativa. O cheiro de morte, porém, os atingiu em cheio no mesmo segundo.

Não necessariamente a morte recente de seu tio – embora Neil achasse que o corpo no sótão contribuísse –, mas o cheiro de morte que vem com o descaso, com a putrefação de coisas não exatamente vivas. Vinha com um ranço de bolor e umidade, comida velha e janelas fechadas há muito tempo. Poeira, mofo e sujeira antiga.

A aparência do lugar não estava muito melhor que o cheiro, para ser sincero; o pequeno hall onde eles entraram estava escuro e o chão de madeira rangeu sob seus pés, pouco firme. Um espelho quebrado pendia perigosamente de uma das paredes ao lado porta, e pilhas quase comicamente altas de cartas lacradas se equilibravam em um canto. Uma escada longa e antiga começava no hall e levava para os segundo andar, o corredor que levava para o resto do primeiro andar ainda mais sombrio e agourento do que o hall.

Neil ficou surpreso em não encontrar nenhum fantasma ali, imaginando que a vida de seu tio havia sido realmente solitária se nem mesmo os mortos se ocuparam com o lugar.

— Esse lugar é nojento. — Andrew empurrou algumas cartas avulsas que se espalharam pelo chão com a ponta do all star preto, fazendo uma leve careta.

— É bem triste, na verdade. — Neil tentou não respirar muito fundo — Vamos, ele disse que estava no sótão.

Eles subiram as escadas com cautela, passos lentos e cuidadosos, embora não conseguissem evitar os rangidos na madeira antiga. O segundo andar não parecia estar em um estado muito melhor, embora fosse melhor iluminado. A escada que levava, supostamente, para o sótão, era bem mais estreita, e não tão antiga, embora parecesse ainda mais frágil. Levava diretamente para uma porta pesada e escura, com uma maçaneta dourada e encardida no formado de uma cabeça de leão.

Neil estendeu a mão livre, ainda segurando a de Andrew firmemente com a outra, mas hesitou um momento.

— Neil… — Andrew o chamou, sua voz baixa, quase gentil. — Eu posso fazer isso se você não quiser.

Por um segundo, Neil quis aceitar. Seria tão fácil descer as escadas e esperar Andrew ali, não precisar ver o corpo de seu tio quase desconhecido apodrecendo no chão. Seria tão fácil.

Mas ele não queria que Andrew passasse por isso também, porque um corpo ainda era um corpo, por menos bagunçado que estivesse.

Neil suspirou, negando com a cabeça: — Está tudo bem. Se você quiser esperar aqui-

Andrew, é claro, foi rápido em interromper: — Já disse que não vou deixar você sozinho.

Neil se lembrou da primeira vez que viu uma pessoa morta – não seu espírito, mas seu corpo. Se lembrava do sangue, da ânsia de vômito, do cheiro de ferro e medo no ar. Ele sabia que tio Stuart não estava assim, mas não saber disso não diminuiu em nada sua vontade de proteger seu amigo.

Andrew… O corpo dele está lá dentro. Ele está morto . Você não precisa ver isso.

Andrew franziu a testa: — E você precisa?

Neil sentiu o calor de sua frustração soltando sua língua: — Já vi corpos antes. — Ele revelou, esperando qualquer coisa; curiosidade na melhor das hipóteses, desconfiança na pior.

Andrew, porém, não recuou com isso: — Eu também. Parece que você não tem desculpas agora.

Neil ia discutir, quando registrou o que Andrew havia falado: — Você já viu?

Andrew hesitou por apenas um segundo antes de dar de ombros: — Eu estava no carro com Tilda no dia do… acidente . Por isso as pessoas dizem por aí que eu matei ela, porque acham que eu fiz ela bater o carro de propósito como vingança por ela ter me abandonado.

Neil não sabia bem o que dizer. Sabia que um sinto muito não seria apreciado, porque Andrew não sentia nada além de aborrecimento pela lembrança da mãe morta, e Neil entendia; ele havia visto os resquícios de abuso em Aaron mais de uma vez, como ele estremecia quando uma professora gritava, e como ficava mais retraído e na defensiva perto de adultos. Isso, somada a história que Andrew lhe contou sobre ter sido mandado para a adoção e só ter conhecido Aaron quando ambos tinham oito anos, pouco antes de Tilda morrer e eles serem adotados por Betsy Dobson, pintava um quadro muito claro para Neil, que havia experimentado suas próprias formas de abuso parental desde pequeno.

Ao invés de qualquer besteira sentimental desnecessária, Neil aceitou aquela confissão pelo que era, e concordou, decidindo que poderia estender uma verdade própria em troca: — Meu pai biológico era… — Ele começou, meio incerto, mas determinado. Era apenas difícil descrever Nathan Wesninski, o Açougueiro de Baltimore, com palavras despretensiosas — Ele matou pessoas. Muitas pessoas. É por isso que acham que eu sou louco, acreditam que tenho estresse pós-traumático e por isso me convenci de que vejo gente morta. — Ele nunca tinha falado sobre isso com ninguém, nem com Wymack e seus irmãos, embora eles soubessem de toda a verdade. Ele sabia que era isso que todos que sabiam de sua história sangrenta pensavam, porque era um salto lógico previsível.

Por muito tempo ele próprio achou que podia ser o caso, mas então as coisas que os fantasmas lhe diziam em segredo foram se provando verdade, e ele deixou esse medo de lado. Andrew ajudou nisso também, acreditando nele com tanta facilidade.

E lá estava Andrew, o encarando com aquele olhar aberto, cheio de compreensão: — Bom, então nós dois vimos corpos antes. Vamos pegar esse livro de uma vez.

Neil assentiu, tomando coragem e agarrando a maçaneta. A porta se abriu com um rangido lamentoso, a madeira estalando como se a casa toda fosse se desfazer em pedaços se eles apenas ousassem respirar.

Ao contrário do que o restante da casa sugeria, o sótão era surpreendentemente arrumado. Um escritório, claramente, embora Neil pudesse ver uma cama de solteiro meio escondida por cortinas de veludo em uma alcova do outro lado da sala. A janela circular acima de uma escrivaninha organizada e apenas coberta por uma fina camada de poeira, estava aberta, deixando entrar uma brisa gelada e uivante, assim como o brilho cada vez mais dourado do sol.

E logo ali, caído no chão no meio do quarto, estava o corpo do tio Stuart, deitado de costas com os olhos vidrados ainda abertos.

O cheiro, como pode-se presumir, não era nada agradável, mas não tão ruim quanto poderia ser.

— E ali está o prêmio. — Andrew indicou com um dedo displicente, apontando para o grande livro antigo com capa de couro marrom e detalhes dourados que descansava sobre o peito inerte do cadáver.

Fácil assim.

— Certo, então… — Neil se aproximou, ainda lentamente, mesmo que soubesse que o tempo estava se esvaindo rapidamente. Ele precisou soltar a mão de Andrew quando eles se colocaram um de cada lado do corpo, o olhando de cima — Ele realmente não podia ter morrido um dia depois de ler esse livro estúpido, podia?

Andrew riu, apesar de tudo, e eles se abaixaram ao lado do corpo. Neil estendeu a mão, tomando cuidado para não tocar nas mãos brancas e certamente rígidas do corpo.

Ele envolveu os dedos das duas mãos ao redor do livro grosso, sentindo o couro macio e gelado se moldando ao redor de seu aperto, mas sua primeira tentativa valente de arrancar a coisa do tio morto falhou.

— Droga, os dedos dele estão duros demais.

— Eu te ajudo.

Andrew fez menção de tocar os dedos do corpo, mas Neil foi rápido em pedir para trocar de lugar com ele. Se ele pelo menos pudesse evitar que Andrew tocasse no cadáver, já ficaria um pouco mais satisfeito consigo mesmo.

Desembaraçar os dedos do tio do livro não foi fácil, mas eles conseguiram, terminando ambos sentados no chão, ofegantes.

— Sabia que não ia ser tão fácil. — Neil gemeu, seus dedos doloridos.

— Não chore, conseguimos o livro no final. — Andrew se levantou, levando o livro pesado consigo, mas estendendo a mão para Neil mesmo assim. Neil aceitou a ajuda, se sentindo repentinamente energizado, mesmo que estivessem prestes a ir até o túmulo de uma bruxa ler um livro de feitiços macabro.



👻



O sol já parecia perigosamente baixo no céu quando a campainha da casa número 35 da rua Foxbury tocou.

Aaron interrompeu seu vai e vem constante ao redor do quarto e correu até a janela no mesmo segundo, espiando o jardim da frente com o coração acelerado. Já era para Andrew e Neil terem voltado, mas, como se pode ver pelo atual estado de desespero dele, esse não era o caso.

Afinal, quanto tempo demora pra roubar um livro velho de um cara morto, pelo amor de Deus?!

E agora todos eles estavam ferrados, porque ninguém mais ninguém menos do que Dan Wymack-Wilds e Kevin Wymack-Day estavam batendo em sua porta da frente, certamente procurando por Neil!

Merda, merda, merda… — Aaron murmurou quando ouviu os passos rápidos de Matt no andar de baixo enquanto ele ia atender a porta. Ele realmente pensou que tinha tirado a sorte grande quando chegou em casa e Matt avisou que Bee teve uma emergência no consultório e ia voltar tarde, mas é claro que a vida não podia ser tão fácil assim. Agora ele ia se meter em uma encrenca enorme por ter acobertado os dois, e então Neil nunca mais poderia ir até a casa deles e Andrew iria derreter em uma poça emo de desespero, raiva e saudade.

Isso, é claro, se os dois estivessem vivos.

Ele ouviu quando a porta da frente foi aberta, e tentou entender o que as vozes abafadas diziam no primeiro andar. Eles estavam procurando Neil, porque é óbvio que estavam.

Ele tentou ficar o mais quieto possível, e não conteve o tremor de corpo inteiro quando Matt gritou: — Aaron, desce aqui!

Aaron amaldiçoou Andrew e seu namorado insano quando saiu do quarto, começando a descer as escadas como quem caminha para a própria execução.



👻



Neil e Andrew pedalaram até o outro lado da cidade, abandonando as bicicletas quando a estrada de terra ficou íngreme demais.

O caminho até o local de descanso dos fundadores era um pouco acidentado, e ficava consideravelmente afastado do cemitério, localizado em uma parte mais alta da floresta, onde o sol brilhava por mais tempo do que no resto da cidade.

Quando eles chegaram no topo, o sol já estava baixo no céu, e o relógio de Andrew marcava 17:27 da tarde.

O lugar não era tão grandioso quanto as pessoas faziam parecer. A vista era bonita, mas o lugar todo parecia particularmente melancólico, e não apenas por conta das sete lápides dispostas em um círculo no espaço sem árvores.

Assim como a casa do tio Stuart, aquele lugar parecia abandonado, intocado tanto pelos vivos quanto pelos mortos, e algo sobre como a grama morta parecia quebradiça sob seus pés e como não podia ouvir nem mesmo o som dos insetos, o deixou nervoso.

Neil encarou cada uma das lápides com uma sensação pesada no peito, e estava prestes a abrir o livro pesado quando, de repente, se deu conta de uma coisa.

— Andrew… — Ele chamou, sua voz baixa e meio trêmula, analisando cada um dos túmulos ao seu redor mais uma vez.

— O que foi? — Andrew correu para o seu lado, sobrancelhas franzidas.

Neil mal conseguiu sussurrar: — Tem sete túmulos. — Ele contou novamente — Sete túmulos, para sete fundadores. A bruxa não está aqui. — Andrew parou por um momento, olhando ao redor também. — Andrew, onde está o túmulo da bruxa? Pensei que ela tinha sido enterrada aqui!

Andrew não respondeu, mas o sol estava cada vez mais baixo, a clareira no topo da floresta ficando mais escura a cada segundo, uma ameaça de gelar os ossos pairando no ar. Se Neil ainda tivesse qualquer dúvida sobre a veracidade da maldição, aquele exato momento – no precipício do pôr do sol, com o vento uivando entre as árvores como risadas distantes – o teria convencido. Um arrepio subiu por suas costas, irradiando para cada centímetro de sua pele.

Apesar de tudo, Andrew pareceu sentir isso também.

— Comece a ler. — Andrew murmurou, voz cautelosamente baixa.

— O que? Mas-

— Neil, só comece a ler! Ela ainda pode estar aqui, eles não teriam dado um túmulo para ela de qualquer forma, era uma bruxa! — A ideia parecia frágil, mas Andrew agarrou sua nuca com força. — Você só precisa-

— Ah, olha só se não são os viadinhos de novo! — Uma voz cortou Andrew, e ambos se viraram para encarar o rosto zangado de Seth Gordon enquanto ele terminava de subir o caminho íngreme até o cemitério dos fundadores.

Merda! — Neil praguejou, abrindo o livro na primeira página com pressa. Eles não tinham tempo para Seth agora.

Andrew o soltou: — Só leia, eu cuido disso.

— Seus merdas! — Seth rugiu, sua voz se aproximando enquanto Neil tentava focar nas primeiras palavras do texto. — Eu avisei que vocês estavam fodidos!

O livro estava em francês? Sério? Já fazia mais de um ano que Neil não praticava francês.

— Cai fora, Gordon! — Andrew respondeu, sem demonstrar qualquer coisa além de pura indiferença — Ou eu vou te lembrar exatamente como nossa última conversa terminou.

Il était une fois- — Neil começou, as palavras um tanto hesitantes em seu francês quebrado, a pronúncia quase dolorosa de se ouvir. Parou, respirou fundo, e recomeçou. — Il était une fois... Dans un pays lointain, où les elfes régnaient sur les montagnes et les fées sur les forêts, vivait une princesse qui fut maudite à la naissance…

Seth riu, um som rosnado e ameaçador: — Que merda é essa? Vocês tão fazendo algum ritual satânico estranho? — Neil sentiu mais do que viu Seth se aproximando dele, mas Andrew foi rápido em se colocar no caminho, empurrando Seth para trás com força. — Seu filho da puta…. Você tem sorte que seu namoradinho esquisito fala com fantasmas, Minyard, porque você tá morto!

Fille d'un roi cruel, la princesse fut condamnée à payer pour les erreurs de ses ancêtres, qui n'avaient pas eu assez de cœur pour prendre soin du peuple… — Neil continuou, as palavras ainda trêmulas, mas mais claras do que antes, rolando de forma quase familiar em sua língua, mesmo que o significado da maioria delas lhe escapasse em meio ao nervosismo. A escuridão crescente fazia seu coração trovejar no peito, e o som da briga que se desenrolava entre Andrew e Seth às suas costas era quase o suficiente para destruir sua concentração. — Ainsi, la princesse a toujours su qu'à l'âge de dix-huit ans, son cœur se transformerait en pierre et que toute sa lignée mourrait avec de l'or et des pierres précieuses dans ses veines-

Algo bateu contra as costas de Neil, o lançando para frente e o fazendo cair no chão. As palmas de suas mãos arderam com o impacto e o livro voou para longe, aterrissando com força na terra seca e grama morta. As páginas rolaram, parando em uma arte desenhada a mão de uma mulher com longos cabelos escuros em um vestido vermelho longo e antigo, sentada em um jardim de estátuas. A estátua mais próxima dela era de uma mulher adormecida, feita de pedras preciosas coloridas e ouro amarelo brilhante.

Seth e Andrew praticamente rugiam um para o outro enquanto rolavam no chão, Neil notando de relance o sangue escorrendo do nariz meio torto de Seth e pelo lábio inferior cortado de Andrew.

O lugar já estava quase todo tomado pelo breu do crepúsculo, e Neil se arrastou até o livro caído com desespero. Foi só então que as palavras sem francês começaram a fazer sentido em sua mente.

— Um conto de fadas…? — Ele passou as páginas do livro rapidamente, mas tudo que havia ali, agora que podia pensar um pouco, era um conto de fadas antigo sobre uma princesa e uma plebeia. — Por que isso é a merda de um conto de fadas?! — Ele não entendia, mas foi nesse momento que o último raio de sol sumiu no horizonte, deixando apenas o sol violeta e roxo escuro do início da noite para trás.

E junto com a noite, veio o tremor.

O chão sob Neil começou a balançar, e um trovão estourou nos céus, nuvens escuras e pesadas surgindo do nada. Antes que percebesse, Andrew estava ao seu lado, seu rosto ensanguentado e nós dos dedos em carne viva, mas isso não o impediu de agarrar Neil pela camisa e puxá-lo para cima.

Neil só teve tempo de pegar o livro antes de a terra começar a rachar ao redor dos túmulos dos fundadores.



👻



— Aaron, não acredito que você deixou eles fazerem isso! — Matt suspirou, apertando o volante da van com força enquanto seguiam pela estrada já escura que levava até o cemitério dos fundadores.

Aaron bufou no banco de trás, cruzando os braços: — Como se eu deixasse aqueles dois fazerem qualquer coisa. Eu disse que era uma má ideia, mas eles nunca me escutam!

Dan Wymack-Wilds bufou de onde estava no banco do passageiro: — Isso não importa agora. Vamos apenas torcer pra eles estarem bem. O caminho até lá em cima é meio acidentado, e vai ser um problema se eles voltarem sozinhos no escuro.

— Você tem toda razão, Dan! Precisamos chegar logo até eles! — Matt concordou prontamente, lançando um sorriso brilhante para a garota, que apenas ergueu uma sobrancelha inquisitiva para ele. Aaron revirou os olhos com o quão pouco sutil seu irmão mais velho era.

Kevin, ao lado de Aaron no banco de trás, olhou pela janela com as sobrancelhas franzidas: — É impressão minha ou o céu estava limpo até agora a pouco?

Aaron olhou pela janela também, encarando o céu de aparência apocalíptica sobre eles; nuvens muito densas pareciam dançar umas ao redor das outras em um redemoinho nos céus, raios esverdeados iluminando a imensidão quase roxa da tempestade.

— Nunca vi uma tempestade assim… — Aaron murmurou, tendo um mau pressentimento.

Matt olhou para Aaron e Kevin através do espelho retrovisor, e aumentou o volume do rádio, uma tentativa nobre porém insuficiente para encobrir o som dos trovões lá fora: — Está tudo bem, gente. Vamos encontrar Andrew e Neil e voltar pra casa antes que a chuva comece e-

Foi Dan quem percebeu primeiro as pessoas no meio da estrada, agarrando o ombro de Matt e gritando: — Cuidado!

Matt conseguiu desviar bem a tempo, os pneus da van gritando enquanto eles derrapavam e por pouco não batiam de frente em uma das árvores antigas e nodosas que ladeavam o acostamento.

O motor da van morreu e todos eles se encaram em choque por alguns segundos, todos pálidos, antes que alguém do lado de fora abriu a porta deslizante da van com força, arrancando gritos nada dignos dos quatro passageiros no carro.

É claro que, como a maioria das desgraças em sua vida, Andrew e Neil tinham algo a ver com isso.

— Entra, entra! — Andrew praticamente gritou sobre os trovões, empurrando primeiro Neil e depois o maldito Seth Gordon para dentro da van. O protesto indignado de Aaron morreu quando Seth quase lhe deu uma cotovelada no rosto em sua pressa para pular o banco e cair na parte de trás vazia da van, enquanto Neil se espremia contra Kevin e Andrew seguia logo atrás. Em segundos a porta da van estava fechada de novo, e Aaron estava encarando o rosto igualmente pálido e particularmente sangrento de seu irmão.

— Mas que merda tá acontecendo?! — Aaron praticamente gritou, conseguindo ouvir sua voz apenas por um momento antes que todos no carro começassem a falar uns por cima dos outros.

— Neil, o que você tava fazendo no meio da estrada-

— Meu Deus, eles estão sangrando-

— Mas que merda, que merda, que merda-

— Vocês são loucos? O que-

— Chega! — Foi Neil quem gritou, ofegante, pálido como um fantasma, mas todos ficaram em silêncio, novamente apenas suas respirações e o som assombroso da tempestade. Aaron nunca tinha visto Neil tão assustado antes. — Matt, precisamos sair daqui! Agora! Eu explico-

Mas a garantia de Neil foi cortada quando algo bateu contra a lateral da van, fazendo uma onda de gritinhos surpresos ecoar quando toda a estrutura chacoalhou.

— O que…?

— Matt, liga a droga do carro! — Andrew socou o braço de Matt com força, e seu irmão mais velho foi rápido em girar a chave na ignição. O carro balançou, mas morreu logo em seguida.

— Droga, droga, droga… — Matt murmurou enquanto tentava dar partida no carro uma e outra vez.

— O que aconteceu? — Dan perguntou, olhando através da janela e do parabrisa freneticamente. Outra vez o que quer que estivesse lá fora bateu contra a van — Puta merda! Matt, arruma isso!

— Tô tentando, tô tentando!

— Merda, merda, merda, a gente vai morrer, a gente vai morrer… — Seth continuou murmurando na parte traseira da van, agarrando a cabeça raspada com as duas mãos e se encolhendo um pouco. Aaron nem queria saber o que tinha assustado Seth Gordon tanto assim.

E foi aí que Aaron viu, porque é claro que ele tinha que descobrir exatamente o que tinha feito Gordon lamentar como uma criancinha no momento em que pensou sobre o quanto não queria isso, muito obrigado!

Em um primeiro momento, Aaron achou que era uma pessoa. Depois ele pensou que era uma pessoa muito, muito doente. Por fim, ele entendeu o que estava vendo.

Tudo que ele pôde fazer foi apontar um dedo trêmulo para a janela ao lado de Kevin e gritar: — Zumbi!



👻



Neil nunca pensou que estaria em uma van fugindo de zumbis em uma noite de Halloween depois de falhar na única tarefa que seu tio morto lhe deixou, mas a vida era engraçada desse jeito.

Ele ouviu o grito desesperado de Aaron no mesmo momento em que Matt conseguiu dar partida no carro, e isso deveria ser um alívio, mas então todos viram o zumbi, e agora todos – tirando ele próprio e Andrew – estavam gritando a plenos pulmões, o que não era nada tranquilizador.

— Vai, vai, vai! — Dan berrou enquanto Matt pisava no acelerador com tudo, dando a volta na estrada com o som estridente dos pneus deslizando no asfalto velho.

Os minutos seguintes passaram como um borrão de gritos de desespero, velocidade máxima e a mão firme de Andrew segurando seu braço com tanta força que ele sentiu seus ossos rangendo.

Como esperado, Aaron foi o primeiro a falar assim que os ânimos esfriaram e eles passaram pela primeira casa que demarcava o início da área residencial de Palmetto, saindo de seu estado de choque apenas para ser um merdinha: — Puta merda, vocês trouxeram a porra dos mortos de volta?

— Olha a boca! — Matt repreendeu fracamente do banco do motorista, olhos arregalados os encarando pelo espelho.

Neil ignorou o gigante amigável, sentindo uma veia saltando em sua testa quando se voltou para Aaron, se inclinando sobre Andrew ligeiramente para ficar cara a cara com seu gêmeo: — Nós não fizemos nada, Aaron , foi a bruxa!

Aaron arqueou uma sobrancelha pra ele, sorrindo com um misto de medo absoluto e escárnio irônico: — Bom, dá pra ver que vocês não fizeram nada! Eu pensei que vocês tinham ido lá pra impedir ela!

— Ah, agora você acredita na gente?

— É, porra, eu acabei de ver um zumbi de merda na janela do carro e o céu tá roxo e verde, então sim, eu acho que acredito!

Dan bufou, ainda meio trêmula: — Chega vocês dois! Matt, encosta o carro! Neil, o que diabos está acontecendo?

A van parou com tudo no meio fio de uma rua residencial escura e vazia, enquanto Dan se virava em seu lugar e encarava Neil com toda a seriedade de uma irmã mais velha no precipício de um colapso nervoso.

Assim, Neil suspirou e contou toda a verdade pra eles.

Um silêncio pesado cobriu o carro como uma mortalha, e Neil agarrou a mão de Andrew que ainda estava em seu braço enquanto esperava qualquer reação.

Matt suspirou, o ar saindo de sua boca um tanto rápido e desesperado: — Certo, certo, então a bruxa é real, e seu tio maluco, aquele do outro dia, morreu hoje mais cedo e deixou com você a tarefa de impedir que ela acordasse e trouxesse um morto de volta à vida. Certo, okay, legal, faz todo o sentido do mundo.

— É, mais ou menos isso… — Neil deu de ombros, sabendo que a toda a história parecia inacreditável – ainda mais inacreditável do que seu usual inacreditável, ele admitia –, mas ele estava contando com o bom senso de todos ali, porque, bom , eles tinham sido perseguidos por zumbis . — Aparentemente eu sou o único que pode fazer isso, porque consigo falar com fantasmas, e a bruxa tá morta então… Bom, eu e Andrew fomos até a casa do tio Stuart e pegamos o livro, mas foi inútil! É só um conto de fadas em francês, e acho que a bruxa nem estava lá pra começo de conversa!

Andrew apertou seu braço por um momento antes de afrouxar os dedos: — Bom, talvez tivesse dado certo, se o babaca do Gordon não tivesse interrompido! — Sua voz estava baixa e cortante, seu rosto parecendo um pouco selvagem com todo o sangue manchando seus lábios e seu queixo.

Seth foi rápido em se defender, saindo da bola de terror que havia virado: — Como eu ia saber que vocês estavam fazendo um ritual pra uma bruxa morta?!

— Talvez se você não fosse um valentão de merda-

— Gente, não é hora pra isso! — Kevin os parou, se inclinando para bloquear a visão de Andrew e Seth um do outro. — Como a gente impede isso agora? Não podemos deixar que o zumbi chegue na cidade!

— Os zumbis. — Neil foi rápido em corrigir.

Kevin o olhou em silêncio por um segundo antes de arregalar os olhos: — O que?

— São… os zumbis , não o zumbi. Tem sete deles, pelo menos.

— Sete?!

— Bom, são os fundadores, né? Eles são sete!

Dan voltou a se endireitar no banco do passageiro, deslizando lentamente pelo couro antigo antes de parar, soltando um suspiro pesado e segurando a ponte do nariz com os dedos como se estivesse tentando prevenir uma dor de cabeça daquelas.

— Okay, certo, precisamos pensar… — Ela murmurou, e então se ajeitou em um pulo. Seu rosto estava determinado quando e voltou para eles novamente — Pelo que eu entendi, o problema foi que vocês leram o livro no lugar errado. Faz sentido que a bruxa não tenha sido enterrada junto com os caras que mataram ela, até porque, se fosse o caso, já teriam transformado o lugar em uma lanchonete ou algo do tipo, ao invés de ser só uma parada chata no passeio da cidade que nem o cemitério dos fundadores.

Fazia sentido. Tudo em Palmetto girava ao redor daquela bruxa, o que só queria dizer que os adultos não sabiam realmente onde ela estava enterrada.

Kevin se contorceu um pouco no banco, empurrando Neil ainda mais para Andrew: — Ela tem razão. Era muito comum que mulheres acusadas de bruxaria fossem cremadas completamente ou enterradas em túmulos não marcados, já que não eram mais consideradas humanas. 

— Como vamos saber onde ela foi enterrada então? — Neil apertou mais o livro contra seu peito, se sentindo um tanto desamparado.

Seth se inclinou um pouco sobre o assento deles: — Seu tio morto não mencionou nada sobre isso? Sério?

Não! Ele estava meio ocupado transcendendo pra outro plano assim que eu aceitei essa missão estúpida-

— Devíamos tentar descobrir se existe algum registro disso na prefeitura! — Kevin disse de repente, sorrindo para Neil — Talvez tenha algum registro antigo do que fizeram com o corpo dela.

Aquela era uma ideia surpreendentemente produtiva. Andrew se inclinou sobre Neil para encarar Kevin com uma sobrancelha erguida: — E como exatamente vamos entrar na prefeitura à essa hora?

Kevin pareceu desinflar como um balão triste na mesma hora, mas pulou de volta à sua forma normal quando Dan bateu uma palma alta e vitoriosa no banco da frente.

— Já sei quem pode ajudar a gente! — Dan disse de repente, um sorriso largo e quase selvagem se abrindo em seu rosto delicado. — Matt, eu vou guiar você. Ela nunca atende o celular de qualquer forma. 

 


👻

 

— Hm, você tem certeza disso? — Matt perguntou quando eles pararam a van em frente aos portões de ferro elegantes da única mansão da cidade, que pertencia, como todos sabiam, à família Reynolds, cuja matriarca era prefeita e o patriarca chefe do departamento de polícia.

— Confia em mim, Allison tá me devendo um favor por causa de… bom, um lance. — Dan garantiu, misteriosa enquanto saía pela porta do passageiro em um pulo, indo direto até o interfone chique com câmera na lateral do portão.

Matt olhou para Neil e Kevin com sobrancelhas erguidas em descrença: — Por que Allison Reynolds está devendo algo para sua irmã?

Eles deram de ombros, e Matt suspirou, ligando o rádio e aumentando o volume. Estava tocando “Goo Goo Muck” do The Cramps, e repentinamente Neil se lembrou que era Halloween.

Meio culpado ainda, ele se virou para Andrew, ainda firmemente ao seu lado apesar das bruxas, zumbis e corpos nos caminho: — Você pode escolher nossas fantasias ano que vem. — Ele sussurrou para seu melhor amigo, esperando que a música encobrisse sua voz para qualquer outra pessoa.

Andrew se voltou para ele com um sorriso quase imperceptível esticando os lábios ainda machucados: — Você vai se arrepender disso no próximo Halloween, Neil Josten.

Era bom ouvir isso, pensar em um próximo Halloween como se não fossem todos ser devorados por zumbis naquela noite. A alegria durou pouco.

Dan voltou saltitante até a van depois de alguns minutos, se jogando no banco do passageiro novamente: — Ela tá vindo! Kevin, vai lá pra trás, e vocês, meninos, se apertem aí.

Kevin protestou imediatamente: — Mas, Dan-

— Não discute comigo! Não tem jeito de ela ir com a gente se tiver que ficar lá atrás, e ela não vai simplesmente entregar a chave da prefeitura pra gente.

À contragosto e resmungando, Kevin se virou e pulou para a parte vazia da van, onde Seth ainda estava sentado, parecendo tão pálido quanto no momento em que viram os zumbis saindo do chão. Neil poderia ter aproveitado o espaço extra para se esticar um pouco, mas não ousou se afastar nem um centímetro de Andrew.

— Vai ficar tudo bem. — Andrew murmurou para ele, mas seu sorriso não estava mais lá. Neil apenas apertou sua mão com mais força, tentando a todo custo acreditar em suas palavras, mas tudo parecia um pouco demais no momento; o céu verde e roxo apocalíptico, a verdade sobre a maldição e a noção de que havia falhado na única missão que tinha. Não importava o quanto tentasse pensar em outra coisa, não conseguia parar de repassar em sua mente aqueles momentos aterrorizantes no cemitério dos fundadores, quando o chão começou a tremer, as árvores começaram a gritar e a terra foi rasgada de dentro para fora por mãos esqueléticas e mortas, totalmente tangíveis.

Allison Reynolds chegou no momento perfeito para evitar a resposta pessimista de Neil, se inclinando na janela abaixada do lado de Dan com uma sobrancelha bem feita erguida e seus longos cabelos loiros dourados caindo em cascata sobre os ombros. Usava um conjunto de moletom rosa claro de aparência confortável mas bem ajustada, como daquelas mulheres que malham na TV.

— É melhor você ter um bom motivo para me pedir a chave da prefeitura, Wilds. — Seus lábios cobertos de gloss pink se torceram em desgosto, mas Neil achava que era mais pela van do que pelo favor em si. — O que está acontecendo aqui? Levando a gangue toda pra um passeio noturno?

Dan suspirou, mas parecia quase afetuosa: — Te explicamos no caminho, pode ser? Você tá me devendo, lembra?

— Urgh… — Allison grunhiu, obviamente irritada, mas abriu a porta de trás da van e se jogou ao lado de Neil como se fosse dona do veículo. — É melhor não ser nenhuma besteira.



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— Isso é besteira! — Allison praticamente gritou — Não acredito que você me arrastou pra fora de casa no meio da noite pra invadir a prefeitura da minha mãe para descobrir onde a maldita bruxa da cidade foi enterrada porque aparentemente seu irmão que fala com gente morta tem que quebrar uma maldição! E zumbis? Sério mesmo? Vocês devem achar que eu sou uma idiota, né?

Dan bufou: — Allison , eu sei que parece absurdo, mas eu juro que é verdade! Nós vimos o zumbi com nossos próprios olhos, e, se você ainda não percebeu, o céu tá roxo e os raios estão verdes nesse exato momento, então eu agradeceria se você fosse um pouco mais aberta às possibilidades.

— Isso só pode ser piada… — A loira murmurou, cruzando os braços — Vocês todos enlouqueceram. É isso, eu tô em uma van sinistra com um bando de lunáticos que surtaram por conta de uma tempestade! Senhoras e senhores, que noite!

— Eu voto pra gente jogar elas pros zumbis caso precisemos de uma fuga rápida. — Aaron murmurou, arrancando um pequeno sorriso de Neil, apesar de tudo.

— Aaron… — Matt o repreendeu naquele tom cansado de irmão mais velho — Ninguém vai ser jogado em zumbi nenhum, nem hoje e nem nunca, obrigado!

— Aposto que eles não iam querer morder ela de qualquer forma… — Andrew sussurrou para Neil, fazendo com o sorriso se transformasse em uma risada. Nada estava bem, mas pelo menos sempre se podia contar com o humor dos gêmeos.

O humor ficou um pouco mais leve depois disso, e melhorou ainda mais quando eles viraram a rua que levava ao centro da cidade, avistando a prefeitura que ficava bem no meio da praça central, mesmo com a estátua de ferro da bruxa caricata que era mascote da cidade bem na frente, com vassoura e tudo mais. 

As lojas e poucos restaurantes na avenida principal ainda estavam abertos, e Matt dirigiu calmamente até os fundos da prefeitura, onde estacionou a van atrás de algumas caçambas de lixo. Aquilo não foi nem de longe o suficiente para esconder a enorme van vermelha, mas o que mais valia era a intenção, e, de qualquer forma, ninguém na rua pareceu dar muita atenção à eles de qualquer forma.

— Depois disso, Wilds, não vou estar te devendo nada, entendeu? — Allison rosnou antes de sair da van como se ela estivesse pegando fogo.

Allison digitou a senha de acesso que desligava o alarme da prefeitura e girou a antiga chave dourada na fechadura da porta dos fundos, guiando rapidamente todos para dentro. Surpreendentemente, Seth os seguiu ao invés de sair correndo pra casa, como teria sido melhor pra ele – na verdade, ele parecia ter se tornado a sombra de Kevin na curta viagem desde a mansão da família Reynolds, e Neil achou melhor não comentar.

— Os registros mais antigos ficam nos fundos da sala de arquivos, mas aquele lugar é uma bagunça completa, então vocês vão ter sorte se acharem qualquer coisa. — A loira se acomodou em um dos sofás na enorme recepção, puxando seu celular do bolso com um movimento despreocupado. — Pelo que eu sei, nenhum documento daquela época foi digitalizado, mas é melhor não demorarem muito, já tomaram muito tempo da minha noite e eu não posso sair daqui sem trancar tudo.

Todos eles concordaram silenciosamente em ignorá-la, indo direto para a sala de arquivos, apenas para descobrirem que a descrição vaga de Allison não poderia ter sido mais certeira. O lugar era, de fato, uma bagunça, mas Neil nunca imaginou que fosse tanto .

O teto era alto, abobadado e decorado com desenhos desbotados da época dos peregrinos, e prateleiras com gavetas de madeira antiga se erguiam até o topo, com papéis de todas as cores vazando das laterais, enquanto pilhas intermináveis de documentos se erguiam como pilares nos cantos e em cima das mesas que, em épocas menos atribuladas, deviam ter servido para leitura. O lugar todo parecia fechado e sufocante, apesar de seu tamanho considerável, e Neil sentiu-se imediatamente desamparado.

— Como vamos achar qualquer coisa nesse lugar? Vamos ficar aqui pra sempre!

— Calma, Neil! — Dan agarrou seu ombro — Vamos nos dividir e procurar, tudo bem? Só precisamos focar nos arquivos próximos ao ano da execução da bruxa, não devem ter tantos assim.

— É isso aí! — Matt concordou, sorrindo e tentando parecer mais otimista do que certamente se sentia. — Vamos conseguir encontrar algo, carinha, e então você vai poder ler seu livro pra bruxa maluca e salvar a cidade.

Neil se forçou a relaxar com as palavras de Matt, tão absolutamente confiantes. Andrew apertou sua mão mais uma vez, e Neil precisou parar por um momento para tentar conciliar a ideia de que, de repente, tantas pessoas acreditavam nele. Isso sim parecia impossível.

— Vamos primeiro achar onde estão os arquivos mais antigos, e então partimos daí! — Dan entrou facilmente no modo “Capitã Wilds”, que era amplamente conhecido tanto por seus irmãos quanto por seus colegas do time de lacrosse. — Gordon, você fica de vigia na recepção, o resto comigo!

— O que?! —  Seth praticamente guinchou — Não quero ficar lá sozinho! E se os zumbis aparecerem?

— Bom, você joga a Allison neles e corre pra cá pra avisar a gente. — Aaron deu de ombros, já seguindo Dan e Matt para os fundos da sala, onde armários de arquivos de aparência mais antiga se alinhavam.

— Aaron! — Matt repreendeu, mas ninguém o questionou muito além disso enquanto Seth bufava e se virava para voltar para a recepção.

Meia hora depois e eles ainda não tinham nada.

Neil bufou: — Só listas de compras e recibos aqui.

Dan alongou as costas, irritada: — Alguns títulos de propriedade nesse.

— Mapas antigos comigo, mas nada que indique o túmulo da bruxa. — Matt guardou a pilha de papéis que estava vasculhando.

— Um monte de nada, e merda nenhuma, e um pouco mais de nada… — Aaron murmurou, sentado no meio de uma avalanche amarelada de documentos.

As esperanças de Neil estavam praticamente nulas à esse ponto, e é claro que foi nesse momento que Seth resolveu entrar como um furacão na sala de arquivos, ofegante e com os olhos arregalados.

— Vocês precisam ver isso!



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‘Isso’, como Neil observou calmamente quando todos eles se amontoaram em uma das janelas altas da recepção, queria dizer o mundo acabando fora da prefeitura.

Para começar, os adultos da cidade pareciam ter iniciado uma revolta, com direito à tochas acesas e forcados, o que era curioso considerando que haviam poucas fazendas na região. O primeiro pensamento de Neil, é claro, era que o pânico generalizado se devia ao fato de o rosto feito de nuvens escuras da bruxa ter aparecido no céu, bem no meio da tempestade, com uma risada maléfica de raios verdes e um nariz pontudo, mas ficou claro que esse não era o maior problema quando ele ouviu grande parte da multidão enfurecida gritando variações criativas da frase “Vamos desmembrar aqueles malditos zumbis!” .

O caos parecia certo, com os pássaros voando em bandos enormes para longe da cidade, fugindo do desastre iminente, e com o grito violento da multidão crescendo junto da tempestade. Naquele momento, a única coisa que Neil sabia de verdade era que tudo aquilo era culpa sua.

Uma pergunta . Era tudo que ele tinha que ter feito para o fantasma de seu tio. Uma única maldita pergunta.

— Puta merda… — Allison sussurrou ao lado dele, seus olhos fixos no céu absolutamente monstruoso enquanto a bruxa soltava mais uma risada estrondosa e sinistra, que sacudiu a cidade toda. — Puta merda! Vocês não tavam tirando uma com a minha cara!

— Isso é ruim, muito, muito ruim! — Aaron hiperventilou, se afastando da janela — O rosto da bruxa tá no céu! Tá na porra do céu!

— Vamos todos manter a calma! — Dan gritou, mas seus olhos pareciam incertos enquanto observava a multidão furiosa do lado de fora e o céu sobrenatural que ria de todos eles. — Só precisamos continuar procurando e-

— Gente! — Kevin gritou, vindo correndo da sala de arquivos. Neil não tinha notado que ele tinha ficado pra trás — Eu achei uma coisa, e não é nada boa!

Ele estava sem fôlego, mas estendeu um papel amarelado pelo tempo, cuja tinta já estava desbotando há pelo menos alguns séculos.

— É uma carta de um dos fundadores da cidade, falando sobre a bruxa.

Dan estendeu a mão mas Neil foi mais rápido, se desvencilhando de Andrew e pegando o papel com menos cuidado do que deveria.

Caro Sr. Lenfent, era como começava a carta.

Como ordena nosso bom Deus, a bruxa que trouxe a praga para nossa vila foi enforcada. Não temas mais, pois garantimos que seu mal fosse expurgado da face da Terra e enviado aos confins do inferno novamente. Que a mão do diabo e de seus discípulos profanos jamais toque nossas famílias novamente, e que a lembrança da criatura demoníaca que matamos naquela noite reverbere apenas como um aviso para nossos jovens. As últimas palavras da criatura foram maldições, ela nos jurou vingança e ódio, e por isso a enterramos em uma parte da floresta onde nunca vão encontrá-la, e onde suas garras malévolas de destruição nunca poderão alcançar qualquer outra pessoa. Apenas nós sete sabemos o local de sua sepultura não marcada, e garantimos como promessa ao nosso Senhor e Salvador que esse conhecimento profano não chegará à mais ninguém.

Atenciosamente,

A assinatura do escritor estava completamente borrada, mas a verdade se insinuou sobre Neil de forma gelada e terrível.

— Eles a esconderam… — Ele sussurrou, entregando a curta carta para sua irmã — Só os fundadores sabem onde ela foi enterrada, e eles… Nunca vamos encontrá-la…

Neil sabia que estava hiperventilando; ele pensou naquelas criaturas saindo do chão, apodrecidas, sibilantes, reais de uma forma que os fantasmas nunca tinham sido, com olhos brancos que já não viam mais nada além da morte.

O que ele podia fazer para resolver aquilo? O que ele podia fazer para impedir que a cidade sucumbisse ao completo caos?

O livro, Neil pensou, as vozes desesperadas de todos ao seu redor desbotando até não passarem de um ruído de fundo, abafadas pelo som de seu sangue correndo rápido e quente nas veias. Tudo que ele precisava era ler o livro pra bruxa, e ela estava logo ali, no céu.

—Neil! — Alguém gritou às suas costas quando ele disparou para a sala de arquivos novamente, agarrando o livro pesado e estupido e correndo para as escadas antigas da prefeitura. Ele ouviu passos atrás deles, pessoas ainda chamando seu nome, mas não olhou para trás. Sabia que era mais rápido do que todos eles, e sabia que só ele podia fazer aquilo.

Correu até o terceiro e último andar da prefeitura, e então escalou a escada de serviço enferrujada que levava para o telhado com o livro debaixo do braço. O vento o atingiu com tudo quando saiu para a noite lá fora, gelado e cruel, dificultando sua respiração, mas não parou.

Ele subiu na parte mais alta do telhado, logo acima da laje de pedra sobre os quadros de energia e encanamento, e abriu o livro mais uma vez.

— Ei! — Ele gritou para os céus, tentando não se sentir um lunático — Bruxa!

O rosto na tempestade oscilou, sua risada aguda e estrondosa se misturando como se milhares de vozes diferentes estivessem por trás do som, uma desarmonia ensurdecedora até voltar a soar como o estrondo familiar e repentino dos trovões. De uma forma ou de outra, aquele rosto estava voltado para ele agora, ao invés de estar focado na multidão furiosa.

— Você vai me escutar! — Neil ordenou, encarando aquela coisa imensa e estarrecedor em seus olhos ocos cheios de raios verdes venenosos — Il était une fois, dans un pays lointain, où les elfes régnaient sur les montagnes et les fées sur les forêts, vivait une princesse qui fut maudite à la naissance-

O rosto da bruxa gritou nos céus, quase o fazendo largar o livro para tapar os ouvidos. Ele ouviu o vidro estilhaçando nos andares de baixo, por toda a rua principal e os gritos resultantes da multidão e das pessoas que amava.

Ele não podia parar, não podia parar, não podia-

Fille d'un roi cruel, la princesse fut condamnée à payer pour les erreurs de ses ancêtres, qui n'avaient pas eu assez de cœur pour prendre soin du peuple… — Ele continuou gritando para a tempestade, tentando lutar contra seu rugido afiado e impiedoso, mas a raiva da bruxa para quase uma coisa física no ar, ameaçando esmagá-lo por inteiro.

— Neil! Sai daí! — Ele ouviu alguém gritando às suas costas, mas não deu atenção. Os olhos da bruxa estavam sobre ele, seu grito tentando derrubá-lo, mas ele nunca se sentiu tão firme antes.

Ainsi, la princesse a toujours su qu'à l'âge de dix-huit ans, son cœur se transformerait en pierre- — Ele falou ainda mais alto, e a bruxa parecia tão perto agora que era como se o céu estivesse caindo sobre ele com toda sua fúria. Ela gritou de novo, absolutamente furiosa, e um raio verde brilhante e mortal saiu de sua boca escaneada e cheia de dentes afiados de tempestade.

Neil mal teve tempo de respirar antes de ser atingido em cheio.



👻



A primeira coisa que Neil viu quando abriu os olhos foi um chão de madeira cinza. O ar estava frio ao seu redor, o som de madeira antiga contraindo indicando o ritmo que seu coração batia, mas não era real; ele podia sentir aquele sussurro de consciência lhe dizendo isso.

Não é real, Neil, você está sonhando de novo…

— Como você se declara, criatura infernal? — Uma voz pesada e rouca falou acima dele, e Neil levantou o olhar para encarar um homem pálido com olhos cheios de rancor em um pedestal alto no final da sala. Haviam outras seis pessoas com ele, três homens e três mulheres, suas posturas rígidas e olhares hostis. Neil não conseguia distinguir seus rostos, mesmo olhando diretamente para eles; tudo que via era ódio, medo e violência, fantasmas que ele conhecia desde antes de conhecer a si mesmo.

— O que…? — Ele tentou perguntar, mas sua voz parecia abafada, debaixo d'água.

— Suas mentiras não obscurecem a verdade, serpente! Esses bons homens e mulheres viram sua iniquidade, testemunharam os horrores de sua natureza demoníaca! — O homem no centro berrou, e Neil se encolheu, sentindo seu coração pequeno e gelado dentro do peito. Medo, um medo terrível, uma solidão que ameaçou devorá-lo. — Confesse!

— Não, eu não- — Mas foi então que Neil ouviu. Havia alguém atrás dele, uma respiração pesada, suspiros amedrontados cheios de lágrimas. Quando ele se virou, ficou de frente para um garoto não mais velho do que ele próprio, embora mais alto. Seus cabelos eram escuros, suas roupas eram simples, antigas e sujas, e seus olhos cinzas estavam apavorados, enquanto rastros de lágrimas manchavam suas bochechas ainda cheias da infância.

O garoto se encolheu ainda mais, e Neil percebeu que seus pulsos e tornozelos estavam presos em correntes pesadas de ferro escuro: — Por favor… Por favor… Eu não fiz nada, eu só estava brincando- 

— Brincando com fogo?! — O homem – carrasco, juiz, assassino – berrou, arrancando mais um som dolorido e mais lágrimas do garoto no centro da sala, alvo de todos os olhares cruéis do mundo — Brincando com os mortos?! Você trouxe a praga da morte para nosso povo de bem, Jean Yves Moreau, cria do inferno, bruxa malévola e pecadora! Confesse agora! Você envenenou sua irmã, adoeceu o filho do pastor, matou nosso gado e nossas plantações quando se relacionou com o Diabo!

— Não, não, eu não fiz nada disso! Elodie, Jeremy, eles-

— Silêncio! Não iremos escutar mais suas mentiras, sua língua de prata que profanou essas terras! Iremos arrancar esse mal pela raíz, sua aberração! Sua sentença… é a forca!

— Não! Não! Não! Eu não fiz nada! Eu juro, eu não fiz nada! Eu quero minha mãe! Por favor, por favor! Mamãe! Me ajuda, por favor!— O garoto gritou, desesperado, e Neil queria desesperadamente estender a mão, alcançá-lo, tirá-lo dali, acabar com aquela lembrança terrível, mas não conseguia se mover.

Tudo que pôde fazer foi ficar ali, ouvindo os gritos dele e as acusações horríveis que os sete fundadores usavam para atacá-lo; viu aquilo até que as lágrimas de Jean Yves Moreau se transformassem em raios, até que seu choro se transformasse em um grito de guerra, e até que seus apelos se transformassem em maldições.



👻



Quando Neil acordou, eles estavam na recepção do cinema. O lugar todo estava escuro, apenas com a luz do fogo do lado de fora iluminando um pouco o espaço, e sua cabeça estava apoiada no colo de Andrew, que penteava seu cabelo com os dedos e cujos olhos encheram de lágrimas quando viu que Neil estava de volta ao mundo dos vivos.

— Ei… Acho que fui atingido por um raio… — Ele conseguiu dizer, sentindo uma dormência estranha em todo o corpo.

Andrew riu, mas parecia desesperado, e algumas lágrimas escorreram por seu rosto, caindo na testa de Neil: — Seu completo lunático, eu achei que você ia morrer…

— Estou aqui… — Ele garantiu, estendendo a mãos para tocar o rosto de Andrew, seu coração apertado no peito apesar do alívio de ver seu amigo bem. Ele precisou olhar mais de uma vez para a própria mão, percebendo que sua pele parecia diferente. — O que aconteceu…?

Nesse momento, o resto do grupo pareceu perceber que Neil tinha acordado, e em um segundo, todos estavam em cima dele.

Kevin estava chorando abertamente, seu rosto todo vermelho: — Neil! Que susto você deu na gente!

Dan se ajoelhou ao seu lado com uma expressão tão preocupada que Neil se sentiu mal por ter sido atingido por um raio: — Nunca mais faça uma coisa dessas, garoto, eu juro que te mato! — Ela envolveu uma de suas bochechas com mãos carinhosas, como se quisesse ter certeza de que ele estava realmente ali.

— Neil Josten, você é absolutamente insano! Você sobreviveu à um raio de bruxa, cara! — Seth parecia tão pálido quanto no começo da noite, mas positivamente impressionado.

— Você quase mata todo mundo do coração, seu idiota! — Aaron praticamente gritou, irritado, mas Neil sabia que era assim que ele demonstrava preocupação.

— Gente, vamos dar um pouco de espaço pra ele, o coitado foi atingido por um raio. — Matt, a voz da razão, puxou Aaron e Seth para abrirem um pouco o casulo de pessoas ao seu redor. — Ei, Neil, maninho, como você tá se sentindo?

Neil pensou um pouco na pergunta, e então um pouco na resposta. Ele se sentia vivo, inteiro, talvez um pouco tenso demais, mas era isso que acontecia quando você era atingido por uma descarga elétrica enorme, ele apostava.

— Eu… Eu não sei… Meu corpo parece bem, mas… — Ele não sabia como começar a explicar pra eles o que tinha visto, como foi transportado para o julgamento da bruxa-

Não, não uma bruxa, um garoto. Uma criança .

— Preciso falar com os zumbis. — Foi o que saiu da sua boca ao invés de uma explicação, e todos o encararam em choque por alguns segundos.

— É, agora ele pirou de vez! — Aaron foi o primeiro a falar, como sempre era, e Neil bufou, se esforçando para se levantar, apesar de querer ficar seguro nos braços de Andrew mais um pouquinho. Seu amigo o ajudou a se erguer, o apoiando sem questionar.

Ele percebeu, agora que estava sentado, que sua pele parecia estranha porque estava coberta de cicatrizes rosadas, ainda novas, que se ramificaram por seus braços como raios, ou galhos de árvores antigas.

Não era tão ruim quanto poderia ser, mas então ele olhou para o livro antigo de seu tio, que jazia inerte e irreparavelmente queimado ao seu lado, com uma marca escura bem no centro, onde havia sofrido o maior impacto do raio.

Tudo bem , ele pensou, apesar do medo. Ele não ia ler uma história de ninar idiota pra manter a vingança daquele garoto adormecida mais um ano. Dessa vez, ele iria resolver isso.

— Neil, do que você tá falando? — Kevin se ajoelhou ao lado de Dan, parecendo além de preocupado.

— Eu… eu posso falar com eles. É por isso que eles estavam nos perseguindo. Eu posso falar com os mortos, então eu sou o único que pode ouvir o que eles têm a dizer. Eles foram amaldiçoados, querem quebrar o feitiço tanto quanto a gente.

— De jeito nenhum! — Dan segurou seu ombro, alarmada — Neil, eu não sei o que você viu lá em cima, mas você precisa descansar. Você foi atingido por um raio! Então chega de bruxa, de zumbis e maldições, nós vamos te levar para um hospital!

Matt acenou com a cabeça atrás dela: — Ela tem razão, garoto. Só precisamos descobrir como passar pela multidão lá fora. Eles estão todos malucos, queimando as coisas e invadindo as lojas. Nem conseguimos falar com a Bee ou o treinador Wymack, agora que o sinal caiu.

— Não preciso de hospital. Preciso acabar com isso de uma vez por todas. — O rosto contorcido em medo e desespero de Jean Yves Moreau não saia de sua cabeça — Eu vi o que aconteceu, quando o raio me atingiu. Acho que a… a bruxa… acabou compartilhando uma parte de suas lembranças comigo quando fez isso. Vi o julgamento. Dan… — Ele segurou a mão de sua irmã, imaginando como tudo teria sido diferente se alguém tivesse segurado a mão daquele garoto assustado tantos séculos atrás — Não era uma bruxa. Era só um garoto, não mais velho do que eu. Ele estava sozinho, e assustado, e colocaram toda a culpa nele. Eles o enforcaram por isso, por ser diferente, por não terem ninguém mais para culpar. Precisamos ir até o túmulo, e só os fundadores sabem onde está. — Neil sentiu a ardência das lágrimas em seus próprios olhos — Não posso deixar que isso seja o legado dele. Não posso.

— Neil… — Ela o olhou longamente, ainda segurando sua mão. — Okay… Merda, tudo bem! Vamos fazer isso então.

Então a porta que levava ao resto do cinema se abriu com tudo e Renée saiu de lá com uma lanterna na mão, seguida por Allison: — Todas as entradas estão trancadas, estamos seguros aqui.

Neil se virou para elas então: — Mudança de planos! Precisamos deixar os zumbis entrarem.



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— Só pra deixar claro, não estou nada feliz com essa ideia! — Aaron sussurrou quando todos eles se reuniram em frente ao balcão do quiosque de doces do cinema, de frente para o único caminho livre por onde os zumbis poderiam aparecer.

— Dessa vez tenho que concordar com você. — Andrew murmurou, seu braço colado com o de Neil enquanto eles ficavam no meio de Matt, Dan e Renee, que estavam com armas improvisadas; Renée com sua lanterna pesada, Dan com o machado de emergência e Matt com um extintor de incêndio vermelho berrante.

— Eu só preciso falar com eles. — Neil tentou se firmar — Não deve ser diferente dos fantasmas.

— É, deve ser a mesma coisa, só acrescentar um pouquinho de carne podre e dentes, né? — Seth bufou de onde estava atrás do balcão, meio se escondendo atrás de Kevin e Allison.

— Você não está ajudando… — Kevin murmurou, mas então um barulho estranho veio das entranhas do cinema. Eles precisaram se esforçar para ouvir, porque a multidão ainda estava lá fora, caçando os zumbis em cada canto com suas tochas e forcados literais, e o espírito vingativo e corrompido de Jean Moreau ainda ria nos céus.

— Eles estão aqui. — Renée sussurrou, levantando a lanterna longa como se fosse um taco de baseball.

— Não ataquem se eles não atacarem. — Neil os lembrou, seu coração acelerando ainda mais no peito.

Os segundos seguintes se arrastaram lentamente, o som do mundo fora do cinema parecendo ficar abafado enquanto todos os sentidos de Neil se concentravam na morte que se aproximava.

Era um sentimento familiar – excessivamente familiar.

Sentiu essa sombra pesada e gelada da morte desde que nasceu, vivendo entre a violência de seu pai e o espírito furioso de sua mãe, o sentindo toda vez que interagia com fantasmas, toda vez que olhava no espelho. A morte rodeou sua vida inteira desde que abriu os olhos pela primeira vez, e agora era hora de, novamente, aceitá-la como sua.

Ele e a morte, sempre de mãos dadas.

Os passos dos zumbis eram mais um arrastar lento e pesado crescendo no interior do cinema, como as entranhas de um monstro faminto se movendo. As sete figuras decadentes surgiram na escuridão como espectros sombrios e sem rosto, nada parecidos com os homens e mulheres que um dia haviam sido naquele tribunal; haviam sido despidos de seu orgulho, de suas aparências imaculadas e olhares julgadores.

Haviam sido despidos de tudo, além da própria vida.

Os sete mortos-vivos pararam parto da porta por onde tinham vindo, no limiar entre a escuridão completa e a luz que vinha de fora, quietos e de repente tão pequenos que Neil franziu a testa.

Ele deu um passo à frente, mesmo que Andrew não o tenha soltado, seguindo apenas um pouco atrás dele.

— Eu sei porque ele amaldiçoou vocês. — Neil começou, tentando manter a voz longe da raiva, da pena ou mesmo do desgosto. — Eu vi. Eu sei . Vocês fizeram uma coisa imperdoável.

O zumbi no centro, que Neil só conseguiu reconhecer vagamente como o juiz que condenou Jean Yves Moreau a forca, deu um passo à frente. Todos atrás de Neil pareceram se mover com isso, tensos, mas não se intrometeram.

— N-nós… — Começou o juiz, com a voz não mais do que um grunhido sofrido, um som perdido no tempo que apenas Neil conseguia entender — Nós… s-sabemos…

— Por que? — Neil não conseguiu evitar que um pouco dos sentimentos horríveis que apodreciam em seu peito vazassem em suas palavras, sentimentos que deviam estar apodrecendo no peito de Jean desde que fora assassinado por aquelas cascas de pessoas. — Por que vocês fizeram isso? Ele era só um garoto, uma criança…

Era difícil discernir qualquer expressão no rosto caído e putrefato do zumbi, mas, de alguma forma, Neil ainda conseguiu ver o remorso, a culpa: — Éramos… éramos um bando de tolos, meu rapaz… velhos assustados… Fomos injustos e horríveis… Éramos nós, o mal dessa terra, o Diabo que projetamos naquela criança…

— Você entende então, o porquê de ele ter amaldiçoado vocês assim. — Neil apontou para o lado de fora do cinema, onde eles podiam mais ouvir do que ver a multidão furiosa — Agora vocês entendem o que é viver em um mundo que teme vocês, que quer destruí-los, e que nunca vai entender vocês, nunca vai ouvir o que vocês tem a dizer… — A culpa e a dor pareceu fazer com que cada um dos sete mortos encolhessem ainda mais. — Mas eu vou acabar com isso essa noite. — Os mortos o olharam todos juntos, quase surpresos — Não por vocês, mas por ele. No final, ele acabou tão amaldiçoado quanto os covardes que o mataram, preso aqui pra sempre como todo esse ódio, toda essa vingança. Vou libertar a alma dele desse tormento, mas preciso saber onde vocês o enterraram.

O juiz assentiu lentamente, humilde: — Te levaremos… até ele. Eu… eu preciso que você… entregue uma coisa… uma coisa que roubamos dele…

Algo no estômago de Neil se torceu quando o juiz se aproximou ainda mais, o cheiro de morte o acompanhando à cada passo, estendendo uma mão ossuda e decrépita.

— Neil… — Andrew apertou mais seu braço, ameaçando puxá-lo para trás, mas Neil o acalmou, estendendo a mão para o zumbi com calma.

— Está tudo bem…

Os dedos mortos e cadavéricos quase tocaram sua palma estendida, mas pararam no último segundo, se abrindo e deixando cair uma corrente fina com um medalhão dourado em sua mão.

O objeto parecia antigo, preservado como as coisas ficam preservadas embaixo da terra. O metal sujo mal era dourado àquele ponto, mas havia uma beleza quase inocente no colar, com seu medalhão pesado, onde uma flor outrora branca havia sido esculpida. Neil o segurou com as duas mãos, um tanto trêmulo de repente. Tinha visto aquele colar ao redor do pescoço de Jean na visão, meio escondido sob a corrente de ferro pesada.

Ele precisou de um segundo antes de voltar à realidade e abrir o pequeno fecho do medalhão. Dentro, como ele esperava, haviam dois desenhos desbotados pelo tempo, mas ainda ali. Uma garotinha de cabelos escuros, com um sorriso suave, bochechas gordinhas e flores atrás da orelha, com o nome Elodie logo abaixo, escrito em uma letra cursiva elegante.

Neil tinha visto aquela garotinha em um de suas visões, e não conseguiu não pensar em sua respiração difícil enquanto ela descansava quase morta em frente à lareira.

O segundo desenho, à direita, era de um garoto um pouco mais velho que ela, talvez pouco mais velho que Jean, de cabelos claros e um sorriso brilhante. Jeremy , era o que estava escrito abaixo de seu rosto alegre.

A irmã, Neil pensou, e o filho do pastor . Pessoas que Jean Yves Moreau amava, pessoas cujas mortes foram jogadas sobre ele para justificar seu assassinato.

— Vou devolver pra ele. — Neil fechou o pingente, sentindo aquela vontade horrível de chorar novamente. Quanta injustiça . Ele colocou o colar ao redor do pescoço para não perdê-lo, o enfiando por baixo da camiseta simples que usava, e se virou para o resto de seu grupo incerto de sobreviventes e amigos — O zumbi vai mostrar o caminho para o túmulo, e eu vou conversar com ele. Vou resolver isso.

— Tudo bem. É melhor irmos andando então. — Dan ainda parecia cética, olhando para os zumbis com olhos estreitos e o machado firme nas mãos.

— Não. — Neil a impediu antes que ela pudesse seguir para perto dele. — Vocês precisam ficar. As pessoas lá fora querem machucar os zumbis, e, por mais que eu não acredite que eles mereçam qualquer misericórdia, sei que se ele vir esses caras serem despedaçados pela multidão furiosa, vou perder qualquer chance de libertar sua alma. Não posso deixar que ele seja consumido pela vingança desse jeito.

Aaron arregalou os olhos: — Você… você quer que a gente fique aqui e proteja a porra dos zumbis?! É isso mesmo?

— Não vou deixar você ir sozinho. — Andrew não o soltou, firme, tão resoluto quanto no dia em que se conheceram; confiança escondendo hesitação, certeza escondendo insegurança. — Quase te perdi essa noite, não vou deixar que isso aconteça de novo.

— Neil, não vamos deixar você ir sozinho! Sem chance! — Dan concordou, prontamente acompanhada por Kevin.

— Somos um grupo grande, vamos chamar muita atenção assim. — Neil tentou ser razoável, mesmo que soubesse que não conseguiria sair dali sozinho com um zumbi. Esse era o peso de ser amado.

— Certo, mas você não vai sozinho com o zumbi! — Matt largou o extintor em cima do balcão e apoiou as mãos na cintura — Neil, nós entramos nessa juntos e vamos ir até o fim juntos!

— Eu sei! Mas isso é importante! Não podemos deixar que a cidade acabe com os zumbis, porque é isso que Jean quer! Preciso conversar com ele antes, dar um jeito de libertar a alma dele.

— Tudo bem. Podemos nos dividir. — Andrew concordou — Eu vou com você. Matt está com a van ainda, então nós três e o… zumbi… podemos ir.

— Não gosto nada disso! — Dan protestou — Não devíamos nos separar assim. As coisas estão uma loucura lá fora, e além do mais, como você pode ter certeza de que o… zumbi… tá falando a verdade?

Neil segurou um suspiro, sabendo que ela tinha boas intenções, mas sabendo também que não havia tempo: — Dan, eu preciso que você confie em mim agora. Eu sei o que fazer.

Matt estendeu a mão, apertando o ombro de Dan: — Vou ficar de olho nele, pode deixar comigo. Você fica aqui e cuida do Aaron e do Kevin e dos… zumbis…

Neil estava começando a achar bobo o jeito como todos estavam sussurrando o termo zumbis como se os ditos zumbis não estivessem logo ali, do outro lado da recepção do cinema.

— Certo, temos um plano então. — Neil podia concordar em ir com Matt e Andrew, embora preferisse não colocar nenhum dos dois em perigo. Ele não sabia como o espírito de Jean estava, no final das contas, nunca tinha visto um fantasma capaz de fazer o que ele fazia, mas mesmo diante do desconhecido, mesmo com medo, ele precisava fazer isso, precisava estender a mão depois que todos viraram as costas para aquele pobre garoto tanto tempo atrás.

— Me prometa que vai tomar cuidado, Neil… — Dan pediu, o puxando rapidamente para um abraço, tomando cuidado com o machado de emergência ainda em sua mão. — Confio em você, sei que você vai conseguir.

Em seguida, foi Kevin quem o puxou para um abraço ainda mais apertado: — Vamos cuidar de tudo por aqui. Não faz nenhuma besteira.

— Pode deixar.

— Levem isso, nunca se sabe. — Renee estendeu a lanterna para Andrew, que a pegou com um aceno de agradecimento.

— E você! — Dan se virou para Matt, ainda segurando o machado, mas o colocou na mão dele com brusquidão, apesar do leve sorriso que curvou seus lábios — Você cuida deles, e não morre no processo, entendeu? Depois que tudo isso acabar você precisa me levar em um encontro.

Matt arregalou os olhos, parecendo tão chocado que demorou alguns segundos para assentir de forma entusiasmada, um sorriso largo e brilhante se abrindo e seu rosto: — Danielle Wilds, vou te levar no melhor encontro da sua vida.

Aaron fez um som de vômito: — Eca, que nojo! Arrumem um quarto!

— Maninho, você vai entender quando for mais velho. — Matt zombou, lançando mais um sorriso brilhante para Dan antes de se virar para Neil e Andrew — Diga ao zumbi para liderar o caminho.



👻



Entre todas as opções de automóveis populares que existiam, uma van era, talvez, a melhor forma de transportar um zumbi – Isso, é claro, se tratando de um zumbi amigável.

Neil e Andrew se espremeram no banco do passageiro ao lado de Matt, nenhum dos dois querendo ficar nos bancos de trás, que ainda estavam muito próximos do zumbi em decomposição na parte sem bancos da van. Novamente, não era uma questão de segurança física, sendo mais um problema de risco biológico e enjoo, porque, por mais que o cara não fosse um risco direto, seu cheiro não era nada agradável.

Eles abaixaram todas as janelas, tomando cuidado para garantir que ninguém pudesse ver o morto vivo na parte de trás, e seguiram pelo caminho indicado pelo juiz de forma cautelosa e silenciosa, tentando não chamar atenção nem dos habitantes furiosos de Palmetto e nem a atenção da bruxa furiosa no céu, considerando que grande parte do plano pouco estruturado de Neil dependia do elemento surpresa.

— Vira à esquerda. — Neil traduziu quando o juiz indicou, e Matt o fez sem questionar. — Agora à direita. — E assim eles foram até chegar à velha estrada que levava ao cemitério dos fundadores.

— P-para… aqui… — O juiz indicou um trecho aparentemente qualquer do caminho e Neil disse para Matt estacionar. A única coisa que o diferenciava do resto era um conjunto de arbustos com flores mortas que não pareciam crescer em nenhum outro canto da estrada. — A pé… a partir daqui…

— Ele disse que precisamos ir à pé daqui.

— Ótimo, vamos seguir o zumbi pro meio da floresta. Ótimo mesmo. — Matt murmurou enquanto terminava de estacionar no meio fio da estrada, saindo da van com o machado vermelho na mão e deixando o pisca alerta ligado enquanto Neil e Andrew abriam a porta dos fundos para o juiz sair.

A tensão era palpável entre todos eles, pesada como o silêncio que não ousavam quebrar. Os quatro se moveram pela floresta com cautela, os únicos sons ao redor eram três respirações e o andar arrastado do zumbi, e isso imediatamente fez Neil ficar mais preocupado – deviam haver sons na floresta, não é? Pássaros, insetos, animais carnívoros assassinos, qualquer coisa…

Eles já estavam andando há um tempo quando um galho estalou à sua direita. Neil se virou rapidamente, vendo um vulto desaparecendo entre as árvores e o breu da noite.

— Vocês ouviram isso? — Ele parou, mesmo sabendo que não deveria, tentando enxergar através da escuridão apenas levemente diluída pelo feixe da lanterna nas mãos de Andrew.

Todos pararam, e seu amigo apontou o feixe de luz para o lugar agora vazio entre as árvores à direita, mas não havia nada: — Não ouvi nada…

Neil ia falar para eles continuarem andando quando outro som, dessa vez à esquerda, o fez pular – uma risada, ele tinha certeza, suave e brincalhona.

— Vocês ouviram agora, não ouviram? Tinha alguém rindo!

— Neil, não ouvi nada, amigo… — Matt soava amedrontado, segurando o machado com mais força, mas Neil suspeitava que, o que quer que fosse, não seria atingido por algo tão físico.

— Acho que estamos chegando perto. — Andrew murmurou, segurando a mão de Neil e não perdendo tempo enquanto seguia em frente. Mas Neil não parava de ouvir aqueles lapsos de presença na floresta; movimento, crianças correndo entre as árvores, risadas se esvaindo na escuridão.

Jean Yves! — Uma voz gritou quando eles desceram um pequeno barranco coberto por folhas mortas e árvores inclinadas, e Neil sentiu um arrepio gelado, e então algo como um puxão no peito, o incitando à continuar seguindo em frente.

Antes que percebesse, aquela sensação cresceu até comprimir seus pulmões, e ele acabou soltando a mão de Andrew para ultrapassar Matt. Estava perto, muito perto.

Parecia difícil respirar, o ar gelado descendo por sua garganta com gosto de eletricidade e rancor, enquanto o som antes distante da tempestade parecia crescer impossivelmente ao seu redor, os raios afiados e constantes, os trovões soando quase como madeira estalando.

— Neil! — Andrew e Matt gritaram às suas costas, e quando ele se virou, viu que o som não vinha do céu, mas do chão, e que pedaços afiados e enormes de madeira estavam saindo da terra cinza como barreiras mortais, separando Neil do resto do grupo.

Ele só teve tempo de sair do caminho antes que o último espinho surgisse exatamente onde ele estava anteriormente, se deixando cair contra uma das árvores nodosas enquanto seu amigo e Matt continuavam gritando para saber se ele estava bem.

— Estou bem! — Ele conseguiu gritar, tentando ignorar o puxão ainda insistente em seu peito — Vocês estão bem?

— Estamos bem! Espera aí, vamos cortar essas coisas! — Andrew berrou, e Neil ouviu quando o machado começou a cortar a madeira, mas ele sabia que levaria tempo, um tempo que nem ele e nem Jean tinham.

— Eu vou indo na frente! — Ele avisou, ignorando prontamente os protestos e gritos dos dois, se virando quando teve certeza de que nenhum outro espinho iria surgir. — Eu vou ficar bem!

— Neil! Neil, volta aqui! Você nem tem uma lanterna!

Ele seguiu em frente mesmo assim, no escuro, se apoiando nos troncos das árvores e pisando com cuidado, deixando que a sensação o guiasse, e em menos de cinco minutos caminhando a mata fechada foi iluminada por um brilho verde venenoso.

Ele seguiu a luz, respirando fundo quando seus passos o levaram até uma clareira ampla no meio da floresta, onde uma árvore enorme, maior do que todas as outras, se erguia bem no centro, com seus galhos enormes e nodosos se estendendo como dedos infinitos e perversos em direção aos céus, sem nenhuma folha ou sinal de vida. Era da árvore que o brilho verde incandescente dos raios surgia, alimentando a tempestade apocalíptica acima, e, no centro de tudo, havia uma silhueta disforme e inconstante, feita de pura eletricidade.

— Jean? — Neil não pôde evitar de perguntar, parado na periferia da clareira, não sabendo exatamente como prosseguir agora que estava ali.

A figura de raios no centro da árvore se virou lentamente para ele, um par de olhos arregalados o encarando de repente, enlouquecidos de raiva.

De nada lembravam os olhos cinzas do garoto que tinha visto naquela visão.

Vá embora! Você não é bem-vindo! — O espírito gritou, sua voz dissonante soando como um coro de muitas outras vozes.

Neil deu um passo à frente apesar de tudo em seu corpo lhe dizer o contrário. Precisou apertar as mãos em punhos bem fechados para evitar que tremessem, mas prosseguiu: — Eu… eu só preciso conversar com você.

A figura fantasmagórica, verde e meio translúcida mostrou os dentes em uma clara ameaça: — Não quero conversar! Quem é você, afinal?

— Meu nome é Neil… Neil Josten. Você não me conhece mas… mas eu sei quem você é… Seu nome é Jean Yves Moreau, e-

Como você sabe disso?

— Eu também sei que você está com raiva-

Você não sabe de nada!

Neil deu mais um passo cauteloso para dentro da clareira, consciente do olhar afiado sobre ele: — Sei sim. — Ele tentou manter a voz tranquila, embora precisasse elevar o tom para ser ouvido por cima da tempestade, que ali parecia ainda mais barulhenta. — Eu sei o que eles fizeram-

Fica quieto!

— Não! — Ele se manteve firme — Eu vi o que aconteceu e eu… Sabe, Jean, somos muito parecidos, eu e você.

Parecidos? Não somos nada parecidos! Eu estou morto! — O rosto de raios do fantasma distorcido pareceu tremer, como se tentasse se dividir em dois outros rostos por um momento.

— É, eu… eu sei que não estou morto, mas, tirando isso- — Ele teve uma ideia então, perdendo que suas palavras não estavam alcançando Jean como ele queria — Mas entendo o porquê de você não achar isso. Entendo mesmo. Eu… eu vim aqui hoje porque preciso te contar uma história…

O fantasma de Jean se moveu, saindo do centro da árvore e se aproximando tão lentamente quanto Neil, mas de forma muito mais ameaçadora: — Não vou mais ouvir as histórias daquele livro estúpido! Eu o destruí! Não vai me colocar para dormir de novo!

— Não, essa é uma história diferente! — Neil foi rápido em acrescentar, parando exatamente onde estava — Uma história real e… Certo, era uma vez… — Neil começou lentamente — Um garoto com um dom muito especial…

Não quero ouvir essa história!

Neil o ignorou, sabendo no fundo de seu ser que precisava continuar: — Desde que conseguia se lembrar, o garoto podia ver e falar com os mortos...

Não gosto dessa história! Pare!

— Por causa desse dom, as pessoas tinham medo dele. Não conseguiam entendê-lo…

Você não sabe do que está falando!

— O medo deles permaneceu distante por um bom tempo, mas então coisas ruins começaram à acontecer… Seca, fome e doença, se espalhando por todo o lado…

Para!

— Foi fácil pra eles culparem o garoto por tudo isso, porque o medo sempre acaba se transformando em ódio, e ódio sempre acaba se transformando em violência. — Neil ousou dar outra passo à frente, erguendo as mãos com calma, em sinal de paz — Então eles fizeram uma coisa horrível. Uma coisa imperdoável .

Não! Chega! — A figura flutuante de Jean tremeluziu, sumindo e aparecendo repetidamente enquanto toda sua postura encolhia e se tornava mais agressiva e assustada.

— Por medo e ignorância, eles levaram o garoto embora! — Neil gritou, precisando que Jean o escutasse, apesar da dor que isso causaria — Eles o levaram e então eles o mataram!

O grito que Jean soltou foi estrondoso, mais alto do que qualquer e trovão, do que qualquer lamento, um choro preso por mais de 300 anos distorcendo sua voz e seu rosto ainda mais.

Raios se desprendiam do corpo inconstante do fantasma, atingindo as árvores próximas e o chão, criando rachaduras que vazavam aquela luz verde infernal, o mundo tremendo como se tudo fosse desabar sob seus pés.

— Mas o garoto não partiu, mesmo depois da morte! — Neil tentou gritar, sua voz quase o sufocando — Ele foi tomado por tanto medo, tristeza e rancor que ele próprio se tornou o ódio, e amaldiçoou não apenas seus assassinos, mas a si mesmo!

Eu não fiz isso! Eu não fiz isso! Eles merecem pagar! Eles são monstros!

O vento forte que vinha direto da árvore no centro da clareira quase empurrou Neil para trás, mas ele firmou os pés na terra e voltou a avançar: — Eu sei que merecem! Mas você não merece isso, Jean! Você não é um monstro! Você é muito mais do que as coisas que eles fizeram com você!

Você não entende! Você não entende! Ninguém nunca entende!

— Eu entendo sim! Eu também senti esse ódio por muito tempo! Eu queria fazer as pessoas que me machucaram pagarem por isso, mas vingança nunca adiantou de nada! No final, mesmo quando elas pagaram, não consertou nada! Eles estão mortos, Jean! É hora de ir, por você, pelo Jeremy, pela Elodie! — Neil avançou um pouco mais, lutando contra a eletricidade estática dolorosa dos raios e a força brutal do vento.

Ele não iria desistir. Ele não viraria as costas para Jean.

Eu não posso! Não posso encarar eles novamente! Não sou mais humano, não sou mais nada! — Jean chorou, seu grito lamentável desfazendo o mundo ainda mais em suas extremidades, um poder tão bruto, tão terrível e tão devastador que tinha o potencial de reconstruir a própria realidade.

— Isso não é verdade! Eu sei que você passou 300 anos aqui remoendo todas as coisas ruins que aconteceram, toda a perda, todo o luto, mas não é só isso que existe! Existe amor! Eu sei que existe! Você precisa se lembrar, Jean, você precisa se lembrar de como eles te amavam e de como você os amava!

Agora ele estava perto o suficiente para estender a mão e tocar. Jean arregalou os olhos, assustado, e tentou flutuar para longe, mas Neil não permitiu, dando um último impulso para frente e agarrando a mão do fantasma, pela primeira vez sentindo sua solidez.

No momento em que suas mãos se tocaram, o mundo todo ficou branco e sumiu.



👻



Eles ainda estavam na clareira quando Neil abriu os olhos, a mesma clareira, mas não no mesmo lugar, não no mesmo tempo em que estiveram antes. O sol brilhava sobre a grama e por entre as folhas verdes que farfalhavam no topo da grande árvore no centro, lançando reflexos de luz que transformaram a floresta em uma terra encantada.

Neil sabia que não era real, mas aquela era, talvez, a visão mais bonita que já tinha tido.

— Havia amor… — A voz tranquila e baixa de Jean sussurrou à sua frente, e Neil ergueu os olhos para as costas curvadas do garoto, não mais feito de raios e destruição, mágoa e rancor; ali, parecendo tão real quanto poderia, Jean Yves voltara a ser apenas um garoto. Vivo, mesmo que não estivesse realmente. — Eu me lembro agora…

Um conjunto de risadinhas alegres ecoou pela clareira, e Neil observou enquanto uma garotinha de cabelos escuros e olhos cinzas, em um vestido simples e branco, corria junto com um garoto um pouco mais velho, loiro e sorridente, com olhos tão azuis quanto o céu limpo sobre suas cabeças. Em um segundo eles desapareceram novamente, como espectros de outra vida, mas suas risadas aqueceram algo dentro de Neil que estava gelado desde o começo daquele dia.

Outro reflexo apareceu rapidamente, perto da grande árvore, acompanhado por um cantarolar suave e gentil. A silhueta translúcida de uma mulher descansava contra o tronco largo, seus longos cabelos pretos puxados para trás por um prendedor com enfeites de flores brancas. Ela tinha um livro pesado de conto de fadas no colo, murmurando em francês uma história muito antiga antes de, como as duas crianças, sumir com a próxima brisa.

Neil sabia que aquela era a mãe de Jean, e que as crianças correndo eram Jeremy e Elodie. Ele conhecia seus rostos e suas vozes como se fossem partes fundamentais de suas memórias, e, repentinamente, percebeu que eram . Jean, inteiro e real, se virou para ele, com seu rosto jovem, intocado pelo ódio, com lágrimas ainda escorrendo pelas bochechas, e Neil simplesmente soube que, no momento em que se tocaram, compartilharam tudo um com o outro, cada lembrança, cada sentimento, todas as coisas ruins, mas todas as coisas boas também.

Acima de tudo, as boas.

— Jeremy, Elodie, minha mãe… — Jean sussurrou, sua voz somente sua novamente, e Neil sabia que ele sentia uma onda de nostalgia enquanto olhava em volta para o lugar onde costumava brincar com seu amigo e sua irmã, onde escutava histórias de sua mãe e dormia sob aquela árvore imensa. Podia sentir aquele puxão em seu peito agora preso ao peito de Jean também — Eles me amavam, e eu os amava…

— Eu sei que sim… — Neil sussurrou, se aproximando dele. Jean não se afastou dessa vez, aceitando a mão estendida de Neil de bom grado — Consigo sentir esse amor.

— Está em você também. — Jean acrescentou rapidamente, estendendo a mão livre para o centro do peito de Neil, onde o colar agora descansava completamente à mostra. Neil quase havia se esquecido disso, mas soube naquele momento também, como simplesmente sabia tudo sobre Jean agora, que o outro garoto queria que Neil ficasse com o colar — Eu vi sua vida, Neil. Vi o mal do passado, a dor, a perda. Mas vi o amor. Tantas pessoas te amam tanto .

Neil sentiu um peso invisível saindo de cima dele enquanto aquela certeza morna e confortável se estabelecia, quebrando qualquer barreira que ainda o fazia hesitar em admitir isso. Admitir que se importava, admitir que ele era uma pessoa real e que merecia esse amor.

— Sim, eles amam. E eu amo eles. Tanto que às vezes nem sei o que fazer.

Mesmo entre as lágrimas, Jean sorriu: — Você vai saber. É fácil… Eu tinha me esquecido como é fácil amar. Muito mais fácil do que o ódio. — Jean virou suas mãos ainda unidas, observando as mãos de Neil cobertas de cicatrizes finas do raio que havia o atingido. As marcas cobriram seus braços quase completamente, e uma parte de seu peito e pescoço, assim como uma boa parte de seu rosto, mas não doíam de qualquer forma — Sinto muito por isso. Eu acho que me esqueci de tanta coisa… como seguir em frente, como ser gentil…

Neil apertou as mãos de Jean: — Está tudo bem, você se lembrou agora.

Jean fechou os olhos por um segundo e então bocejou: — É, eu me lembrei, e acho que estou pronto pra dormir de verdade dessa vez.

Neil assentiu, sentindo a leve ardência de lágrimas em seus próprios olhos: — Vem, podemos deitar debaixo da árvore, como você gostava de fazer. — Ele puxou Jean delicadamente para se sentar contra o tronco da árvore, onde um dia ele se sentou com sua mãe, onde um dia brincou com sua irmãzinha e seu melhor amigo, onde um dia esteve vivo e feliz. Eles se acomodaram, um sentimento tanto de alívio quanto de pesar passando entre aquela estranha conexão entre suas almas — Pode dormir, não vou sair do seu lado.

— Obrigado, Neil… — Jean suspirou, se acomodando de forma que sua cabeça ficasse apoiada no ombro de Neil, ainda segurando sua mão firmemente, como se estivesse com medo que Neil fosse embora, ou como se estivesse com medo do que viria à seguir.

Neil sentiu o sono chegando como a brisa fresca no ar, o cheiro das flores, das lembranças, dos sonhos. Aquele momento se arrastou sobre ele lentamente, quente e doce, como o amor.

— Jean Yves! — Alguém gritou do outro lado da clareira, onde um brilho suave e dourado vinha da floresta, e Neil observou enquanto Jeremy sorria e acenava para eles.

— Jean Yves! — Elodie, segurando as mãos de Jeremy, o copiou, pulando onde estava com o sorriso mais brilhante do mundo.

Atrás das duas crianças, a mãe de Jean apareceu, sorrindo ternamente: — Jean Yves, meu amor, estivemos esperando você por tanto tempo…

Neil sentiu as lágrimas quentes finalmente descendo por seu rosto, enquanto sentia o peso do corpo de Jean esmaecendo ao seu lado, sua figura desaparecendo lentamente, descascando até ficar translúcida, leve e dourada.

Em alguns segundos, Jean estava do outro lado, sendo abraçado por sua família, e então, tudo desapareceu.

A clareira iluminada pelo sol, e todas aquelas pessoas maravilhosas finalmente se reunindo, deixando tudo de ruim para trás. Neil estava sozinho na floresta agora não tão escura, iluminada pela luz da lua cheia. A tempestade havia sumido, e um milhão de estrelas brilhavam no céu agora que Jean Yves Moreau estava livre.

Neil não sabia a quanto tempo estava ali, olhando para o céu, quando Andrew e Matt finalmente correram por entre as árvores até a clareira.

— Neil! — Andrew gritou, correndo até ele com olhos arregalados antes de se ajoelhar à sua frente e segurar seu rosto com mãos ternas e cuidadosas. — Neil, olha pra mim! — Neil olhou, e sorriu, apesar das lágrimas ainda caindo, apesar do aperto em seu coração, apesar de tudo, de todo o mal e de todo o bem.

— Eu consegui… — Neil sussurrou, rindo baixinho — Ele conseguiu, nós conseguimos…

Matt deixou o machado cair na grama quebradiça da clareira, soltando um suspiro aliviado e profundo enquanto apoiava as mãos nos joelhos e recuperava o fôlego. Ele estava suado, certamente por ter passado todo aquele tempo tentando cortar os espinhos de madeira para chegar até Neil. 

Neil apreciou o esforço e o carinho por trás dele.

— O zumbi sumiu. — Andrew murmurou para ele, sem soltá-lo, parecendo ainda estar procurando algum ferimento escondido — Os espinhos que ainda estavam no caminho simplesmente voltaram para o chão e o zumbi… ele se desmanchou. Parecia em paz.

Neil assentiu, segurando uma das mãos que Andrew ainda usava para segurar seu rosto: — Estou tão feliz. Jean Yves Moreau era uma pessoa fantástica.

Matt se aproximou então, finalmente parecendo ter recuperado o fôlego: — Sabia que você ia conseguir, Neil, mas, sério, chega de zumbis e maldições por um tempo, tudo bem?

Neil riu, tão alegre que poderia explodir: — É, é, eu concordo com isso!

Andrew se levantou, puxando Neil com ele no processo: — Vamos, vamos pra casa. Todos nós precisamos de um banho.

Eles saíram da floresta facilmente, quase como se as árvores se abrissem para eles, sem obstáculos, sem problemas.






Um Ano Depois





— Isso vai se tornar uma tradição de Halloween? — Andrew perguntou quando eles emergiram na clareira da velha árvore no final da tarde do dia 31 de Outubro, mas não parecia incomodado de nenhuma forma.

— Eu gostaria que sim. — Neil admitiu, se aproximando do centro da clareira com calma, sentindo o sol morno tocando sua pele e a brisa suave do outono bagunçando seu cabelo. Eles já estavam usando suas fantasias daquele ano, cortesia de Andrew, que havia levado muito à sério a promessa de Neil de que ele poderia escolher do que eles iriam se vestir esse ano.

Não que Neil estivesse reclamando, ele adorava O Estranho Mundo de Jack, e suas cicatrizes de raio, agora mais esbranquiçadas do que vermelhas, foram o contorno perfeito para a maquiagem de Sally , e Andrew combinava muito bem com sua fantasia de Jack Esqueleto.

— Certo, desde que a gente não se atrase para pegar doces. — Seu amigo deu de ombros, se aproximando da árvore também — Preciso pelo menos do meu peso em barras de chocolate até o final da noite.

— Aposto que Seth ainda está se sentindo culpado por ser um babaca ano passado, podemos arrastar ele junto. — Neil sugeriu, com um sorriso travesso — Ele pode carregar as sacolas.

Andrew sorriu de volta: — E se ele se recusar, aposto que você pode pedir para o Kevin convencer ele.

Neil riu, apesar do gemido de desgosto que veio junto: — Ugh, nem me lembre! Quando eu disse que ele precisava se aceitar e parar com a besteira homofóbica, não queria que ele tivesse uma paixonite pelo meu irmão!

— Não se pode ganhar sempre. — Andrew riu, seu sorriso parecendo muito mais largo por conta da maquiagem de esqueleto. — Pelo menos você não tem que lidar o tempo todo com Matt fazendo serenatas sobre como sua irmã é o amor da vida dele.

Neil riu, sabendo que Matt era um romântico incurável mesmo.

— Ei, otários! — O grito vindo da floresta fez com que os dois se virassem bem à tempo de ver Aaron tropeçando por entre as raízes no chão, claramente descontente por ter se auto convidado para vagar pela floresta. — Vamos logo antes que escureça! Meus planos pra essa noite são me entupir de doces azedos, não me perder na floresta e ser canibalizado por vocês dois!

— Já estamos indo! — Neil gritou para ele, tendo que segurar a risada com tudo que tinha, porque não conseguia levar Aaron à sério em um dia normal, muito menos agora que ele estava usando o nariz de palhaço vermelho brilhante que compunha o ponto focal da sua fantasia de Zero, o cachorro de Jack Esqueleto no filme.

Era isso que dava fazer apostas com Andrew Minyard, que podia ser terrivelmente mesquinho quando queria.

— Vamos? — Andrew indicou o caminho, já se afastando da árvore que, lenta e seguramente, vinha voltando a ter folhas.

Neil tocou o tronco áspero e antigo, respirando fundo e pensando em Jean, sentindo aquela alegria familiar ao pensar nele, em como estava feliz agora, o colar com a enfeite de flor branca parecendo ficar quente contra seu peito coberto pela fantasia de retalhos cuidadosamente costurados: — Vamos, só passei pra dar um oi mesmo.

Feliz dia das bruxas, ele pensou, se afastando da árvore e seguindo os gêmeos para fora da floresta.

Notes:

Espero que tenham gostado, e não se esqueçam de curtir e comentar!