Chapter 1: I
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O verão de 1985 em Liverpool era pesado, úmido e cheirava a gasolina velha e grama cortada. Dentro da sala de artes da escola, o calor era ainda mais opressivo, misturado com o cheiro agridoce de tinta acrílica e terebintina. A última aula da sexta-feira era um purgatório particular para John Lennon. Ele rabiscava desenhos agressivos e explicitos na margem do caderno – figuras distorcidas, rostos gritando, peitos, gente pelada e Margaret Thatcher sendo guilhotinada – Tudo em nanquim preto. Sua mente estava a milhas dali, longe daquela prisão de concreto e dos discursos monótonos sobre o Renascimento e os mecenas.
"Lennon! Pare de viajar e me diga: qual a influência religiosa em Botticelli?"
John ergueu os olhos para o professor, um homem de meia-idade com um suéter amarrotado mesmo no calor. Ele encarou a parede atrás do professor, onde um pôster de "Madonna" estava pendurado, lembrando-o menos da igreja e mais da vontade imensa de gritar um palavrão em alto e bom tom.
"E eu sei lá...pergunta a um padre", ele respondeu, soltando uma risada seca. Alguns colegas riram baixo. George, sentado ao seu lado, abanou a cabeça com um sorriso cansado.
Paul McCartney, sentado na fileira da frente, virou-se levemente. Seus olhos castanhos, geralmente cheios de uma curiosidade animada, estavam sérios. "John", sussurrou, num tom que era ao mesmo vez uma advertência e um acalanto. Um só sussurro dele carregava uma biblioteca de significados que só Paul conseguia articular.
John ignorou o professor e fixou o olhar em Paul. O garoto estava impecável, como sempre. Sua camisa pólo estava perfeitamente alinhada, seus cachos caíam de forma organizada sobre a testa, mesmo no calor. Paul era a antítese da bagunça que fervia dentro de John. E essa era uma das coisas que mais o irritava e, secretamente, mais o fascinava. Paul era um quadro impressionista – bonito à distância, mas uma confusão deliberada e emocionante de perto. John se sentia mais um graffiti numa parede suja.
O sinal final ecoou pelo corredor, um alívio agudo. John empacotou suas coisas com movimentos bruscos, sem cuidado.
"Espera, John!", Paul chamou, correndo para alcançá-lo enquanto John se dirigia aos armários. George e Ringo se juntaram a eles, formando o quartetinho habitual.
"Plano para o fim de semana?" Ringo perguntou, sua voz calma era um bálsamo para a energia caótica de John. "Meu primo conseguiu uma fita VHS de ''A vida de Brian''. Dá pra assistir lá em casa."
"Tá afim de vir, Paul?" George virou-se para o amigo, mas notou que o olhar de Paul estava fixo em John, estudando cada microexpressão em seu rosto.
John fechou o armário com um golpe seco. "Não vou poder. Tenho que... resolver umas coisas."
A atmosfera mudou. George e Ringo trocaram um olhar. "Coisas" com John nunca era algo simples como ajudar a avó ou lavar o carro. "Coisas" geralmente significada crises existenciais, discussões familiares ou problemas com Cynthia.
Paul mordeu o lábio inferior. "É a Cyn, não é?"
John não respondeu. Ele apenas começou a andar pelo corredor vazio, suas botas fazendo eco. Os outros três o seguiram, uma comitiva silenciosa. A luz do fim de tarde entrava pelos altos janelões do corredor, iluminando partículas de poeira que dançavam no ar como cinzas. Para Paul, aquele sempre fora o cenário de sua amizade: corredores infinitos, a cidade cinza lá fora, e John à frente, um líder relutante que eles seguiam por lealdade e por uma estranha certeza de que a vida com ele era mais interessante.
Eles saíram da escola e se dirigiram ao parque próximo, seu refúgio habitual. Sentaram-se no balanço e no escorregador, enquanto John acendia um cigarro, fumando com uma intensidade que ia além do vício.
"Ela terminou comigo", a voz de John saiu plana, como se ele estivesse relatando o resultado de um jogo de futebol em que não tinha interesse.
Ringo assobiou baixo. George baixou a cabeça.
Paul sentiu algo complexo e feio se agitando no seu peito. Era uma pontada de preocupação genuína, sim. Ele gostava da Cynthia, ela era boa para o John. Mas sob essa camada, uma sensação quente e proibida de... esperança? Alívio? A culpa veio imediatamente a seguir, amarga.
"Merda, John. Por quê?" George perguntou.
"Disse que eu sou emocionalmente indisponível. Que vivo numa fortaleza", John deu uma risada amarga, soprando a fumaça para o céu. "Ela leu num livro de bolso de autoajuda e decidiu que se encaixa perfeitamente em mim. Quem diria que Cynthia Powell se tornaria uma especialista em psicologia de banca de jornal."
"Mas você tá bem?" a pergunta de Paul saiu mais suave do que ele pretendia, quase um sussurro.
John finalmente olhou diretamente para ele. Seus olhos, da cor do âmbar, pareciam incendiar-se com a luz do entardecer. Havia uma vulnerabilidade crua lá que raramente era exposta. Paul sentiu o coração acelerar, batendo contra as costelas como um pássaro preso.
"Estou ótimo, McCartney. Livre como um passarinho. A revolução começa com a derrubada da monarquia, não é?" Ele deu outro trago. "Cynthia era minha rainha de algodão doce. Doce, mas derrete com a primeira chuvinha."
A analogia era tipicamente johnlennonesca: dramática, histórica e um pouco nonsense. Paul sorriu, incapaz de evitar.
"Bem, então é hora da República", Paul disse, tentando manter o tom leve. "Sem rainhas, só o povo."
"O povo é burro, Paul. Prefiro o caos." John jogou a ponta do cigarro no chão e esmagou-a com a bota.
George e Ringo ficaram em silêncio, percebendo que a conversa havia se tornado um dueto. Era sempre assim. John e Paul falavam em códigos, em metáforas, criavam um mundo particular no meio do parque. Os outros dois eram espectadores.
"Vamos dar uma volta", John propôs, se levantando. "Preciso me mexer."
George e Ringo decidiram ficar, inventando uma desculpa sobre encontrar outros amigos. Eles sabiam quando não eram necessários. Paul, quase por reflexo, se levantou e se juntou a John.
Caminharam em silêncio por um tempo, seguindo o caminho de terra que cortava o parque. O sol começava a se por, pintando o céu de laranja e roxo. A tensão entre eles era palpável, um fio elétrico esticado ao máximo.
"Ela tá certa, sabe", John disse, de repente, quebrando o silêncio. "A Cynthia. Essa coisa da fortaleza. Às vezes sinto que tô trancado dentro de mim mesmo. E todo mundo fica batendo na porta, tentando entrar, mas a chave se perdeu."
Paul parou de andar. "Não é assim, John."
"Como você sabe?" John parou também, virando-se para encarar Paul. O vento suave bagunçou seus cabelos.
"Porque eu vejo você", a resposta saiu de Paul antes que ele pudesse pensar. Foi tão honesto, tão cru, que fez o rosto de John suavizar por um segundo. "Não é uma fortaleza. É mais... um labirinto. Completamente confuso e cheio de becos sem saída. Mas não é trancado."
John olhou para ele, e pela primeira vez naquele dia, uma emoção real – além da raiva e do sarcasmo – cruzou seu rosto. Era algo parecido com admiração, com curiosidade.
"Um labirinto, hein? E você, o que você é, então? O fiel escudeiro que fica do lado de fora com uma lanterna?"
"Algo assim", Paul encolheu os ombros, o coração batendo loucamente. "Ou o cara que já se perdeu dentro do labirinto tantas vezes que já conhece o caminho."
Eles estavam muito perto agora. O cheiro de cigarro e da colônia barata de John enchia os sentidos de Paul. O mundo ao seu redor pareceu desfocar. O parque, o pôr do sol, os sons distantes da cidade – tudo desapareceu, restando apenas o espaço de alguns centímetros entre seus rostos.
John não disse nada. Ele apenas continuou olhando para Paul, seus olhos percorrendo cada detalhe do rosto do amigo, como se estivesse vendo algo novo. Algo interessante. Então, algo dentro dele pareceu ceder. A arrogância, a defesa, tudo desmoronou por um instante fugaz.
Ele se inclinou para frente.
Não foi um beijo de paixão, nem de amor. Foi algo mais estranho, mais experimental. Um toque rápido de lábios, seco e levemente trêmulo. Durou menos de um segundo. O calor do lábio de John contra o seu foi como um choque elétrico que percorreu todo o corpo de Paul, paralisando-o.
John se afastou tão rápido quanto se aproximou, seus olhos agora bem abertos, como se ele próprio não acreditasse no que tinha feito. Ele olhou para Paul, depois para o chão, e então deu meia-volta, retomando a caminhada num passo mais acelerado.
"Vem logo, Macca. Tá ficando escuro e eu não quero levar esporro da tia mimi em casa."
Paul ficou paralisado por um momento, os dedos tocando os próprios lábios, onde o fantasma do beijo ainda ardia. Sua mente, sempre tão rápida, estava em branco. Um turbilhão de emoções o atingiu: euforia, confusão, medo e uma centelha de triunfo.
Ele correu para alcançar John, seu passo agora leve, quase flutuante. O mundo não era mais cinza. Era dourado. A Revolução Francesa podia ter sido sangrenta e caótica, mas naquele momento, para Paul McCartney, parecia que a Bastilha de John Lennon finalmente tinha uma brecha. E ele estava disposto a entrar, não como um revolucionário violento, mas como um homem disposto a se perder para sempre naquele labirinto, se fosse preciso.
Ele não sabia, mas aquele beijo rápido e confuso não era o início de um romance. Era o bater de asas de uma borboleta, que daria inicio a consequências devastadoras.
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O beijo no parque não foi mencionado. Ele pairou no ar entre John e Paul como um fantasma bem-vestido e educado, que se recusava a sair de cena, mas também não fazia escândalo. Nos dias que se seguiram, Paul esperou por qualquer coisa: uma rejeição brutal, uma conversa constrangedora, ou, num cenário de fantasia que ele alimentava em segredo, a confissão de que aquilo tinha significado tudo. John, no entanto, agiu como se nada tivesse acontecido. Só que, para Paul, tudo tinha acontecido.
O verão se instalou em Liverpool com uma intensidade rara. O ar ficou pesado e doce, e os dias se esticaram como chicletes. A escola tinha acabado, e a liberdade era um território vasto e um pouco assustador. Para o quarteto, significava longas tardes na garagem abafada dos Starkey, onde os amplificadores sussurravam e gritavam as mesmas velhas músicas, ou perambulações sem rumo pela cidade, buscando sombra e algo para fazer.
E foi nesse vácuo de obrigações que a dinâmica começou a mudar. John, que sempre ditava o ritmo com sua ironia afiada e sua impaciência, parecia mais quieto. Observador. E seus olhos, com uma frequência que fazia o estômago de Paul dar voltas, estavam fixos nele.
Foi durante um desses dias preguiçosos na garagem do Ringo que a primeira mudança palpável aconteceu. Eles tentavam, sem sucesso, ensaiar uma versão de "Johnny B. Goode". George estava com o violão, concentrado no riff. Ringo mantinha um ritmo constante. John, no microfone, cantava as palavras com um des ddémivertido. Paul, no baixo, fechava os olhos, deixando a música tomar conta dele, seu corpo balançando levemente.
De repente, a música parou.
"Tá errado, Paul", a voz de John cortou o ar morno.
Paul abriu os olhos. "O quê?"
"O baixo. Na segunda parte. Tá muito... certo. Muito previsível. Tira a alma da coisa."
George parou de tocar. "Pareceu ok pra mim, John."
"É porque você gosta de coisas certinhas, George. Eu quero algo mais sujo. Mais rusé." John usou a palavra francesa com um sotaque terrível, mas com uma convicção absoluta. Ele se aproximou de Paul, que segurava o baixo como um escudo. "Aqui", John disse, e antes que Paul pudesse reagir, as mãos de John cobriram as suas no braço do instrumento.
Paul travou. O toque era quente, seco. Os dedos de John, mais finos e nervosos que os seus, pressionaram as suas contra as cordas, guiando-os para uma posição diferente.
"Tenta assim", o sussurro de John estava tão perto do seu ouvido que o ar quente fez Paul estremecer. "Um pouco fora do tempo. Deixa respirar."
Era um conselho musical idiota. Paul era, de longe, o músico mais tecnicamente habilidoso do grupo. Ele sabia que a sugestão de John era puro instinto, não técnica. Mas naquele momento, com as mãos de John sobre as suas, com o cheio de suor e cigarro dele invadindo seu espaço, Paul teria concordado em tocar o baixo de cabeça para baixo se John pedisse.
"Tá... tá bom", Paul gaguejou, tentando disfarçar a voz trêmula.
John soltou suas mãos, mas não se afastou. Ficou ali, observando Paul tentar reproduzir o "erro" que ele tinha ensinado. Um sorriso pequeno, quase imperceptível, jogou nos lábios de John.
"Melhor", ele declarou, como um rei concedendo um título. "Veem? Um pouco de anarquia sonora não faz mal a ninguém. A revolução não toca no tempo certo."
Ringo revirou os olhos, mas continuou batendo na caixa. George olhou para os dois, uma sobrancelha levemente arqueada. A cena era comum – John criticando, John ditando –, mas a proximidade, a intimidade do toque, era nova.
Essa nova dinâmica se infiltrou em tudo. Quando iam ao cinema, John se sentava ao lado de Paul e, no escuro, seus joelhos se encostavam e permaneciam assim durante o filme inteiro, um ponto de calor constante que impedia Paul de se concentrar em qualquer coisa na tela. Quando compravam chips na lanchonete, John pegava um da embalagem de Paul sem pedir, seus dedos se encontrando brevemente no sal e no vinagre. Eram migalhas, pequenos gestos que, para qualquer um de fora, pareceriam normais entre amigos próximos. Mas para Paul, cada um era um capítulo de um livro que só ele estava lendo.
A gota d'água veio numa tarde particularmente quente. Eles estavam na casa de George, que tinha ar condicionado – um luxo para a época. A mãe de George tinha saído, e a sensação de ter uma casa inteira só para eles era intoxicante. Ringo estava vendo TV na sala, George no quarto, tentando afinar um violão novo. John e Paul ficaram na varanda dos fundos, olhando o jardim murcho.
"Tédio. O pior pecado capital", John declarou, deitado numa espreguiçadeira de plástico. "Precisamos de um projeto. Algo grandioso."
"Podemos tentar escrever uma música", Paul sugeriu, sentado no chão, encostado na parede.
"Toda sugestão sua é tão... prática, Paul. Uma música. Que tal um manifesto? Ou invadir a prefeitura e declarar a independência de Merseyside?"
Paul riu. "Acho que meu pai não aprovaria."
"Seu pai não aprova nem a cor da minha camisa", John retrucou, fechando os olhos contra o sol. Um silêncio caiu, mas não era desconfortável. Era carregado, como o ar antes de uma tempestade.
Paul observou John. A luz do sol destacava os fios de cobre em seu cabelo castanho, a linha de seu queixo, a curva de seus lábios. Ele parecia mais jovem quando dormia, ou quase dormia. A máscara de cinismo caía, revelando o rosto de um garoto de dezessete anos, cansado e um pouco perdido. Paul sentiu uma onda de afeto tão intensa que doía. Era mais do que atração; era um desejo de proteger, de entender, de habitar aquele espaço complicado que era John Lennon.
Sem pensar, movido por um impulso que vinha se acumulando desde o beijo no parque, Paul esticou a mão e tocou um cachecol de linho que John usava enrolado no pescoço, apesar do calor. Era um acessório ridículo, tipicamente johnlennonesco.
John abriu os olhos. Dessa vez, não havia surpresa. Havia apenas um olhar profundo, calculista. Ele não se moveu.
"Esse cachecol é um crime contra a termodinâmica, John", Paul disse, a voz um pouco rouca.
"É moda, McCartney. A moda não obedece às leis da física ou quaisquer esquisitices nerd que você acredita." A resposta veio automática, mas o olhar não se desviou.
A mão de Paul, ainda segurando a ponta do cachecol, subiu lentamente, até tocar a pele quente do pescoço de John. O pulso batia forte contra seus dedos. Era a prova de que por debaixo de toda a pose, John também estava vivo, nervoso, vulnerável.
John se levantou da espreguiçadeira num movimento fluido. Ele não puxou Paul, nem se afastou. Apenas deslizou para o chão, sentando-se de frente para ele, tão perto que seus joelhos se tocaram. A varanda de concreto era dura, o ar quente parado, mas Paul sentiu como se estivesse flutuando.
"Você é estranho, sabia?" John disse, seu rosto a centímetros de Paul. "Você olha pra mim como se eu fosse um quebra-cabeça que você quer resolver."
"Talvez você seja", Paul sussurrou.
Dessa vez, o beijo não foi rápido. Foi lento, hesitante no início, como se ambos estivessem testando o terreno. Os lábios de John eram mais macios do que Paul imaginava. Sabiam a cigarro e a limão. Paul fechou os olhos, sua mão ainda no pescoço de John, puxando-o suavemente para mais perto. Foi um beijo desajeitado, de adolescentes, mas para Paul, foi como encontrar a peça mestra de todo o quebra-cabeça do universo. Tudo fez sentido naquele calor, naquele toque, no som abafado da TV da sala e no zumbido distante de um cortador de grama.
Eles se separaram, ofegantes. O rosto de John estava corado, seus olhos, bem abertos, pareciam enormes. Ele não sorriu. Ele apenas olhou para Paul, como se estivesse vendo uma nova cor pela primeira vez.
"Merda", John disse, mas não soou como um arrependimento. Soou como um reconhecimento.
"Merda", Paul concordou, um sorriso enorme e idiota se espalhando pelo seu rosto.
Os passos de George no corredor os fizeram se afastar rapidamente, como dois criminosos. Quando George apareceu na porta da varanda, eles estavam em posições inocentes, John de volta à espreguiçadeira, Paul examinando uma folha morta no chão com interesse súbito.
"Alguém quer suco? Achei umas laranjas na geladeira", George perguntou, seus olhos passando rapidamente de um para o outro. Havia uma centelha de percepção em seu olhar, mas ele não comentou nada.
"Claro, George. Obrigado", Paul disse, a voz ainda um pouco instável.
John apenas acenou com a cabeça, fechando os olhos novamente, mas Paul podia ver o canto de sua boca curvado para cima, num quase-sorriso.
O verão seguiu assim, pintado com as cores súbitas desses momentos furtivos. Beijos roubados atrás da garagem depois do ensaio. Mãos se encontrando sob a mesa da lancheria. Sussurros no telefone tarde da noite, quando o mundo dormia e eles podiam falar sobre tudo e sobre nada, sem a pressão dos olhares alheios. Para Paul, era uma felicidade vertiginosa, uma doença deliciosa. Ele se sentia como um jacobino no início da Revolução Francesa, eufórico com a queda da velha ordem – no caso, a ordem em que John era apenas seu amigo sarcástico e inatingível.
Ele, ingênuo, acreditou que aquilo era o início de algo. Que o labirinto tinha se aberto, e ele tinha finalmente encontrado o centro. Ele não percebia que, para John, aquilo poderia ser apenas um verão de experimentação, um mero divertimento barato, enquanto a cidade – no caso, sua vida – estava quieta. John nunca falou em sentimentos, nunca deu um nome ao que estava acontecendo. Ele apenas estava. E Paul, cego de paixão, interpretava cada silêncio como profundidade, cada toque como uma promessa.
Ele não via que estava cavando sua própia cova. E nem desconfiava que, do outro lado do mundo, uma estudante do ensino médio de nome Yoko Ono se preparava para voltar a Liverpool, trazendo consigo uma tempestade que iria varrer todas as cores suaves daquele verão e resto de ano, substituindo-as por preto e branco, e um vermelho muito, muito vivo.
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O final do verão chegou com um sabor agridoce. O ar ainda carregava o calor dos dias longos, mas as noites já traziam um frescor que anunciava a queda das folhas e o retorno à rotina. Para Paul McCartney, era como se o mundo estivesse prestes a voltar aos eixos, mas num eixo radicalmente novo e maravilhoso. Os segredos do verão – os toques, os sussurros, os beijos que sabiam a liberdade proibida – haviam criado uma bolha de realidade alternativa onde ele e John coexistiam num equilíbrio perfeito entre a amizade de sempre e algo mais, algo eletrizante.
Ele estava na garagem dos Starkey, sozinho, afinando seu baixo. O som das cordas ecoava no espaço vazio. Ele cantarolava uma melodia que vinha insistindo em sua cabeça nos últimos dias – algo suave, melancólico, mas com uma centelha de esperança. Era uma música sobre labirintos e sobre encontrar o caminho. Ele a chamava, mentalmente, de "Helter Skelter", inspirado no slide tortuoso do parque onde tudo começara.
A porta da garagem rangeu, e a silhueta magra e familiar de John apareceu, bloqueando a luz do fim de tarde.
"Já tá ensaiando sozinho, careta? O verão nem acabou direito", John disse, entrando. Ele usava óculos escuros, apesar da garagem estar escura, e seu cachecol parecia mais uma armadura do que um acessório.
Paul sorriu, um sorriso fácil que vinha com frequência agora. "A melodia não para, Lennon. É como uma coceira no cérebro."
John se aproximou, tirou os óculos escuros. Seus olhos estavam um pouco cansados, mas havia um brilho neles, uma energia diferente da preguiça habitual do verão. Era uma agitação contida.
"Fala essa melodia aí, então", John pediu, encostando-se na caixa de amplificação ao lado de Paul.
Paul tocou os primeiros acordes, cantando baixo a melodia que tinha em mente. Era íntimo, aquilo. Compartilhar uma música inacabada era mais vulnerável do que um beijo. John ouviu, de cabeça inclinada, os olhos fixos nos dedos de Paul no braço do baixo.
"É fofo", John declarou, após um minuto. Paul sentiu uma pontada de decepção. Fofo não era o adjetivo que ele esperava. "Mas tá precisando de um pouco de caos. Tá muito... Maria Antonieta no Petit Trianon. Precisamos levar essa rainha para ver a guilhotina."
Paul riu. Apenas John poderia fazer uma crítica musical usando a Revolução Francesa como métrica. "E que tal você ajudar a construir a guilhotina, então?"
John não respondeu com palavras. Em vez disso, ele se inclinou e roubou um beijo rápido dos lábios de Paul. Era um beijo que já tinha um gosto de familiaridade, de território conhecido. Paul sentiu o coração disparar, como sempre acontecia.
"Essa é a minha contribuição por enquanto", John sussurrou, afastando-se com um sorriso maroto. "O caos vem depois."
Foi nesse momento que a porta da garagem se abriu completamente. George apareceu, com uma expressão estranha no rosto – uma mistura de incômodo e alerta.
"John", George disse, sem cumprimentar Paul. "Tem alguém te procurando."
A energia na garagem mudou instantaneamente. A postura de John se alterou, endureceu. Ele não pareceu surpreso, mas sim... expectante. "Ah, é? Quem?"
"É a Yoko", George respondeu, e o nome ecoou na garagem como um badalo de sino. "A japonesa que você conheceu naquela exposição de arte no centro, antes das férias. Ela tá na porta. Disse que voltou de viagem e que você combinou de encontrá-la."
Paul sentiu o chão desaparecer sob seus pés. Yoko. Ele tinha ouvido John mencionar o nome uma ou duas vezes, num tom casual, no início do verão. "Uma mulher interessante", John dissera, com um encolher de ombros. Paul não dera importância. John sempre conhecia "pessoas interessantes". Nenhuma delas tinha sobrevivido ao furacão que era a amizade deles. Nenhuma tinha vindo até a garagem.
John, sem olhar para Paul, ajustou o cachecol. Seu rosto era uma máscara de indiferença, mas Paul, que havia passado o verão inteiro estudando cada microexpressão daquele rosto, viu o que ninguém mais veria: um lampejo de ansiedade, sim, mas também de excitação.
"Ótimo. Manda ela entrar", John disse, sua voz um pouco mais grave.
George hesitou, lançando um olhar de preocupação para Paul, que ainda estava sentado, imóvel, com o baixo no colo. Então, ele acenou para alguém do lado de fora.
Ela entrou na garagem como se estivesse pisando num palco. Yoko Ono era baixa, de cabelos lisos e negros como ébano cortados meticulosamente até a altura do peito. Ela vestia roupas largas, pretas, que pareciam flutuar ao seu redor. Seus olhos, amendoados e intensos, percorreram a garagem suja e abarrotada com uma expressão que não era de desdém, mas de análise profunda, como se estivesse catalogando cada objeto para uma instalação futura. Seu olhar passou por George, por Ringo (que aparecera atrás de George, curioso), por cima dos amplificadores e caixas de som, até pousar em John. E então, pousou em Paul, que estava ao lado de John, ainda com a marca do beijo recente ardendo em seus lábios.
"John", ela disse, e sua voz era suave, mas cortante como uma lâmina de aço. Não era uma voz que perguntava; era uma voz que afirmava.
"Yoko", John respondeu. Ele não sorriu, mas sua postura inteira mudou. Ele se endireitou, como um soldado diante de um general. "Você voltou."
"Voltei. O verão em Kyoto foi meditativo, mas monótono. A cidade estava cheia de turistas barulhentos. Senti falta da... autenticidade crua de Liverpool." Seus olhos se fixaram em Paul novamente, por uma fração de segundo a mais do que o socialmente necessário. "E de nossas conversas."
Paul sentiu-se invisível e, ao mesmo tempo, excessivamente visível. Ele era um objeto no cenário, uma cadeira ou um amplificador, que de repente estava no caminho. Ele se levantou, segurando o baixo como uma âncora.
"Yoko, esses são meus amigos", John disse, fazendo um gesto vago. "George, Ringo... e Paul."
Yoko inclinou a cabeça levemente para George e Ringo, um gesto formal, quase uma reverência. Quando seu olhar voltou a Paul, foi como se um scanner estivesse sendo passado sobre ele. Ele sentiu cada fiapo de sua camisa pólo, cada fio de seu cabelo cuidadosamente desarrumado, sendo analisado e julgado.
"Paul McCartney", ela disse, como se estivesse saboreando o nome. "O baixista. John me falou que você é muito talentoso. Muito... competente."
A palavra "competente" saiu carregada de um significado que ia muito além do elogio. Soou como "previsível", "técnico", "sem alma". Paul forçou um sorriso. "Obrigado. É um prazer."
O prazer era inexistente. O ar na garagem tinha ficado gelado. A presença de Yoko era como uma frente fria que extinguia o calor residual do verão. Ela não quebrou a atmosfera; ela a dominou, redefinindo-a em seus próprios termos.
"John, eu trouxe algumas ideias para aquele projeto de arte conceitual que discutimos", Yoko disse, voltando-se completamente para John, como se os outros tivessem desaparecido. "Precisamos de um espaço silencioso. Sua mente está muito barulhenta hoje. Está cheia de... melodias." Ela disse a última palavra com um leve tom de desaprovação, como se melodias fossem distrações frívolas.
John pareceu hesitar por um segundo. Seus olhos piscaram rapidamente em direção a Paul, e pela primeira vez, Paul viu algo nele: conflito. Mas foi rápido demais.
"Claro", John disse, sua voz recuperando a pose de indiferença. "Vamos dar uma volta. Aqui tá abafado mesmo."
E, sem se despedir, sem um olhar de explicação ou desculpa para Paul, John seguiu Yoko para fora da garagem. A porta ficou aberta, e Paul, George e Ringo os viram caminhar pela rua. Yoko falava baixo, suas mãos gesticulando de forma precisa. John ouvia, com a cabeça baixa, absorto.
A garagem, que minutos antes tinha sido um santuário de possibilidades, agora parecia apenas uma garagem suja e vazia.
George foi o primeiro a falar. Ele assobiou baixo. "Bem... isso não é a Cyn."
Ringo, sempre o mais perceptivo, encostou-se na porta. "Parece que nem humano isso é."
Paul não conseguiu responder. Ele ainda segurava o baixo, os dedos dormentes. A melodia de "Helter Skelter" tinha desaparecido completamente da sua cabeça, substituída por um zumbido estático. Ele olhou para o ponto na rua onde as figuras de John e Yoko haviam desaparecido.
O beijo, o toque, as promessas não ditas do verão – tudo pareceu se encolher, se tornar pequeno e insignificante diante daquela presença imediata e avassaladora. Yoko não era uma rainha de algodão doce. Ela era uma imperatriz de gelo, e com uma única visita, ela não apenas tinha reivindicado John; ela tinha declarado que o território onde Paul pensava estar seguro – o território da amizade, da música, dos segredos compartilhados – estava, na verdade, sob disputa.
E pior: pelo olhar de John, parecia que a rendição já havia acontecido.
Notes:
meh, escrever isso me deu sono
Chapter 4: IV
Summary:
:)
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O outono chegou de fato, trazendo consigo ventos cortantes e céus de um cinza metálico. A volta às aulas, que normalmente seria um reencontro barulhento e caótico, teve um sabor diferente para o quarteto. Algo fundamental havia mudado, e não era apenas a estação.
John Lennon havia se tornado uma fortaleza ambulante. Mas, ao contrário da "cidadela interior" que ele mesmo descrevera, esta não era um labirinto que Paul pudesse percorrer. Era uma estrutura fechada, com uma única ponte levadiça – e essa ponte estava agora guardada por Yoko Ono.
Ela estava em todos os lugares. Sentava-se ao lado de John nas aulas, não para prestar atenção, mas para fazer anotações em um caderno pequeno e preto, ocasionalmente passando bilhetes para ele que faziam John sorrir de um modo distante, introspectivo. Caminhava com ele pelos corredores, sua figura escura e silenciosa formando um contraste gritante com a algazarra adolescente. E, o mais doloroso para Paul, estava presente nos ensaios.
A garagem dos Starkey já não era mais seu refúgio. Era um campo minado. Yoko se instalava num canto, em um banquinho que Ringo trouxera da cozinha, e ficava observando. Ela não dizia nada, apenas observava com aqueles olhos que pareciam ver através da música, diretamente para a dinâmica frágil que a sustentava. Sua presença era um sufocante objet d'art que ninguém tinha coragem de questionar.
"Não aguento mais", George resmungou para Paul, em um raro momento em que estavam sozinhos no refeitório, enquanto Yoko e John haviam ido à biblioteca – outra nova atividade inexplicável do casal. "É como ter um crítico de arte de plantão. E pior: um que nem sequer gosta de rock."
Paul brincou com a comida no prato, sem apetite. "Ela não faz nada, George."
"Fazer ela não precisa, Paul! Ela está. E isso é pior. O John não é mais o John. Ele mal fala com a gente. Toda sugestão musical que a gente dá, ele olha pra ela, como se esperasse um sinal de aprovação." George imitou a voz de John, num tom monótono e afetado: "'Isso soa muito convencional, não acha, Yoko? Precisamos de algo mais quebrante, mais... conceitual''."
Paul sabia que George estava certo. Aos poucos, Yoko estava reescrevendo o código de John. As referências agora não eram mais à Revolução Francesa ou ao rock'n'roll dos anos 50. Eram ao fluxus, à arte performática, a conceitos japoneses de vazio e impermanência que soavam exóticos e, para Paul, assustadoramente frios.
A tentativa de Paul de reconquistar um pouco da antiga dinâmica foi desastrosa. Num ensaio, ele chegou animado com uma nova música, uma balada sincera que havia escrito pensando nos momentos que passaram juntos no verão. Era uma música sobre labirintos, claro, mas também sobre encontrar a saída.
"Olha, John, eu chamei de 'Let It Be'", ele disse, tentando soar descontraído, passando a letra para John.
John leu a letra com uma expressão vazia. Yoko se inclinou para ler por sobre seu ombro.
"When I find myself in times of trouble, Mother Mary comes to me", John leu em voz alta, e soltou uma risada curta, sem humor. "Mãe Maria, Paul? Agora você tá compondo hinos? Eu sei que você é um católico devoto, mas precisa mesmo enfiar isso goela abaixo da gente?"
Paul sentiu o rosto queimar. "É uma metáfora, John! É sobre encontrar paz, sobre..."
"Paz é uma ilusão burguesa", Yoko interveio, suave como um corte de papel. Sua voz não era alta, mas tinha um efeito de silenciar toda a sala. "A verdadeira arte vem do conflito, da desarmonia. Como o seppuku ritualístico. Uma beleza que nasce da agonia."
John olhou para Yoko, e Paul viu a admiração em seus olhos. Aquele era o tipo de provocação intelectual que John adorava.
"Ela tá certa, Macca", John disse, devolvendo a folha de papel. "Tá muito bonitinho. Muito... resolvido. A gente não tá resolto. A gente tá um caos. A música tem que ser um caos."
A palavra "caos", na boca de John, soou como um elogio quando dirigida a Yoko, e como uma crítica devastadora quando dirigida a Paul. A balada sobre paz e entendimento foi arquivada, e o ensaio continuou com John tentando forjar sons dissonantes e aleatórios que soavam mais como um acidente de trânsito do que como música.
O isolamento de John era mais do que artístico. Era físico. Ele já não aparecia mais no banco do parque depois da aula. Não ia à casa de ninguém. Suas ligações noturnas para Paul cessaram completamente. A ponte levadiça estava levantada, e Paul estava do lado de fora, na terra de ninguém, assistindo à silhueta de John caminhar pelos muros da fortaleza, sempre ao lado da guardiã sombria.
A gota d'água para Paul foi um episódio numa sexta-feira à noite. Ele, George e Ringo, fartos da atmosfera opressiva da garagem, decidiram ir ao cinema, sem convidar John, sabendo que a recusa seria certa – ou pior, que Yoko viria junto. Para sua surpresa, ao saírem da sessão, eles esbarraram com o casal do outro lado da rua.
Mas não era o John que eles conheciam. Este John estava vestindo uma roupa preta, similar à de Yoko. Seu cabelo, outrora rebelde, estava liso e pentado de maneira estranhamente formal. E ele segurava a pasta de Yoko, enquanto ela falava, gesticulando em direção ao céu noturno, como se estivesse explicando a disposição das estrelas.
"John!", Ringo chamou, com uma onda hesitante.
John os viu. Por um instante, um lampejo do velho John apareceu em seus olhos – um misto de surpresa e constrangimento. Mas então Yoko tocou levemente seu braço e sussurrou algo. O lampejo se apagou, substituído por uma distância glacial.
"Oi, pessoal", John disse, com uma voz que não carregava nenhum afeto. "Filme bom?"
"Mais ou menos", George respondeu, desconfortável. "Ritchie se assustou por ser um filme de terror. E vocês?"
"Yoko estava me mostrando a poesia do urbanismo noturno", John explicou, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. "A maneira como a luz artificial cria uma nova geometria sobre a fachada dos prédios. É fascinante."
Paul ficou parado, mudo. Aquela pessoa não era John Lennon. Era um tableau vivant de John Lennon, uma instalação ambulante curada por Yoko Ono. A pessoa que havia roubado beijos dele na varanda de George, que riu com ele sob o sol do verão, tinha sido apagada.
Yoko, então, fez a coisa mais cruel que poderia ter feito. Ela olhou diretamente para Paul, e um sorriso minúsculo, quase imperceptível, apareceu em seus lábios. Não era um sorriso de cumplicidade ou amizade. Era um sorriso de triunfo. Era o sorriso de alguém que não apenas havia conquistado o território, mas que havia removido todas as lembranças do antigo regime. O sorriso de um termidoriano ao ver que Robespierre caiu.
Sem dizer mais nada, o casal seguiu caminho, fundindo-se com as sombras da noite.
"Quem era aquele?", Ringo perguntou, incrédulo.
George apenas balançou a cabeça, desolado.
Paul não disse nada. Ele apenas ficou olhando para o vazio onde John havia estado. Pela primeira vez, a dor da rejeição deu lugar a outra emoção, mais quente e mais perigosa: um ódio fervoroso e impotente por Yoko Ono. Ela não estava apenas namorando John. Ela estava podando John. E, no processo, estava apagando o verão mais importante da vida de Paul.
Ele percebeu, naquele momento, que a guerra silenciosa havia sido declarada. E ele, Paul McCartney, o garoto "competente" e "certo", não tinha a menor ideia de como lutar contra uma imperatriz do gelo que parecia capaz de congelar até mesmo a memória. Mas uma coisa ele sabia: ele não podia ficar parado, assistindo àquela destruição em câmera lenta.
Chapter 5: V
Summary:
meh
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A raiva, Paul descobriu, era um combustível muito mais eficiente do que a tristeza. A dor aguda da rejeição se transformou em uma brasa constante de indignação. Yoko não havia simplesmente roubado John; ela havia cometido um assassinato cultural contra o garoto que Paul amava, embalsamando-o em conceitos de arte e intelectualidade vazia. E Paul, filho de um vendedor com um pragmatismo ferrenho, decidiu que era hora de sujar as mãos.
Sua estratégia não seria um ataque frontal. Isso seria como uma mosca tentando derrubar um torii, o portão sagrado de um santuário xintoísta. Não, a abordagem de Paul seria a de um cupim: silenciosa, constante, minando os alicerces até que a estrutura desabasse sozinha. Ele começou a estudar Yoko com a mesma dedicação com que estudava partituras.
Ele notou que ela tinha um ritual. Toda manhã, antes da primeira aula, ela e John iam para a biblioteca, onde ela lia para ele trechos de livros de filosofia obscura. Paul descobriu o cantinho deles, escondido atrás das estantes de história da arte. No dia seguinte, ele chegou mais cedo e, com o coração batendo forte, escondeu o livro favorito dela – um volume fino e preto sobre Fluxus – atrás de uma pesada enciclopédia de mitologia grega. O resultado foi um precioso quarto de hora de Yoko visivelmente irritada, vasculhando as estantes enquanto John parecia entediado, olhando pela janela.
Foi uma pequena vitória, mas para Paul, foi como o sucesso da Tomada da Bastilha. A imperatriz não era invulnerável.
Seus ataques eram sempre assim: pequenos, plausivelmente acidentais, e direcionados às coisas que Yoko mais valorizava – a ordem, o controle, a serenidade intelectual.
Num ensaio, enquanto Yoko discorria sobre a "beleza do acaso controlado" e sugeria que eles jogassem dados para decidir os acordes, Paul "acidentalmente" chutou o cabo do amplificador de John, causando um feedback agudíssimo que fez todos taparem os ouvidos. O som foi tão brutalmente real e desagradável que a fala de Yoko sobre "acaso" morreu naquele ruído estridente. John ficou irritado, mas foi uma raiva genuína, não a afetação distante que ele agora usualmente demonstrava.
"Porra, Paul! Cuidado!", ele gritou, e por um segundo, foi o John de volta.
"Desculpa, John! Foi sem querer", Paul disse, com uma inocência estudada. Por trás de John, ele viu o rosto de Yoko, impassível, mas seus dedos estavam apertando a capa do caderno preto com uma força que deixava as pontas brancas. Ela sabia. Paul tinha certeza de que ela sabia que não era um acidente.
George e Ringo eram cúmplices relutantes. Eles não aprovavam, mas entendiam o desespero de Paul.
"Isso não vai acabar bem, Paul", George advertiu, uma tarde em que Paul substituiu o café de Yoko – que ela bebia sem açúcar, como um "ato de purificação" – por uma mistura intensamente adocicada que ele sabia que ela detestava.
"O que não está acabando bem é o John", Paul retrucou, com uma amargura que não lhe era característica. "Você prefere aquele... zumbi filosófico que ele se tornou?"
"Não", Ringo interveio, sempre o pacificador. "Mas talvez existam maneiras melhores de trazer ele de volta do que... guerra química com café."
Mas Paul não via outra maneira. Cada pequeno sucesso o enchia de um ânimo perverso. Quando ele "sem querer" derramou água na cadeira de Yoko minutos antes dela se sentar, forçando-a a ficar em pé durante todo o ensaio com a saia manchada, ele quase sorriu. A serenidade dela rachou por alguns segundos, e ele viu um olhar de pura exasperação dirigido a ele. Era melhor do que qualquer beijo roubado no verão. Era poder.
Yoko, é claro, não era uma inimiga passiva. Suas retaliações eram tão sutis e precisas quanto os ataques de Paul. Se Paul valorizava a música, a harmonia, ela atacava exatamente isso.
Num dia em que Paul estava particularmente inspirado, liderando o grupo numa versão animada de "Long Tall Sally", Yoko esperou ele terminar, com o rosto suado e feliz, e então disse, com a voz suave como um corte de papel:
"Interessante, Paul. Você reproduz a energia do rock primitivo com uma fidelidade impressionante. É como visitar um museu de história natural e ver um dinossauro perfeitamente preservado. Parabéns."
O elogio foi a coisa mais depreciativa que Paul já tinha ouvido. Ele o reduzira a uma relíquia, um artefato sem vida. John riu, achando graça na "sacada inteligente" de Yoko. O sorriso de Paul congelou no rosto.
A batalha subterrânea atingiu seu auge durante a feira de artes da escola. Yoko e John tinham uma instalação: uma tenda preta onde, dentro, um único foco iluminava um par de óculos de John repousados sobre um livrinho de haikus. O título era "A Ausência Presente". Paul achou pretensioso e vazio.
Sua própria contribuição era um quadro que ele pintara às pressas: uma releitura de "A Morte de Marat", de Jacques-Louis David. Mas em vez de Marat na banheira, era uma figura de costuras, com cabelos escuros, tombada sobre uma escrivaninha, segurando uma folha de partitura. A lanterna que iluminava a cena vinha de uma janela aberta, por onde se via a silhueta de outra pessoa fugindo. Ele o chamou de "A Morte da Música". Era dramático, adolescente, e um grito de socorro disfarçado de arte.
Yoko e John pararam para observar o quadro. John ficou quieto por um longo tempo, seus olhos percorrendo cada detalhe. Paul, observando de longe, prendeu a respiração. Havia uma verdade naquela pintura, uma dor que talvez pudesse penetrar a barreira.
Yoko quebrou o silêncio. "Uma tentativa válida de apropriação da iconografia clássica, Paul. Mas um tanto... literal, não acha? Muito sangue e tragédia para os tempos modernos. Falta subtileza. Falta... yūgen."
"Yūgen?", John perguntou, mordendo a isca.
"É um conceito japonês. Significa uma beleza profunda e misteriosa que não pode ser descrita com palavras. Apenas sentido. Esta pintura grita. A verdadeira arte sussurra." Ela colocou a mão no braço de John. "Vamos, John. Nossa instalação está criando um fluxo de consciências interessantes."
John deixou-se ser guiado, mas não antes de lançar um último olhar para o quadro de Paul. Dessa vez, não havia distância ou zombaria. Havia confusão. E talvez, apenas talvez, um fio de preocupação.
Foi a primeira rachadura que Paul viu na armadura do casal. Pequena, quase invisível, mas estava lá. Ele não tinha conseguido trazer John de volta, mas tinha plantado uma semente de dúvida.
Mais tarde, na saída da feira, Paul encontrou Yoko sozinha, guardando alguns panfletos na mochila.
"Paul", ela disse, sem olhar para ele. "Sua pequena guerra de baixa intensidade é... divertida. Como observar formigas tentando derrubar uma cerejeira."
Paul parou, o sangue gelando em suas veias. Ela sabia de tudo.
"Eu não sei do que você está falando."
Ela finalmente ergueu os olhos. O sorriso dela não era de triunfo, era de pena. "John é uma alma profunda. Ele precisa de um desafio intelectual, não de baladas sentimentais e de truques infantis. Você o trata como um cachorrinho perdido que precisa ser salvo. Eu o trato como um igual. Como uma mente que merece ser desafiada. No fim, ele sempre escolherá o desafio sobre o consolo. É a natureza dele."
Ela virou-se e foi embora, deixando Paul paralisado no corredor vazio. A fúria que ele sentira antes pareceu insignificante perto da humilhação que ele sentia agora. Ela não apenas estava vencendo; ela estava explicando as regras do jogo para ele, como um professor para um aluno lento.
Suas sabotagens eram inúteis. Ele estava lutando contra uma força que não entendia. A batalha não era por atenção ou afeto; era por toda a identidade de John. E Yoko, com sua serenidade assassina, estava certa: ela entendia a escuridão que alimentava John de uma maneira que Paul, com seu desejo de harmonia e beleza, nunca poderia entender.
A questão que martelou na mente de Paul naquela noite, enquanto ele encarava o teto, não era mais como vencer Yoko. Era se ele seria capaz de se tornar algo tão sombrio e implacável quanto ela para conseguir o que queria. E a resposta, assustadoramente, começava a se formar em um cantinho escuro do seu coração, onde a brasa da raiva ainda não se apagara.
Chapter Text
O inverno chegou com garras de gelo, e a atmosfera entre o que restava do grupo congelou junto. A "pequena guerra" de Paul não era mais tão pequena, e as consequências começaram a cair como neve, silenciosas e acumulativas. A vitória sutil que ele sentira ao ver a confusão no rosto de John diante de seu quadro na feira de artes evaporou-se rapidamente, substituída por uma realidade mais dura: Yoko apertou o cerco.
A retaliação dela não veio na forma de mais sabotagens infantis. Veio na forma de um exílio. John Lennon tornou-se um fantasma na escola. Ele não frequentava mais o refeitório, as aulas de arte ou os corredores nos intervalos. Sua presença era anunciada apenas por breves aparições ao lado de Yoko, sempre a caminho de algum lugar mais importante, mais privado. A ponte levadiça não estava apenas levantada; o castelo inteiro havia desaparecido numa névoa impenetrável.
George e Ringo tentaram, a princípio. Ligaram para a casa de John, mas a tia Mimi, com sua voz áspera, sempre dizia que ele "estava ocupado com seus projetos". Foram até sua casa num sábado de manhã, mas foram recebidos pela própria Mimi na porta, os braços cruzados, informando que John não podia receber visitas.
"É ela", George disse, andando de volta para longe da casa, com as mãos enfiadas nos bolsos contra o frio. "Ele não está 'ocupado'. Ele está sequestrado. Ela convenceu ele de que nós somos... impuros. Que contaminamos o processo criativo dele."
Ringo chutou uma pedra no caminho. "E o pior é que ele acredita. O John sempre teve essa coisa de achar que todo mundo é burro e que ele é o único iluminado. A Yoko só alimentou isso."
Paul ouviu tudo em silêncio, um nó de frustração e medo apertando sua garganta. Ele tinha tentado ser sutil, tentando minar a influência de Yoko. Tudo o que conseguira foi acelerar o processo de isolamento. A arte da sabotagem requeria alvo, e o alvo havia simplesmente desaparecido.
A gota d'água final foi musical. Eles marcaram um ensaio na garagem dos Starkey, sem muita esperança de que John aparecesse. Para surpresa de todos, ele apareceu. Sozinho.
A esperança que acendeu no peito de Paul foi intensa e dolorosa. John parecia pálido, mais magro, mas estava lá. Sem Yoko.
"John!", Paul disse, incapaz de disfarçar o alívio. "Que bom que você veio."
John não sorriu. Ele apenas acenou com a cabeça, evitando o contato visual. "Só posso ficar uma hora. Yoko e eu temos uma sessão de gravação de sons ambientes na doca."
A garagem ficou em silêncio. Gravação de sons ambientes.
"Tá... bom", Ringo disse, quebrando o gelo. "Vamos tentar aquela nova que o Paul trouxe?"
Eles começaram a tocar. Era uma música mais rock, que Paul havia escrito para tentar agradar ao John "antigo". Mas algo estava terrivelmente errado. John estava mecanicamente, seus dedos encontrando os acordes no violão, mas sem alma, sem a fúria e a irreverência de sempre. Ele errava passagens simples. Parava no meio de um verso.
"John, você tá bem?" George perguntou, preocupado, após John parar de tocar completamente, ficando apenas olhando para as cordas do violão.
"Estou perfeitamente bem, Harrison", John respondeu, com uma frieza que cortou o ar. "Só estou pensando na inutilidade do gesto rock. É tão... performático. Tão falso."
Paul sentiu uma pontada de raiva. "Falso? É só diversão, John! É o que a gente sempre fez!"
John finalmente olhou para Paul, e o que Paul viu em seus olhos o deixou sem fôlego. Não era raiva, nem distância. Era um cansaço profundo, uma estranha resignação.
"Diversão é um consolo para os que não conseguem encarar o vazio, Paul", John disse, ecoando as palavras de Yoko com uma precisão assustadora. "Yoko me mostrou que a verdadeira arte está em abraçar o silêncio. O som é apenas a embalagem barulhenta do nada."
"O nada?", Paul repetiu, incrédulo. "John, pelo amor de Deus! Isso não é você! Quem é que fala assim?"
"Eu falo", John respondeu, simplesmente. "Agora eu falo."
Nesse momento, a porta da garagem se abriu. Yoko estava lá, envolta em um casaco preto largo, seu rosto uma máscara pálida contra o frio exterior. Ela não precisou dizer nada. Apenas olhou para John.
"Minha hora acabou", John disse, guardando o violão com movimentos rápidos.
"John, espera", Paul implorou, o desespero quebrando sua pose. "Fica só mais um pouco. A gente pode... pode tentar outra música. Como antigamente."
John hesitou, olhando para o rosto angustiado de Paul. Por um segundo, um conflito real pareceu surgir em seus olhos. Foi a centelha que Paul precisava ver. Ainda havia algo lá.
Yoko falou, sua voz suave cortando o momento como um fio de seda afiado. "John. O fluxo da maré não espera. Os sons da doca às 16h são únicos. É o momento da ausência ativa."
Era um absurdo. Era uma bobagem pretensiosa. Mas funcionou. O conflito nos olhos de John se apagou, substituído pela obediência de um discípulo.
"Vocês ouviram", John disse, dirigindo-se aos três, mas sem olhar para nenhum deles diretamente. "A maré não espera."
E ele seguiu Yoko para fora da garagem, deixando para trás um silêncio pesado, muito mais eloquente do que qualquer ruído que eles pudessem gravar na doca.
Paul ficou parado, segurando seu baixo. A garagem, outrora um santuário de barulho e confusão, parecia um caixão. George desligou seu amplificador com um clique seco.
"Pronto", Ringo disse, sua voz calma carregada de uma tristeza profunda. "Acabou."
Paul não conseguiu responder. A cena que se desenrolara diante dele não era apenas uma briga de amigos. Era um apagamento. Yoko não estava apenas controlando John; ela estava sistematicamente erradicando tudo o que ele era, tudo o que ele amava, e substituindo por uma filosofia de vazio. E o pior de tudo era que John parecia um condenado aceitando sua sentença.
A raiva em Paul ferveu, transformando-se em algo mais frio e mais perigoso: uma certeza. Ele não estava mais tentando "trazer John de volta". Ele estava tentando salvá-lo. Salvá-lo de uma lavagem cerebral, de uma aniquilação espiritual. E se os meios sutis não funcionavam, então meios menos sutis seriam necessários.
A conversa com Yoko no corredor da escola voltou à sua mente: "No fim, ele sempre escolherá o desafio sobre o consolo."
Paul olhou para as mãos vazias. O desafio, agora, não era mais intelectual. Era uma questão de sobrevivência. E Paul McCartney, o garoto competente e harmonioso, começou a considerar, pela primeira vez, que talvez precisasse se tornar um desafio muito maior e mais sombrio do que Yoko Ono poderia imaginar. O consolo havia falhado. Restava apenas o conflito.
Notes:
:)
Chapter 7: VII (ou Anás e caifás)
Summary:
A missa de domingo fica interessante
Notes:
oii gente, voltei a postar só agr pq eu tava ocupada com coisas da igreja e da minha mudança :))
aproveitem o capitulo!
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
A culpa era um peso físico. Paul a carregava nos ombros na manhã de domingo, enquanto vestia seu uniforme de coroinha – uma túnica branca sobre outra túnica vermelha, que agora lhe parecia uma fantagem hipócrita. Cada pequeno ato de sabotagem, cada pensamento de ódio, cada fantasia sombria que o visitava nas vigílias da noite grunhia como um demônio às portas de sua consciência.
A igreja de São Pedro era seu refúgio de sempre, o lugar onde a desordem do mundo se aquietava sob a solenidade do latim e do incenso. Mas naquele domingo, o próprio santuário parecia contaminado. Ele havia se confessado mais cedo, murmurando meias-verdades ao padre Jones – "Tenho tido pensamentos ruins, padre... ciúmes... raiva" –, omitindo os detalhes mais sórdidos de sua guerra particular. A absolvição parecera um mero protocolo, um perdão que não conseguia penetrar o gelo que se formara em torno de seu coração.
Ele se postou ao lado do altar, segurando a bandeja de prata para a comunhão, suas mãos trêmulas. A cerimônia prosseguiu como um rio lento: os cânticos, as leituras, o cheiro reconfortante da hóstia consagrada. Paul focou no ritual, tentando afogar o turbilhão de pensamentos na repetição milenar. Ele olhava para os fiéis que se aproximavam, idosos de rostos serenos, mães com filhos inquietos, a tessitura normal de sua comunidade.
E então, o mundo desabou.
Viu-os chegando pelo corredor central: a família Ono. Eram diferentes, um bloco compacto de silêncio e elegância discreta. O Sr. e a Sra. Ono e o que parecia ser a irmã mais nova de Yoko, impecáveis, com expressões de profunda reverência. E atrás deles, Yoko.
Ela vestia calça social preta e uma blusa preta, um visual conservador, que refletia talvez certos pensamentos da familia dela. Seus cabelos negros, lisos como uma queda-d'água, caíam sobre os ombros. Ela não olhava para os lados, mantinha os olhos baixos, as mãos unidas. Parecia a figura mais piedosa da congregação. Paul sentiu um suor frio percorrer sua espinha. Era uma invasão. Ela havia penetrado seu último reduto de paz.
A fila foi avançando. O padre Jones, com sua voz grave, oferecia a hóstia. "O Corpo de Cristo."
"Amém", respondiam os fiéis, um após o outro.
O coração de Paul batia com tanta força que ele temia que todos ouvissem. A família Ono se aproximou do altar. O Sr. Ono, depois a Sra. Ono, depois a irmã mais nova de Yoko. E então, Yoko. Ela ajoelhou-se no genuflexório, ergueu o rosto. O padre pegou uma hóstia.
"O Corpo de Cristo."
Yoko ergueu os olhos. E não foram olhos de devoção. Eram olhos de um predador que encontrou sua presa em terreno sagrado. Ela olhou diretamente para Paul, que segurava a bandeja ao lado do padre, paralisado. Seus lábios se moveram.
"Amém."
Mas antes de receber a hóstia, um sorriso minúsculo, rápido como o piscar de uma câmera, tocou seus lábios. Não era um sorriso de paz. Era um sorriso de reconhecimento. Era o sorriso de alguém que sabia exatamente que tipo de "pensamentos ruins" Paul carregava e que se deleitava em vê-lo ali, encurralado sob as vestes de uma pureza que não sentia. Foi um instante, mas para Paul, durou uma eternidade. Ela recebeu a hóstia, fez o sinal da cruz e se levantou com uma graça fluida, seguindo os pais de volta ao banco.
O resto da missa passou como um sonho febril para Paul. O sangue zumbia em seus ouvidos, abafando as palavras do padre. Ele se sentia exposto, profanado. Yoko não estava apenas em todos os lugares; ela estava agora dentro do seu próprio templo, sorrindo para ele no momento mais sagrado. Era uma violência psicológica tão perfeita que parecia coreografada.
Finalmente, a missa terminou. Os fiéis saíam cumprimentando o padre na porta. Paul, atordoado, ajudou a recolher os objetos sagrados e foi para o salão paroquial tirar a túnica. Precisava de ar. Precisava fugir dali.
Ao sair pela porta lateral da igreja, o sol fraco de inverno o cegou por um instante. E então, ele a viu. Yoko estava sozinha, apoiada no muro de pedra do cemitério anexo, como se o esperasse. Seus pais já deviam ter ido embora.
"Paul", ela chamou, sua voz suave como veludo. "Que coincidência. Não sabia que você era um homem de fé."
Paul parou, seus pés pareciam enraizados no chão. "O que você quer, Yoko?"
"Absolutamente nada", ela disse, examinando as goticulas de orvalho numa teia de aranha próxima. "Apenas apreciar a ironia. Você aqui, servindo ao corpo de Cristo, depois de ter passado a semana inteira tentando envenenar o meu. Há uma certa... beleza na contradição, não acha? Como um haiku sobre a hipocrisia."
Paul sentiu uma onda de calor subir pelo seu pescoço. "Eu não sei do que você está falando."
"Claro que sabe", ela riu baixinho, um som sem alegria. "O café açucarado. O livro escondido. Aquele quadrinho mequetrefe que você pintou com essas suas mãozinhas bestas. São performances tão fracas, Paul. Arte pop. Descartável. Previsível." Ela se virou para ele, e seus olhos eram poços escuros. "O padre deve ter gostado da sua confissão hoje. Aposto que foi adorável. Como um filme da Disney."
Ele engoliu em seco. Ela sabia até disso. Ela parecia saber tudo.
"John pertence a um mundo que você não consegue nem imaginar", ela continuou, avançando um passo. Sua voz era um veneno puríssimo, destilado em gelo. "Um mundo de ideias, não de sentimentinhos baratos e melodias para garotas chorarem. Você acha que é sobre ciúmes? Sobre um crush de colégio? Isso é tão patético. É sobre a mente dele. Algo que você nunca será capaz de tocar."
Cada palavra era um alfinetada perfeita, encontrando as inseguranças mais profundas de Paul. Ela não gritava, não xingava. Ela dissecava.
"Ele está feliz comigo", Paul conseguiu dizer, a voz fraca.
"Feliz?" Ela arqueou uma sobrancelha fina. "A felicidade é para os simples, Paul. John não quer ser feliz. Ele quer ser importante. Eu o faço importante. Você... você só quer fazê-lo confortável. Como uma canção de ninar. Ele já cresceu."
Ela deu mais um passo, e agora estava perto o suficiente para que Paul sentisse o cheiro leve de seu perfume, algo amadeirado e estranho.
"Pare de tentar, Paul", ela sussurrou, e a suavidade era a parte mais assustadora. "Você é um menino bom num mundo de adultos. Vá para casa. Toque suas músicas fofinhas. Deixe o verdadeiro trabalho para quem sabe fazê-lo."
E, com um último sorriso que não chegou aos olhos, ela virou-se e caminhou calmamente pelo caminho de pedra, desaparecendo atrás dos grandes pinheiros.
Paul ficou parado, tremendo não de frio, mas de uma raiva tão profunda e impotente que o deixou nauseado. Ela havia transformado até sua fé em uma arma. Ela havia invadido sua igreja, zombado de seu arrependimento e reduzido seu amor a "sentimentinhos baratos".
Ele olhou para as lápides antigas no cemitério. A paz que ele viera buscar na missa havia se transformado em um desespero silencioso. Yoko não era apenas uma rival. Ela era uma força da natureza, uma escuridão que consumia tudo. E suas palavras ecoavam em sua mente: "Pare de tentar."
Mas ele não podia parar. A humilhação daquele domingo, a profanação daquele sorriso durante a comunhão, queimava dentro dele como fogo sagrado. A batalha não era mais por John. Era por sua própria alma. E Paul McCartney, o coroinha, o filho do vendedor, o garoto harmonioso, percebeu, com um frio na espinha, que a única maneira de lutar contra um demônio que desprezava a luz... era descer até a escuridão para enfrentá-lo em seu próprio terreno.
Notes:
acabei de descobrir que a yoko faz parte de um clã de gente com money la do japão (um zaibatsu), os Yasuda ( a familia poncio do japão). Ela é católica aqui
Chapter 8: VIII
Summary:
baseado em fatos reais (ja me ocorreu)
Chapter Text
A paz dominical na casa dos McCartney era um ritual tão sagrado quanto a missa em si. O cheiro do assado de domingo impregna a sala, a rádio sussurrando notícias suaves, e James McCartney, o pai de Paul, lendo o jornal com seus óculos na ponta do nariz. Era um cenário de ordem e respeito, um mundo a anos-luz das sombras e dos sussurros venenosos que agora assombravam Paul.
Essa paz foi quebrada por uma batida na porta, seca e formal.
James franziu a testa, abaixando o jornal. "Quem seria num domingo à tarde?"
Paul, que estava tentando focar na lição de história na mesa da sala, sentiu um frio percorrer sua espinha. Um pressentimento ruim, pesado como chumbo, se instalou em seu estômago.
James foi atender. Paul ouviu vozes na entrada – a voz grave de seu pai e outras, polidas e geladas. Ele não conseguia distinguir as palavras, mas o tom era inconfundivelmente sério.
"Paul", a voz de James ecoou pelo corredor, carregada de uma rigidez que raramente era dirigida ao filho. "Pode vir aqui, por favor?"
Paul se levantou, suas pernas parecendo de gelatina. Ao entrar no hall de entrada, o cenário confirmou seus piores pesadelos. Lá estavam o Sr. e a Sra. Ono, impecáveis em seus casacos caros, com expressões de severa decepção. E um pouco atrás, ligeiramente afastada, como uma vítima recatada, estava Yoko. Seus olhos estavam baixos, suas mãos entrelaçadas. Ela parecia frágil, assustada. Era uma atuação magistral.
"Paul", o Sr. Ono começou, seu sotaque cortando cada palavra com precisão cirúrgica. "Esperamos não estar interrompendo sua tarde. Viemos tratar de um assunto de extrema gravidade."
James McCartney cruzou os braços, seu rosto uma máscara de preocupação e confusão. "Dizem que você ameaçou a filha deles, Paul. Isso tem algum fundamento?"
Paul sentiu o chão desaparecer. "O quê? Eu... não! Eu nunca ameacei a Yoko!"
Yoko ergueu os olhos por um instante, o suficiente para Paul ver uma lágrima fingida tremendo em seus cílios. "Ele... ele me abordou depois da missa, pai", ela sussurrou, sua voz trêmula. "Disse que eu era uma intrusa. Que eu estava arruinando a vida do John. Disse que... que eu devia tomar cuidado, porque as coisas poderiam 'ficar feias' para mim."
Era uma mentira. Uma mentira grotesca e perfeita. Ela havia pegado a tensão real, os ciúmes óbvios, e os tinha embrulhado numa acusação plausível. Paul ficou paralisado, olhando de seu pai, cético mas preocupado, para os rostos impassíveis dos Ono, e para a performance ganhadora de Oscars de Yoko.
"Paul, é verdade isso?" James perguntou, sua voz mais suave, mas ainda carregada de desapontamento.
"Não, pai! Juro por Deus! Ela está mentindo!" A voz de Paul saiu estridente, desesperada, o que só fez com que soasse mais culpado. "Ela é que falou comigo! Ela me insultou!"
O Sr. Ono soltou um suspiro profundo, de cansada resignação. "Sr. McCartney, compreendemos que seja difícil aceitar. O Paul parece ser um bom jovem. Mas nossa filha não é dada a invencionices. Ela chegou em casa hoje muito abalada. Temos que levar a sério a segurança de Yoko."
"Claro, claro", James disse, passando a mão no rosto. Ele era um homem prático, que acreditava na ordem e na palavra de adultos respeitáveis. A palavra de seu filho adolescente, emocionado e claramente envolvido num drama de colégio, pesava menos na balança.
"Não queremos envolver a polícia", a Sra. Ono acrescentou, seu olhar era de pena, o que era ainda pior do que a raiva. "Acreditamos que isso seja um deslize juvenil, um excesso de... paixão. Mas precisamos de garantias."
Foi quando o Padre Jones apareceu na porta, sua figura imponente preenchendo o vão. Ele deve ter sido chamado pelos Ono. Sua presença conferiu ao evento um ar de tribunal eclesiástico.
"James, Paul", o padre cumprimentou, com um aceno grave. "Parece que temos uma situação delicada."
"Padre, meu filho jura que não fez isso", James disse, quase suplicando.
O Clérigo olhou para Paul. Seus olhos, normalmente bondosos, estavam sérios. "Paul, isso é um pecado grave. Pobre Yoko já sofre tanto preconceito na escola, e na casa de cristo você faz isso! Estou decepcionado. Não é uma atitude que eu esperava de um servo do altar''
Era a estocada final. Ele estava sendo julgado e condenado por um crime que não cometeu, com base nas palavras de uma uma garota que ele mal conhecia, mas que odiava com um fervor crente
"Eu não fiz nada", Paul repetiu, mas sua voz já tinha perdido a força. Era um sussurro derrotado.
O Padre Jones colocou uma mão pesada no ombro de Paul. "Acredito que um período de reflexão fará bem à sua alma, Paul. Para seu próprio bem, e para a paz de todos, você ficará afastado das suas funções como coroinha pelas próximas duas missas. Use esse tempo para orar e encontrar a verdade dentro de você. E que isso não ocorra outra vez, se não, terei que avisar a diocese para te afastar de suas funções por tempo indefinido"
A punição foi um golpe mestre. Não era suspensão da escola, nem uma bronca do pai. Era uma humilhação espiritual. Era bani-lo do altar, do único lugar onde ele ainda buscava algum conforto. Era marcar publicamente, perante a paróquia, que Paul McCartney não era mais digno de servir. E de brinde, uma ameaça para uma próxima vez que com certeza não aconteceria
Os Ono pareceram satisfeitos. Era uma punição elegante, não violenta, que causava o máximo de dano à reputação de Paul. Yoko, ainda com os olhos baixos, permitiu que um pequeno e fugaz sorriso de triunfo tocasse seus lábios – um sorriso que só Paul pôde ver.
"Esperamos que isso resolva o assunto", o Sr. Ono disse, apertando a mão de James. "Desejamos ao Paul que reencontre o bom caminho."
Eles saíram, deixando para trás um silêncio pesado. O Padre Jones deu um último olhar de "espero que você aprenda a lição" para Paul e se foi.
James McCartney fechou a porta e se virou para o filho. Ele não gritou. Parecia apenas cansado e velho.
"Paul... o que está acontecendo com você? Briga de namoro? Por essa garota japonesa?"
Era tão simples, tão errado, que Paul não teve forças para explicar. Como explicar a guerra fria, a sabotagem, a aniquilação psicológica? Para seu pai, era uma briga de criança.
" eu não sou uma bicha, pai! Não estou brigando por amor!", foi tudo que Paul conseguiu dizer, a voz rouca. Uma mentira
James suspirou. "Duas missas sem servir. Faça as pazes com quem você tem que fazer, filho. Esse tipo de drama não leva a nada de bom."
Paul subiu para seu quarto, cada passo como se carregasse o peso da própria cruz. Ele se jogou na cama, encarando o teto. A raiva que ele sentira antes era um fogo aberto. Agora, era algo diferente. Mais profundo. Mais perigoso. Era um gelo negro de ódio puro.
Yoko não havia apenas vencido uma rodada. Ela havia demonstrado um poder absoluto. Ela podia manipulá-lo, isolá-lo, humilhá-lo publicamente e ainda sair como a vítima. Ela havia usado as instituições – a família, a igreja – como armas contra ele. Ela era intocável.
As lágrimas que vieram então não eram de tristeza. Eram de fúria impotente. Ele mordeu o travesseiro para não gritar. Ser banido do altar era a prova final de que não havia justiça, não havia perdão. O mundo de ordem e harmonia em que Paul acreditara havia se revelado uma farsa.
Na escuridão de seu quarto, a semente que Yoko plantara com seu veneno finalmente germinou. A ideia que antes era um pesadelo distante, um pensamento intruso, agora se apresentava como a única solução lógica, a única maneira de quebrar um poder que era, de fato, maligno.
Se ela era intocável, ela precisava ser... removida.
Não por ciúmes. Não por um amor não correspondido. Mas por sobrevivência. Era ela ou ele. Era ela ou o John que ele conhecera. Era uma medida extrema para uma tirania extrema.
Paul McCartney, o garoto que servia a Cristo, decidiu, naquela tarde silenciosa, que estava disposto a cometer um pecado mortal para expulsar um demônio de sua vida.
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Deus, Paul decidiu, tinha um senso de humor profundamente questionavel. A mesma teia de poder e influência que Yoko usou para destruí-lo agora tecia uma ironia cruel. James McCartney, após anos no mesmo emprego estável mas sem perspectivas, conseguira uma posição melhor. Um cargo de contador júnior no Banco Fuji.
Sim. O Fuji. A instituição da qual a família de Yoko não apenas era acionária, mas, como Paul descobriu com um nó no estômago, que era a familia fundadora. A promoção do Sr. McCartney não foi um acaso; foi um movimento calculado, um fio puxado pela própria Yoko para aproximar sua presa.
A notícia foi recebida com alegria na casa McCartney. "É uma oportunidade incrível, filho!", Jim dissera, radiante. "Pessoas como os Ono abrem portas. Precisamos retribuir a gentileza."
Gentileza. Paul mal conseguia engolir a comida naquela noite. Era como ser forçado a jantar com o carrasco que o condenara. A tão hipocrita politica da boa vizinhança
A aproximação forçada foi imediata e agonizante. Sob o pretexto de "começar do zero", os Ono convidaram os McCartney para um jantar. Foi uma noite de tortura surreal. Yoko e Paul sentaram-se um de frente para o outro na mesa de jantar de mogno, polida até brilhar, enquanto seus pais conversavam animadamente sobre taxas de juros e o mercado imobiliário de Liverpool.
Yoko estava impecável. Ela falou com Paul sobre escola, sobre música, com uma doçura tão falsa que era quase transparente.
"Paul, você deve estar tão ocupado com a banda", ela disse, tomando um gole de água. "John fala tão bem das suas habilidades. Diz que você é o cimento que mantém tudo unido."
A palavra "cimento" soou como um insulto. Algo rígido, utilitário, sem graça.
"Tentamos", Paul respondeu, forçando um sorriso. "Mas tem sido difícil sem o John nos ensaios."
"Ah, sim, ele está tão imerso em nosso novo projeto", Yoko respondeu, seus olhos brilhando com malícia. "Uma instalação sonora sobre a pressão social. É fascinante como as expectativas podem esmagar uma pessoa, não acha?"
Paul sentiu a faca torcer. Ela estava se divertindo. Era como uma cena de um filme onde a vilã convida o herói para chá, sabendo que envenenou o bolo.
Nos corredores da escola, a dinâmica mudou. Yoko, antes uma sombra distante, agora se aproximava de Paul com uma frequência assustadora. Era sempre com um sorriso doce, uma pergunta inocente.
"Paul, querido, você poderia me ajudar com esta equação? A matemática é tão... terrena. Preciso de uma mente prática como a sua."
"Paul, você viu John? Ele prometeu me encontrar na biblioteca. Às vezes ele some, sabe? Como um gatinho perdido. Mas ele sempre volta para mim."
Cada interação era um golpe de veneno envolto em algodão. Ela o chamava de "querido", de "prático", de "terreno", sempre ressaltando a suposta superioridade intelectual dela e de John. E pior: na frente dos outros, parecia que Paul e Yoko haviam enterrado o machado de guerra. Pareciam amigos.
George e Ringo testemunhavam aquele espetáculo bizarro com crescente horror. Era pior do que a guerra aberta.
"O que está acontecendo?", George sussurrou para Paul, depois de Yoko se afastar, deixando para trás um rastro de perfume e falsidade. "Por que ela está agindo como se você fosse o melhor amigo dela?"
"É o jogo dela, George", Paul respondeu, sua voz cansada. "Meu pai trabalha para o pai dela agora. Ela quer me mostrar que controla tudo. Até a minha família."
Ringo balançou a cabeça, perplexo. "É assustador. É como aquelas aranhas que envolvem a presa na seda antes de comer. Ela tá te enrolando, Paulie"
E era exatamente isso que Paul sentia. Ele estava sendo lentamente sufocado por uma cortesia pública. Ele não podia revidar, não podia mostrar sua raiva. Qualquer explosão seria vista como desequilíbrio, confirmando a narrativa de que ele era o perturbado, o ciumento. Yoko havia criado uma gaiola de ouro para ele, e agora dançava em volta, admirando seu trabalho.
O ápice da farsa foi um evento de arrecadação de fundos da escola, organizado pela família Ono. Paul foi obrigado a ir, claro. Yoko, vestindo um conjunto de alfaiataria japonesa preto de seda legitima, que a fazia parecer uma boneca valiosa e mortal, o arrastou para uma apresentação.
"Todos", ela anunciou para um grupo de pais e professores, "gostaria de apresentar Paul McCartney. Um talento musical incrível e um amigo tão prestativo. Ele e John Lennon são como irmãos. É tão lindo ver essa amizade, não é?"
Ela colocou um braço sobre os ombros de Paul, num gesto que parecia afetuoso, mas cujos dedos se cravavam em seu músculo como garras. Paul sorriu para a plateia, um sorriso congelado e dolorido. Ele sentiu os olhos de George e Ringo sobre ele, cheios de pena e incredulidade.
Naquele momento, encolhido sob o braço de Yoko, forçado a participar da própria humilhação, Paul atingiu o fundo do poço. A raiva deu lugar a uma calma estranha e mortal. Ele percebeu que não podia vencer Yoko no jogo dela. Ela era a mestra das regras sociais, da manipulação emocional.
Ele olhou para o sorriso plástico dela, para os olhos dos pais admirados, para a vida perfeita e falsa que ela construía. E ele entendeu que a única maneira de quebrar uma boneca de porcelana não era discutindo com ela. Era jogá-la no chão.
O plano que era uma sombra na sua mente começou a tomar forma, não mais como um ato de paixão, mas como uma solução lógica, quase burocrática. Um problema que precisava ser resolvido. Yoko Ono era um bug no sistema da vida dele. E bugs precisam ser eliminados.
A dança das serpentes no jardim de cimento da escola continuou, mas Paul já não se sentia mais como a presa. Ele observava Yoko, estudando seus movimentos, seus hábitos, suas rotinas. Ele estava se tornando o caçador. E a isca, ironicamente, era ele mesmo.
Notes:
Não postei por todo esse tempo pq tava mt ocupada com as coisas ds minha mudança (e tive um bloqueio criativo terrivel)
Chapter 10
Summary:
feliz haloweennnn
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A falsa paz era um véu fino, e Paul sentia que ele poderia rasgar a qualquer momento com um simples movimento errado. Sua vida havia se tornado um palco onde ele representava o papel do "amigo prestativo" sob o olhar onipresente e triunfante de Yoko. Mas por trás do sorriso, a máquina de guerra dentro de sua mente trabalhava incessantemente.
Ele se via, em seus devaneios mais sombrios, não mais como o garoto de Liverpool, mas como uma figura de capa de livro de história. Às vezes, era Charlotte Corday, a jovem girondina de rosto sereno que apunhalou Marat na banheira, convencida de estar sacrificando um monstro para salvar a Revolução. Ele via a si mesmo aproximando-se de Yoko – a nova Marat, escrevendo seus decretos de isolamento e loucura de dentro de sua banheira de pretensão intelectual – com as mãos firmes, realizando um ato necessário de saneamento público.
Outras vezes, ele era Robespierre, o Incorruptível. Aquele que via a virtude não na bondade, mas na frieza implacável necessária para purificar a nação dos inimigos da República. A mente de John era a República, e Yoko era a traidora, a austríaca, a invasora, a viúva capeto a ser levada à Place de la Révolution. "O terror é apenas a justiça rápida, severa e inflexível", sussurrava uma voz dentro dele, parafraseando o revolucionário. E Paul sentia que estava se tornando inflexível.
Essas fantasias eram interrompidas pela realidade banal: Yoko pedindo para ele carregar sua pasta, ou elogiando sua "dedicação comovente" à banda na frente dos outros. A dissonância era enlouquecedora.
E então, o impossível aconteceu.
Foi num ensaio surpreendentemente produtivo. Yoko tinha uma consulta com um dentista, para corrigir o aparelho ou algo assim, e John, inexplicavelmente, apareceu sozinho na garagem dos Starkey Pela primeira vez em semanas, não havia a sombra negra no canto. A energia era diferente. John parecia mais leve, menos tenso. Ele até fez uma piada idiota sobre o professor de história, e por um segundo, foi como se o verão tivesse voltado.
George e Ringo perceberam a mudança e exploraram ao máximo, puxando velhas rockabilly que John adorava. Eles tocaram, suaram, riram. Paul quase conseguiu esquecer. Quase. Ele observava John, aquele lampejo de vida genuína no lugar da pose intelectual, e seu coração doía de uma maneira nova. Não era só desejo ou amor; era uma saudade visceral da pessoa que estava sendo mantida refém.
No final, George e Ringo saíram primeiro, deixando para trás os amplificadores ligados em standby, um zumbido baixo preenchendo o ar. Paul arrumava seu baixo, tentando prolongar o momento. John estava encostado na parede, acendendo um cigarro.
"Foi legal hoje", John disse, o fumo saindo por suas narinas. "Como antigamente."
Paul olhou para ele. A luz fraca da garagem suavizava seus traços. "É. Foi."
Um silêncio caiu, mas não era o silêncio pesado de antes. Era carregado de algo não dito, da memória daqueles beijos de verão. John olhou para Paul, e seus olhos não estavam distantes. Estavam focados, intensos. Havia uma luta visível neles, como se o "John antigo" estivesse lutando para vir à tona.
"Às vezes...", John começou, e sua voz estava mais suave, mais vulnerável. "Às vezes eu sinto falta... disso."
Paul sentiu o ar faltar. "Do quê?"
"Disso. Da bagunça. Do barulho sem significado profundo." Ele deu uma risada amarga. "Yoko... ela fala em silêncio, mas às vezes o silêncio é só... silêncio. Vazio."
Era a primeira vez que John admitia qualquer dúvida. Era a brecha na fortaleza, a rachadura no gelo. Paul viu sua chance. A chance de ser Charlotte Corday não com um punhal, mas com um beijo. Um beijo que pudesse lembrar John do que ele estava perdendo.
Ele se aproximou. John não recuou. Ele apenas olhou para Paul, seus olhos âmbar queimando com uma mistura de confusão e desejo.
"John", Paul sussurrou, seu rosto a centímetros.
Foi John quem fechou a distância.
O beijo não foi doce ou hesitante como os do verão. Foi desesperado, faminto, cheio de uma raiva contida de ambos os lados. Era o gosto do cigarro, do suor e de uma saudade imensa. As mãos de John se enterraram nos cabelos de Paul, puxando-o para mais perto, como se ele fosse um homem se agarrando a um pedaço de madeira em um naufrágio. Paul correspondeu com a mesma intensidade, seus dedos se apertando na jaqueta de couro surrada de John.
Por um momento, tudo mais desapareceu. Yoko, a manipulação, a culpa, a raiva – tudo foi varrido pelaquele contato físico cru. Foi um beijo de guerra, um beijo de despedida, um beijo de volta à vida. Paul sentiu uma pontada de triunfo. Ele ainda podia alcançá-lo. A chama ainda estava lá.
E então, a porta da garagem se abriu.
A luz do fim de tarde entrou, iluminando a poeira no ar. E no vão da porta, silhueta perfeita contra a luz, estava Yoko.
Ela não parecia surpresa. Não parecia zangada. Seu rosto era uma máscara de gelo sereno. Ela deve ter chegado mais cedo da consulta. Deve ter ouvido. Deve ter esperado.
John se afastou de Paul como se tivesse levado um choque, seu rosto pálido de pânico.
"Yoko... eu...", ele gaguejou.
Paul, ofegante, sentiu o gosto do triunfo se transformar em cinzas. O beijo não tinha sido uma vitória. Tinha sido uma armadilha. E ele tinha caído nela.
Yoko não olhou para John. Seus olhos, escuros e infinitos, estavam fixos em Paul. E neles, Paul não viu raiva. Viu... gratidão. Era o olhar de um general que vê o inimigo cometer um erro fatal.
"Parece que interrompi uma... sessão de ensaio muito intensa", ela disse, sua voz suave como a seda de uma corda de enforcamento. "John, querido, vim te buscar. Lembra? Temos aquele compromisso com o curador do museu."
John, ainda tremendo, pareceu encolher diante dela. O homem que moments antes beijara Paul com fúria agora parecia um menino apanhado em flagrante. "Sim. Claro. Vamos."
Ele nem olhou para trás. Seguiu Yoko para fora da garagem, sua cabeça baixa.
Paul ficou sozinho no centro da garagem, o sabor dos lábios de John ainda em sua boca, como um fantasma. O beijo tinha sido real, a conexão tinha sido real. Mas Yoko havia transformado aquilo na prova definitiva da narrativa dela: Paul, o obcecado, assediando o pobre John, que era tentado a cair em velhos vícios.
Ela não precisaria mais de mentiras. Ela tinha testemunhas. Ela tinha a verdade, distorcida em sua moldura perfeita.
A calma que Paul sentira antes se transformou em uma certeza gelada. Não havia mais volta. Negociações estavam encerradas. A Assembleia havia sido dissolvida. O beijo de Judas que ele tinha dado – ou recebido – selara o destino de todos.
Ele olhou para suas mãos. Já não se via como Charlotte Corday, a assassina solitária. Agora, ele era o próprio Terror. A guilhotina não era mais uma metáfora. Era uma necessidade. E o pescoço sobre a cesta, ele sabia com uma clareza aterradora, pertencia a Yoko Ono.
O período de clemência havia acabado.
